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Grande Entrevista – Géneros Jornalísticos

“Pinto a liberdade e a ausência dela adaptada aos dias de hoje”

Apresentamos José Manuel Santiago Ribeiro, um dos pintores nacionais mais conceituados da corrente surrealista. Nasceu em 1964, em Condeixa-a-Nova, mas vive atualmente em Coimbra, cidade para onde se mudou durante os seus tempos de estudante. Começou por uma simples paixão de miúdo, a desenhar livremente, durante a sua infância. Desde criança que a ficção e o sonho fazem parte do seu mundo criativo.

Recorda que gostava de contemplar os lápis de cor e os vários tons fascinavam-no. Passou a preferir a companhia do papel e do lápis, à dos seus colegas no recreio. Com o passar dos anos, ‘libertou-se’, teve um encontro com o surrealismo e aí, a sua paixão passou a ser mais complexa. Numa constante inquietude e preocupação com os estereótipos sociais e a prisão capitalista, tenta a sua libertação na tela. Em Coimbra, tem obras expostas no Museu Machado de Castro e na Fundação Bissaya Barreto, mas os seus quadros já correram a Europa.

O seu objetivo? - materializar o impensável da mente humana, provocar, espreitar sempre para o mais além, confundir elementos , construindo na tela um tempo diferente do real. É isto o surrealismo e é sobre isso que vamos conversar.

A arte é a expressão da sociedade e, para Voltaire, “Pintura é poesia sem palavras”, é este conceito de transmissão de pensamentos e sensações que faz com que exista sempre inspiração?

Claro. É um modo de sentir as mensagens e as sensações, é um meio de comunicação. Agora inspiração para isso depende dos autores. Muitas vezes temos brancas. Quando as tenho, ponho-me a fazer experiências, até aparecer qualquer coisa. Ultimamente não, faço sempre protótipos, pequenos protótipos, antes de partir para o quadro em si. E nunca fica igual, fica sempre nessa fase, nessa onda. Os artistas criam um estilo próprio, uma forma de transmissão distinta, e depois nesse estilo tem fases – podem incluir elementos diferentes que posteriormente vão passando, vão evoluindo, vai mudando o próprio estilo. Daí a uns anos, o que pintam pode não ter nada a ver com o que faziam há 10/20 anos. A evolução não pode parar. A inspiração é uma coisa que não controlamos, não há explicação.

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Onde começou essa paixão pela pintura?

No meu caso, quando era pequeno, fazia aqueles rabiscos que todos fazem na escola. Mas quando os meus colegas iam para o recreio eu ficava a admirar os lápis de cor, adorava as cores! Enquanto todos iam jogar à bola, eu gostava mais dos lápis. Mas os meus desenhos eram iguais aos deles, só que como eu gostava mais, perdia mais tempo naquilo, desenvolvi-me mais rápido. Depois houve sempre aqueles empurrões de -tão giros os desenhos! -tens muito jeito! Fazia desenhos e pinturas baseados na ficção, gostava muito de ficção científica. Até que um dia, não é que eu quisesse ser artista, dei por mim a só saber fazer isto. E continuei sempre a pintar.

Começar a pintar um quadro, o que é preciso para isto acontecer?

A ideia é quase sempre a mesma. Gosto de pintar a libertação nesta sociedade em que nos sentimos presos. Pinto figuras à procura de qualquer coisa, a irem para o espaço. É tudo muito simples, não é preciso grandes palavras para explicar o que é tão simples. Há artistas que fazem coisas demasiado simples e depois arranjam um texto de cinquenta mil palavras para explicar um risco. No meu caso é ao contrário, sou capaz de fazer um quadro muito complicado e que as pessoas não entendem mas que é tão simples. Mas depois como tem pormenores exagerados como curvatos e linhas sem rumo, que eu nem tenho consciência nem sei o porquê de ter feito, é o observador que tem de dar uma definição ao quadro e aos pormenores. As visões são absurdamente distintas de pessoa para pessoa. Já desenhei um prego num quadro que a pessoa que mo comprou achou e tinha a certeza que aquilo era um revólver. O surrealismo é isto mesmo.

