EntrelinhasPoemas
Rosa Clement
Apresentação
Aqui está uma série de poemas curtos na maioria, que decidi publicar nesse site. Eles traduzemum pouco meu ponto de vista sobre política, comportamento, violência, maltratos ao ambientee também outros assuntos. É uma série de poemas que eu havia arquivado e procurando outroassunto os encontrei e resolví editá-los e publicá-los. Espero que gostem.
Igarapé Antigo
Esse pequeno rio que viupassar a minha infânciaem suas águas de cristal,mudou de rumo.Passou a sustentar palafitas,encher garrafas e latas atiradasque lhes davam relevos sombrios.Por fim, passado à limpo,resurgiu numa versão domada,sem poderes cristalinos,sem o movimento apuradodas ondas originais,com águas que passam o tempoexercitando correntesagora livres de detritos.É rio que já não é tão rioe eu também, quando passo por ele,já não sorrio.
Árvore
Árvores em pedaçosentristecem o campo,derramam sangue verde.O vento vem alegre,volta em marcha fúnebre.Um halo de fogosinaliza a despedidado mundo novo.Começa a construçãode fábrica de plásticos,quem sabe para atenderfuturas demandaspor árvores.
A Lua Deserta
Algum dia, alguém dirá: "quem diria, a lua habitada..."E lá presidente e políticosmanterão suas promessas,empresários não privatizarãoa luz da luae todos repetirãocom Drummond:"eta vida besta meu Deus".
Praia Triste
Praia triste desse modoé praia violentada por novos prédios narcisos,devastadores de verdes--mal dos mais inecessário.
Em praia assim indefesapoluição deita na areia,exibe em seu lixo plástico,a forma da inexpressão,e em suas águas paradaso brilho das construções.
É praia sem a brancurada lonjura do caminho,e de bancos naturais,que acorda sem ter belezafrente a pisos de cimento.
Já são tantos os tijolosque não só calaram pássaros,mas também as velhas árvores...Só as ondas doces de águasque davam balanço ao rioainda ecoam do passado.
Pesquisa
Cama de papelão, no escuro sob a ponte, e o velho vira-latadorme, grunhe, chora.Sonho que maltratade forma tão real.
Da experiência animal,conclui-se em minutosque dormir ao relento,traz pesadelos.
Redescoberta (Pobreza)
Do alto dos degraus de igrejas e de palácios, o povo unido.
Muitos ainda comem principalmente pão poucos tomam vinho.
Na descida essa certeza
i n ú t i l.
Presente
Passos de elefantena neve de dezembro.Ficam as pegadasenfileiradas, profundase a lembrançade poder dormenteem areias africanas.Ao passar da paradapercebe-se apenasum elefante branco.
Alimento
Mariposa na paredesem escolhafrente ao predador.Breve instantee voa no bico de um bem-te-vi.
O Cão do Vizinho
Tão pungentes, frequentesos uivos e latidospreenchendo a ruapela vizinhança.Um cão paga por horaspenitência, amarradoa uma corrente.Suplica por ajuda,denuncia donos invisíveis,nossa impotência,a ausência de um centrode proteção aos animais.
O Velho e o Trem
Vai o velho do cachimbopegar o trem na estaçãoe o trem com sua fumaçacorre cumplice de alguém.Pessoas esperam o velhoe ele com seu cachimbovai com um ar de trem.No descanso da viagem,solitário e esquecido,o trem ali sem ninguémfica com um ar de velho.
Agrotóxicos
Não vivemosos tempos de Evae nem serpentes de nossos diasse enroscamnas macieiras.No entanto, as maçãscontinuam protegidaspor veneno.
Camélias
Camélias das festasdançam nas lapelas,esperam sob afagosdos longos dedos de moças risonhas.Enfeitam caminhos,janelas, varandas, sacadas,exibem em pétalasa luta de um povo.
Muros
Faz-se o passo e o puloe entre eles – o muro. Faz-se a educação e a rua,a prece e o pecado,a liberdade e o crime,a palavra e a açãoe entre eles – o murousado para grafitesou para lamentações.Mas também fazem-se muros para promover segredos, poder, valor, abandono,guardar flores, frutos, sonhosà moda de qualquer um,ou à moda de Berlim.Muros? Quem não os têm?
