Enquadrando o Cordel: a circularidade entre Literatura Popular em Versos e
Histórias em quadrinhos Autorais Independentes
Savio Queiroz Lima1
Introdução
Faz parte do tecido social o imaginário preciso do cordel enquanto estrutura
discursiva popular, fruto do povo e apreciado sem critérios demasiados tão naturais ao
mundo normativo. O que, entretanto, não quer dizer que se trate de uma modalidade
sem suas próprias regras e seus modelos de feitura. Muitas vezes as histórias em
quadrinhos, fora de seu mercado, mais autorais, parecem seguir a mesma premissa de
certa subversividade social.
A literatura popular em verso, registro de uma tradição oral musicada, apoia-se
nos alicerces da memória. Não apenas da memória que lhes permite a transmissão oral,
em canções normalmente apresentadas ao público em praças e outros lugares de transito
popular, mas a memória sobre registros de costumes, valores e importantes eventos
regionais ou locais.
Por sua natureza de memória, propõe-se a registrar um momento, pelo noticioso,
pelo risível, pelas representações e valores próprios. Nisto, as semelhanças são bastantes
significativas, de uma abrangência até óbvia da relação da produção humana com a sua
representação da realidade, aos pontuais imaginários sociais de uma dada sociedade
num dado momento. Concebe-se que “a cultura popular abrange todos os setores da
vida de um livro de povo” (LUYTEN, 1983, p.8).
Um exercício de diálogo entre as mídias faz-se aqui presente para entender um
singular imaginário sobre seu parentesco direto. Não muito comuns, mas significativos,
os discursos sobre as duas modalidades aqui analisadas, literatura popular em verso e
narrativas gráficas em quadrinhos, se igualam em, ainda, deixar desconcertante o mundo
1 Mestrando em História do Brasil pela Universidade Salgado de Oliveira – Universo, iniciado em 2015.
Debruça questionamentos sobre histórias em quadrinhos e seus usos enquanto objeto e fonte de
conhecimentos históricos. Membro da Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial (ASPAS),
escreve artigos para o site Quadro a Quadro sobre quadrinhos e história. [email protected].
acadêmico diante de ambos. Por conta disso, sem pretender costumeiros bolodórios
comuns a escrita científica, faz-se proveitoso reaver os dois supracitados objetos.
Reaver enquanto objetos e fontes de análises sobre a realidade cultural e social,
tendo-os como expressões humanas legítimas. Tratados, ambos, como fontes
quantitativas, nos trazem transformações no imaginário social de forma historicizada.
Enquanto fontes qualitativas, nos permitem dialogar com aspectos menos explícitos da
realidade, fomentando um conhecimento mais aprofundado, um veio aproveitável na
rocha da história.
A literatura de cordel e os quadrinhos reconhecem-se enquanto fontes e objetos
que ainda desafiam os pesquisadores. Primeiro, pelas exigências singulares sobre a
extração de informações de ambas, cercadas de interdisciplinaridades. Segundo, por
tratarem-se de registros de uma dinâmica social persistente, mutável, que transforma
suas representações e seus discursos de acordo com as marés das sociedades de onde
dialogam.
Contando uma história em versos e quadros
A relação primeira para com o cordel, para muitas pessoas no Brasil,
principalmente no nordeste, é a praça. Ainda que não seja uma praça exatamente, mas
um epicentro humano, urbano ou rural, onde os olhares, andares e ouvidos sem
concentrem. Lá está, desde tempos imemoriais, o trovador contando e cantando histórias
para um abrangente público.
Nem tão imemoriais assim, esse tempo já foi interesse de investigação de
diversos pesquisadores, muitos deles com certa proximidade com o objeto, poetas ou
cantadores. Influenciando mutuamente, diversos trabalhos concordam com as heranças
europeias da Península Ibérica sobre os folhetos de poesia popular, correlacionando
comumente o seu nome2.
2 Sem delimitar definições taxativas ou mesmo imposições de datas, o pesquisador Gonçalo Ferreira da
Silva registra o século XVI como importante para a literatura de cordel. Sua pesquisa é branda, assume-se
distante das “filigranas veladamente arrogante dos eruditos” (SILVA, 2012, p. 15), mas faz um apanhado
dos dados mais comumente usados.
