// capítulo 1
Seus olhos abriram-se. Seus sofridos olhos dourados
mais uma vez acordaram para o mundo à sua volta. Esse
despertar era mais conseqüência de uma constante vigília
com a qual passara a conviver, do que de um simples e
inevitável ato de acordar, buscando restabelecer contato
com o mundo que o abrigava. No seu caso, restabelecer
esse contato significava entregar-se completamente à
batalha mortal pela sua própria sobrevivência. Já não fazia
mais diferença alguma estar acordado ou em estado de
aparente sonolência, pois a realidade que agora o cercava
havia se tornado fiel referência para os pesadelos que o
atormentavam. Pesadelos que o perseguiam nas noites
sem lua e de estrelas mortas. Sonhava com luzes trêmulas
e pessoas desesperadas, sendo totalmente consumidas
pelo fogo de um clarão, que diante de si era a própria
devastação em movimento. Em seus pesadelos podia ouvir
com clareza o som da destruição completa, o trovão
aniquilador, o estrondo impertinente da morte. Sons que
arranhavam o ar, causando pânico, incutindo um pavor
extremo ao espírito. Então acordava sobressaltado, suando
frio, o corpo tremendo, gritos sufocados na garganta rouca.
Começava então a conversar consigo mesmo num
monólogo aflito, angustiante, onde chorava buscas
desesperadas por Deus. Falava de toda a sua vida antes
de todo aquele caos acontecer. Recordava sua vida
agitada pelas estruturas de concreto e aço da cidade
grande, relembrava seu passado, voltava às suas origens,
buscava suas raízes. Sua infância e adolescência vividas
numa cidade do interior da Bahia. Sua família, pai, mãe,
irmãos, a casa onde morava, a rua onde costumava
brincar, seus amigos. Todas essas lembranças eram
despertadas, e ele as colocava num doloroso combate com
as imagens alucinantes e aterrorizantes de seus pesadelos.
Era como ser pego de surpresa por um acidente, de
repente um choque brusco, seguido de um torpor dos
sentidos, a estranheza de si mesmo perante tudo ao seu
redor, forçando a própria mente a não querer acreditar que
tudo aquilo estivesse realmente acontecendo. Ele podia
sentir o choque terrível dentro de si. Uma sensação que se
tornou freqüente durante aqueles dias nublados e
cinzentos, e aquelas noites escuras, sem Lua e sem
estrelas. Noites preenchidas apenas pelos seus pesadelos,
o seu mar de pavor, a sua angústia com aquelas imagens
distorcidas e berrantes, impregnadas de cores violentas,
gritos penetrantes e rostos desfigurados. Havia se tornado
um náufrago buscando nas lembranças de seu passado um
refúgio, que lhe machucava mais do que lhe dava abrigo.
Eram recordações de toda uma vida, que se
transformavam num martírio doloroso para seu espírito,
perdido em meio à desolação, ao medo e à angústia de se
descobrir sozinho num outro mundo.
Dessa vez, porém, seus olhos abriram-se por outro
motivo. Não foram os pesadelos que o despertaram de seu
sono agitado. Fôra um barulho. Um som tímido e rasteiro,
esgueirando-se como uma cobra por entre as folhas caídas
dos cacaueiros. Naquele instante, seus olhos abriram-se, e
movido por um instinto de pura sobrevivência, sentiu seu
espírito mergulhar num total estado de alerta. A tensão fez
seus músculos se enrijecerem, desde as pontas dos dedos,
empretecidos e com as unhas por fazer, até às raízes dos
cabelos claramente castanhos, sujos e maltratados.
Escorregou furtivo para detrás de uma pedra, e ali
permaneceu, deitado de bruços, as mãos unidas ao peito.
Assustado, olhava para os lados, tentando encontrar a
origem daquele barulho. Queria descobrir o que estava se
mexendo por debaixo das folhagens. Alguma coisa, ou
alguém, caminhava ali por perto, pisoteando o tapete de
folhas que cobria toda aquela terra. Seu olhar percorria
toda aquela paisagem exuberante que lhe cercava.
Buscava um sinal, uma pista, um vulto qualquer que
denunciasse sua presença. Passou-se alguns segundos,
até que finalmente ele descobriu a origem dos ruídos.
Enxergou, então, a ponta de um rabo de pêlos dourados,
que deveria ter aproximadamente um palmo e meio de
comprimento, balançando incessante, como se seu dono
procurasse desesperado por algo. O assustado observador
continuou quieto atrás da pedra, espiando aquele ser
vivente de um mundo selvagem perambular por debaixo do
tapete de folhas. O momento prolongou-se hesitante até
quando tudo tornou-se surpresa e admiração para o jovem.
Seus olhos descobriram um pequenino animal, do tamanho
de um punho fechado, agitado, inquieto. Tinha o pêlo
dourado, e sua cabecinha peluda o fazia assemelhar-se a
um pequenino leão.
- Um mico-leão dourado...
Foi um sussurro solto num instante de admiração
plena. Durante um longo momento, o jovem ficou
esquecido naquela cena, mergulhado na situação, absorto
num transe hipnótico, fitando extasiado o mico, que agora
revelava-se por inteiro acima das folhas caídas no chão.
Sentado sobre uma pequena pedra, o mico olhava atento
de um lado para o outro, como que a pressentir algo no ar.
Um espécime como aquele o jovem conhecia apenas pela
TV, em documentários da National Geographic ou
Discovery Channel sobre reservas ambientais, preservação
do Meio Ambiente e animais em extinção. Permaneceu ali,
hipnotizado pela imagem do mico-leão dourado. podia
sentir o pulsar da vida dentro daquele pequeno animal.
Desejou imensamente que o mico se aproximasse dele,
queria vê-lo mais de perto, quem sabe até poder tocar ele.
O jovem permanecia imóvel, quase nem respirava,
temendo que o menor ruído acabasse afugentando o mico.
Era um espécime raro da fauna regional, e o admirado
observador tinha a consciência de que podia ser a única
vez que o estivesse contemplando. Talvez a primeira e
última vez. O pequenino saltava de um lado para outro,
tinha movimentos ágeis e brincalhões, mas em
determinado instante parou atônito, silencioso, e descobriu
o olhar atento do observador solitário. Era como se também
ele estivesse sentindo o pulsar da vida escondida por
detrás daquela pedra. Ficou imóvel durante alguns
segundos, para logo em seguida sair em debandada,
pulando de galho em galho, de árvore em árvore. parecia
assustado, muito assustado. O jovem, desesperado, tentou
seguir o mico em sua fuga amedrontada, mas foi em vão. O
mico parecia assombrado, como se tivesse visto um perigo
quase iminente que colocasse em risco sua sobrevivência.
Talvez desconfiasse do estranho que lhe observava atrás
daquela pedra. O jovem correu por entre os cacaueiros
seminus, numa tentativa de acompanhar a fuga do mico,
mas de nada adiantou. Sentiu-se triste com o ocorrido, pois
seu único desejo naquele momento era contemplar a
beleza selvagem daquele pequeno animal, e talvez poder
despertar a sua natureza brincalhona e curiosa. Porém,
agora já era tarde demais para buscar novamente o
macaquinho. mais uma vez, a solidão sutil friamente lhe
abraçou por completo. Era apenas a sua solidão, e nada
mais.
// capítulo 2
Durante muitos dias, na solidão de suas caminhadas
sem destino certo por entre as plantações de cacau, o
jovem dedicou todo o seu tempo na busca incessante pelo
mico-leão dourado. Olhava atrás das pedras, pelas árvores,
nos galhos dos cacaueiros, mas nada encontrava, a não
ser a sua voz solta em ecos solitários pela mata. Às vezes
ficava a se perguntar sobre o que realmente procurava. Era
o momento da dúvida e da insegurança. Mas novamente
algo se mexia por entre as folhagens, e o íntimo do jovem
mais uma vez se agitava. Seus pensamentos sumiam, seus
movimentos cessavam, e sua atenção se voltava na busca
do pequeno habitante das matas. Ficava imóvel, inerte, na
esperança de rever o mico. Quando percebia que sua
espera era completamente inútil, sentava-se desanimado, e
ficava a recordar da época em que havia trabalhado como
voluntário em um projeto de uma ONG, que tinha por
objetivo o equilíbrio sistemático entre áreas verdes e
centros urbanos em diversas regiões do planeta. Lembrou
de ter visto o mico-leão dourado incluído entre as espécies
catalogadas como passíveis de extinção e que mereciam
atenção especial por diversos órgãos do setor. Mais uma
vez ruídos o despertavam de um transe reflexivo, e mais
uma vez a agitação, a ansiedade, a busca, a angústia e o
desespero por não encontrar absolutamente nada.
Desesperado por não encontrar aquilo que tanto desejava,
o jovem corria por entre as árvores, gritando os nomes das
pessoas que um dia chegou a conhecer. Exausto, caía no
chão, já ciente de que não procurava mais o mico, e sim,
procurava alguém que viesse em seu socorro. Procurava
pessoas. Procurava ajuda. Mas não encontrou ninguém,
nem ao menos uma sombra, um vulto qualquer se
escondendo pelos vãos verdes da floresta largada.
E os dias eram nublados e cinzentos, e as noites eram
escuras, de Lua e estrelas mortas. O jovem caminhava
sem direção, apenas guiado pela sua imensa vontade de
continuar vivo. Nunca mais viu o mico-leão dourado.
Apenas pressentia sons, e sentia calafrios por causa disso.
Lembrava-se do pequeno animal peludo sentado sobre as
patinhas traseiras, sua cabecinha impaciente a olhar para
todos os lados. E então experimentou continuamente,
durante poucos segundos, o pulsar da vida. Era aquela
mesma sensação momentânea de quando vira o mico.
Uma sensação rápida, como uma gota d’água lançada num
imenso deserto escaldante. O jovem não estava
conseguindo reter essa gota por muito tempo mais, mas
não desistia. Sabia que precisava insistir sempre, para que
pudesse transformá-la em algo maior, um lago, um mar, um
oceano. Mas o medo, a angústia e a solidão eram
atribulações ainda presentes, tentando evaporar essa gota
d’água. Tormentos cáusticos, cauterizando, convertendo o
pulsar em escaras. As areias do deserto sugando uma gota
d’água.
Sentindo o peso do cansaço causado pela longa
jornada daquele dia, o jovem sentou-se à sombra de um
Jequitibá. Descansava aos pés daquela imensa árvore, e
pensava num modo de sair daquela situação, em como
acordar de um pesadelo angustiante. Um pesadelo real,
que o deixava cada vez mais acordado, vivendo numa
realidade cruel e adversa. Meteu a mão no bolso direito de
sua calça jeans surrada e encardida, e daí tirou sua
carteira. Entre documentos, cartões de crédito e algum
dinheiro, encontrou uma foto de sua família, uma das raras
fotos que havia tirado uma cópia e guardado para si. Seu
pai, sua mãe, seus dois irmãos mais novos, e ele. Tinha
quinze anos na época, e agora com vinte e um anos, o
jovem tentava transpor a barreira do tempo, desmaterializar
todos aqueles seis anos em que havia passado longe de
sua família e de sua terra natal e voltar atrás. Acordar
exatamente no dia em que aquela foto havia sido tirada.
Fechou os olhos então, e em poucos segundos estava
revivendo um momento perdido no passado de sua vida.
Sentiu a brisa leve do mar assanhar seus cabelos
castanhos, bem claros. Podia ver ao longe garotos
brincando nas areias da praia. Levantou-se, aprumou o
olhar, avistou seus dois irmãos entre os garotos. Ouviu
alguém chamar seu nome. Sua mãe, um pouco mais
distante, jogou-lhe um aceno de mão.
“Venha”, dizia ela, segurando uma câmera digital,
“Vamos tirar uma foto. Chame seus irmãos”. Ele tentava
responder, mas não conseguia, apenas ficou parado,
olhando sua mãe caminhar de volta pela praia. Seus
irmãos continuavam brincando despreocupados naquela
manhã ensolarada. Então, tudo ao seu redor ficou turvo,
distorcido, e o que lhe parecia tão real desmanchou-se
suavemente. As imagens de seu passado diluíram-se
lentamente.
Lágrimas brotaram de seus olhos, rolando pelo seu
rosto, e tocando silenciosas a terra na qual ele estava
adormecido.