Sem Opção
Nem todos têm o direitode escolher entre duas estradas:uma, onde um vento sem direçãobate no rosto, e a outraonde uma bala certeiraabate um corpo.
Meninos e Lobos
Meninos de ruade ouvidos treinadosouvem bem os ruídos de janelas de carrofechando seus vidros,baixando suas travas.Lobos famintosna luta diáriana selva da esquinacom donos dos volantes.De um lado ou de outropode ter armadilha.
Voltar a Casa
É bom voltar pra casamesmo se for precisoarriscar-se entre carros,ouvir loucas buzinas,ao atravessar ruas no meio à multidão.É bom voltar pra casa,mesmo num trem mancono aperto de estranhos,sob olhares suspeitos,sem ver a montanha,ou nenhuma paisagem,mas apenas pensarcomo é doce chegar.
Gente Desaparecida
Maria desapareceu,o sol indiferentesecou a roupaestendida no varal.Flores queriam água,o cão, comida,a casa, luz e ar.No capítulo seguintealguém pensouem escrever notade utilidade pública.
Falando, Câmbio
A moça do guichêé bonita como a fachadado prédio onde trabalha.Se sorrisse seria bonitacomo um banco sem fila.Mas se desse bom-diateria a beleza do momentode um aumento de saláriorecebido pela primeira vez.
Escuridão
Falta luz nas casas e prédios.Falta luz nas pontes, nos túneis.Tudo agora é silhueta e sombrafeitas pela lua mais cheia e por tantas velas e isqueiros.Percebe-se que nesse momentonão há luz no fim do túnelpara inúmeros fumantes.
Uma Certa Primavera
Quando adolescenteganhei plantade nome primavera.Folhas finas, delicadasprimavera cresceu,deu flor vermelha,pequenina, comprida,Tinha beleza de estrelae tempo de vidade borboleta.
Curiosidade
Entre cansaço e descanso,observa-se que igrejas e museus,têm deslumbramento.Ouro cintila pelos tetos,pelas paredes, chãos.No pensamento, a pergunta insistente,que cala sem brilho,sem saber,se santos e artistasdeclaravam riqueza.
Feijão
O feijão foi ao espaço,apareceu na televisão. Já plantei muito feijão– primeiro, envolvido no algodãocuidadosamente.umedecido.Ví brotar sua mini-raíz com folha,e ví a felicidade.Depois, plantei feijãono quintal e felicidade era debulhar as vagens.Nunca pensei que cuidavade um futuro astronauta.
Um Lado da Noite
Nos cantos mais escuros da noite,onde luzes e sombras são trêmulasaté os ratos demostram temore buscam proteção dentro dos drenos.Pelas ruas empoçadas estão os passosmais leves e as mãos mais ágeis.
Cicatrizes
Na infância, a vidaé brincar, brigar, gostarde descascar ferida.
Na juventude a vidaé rir, amar e criaras primeiras feridas.
Na velhice a vidaé mostrar as cicatrizesdeixadas pelas feridas.
Promessa
Meu pai fumou cachimbodesde que comecei a conhecer o mundo.Foi um ritual que se prolongoupor anos sob discretas censuras.Aqueles dias cheiravam a tabacoe cada por-de-sol chegavaembaçado de fumaça.Um dia, ele prometeu aposentaro velho cachimbo e cumpriu.Nesse dia, um arco-írisse desenhou no horizonte.
Lágrimas Públicas
Políticos choramna televisão,pelo leite que tomaramsem derramar uma gota.Desconfio que elestêm sempre à mão,disfarçada no lenço,uma enorme cebolasem a casca.
Lavagem de Roupa
Na era da água e sabão,mulheres lavavam roupasde forma rudimentar.As mãos ferramentasacionavam verbosmolhar, ensaboar, esfregar, bater, quararse a sujeira fosse muita.Depois de muita água,expremer, estenderroupas mais desgastadas.Dinheirinho em bolsoera alegremente estendido.Assim, lavar roupa significavatrabalho árduo,impecavelmente honesto.
Notícia
Justiça bate a cabeçana parede das liminarese fica esquecida,deixa cair a venda dos olhos,confunde puniçãocom liberdade.Faculdade de julgarestá comprometidapor ataques de amnésia.