O etnógrafo Mario Souto Maior, quando coordenador do Centro de Estudos
Folclóricos do Instituto Joaquim Nabuco, em Recife, acrescenta que, além da influência
inegável das culturas populares da região ibérica nas literaturas populares em versos,
como alcunha, tiveram "marcas que surgiram nos próprios países por influências
próprias que adaptaram a ideia original vinda da península" e que lhes deram singulares
identidades (MAIOR, 1976, p.7).
Na sua busca pelas origens das histórias em quadrinhos, o entusiasta Scott
McCloud adentra o passado feudal europeu. Em seu esforço de definir os quadrinhos e
dar-lhe uma história básica de construção, no primeiro capítulo de sua obra
Desvendando os Quadrinhos, McCloud apresenta as Torturas de Santo Erasmo, que
data em 1460, onde o popular personagem tem sua narrativa feita em imagens
sequenciadas e apresentadas ao público em folhas soltas (McCLOUD, 1995, p.16).
O formato em folhas soltas, o contato com o público de uma literatura popular,
sem as pretensões de seleto público, já bastam para fomentar as comparações entre
quadrinhos e cordel. Em algum ponto de suas origens, paira, desejosamente, a ideia de
familiaridade. O berço de sua origem comum, então, surge na forma de uma prensa que
lhes configura parentesco e o período onde tal tecnologia popularizou o trato textual e a
imagem xilogravada o seu marco temporal.
Por todo o mundo colonizado das Américas, onde as culturas portuguesas e
espanholas se fizeram presentes, tais produções existiram. São descendentes da “arte
dos poetas, nas mensagens dos profetas e na reflexão dos pensadores” (SILVA, 2012, p.
13) e tais “pliegos sueltos”, como ficaram chamadas em língua espanhola, ou seja, as
folhas soltas, tornaram-se populares e foram consumidas com certo apreço. Presentes no
Peru, na Nicarágua, no México, na Argentina, no Brasil, entre outras localidades,
possuem similaridades tamanhas que lhes é visível a hereditariedade3.
Mas o nome “cordel” causa certo incômodo aos estudiosos sobre essa literatura
popular. Justamente por que na busca de seu termo nas origens, esbarram em singulares
3 Em seu texto sintético, Gonçalo Ferreira da Silva lista autores e países que possuem a literatura popular
em verso e os músicos que as interpretam. Usando a onomástica para estudar as relações culturais que
envolvem tais culturas, Silva registra os termos “corrido” e “cumpuestos” para o texto escrito e
“versejador” ou “payador”, em espanhol, para o que no português brasileiro denominamos “cordel” e
“cantador” ou “repentista” (SILVA, 2012, p.17).
peculiaridades. Diferente do termo francês, por exemplo, litteratura de colportage4, ou
do termo espanhol de pliegos suletos, em Portugal tal literatura popular em verso
ganhou o nome de literatura de cegos, por conta da lei metropolitana portuguesa de
Dom João V, em 1789, que autorizava a Irmandade do Menino Jesus dos Cegos de
Lisboa vender tais folhetos (MAIOR, 1976, p.7).
Apesar de existir o termo “cordel” na Espanha (MAIOR, 1976, p.7), ele ficou
cravado no imaginário contemporâneo sobre essa literatura popular brasileira. Na língua
castelhana, o termo define o formato em que tais produtos eram, e são, expostos em
bancas nas feiras livres, repousados equilibradamente sobre cordas, para apreciação dos
clientes, principalmente por suas chamativas capas. Resistem, tais revistas, aos modos
industriais, atendendo, ainda, uma quase manufatura, de forma barata, usando mais da
criatividade e autonomia de seus autores.
O verbete cordel chegou mais tardio, mas conquistou a aceitação, tornando-se
mais popular que o termo de origem em Portugal5. Seu registro mais antigo, de acordo
com SILVA (2012, p.16), foi do dicionário contemporâneo de Aulete, em 1881. Para
MAIOR (1976, p.5), porém, trata-se de um termo desdenhoso das elites intelectuais
sobre o "simples detalhe material", ou seja, sobre a estrutura física da banca e sua
arrumação em cordas. O autor acrescenta que "tal designação, além de imprópria e
importada, é inteiramente falsa" (MAIOR, 1976, p.5).