A saudade pulsava forte dentro de teu peito. E foi
justamente esse sentimento que o fizera decidir regressar
para Itabuna. Era como uma espécie de chamado, uma voz
distante, um som estranhamente familiar. Uma voz que se
transformava num coro cheio de harmonia. Olhou a foto,
tirada num belo dia de verão. Ouviu rugidos de trovões
sobrevoando o céu nublado. A solidão apertou-lhe o
coração. Aquela mesma solidão de cidade grande, que
havia decidido enfrentar quando deixou sua terra natal,
aquele pequeno mundo de cidade do interior, para ir buscar
novos horizontes no progresso alucinado do Sul do país.
Havia deixado seus quinze anos para trás, guardados na
casa de seus pais, na rua onde havia crescido, na cidade
onde havia nascido. O que viesse por agora guardaria em
sua mochila pendurada em seu ombro. Ganhou a estrada,
descobriu seu espírito aventureiro, seu sangue de
peregrino, andarilho em busca de seus sonhos. Desvendou
novos caminhos, pequenas outras trilhas por onde poderia
caminhar. Ganhou encruzilhadas, e o direito de escolher o
melhor caminho para si, mesmo que isso significasse a
descoberta do erro. Outro rugido ecoou pelo ar. Agora, os
caminhos estavam perdidos pela mata, escondido pelas
ervas daninhas, e precisavam ser redescobertos. O jovem
sabia que precisava reencontrar os caminhos. A foto
permanecia em sua mão, enquanto tentava lembrar-se da
última vez em que entrou em contato com sua família.
Talvez uma terça-feira, ou uma sexta-feira, havia
conversado pelo MSN com sua mãe, avisando que estava
se preparando para ir passar o Natal com eles, o primeiro
depois de seis anos longe de casa. No dia seguinte, numa
conversa pelo videofone, a primeira também em seis anos,
criou coragem e pôde então rever os rostos de seus pais, e
seus irmãos já mais crescidos, já em plena adolescência.
Quando desligou, não conseguiu conter as lágrimas de
saudade, e estava realmente decidido a voltar. Iria
novamente cair na estrada, dessa vez para retornar à sua
terra natal, a terra das árvores dos frutos dourados.
// capítulo 3
Aquela tarde escoava-se lenta, consumindo-se sem
demora, esvaindo-se invisível e imutável. Já devia passar
das cinco horas quando o jovem acordou de maneira
repentina, provavelmente fugidio de mais algum pesadelo.
Espiou todos os lados e olhou para cima. O Jequitibá
permanecia ali, imponente, erguendo-se silencioso e
apontando para os domínios do céu cinzento. A foto
permanecera em sua mão durante todo o tempo em que
estivera adormecido. Agora, aos seus olhos, a foto parecia
estranhamente envelhecida, com uma coloração
amarelada, e desgastada nas bordas. Era como se tivesse
dormido por muitos anos aos pés do Jequitibá, segurando
aquela foto como um pedaço de sua vida. Sua roupa
estava mais esfarrapada, seu corpo mais imundo, seus
músculos mais doloridos, e seus pensamentos
completamente entravados e empoeirados. Uma agonia o
dominou naquele momento. Será que ainda estava
adormecido e tudo aquilo era mais um pesadelo o
atormentando mais ainda? Parecia que a tênue linha da
fronteira que separa a realidade da imaginação havia
desaparecido completamente, e o jovem não sabia mais
dicernir em qual mundo realmente estava. Sentiu então a
presença de mão poderosa e sorrateira diante de si, vinda
de uma escuridão próxima a ele. A mão aproximava-se
lentamente, e ficou a poucos centímetros de seu pescoço,
demonstrando uma ansiedade em lhe enforcar e acabar
por sufocar alguma vida que ainda restava em seu espírito.
O jovem quis gritar, mas não conseguiu. Seu corpo ficou
imobilizado de pavor, e sentiu a escuridão o envolvendo, e
logo em seguida experimentou uma sensação de queda
brusca. Estava caindo em um abismo escuro. A poucos
metros de atingir o chão, sua queda parecia trazer a
iminente morte consigo, e ele então conseguiu libertar um
grito amedrontado e intenso de sua boca.
Numa espécie de transposição onírica, sentiu um forte
solavanco, e acordou assustado. Quando deu por si,
estava sentado numa confortável poltrona. Estava no
interior de um ônibus. Olhou pela janela, e viu a rodoviária
daquela cidade grande, que fervilhava de pessoas,
oriundas das mais diferentes partes do país. Naquele lugar
praticava-se apenas dois verbos: chegar e partir. Dentro do
ônibus, o jovem esperava paciente o momento de sua
partida. Estava ansioso em voltar para casa e rever sua
família, seus amigos, sua cidade natal. Olhou ao redor e
teve uma estranha sensação de que tudo aquilo era um
sonho, uma sensação que durou breve segundo. Abriu sua
mochila e pegou seu palmtop e foi conferir mais uma vez
suas anotações. Aproveitou as férias de seu trabalho e da
faculdade de Jornalismo para realizar sua viagem.
Despediu-se dos amigos que havia feito na cidade grande,
conversou com seus pais pelo videofone, e se programou
para ter um Natal diferente. Terminou de ler suas
anotações no palmtop e se ajeitou na poltrona. Pouco a
pouco, as pessoas tomavam seus lugares no ônibus,
preparando-se para a longa viagem que tinham pela frente.
O jovem ficou a observar durante um tempinho as pessoas
que entravam calmamente no ônibus. Alguns traziam
travesseiros, cobertores, outros mais agasalhados apenas
tinham uma mochila nas mãos. Quando um dos
passageiros entrou com um livro na mão, o jovem lembrou-
se da obra de Machado de Assis que havia adquirido há
algum tempo na internet, mais por curiosidade, por se tratar
de um trabalho experimental de uma "tradução" de uma
obra clássica da literatura brasileira para um novo tipo de
protocolo de leitura. Segundo ele havia pesquisado na
internet, Memórias Postumas de Brás Cubas foi o
primeiro livro inteiro a ser digitado no teclado de um celular,
usando uma nova maneira de escrever, criada justamente
entre os milhares de internautas brasileiros. Abriu
novamente sua mochila e dessa vez pegou seu tablet.
Abriu o arquivo que havia copiado e começou então a ler o
primeiro capítulo, tentando se adaptar àquela escrita quase
alienígena:
“Memrias postmas d bras cubas
Maxado d Acis
Cap1:
obto do autor.
Alg1 tmpo hesitei c dvia abrir stas memorias plo
principio ou plo fim, i.eh, c poria em 1ro lugar o meu nasc
ou minha mort. Suposto o uso vulgar sja comecar plo nasc,
2 considercoes m levaram a adotar dferent metodo: a 1ra
eh n sou propriament 1 autor defunto, mas 1 defunt autor,
pra kem a campa foi outro berco; a 2da eh q o scrito fikria
assim + galant e + novo. Moises, q tb contou sua mort, n a
pos no introlito, mas no cabo; diferenca radcal entr este
livro e o pentateuco.
Dito isto, xpirei as 2 hr da tard duma 6a do mes d
agost d 1869, na minh bela xacara d Catumbi. Tinha uns 64
anos, rijos e prospros, era solteiro, psuia cerk d 300 contos
e fui acompanhado por 11 amigos. 11 amigs! Verdad eh q
naum houv cartas nem anuncios. Acresc q xovia - penerava
- uma xuvinha miuda, trist e constant, taum cnstant e taum
trist, q lvou 1 dqles fieis da ultma hr a interclar esta
engenhsa ideia do discurso q proferiu a beira d minh cova.
“Vos q o conhcestes, meus srs, vos pdeis dzer cmgo q
a naturez parec star xorando a perda irreparavel d 1 +
belos caracteres q tem honrado a humanidad. Ste ar
sombrio, stas gotas do ceu, aqlas nuvens escuras q
cobrem o azul cmo 1 crepe funereo, todo isso eh a dor crua
e mah q lhe roi a naturez as + intmas entranhas; todo isso
eh 1 sublim louvor ao nosso ilustre finado.”
Bom e fiel amigo! Naum, n m arrependo das 20
apolices q lhe dxei. E foi assm q xeguei ah clausula dos
meus dias; foi assm q m enkminhei p o undiscovered
country d Hamlet, s/ as ansias nem as duvids do moço
princip, mas pausado e tropgo, cmo kem c retira tard do
spetaculo. Tard e aborrecido. Viram me ir umas 9 ou 10
psoas, entre elas 3 sras, minha irma Sabina, ksada c/ o
Cotrim, a filha, 1 lirio do vale, e... Tenham paciencia! daki a
pco lhes direi kem era a 3ra sra. Contentem c d saber q
essa anonima, ainda q n parenta, padceu + do q as
parentas. Eh verdad, padceu +. N digo q c carpisse, n digo
q c deixasse rolar pelo chaum, epileptica. Nem o meu obto
era coisa altament dramatica... 1 solteiraum q xpira aos 64
anos, n parec q reuna em si tods os elements d uma
tragedia. E dado q sim, o q – convinha a essa anonima era
aparenta lo. D peh, ah cabeceira da cama, c/ os olhos
estupdos, a boca entreaberta, a trist sra mal podia crer na
minha extincaum.
- Morto! morto! dzia consigo.
E a imaginacaum dela, cmo as cgonhas q 1 ilustre
viajante viu desferirem o voo desd o Ilisso as ribas
africanas, s/ embargo das ruinas e dos tmps, a
imaginacaum dssa sra tb voou por sobre os destrocos
presents ateh as ribas d 1 afrik jvenil... Dxah la ir; lah
iremos + tard; lah iremos qd eu m restituir aos 1ros anos.
Agora, kero morrer trankilament, metodicament, ouvindo os
solucos das damas, as falas bxas dos hmens, a xuva q
tamborila nas flhas d tinhoraum da xacara, e o som
estridulo d uma navalha q 1 amolador estah afiando lah
fora, ah porta d 1 correeiro. Juro lhes q essa orkestra da
mort foi mto mnos trist do qpodia parec. D certo ponto em
diant xegou a ser dliciosa. A vida estrebuxava m no peito,
c/ uns imptos d vaga marinha, esvaia c me a conciencia, eu
dcia a imobilidad fisica e moral, e o corpo fzia c me planta,
e pdra, e lodo, e coisa nenhma.
Morri d uma pneumonia; mas se lhe dsser q foi mnos
a pneumonia, d q 1 ideia grndiosa e util, a causa da mnha
mort, eh pssivel q o leitor m naum creia, e tdvia eh verdad.
Vou xpor lhe sumariament o kso. Julg o por si msm.”
Não foi muito adiante com aquela adaptação digital e
então procurou algo mais convencional em seus arquivos.
Encontrou outra obra de Machado de Assis, "Dom
Casmurro", e passou algum tempo lendo. Algumas vezes
interrompia sua leitura e se deixava ficar absorto e
contemplar o horizonte distante nas paisagens que
passeavam pela janela do ônibus. Seu espírito se enchia
de um prazer maravilhoso quando viajava. Gostava de
viajar, visitar lugares, conhecer pessoas, aprender novos
costumes e culturas, hábitos, gírias, viver situações novas.
Tinha pretensões futuras de viajar pelo mundo e conhecer
outros povos, outras nações. Mas essa idéia logo se
dissipou assim que foi deflagrada a Grande Guerra,
deixando inúmeros paises em estado de alerta e o mundo
em estado de choque. Ao redor do globo, tudo parecia
caminhar para uma destruição sem precedentes na história
da Humanidade. Desistira, então, de ir para a Europa.
Talvez arriscasse uma viagem para a Ásia, ou então para
alguma região do Brasil. Não havia decidido nada, até
aquela noite chuvosa em seu apartamento. Assistia a um
documentário na TV sobre a sua terra natal e as
dificuldades pelas quais vinha passando nos últimos anos,
quando sutilmente começou a ouvir um manso e
cadenciado coro de vozes ao seu redor. Eram vozes
sussurrantes, ecoando ao seu redor, e invadindo sua
cabeça gradativamente. Vozes distantes, como se muitas
pessoas estivessem conversando ao mesmo tempo. Ou
como se estivessem entoando um cântico, uma melodia
sagrada, um chamado macio. Provavelmente cochilara em
alguma parte do documentário, mas estranhamente abriu
os olhos e lembrou de sua terra. Foi nesse momento que
decidira para onde realmente iria.
