1
ELEIES, DINHEIRO E DEMOCRACIA:
A ADI 4.650 e o modelo brasileiro de financiamento de campanhas eleitorais1
Daniel Sarmento2
Aline Osorio3
I Introduo: Quanto vale o dinheiro em eleies?
Um dos maiores desafios enfrentados atualmente por pases democrticos
garantir a independncia das instituies polticas com relao ao poder econmico. Em face
desse desafio, o presente trabalho visa a analisar a constitucionalidade das regras previstas na
legislao para a admisso de contribuies a campanhas eleitorais por parte de pessoas
fsicas e jurdicas, que foram impugnadas no STF atravs da ADI 4.650, proposta pelo
Conselho Federal da OAB. A tese que ser aqui desenvolvida a de que as regras e critrios
hoje vigentes possibilitam e potencializam a influncia deletria do poder econmico sobre o
processo poltico e, nesse sentido, violam os princpios constitucionais da igualdade, da
democracia, da Repblica e da proporcionalidade, subvertendo os fundamentos do nosso
Estado Democrtico de Direito.
Com efeito, a aplicao destas regras tem comprometido a igualdade poltica entre
cidados, possibilitando que os mais ricos exeram influncia desproporcional sobre a esfera
pblica. Alm disso, ela prejudica a paridade de armas entre candidatos e partidos, que
essencial para o funcionamento da democracia. No bastasse, o modelo legal vigente alimenta
a promiscuidade entre agentes econmicos e a poltica, contribuindo para a captura dos
representantes do povo por interesses econmicos dos seus financiadores, e disseminando
com isso a corrupo e o patrimonialismo, em detrimento dos valores republicanos.
1 Trabalho desenvolvido para dar subsdios adicionais aos argumentos e concluses apresentados na petio
inicial da Ao de Direta de Inconstitucionalidade 4650, Rel. Min. Luiz Fux, ajuizada pelo Conselho Federal da
Ordem dos Advogados do Brasil em face de diversos dispositivos das Leis 9.504/97 e 9.096/95, que dispem
acerca do financiamento de campanhas eleitorais por pessoas naturais e jurdicas.
2 Daniel Sarmento Professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ, mestre e doutor em Direito Pblico
pela UERJ, com ps-doutorado na Yale Law School e Procurador Regional da Repblica. Em conjunto com
Cludio Pereira de Souza Neto, foi autor da representao encaminhada ao Conselho Federal da OAB visando
propositura da ADI 4650, tendo participado da audincia pblica sobre o tema realizada pelo STF
3 Aline Osorio advogada e mestranda em Direito Pblico pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
2
Nesse sentido, eloquente o quadro emprico do financiamento privado de
campanhas eleitorais no Brasil, ao evidenciar a crescente influncia do poder econmico
sobre as eleies. Esta influncia faz-se sentir, em primeiro lugar, no custo estratosfrico das
campanhas eleitorais brasileiras. Nas eleies gerais de 2010, para se eleger, um deputado
federal precisou, em mdia, de R$ 1,1 milho, um senador, de R$ 4,5 milhes e um
governador, de R$ 23,1 milhes. A campanha presidencial de Dilma Roussef, por sua vez,
chegou a consumir mais de R$ 336 milhes. Estudos empricos revelam ainda que as
campanhas polticas vm se tornando cada vez mais caras. Se, nas eleies de 2002, os
candidatos gastaram, no total, cerca de R$ 800 milhes, em 2012, os valores gastos
ultrapassaram R$ 4,5 bilhes, o que indica um aumento de quase 600% nos gastos eleitorais.
No h inflao ou aumento demogrfico que justifique tamanho crescimento. 4
O papel central do dinheiro nas eleies fica mais evidente ao analisarmos a
relao entre as receitas obtidas e as votaes alcanadas por candidatos e partidos. Diversos
estudos so convergentes ao afirmar que o montante de recursos arrecadados influencia
diretamente o resultado das eleies.5 Para corroborar esta concluso, os grficos
apresentados abaixo relacionam o total das receitas auferidas por partidos polticos e os votos
por eles obtidos nas eleies de 2012 e 2010, respectivamente.
Grfico 1 - Correlao entre receitas e votaes de partidos nas Eleies 2012
4 Dados obtidos por meio das bases de dados do Tribunal Superior Eleitoral e do website s Claras.
Disponvel em e
. Acesso em 29 ago. 2013. Anlises semelhantes podem ser encontradas em
SAMUELS, David. Money, elections and democracy in Brasil. In: Latin American Politics and Society. v. 43,
2001; e PINTO, Marcos Barbosa. Constituio e Democracia. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. 371 p.
5 Veja-se, a propsito: FILHO, Dalson Britto Figueiredo. Gastos eleitorais: os determinantes das eleies?
Estimando a influncia dos gastos de campanha nas eleies de 2002. Revista Urutgua, v. 8, p. 1-10, 2005;
SAMUELS, David. Financiamento de campanhas no Brasil e propostas de reforma. Suffragium, v. 3, n. 4, p. 11-
28 jan./jun. 2007; SPECK, Bruno; WAGNER, Mancuso. O que faz a diferena? Gastos de campanha, capital,
poltica, sexo e contexto municipal nas eleies para prefeito em 2012. Cadernos Adenauer XIV (2013) no 2.;
3
Grfico 2 - Correlao entre receitas e votaes de partidos nas Eleies 20106
Tais grficos demonstram que h, efetivamente, uma significativa correlao entre
o aumento dos recursos empregados em uma campanha e o nmero de votos obtidos.7 Ou
seja, quanto mais elevadas as receitas obtidas por um candidato, maiores as suas chances de
ser eleito.
Isso porque, nas sociedades de massa, o dinheiro essencial para se ter acesso a
recursos praticamente indispensveis para uma campanha vitoriosa: espao publicitrio nas
mdias, elaborao de panfletos e demais materiais de campanha, contratao de cabos
eleitorais, de prestadores de servio, de marqueteiros, dentre outras despesas. No
ignorando tal cenrio, polticos gastam parte significativa da sua energia na arrecadao de
fundos para suas campanhas.
Entretanto, tais candidatos raramente vo bater s portas de seus eleitores em
busca de recursos e apoio. Constata-se, em verdade, um absoluto predomnio entre os
doadores das pessoas jurdicas, em detrimento das pessoas naturais. Em 2010, as doaes por
parte de indivduos corresponderam a aproximadamente 8,7% das receitas totais das eleies,
excludas as doaes realizadas pelos prprios candidatos. O mesmo padro se reproduziu nas
eleies de 2012, ainda de forma mais aguda, quando as doaes de pessoas fsicas foram
responsveis por menos de 5% das receitas eleitorais.8 Para a campanha de Dilma Roussef,
6 Grficos extrados do website s Claras.
7 A correlao positiva de que falamos no significa que haja uma relao de causa e efeito entre dinheiro
injetado em campanhas e postos de poder conquistados, mas apenas que os candidatos que muito arrecadam tm
grandes chances de se eleger, enquanto que aqueles que arrecadam pouco tm poucas chances de vitria.