Novamente, os quadrinhos autorais reconhecem-se nos autorais folhetos de
literatura popular. Em ambos os casos, seus produtores estão envolvidos em sua edição,
publicação e venda, quando não, diretamente. Esse quadrinho ao estilo “do it yourself”6,
nomeado de fanzine em terras brasileiras, em produção local, culturalmente influenciada
e com a proatividade de seu autor, como os ‘poetas de gabinete”, são vendidos nas
“bancadas” fora de um mercado formal (SILVA, 2012, p.16).
4 Que significa literatura ambulante, pela natureza de suas vendas itinerantes, sem um lugar fixo
(MAIOR, 1976, p.7). 5 Colecionador brasileiro de literatura popular em verso e prosa, Arnaldo Saraiva tem, em seus “4.500
exemplares brasileiros e 870 portugueses” as ligações entre os dois polos separados pelo mar
(MEIRELES, 2014, p.1). Começou seu interesse por cordel na faculdade de Letras e hoje tem vasto
conhecimento sobre a literatura de cordel. 6 Longe da realidade moderna dos produtores de folhetos de literatura popular em verso, o termo é mais
próximo da realidade temporal do fanzineiro. O termo, oriundo da cena underground inglesa da segunda
metade do século XX, aplica-se aos trabalhos que fogem a lógica de modelo de mercado.
Entretanto, o etnógrafo Mario Souto Maior reluta contra o termo, aceitando-o,
porém, após exaustiva reflexão. Essa literatura "resultante da inventiva de pessoas
analfabetas, semianalfabetas ou alfabetizadas até, mas que tem um público consumidor
quantitativamente maior do que a literatura considerada erudita" (MAIOR, 1976, p.5)
ele prefere definir como "literatura do povo" por carregar-se de "manifestação de cultura
popular" (MAIOR, 1976, p.6). Essa literatura é fruto primeiro de uma supremacia da
oralidade, como aconteceu com as canções de Homero e toda natureza noticiosa e de
memória.
Essa memória popular, "além de ser apresentada oralmente, ela também é escrita
e, consequentemente, impressa para poder ser consumida" (MAIOR, 1976, p.6).
Portanto, diferente da produção de fanzines7 mais comum, o cordel atende o registro de
uma memória que outrora haverá sido oral, normalmente cantada, para deleite de um
público transeunte de ágoras e praças, da antiguidade à idade média, aos tempos
modernos.
Mas sua universalidade se desfaz, oniricamente, quando se faz a máxima: O
cordel é o registro do imaginário e da memória do cabra. A partir deste ponto, é
imprescindível entender essa singularidade cultural brasileira. O cordel chega ao Brasil
como parte da rede cultural portuguesa na colônia, adentrando o mundo colonizado pelo
estado da Bahia8. Salvador foi, então, “ponto de convergência natural de todas as
culturas, ali permanecendo até 1763, quando foi transferida [a capital cultural] para o
Rio de Janeiro” (SILVA, 2012, p.18).
O cabra é fruto da onomástica relação entre o conceito de indivíduo, ou seja, de
identidade local, apropriação e adequação. Muito próximo do termo “cabrón” do
espanhol, conotando uma identidade de pertencimento inicialmente pejorativa, de
pessoa de má índole, sem caráter ou violento, que ganhou a leveza de identificação de
7 Fanzines são produções de histórias em quadrinhos isentas de responsabilidades e de tendências do
mercado de quadrinhos na Industria Cultural do entretenimento. São, normalmente, feitos com total
liberdade autoral e comercializados enquanto manufaturas, com técnicas e distribuições muito mais
próximas dos seus idealizadores. Por conta disso, entendidas como mais populares, afastadas de uma
produção empresarial formal. São independentes, o que não necessariamente lhes confere aceitabilidade,
mas lhes possibilita originalidade. 8 Faz-se, aqui, um significativo adendo: Mario Maior, como visto, afirma que "o vocábulo cordel nunca
foi usado no nordeste" e usando da linguística, explica que "o povo conhece cordão, que é corda fina,
delgada; ou fio, ou barbante" por isso, "o nordestino desconhece a designação literatura de cordel; todos
só conhecem folheto ou folhete, folheteiro (a pessoa que vende o folheto nas feiras e mercados),
folheteria (a tipografia que imprime e vende os folhetos)" (MAIOR, 1976, p.6).
“sujeito”. O Cabra é o sujeito nordestino, vivente das regiões sertanejas, fortalecido
pelas agressões sociais e naturais da região nordeste do Brasil9. Esse cabra tem presença
forte nas narrativas dos folhetos de literatura popular brasileira.