Durante a viagem, continuou a ouvir as vozes num
coro muitas vezes soturno. Algumas vezes, tinha a nítida
impressão de estar sendo seduzido por aquele coro, aquele
estranho chamado. Mas dessa vez sabia que não estava
sendo seduzido pelo novo e desconhecido, como há seis
anos atrás, quando foi embora de sua cidade, mas sim,
estava agora sendo chamado para redescobrir o antigo e o
esquecido, guardado há algum tempo no fundo de suas
lembranças. Estava indo em busca de suas raízes. O coro
persistia em sua mente, diluídas em sussurros
incompreensíveis, chamando-o de volta para Itabuna. A
saudade havia sido plantada em seu coração, e o jovem
agora viajava pela necessidade de afastar esse
saudosismo e ir para onde as vozes estavam a lhe
conduzir.
Sentado na poltrona ao seu lado havia um rapaz.
Semblante jovem, cabelos de um castanho escurecido,
pele moreno-clara, olhos azulados. “Provavelmente deve
ter uns dezoito anos”, pensou. Trazia um olhar adormecido
no tempo e uma expressão pensativa, algo inquietante até.
Provavelmente estivesse apenas deixando transparecer um
pouco de sua possível insegurança própria da idade, ou
poderia apenas estar pensando sobre os rumos atuais da
Humanidade e sobre o seu próprio futuro incerto diante de
tudo o que estava acontecendo. Aquele olhar absorto no
nada começou a intrigar de certa forma o jovem. Será que
ele, algum dia, já teve aquele tipo de expressão em seu
rosto? Será que ele já esteve perdido em algum tipo de
insegurança em algum momento de sua vida? O que será
que poderia estar pensando aquele rapaz ao seu lado?
Que perspectivas de futuro ele tinha naquele momento
dentro de si? O que ele pensava a respeito do mundo de
hoje, perdido em guerras, fome, violência, corrupção,
hipocrisias? O que ele esperava do mundo e o que ele
poderia querer que o mundo oferecesse a ele?
Será que o jovem estava procurando decifrar o olhar
enigmático do rapaz, ou apenas estava fazendo essas
perguntas para si mesmo? Talvez pudesse encontrar
respostas numa conversa amistosa, mas desde o início
daquela viagem que não haviam trocado uma palavra
sequer, nem ao menos se cumprimentaram. Somente
umas trocas de olhares silenciosos, momentâneas, como
se houvesse uma barreira entre eles que não pudesse ser
ultrapassada ou quebrada de nenhuma maneira. Mas a
vontade de criar mais um laço de amizade e de poder
trocar idéias e informações com outra pessoa parecia estar
latente nos dois, o que podia ser constatado justamente
nas trocas silenciosas de olhares, como se um estivesse
esperando a iniciativa do outro em se apresentar e iniciar
uma conversa. Porém, tudo ficava apenas nos olhares
silenciosos e enigmáticos. Olhares que poderiam ser o
início de uma bela amizade. Por agora, estavam os dois
distantes, cada um sozinho em margens opostas de um rio
caudalosamente sereno.
Enquanto isso, o mundo corria em matas verdejantes,
pastagens calmas, pequenas cidades provincianas,
plantações, povoados à beira da estrada, florestas de
pinheiros, postos de gasolina, casebres solitários. A viagem
prosseguia noite adentro. Já era madrugada quando o
ônibus fez uma parada programada em um posto, em
algum lugar no interior do Espírito Santo, para que pudesse
ser feita a troca de motoristas. A maioria dos passageiros,
incluindo o jovem e o rapaz, descera do ônibus durante o
intervalo da troca. O jovem seguiu em direção à lanchonete
do posto, e enquanto pedia uma pepsi, viu o rapaz
aproximar-se do balcão, sentar ao seu lado e fazer o
mesmo pedido. Entre um gole e outro do refrigerante, sua
atenção começou a se dividir entre o olhar sempre
pensativo do rapaz e as notícias sobre a Grande Guerra. O
noticiário na TV mostrava cenas implacáveis dos
confrontos, cidades sendo devastadas por bombas,
mísseis, pessoas chorando pelos parentes mortos, crianças
abandonadas, escombros por todos os lados. As cenas das
crianças mortas entre os concretos destroçados dos
prédios sempre mexia com seu íntimo. Sentia os olhos
marejados toda vez que via tais imagens na TV. Esfregou
os olhos com os dedos, numa tentativa de conter alguma
lágrima que porventura rolasse de seus olhos. Tomou outro
gole de pepsi. Virou sua atenção para o rapaz, sempre
absorto em si mesmo, olhando meio que anestesiado ao
noticiário que passava na TV acomodada num suporte de
parede. Por um breve momento, os olhares se cruzaram
mais uma vez. Silenciosamente. Viu novamente aqueles
olhos azulados, que pareciam não brilhar como realmente
deveriam. Pareciam opacos, sem vida, um olhar que não
via esperança alguma no mundo de hoje. “O azul de seus
olhos parece estar sumindo lentamente...”, pensou o jovem,
em devaneios insistentes. Subitamente foi interpelado por
um senhor que havia acabado de se sentar ao seu lado, e
que tomava uma xícara de café. Era um dos passageiros
do ônibus.
- Mais um guerra sem sentido – disse o senhor,
bebericando o café quente com extremo cuidado – A cada
ano que passa, a população de famintos e miseráveis
aumenta mais pelo mundo, e os governantes perdem
tempo e dinheiro com guerras estúpidas.
- A Humanidade está trilhando um caminho sem volta.
– disse o jovem, mirando a TV – Ao que parece, o mundo
em que vivemos hoje respira seus últimos momentos de
agonia profunda.
- A verdade é essa. Enquanto milhares morrem de
fome, outros milhares morrem na guerra. Estamos todos
cavando nossa própria cova.
- E o pior disso tudo é comprovar que as atuais
estruturas sociais são deprimentes e frágeis. É muito difícil
hoje acreditar no perfeito funcionamento das instituições,
do governo. Basta observar o nível de corrupção nas
diversas esferas sociais. Todo mundo hoje parece estar
envolvido em alguma espécie de falcatrua.
- Ah, o governo nem se fala. Político e corrupção
viraram sinônimos. Cada dia é uma denúncia nova que
aparece, e o número de pessoas envolvidas sempre
aumenta mais. – o senhor terminou a frase com mais um
gole cuidadoso na xícara de café quente, cuja fumaça se
dissipava suavemente no meio da conversa.
- E agora essa guerra devastadora – disse o jovem,
enquanto observava as imagens na TV.
- Essa guerra, meu amigo, parece ser o início do fim.
O jovem calou-se diante das palavras daquele senhor,
que parecia ter um tom profético. Todos sabiam que uma
guerra como aquela tinha um nível de devastação sem
precedentes na história da Humanidade, e que justamente
por isso, trazia incertezas cruéis com relação ao futuro de
todos. Aquela conversa toda com o senhor não o fez
perceber que o rapaz já não estava ali mais próximo. Ele já
devia ter voltado para o ônibus, e estava novamente
acomodado em sua poltrona, absorto em seus
pensamentos. O jovem bebeu o último gole de pepsi, pediu
licença ao senhor e se dirigiu para uma lojinha ao lado da
lanchonete. Deu uma rápida olhada em lembrancinhas e
souvenirs, algumas pequenas tapeçarias e peças de
artesanato diversas. Folheou algumas revistas, pegou um
jornal do dia anterior. Como sempre, na primeira página, só
se falava na Grande Guerra. No rodapé, viu uma pequena
nota comentando sobre o meteoro que há alguns meses os
cientistas descobriram estar em rota de colisão com a
Terra. De acordo com a notícia, o meteoro, que tinha
aproximadamente o diâmetro de um campo de futebol,
estava previsto para colidir com a Terra exatamente no dia
seguinte, caindo no Oceano Atlântico, próximo à costa
brasileira. Algumas cidades litorâneas já tinham sido
avisadas com antecedência sobre as possíveis
conseqüências daquele evento, e estavam em estado de
alerta sobre alterações ambientais e climáticas
provenientes da queda do meteoro.
“É como se o mundo estivesse sendo sacudido para
tudo o que está ocorrendo...”, pensou o jovem, enquanto
olhava impressionado a foto do meteoro, tirada por um
potente telescópio instalado na Estação Espacial
Internacional. Colocou o jornal de volta na banca.
Caminhou para fora da lojinha, e parou no meio do posto.
Olhou para o céu naquela madrugada iluminada pelas
estrelas. Viu um ponto luminoso, um pouco maior do que
todas as outras estrelas. Seu espírito vacilou por um breve
instante, antes de soltar um sussurro. “O meteoro”.
A buzina do ônibus o despertou de seu transe
reflexivo, avisando que estava na hora de partir, e seguir
em frente com a viagem.
// capítulo 4
Estava ali, ao seu lado, tão perto. Podia simplesmente
quebrar a barreira da inibição e perguntar-lhe o nome, de
onde era, para onde estava indo. Era tão fácil iniciar um
diálogo, uma conversa básica e despretenciosa, frases
banais, básicas. Um olá, pelo menos. Algumas raras vezes
percebia o rapaz lhe encarando com determinação por
alguns rápidos segundos, como quem esperasse em troca
um sorriso confortador, uma palavra amiga. Mas por
grande parte da viagem, lá estava o rapaz solto em seu
olhar azulado a observar a paisagem pela janela do ônibus.
Lá fora, agora, a madrugada acolhia os adormecidos e
os esquecidos, enquanto esperava mansa pela manhã, que
ainda corria lerda o leste de outras paragens,
amanhecendo as almas de coitados, miseráveis, operários,
vagabundos e trabalhadores a despertarem em outras
terras distantes. Dentro do ônibus, luminescências sutis
iluminavam os rostos dos raros passageiros acordados.
Eram os internautas de plantão, que utilizavam seus
palmtops para acessarem a internet em busca de notícias
sobre a guerra deflagrada. Afinal, desde o fatídico 11 de
setembro daquele 2001 negro que os sites não viam tantos
acessos se multiplicando vertiginosamente em busca de
notícias sobre a guerra. O resultado eram portais fora do ar
e acesso dificultado pelo incrível número de internautas
procurando cada vez mais informações sobre o confronto
mundial.
Com os portais brasileiros completamente
congestionados ou fora do ar, o jovem buscava notícias em
outras fontes, mas era pouco provável que obtivesse
sucesso. Junto com os outros poucos passageiros, ele era
um dos que desfrutavam daquela tecnologia de bolso para
ter acesso à informação de forma rápida. Mas seu palmtop
estava com certa dificuldade em acessar os sites da CNN,
da BBC. Até mesmo outros sites pouco conhecidos
pareciam estar sofrendo do mesmo mal momentâneo,
travando algumas páginas constantemente.
Na última fileira do ônibus, o jovem permanecia
acordado, envolvido pela penumbra da viagem e iluminado
pela tela de seu palmtop. Sentia o ônibus deslizar suave
pela estrada. Olhou para o rapaz adormecido na poltrona
reclinada. Seus olhos azulados descansavam nesse
momento. O jovem não conseguia definir um futuro pacífico
para ambos, pois tudo parecia estar se perdendo com
aquela guerra, com tanta violência, tantas mortes. Às vezes
custava ao jovem acreditar que tudo aquilo estava
realmente acontecendo. Parecia estar em um sonho, vendo
tudo do lado de fora, assombrado. Sentia-se dentro de um
pesadelo cruel. Com certeza, todos esperavam que o
mundo passasse por momentos de extrema incerteza, mas
não imaginavam nunca que um dia ou um momento cruel
como aquele pudesse enfim chegar. “Será que os cientistas
políticos poderiam prever tamanha catástrofe? Poderiam
eles dimensionarem a gravidade de uma guerra como
essa? Saberiam eles ter a exata noção das proporções
devastadoras de um conflito mundial como esse que agora
ocorre? Cidades sendo devastadas, países em estado de
alerta, mísseis caindo sobre nossas cabeças, e nós só
tomamos consciência das merdas que fazemos quando
realmente está tudo prestes a acabar assim?” pela primeira
vez na vida, o jovem estava com medo do futuro. Um medo
diferente, com relação a algo que foge completamente ao
controle das pessoas, e que não depende única e
exclusivamente de seus atos. Algo que depende de uma
série de fatores decisivos e que influenciam no final.
Imaginou se essas mesmas dúvidas e temores poderiam
as que povoavam a cabeça do rapaz que viajava ao seu
lado. Mas como saber, se nem ao menos eles
conversavam? Tudo o que faziam era trocar olhares
indecifráveis, mas que pareciam cúmplices de uma
amizade que ultrapassava os séculos e as eras terrenas.
Ainda tentava acessar as notícias no palmtop, quando
se lembrou do meteoro. Havia tanta coisa estranha e
pertubadora acontecendo no mundo naquele momento que
era difícil de acreditar que realmente estava acontecendo.