8 Dados obtidos por meio das bases de dados do Tribunal Superior Eleitoral e do website s Claras.
4
por exemplo, contriburam apenas cerca de 2.000 pessoas naturais, alcanando menos de 1%
do total das doaes recebidas.9
Os dados colhidos apontam tambm que as contribuies de campanha no
provm de um grande nmero de doadores. Pelo contrrio, h uma absoluta concentrao de
doadores, que contribuem, cada um, com quantias em geral bastante elevadas.10
Para que se
tenha uma ideia, nas eleies gerais de 2010, 1% dos doadores, correspondentes a 191
empresas, concentraram 61% do valor total das doaes.11
Desses doadores, os dez mais
generosos foram sozinhos responsveis por cerca de 22% de todos os recursos arrecadados.12
Percebe-se, assim, que o financiamento eleitoral pelo setor privado no Brasil se d
atravs de um reduzido grupo de pessoas jurdicas, que no representa mais do que 0,5% do
total de empresas brasileiras e, ainda, por um punhado de pessoas fsicas muitssimo
abastadas.13
Disso resulta que candidatos e partidos polticos so fortemente dependentes de
poucas empresas para sua candidatura. E - no sejamos inocentes - no se deve esperar que o
almoo seja grtis.
Pelo contrrio, natural, neste quadro, que os interesses dos doadores influenciem
decisivamente a atuao dos polticos eleitos com a sua ajuda. Desejosos de contar com tais
fundos para uma futura reeleio, os representantes tendem a se empenhar na defesa dos
interesses e projetos nem sempre legtimos dos seus principais doadores, valendo-se dos mais
diversos expedientes, como o favorecimento em licitaes e contratos pblicos, a concesso
de incentivos fiscais e a edio de regulaes favorveis. E dados empricos revelam que os
grandes financiadores de campanhas eleitorais so, na esmagadora maioria dos casos,
9 Nos Estados Unidos, o presidente Barack Obama, em sua campanha de 2007, arrecadou cerca de U$ 500
milhes atravs da internet, em pequenas doaes de quase 3 milhes de doadores pessoas fsicas.
10 A concentrao de recursos tambm se verifica quanto aos destinatrios das contribuies financeiras. De
acordo com dados do Tribunal Superior Eleitoral, nas eleies de 2010, o PT, o PSDB e o PMDB receberam
aproximadamente 60% do total dos recursos doados. Os dez maiores doadores, por sua vez, concentraram quase
70% das suas doaes em tais partidos. Se incluirmos nessa lista o PSB, o DEM, o PP, o PDT, o PTB, o PR e o
PSC, esse percentual chega a 89% do total das contribuies (Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade
Social e Transparency International. A responsabilidade das empresas no processo eleitoral. Ed. 2012. p. 39).
11 Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social e Transparency International. A responsabilidade das
empresas no processo eleitoral. Ed. 2012. p. 34.
12 Ibid. p. 34.
13 Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia Estatstica IBGE, em 2010, havia 4,5 milhes de empresas
ativas no Brasil, sendo que menos de 20 mil contriburam com recursos para campanhas eleitorais em 2010.
5
justamente empresas pertencentes a setores que mantm estreitas relaes com o Poder
Pblico, como a construo civil, o setor financeiro e a indstria.14
Por outro lado, h evidncias de que, com as contribuies, os big donors no
objetivam apenas ser beneficiados por medidas e polticas pblicas especiais, mas tambm,
por vezes, buscam evitar represlias polticas.15 De acordo com a pesquisa Corrupo no
Brasil: A perspectiva do setor privado, mais de 25% das empresas entrevistadas alegaram
terem sido coagidas a fazerem doaes a campanhas e, destas, a metade relatou terem sido
prometidos favores em troca da contribuio.16
O panorama traado acima exibe o impacto nefasto que o modelo de
financiamento privado de campanhas tem sobre a poltica brasileira, concedendo ao poder
econmico um papel central na vida poltica, antes e depois das eleies.
Com efeito, tal quadro emprico d ensejo a graves distores produzidas pela
excessiva infiltrao do poder econmico no meio poltico. Em primeiro lugar, do ponto de
vista dos candidatos, o resultado mais direto o desestmulo a candidaturas de indivduos
desprovidos de recursos prprios e de contatos com o mundo empresarial, atravs dos quais
pudessem arrecadar os fundos necessrios para entrar na disputa. Por essa lgica, cidados
comuns simplesmente no tm condies de se eleger. Alm disso, como, de um lado, as
doaes de campanha provm em sua quase totalidade de grandes empresas e de indivduos
muito ricos e, de outro, o volume de recursos arrecadados influi diretamente sobre as chances
de eleio, os candidatos que representam os interesses do empresariado e das classes mais
elevadas tm uma vantagem desproporcional na corrida eleitoral.
14
Cf. Tribunal Superior Eleitoral. Estatsticas de Prestao de Contas Doaes. Disponvel em Acesso em 29 ago. 2013.
15 A ideia, desenvolvida no mbito da teoria da escolha pblica (public choice), a de que, no mercado poltico,
no s empresas buscam se apropriar de rendas e privilgios por meio do processo poltico (rent seeking), mas
tambm os polticos visam gerar benefcios para si (no caso, fundos para suas campanhas) mediante a ameaa de
retirar, via regulao ou tributao, rendas e vantagens j concedidas a tais empresas. Descarta-se, assim, uma
viso maniquesta que entende o Estado apenas como vtima da atuao interessada de empresas. A respeito, cf.
MCCHESNEY, Fred S.; Money for nothing: Politicians, rent extraction and political extortion. Cambridge:
Harvard University Press, 1997. 216p 16
ABRAMO, Claudio Weber. Corrupo no Brasil: A perspectiva do setor privado, 2003. Transparncia Brasil,
2004.
6
Em segundo lugar, o formato atual do financiamento privado de campanhas
produz uma srie de deturpaes do ponto de vista dos eleitores. Se o voto j no mais a
nica ficha de um cidado nas eleies, a possibilidade de contribuir com dinheiro para
campanhas eleitorais permite que a desigualdade econmica presente na sociedade seja
reproduzida na arena poltica. Como resultado, as pessoas ricas ganham um maior peso na
definio dos resultados das eleies e, consequentemente, seus interesses so sobre-
representados no Parlamento e no Executivo, em detrimento dos cidados mais pobres.
Na verdade, a democracia repousa na afirmao da igualdade poltica entre os
cidados. Tal princpio no se satisfaz com a mera atribuio de um voto a cada pessoa,
exigindo, sobretudo, que cada um tenha igual possibilidade de influir na formao do corpo e
da vontade polticos. No entanto, ao conceder aos mais ricos (e, pior, a empresas que sequer
tm voto) uma importncia na poltica desproporcional sua representao na sociedade, o
modelo de financiamento privado adotado induz plutocratizao da poltica brasileira,
subvertendo os princpios da igualdade, da repblica e da prpria democracia.
Isso tambm contribui para a crise de representao e para o afastamento do povo
da poltica. Afinal, se os polticos renem os recursos necessrios para se eleger apenas junto
a empresas (e um ou outro milionrio), sem precisar de cidados, o esquema de arrecadao
de fundos diminui a capilaridade do sistema representativo e cidados comuns ficam com a
impresso de que a poltica simplesmente no para eles. Como ressaltou Michael Walzer,
the most common form of powerlessness () derives from the dominance of Money in the
sphere of politics. The endless spectacle of property/power, the political success story of the
rich, enacted and re-enacted on every social stage, has over time a deep and pervasive effect.
Citizens without Money come to share a profound conviction that politics offers they no hope
at all.17
Por fim, a impregnao do capital na poltica demonstrada pelos dados acima cria
incentivos a relaes promscuas e antirrepublicanas entre o sistema poltico e agentes
econmicos privados. Se a competio principal passa a ser por recursos, e no por votos, o
sistema de financiamento de campanhas determina a formao de fortes vnculos entre os
candidatos eleitos e seus doadores.
17
WALZER, Michael. Spheres of justice A defense of Pluralism and Equality. New York: Basic Books, 1983. p. 310-311.