Mas estamos falando, então, de uma rede de elementos, que vão do registro da
poesia, dos versos, em folhetos vendidos em praças e canções interpretadas por
violeiros. Tratamos de generalizar, sem pretensão de equívoco, mas com seu risco, as
duas tradições envolvidas, "a da literatura popular ibérica em prosa e verso e a prática
dos poetas improvisadores itinerantes do Nordeste brasileiro" (MAIOR, 1976, p.8).
Uma delas, o registro em papel, aproxima-se da produção de fanzines, mas a
outra, a oralidade de entreter, foge o máximo que pode de suas estruturas. A canção
agrada os iletrados e serve como incentivo para a venda do folheto, que tem a letra que
fora musicada para apreciação dos semi-letrados. Seguiram, porém, caminhos
diferentes, pois “a oral, precursora da escrita, engatinhou penosamente em busca de
forma estrutural” (SILVA, 2012, p.19), mas a escrita esbanjava, em ideias, temáticas
diversas.
Em sua grande parte, tratavam de fantasias inspiradas no imaginário feudal e
adequadas às realidades socioculturais que compõem o nordeste brasileiro. Esse
nordestino encontra-se como personagem nesta literatura popular em verso, reconhece
sua realidade social nos dramas, nas comedias, nas anedotas e nas notícias. São
"histórias com raízes na idade média", como os Doze pares da França, Príncipe Roldão,
Carlos Magno10 que "foram se abrasileirando" para confortar seus consumidores com
suas identidades (MAIOR, 1976, p.6).
Folhetistas e cantadores tinham, em seu repertório de narrativas, a fantasia
mesclada à realidade. Estudiosos dos cordéis, como Ariano Suassuna e Carlos Alberto
Azevedo, canonizaram listas temáticas dessas histórias que dialogavam com a memória
popular. Muitas dessas narrativas orais "foram passando de boca em boca" (MAIOR,
9 O caprino adaptou-se com êxito à região nordeste, majoritariamente cortada pelo sertão. O sertão
compreende semi-desertificação com regimes de secas sazonais. Como o animal, o nordestino também
suporta tais intempéries. 10 Tenho como exemplo o trabalho defendido por Daniel Corinto Lima Freire da Cruz, trabalho de
conclusão de curso em História na Universidade Católica do Salvador em 2009, que trata justamente dos
vestígios de memória do regime feudal sobre o mito carolíngio (DA CRUZ, 2009).
1976, p.7) até tornarem-se canções nas vozes e violões dos trovadores e registros nas
poesias dos cordelistas.
Assim como a literatura popular francesa foi tema de curiosidade de Robert
Mandreau, a espanhola por Julio Caro Baroja, os dois autores supracitados brasileiros se
ativeram à literatura popular brasileira (SILVA, 2012, p.40). Tais temas, “ora
apoteóticos ora engraçadinhos” (MEIRELES, 2014, p.1), iam de “longos poemas
romanceados” a “sátiras políticas e sociais” (SILVA, 2012, p.22), também comuns às
produções de tiras semanais, charges, quadrinhos, casando interesses temáticos entre as
modalidades comunicativas.
Longe de enclausurar os temas sortidos que fazem enxurradas de folhetos, a
classificação busca ponderar os temas mais usuais. Ariano Suassuna, romancista e
dramaturgo bastante famoso por sua obra Auto da Compadecida, lista os ciclos:
Heroico, Maravilhoso, Religioso (ou moral), cômico (satírico e picaresco), histórico
(circunstancial), de amor e fidelidade (MAIOR, 1976). Boa parte desses temas lhes foi
útil nas suas poesias e narrativas.
Em obra posterior, Carlos Alberto Azevedo, sociólogo e afinco pesquisador,
altera a listagem de Suassuna levemente. Menos romântico e mais jocoso, produz a
seguinte listagem em ciclos: Utopia, marido logrado (corno), demônio logrado, bichos
falantes, obscenidades (e o duplo-sentido), maldições e castigos, heroico (e fantástico),
histórico (circunstancial), de amor e bravura, cômico satírico (MAIOR, 1976). Repete
parte dos ciclos já defendidos por Suassuna e elabora os demais.