A única coisa que lhe acalmava era saber que estava
regressando à sua terra, e que iria rever seus familiares,
seus amigos. Olhou pela janela. A madrugada permanecia
firme, fria e escura. Provavelmente ainda não havia
atravessado a fronteira que separava o Espírito Santo da
Bahia. Sempre intrigado, o jovem inclinou sutilmente a tela
de seu palmtop na direção do rapaz adormecido. A
claridade iluminou sutilmente o pequeno crucifixo de metal
que ele usava no pescoço. “Teria ele algum tipo de
religiosidade definida, ou apenas usava aquele adorno no
pescoço por pura vaidade? Acreditaria ele em algo além da
vida terrena, ou seria um cético com relação ao assunto?”.
Novas dúvidas despontavam na mente do jovem, que hoje
estava mais ciente de algumas certezas presentes em seu
coração e em sua mente, certezas essas que não tinha na
época em que deixou sua família e sua terra, e foi correr o
mundo em busca de seus sonhos e suas metas de vida.
Provavelmente aquele rapaz estivesse passando agora
pela mesma situação que ele havia passado há alguns
anos, quando deixou a casa de seus pais e foi atrás daquilo
que acreditava ser melhor para ele.
O jovem não dormira. Amanhecera junto com o dia.
Sentia uma certa ansiedade indefinida, não sabia se
causada pela atual situação mundial, ou se pelo seu
retorno à sua terra natal. A manhã começava a dissipar a
madrugada e suas sombras penumbrosas, raiando o dia
mansamente. A paisagem ao redor começava a tomar
novas dimensões. A Mata Atlântica agora se espalhava por
todos os lados, e as primeiras plantações de cacau surgiam
tímidas ainda pela beira da estrada. “Já estou perto de
casa”, pensou o jovem, soltando um sorriso leve.
A manhã já ia avançada, quando o jovem decidiu por
continuar a leitura da obra de Machado de Assis em seu
palmtop, naquela tradução experimental. Ao seu lado, o
rapaz pegou sua mochila, e de dentro tirou um livro. Era um
obra cujo autor era Thomas Mann, e a capa mostrava uma
Veneza dourada por um lindo entardecer. O jovem já havia
lido aquele livro na faculdade. A visão daquela capa lhe
irradiou boas lembranças de seus primeiros anos de
universitário. Parou um pouco sua leitura e relembrou a
época em que a busca pelo conhecimento era incessante
dentro das dependências do Campus da faculdade onde
estudou. Fechou os olhos e visualizou as tardes em que
passava na Parque do Ibirapuera, lendo alguma obra de
algum escritor ou pensador famoso. Um deles havia sido
Thomas Mann. Imaginou-se novamente no Ibirapuera,
sentado no gramado, lendo, enquanto as pessoas
desfrutavam de um dia ensolarado. Crianças brincavam
alegres ao seu redor, namorados curtiam seus amores,
enquanto outras pessoas faziam seus exercícios matinais
pelo parque. Fechou o livro, e deitou-se na grama,
deixando o sol aquecer seu rosto. Um calor morno o
envolvia numa irradiação luminosa, que começou a ficar
mais intensa a cada segundo.
Repentinamente, começou a perceber que um clarão
tomava forma cada vez mais forte, o que o fez proteger os
olhos incomodados com a mão. Era um clarão que o cegou
por momentos. Então, um solavanco brusco o trouxe de
volta à realidade. Abriu os olhos a tempo de ver aquele
clarão se dissipando ao seu redor. O ônibus começou a dar
guinadas de um lado para o outro, balançando
perigosamente pelo meio da pista. Desesperados, os
passageiros começaram a gritar, procurando se segurar e
se proteger da situação perigosa na qual se encontravam.
Segundos depois ao clarão, um forte estrondo fez-se ouvir
ao longe, algo parecido com um ensurdecedor trovão. O
jovem se segurava como podia, enquanto tentava ter o
mínimo de compreensão de toda a situação ao seu redor.
Completamente desgovernado, o ônibus despencou em
uma ribanceira. Os solavancos eram intensos, e o jovem
sentiu um frio na barriga, os pensamentos completamente
desnorteados. Ao seu lado, o rapaz também estava aflito, e
os solavancos intensos o fizera cair para o meio do ônibus.
Tentando se segurar como podia, e atônito com o que
estava acontecendo com ele, vendo praticamente a morte
rodopiar na sua frente com seu rosto impassível e frio, o
rapaz estendeu a mão para o jovem, que tentou segurar a
todo custo, mas sem conseguir. Seus olhares se cruzaram
com mais intensidade do que nunca, olhares aflitos,
atônitos, desesperados.
- A janela! – gritou o jovem para o rapaz – Saia pela
janela! Rápido!
Eles se olharam uma última vez, antes do jovem se
espremer pela janela do ônibus e se jogar pelo mato,
rolando barranco abaixo, até bater a cabeça em um pedaço
de tronco e perder completamente a consciência.
Quanto tempo a escuridão tomou conta de sua
consciência, ele não sabe definir com precisão. Quando
recuperou os sentidos, sentia uma forte dor na cabeça.
Aturdido, o jovem levantou-se cambaleante, a visão turva,
pensamentos embaçados. Passou a mão na cabeça.
Estava sangrando, e sua camisa manchada de sangue era
o claro sinal do estado crítico em que se encontrava. Olhou
para os lados, sentindo um cheiro forte de queimado.
Estava a poucos metros do fundo do precipício, e de onde
estava conseguiu dicernir fogo e fumaça ainda presentes.
Completamente chocado, enxergou a carcaça retorcida do
ônibus, totalmente destruído pelo fogo. Gritou por alguém,
mas não havia sinais de qualquer outro sobrevivente.
Todos morreram carbonizados.
Agora havia apenas ele, um jovem sobrevivente.
Gritou desesperado, e seus gritos ecoaram pela mata ao
redor, e atingiram o céu, um céu agora completamente
nublado e cinzento. Ajoelhou-se completamente fora de si,
pegando montes de terra com suas mãos e espremendo
com força. Chorando, sentiu uma dor intermitente nas
têmporas. Tinha um corte transversal na testa, acima do
olho direito, tingindo seu rosto com o vermelho de seu
sangue. Sua lágrimas misturavam-se ao seu sangue,
enquanto se perguntava o que havia acontecido. Suas
interrogações agora eram sufocantes e insistentes.
- Por que, meu Deus? Por que? Por que isso
aconteceu? – sussurrava baixinho, como que com medo
das respostas que pudessem surgir em sua mente.
Parecia fora de si por completo. Tudo aquilo parecia
não estar acontecendo com ele, mas com outra pessoa.
Ele se sentia num terrível pesadelo, do qual poderia
acordar a qualquer momento, assustado, suado e com a
respiração ofegante. Não sabe realmente definir por quanto
tempo ficou desacordado. O sofrimento definia sua vida
naquele momento, quando o céu nublado começou a
chorar pequeninos flocos, semelhantes a flocos de neves.
O céu estava chorando cinzas. Parecia estar chorando
restos de vida que sumiram de repente. O jovem estava
transtornado, sua respiração ofegante se misturava ao
choro quase sufocante. Foi então que uma força
incontrolável e desconhecida tomou conta de seu espírito.
Saiu correndo desembestado sem rumo certo. Correu
durante muito tempo, e quando finalmente havia esgotado
todas as suas forças, largou-se no chão de sua terra.
Somente naquele momento havia se dado conta de que
tinha se embrenhado pela mata. Seus passos o haviam
levado a lugar algum. Estava perdido no meio do mato. A
floresta agora o cercava por todos os lados, e tinha perdido
o senso de direção, sem saber de onde tinha vindo e nem
como voltar. Estava distante dos caminhos, distante de
qualquer tipo de ajuda. Estava perdido.
Não conseguiu encontrar mais a carcaça queimada do
ônibus. Não conseguiu encontrar o caminho de volta para a
estrada. Não encontrou mais o caminho de volta.
// capítulo 5
Uma nova escuridão o envolveu, e quando o chão
fugiu de seus pés novamente, um novo abismo o engoliu
por completo. Caia em gritos desesperados, quando
acordou completamente assustado, completando o retorno
de sua transposição onírica. Estava começando a ter o
mesmo sonho com o acidente, de maneira constante e
pertubadora. Era um tormento para o jovem reviver tudo
aquilo novamente em seus sonhos. Olhou ao redor, viu a
mesma floresta, os mesmos cacauais, o mesmo Jequitibá
onde havia se recostado para descansar. Permaneceu
ainda deitado por algum tempo ali. Tentou se lembrar do
rosto do rapaz de olhos azulados que havia viajado ao seu
lado. Sentia imensa dificuldade em redesenhar na memória
as feições serenas daquele rosto moreno que vira por tão
pouco tempo, algumas prováveis horas. Só conseguia ver a
expressão desesperada do rapaz segundos antes de saltar
do ônibus que caía. Chorou silenciosamente. Recostou-se
no Jequitibá. Procurou a foto em suas mãos, mas nada
encontrou, apenas o vazio de sua existência e a sujeira da
terra misturada ao seu sangue. Passou a mão na testa e
sentiu uma leve dor no lugar do corte. Uma leve sensação
de morte passeou pelo seu corpo. Amanhecera mais um
dia cinzento e nublado. Talvez tenha dormido algumas
horas, mas nunca mais tivera um sono reconfortante.
Acordava sempre assustado e desesperado, como se
estivesse no meio de uma guerra. Sentia-se como um
soldado perdido em pleno campo de batalha.
Um frio percorreu sua espinha. Olhou para os lados,
desconfiado. Levantou-se sorrateiramente, e foi até alguns
cacauais próximos de onde estava. Não sabia explicar o
que fazia ali, parado, observando os pés de cacau. Apenas
olhava, examinando cuidadosamente cada cacaueiro,
como se tentasse entendê-los. Foi quando, nesse
momento, diante de seus olhos, as árvores começaram a
definhar, murchando e se esfarelando ao sabor dos ventos.
Assustou-se. Balançou a cabeça, tentando se desvanecer
de tais alucinações. Mas elas teimavam em continuar
passeando diante de seus olhos. Continuou debatendo-se,
até se livrar daqueles delírios e perceber que as árvores ao
seu redor continuavam ali, intactas, imóveis, presas
naquela terra pelas suas raízes. Passado o momento de
delírio, procurou se controlar. Sentia-se esgotado
fisicamente, e faminto. Levantou-se, decidido a achar algo
para comer. Enquanto caminhava pelo mato, procurava de
alguma forma reconstruir sua razão, seus pensamentos,
colocar suas idéias em ordem. Lembrou de um dos últimos
momentos bons em que estivera com um amigo de
faculdade, conversando numa mesa de bar, trocando idéias
sobre a vida, as amizades e o mundo em que viviam.
A voz de seu amigo agora ecoava entre um gole e
outro de cerveja.
- Meu caro, toda essa situação caótica pela qual
passa o mundo hoje é o desfecho irreversível de um
emaranhado de problemas gerados pelo próprio homem,
através de conflitos, luta pelo poder, violência, ganância. –
seu colega universitário tinha feições compridas, barba rala
e um olhar forte e penetrante quando conversava e
procurava expor suas idéias e opiniões. Tinha uma maneira
concisa de falar, gestos comedidos. Usava um pequenos
óculos redondo, o que lhe dava um ar intelectual. Sua
firmeza na forma de se expressar com as palavras
tornavam suas conversas envolventes. O ser humano
afunda-se cada vez mais em hipocrisia e toda e qualquer
forma de corrupção, e o que vemos é a deturpação
completa do valores éticos e nobres da sociedade. O
mundo está pior do que há dez anos, se desarticulando
desde as microestruturas sociais, as próprias famílias, até
as grandes corporações, envolvidas em escândalos de
toda ordem, sejam financeiros, sociais, políticos. O
Congresso, a Igreja, as grandes corporações, ninguém
escapa de tantos erros escondidos embaixo dos tapetes.
- Há dez atrás, poderíamos acreditar e confiar na
palavra de um amigo – ponderou o jovem. - Hoje em dia,
isso é muito difícil. Estão sumindo as pessoas de caráter,
as pessoas honestas e amigas. Amigo tornou-se uma
raridade.
- Olhe ao seu redor. Hoje as pessoas não vivem. Elas
tentam sobreviver, diante de tanta falta de perspectiva.