Alguma vez passou por momentos de angústia criativa? Ou até mesmo pensar em novas vertentes, mudar de estilo de criação?

Não! (risos). Um estilo nunca é só um estilo, até aprendi isso no curso de artes. Podemos ter influência do clássico, do abstracto, do renascentismo, mas nada é só uma coisa. Há uma espécie de ecletismo que depois pode culminar num ou noutro estilo conforme a visão da pessoa. Muitas vezes até é o observador que classifica o que é e o que é que não é. O artista pode-se achar aquilo que quiser e o observador ter outra opinião. E cada um fica na sua e no meu caso é livre interpretação. A base do surrealismo é o sonho. Uma das únicas maneiras de transmitir o sonho é através da arte, qualquer tipo de arte. Mas é o desenho que consegue materializar aquilo que nós imaginamos que não existe mas com base no real. O surrealismo existe desde sempre, desde que o homem começou a imaginar coisas, a sonhar

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coisas e a pintar essas mesmas coisas, não posso abandonar isto, já faz parte do que sou.

O ‘surreal’ estado em que o nosso país se encontra traz-lhe alguma inspiração para as suas obras?

Sempre. Pinto a liberdade e a ausência dela adaptada aos dias de hoje. Estarmos por exemplo presos por um empréstimo ao banco – é uma das ausências de liberdade dos dias de hoje. Inspiro-me nisso e noutras formas de revolução contra o sistema capitalista. Estamos à beira de uma terceira guerra mundial que não é só económica, mas também relacionada com o terrorismo, uma guerra de inteligência.

Se tivesse de pintar um quadro surrealista, onde estivesse o passado, o presente e o futuro do nosso país, como acha que seria?

Portugal já é um país surrealista por si, mas nunca tinha pensado nisso. Já pintei Portugal, pintei a arquitetura típica e tenho um quadro feito na minha adolescência onde se via um Portugal típico e o Hitler. Mas nunca pensei nisso, talvez me tenha dado uma ideia...

No início deste movimento, os pintores eram vistos como ‘loucos’. Ainda há quem veja o surrealismo desta forma?

Os surrealistas sempre foram ‘malucos’. Eram violentos porque precisavam disso para criar. E quando o surrealismo antigo ‘morreu’ ficaram grupos sectários a atacarem-se uns aos outros, do tipo ‘eu é que sou surrealista e tu não’. Eram loucos. Hoje, com a abertura que demos ao movimento, não há guerras mas sim diferenças de pensamento. Não temos de ser marxistas para integrar o surrealismo. Atualmente, a base do surrealismo está no sonho, com menos agressividade. Uma das únicas maneiras de transmitir o sonho é através da arte, qualquer tipo de arte. Mas é o desenho que consegue materializar aquilo que nós imaginamos que não existe mas com base no real. O surrealismo existe desde sempre, desde que o homem começou a imaginar coisas, a sonhar coisas e a pintar essas mesmas coisas.

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Então, qual será a diferença do surrealismo do Século XXI para o surrealismo de Salvador Dali, por exemplo?

Eu integro o surrealismo do Século XXI que é livre de ideologia, livre de pensamento. O surrealismo de hoje em dia tem a base do surrealismo antigo que é o sonho, muito baseadas nas teorias de Freud do consciente e do subconsciente, e nós trabalhamos muito nessa base, mas com liberdade total. Não há ideologias sectaristas. Na altura de Salvador Dali e do Breton, andavam sempre em conflito devido às regras impostas para se manterem no movimento. O Breton chegou a expulsar o Dali. Hoje em dia, nós não temos nada a ver com isso, como somos livres de pensar aquilo que queremos aceitamos a diferença com maior facilidade. Naquele tempo não, fizeram manifestos, uns estatutos, e quem não cumprisse aquilo à regra era afastado. Havia um deus e um diabo, e o Dali foi um diabo. E, apesar de ter sido expulso, sempre foi visto como surrealista! Tanto que hoje é considerado um dos melhores artistas deste movimento. E não partilhava nada das ideias do Breton, ideias de esquerda, comunistas, das quais, Dali era totalmente contra.