Apesar de compartilhar temas narrativos, os quadrinhos e os cordéis não são
semelhantes por essas estruturas. Ambos possuem mecanismos próprios, linguagens
próprias, que fazem com que seus produtores enxerguem com mais eficiências as
singularidades de cada um. Marcos, vantagens, glosa e galopes (SILVA, 2012),
domínios dos trovadores populares, são exemplos de linguagens que os neófitos
certamente tem dificuldades em compreender11. O mesmo vale para a sarjeta e o o uso
do tempo em imagens nos quadrinhos (McCLOUD, 1995).
Cabe, então, buscar na produção da imagem a confluência de elementos e seus
usos para correlacionar as duas estruturas de comunicação. A arte autoral,
11 Entre outras singularidades de apropriação cultural, como os termos “verso” é estrofe e “pé” é verso
(MAIOR, 1976, p.14).
aparentemente isenta de uma formalidade, equalizam os autores das xilogravuras
presentes nas capas dos folhetos de literatura popular e os autores das narrativas gráficas
das histórias em quadrinhos e capas de fanzines. A primeira vista, está clara a
familiaridade entre as linguagens visuais.
Um certo autodidatismo e liberdade criativa fazem a xilogravura e o desenho
livre realmente pertencerem a mesma família. Produzidos por técnicas diferentes,
entretanto, podem habitar sem desconfortos os mesmos espaços, levando em
consideração os seus mecanismos singulares. Mas eis que a xilogravura, ainda que
possa existir num suporte de narrativa gráfica sequenciada, não tem a mesma função nos
folhetos de cordéis.
As xilogravuras não possuem autonomia ou mesmo estrutura narrativa, sendo
somente ilustrações criativas da narrativa cantada perenizada na escrita em versos. São
imagens de estética autodidata, com elementos comuns que a aproximam e classificam
como arte naïf. A ingenuidade, do termo francês “naïf”, não está na escolha do tema
visual, mas pelo afastamento de uma consciência formal, escolarizada.
Há um claro distanciamento prático da mesma para com os quadrinhos,
enquanto estrutura midiática ou estrutura narrativa. Enquanto os quadrinhos firmam-se
como narrativas visuais onde a leitura dos quadros confere uma lógica, seja pela
passagem do tempo ou sequências narrativas mais complexas, as impressões
estampadas em matrizes de madeira são apenas ilustrações visuais atrativas à narrativa
textual interna.
Influenciam uns aos outros, numa dança cultural dinâmica que vem produzindo
quadrinhos sobre narrativas de cordéis ou mesmo apropriando-se da estética da
xilogravura. O artista Flavio Colin produziu quadrinhos desde os anos 50 pela editora
RGE, inicialmente adequando seu traço artístico para atender o mercado e
posteriormente assumindo identidade própria nos desenhos. Em trabalhos seus como O
Boi das Aspas de Ouro12 e Estórias Gerais13, Colin deu margens a sua “poética visual”
(PESSOA, 2012, p. 2). Mesmo influenciado por diversos artistas estrangeiros, Colin
12 Lançado pela Editora Escala em parceria com a editora Opera Gráphica em 1997. 13 Obra bastante inspirada nas literaturas regionais e interioranas brasileiras. Lançada em 2007 e 2011
pela Editora Conrad, fora encadernada especialmente pela Editora Nemo em 2012.
produziu uma estilização singular14, com uma texturização bastante similar com as
impressões causadas na xilogravura.
Inovando não apenas na mimetização da estética da arte naïf, mas, também, nas
estruturas narrativas em versos, duas publicações são singulares. Um de seus autores é o
cordelista Fabio Sombra e o outro o quadrinhista João Marcos, ambos construíram uma
obra com narrativa visual e estruturas textuais específicas que a equalizam com
eficiência com os folhetos de literatura popular brasileira. A primeira é Sete Histórias de
Pescaria do Seu Vivinho15 e a segunda é A Pescaria Magnética do seu Vivinho e Outras
Histórias16, ambas com elementos diversos das duas linguagens: cordel e quadrinhos.
Com o diálogo estético e o uso prático na educação, mecanismo de
fortalecimento de ambas as culturas do cordel e dos quadrinhos, oficinas constroem uma
singular trajetória. Dentro da prática social, o projeto Fanzines nas Zonas de Sampa,
através de encontros e cursos em bibliotecas municipais de São Paulo, desde 2006,
dialoga quadrinhos e xilogravuras como prática artística e pedagógica17. Novamente,
temos a feitura de fanzines e cordéis dialogando métodos, materiais, tabuleiros.