Como ter alguma perspectiva diante de um Governo que
não nos dá certeza do que realmente acontece dentro das
esferas do poder? Hoje as pessoas vivem desanimadas,
inseridas numa sociedade decadente e desgastante. A
maioria abandona seus sonhos para correr atrás do pão de
cada dia e do dinheiro para pagar as dívidas sempre
presentes. É a sociedade que criamos, e que agora não
conseguimos mais sair, e nem fazer os nossos filhos
saírem. Pois eles já nascem inseridos nesse mundo
decadente. Nosso mundo é extremamente materialista,
consumista, impositiva com relação a valores morais
distorcidos.
- Ontem mesmo eu presenciei na rua policiais usando
de violência com meninos de rua. Um completo absurdo,
atitudes que apenas dão margem a mais violência.
- Isso é incutido em nossas mentes desde que
nascemos. As crianças crescem revoltadas, marginalizadas
e sem perspectiva de futuro. E o ciclo vicioso permanece.
O governo deveria priorizar a Educação, e não criar
paliativos para toda forma de miséria que assola a
sociedade. O homem se perdeu dentro dos complexos
sistemas que ele próprio criou.
- Guerras, seqüestros, revoltas populares, crime
organizado, guerras civis, jovens viciados, miseráveis
morrendo de fome...
- Aids, governos corruptos, florestas devastadas,
violência nas esquinas. Esse é o nosso mundo, meu amigo.
Um mundo que ainda vai piorar muito mais, antes de
melhorar. Eu tenho certeza de que mudanças drásticas irão
ainda abalar todos os alicerces que apóiam as formas de
pensar e de agir deste nosso mundo como o conhecemos.
O jovem parou de caminhar por um instante. As
palavras de seu amigo ainda ecoavam em sua mente, e
agora ele parecia estar vivenciando aquelas mudanças
drásticas as quais se referia seu amigo. Experimentar um
verdadeiro inferno, para aprender a valorizar o paraíso. O
jovem sabia que o sofrimento trazia maturidade e
experiência ao ser humano, mas ele começava a achar que
não estava completamente preparado para suportar tudo
aquilo de forma tão repentina. Temia que pudesse acabar
pelo meio do caminho, não alcançando o próximo estágio
de sua caminhada. Seu amigo invadiu novamente suas
lembranças, povoando sua mente com mais considerações
sobre a vida.
- Quando sua vida se desmorona, você precisa se
reerguer e reconstruir em cima de tudo aquilo que foi
destruído. Só assim vamos crescendo e aprendendo com
nossos erros. Mas para que isso aconteça, primeiro
devemos aprender com os nossos erros, do contrário
iremos sempre continuar errando e destruindo a nós
mesmos. O mundo ainda não aprendeu com os seus erros,
e isso causará a nossa ruína. E existe um momento em
que tudo se torna um processo irreversível, onde as
soluções sempre são mais drásticas e dolorosas. E o nosso
mundo já está nesse processo irreversível, infelizmente.
Vivemos um mundo de ilusões e fantasias. As pessoas já
não vivem suas próprias vidas, aquelas que elas deveriam
realmente viver. Apenas tentam sobreviver, incapacitadas
de transformarem suas vidas naquilo que elas tanto
sonham e almejam. Isto é o que mais destrói a todos,
constatar sua impotência diante de uma sociedade que se
limita, se condena e se fecha em sua rotina miserável e
corrosiva. Esse é o nosso mundo hoje.
“Para onde estamos caminhando? Para onde eu estou
caminhando?” O jovem parou novamente, fitou o céu
cinzento e nublado por entre as árvores. À sua volta, os
// capítulo 6
Suas mãos trêmulas agarravam o cacau partido como
se ele fosse fugir ao seu controle. O fruto revelava em seu
interior amêndoas doces, de um sabor inigualável, um
verdadeiro néctar dos deuses que o jovem, prostrado na
terra, devorava avidamente. Foi um dos poucos cacaus
maduros que havia encontrado por toda aquela parte. Por
isso, chupava cada amêndoa como se fosse a única,
mastigando-a em seguida, triturando-a com os dentes, e
engolindo quase sem sentir. A princípio, um gosto amargo
tomava conta de sua boca, quando mastigava os caroços
de cacau, mas logo acabou se acostumando, em favor de
sua sobrevivência. Desesperado pela fome, comportava-se
como um verdadeiro animal faminto, agarrando sua presa
com unhas e dentes, estraçalhando-a completamente,
degustando-a inteira. Devorava tudo o que pudesse ser
comido. Maduros ou verdes, atacava os frutos que
estivessem ao seu alcance. Maracujás, bananas, avançava
com furor, cravava os dentes, mastigava agoniado. Se não
estivesse ao seu alcance, goiabas, mangas, laranjas, subia
aflito pelos troncos, embrenhava-se pelos galhos,
pendurava-se, aninhava-se pelas copas das árvores, tal
qual um macaco. Como nos tempos em que era menino
travesso nas fazendas de seu pai, entocando-se nas copas
das mangueiras, dos cajueiros, goiabeiras, juntamente com
os filhos dos empregados, passando bons momentos a
saborear as delícias das frutas oferecidas pela natureza.
Agora, porém, a situação era adversa. Para o jovem, era
uma questão de sobrevivência, e isso agora fazia toda a
diferença.
Andando há alguns dias sem rumo pela mata densa e
por entre cacauais, já não tinha mais certeza se
conseguiria sair vivo daquela situação. Seu corpo mostrava
sinais de fraqueza cada vez mais intensa, e sem qualquer
tipo senso de direção, não fazia a menor idéia de onde
realmente estava. Olhava para o céu cinza e nublado, onde
as nuvens densas e o tempo sempre fechado escondiam o
furor quente do sol. Sentia-se desorientado, sem saber que
rumo tomar. Algumas vezes tinha a sensação de estar
andando em círculos. Desde o dia do acidente, os dias
sempre estavam nublados, chuvosos, e não havia mais a
presença brilhante do sol. Apenas a sua claridade se fazia
presente a muito custo naquele céu turvo.
Nesse dia, porém, enquanto descansava recostado
num tronco de cedro, avistou um vulto caminhando por
entre os cacaueiros. Parecia ser um trabalhador rural.
Estava perdido numa leve neblina, e estava catando, com a
ponta de um facão, alguns cacaus maduros que cobriam o
chão, colocando-os no caçuá que carregava nas costas.
Resmungava palavras que o jovem não conseguia
compreender. Provavelmente estaria reclamando do peso
daquele caçuá abarrotado de cacau, ou então maldizendo
a vida que levava. O jovem, ainda sem acreditar direito que
havia encontrando aquele senhor, caminhou com passos
rápidos em sua direção. Mas aquele cansado trabalhador
rural desapareceu por detrás de uma jaqueira. O jovem
sentiu-se aturdido novamente, agoniado, e começou a
gritar pelo senhor de pele escura e cabelos grisalhos.
Estaria tendo novas alucinações? Antes que pudesse
pensar no que estava realmente acontecendo com ele, o
jovem ouviu gritos. Alguém ali próximo parecia estar
sofrendo muito. Virou-se bruscamente, e avistou um
homem seminu, tentando sair de um atoleiro, no qual
estava afundado até a cintura. Carregava junto ao peito um
cacau quase podre. Quando, a muito custo, conseguiu sair
daquele lamaçal, agachou-se, ofegante. Seu rosto trazia
uma expressão cansada. Aquele homem levantou-se,
então, e começou a correr.
- Espere! – gritou o jovem – O que tá acontecendo?
Por que você está correndo? Espere! Eu preciso de ajuda!
O homem parecia não ouvir suas palavras, e
indiferentes aos apelos do jovem, continuou correndo
desesperado mata adentro, sumindo pela densa atmosfera
da floresta. Sua imagem dissipou-se por entre as árvores.
O jovem, que tentava acompanhá-lo, parou então. Com o
olhar fixo na direção para onde o homem desaparecera, o
jovem deixou seu corpo cair sentado no chão. Ficou ali,
inerte, imaginando o que realmente estaria acontecendo
com ele. Pensava insistentemente se não estaria ficando
louco de fato. Tirou do bolso da calça as últimas amêndoas
de cacau que havia guardado. Ficou olhando aqueles
caroços em sua mão. Fechou os olhos, e então, depois de
muito tempo, desde o dia do acidente, ouviu novamente
aquele coro de vozes ecoando em sua mente. Algumas
vezes parecia um imenso grupo de pessoas conversando
desordenadamente, outras vezes assemelhava-se a um
coro harmonioso entoando cânticos sagrados.
Envolvido pelo som desse coro de vozes imprecisas,
estranhamente a imagem de seu avô invadiu-lhe a mente.
Mergulhou novamente em lembranças dos tempos em que
era menino, e de quando costumava brincar com seu avô.
Lembrou das muitas histórias que ele contava da época
que ele era moço, quando ele havia deixado para trás sua
terra natal, Sergipe, para vir desbravar as formosas terras
do Sul da Bahia do início do século XX e iniciar vida nova
pelos arredores de Ilhéus e Tabocas. O jovem sentia agora
correndo pelo seu corpo aquele mesmo sangue
desbravador e aventureiro de seu avô. Fizera o mesmo que
seu avô, deixando sua terra natal para ir correr o mundo
em busca de seus sonhos. Apertou o punho que guardava
as amêndoas de cacau, e chorou silenciosamente, com
saudades de seu avô, que há muito tempo havia deixado
este mundo. Deitou-se na terra, adormecendo na
penumbra envolvente da mata.
A noite trouxe um silêncio absoluto naqueles domínios
selvagens, dominando tudo ao redor durante aquela era de
estranha transição. A escuridão, sorrateira, navegava
suave em suas próprias brumas, tecendo cortinas de
negrume envolventes. Dessa escuridão fez-se a luz, e
dessa luz, imagens que, recolhidas pela visão distorcida, se
tornava reais o suficiente a ponto de induzir uma mente
cansada e dopada pelo sono profundo a acreditar nelas e
tomá-las como a realidade incontestável, um emaranhado
de cores, formas e sensações simuladas.
Mergulhado na escuridão real da mata fechada, o
jovem emergia agora sob a luz de acontecimentos
supostamente criados dentro de sua mente adormecida.
Sua cidade tomou forma diante de si. Ruas, prédios, casas,
carros, pessoas. Uma profusão de cores numa distorção de
situações e ações que aconteciam ao seu redor. Passos,
buzinas, fumaças, acenos, conversas, o céu azul. Olhou o
céu azul sobre a sua cidade envolvida num dia ensolarado.
O jovem começou a caminhar calmamente, atento a tudo
ao seu redor. Surpreendeu-se em como sua cidade havia
mudado bastante em pouco mais de seis anos de sua
ausência. Prédios surgiram onde antes não havia nada,
novas praças e jardins pareciam revitalizar parte da cidade
com uma nova urbanização. Itabuna mostrava-se diferente
aos olhos do jovem. Sentia o frescor do dia, e se sentia
abençoado por vislumbrar aquele céu tão limpo e azul, sem
nenhuma nuvem sequer. Alguns amigos seus de infância
passavam do outro lado da rua. Gritou por eles, acenando
insistentemente, mas eles não o ouviram, continuando a
caminhar, indiferentes aos seus gestos e gritos.
“Provavelmente não me ouviram, ou então não me
reconheceram”, pensou, “Afinal, a gente muda um pouco
em seis anos”. As pessoas ao seu redor caminhavam,
absortas em seus compromissos e horários programados,
enquanto o jovem observava aquele céu azul e mais a sua
cidade, que movimentava-se bela e frenética, e às vezes
estranha e diferente, como em um sonho. Então, um rápido
flash cegou momentaneamente seus olhos. Parecia um
relâmpago. Sentiu uma tontura repentina e sua visão
vacilar. Toda a cidade ao seu redor deformou-se em
consistências imprecisas, ângulos indefinidos e horizontes
fora de foco. Fechou os olhos e teve a sensação do chão
fugindo de seus pés. Cambaleou para trás e apoiou-se
numa parede. Sua visão voltava ao normal, e ele pôde ver
que estava em outro lugar, uma outra rua. Não era a
mesma rua na qual estava há poucos momentos atrás.
Olhou ao seu redor, confuso com aquele estranho
deslocamento no tempo e no espaço. Teve a sensação de
não fazer parte daquele mundo naquele momento, onde as
pessoas caminhavam indiferentes a ele, como se ele
simplesmente não existisse ou não pertencesse àquela
dimensão. Olhou mais atentamente, e percebeu tudo ali se
descolorir bem lentamente, perdendo brilho. Sentiu uma
certa aflição tomar conta de si, pois começou a ter a clara
noção de que ninguém ali percebia sua presença. Foi
quando percebeu que as pessoas pararam atônitas,
olhando para o céu azul. Começou a ouvir gritos aflitos.