É uma profissão bem remunerada ou a arte necessita de ser ‘comercial’ para ser vendível?

Não iria por aí. É inconstante. Nem se vive nem se sobrevive, mas sempre foi assim. É preciso ter sempre uma espécie de mecenas. Há pintores que podem demorar anos a pintar um quadro porque ele desde inicio já está vendido. Há um mercado próprio, tipo bolsa de valores das empresas, que são os leilões e quem não está nos leilões de arte não vale dinheiro. Os leilões de arte é que definem o valor das peças dos artistas, quer eles sejam valiosos ou não. Os artistas de rua não conseguem sobreviver da pintura, os outros tentam sobreviver dando aulas e vendendo tudo o que pintam, nem todos podem ter a sorte de ter um mecenas ou de vender um quadro que lhes dá dinheiro para estar 20 anos a fazer outro quadro.

Vendi no ano de 2000, um quadro por 500 contos, na altura era muito dinheiro. Foi a um amigo meu que estava endinheirado, era empresário e queria o quadro e eu não queria vender porque era da minha coleção, gostava mesmo do quadro. E ele fez-me uma proposta irresistível para aquela altura, mas nos dias de hoje já vendi quadros mais caros. Mesmo assim fizemos um acordo e ele empresta-me o quadro sempre que lhe peço para exposições. Entretanto com a crise económica tudo desvalorizou, o artista comum teve de baixar os preços dos quadros senão não vende. Mesmo com a escalada de preços, eu continuo a vender os quadros ao preço antes do euro, só que em escudos valia muito mais.

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(Final Judgement – Oil on Canvas – 1997)

Os colecionadores têm vindo a afastar-se devido à crise ou ainda acham que a arte é um investimento seguro?

Isso depende muito do investidor. Nos os surrealistas do século XXI, apesar de tudo, estamos contra o capitalismo monopolista, mas os grandes clientes da arte no caso da pintura são precisamente os grandes capitalistas, que investem a dedo, não vão deitar dinheiro fora. Eles veem qual é o artista que pode ser promissor ou que está na berra, sabendo sempre que se quiserem vender amanhã a peça vão ganhar dinheiro com ela. Eu não sou investidor, seria apenas colecionador se pudesse, mas não tenho dinheiro para isso. E por acaso vendi quase todos os quadros que tinha, os meus e de outros artistas, precisava do dinheiro para ir para o estrangeiro. Mas continuo a ter aqueles quadros ‘de estimação’, que não são para venda.

Quem são os maiores consumidores da sua arte?

O meu mercado está aqui em Portugal e vai ser expandido para outros países como a Rússia, França e Espanha, onde tenho exposto recentemente e onde chego mais facilmente via internet. A internet é uma grande aliada, ainda estou a pintar e já estou a colocar no meu facebook, blog e site as fotos dos quadros. E ainda organizo exposições. Pela internet consigo levar a minha arte a todo o mundo, Austrália, Estados Unidos, Brasil. E já vendi vários quadros via internet, através das fotografias que coloco no site.

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Em 2010 organizou a exposição ‘Surrealism Now’, juntando em Coimbra grandes nomes do surrealismo internacional. Como foi essa experiencia de organizar e realizar um evento de grande exposição?

Deu-me imenso trabalho, foi muito cansativo mas compensou, não economicamente mas compensou em termos de amizades que foram feitas, fiz alguns amigos, pessoas de diversos países e acho que foram abertas algumas portas para expor noutros locais. O melhor sitio para se fazer exposições aqui na zona é no Museu de Conímbriga, cada vez que faço lá uma exposição é às centenas de pessoas por dia a visitar. Começam por ver as ruínas e depois acabam por ir ver as exposições. É preferível, comparando com uma galeria, apesar de não se venderem quadros. Mas população de Coimbra não liga nenhuma a isto, mas são capazes de ir ao estrangeiro e gabarem-se de terem ido aos museus com os nomes mais conhecidos. Mas aqui, na zona, não querem saber e nem vale a pena estar a perder tempo. Praticamente só os turistas é que visitam e se interessam verdadeiramente. Talvez esteja na educação e na cultura que daí advém, os portugueses ainda estão muitos fechados e guardam as suas ideias numa redoma, bem conservada.