7
Mas essas mazelas no so incorrigveis. No julgamento da ADI 4650, o STF tem
uma excepcional oportunidade de contribuir para a superao deste grave defeito do nosso
regime democrtico.
II O que a disciplina legal do financiamento de campanhas tem a ver com isso?
As patologias do nosso sistema representativo explicitadas acima so, como
veremos a seguir, viabilizadas e potencializadas pela legislao brasileira em vigor relativa ao
financiamento privado de campanhas eleitorais.
O financiamento das eleies est regulamentado pela Lei 9.504/97 (Lei das
Eleies) e, ainda, pela Lei 9.096/96 (Lei Orgnica dos Partidos Polticos), na parte que trata
da prestao de contas dos partidos e do Fundo Partidrio. As regras vigentes estabelecem um
modelo de financiamento misto, com a possibilidade de uso, em campanhas eleitorais, de
fundos pblicos, bem como de fundos privados, incluindo recursos prprios de candidatos e
recursos provenientes de doaes de pessoas fsicas e jurdicas.
Tais atos normativos no fixam, porm, um teto para os gastos eleitorais dos
candidatos nos diversos cargos em disputa. Ainda que haja a previso de edio de lei, em
cada eleio, que determine tais limites, como essa lei nunca editada, cada partido poltico
fixa o seu prprio limite (tanto o limite total, quanto por cargo) de gastos (art. 17-A e 18 da
Lei 9.504/97). Disso resulta a total inexistncia, na prtica, de limites aos dispndios em
campanha. No a toa que os gastos eleitorais tm experimentado um crescimento
exponencial na ltima dcada.
H, contudo, previso de limites s contribuies efetivadas aos candidatos e
partidos polticos por pessoas fsicas e jurdicas, bem como para o uso de recursos prprios
por candidatos.
Com relao s pessoas naturais, a legislao estabelece que elas podem fazer
doaes em dinheiro at o limite de 10% dos rendimentos brutos auferidos no ano anterior
eleio, ou fazer doaes estimveis em dinheiro relativas utilizao de bens mveis e
imveis do doador cujo valor no ultrapasse R$ 50.000,00 (caput e 1o, I, e 7
o do art. 23, da
8
Lei 9.504/97). A ttulo ilustrativo, a aplicao de referida regra s eleies de 2010 permitiu
que um conhecido empresrio doasse exatos R$ 6,05 milhes a diversos candidatos e
partidos.18
No entanto, a mesma regra proibia que qualquer cidado que recebesse salrio
mnimo (i.e., 32,7% da populao, segundo o IBGE) contribusse com mais do que R$ 604,50
a qualquer campanha.19
A consequncia absurda que uma tal regra faz com que, na prtica,
o apoio de um bilionrio valha mais do que o de 10.000 cidados.
No se defende aqui que as doaes de indivduos a campanhas eleitorais devam
ser simplesmente proibidas. De modo diverso, entendemos que o financiamento de eleies
atravs de pequenas doaes de uma multiplicidade de eleitores sinal de saudvel
engajamento cvico dos cidados e de vitalidade da democracia e, logo, se encontra em
perfeita consonncia com os princpios contidos na Carta Constitucional de 88. apenas o
critrio empregado pelo legislador para limitar o montante das doaes (os rendimentos do
eleitor) que, como se ver adiante, se afigura inconstitucional. Adotar os rendimentos do
eleitor como baliza para as doaes uma aberrao, que, como demonstra o exemplo acima,
institucionaliza a desigualdade poltica, ao invs de erradic-la. Prova disso que no h
nenhuma outra democracia representativa no mundo que adote critrio semelhante.20
No que concerne ao uso de recursos prprios por parte de candidatos, no se
aplica a mesma restrio baseada em percentual da renda. Nesse caso, a contribuio dos
candidatos a suas campanhas fica apenas limitada ao valor mximo de gastos estabelecido
pelo seu partido, o que, como visto anteriormente, equivale a no ter qualquer limite (art. 23,
1, II, Lei 9.504/97). Aqui tambm os limites previstos na legislao (ou melhor, a ausncia
deles) atuam no sentido de possibilitar a converso de desigualdade econmica em
desigualdade poltica, conferindo vantagem desproporcional a candidatos ricos em relao aos
candidatos pobres.
Finalmente, quanto s pessoas jurdicas, a legislao eleitoral autoriza que estas
faam doaes a candidatos e a partidos polticos em valores que representem, no total, at
18
Dados extrados do banco de dados do Tribunal Superior Eleitoral. Disponvel em Acesso em 29 ago. 2013.
19 Em 2009, o salrio mnimo vigente era de R$ 465,00, o que multiplicado por 13 (12 meses somado ao 13
o
salrio), equivale a R$ 6.045,00 de renda bruta anual.
20 A respeito, cf. International Institute for Democracy and Electoral Assistance IDEA. Funding of Political
Parties and Election Campaigns. 2003. p. 205-208.
9
2% do seu faturamento no ano anterior ao da respectiva eleio (art. 81 da Lei 9.504/97).
Mas no so todas as pessoas jurdicas que podem doar. A Lei 9.504/97 veda expressamente
que partidos e candidatos recebam doaes provenientes: (i) do estrangeiro; (ii) de rgos da
Administrao Pblica; (iii) de concessionrios ou permissionrios de servio pblico; (iv) de
praticamente todas as entidades sem fins lucrativos, como OSCIPs, entidades beneficentes,
religiosas e esportivas; e (v) de entidades de classe ou sindical. Como resultado das vedaes
citadas, apenas as empresas privadas que, por definio, perseguem o lucro so
autorizadas a contribuir a campanhas polticas.
Essa permisso legal para a arrecadao de fundos para campanhas eleitorais via
pessoas jurdicas , em si, prejudicial democracia, pois concede a quem no tem voto uma
rota alternativa e, como visto, mais eficaz para participar do processo poltico-eleitoral.
Com isso, compromete-se a igualdade poltica entre eleitores e candidatos e cria-se espao
para a formao de redes de favorecimento poltico e corrupo. Alm disso, os limites
propostos para as doaes por parte de empresas aprofundam ainda mais a influncia do poder
econmico sobre a poltica. Como visto, as pessoas jurdicas so capazes de doar somas
extraordinrias de dinheiro a campanhas e partidos polticos, infinitamente maiores daquelas
que cidados comuns seriam aptos a fazer, de modo que estes acabam sendo marginalizados
na disputa eleitoral.
Ademais, a regulao de contribuies por pessoas jurdicas na Lei 9.504/97, alm
de antidemocrtica, ideologicamente parcial. No faz o menor sentido, de um lado, permitir
doaes a campanhas por parte de qualquer empresa, e de outro, proibir que a representao
dos trabalhadores (sindicatos) possa contribuir para campanhas polticas. Tampouco
razovel que organizaes no-governamentais que recebam recursos pblicos no possam
doar (art. 24, X, da Lei 9.504/97), enquanto que as empresas privadas que contratam com o
governo no somente so autorizadas a fazer doaes, como tambm figuram entre os maiores
doadores de campanhas. Tal marco normativo confere, em verdade, privilgios injustificveis
ao capital no processo eleitoral, em detrimento da representao da cidadania.
Conclui-se, desse modo, que os limites ao financiamento privado de campanhas
institudos pela legislao eleitoral so manifestamente inadequados para coibir a infestao
da poltica pelo poder econmico e, de modo oposto, at estimulam tal disfuno.