Olhou para o céu e viu então centenas de bolas
incandescentes de fogo riscarem o firmamento em rastros
negros de fumaça. Vinham na direção da cidade. “Meu
Deus! O meteoro!”
Viu diversas bolas de fogo atingirem em cheio prédios,
casas, avenidas, e instaurar o completo caos por toda
parte. Pessoas corriam desesperadas em busca de algum
abrigo seguro. O que se via por toda parte agora eram
explosões intensas, labaredas de fogo, devastação e
destruição. O jovem sentiu seu corpo todo gelar, um
calafrio percorreu sua espinha e se alojou em sua barriga.
Correu desesperado por entre explosões, carros voando e
pedaços de prédios caindo. O que estava presenciando era
surreal demais para se acreditar. Era um pesadelo infernal.
Entrou correndo por uma rua e agachou-se numa esquina,
tentando olhar para cima e entender realmente o que se
passava. Os pedaços de meteoro continuavam caindo sem
parar, e as pessoas corriam desembestadas pelas ruas.
Olhou para cima, e nesse momento seu coração gelou de
medo e aflição. Uma imensa bola de fogo estava caindo em
direção de sua cidade. Maior, mais assustadora, e com
certeza devastaria tudo num raio de quilômetros, aquela
imensa pedra flamejante se aproximava cada vez mais,
emanando um energia quente de destruição completa. O
jovem não conseguia gritar, estava sem voz,
completamente atônito, suando frio, e vendo seu próprio
fim se aproximando mais e mais, ensurdecedor,
incandescente, implacável. Novamente viu a face
impassível da morte trespassar seu corpo como um sopro
uivante de vento. Tudo silenciou ao seu redor, o céu
transfigurou-se, viu tudo ao seu redor ser deformado diante
daquele imenso meteoro cada vez mais próximo, ser
destruído, arrasado, desintegrado, devastado e
transformado em pó e cinzas. Tudo se iluminou, e o jovem
sentiu o calor de seu fim dominando-o inteiro, seu corpo
estremecendo, esquentando cada vez mais, até ser
envolvido por uma luz dourada. Abriu a boca num grito
mudo, e sentiu seu corpo queimar intensamente. Flutuou
em silêncio e morte.
O jovem acordou suando, gritando, com um olhar de
louco alucinado. Seus gritos escapavam por entre as
árvores. Mais um dia raiava nebuloso e cinzento, enquanto
a penumbra ainda escorregava pelos troncos e pedras. O
jovem tivera o pior pesadelo de sua vida.
// capítulo 7
Depois daquela noite, o jovem sentiu-se mais
esgotado fisicamente e mentalmente. Agora tinha
problemas para dormir, e ficava a cochilar durantes breves
minutos, sempre acordando aos sobressaltos, assustado.
Seu sono havia se transformado em constantes vigílias
contra seus piores pesadelos. Não fazia a menor idéia do
que realmente havia acontecido no dia do acidente, não
sabia definir o que teria sido aquele clarão e o estrondo
abafado logo em seguida. Começava agora a temer que
seu pior pesadelo pudesse se transformar em sua mais
cruel realidade.
Não fazia idéia de quantos dias estava perdido
naquela mata densa, e nem por que ainda não havia
encontrado uma alma viva por aquelas bandas que
pudesse lhe ajudar a encontrar socorro. Sentia suas forças
se esvaindo pouco a pouco, e sua vida parecia querer
sumir, como fumaça dissipando-se no ar. Lutava contra
tudo isso, e temia que não pudesse sair dessa com vida.
Havia se preparado para retornar à sua terra, rever
sua família, seus amigos, passar o Natal com eles. Talvez
aquele dia já fosse véspera de Natal, ou até mesmo essa
data já teria passado. Não fazia idéia de mais de nada,
apenas queria sobreviver a qualquer custo para tentar
descobrir o que houve realmente. O medo de morrer sem
ao menos rever sua família insistia em seu peito, mas a
vontade de viver teimava em pulsar e mantê-lo andando,
mesmo que quase sem forças para andar.
“Não posso desistir de viver, não posso! Tive a
oportunidade de vir a este mundo para viver e aprender
com minhas vivências. Não será agora que irei desistir de
viver! Eu tenho capacidade suficiente para transformar e
modificar este mundo nesta minha existência. Tenho
capacidade de pensar, analisar, refletir, idealizar, descobrir,
criar, sonhar, chorar, sorrir. Eu existo porque há um
propósito e cabe a mim somente não desistir e seguir em
frente, com todas as forças que eu tiver. Preciso
continuar...”.
Recostado em um cacaueiro, abraçou-se de forma
protetora, procurando não sentir aquela solidão que reinava
ao seu redor. O tempo estava frio e nublado, e foi então
que o jovem ouviu uma voz mansa, leve e firme ecoando
ao seu redor. Sentiu uma brisa macia ir de encontro ao seu
rosto marcado por sangue e lágrimas.
“Vida” – sussurrou a voz por entre as árvores.
Abriu um sorriso tímido, e levantou-se. Cabisbaixo,
continuava sorrindo sutilmente, enquanto apertava os
punhos. Sabia que precisava continuar, pois provavelmente
não estivesse tão sozinho assim. Alguma coisa, ou alguém
queria que ele continuasse, que ele seguisse em frente,
que não desistisse de viver. Tinha que lutar contra seus
temores e seus pesadelos.
Seguiu em frente, através da mata, através dos
cacauais. Enfiou a mão no bolso, e sentiu ainda as
amêndoas de cacau que trazia sempre consigo. Suas mãos
sujas, de unhas encardidas, seguravam cada semente com
determinação. Com certeza havia certa insegurança com
relação ao futuro que lhe aguardava dali por diante. Sua
vida havia se tornado um quebra-cabeça desafiador,
aparentemente sem nexo, uma fortaleza até o momento
impenetrável de dúvidas e indagações. O acidente, o
clarão, o estrondo, os sonhos que tivera, as alucinações,
aquele coro sussurrante de vozes que ecoavam em seu
íntimo. Provavelmente tudo teria uma explicação, haveria
uma conexão entre tudo, ou simplesmente não. Poderia
apenas ser resultado de uma mente atordoada,
atormentada por uma realidade adversa e um acidente
traumatizante.
Deveria haver um sentido para tanto sofrimento e
tormento. Lembrou-se de todas aquelas pessoas no
ônibus, que não conseguiram se salvar de uma morte
iminente, e sentiu um aperto no peito ao recordar que
tentara salvar a vida daquele rapaz de olhos azulados, mas
que não havia conseguido. Enquanto mastigava uma
amêndoa de cacau, pensava em sua família. O sabor
amargo do caroço já não lhe incomodava, ao contrário do
que poderia ter acontecido com seus familiares. Temia pelo
pior. O gosto amargo da amêndoa tomava conta de sua
boca. Sentiu naquele momento uma vontade de comer uma
barra de chocolate. Adorava chocolate. Era o gosto sempre
presente em sua infância. Deixou levar-se pelas
lembranças de seus tempos de garoto, onde o mundo ao
seu redor eram constantes descobertas. Trazia dentro de si
a fascinação pelo desconhecido, pelo que poderia estar
além do horizonte. Desde cedo pegara o gosto pela leitura,
e tinha uma sede de saber intensa. Adorava livros sobre
arte, astronomia e cultura de povos antigos. Aos 11 anos,
seu pai lhe deu um livro sobre a cultura dos povos astecas,
cuja capa dura trazia uma foto imensa de ruínas de uma
antiga cidade asteca. Começou a ler sobre a vida daquele
povo, seus conhecimentos, sua maneira de viver, seus
rituais religiosos, e de como os colonizadores acabaram
destruindo toda uma civilização. Sentado à sombra de uma
mangueira, na fazenda de seu pai, o jovem garoto se
interessou em especial por um capítulo daquele livro, que
falava sobre o fruto dourado que os astecas cultivavam.
Era o cacau. Cada vez mais se sentiu fascinado por aquela
civilização exuberante e mística. Sua imaginação de
criança então o transportou, naquela leitura, pra aquele
universo instigante, aquele Mundo Novo.
Da praia podia ver as velas brancas, alvos sinais das
caravelas que singravam os mares em busca do
desconhecido e que agora aportavam naquelas terras. Era
o homem branco, desbravador, perseguindo novos
continentes e todos os tesouros que nela houvessem. O
fruto cacau, assim como o chocolate, o néctar dos deuses,
estava prestes a ser descoberto pelos “homens com corpos
de metal”, habitantes do mundo civilizado. Até então, o
cacau era um privilégio dos índios que viviam no sul do
México, América Central e Bacia Amazônica, onde o fruto
se desenvolvia naturalmente em meio à floresta.
O livro relatava que, quando os primeiros
colonizadores espanhóis chegaram à América, o cacau já
era cultivado pelos índios, principalmente os Astecas, no
México, e os Maias, na América Central, que consideravam
o cacaueiro sagrado. Os Astecas acreditavam ser o
cacaueiro de origem divina, e entre eles havia uma lenda
que atribuía a origem do cacau ao feito de um deus. Era a
lenda que contava a história do deus asteca Quetzacóatl,
que na linguagem asteca significa "Serpente Emplumada",
"Pássaro Serpente", ou "Pássaro Serpente da Guerra". O
jovem garoto seguia lendo a história de Quetzacóatl, deus
dourado do ar, senhor da Lua prateada e dos ventos
gelados, também idolatrado como o deus da sabedoria e
do conhecimento. Algumas vezes era representado como
uma serpente emplumada, e outras vezes como um
homem idoso vestido com uma túnica, de barbas brancas,
com o corpo e o rosto pintados de negro e uma máscara
imitando um focinho vermelho e bicudo. Segundo sua
fantástica história, Quetzacóatl, assim como Prometeu,
também ofertou aos homens um presente roubado da Terra
dos deuses. Querendo dar aos mortais algo que lhe
enchesse de prazer e energia, Quetzacóatl foi aos campos
luminosos do Reino dos Filhos do Sol, para de lá furtar as
sementes da árvore sagrada. Dessa forma fantástica, as
sementes do cacaueiro teriam surgido na região dos
Astecas e aí frutificado, dando origem à árvore. Os Maias e
os Astecas festejavam as colheitas com rituais cruéis de
sacrifícios humanos, oferecendo às vítimas taças de
chocolate. O jovem garoto deixou-se levar pela sua própria
imaginação e então visualizou o deus asteca em toda sua
plenitude divina, alto e robusto, com um rosto de linhas
fortes e marcantes. Um deus dos trópicos, de pele morena,
trajando vestes suntuosas, de farto tecido de seda
resplandecente, em tons de dourado ou verde bem escuro
e brilhante, e um enorme cocar com dourados desenhos
em relevo e imensos penachos reluzentemente negros ou
em tons de um azul escuro. Aquele era o seu deus
Quetzacóatl.
De alguma maneira, todas essas lembranças
pareciam revigorar o espírito do jovem, agora um solitário
sobrevivente perdido em meio aqueles cacaueiros. Ele
ainda guardava com carinho aquele livro que seu pai lhe
dera quando garoto. Olhou novamente as amêndoas em
sua mão, e se sentiu agradecido por ser filho daquelas
terras tão abençoadas, apesar de profundamente
castigadas pelo homem. Uma terra de gente sofredora e
humilde, mas também de pessoas gananciosas e
maliciosas. Enquanto andava, pensou na Grande Guerra
que estava desfigurando aquele mundo que ele conhecia.
Nesse momento, sentiu tudo ao seu redor iluminar-se um
pouco mais e o ar ficar mais arejado.
// capítulo 8
Suas gargalhadas frouxas ecoavam pelo ar. Respirava
uma nova liberdade que inundava seus braços abertos
para o tempo. O jovem sentiu o corpo esmorecer diante do
que via, mas não vacilou. Não acreditava que conseguira
sair da mata. Havia encontrado uma pastagem ampla, e
não era mais refém dos domínios da floresta. Sentia-se
mais livre, sentia o ar mais leve ao seu redor, os ventos
rugindo em torno de si. Reencontrou a frescura dos ventos
que não conseguiam embrenhar-se pela mata fechada.
Corria ansioso pelo descampado, por entre o capim alto
que balançava ao sabor das correntes de ar.