Para além de ter exposto as suas obras um pouco por todo o país, também já fez exposições no estrangeiro. De todos os países ou cidades por onde passou, qual foi o que melhor acolheu os seus trabalhos?

Foi em Paris, foi onde estive mais vezes e onde mais pessoas viram o meu trabalho. Em Moscovo também tenho alguns trabalhos meus expostos, mas ainda não tive oportunidade de ir fisicamente devido aos custos da viagem. Fui convidado para essa exposição por um artista russo que fez questão de levar os meus trabalhos, depois de eu ter exposto os dele aqui em Portugal. Na Rússia, os artistas para poderem expor os seus trabalhos, para além do custo do envio dos quadros ainda têm de pagar o aluguer do espaço, mas trocamos uns favores e neste momento não estou a pagar nada. Apesar disso compensa, a Rússia tornou-se uma grande compradora de arte para além de ter dos melhores artistas do movimento surrealista da atualidade.

Estou com a intenção de levar uma exposição para os Emirados Árabes Unidos mas tudo sofre uma censura cultural, os artistas não podem ir para lá exibir tudo o que querem. A arte às vezes serve de libertação e de voz revolucionária mas não é o caso dos Emirados, eles tem uma cultura própria. Aqui no ocidente, há uma ampla liberdade cultural, não podemos dizer que há liberdade total porque isso não existe e hoje estamos numa ditadura que é a do capitalismo. Quem não cumprir com as regras do

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capitalismo não é preso mas é expulso da sociedade, deixa de ter privilégios, mas podemos falar. Nos Emirados Árabes Unidos, pinturas com mulheres nuas e sexo não pode haver, são censuradas.

Quais são as próximas exposições em agenda?

A próxima exposição que estou a organizar vai ser em Lisboa, em Abril, na Caixa de Crédito Agrícola Mútuo. Estivemos agora no fim do ano em Paris, com o apoio da Fundação Bissaya Barreto. Houve alguma limitação de artistas porque o espaço estava bastante delimitado, foi na Bastilha, no centro de Paris e depois também na periferia mas só com artistas portugueses. Agora, estou a ver se consigo levar uma nova exposição a Paris, Espanha e aos Emirados Árabes Unidos, embora haja uma seleção dos quadros para os Emirados.

Se tivesse nascido noutro país, o seu trabalho nesta área teria outra projeção?

Hoje não. Penso que teria tido mais sucesso nos anos 90, quando ainda não usávamos a internet, perdi muito tempo na divulgação, se tivesse numa cidade como Paris ou Lisboa, com certeza que teria avançado mais. Agora com estes novos meios de comunicação que temos, podemos estar numa aldeia nos recônditos do mundo, mas desde que se tenha acesso à internet estou equiparado a qualquer cidade do mundo. Mas já pensei em ir viver para Paris. Mas cá nós temos tantas coisas boas, o clima, a nossa calma... e não consigo viver sem o café de cá, esse é um dos meus maiores problemas, não me compensa...

Hoje qualquer artista que não esteja na internet é como se não existisse. Eu sou o artista português mais conhecido na internet a nível mundial, e posso dizer isso em voz alta porque é mesmo verdade. Tenho milhares e milhares de contactos na internet. Grande parte do meu trabalho está na internet, perdi grandes horas a construir sites, redes sociais e a atualizar contactos. Por isso é que a minha pintura é conhecida em todo o mundo, apesar de não estar nos mercados e leilões, porque para entrar aí é preciso ter um bom agente, um bom manager. Mas em termos de as pessoas conhecerem o meu trabalho e o meu estilo, tem resultado e muito.

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