10
No entanto, a Constituio no adota uma postura de neutralidade frente a tal
quadro patolgico. Pelo contrrio, ao positivar os princpios da igualdade, da democracia e da
Repblica, a Carta de 88 conclama o legislador a uma atitude proativa com vistas a afastar do
processo poltico a indevida influncia do poder econmico. Alis, tal meta encontra-se at
mesmo expressa em seu texto, no 9o do art. 14, quando, ao definir os princpios que
deveriam guiar a legislao infraconstitucional eleitoral, destacou a necessidade de proteger
a normalidade e a legitimidade das eleies contra a influncia do poder econmico.
Diante disso, j no mais possvel a manuteno do atual arcabouo normativo
relativo ao financiamento de campanhas. Modific-lo no apenas um imperativo moral, mas
um verdadeiro dever constitucional.
III A (in)constitucionalidade do atual modelo de financiamento de campanhas
Os quadros emprico e normativo acima examinados constituem prova eloquente
de que o atual regime legal relativo ao financiamento privado de campanhas no se presta
para coibir a influncia indevida do poder econmico sobre a poltica e, nesse sentido, viola
os princpios da democracia, da igualdade poltica e da repblica. Ofende, ainda, o princpio
da proporcionalidade, na sua dimenso de vedao proteo deficiente. Vejamos.
a) Violao aos princpios da democracia e da igualdade
O princpio democrtico a viga mestra da Constituio de 1988 e encontra-se
positivado em diversos de seus dispositivos, como no art. 1o, em seu caput, que define a
Repblica Federativa do Brasil como Estado Democrtico de Direito, e Pargrafo nico, que
reconhece a soberania popular como fundamento do poder poltico. A democracia, entendida
como o governo do povo, pelo povo e para o povo21, se assenta na premissa fundamental da
igualdade poltica entre os cidados, isto , na possibilidade de todo o povo, igualmente
21
A frase foi enunciada por Abraham Lincoln em seu famoso discurso de Gettysburg, em 1863, durante a Guerra
Civil. Como observado por Jos Afonso da Silva, [g]overno do povo significa que este fonte e titular do poder (todo poder emana do povo), de conformidade com o princpio da soberania popular que pelo visto, o princpio
fundamental de todo regime democrtico. Governo pelo povo quer dizer governo que se fundamenta na vontade
popular, que se apoia no consentimento popular; governo democrtico o que se baseia na adeso livre e
voluntria do povo autoridade, como base da legitimidade do exerccio do poder, que se efetiva pela tcnica da
representao poltica (o poder exercido em nome do povo). Governo para o povo h de ser aquele que procure
liberar o homem de toda imposio autoritria e garantir o mximo de segurana e bem estar social. (Curso de Direito Constitucional Positivo. 29
a ed.. So Paulo: Malheiros Editores S.A., 2007. p. 135)
11
considerado, participar da formao do governo e da vontade poltica da comunidade, por
intermdio da eleio de representantes. As ideias de democracia e de igualdade poltica so,
assim, absolutamente indissociveis.
O princpio da igualdade poltica, por sua vez, alm de estar previsto de forma
genrica no caput do art. 5o da Carta de 1988, encontra-se consagrado em seu art. 14, que
prev que o voto deve ter valor igual para todos. A igualdade poltica, expressa na frmula
one person, one vote, mais do que atribuir um voto a cada cidado, significa que cada
cidado deve ter igual capacidade de influir no processo eleitoral, independentemente de sua
classe, cor, nvel de instruo ou qualquer outro fator.22
Com isso, se quis impedir que s
preferncias de alguns cidados fosse atribuda maior importncia que aos interesses dos
demais e, assim, garantir uma real democracia. Afinal, como ressalta Robert A. Dahl:
uma caracterstica-chave da democracia a contnua responsividade do
governo s preferncias de seus cidados, considerados como politicamente
iguais. (...) [P]ara um governo continuar sendo responsivo durante certo tempo,
s preferncias de seus cidados, considerados politicamente iguais, todos os
cidados plenos devem ter oportunidades plenas (...) De ter suas preferncias
igualmente consideradas na conduta do governo, ou seja, consideradas sem
discriminao decorrente do contedo ou da fonte da preferncia.23
Ocorre, porm, que a disciplina legal referente ao financiamento de campanhas
permite que o dinheiro compre eleies de forma totalmente incompatvel com os
princpios da igualdade do voto e da democracia.
No caso das contribuies por parte de pessoas naturais, que podem doar at 10%
dos rendimentos brutos auferidos no ano anterior eleio, o limite estabelecido pelo
legislador faz a igualdade do voto ceder lugar, na prtica, extrema desigualdade poltica
entre os eleitores com relao possibilidade de influenciar o resultado eleitoral e, logo, a
prpria atuao do Estado. A lei eleitoral permite que alguns cidados, dotados de
considerveis recursos financeiros, possam fazer doaes expressivas a candidatos e, com
22
O princpio one person, one vote foi formulado pela primeira vez no julgamento do caso Gray v. Sanders, em 1963, no qual a Suprema Corte dos Estados Unidos julgou inconstitucional o sistema eleitoral adotado na
Gergia, que conferia pesos desiguais aos votos de eleitores residentes em diferentes condados. No julgamento, a
Corte acolheu o argumento do Ministro Willian Douglas, no sentido de que [t]he conception of political equality () can mean only one thing - one person, one vote. (Gray v. Sanders, 372 U.S. 368,1963).
23 Dahl, Robert A. Poliarquia e Oposio 1 ed., 1 reimpresso. Editora USP. So Paulo. 2005. p 25
12
isso, aumentar em muito as chances de sua eleio. Entretanto, a mesma lei restringe
injustificadamente a possibilidade de os eleitores mais pobres contriburem a campanhas,
inclusive sob pena de cometer ilcito eleitoral sujeito a multa severa. Alm disso, uma vez
proclamados os resultados das eleies, a desigualdade entre os eleitores ricos e pobres se
mantm, na medida em que os eleitos tero maior interesse em beneficiar cidados cuja
cooperao se demonstra essencial sua reeleio do que cidados cujo apoio pouco
signifique.
O critrio de discriminao adotado pelo legislador para definio dos limites de
doao renda do doador se afigura ilgico e desarrazoado. O princpio da igualdade impe
que as diferenas de tratamento guardem uma relao de pertinncia lgica com os objetivos a
que visam a atingir. Naturalmente, no caso da imposio de limite a doaes de campanha, o
fim perseguido a reduo da influncia do poder econmico sobre a poltica. A norma
impugnada, porm, se mostra totalmente inadequada para realizar referida finalidade.
absurdo tratar como ato ilcito uma doao de mil reais a um candidato, feita por um doador
pobre, e considerar lcita a contribuio de milhes de reais promovida por outro, que seja
muito rico. Trata-se de discriminao odiosa, que no apresenta qualquer relao racional
com os objetivos perseguidos pelo legislador.
Tampouco se compatibiliza com os princpios da igualdade e da democracia a
norma eleitoral relativa ao emprego de recursos prprios por parte de candidatos. Como visto,
se o nico limite para o uso de fundos prprios por um dado poltico o teto de gastos de
campanha que estabelecido pelo seu prprio partido, na prtica, tal regra equivale
inexistncia de limites, o que prejudica a livre concorrncia entre candidatos, em favor
daqueles mais ricos.