Aproximação dos folhetos de cordéis para com os fanzines por sua manufatura
autoral e autônoma de seu criador e empreendedor, torna-se viável. É um exercício
frutífero, já que nos remete inegavelmente ao conceito de circularidade cultural. As
trocas materiais e imateriais estão presentes na conversação entre literatura popular em
verso e quadrinhos autorais, não entre duas classes antagônicas, mas enquanto classes
subalternas de realidades sociais distintas.
Em ambos os casos, os elementos populares e as adequações materiais sobre a
criatividade, particularizando cada espaço sem buscar-lhes uma pureza, atitude que seria
ilusória. Como no trato de Carlo Ginzburg em O Queijo e os Vermes, “não se está de
maneira alguma afirmando a existência de uma cultura homogênea” nem para o cordel e
nem para o fanzine, mas sem que tal relação se dê numa estrutura vertical interclasse,
14 Definida pelo pesquisador Alberto Ricardo Pessoa como segunda fase da obra de Flavio Colin, de onde
a estilização abraçou total liberdade e uma identidade sem escolas e difícil de seguir (PESSOA, 2012,
p.10). 15 Lançada pela Abacatte Editorial em 2011. 16 Também pela Abacatte Editorial e 2013. 17 Em 2012 o projeto ganhou o prêmio de Grande Contribuição no HQMIX, o concurso mais importante
da categoria no Brasil.
mas horizontal entre grupos subalternos, quiçá, entre o rural e o urbano (GINZBURG,
1987, p. 32).
As impurezas que transcorrem as produções humanas não permite que façamos
definições parentais rigorosas sem que corramos os riscos das falácias. As histórias em
quadrinhos permearam diversas realidades sociais, culturalmente e temporalmente
estabelecidas, materializando em desenhos jocosos, inicialmente, os discursos e
imaginários sociais. Com a literatura popular em verso, foram as narrativas orais
noticiosas que se viram registradas e comercializadas18. Ambas, em específicos tratos,
são pluralidades alternativas diante das formalidades do letramento.
Afirmo, então, que cordel não é quadrinho, não possuem similaridades
suficientes para que possam se equiparar. Digo isso sabendo que causo tristezas e
incertezas aos entusiastas que o gostariam verdade. Mas se faz com alegria a
confirmação de que há traços de parentescos entre as duas modalidades narrativas a
ponto de promover o diálogo entre ambas e gerar proveitosos frutos. Traços, estes,
frutos de impermeabilidades que fazem com que compartilhem elementos, temáticas,
entre outras afinidades.
Seus traços estão nos fanzines e nas influências recíprocas e saudáveis que a
narrativa cantada e seu registro em folhetim fazem com a narrativa visual seqüencial.
Há, também, como visto, a proximidade noticiosa, onde charges e cordéis comungam na
arte de resumir ao povo os ocorridos mais significativos, dando-lhe prazer lúdico e
memória singular e plural.
Conclusão
Está claro no texto que é eleita a literatura de cordel enquanto objeto de análise,
sendo os quadrinhos convocados quando frutífera comparação. Não fora feito de tal
forma buscando hierarquizar ambas, senão, apenas, para tratar dos aspectos que possam
inicialmente ligar as duas estruturas narrativas ou mesmo lhes conferir similaridades.
18 Muitos autores em suas obras que se propuseram a pensar o cordel irão concordar com sua natureza
noticiosa. Joseph Luyten, base inegável para a construção deste artigo, equalizou a relação narrativa da
literatura popular em verso com a prática de registro de memória e divulgação de informações de
interesse comum (LUYTEN, 1983).
Como os quadrinhos atualmente estão mais presentes em trabalhos acadêmicos19, talvez
seja, então, proveitoso (re)apresentar a literatura popular em verso a essa geração de
pesquisadores.
As novas gerações de pesquisa sobre histórias em quadrinhos avançam em
altaneira marcha, mas pouco se aventuram mais profundamente. Os trabalhos sobre tal
objeto-fonte são analises modéstias sobre o epitelial, evitando riscos demasiados ou
incursões arriscadas ou que lhes exijam mais instrumentos. Poucos e proveitosos
aventureiros o fazem, por isso mesmo é preciso abranger e dispersar os estudos, e os
encontros promovem ao menos a percepção disso.