Parou sobre um pequeno monte e observou a
paisagem ao redor. O céu estava completamente tomado
por nuvens cinzentas, sempre constantes, insistentes,
parecia um inverno sem fim. Os ventos agora se
comportavam como sopros mutantes de ar, inconstantes,
algumas vezes até mesmo provocadores, verdadeiras
rajadas de ar que açoitavam, agitavam as copas das
árvores e sopravam para todos os lados uma poeira que
parecia cinzas. Girou lentamente o corpo em torno de si
mesmo, acompanhando com os olhos o horizonte ao seu
redor, perdido numa manta cinza e espessa. O verde da
mata se mostrava desbotado, coberto por uma sutil
camada cinza que deslizava suave do céu.
Desceu a encosta logo à sua frente, e avistou uma
cerca de arame farpado, e seguiu em sua direção. Suas
gargalhadas foram substituídas agora por um silêncio
reflexivo. Tinha receio das conclusões que poderia chegar
acerca da paisagem que avistara do alto daquele morro.
Atravessou a cerca com cuidado, pois o arame estava
completamente velho e enferrujado, desgastado pelo
tempo. Continuou caminhando por aquela paisagem
estranhamente desolada, sem uma viva alma a aparecer.
Ouviu barulho de água. Era um riacho quase escondido
pela vegetação ao redor. Molhou as mãos, jogou um pouco
de água no rosto, enquanto continuava a olhar ao redor,
sem saber ao certo que direção exatamente tomar.
Atravessou o riacho, cujas águas rasas apenas chegavam
até a altura de suas canelas. Sua caminhada prosseguiu
durante um bom tempo por aquela pastagem até encontrar
uma outra cerca, e enfim, uma estrada de terra.
Novamente, com cuidado, atravessou a cerca, afastando
os arames, e colocou os pés naquela estrada estreita e
cheia de buracos, provavelmente algum ramal que ligava
as diversas fazendas da região à estrada principal, e que
mal dava para passar uma camionete. Não sabia que
direção tomar, mas naquele momento, isso realmente
pouco importava. O que o jovem queria mesmo era
encontrar ajuda, ver outros rostos, outras pessoas, e
acreditar enfim que estava saindo daquela situação vivo e
disposto a encarar a vida mais uma vez, e descobrir o que
aconteceu desde o dia do acidente. Seguiu caminhando
pela estrada, quando ouviu o coro de vozes ecoar
novamente em sua mente, naquele cântico insistente e
meio desordenado. Por mais que tentasse, não conseguia
definir o que seria aquelas vozes a povoar seu espírito de
maneira tão imprecisa, chegando muitas vezes a soar
como um manso mantra.
Caminhou durante um bom tempo, até sentir um
enorme alívio invadir sua alma, quando avistou os
primeiros sinais de civilização. Ao longe podia ver um
casarão, algumas barcaças, e mais algumas casas. Havia
encontrado uma fazenda. Parou um instante apenas, e
vislumbrou a paisagem rural que se desenhava diante de
seus olhos agora, quase marejados. Sorriu por um
momento, e continuou andando, com passos um pouco
mais apressados dessa vez. Relâmpagos e trovões
começaram a dominar todos os cantos daquele céu
cinzento. A chuva parecia iminente.
// capítulo 9
O jovem escancarou a porteira, e parou por um
momento para observar o lugar, que parecia estar
abandonado. Tudo ali inspirava certo descuidado e
desolação inquietante. O capim crescia displicente ao
redor, dando ao local um aspecto ainda mais desolado e
esquecido. O jovem seguiu pela estrada que ia em direção
ao casarão antigo e mal conservado. Enquanto
aproximava-se, olhou para mais adiante, à direita, as três
barcaças, cujos tetos de zinco estavam completamente
tomados pela ferrugem. Seus olhos seguiram mais para
direita, e avistou uma casa com uma chaminé. Deveria ser
o galpão que servia tanto para estoque do cacau colhido
como estufa para secagem artificial dos grãos. Um pouco
mais distante do casarão, algumas casas modestas, para
abrigar os empregados da fazenda. Próximo às casas
havia um outro galpão, esse todo em madeira, parecia ser
uma garagem. E ao longe, o jovem avistou um imenso
carvalho secular, exibindo toda sua imponência silenciosa,
praticamente senhor daquele descampado coberto de
capim. Porém, tudo ali agora deixava exalar um odor de
abandono e solidão.
Aquele lugar fez o jovem lembrar de uma das
fazendas de seu pai, onde havia passado bons momentos
de sua infância. Alguns flashbacks saltaram aos seus
olhos, e ele viu-se menino na fazenda de seu pai, vendo as
amêndoas de cacau expostas ao sol nas barcaças, para
em seguida correr descalço com passos moleques, a
aproveitar todo o sabor da infância numa roça de cacau.
Um clarão forte, seguido de um trovão rapidamente o
trouxe de volta para aquela realidade cinzenta. Rajadas de
vento balançavam o capim alto ao redor. Os relâmpagos
tornaram-se mais intensos, e os trovões, mais
ensurdecedores. Não demorou muito e o dilúvio teve início.
A chuva torrencial não incomodava o jovem, que caminhou
sem pressa em direção ao casarão. Sentia não apenas o
seu corpo, mas também o seu espírito sendo limpo e
purificado pelas águas daquele temporal. Subiu as
escadarias e parou na porta da frente. Soltou um grito de
saudação, e esperou que alguém aparecesse. Não fazia a
menor idéia do que esperar nos próximos minutos de sua
vida. Gritou mais uma vez, mas ninguém apareceu.
Inacreditavelmente, a chuva tornou-se mais intensa, assim
como os relâmpagos e os trovões.
Angustiado pela situação que se apresentava diante
de si e por toda aquela sensação de solidão e abandono,
aproximou-se da porta e deu algumas batidas secas, que
quase não eram ouvidas por causa do intenso barulho da
chuva. Bateu com mais força, mas não obteve resposta
alguma. O casarão, bem como o restante daquela fazenda,
parecia completamente abandonado. Portas e janelas
fechadas. A chuva desaguava ensurdecedora nos telhados
de zinco das barcaças. Andou pela varanda, e foi olhando
de janela em janela, tentou outras portas, mas parecia
realmente não haver uma alma viva por ali. Angustiado,
caminhou em direção aos fundos do casarão. Passou as
mãos nos cabelos molhados que lhe caiam pela testa. Só
encontrava portas e janelas fechadas. Parou por um
instante na varanda, e ficou a observar o rio que passava
ali próximo, atrás do casarão. . Impaciente, foi em direção à
porta e esmurrou-a. Sentiu vontade de chorar, mas conteve
o choro naquele momento. Tentou forçar a maçaneta,
empurrou a porta, mas acabou ajoelhado ali mesmo,
angustiado, quase chorando, escorando-se na porta.
Estava mentalmente e fisicamente esgotado, cansado de
tudo aquilo, e já não sabia mais o que fazer. Queria ajuda,
implorava silenciosamente por socorro, buscava acabar
com toda aquele sofrimento e solidão. E quando já não
esperava por mais nada, subitamente a porta se abre, num
movimento brusco, e de dentro da casa surge uma pessoa,
que irrompe porta afora, empurrando o jovem assustado e
aturdido para o chão.
- Caia fora destas terras, seu cão imundo!
A voz firme e determinada era de um rapaz, que
demonstrava completa frieza ao empunhar uma velha
espingarda, mirando-a na testa do jovem atônito, caído no
chão. Descalço e vestindo apenas uma calça jeans
desbotada, o rapaz trazia em seu rosto as marcas de um
ódio profundo. Bastante nervoso e tremendo, o jovem
reunia as poucas forças que ainda tinha pra tentar explicar
ao rapaz as verdadeiras razões de seu desespero naquele
momento.
- Calma, pelo amor de Deus! Não atire! Me deixa
explicar...
- Cala a boca! Eu sei muito bem o que você tava
tentando fazer.
- Eu preciso de ajuda, eu...
- Porra nenhuma! Você deve estar de conluio com
aquele bando de animais! Acho bom você sumir agora
daqui, senão te mato agora!
O jovem sentia seu coração aos saltos naquele
momento. Olhava para o rapaz e só conseguia enxergar
um rosto avermelhado mergulhado numa fúria cega, o briho
intenso daqueles olhos negros te encarando e o cano da
espingarda encostado na sua testa.
- Por favor, me escuta! Eu preciso de ajuda.
- Ajuda? E porque você tentou arrombar a porta?
- Eu não estava tentando arrombar nada...
- Mentira! Você ta mentindo!
- Não! Eu tava descontrolado, pensei que não tinha
ninguém aqui e...
- Cala a boca! Você assustou meus irmãos!
O rapaz forçou ainda mais o cano da espingarda
contra a testa do jovem aflito, que agora sentia um suor
gelado brotando em seu rosto.
- Eu não queria assustar ninguém, só estou
procurando ajuda...
- Eu não acredito em você!
- Acredite em mim, eu sofri um acidente e estava
perdido no meio mato...
- Você acha que vou acreditar nessa sua conversa?
- Acredite, por favor! Estou dizendo a verdade.
A chuva continuava intensa, porém menos
ensurdecedora. O jovem e o rapaz permaneceram breves
segundos entreolhando-se em silêncio. Permaneceram
imóveis. O rapaz mantinha um olhar fixo e incisivo. O jovem
começou a sentir uma tontura, seu corpo já se
enfraquecendo por completo, parecia estar desmaiando.
Ouviu, então, uma voz feminina que parecia apelar em seu
favor. Meio tonto, desviou o olhar para a porta, procurando
saber quem estava tentando lhe defender naquela
situação. Sua visão, porém, ficou completamente turva,
embaçada, e começou a perder os sentidos. Continuava a
ouvir aquela voz defendendo-o no meio de uma discussão.
- Eu acho que ele está falando a verdade.
- Não te mete nisto! Entre e deixe que eu resolvo isso!
- Pára com isso, por favor! Eu sei que você não teria
coragem de atirar nele.
- Não te mete, eu já disse!
Nessa altura da discussão, o jovem já não dicernia
sobre o mundo ao seu redor. Sua consciência distanciou-se
da realidade, e sua visão escureceu. Sua cabeça pesou,
pendendo para um lado, e o silêncio tomou conta de seu
espírito. Tombou desmaiado, completamente esgotado,
sem forças.
Passaram-se dois dias e duas noites, até que na
madrugada do segundo dia o jovem recobrou a
consciência. Era uma madrugada como todas as outras, de
céu nublado, sem lua e sem estrelas. Ainda um pouco
sonolento e sentindo-se como um soldado que tivesse
acabado de chegar de uma guerra intensa, o jovem abriu
os olhos e procurou descobrir onde estava. Sentia o corpo
ainda um pouco debilitado, enfraquecido, mas mesmo
assim tentava encontrar um ponto de referência no tempo e
no espaço no qual se encontrava agora. Apoiou-se primeiro
no braço direito e olhou ao seu redor. Lentamente, foi se
levantando e ficou sentado na cama onde estivera
provavelmente deitado, desacordado durante dois dias. O
quarto, arrumado com móveis antigos e impregnado por um
cheiro insistente de mofo, era iluminado pela luz
esmorecida de uma vela deixada sobre uma mesinha de
cabeceira, ao lado da cama. Sobre essa mesma mesinha
havia uma bacia de louça branca com um pouco de água e
pano branco cuidadosamente dobrado. A vela iluminava
precariamente todo aquele ambiente, mas aquela pouca
luminosidade era o suficiente para que o jovem pudesse
ver algumas teias de aranha suspensas pelos cantos da
parede, sacolas e mochilas penduradas atrás da porta,
caixas empilhadas sobre um antigo guarda-roupa e ao lado
de uma cômoda de jacarandá, um espelho empoeirado,
retratos amarelados pendurados na parede. Tudo parecia
ali completamente esquecido, apesar de aparentar estar
guardado. Tentando lembrar-se realmente dos últimos
momentos antes de perder os sentidos, o jovem percebeu
naquele momento que havia alguém o observando da porta
meio entreaberta. E por alguns breves instantes, encarou
os olhos negros e brilhantes de um garoto que não deveria
ter mais do que 11 anos, cabelos pretos e lisos. A vela não
iluminava o suficiente para ele ver com clareza mais ao
longe, mas na penumbra daquela porta entreaberta ele viu
o rosto de um garoto que parecia trazer a expressão de
uma infância machucada. Por alguns instantes,
entreolharam-se de maneira firme, como se analisassem
um ao outro. Ouviu-se um barulho abafado, e nesse
momento o garoto, um pouco assustado, afastou-se,
sumindo na escuridão do corredor. Logo em seguida, o
jovem ouviu vozes, murmúrios discretos. Não conseguia
entender direito o que falavam, mas tinha a estranha
sensação de que estavam conversando a seu respeito.