Com relao s pessoas jurdicas, o quadro ainda mais grave. As pessoas
jurdicas so entidades artificiais s quais o direito empresta personalidade jurdica,
reconhecendo-as como sujeito de direito para o desempenho de fins especficos. No entanto,
elas no so titulares dos mesmos direitos atribudos a pessoas naturais: a elas no se aplicam,
por bvio, os direitos polticos, que somente so assegurados cidadania como corolrio da
soberania popular.24
24
Nesse sentido, Gustavo Tepedino defende que as pessoas jurdicas so sujeitos de direitos (...) dotadas de capacidade de direito e de capacidade postulatria, no plano processual (...) Todavia, a fundamentao
13
No entanto, o legislador, ao admitir que empresas faam doaes a campanhas e
partidos polticos, acaba por garantir representatividade poltica a quem no tem direito de
voto. Considerando que suas contribuies correspondem quase totalidade dos valores
arrecadados, a forte dependncia dos candidatos com relao a tais recursos garante que os
interesses das empresas doadoras e dos seus titulares sejam privilegiados na tomada de
decises polticas. Assim, os dispositivos legais que autorizam a realizao de doaes por
pessoas jurdicas tambm padecem de grave vcio de inconstitucionalidade, por violarem a
igualdade poltica e a democracia.
No bastasse isso, a legislao eleitoral, ao definir as fontes de doaes vedadas,
promove uma discriminao odiosa aos interesses dos trabalhadores e da sociedade civil
organizada, violando, mais uma vez, o princpio da igualdade. No h qualquer justificativa
razovel que explique por que sindicatos e organizaes sem fins lucrativos so proibidos de
efetuar contribuies a campanhas, enquanto que as grandes corporaes, que visam
essencialmente ao lucro, so autorizadas a doar livremente.
Portanto, os atos normativos que instituem um limite relativo s doaes por
pessoas naturais baseado na sua renda, que (no) definem limites para o uso de recursos
prprios por candidatos e que admitem doaes por parte de pessoas jurdicas so
inconstitucionais.
b) Violao ao princpio republicano
Ao lado da democracia, o princpio republicano, consagrado logo no art. 1o da
Constituio de 1988, ocupa uma posio de destaque em nosso sistema constitucional,
compondo o chamado ncleo essencial da Constituio. Na ordem constitucional vigente, o
princpio republicano no se restringe forma representativa de governo, na qual os
constitucional dos direitos da personalidade, no mbito dos direitos humanos, e a elevao da pessoa humana ao
valor mximo do ordenamento no deixam dvidas sobre a preponderncia do interesse que a ela se refere, e
sobre a distinta natureza dos direitos que tm por objeto bens que se irradiam da personalidade humana em
relao aos direitos (em regra patrimoniais) da pessoa jurdica, no mbito da atividade econmica privada. (TEPEDINO, Gustavo. A Crise de fontes normativas e tcnica legislativa na parte geral do Cdigo Civil de
2002. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). A parte geral no Novo Cdigo Civil: Estudos na perspectiva civil-
constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, 2a ed, pp. XXVII-XXVIII.)
14
representantes do povo so selecionados atravs de eleies e exercem mandatos renovveis
periodicamente. Dele se extrai, ainda, a ideia fundamental de que a coisa pblica,
pertencendo a todos, deve ser gerida, de forma impessoal, no interesse de toda a coletividade,
sem admitir discriminaes ou capturas de qualquer sorte. 25
Com efeito, o princpio republicano deve ser associado ao respeito moralidade
pblica na ao dos agentes estatais, ao combate ao patrimonialismo e apropriao da res
publica por interesses particulares. A Repblica no tolera privilgios e no compactua com a
captura dos agentes pblicos por interesses privados de agentes econmicos. No entanto, o
modelo de financiamento privado de campanhas adotado pela legislao eleitoral favorece a
colonizao do espao pblico por interesses privados e o estabelecimento de relaes
antirrepublicanas entre candidatos e seus doadores.
Tal modelo cria um ambiente frtil para trocas de favores e corrupo, alm de
alimentar vcios histricos brasileiros, como o clientelismo e o patrimonialismo, totalmente
incoerentes com os valores republicanos.26
Como notou o Ministro Lus Roberto Barroso, em
lcido comentrio no mbito do julgamento dos embargos de declarao na Ao Penal 470, a
extrema dependncia da poltica eleitoral de recursos financeiros tende a gerar uma perversa
criminalizao da atividade poltica:
Uma campanha para Deputado Federal em alguns Estados custa, em avaliao
modesta, 4 milhes de reais. O limite mximo de remunerao no servio pblico
um pouco inferior a 20 mil reais lquidos. De modo que em quatro anos de
mandato (48 meses), o mximo que um Deputado pode ganhar inferior a 1
milho de reais. Basta fazer a conta para descobrir onde est o problema. Com
esses nmeros, no h como a poltica viver, estritamente, sob o signo do
interesse pblico. Ela se transforma em um negcio, uma busca voraz por
recursos pblicos e privados. Nesse ambiente, proliferam as mazelas do
financiamento eleitoral no contabilizado, as emendas oramentrias para fins
25
Cf. LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. Reflexes em torno do Princpio Republicano. In: VELLOSO,
Carlos Mrio da Silva; ROSAS, Roberto; AMARAL, Antonio Carlos Rodrigues do. (Org.). Princpios
Constitucionais Fundamentais: estudos em homenagem ao Professor Ives Gandra da Silva Martins. So Paulo:
Lex, 2005. pp. 375 e sgs.
26 A respeito dos vcios histrico-culturais brasileiros, cf. FAORO, Raymundo. Os donos do poder - Formao
do patronato poltico brasileiro. Porto Alegre: Globo, 1975 (vol. I e II); FREYRE, Gilberto. Casa grande &
senzala. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1961; HOLANDA, Srgio Buarque de. Razes do Brasil. Rio de Janeiro: J.
Olympio, 1979.
15
privados, a venda de facilidades legislativas. Vale dizer: o modelo poltico
brasileiro produz uma ampla e quase inexorvel criminalizao da poltica.27
Como visto, as campanhas, cada vez mais caras, so custeadas, na sua quase
totalidade, por um nmero muito pequeno de empresas e um punhado de indivduos com os
quais os candidatos estabelecem estreitos vnculos, por serem dependentes dos recursos
financeiros injetados para sua eleio e reeleio. De tais vnculos resulta que os candidatos
tendem a ser mais responsivos s demandas especficas de seus doadores do que aos
interesses do restante da populao.
No bastasse, o campo emprico fornece exemplos eloquentes de que os
frequentes e lastimveis casos de corrupo no pas e, mesmo, no mundo tm origem, em
grande parte, no contexto do financiamento privado de campanhas.28
Na maioria dos casos, a
corrupo encontra-se diretamente relacionada dependncia financeira dos eleitos em
relao a um pequeno nmero de doadores, que d origem a acordos quid pro quo29
entre os
candidatos e seus financiadores. As relaes promscuas nascidas neste ambiente tm sido
fonte abundante de graves desvios ticos e de corrupo, como revela, por exemplo, o
julgamento da Ao Penal 470 pelo Supremo Tribunal Federal30
. E tambm o diagnstico
de Eduardo Garca de Enterra, para quem la financiacin de los partidos polticos y de sus
campaas electorales est, frecuentemente, en los orgenes del surgimiento de prcticas
corruptas (...).31
27
Trecho extrado do voto do Min. Lus Roberto Barroso, proferido em sesso do dia 14/08/2013, no julgamento
de embargos de declarao na Ao Penal 470.
28 Nesse sentido, elucidativa a afirmao do diretor de Combate ao Crime Organizado da Polcia Federal,
Oslain Santana, em entrevista ao jornal O Globo, em 19.10.13, de que cinquenta por cento das operaes da Polcia Federal contra corrupo tm como pano de fundo o financiamento de campanha. Disponvel em: Acesso em 20 out, 2013.