Na escrita científica das ciências sociais, o exercício de análise pode ser feito aos
poucos, ora pontual, ora abarcante. Quando tratamos de discursos, faz-se mister
ponderar sobre os mesmos, buscando em diversos campos os instrumentos úteis aos
questionamentos surgidos. Em espaços com pouco tato sobre a literatura popular em
verso e sobre as narrativas em quadrinhos, tende-se a tecer comentários sobre ambas de
maneira superficial e bastante limitada. Para alguns, como exemplo, os cordéis são
primitivas histórias em quadrinhos, por conta de sua proliferação em folhetins e pelas
imagens em suas folhas primeiras.
Os discursos pré-concebidos, senão pré-conceituais, petrificam rapidamente um
imaginário que pode seguir ao desastroso, quando tratamos de conhecimento. Dado tal
perigo e um certo dever combativo do pesquisador, principalmente na área de história, é
necessária a interpretação dos discursos sob o prisma da racionalidade, sem perder de
vista a sensibilidade do investigador às peculiaridades inerentes aos mesmos
discursos20.
Para a leitura comparativa entre quadrinhos e literatura de cordel, a compreensão
do conceito de circularidade é enriquecedora. As duas estruturas narrativas de consumo
popular, ambas de entretenimento, reagem em seus registros de acordo com as
19 Pontua-se, aqui, eventos acadêmicos como as Jornadas Internacionais de Quadrinhos da USP, os
encontros da Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial (ASPAS), entre outros, além do fato de
eventos de diversas áreas terem presentes comunicações onde o objeto e/ou a fonte são histórias em
quadrinhos. 20 Para tal conceito de sensibilidade, faço aqui a sugestão da leitura de dois trabalhos presentes num
mesmo volume: Pensar com o Sentimento, Sentir com a Mente, da Sandra Jatahy Pesavento;
Sensibilidade e Sociabilidade, de Jacques Leenhardt. Os dois textos presentes no livro Olhares Sobre a
História de organização de Alcides Freire Ramos, Maria Izilda Santos de Matos e Rosangela Patriota
(PESAVENTO, 2010; LEENHARDT, 2010).
interferências e influências que a realidade promove através do imaginário social e as
vastas redes discursivas onde repousam.
As complexas relações pedem argumentos mais embasados e não apenas
discursos pedantes, ainda que sem intenções nefastas. Apesar de analisar as relações
entre cultura erudita e cultura popular e suas interseções, a fala de Carlo Ginzburg nos
favorece ao dizer que “muitas vezes vimos aflorar, através das profundíssimas
diferenças de linguagem, analogias surpreendentes” (GINZBURG, 1987, p.229), no
caso, entre quadrinhos e literatura de cordel.
Uma circularidade de elementos faz concreto o diálogo entre a literatura popular
dos cordéis e suas xilogravuras com as produções autorais, fanzines ou comerciais, de
histórias em quadrinhos. Autores de quadrinhos buscam nas narrativas encantadas da
literatura popular em verso as inspirações para suas narrativas, assim como os registros
em cordéis atualizam seus olhares sobre a realidade, inserindo novos elementos:
celulares, relações pessoais, pau de self, etc.
Mais do que simples correlato imagético, de onde a estética da xilogravura
influencia muitos quadrinhistas, vem o apelo lúdico noticioso. Na literatura de cordel,
na sua narrativa em verso ou mesmo na imagem carimbada, há deboche com a notícia,
como faz a charge. Há um tom inegável e singular do riso social culturalmente
localizado, significativo expressamente para seus interlocutores.
Histórias em Quadrinhos e Literatura de cordéis não são sinônimos, nem mesmo
quando compartilham diversos elementos. Suas dinâmicas, então semelhantes,
trabalham elementos que dialogam ricamente com seus leitores-consumidores,
reconhecendo-se, abraçando certo pertencimento. Podem ser populares, mas arriscam-se
a todo momento serem cultuados pelo letramento, pelo comercial, pelo hegemônico.
Demonstram uma dinâmica complexa, onde a “presença de fecundas trocas
subterrâneas, em ambas direções”, e não apenas entre alta e baixa cultura, já não lhes
podem mais assegurar domínios isentos de vazantes (GINZBURG, 1987, p. 230). Ainda
que não pertençam a um espaço do erudito, a circularidade eleva-as, outrora subalternas,
ao status de Cult, fazendo-as transitar livremente.
Referências bibliográficas
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