Soberania
Desde aquele séculoalguém ainda pode até sonharcom uma Estátua da Liberdadeem seu país.A certeza é que todos sonhamapenas com a liberdade.
Magnetismo
Seguia meu próprio nortequando surgiste.Consultei meu mapa astrológicoe vi que eras o grande ponto históricoda minha estrada.
Meus Olhos
Muitas são as palavrasque deixo para meus olhos dizer.Assim, quando eles te vêemficam prolixos em bem-querer,e iluminados e brilhantesfalam de felicidade, ternura, eternidade.Quando não te encontram,quebram a mudez da tristeza,e explicam saudade, volta,e, novamente prazer.Eles discursam também sobre a vidacom uma eloquência genial,e se a situação permitir,eles fazem perguntas várias,exprimem dúvida, carência,ira, compaixão e também perdão.Falam tanto esses meus olhos,mas nem com suas lentes artificiaiseles conseguem expressarqualquer cisco de inverdades.
Globalização
Numa casa brasileira também tem bom vinho sobre a mesa,que bem pode ser português.Numa casa portuguesatambém tem bom café sobre a mesaque bem pode ser brasileiro.Globalizar é quando ninguémnem percebe essas transferências.
O Inventor da Guerra
Há homens que idolatram a guerra.Para Sade, por exemplo, seria um privilégioter inventado a guerra.Todas aquelas cabeças rolando,todas aquelas carnes dilaceradasseriam para ele motivo de grandes orgias.Mas Sade chegou muito tardee aquele que inventou a guerranão quis patenteá-la e ganhar famae por isso morreu no anonimato.
Estrela Macunaíma
Estrela, símbolo de beleza,presente de Deus para alguémdestinada ao brilho do sucesso.Por isso, não há estrela negrana família estelar.Mas se Macunaíma não fosseum símbolo da índole humanapoderia ser um belo nome para batizar uma estrela.
O Beija-Flor
Fui adotada por um beija-flor.Agora, todos os dias,sento na cadeira do pátiopara ser apreciada por ele,mostrar minha gratidãopor sua terna companhia.Ele pousa no varal de roupasna grade da janela, vai ao solrealçar seus tons metálicos,tudo para me agradar.Para ser seu humano de estimaçãoele aceitou como dote apenasuma flor vermelha de plásticoe néctar feito com água e açúcar.
O Porco
O sítio é fonte de festase no meio dessa alegriaum porco amarrado e tristesolta grunhidos, se agita,anda de um lado e de outrosem conseguir se acalmar.O trágico vira banquetesem nenhuma comoção.Desde então, deduzique comer carne de porco faz grande mal a saúde.
A Rosa
A rosa é a rosa – já não tem mistério.Nada novo resta para dizer sobre ela.Então é melhor não dizer nada,porque a rosa é a rosa, e rainhatambém tem seus dias de espinhose nem sempre gosta de muita conversa.
A Pedra do Caminho
Drummond que me desculpe,mas prefiro que a pedra do caminhofique sempre no caminho.Primeiro, se ela fosse retiradanaõ teria sido a musa do poeta.Segundo, porque iria ter muita gentese aproveitando da situação.
Funeral
Entre flores sobre o mortoalguns objetos de estimação.Alguém cuidou dos anéis e relógioe por consideração e apego,deixou o celular (desligado)um par de óculos e um isqueiro.Ao fundo, pessoas conversavame sorriam discretamente.
Transição O cliente da mesa cinco do barmistura vários copos de melaçofermentado e destilado.Numa transformação químicaele passa do estado sóbriopara o embriagado.
As Fábricas
As ruas estão tomadas de carros.Espaço para humanos é luxoe carros, prioridade.A vida sedentária engorda as fábricase caminhos arborizadosé coisa de cidade antiga.
Mudez
De repente a palavrase cala e se engessa --culpa do esquecimento,amargura, emoção.É preciso esperar sarare deixar tudo para ser lidonas entrelinhas do silêncio.
Máquina de Café
Com olhos inquietostestemunhei café passandoem coador de algodãoO pretinho que caia no bule,outra antiguidade,entoava um ritmo quenteno despejar pausadodentro das xícaras.Havia ali segredos de mãe e tiasna água e pó na medida certa,e na mão boa para a mistura.Assim era como uma tarde friaficava perfumada de café.Tudo isso sem nunca precisarde manual de instrução.