29 A expresso foi usada no famoso caso Buckley v. Valeo, julgado em 1976, no qual a Suprema Corte dos
Estados Unidos admitiu a imposio de limites s doaes privadas com fundamento na necessidade de o
governo proteger a higidez das eleies contra a corrupo ocasionada pelos arranjos quid pro quo entre
candidatos e seus financiadores. No julgamento, afirmou-se que: To the extent that large contributions are given to secure a political quid pro quo from current and potential office holders, the integrity of our system of
representative democracy is undermined. e que [o]f almost equal concern as the danger of actual quid pro quo arrangements is the impact of the appearance of corruption stemming from public awareness of the
opportunities for abuse inherent in a regime of large financial contributions. (424 U.S. p. 26-27).
30 AP 470, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, julgado em 17/12/2012, DJ 22.04.2013
31 GARCA DE ENTERRA, Eduardo. Democracia, jueces y control de la administracin. Madrid: Editorial
Civitas, 1995. p. 83.
16
Nesse ponto, haver quem argumente que a soluo aventada a proibio de
doaes por pessoas jurdicas e a imposio de limite uniforme s doaes por pessoas
fsicas incapaz de resolver o problema da infiltrao do poder econmico na poltica, uma
vez que os recursos continuaro ingressando atravs do chamado caixa 2.
No se ignora que, com o fim das doaes a campanhas e partidos por parte de
empresas, no se extinguir a possibilidade de as mesmas efetuarem contribuies no
contabilizadas, que, de resto, so realizadas mesmo no modelo atual. Isso, contudo, no
constitui um motivo aceitvel para deixar tudo como est, para ver como fica. As leis,
como se sabe, no operam milagres, extinguindo, a toque de caixa, traos culturais e
histricos de um povo, como, no Brasil, a cultura do jeitinho, da corrupo e da captura do
pblico pelo privado. Ainda assim, a alterao do arcabouo normativo vigente um
importante passo no sentido de reduzir os efeitos perniciosos decorrentes da promiscuidade
entre o capital e a poltica e de tornar o sistema de financiamento de campanhas mais
igualitrio, democrtico e republicano.
Nada impede que, no futuro, outras medidas sejam adotadas pelo Poder Pblico
para evitar o financiamento eleitoral pelo caixa 2, tais como o aperfeioamento dos
mecanismos existentes para fiscalizao de gastos de campanha por parte da Justia e do
Ministrio Pblico Eleitoral. Trata-se, portanto, de solues complementares e sinrgicas, mas
nunca excludentes. O que no se pode admitir, porm, que a prpria lei eleitoral fomente
tais vcios antirrepublicanos, como ora ocorre. Da a inconstitucionalidade das regras acima
mencionadas.
c) Violao ao princpio da proporcionalidade como vedao proteo deficiente
Hoje, compreende-se que o princpio da proporcionalidade, alm de instrumento
de conteno de excessos e arbtrios do poder estatal, possui uma dimenso positiva, que
consiste na vedao proteo deficiente de direitos fundamentais e princpios tutelados
constitucionalmente. Como assinalou o Ministro Gilmar Mendes,[p]ode-se dizer que os
direitos fundamentais expressam, no apenas uma proibio do excesso (bermassverbote),
como tambm podem ser traduzidos em proibies de proteo insuficiente ou imperativos de
tutela (Untermassverbote).32
32
HC 104410, Rel. Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em 06/03/2012, DJ 27-03-2012
17
Tal vertente do princpio da proporcionalidade desenvolveu-se a partir da
concepo de que o Estado tem o dever no s de se abster de violar direitos e princpios
fundamentais, como tambm o de defend-los e promov-los ativamente, ofendendo a
Constituio quando no atua de forma suficiente garantia dos bens jurdicos protegidos. A
leso ao princpio da proibio da proteo deficiente legitima a interveno do Poder
Judicirio no sentido de promover a adequada tutela dos princpios e direitos fundamentais
negligenciados pelos demais poderes estatais. Tal entendimento vem sendo aplicado
sistematicamente pelo Supremo Tribunal Federal, que, em diversos casos, emprega a vertente
positiva do princpio da proporcionalidade para afastar a incidncia de normas que impliquem
a tutela insatisfatria de preceitos da Constituio.33
Para que se reconhea leso proporcionalidade como vedao proteo
deficiente, necessrio aferir se a insuficincia da atuao estatal em favor de bens jurdicos
constitucionalmente tutelados ou no justificada pela promoo de interesses contrapostos,
tambm juridicamente protegidos.
Os dados empricos citados acima comprovam que a disciplina jurdica do
financiamento privado de campanha francamente insuficiente para proteger os princpios da
democracia, da igualdade poltica e da repblica to fundamentais em nosso sistema
constitucional contra a influncia do poder econmico nas eleies. Cumpre ento analisar
se esta deficincia na atuao estatal compensada pela promoo de algum objetivo legtimo
do ponto de vista constitucional.34
No caso em questo, trs objetivos poderiam ser suscitados
pelos defensores do atual status quo para justificar a manuteno das normas impugnadas: (i)
que elas seriam benficas s campanhas eleitorais, por permitir que sejam irrigadas por mais
recursos privados; (ii) que elas seriam mais protetivas da liberdades econmicas dos
33
A ttulo exemplificativo, cf: RE 418376. Rel. p/ acrdo Min. Joaquim Barbosa. DJ, 23 mar. 2007; ADI 3112,
Rel. Min. Enrique Lewandowski. DJe, 26 out. 2007; HC 16212, Rel. Min. Marco Aurlio, DJe, 13 jun. 2011.
34 A proteo insuficiente de determinado direito ou princpio constitucional apurada atravs da aplicao dos
subprincpios da princpio da proporcionalidade, devendo-se verificar, no caso concreto, (a) se a sua omisso ou atuao deficiente contribuiu para a promoo de algum objetivo legtimo (subprincpio da adequao); (b)
se no existia outro meio menos prejudicial quele direito que favorecesse, em igual intensidade o citado
objetivo (subprincpio da necessidade); e (c) se a promoo do referido objetivo compensa, sob o ngulo
constitucional, a deficincia na proteo ou promoo do direito em discusso (subprincpio da
proporcionalidade em sentido estrito). (SOUZA NETO, Cludio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional - Teoria, Histria e Mtodos de Trabalho. Belo Horizonte: Frum, 2012, p. 481)
18
doadores; e (iii) que o presente regime legal estaria a servio da liberdade de expresso destes
financiadores.
O argumento de que a lenincia do legislador seria benfica ao prprio processo
eleitoral democrtico, por permitir um maior aporte de recursos para as campanhas polticas
no convincente. O encarecimento das campanhas no as tem tornado mais democrticas ou
esclarecedoras para os eleitores, mas sim excessivamente dependentes de marketing e de
pirotecnias, em detrimento do debate de ideias e de projetos, bem como da possibilidade de
competio igualitria entre candidatos. E os vultuosos recursos pblicos vertidos para as
campanhas eleitorais em nosso sistema misto de financiamento, bem como o horrio eleitoral
gratuito nos veculos de telecomunicao (direito de antena), j proporcionam razovel acesso
da cidadania s ideias e plataformas de partidos e candidatos. Estes instrumentos pblicos,
secundados pela possibilidade de doaes privadas por eleitores, submetidas a limite baixo e
uniforme, seriam mais que suficientes para assegurar a ampla possibilidade de conhecimento
pelo eleitorado das plataformas dos candidatos e partidos.
O argumento da liberdade econmica contratual dos doadores tambm no se
sustenta. Afinal, as restries s doaes eleitorais postuladas na ADI 4650 em nada
interferem nas atividades econmicas destes doadores, que no ficam impedidos de exerc-las
com plena liberdade. Ademais, em nosso sistema constitucional, a liberdade econmica no
um fim em si, estando a servio de valores superiores, como a dignidade humana, a justia
social e a democracia (art. 170, CF), que so ameaados pelo atual modelo regulatrio de
financiamento privado de eleies.
Por fim, pode-se aduzir que as doaes de campanha estariam protegidas pela
liberdade de expresso. O argumento, que foi acolhido pela Suprema Corte norte-americana,35
no deve prevalecer, sobretudo diante da nossa realidade emprica. A interpretao
constitucional no um mero exerccio de especulao intelectual, mas atividade prtica,
voltada ao equacionamento de questes socialmente relevantes num dado contexto scio-
35
Em 2010, por 5 votos a 4, a Suprema Corte norte-americana decidiu, no julgamento do caso Citizens United v.
Federal Election Comission, que a possibilidade de doaes por empresas a campanhas eleitorais se insere no
direito liberdade de expresso, previsto na Primeira Emenda (558 U.S. 310). No entanto, entendemos ser mais
acertada a posio adotada pelo juiz White, que, em voto dissidente, defendeu que a possibilidade de restrio a
tais contribuies por parte de corporaes deriva, em verdade, da prpria Primeira Emenda, pois visa a garantir
a liberdade de expresso dos indivduos, sem que a discusso poltica seja dominada por grandes empresas.
19
poltico. Por isso, o intrprete no pode ignorar a realidade social subjacente ao texto
constitucional, sob pena de frustrar a efetividade da Constituio.
No Brasil, os principais doadores de campanha contribuem para partidos e
candidatos rivais, que no guardam nenhuma identidade programtica ou ideolgica entre si.
Assim, essas doaes no constituem instrumento para expresso de posies ideolgicas ou
polticas, mas se voltam antes obteno de vantagens futuras ou neutralizao de possveis
perseguies. A anlise dos destinatrios das contribuies dos maiores financiadores de
campanha nas eleies de 2010 aponta que, em regra, os maiores doadores distribuem
recursos para candidatos e partidos rivais, com programas e ideologias diversos e at mesmo
opostos. Tal exame tambm evidencia que, no caso de eleies para o Executivo, as empresas
investem normalmente em todos os candidatos com maior chance de vitria, segundo
pesquisas de inteno de votos.
Grfico 3 Destinatrios das maiores contribuies nas Eleies 201036
Se a maior parte das doaes efetuadas no expressa preferncias polticas dos
doadores, elas no podem ser concebidas como exerccio da liberdade de expresso, mas
como aes pragmticas, voltadas obteno de possveis favores dos eleitos. Como salientou
David Samuels,a elite econmica brasileira, altamente concentrada e politicamente esperta,
tenta modelar aes do governo por meio dos custeios de campanha. No Brasil, o grosso das
36
Dados obtidos por meio das bases de dados do Tribunal Superior Eleitoral e do website s Claras.
20
contribuies voltado para servios, isto , o dinheiro dado em troca de servios
esperados do governo.37
De resto, as restries e proibies as doaes de campanha em nada afetariam a
liberdade das pessoas fsicas e jurdicas de expressarem seus posicionamentos polticos pelas
mais diferentes formas, pois no se concebe que as doaes possam constituir um meio
adequado para o exerccio desse direito.
No h, assim, qualquer interesse constitucional em jogo que compense a
insuficiente promoo dos princpios da igualdade, da democracia e republicano pelos
dispositivos citados das Leis 9.504/97 e 9.096/96, que, por tal razo, no resistem ao teste da
proporcionalidade, na sua vertente da proibio proteo deficiente.
IV Uma alternativa possvel: o financiamento democrtico de campanhas
Por todos os motivos expostos acima, o Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil ajuizou Ao de Direta de Inconstitucionalidade em face de diversos
preceitos da Lei 9.504/97 e da Lei 9.096/95, que permitem doaes por parte de pessoas
jurdicas, limitam de forma ineficaz o uso de recursos prprios por candidatos e, por fim,
instituem limite relativo para as doaes por pessoas naturais. Os pedidos formulados no
mbito de referida ADI so no sentido de obter: (i) a proibio de doaes por pessoas
jurdicas a campanhas eleitorais; (ii) a adoo de um limite per capita uniforme para doaes
por pessoas fsicas, a ser fixado pelo Congresso Nacional em patamar baixo o suficiente para
no violar a igualdade entre os eleitores; bem como (iii) a adoo de um teto para o uso de
recursos prprios por candidatos em suas campanhas, tambm fixado pelo Congresso
Nacional em patamar baixo o suficiente para que no seja violada a paridade de armas entre
os candidatos.
Uma deciso do Supremo Tribunal Federal nos moldes propostos na ADI 4.650
instauraria o financiamento democrtico de campanhas eleitorais no Brasil. De acordo com tal
modelo, adotado em diversos pases como a Frana, a Blgica e Portugal, o financiamento de
37
Financiamento de campanhas no Brasil e propostas de reforma. In: SOARES, Glucio Ary Dillon e RENN,
Lucio R. (org.). Reforma poltica. Lies da histria recente. Rio de Janeiro: FGV, 2006
21
campanhas misto, abrangendo recursos pblicos e privados, mas somente so aceitas
contribuies provenientes de pessoas naturais.
Cabe destacar que o acolhimento da referida ADI no seria incompatvel com a
eventual adoo, no futuro, do modelo de financiamento pblico exclusivo de campanhas, que
vem sendo aventado em alguns projetos de reforma eleitoral em trmite no Congresso
Nacional. No entanto, somos da opinio de que o financiamento democrtico de campanhas
normativamente superior ao sistema de financiamento exclusivamente pblico.38
Em primeiro lugar, praticamente todas as vantagens atribudas ao modelo de
financiamento pblico tambm seriam alcanadas atravs da instituio do financiamento
democrtico de campanhas, nos termos propostos. Ambos os modelos produzem os efeitos de
diminuir a dependncia dos candidatos eleitos de seus financiadores, criar condies mais
equitativas de competio entre candidatos e partidos, independentemente de seus recursos e
capacidade de arrecadao e proporcionar maior igualdade poltica para o cidado.39
Com
relao ao ltimo benefcio citado, cabe, entretanto uma ressalva.
No modelo de financiamento democrtico de campanhas, para que a igualdade
seja efetiva, fundamental que o teto para as doaes por pessoas fsicas e para o uso de
recursos prprios por candidatos corresponda a um valor efetivamente pequeno. No direito
comparado, um exemplo a ser seguido o da lei eleitoral belga, a qual prev limite de 500 a
contribuies a um determinado partido ou candidato, sendo que, no total, o valor doado a
diferentes partidos e/ou candidatos no pode ultrapassar 2 mil por perodo eleitoral.40
38
No se ignora que os critrios em vigor para a partilha das dotaes oramentrias da Unio entre os partidos
so problemticos, na medida em que se baseiam quase inteiramente na quantidade de cadeiras conquistadas na
Cmara dos Deputados pelos partidos em eleies anteriores. Nos termos do art. 41-A da Lei 9.096/95, apenas
5% do total do fundo partidrio distribudo partes iguais a todos os partidos registrados no TSE, enquanto que
os restantes 95% so distribudos aos partidos na proporo dos votos obtidos na ltima eleio para a Cmara
dos Deputados. Tal regra privilegia excessivamente os partidos da situao, limita a competio eleitoral e
contribui para a manuteno do status quo do sistema partidrio. No entanto, acredita-se que, ao menos enquanto
o Congresso Nacional no editar nova regra, a possibilidade de obteno de recursos junto a eleitores permitir
que a desigualdade na distribuio dos fundos seja vencida por aqueles partidos que conseguirem um maior
enraizamento na sociedade.
39 RUBIO, Delia Ferreira. Financiamento de partidos e campanhas: Fundos pblicos versus fundos privados.
Novos estudos CEBRAP, n 73, So Paulo: Nov. 2005. pp. 6-16; e SPECK, Bruno Wilhelm. O financiamento de campanhas eleitorais. In: ANASTASIA, Ftima. AVRITZER, Leonardo (org.). Reforma Poltica no Brasil.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. p. 154-155.
40Tambm interessante o modelo adotado pela Frana, que autoriza doaes por pessoas naturais at o limite de
4,6 mil a candidatos e at 7,5 mil a partidos. Para que se tenha uma ideia, tais valores equivalem possibilidade de doar at cerca de 3 salrios mnimos a candidatos e 5 salrios mnimos a partidos. Na Espanha,
22
Ademais, o financiamento democrtico apresenta, ao nosso juzo, vantagens
considerveis em relao ao financiamento pblico exclusivo de campanhas eleitorais. A
principal delas o estmulo participao poltica da cidadania.41
Estima-se que a adoo do financiamento pblico exclusivo de campanhas
produziria maior alienao dos candidatos e partidos com relao aos cidados, pois aqueles
conseguiriam extrair da mquina pblica todos os recursos de que necessitam para a
competio eleitoral sem a ajuda destes. Diferentemente, no modelo democrtico, em que
cada doador somente pode contribuir com uma pequena quantia, o financiamento das
campanhas polticas passa a depender de intensa mobilizao da sociedade civil. Nesse
processo, os candidatos e partidos polticos so obrigados a se reaproximar dos eleitores e a
melhor formular suas ideias e programas para convenc-los a efetuar pequenas contribuies.
Com isso, o indivduo, antes relegado a segundo plano pela relevncia das grandes doaes de
empresas, retoma seu papel central no processo eleitoral Ao encorajar a participao cvica do
cidado nas eleies por meio de diminutas doaes, o modelo oferece, portanto, uma
possibilidade de revitalizao da representao poltica e da democracia.
V Concluses
Diante dos argumentos apresentados acima, conclumos que a disciplina jurdica
atual do financiamento de campanhas polticas viola gravemente os princpios da democracia,
da igualdade, da Repblica e da proporcionalidade, gerando uma perniciosa plutocratizao
da nossa vida poltica.
pessoas fsicas e jurdicas so autorizadas a fazer contribuies a campanhas eleitorais, mas para ambos os casos
as doaes so limitadas a 6 mil, em perodos eleitorais. J no caso de Portugal, a lei autoriza determina que cada pessoa pode doar at 25 salrios mnimos a cada partido e at 60 salrios mnimos a candidatos
presidncia da repblica e a candidatos s eleies municipais que concorram sem filiao partidria.
Entendemos, porm, que o legislador portugus foi excessivamente generoso na definio de limites para as
doaes, falhando na promoo da igualdade poltica. (GRANT, Thomas D. Lobbying, Government Relations,
And Campaign Finance Worldwide: Navigating the Laws, Regulations & Practices of National Regimes. Oceana
Publications, 2005. pp. 42-43, 114, 427-428 e 451-454) 41
Tal estmulo pode vir a ser potencializado por diversas formas. Uma delas seria a edio, pelo Congresso
Nacional, de lei que conceda o benefcio da dedutibilidade do valor das doaes efetivadas por pessoas fsicas,
de preferncia, de forma regressiva (i.e., quanto menor a contribuio, maior a dedutibilidade). Esse sistema foi
adotado, por exemplo, na Frana. Outra alternativa seria estabelecer um modelo de financiamento pblico
vinculado aos aportes privados obtidos pelos partidos, nos moldes da lei alem de 1994. Nesse caso, o montante
de fundos pblicos a ser distribudo ficaria limitado pelo montante de recursos privados efetivamente
arrecadados (sistema de matching funds), criando, assim, incentivos para que os partidos e candidatos se
aproximem de seus eleitores (RUBIO, Delia Ferreira. Op cit. p. 10)
23
Nada obstante, no realista esperar que o Congresso Nacional, integrado pelos
atores que se beneficiam em larga escala do modelo de financiamento adotado, venha a tomar
alguma atitude concreta para corrigir tal patologia. Em contrapartida, o Poder Judicirio est
em excelente posio para atuar. Sua independncia com relao aos grupos polticos e
econmicos que ocupam ou pretendem ocupar o poder sugere a presena de uma maior
capacidade institucional para produzir uma boa deciso nesta questo.
Ademais, muito embora juzes no sejam eleitos, o Supremo Tribunal Federal no
padece da chamada dificuldade contra-majoritria para equacionar este problema. que a
sua interveno se dar justamente no sentido de proteger os pressupostos de funcionamento
do jogo democrtico e das instituies republicanas42
, no podendo, por isso mesmo, ser
tachada de antidemocrtica.
A atuao do Supremo Tribunal Federal na hiptese adquire, ainda, um carter
verdadeiramente representativo43
dos anseios da sociedade brasileira manifestados nos
recentes levantes populares. As demandas veiculadas nesta ao direta esto em profunda
sintonia com as reivindicaes da cidadania pela reduo da influncia do poder econmico e
da corrupo. Tal afirmao corroborada por recente pesquisa realizada pelo IBOPE
Inteligncia, na qual 78% dos entrevistados se manifestaram contrariamente possibilidade
de doaes por empresas.44
Desse modo, uma interveno da Corte Constitucional se
legitimaria pela necessidade de preservar os interesses do povo, em uma situao em que tais
interesses so manifestamente opostos aos de seus representantes.
Por fim, no se pretende que o STF resolva, sozinho, as graves patologias
identificadas no modelo de financiamento de campanhas em vigor, editando as regras que
passaro a reger o sistema a partir de sua deciso. Ao contrrio, defende-se que a Corte
Suprema, caso venha a se pronunciar pela inconstitucionalidade dos limites prescritos para
contribuies e para uso de recursos prprios em campanhas, no se invista no papel de
42
Cf. ELY, John Hart. Democracy and Distrust. A Theory of Judicial Review. Cambridge: Harvard University
Press, 1980.
43 Sobre o papel representativo da jurisdio constitucional, veja-se: LAIN, Corinna Barret Lain, Upside-down
Judicial Review In: The Georgetown Law Journal v.113, 2012
44 Pesquisa realizada pelo IBOPE Inteligncia a pedido do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.
Disponvel em < http://www.oab.org.br/arquivos/pesquisa-462900550.pdf> Acesso em 29 ago. 2013
24
legislador solitrio, mas inicie um dilogo institucional com o Congresso Nacional, instando-
o a fixar novos critrios, desde que obedecidos alguns princpios pr-estabelecidos, tal como
foi postulado na ADI 4650. Essa soluo, alm de privilegiar o equilbrio e a cooperao entre
os Poderes, permitir que o sentido da Constituio seja construdo dialogicamente pelas
instituies pblicas e pela sociedade.45
Enfim, a excessiva infiltrao do poder econmico nas eleies brasileiras macula
a legitimidade democrtica das nossas instituies e vida poltica. O STF dar uma
contribuio fundamental ao regime democrtico e republicano instaurado pela Carta de 88,
se acolher os pedidos formulados na ADI 4650, de modo a tornar mais igualitrias e
republicanas as eleies, o que fortalecer a representatividade do sistema poltico brasileiro.
45
Sobre a teoria dos dilogos institucionais, cf. BRANDO, Rodrigo. Supremacia judicial versus dilogos
institucionais: a quem cabe a ltima palavra sobre o sentido da constituio? Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2012. 370p; e FRIEDMAN, Barry. Dialogue and Judicial Review. In: Michigan Law Review, v. 91, 1993
Top Related