Alguns momentos se passaram, até que, silenciosa e
mansamente, uma moça linda adentrou o quarto. Tinha
longos cabelos negros, e sua pele douradamente morena
parecia brilhar sob a luminosidade fraca do ambiente. Seus
olhos eram tão negros quanto seus cabelos, olhos
reluzentes, suaves, embriagadores, e sua face deixava
transparecer sua jovialidade dos seus 16 anos. Tinha uma
beleza ingênua de menina misturada a certa sensualidade
já atraente de mulher. Parou ao lado da cômoda, com as
mãos nos bolsos da calça jeans. Estava de sandálias
brancas e vestia uma camisa preta justa, que estampava o
rosto da cantora Amy Lee acima do nome Evanescence. A
luz fraca da vela fazia a sombra da moça dançar
suavemente na parede. O jovem admirou aquele rosto belo
da moça em meio à penumbra do quarto. Ela parecia um
pouco cansada, talvez abatida. Hesitaram um pouco antes
de iniciar qualquer diálogo.
- Sente-se melhor? – perguntou a moça.
O jovem reconheceu aquela voz, a mesma que tinha
ouvido durante a discussão, pouco antes de desmaiar.
- Um pouco... Ainda sinto meu corpo dolorido.
- Você estava horrível. Parecia um soldado depois de
uma guerra...
Os dois sorriram. O jovem sentia-se aliviado por
finalmente estar conversando com outra pessoa, depois da
tantos dias sozinho e perdido no meio do mato. A moça
sorria pelo que acabava de dizer. Um novo instante de
silêncio, e o jovem então começou a relembrar toda sua
situação.
- Quanto tempo eu fiquei desacordado?
- Dois dias. Você teve uma febre forte, e parecia estar
delirando. Dizia frases desconexas que ninguém entendia.
- Delirei? – perguntou o jovem, intrigado.
- Sim. Você ficava falando frases repetidas vezes.
Falava algo do tipo “Pule pela janela, senão você morre”. É
como se você tivesse falando com outra pessoa.
A moça aproximou-se e sentou na ponta da cama. O
jovem podia agora admirar mais de perto a graciosa beleza
que emanava dela.
- Aquele garoto na porta...
- Ele é meu irmão mais novo. Ele sempre é assim,
observador, curioso.
- E aquele rapaz que me apontou uma arma? Quem
era?
A moça hesitou um pouco antes de responder, como
que sem jeito pela situação que havia ocorrido.
- Desculpe a atitude dele, ele é meu irmão mais velho.
Ele não é agressivo daquele jeito. Ultimamente ele tem
ficado assim, um pouco nervoso e cismado com todo
mundo que se aproxima da gente.
- Tudo bem, não se preocupe, eu entendo. Eu também
tenho passado por momentos difíceis em minha vida. Pela
maneira como você conversa, você parece ser mais
controlada que seu irmão.
- Acho que sim. Devo ter herdado isso de minha mãe.
Mesmo ele sendo dois anos mais velho que eu, muitas
vezes eu sou mais controlada e me comporto com mais
maturidade. Mas eu sei que ele não é assim, ele só tem
vivido sob muita pressão ultimamente.
- Eu compreendo o que você está dizendo. Eu tenho
dois irmãos e sou o mais velho, e sei realmente o que
sentimos quando o peso da responsabilidade chega pra
gente quando vamos crescendo.
Ao dizer aquilo, o jovem subitamente lembrou-se de
sua família. Passou dias desaparecido, precisava entrar em
contato com eles e dizer que estava tudo bem com ele, e
saber se seus pais e seus irmãos também estavam bem.
- Eu preciso falar com minha família! Tenho que avisar
que está tudo bem comigo. Eles podem estar aflitos com
meu desaparecimento, provavelmente já souberam sobre o
acidente – O jovem exaltou-se um pouco com essas
palavras e sentiu uma dor leve em sua cabeça. Passou a
mão na testa. No lugar do corte agora havia um curativo.
- Eu tratei desse seu ferimento enquanto você estava
desacordado. Foi um corte meio profundo, e você teve
muita sorte de não ter contraído nenhuma infecção.
- Realmente, eu acredito que tive muita sorte em estar
vivo agora, depois de tudo o que eu passei. Obrigado por
me ajudar.
A moça sorriu de maneira discreta.
- Você estava mesmo precisando de ajuda. Agora
acho melhor você deitar e descansar um pouco mais.
Amanhã de manhã você deverá estar melhor.
Ao dizer isso, a moça tocou a mão do jovem e sorriu
novamente. O jovem retribuiu o sorriso e ambos
despediram-se. A moça saiu pela porta e desapareceu na
penumbra do corredor. Sozinho novamente, o jovem
deitou-se na cama e ficou absorto em seus pensamentos,
olhos fixos no teto. Depois de algum tempo adormeceu
novamente. A vela continuou a iluminar o quarto até se
consumir completamente e deixar a escuridão daquela
madrugada tomar conta do quarto mais uma vez.
// capítulo 10
Um bule com água ardia no calor crepitante de um
fogão à lenha, e uma fumaça rápida e sorrateira escapava
pelo bico do bule, se dissipando pelo ar da cozinha. A bela
moça morena estava agachada em frente ao fogão e
observava, ensimesmada, o leve crepitar do fogo. Uma das
janelas abertas da cozinha deixava entrar a claridade de
mais um dia nublado. Não chovia mais, porém o tempo
permanecia frio e úmido. O jovem apareceu na porta da
cozinha e viu a moça agachada em frente ao fogão. A
mesa, forrada com um pano estampado com desenhos de
frutas, estava arrumada para o desjejum. Uma travessa
com algumas frutas, goiabas, bananas, mangas, laranjas,
alguns pães caseiros, biscoitos, fatias de um bolo.
A moça, que ainda trajava a mesma roupa, mas agora
vestia também um casaco jeans, sentiu que estava sendo
observada e levantou-se, olhando na direção da porta,
onde estava o jovem parado. Ele sorriu, e foi retribuído
igualmente por um sorriso da moça.
- Bom dia – disse a moça de maneira educada e num
tom moderado de voz.
- Bom dia.
- Eu deixei uma roupa limpa para você vestir. Pelo
visto, serviu bem em você.
- Obrigado pela roupa – disse o jovem, meio sem jeito,
agora mais limpo, vestindo uma outra calça jeans e uma
camisa branca um pouco desbotada. A única coisa que
denunciava todo o sofrimento pelo qual havia passado era
seu tênis surrado, praticamente desgastado.
- Como está sua cabeça agora? Ainda dói.
- Não, parou de doer. Estou melhor – O jovem passou
a mão no curativo na testa e arriscou uma piada naquele
momento – Acho que vou sobreviver.
A moça sorriu, e após alguns instantes, o convidou
para o desjejum. Protegendo a mão com um pano azul,
pegou o bule com água fervente e preparou o café, cujo
cheiro forte pelo ar fez o jovem se lembrar que fazia dias
não tomava uma refeição decente. Agradeceu a xícara de
café, cuja fumaça se dissipava entre os dois, ali sentados
na mesa.
- Vocês têm algum videofone aqui na fazenda, para
que eu possa fazer uma ligação para minha família, caso
não seja incômodo para vocês.
- Infelizmente acho que você não vai poder usar o
videofone aqui. – disse a moça de maneira meio
desapontada.
O jovem, a princípio ficou meio surpreso, achando que
a moça estaria seguindo alguma orientação do seu irmão
mais velho com relação a presença de estranhos na casa.
Mas logo em seguida veio a explicação dada por ela
mesma.
- Nada está funcionando.
- Nada? Como assim? – indagou o jovem, intrigado
com a explicação.
- Nenhum aparelho elétrico está funcionando.
Televisão, rádio, nem mesmo o videofone. Tentamos até o
antigo aparelho de telefone, mas também não funciona.
Não dá sinal.
- Vocês já procuraram verificar a rede elétrica da
casa? Talvez seja algum problema no sistema elétrico.
- Meu irmão já verificou isso. Está tudo em ordem.
- Desde quando vocês estão sem energia elétrica?
- Ficamos assim desde o dia do clarão. – Disse a
moça, um pouco cabisbaixa, enquanto mordia
discretamente uma goiaba.
Após essa resposta, o jovem sentiu um arrepio gelado
percorrer todo o seu corpo. Lembrou-se do dia do acidente,
do clarão, do estrondo abafado que ecoou pelo ar. Seu
coração disparou, e ficou com medo das conclusões a que
podia acabar chegando com relação a tudo o que estava
acontecendo. A moça levantou-se da mesa, e foi sentar
numa cadeira perto da porta que dava para a varanda. O
jovem olhou para fora, e reconheceu a porta e a varanda,
aquele mesmo lugar onde havia conhecido o irmão mais
velho da moça, de uma maneira nada cordial. A moça,
sentada na cadeira, abraçava as pernas dobradas,
enquanto continuava a comer a goiaba.
- Não sei explicar a você o porquê, mas estamos sem
luz, e nem mesmo as camionetes na garagem querem
funcionar.
- Essa garagem seria aquele galpão de madeira perto
daquelas casas? – perguntou o jovem.
- É esse mesmo. As camionetes estão lá, trancadas.
O jovem terminou de tomar a xícara de café, e pediu à
moça que o levasse até a garagem onde estava as tais
camionetes. Saíram do casarão e caminharam silenciosos
por um caminho quase sumindo em meio à grama que
crescia. Viu novamente o rio que passava atrás da fazenda,
e do outro lado percebia agora, com mais calma, os montes
verdejantemente acinzentados, cobertos ainda pela mata
virgem e intocável e por plantações de cacau. O tempo
continuava fechado, o céu completamente nublado, e um
vento frio cortava o ar, aquele mesmo vento que continuava
a balançar o capim alto. Chegaram até a garagem. A moça
puxou um cadeado e o abriu, fazendo soltar uma corrente
que prendia as portas de madeira. Dentro da garagem,
mais caixas empilhadas, ferramentas, enxadas, pás, alguns
sacos de cimento e de cal, uma prateleira de madeira com
mais ferramentas, lonas dobradas pelo chão. Aproximaram-
se da camionete cabine dupla, e após algumas tentativas
frustradas de fazê-la funcionar, o jovem percebeu
realmente a inutilidade do veículo. Olhou para a outra do
mesmo modelo, diferente apenas na cor, estacionada ao
lado, e concluiu que seria inútil tentar fazer ela funcionar
também.
- Não é combustível. Meu irmão verificou os tanques.
- Desconfio que seja algum problema no sistema
elétrico. Provavelmente a bateria esteja descarregada. Eu
giro a chave e nem ao menos dá contato.
- Foi o que meu irmão disse também. O mais estranho
é que as duas camionetes apresentem o mesmo problema.
Decidiram retornar ao casarão. No caminho de volta, o
jovem procurou saber sobre o paradeiro de seus irmãos
naquele momento.
- Onde estão seus irmãos?
- Por aí, pelo mato...
Percebeu um certo tom de tristeza na voz da moça.
Olhou ao redor, como se tentasse achar vestígios da
presença dos irmãos da moça, mas apenas deparou-se
com a imponência do majestoso carvalho ao longe.
- E seus pais? Onde estão?
A moça continuou caminhando devagar, sem olhar
para o jovem. Hesitou para responder tal pergunta, parecia
conter uma certa fragilidade naquele rosto aparentemente
controlado.
- Não tenho mais pais...
- Sinto muito, me desculpe perguntar. – o jovem ficou
sem jeito, de certa forma parecia ter entendido a resposta
da moça.
- Não tem problema, eu já superei isso.
Os dois pararam por um momento próximo ao
casarão. A moça olhava agora para o rio, e o vento frio
balançava seus cabelos longos e negros. O jovem
começou a se sentir cúmplice da vida daquela bela moça
morena, e não podia ficar indiferente à situação. Olhava
para ela, e percebia algo que parecia a estar sufocando
silenciosamente, mesmo que ela demonstrasse certo
controle emocional.
- Olha, se você quiser conversar a respeito, sinta-se à
vontade. Se você falar, eu poderei ouvir.
Dito isso, a moça o olhou com certo espanto
controlado. Parecia que ela tinha sido sutilmente sacudida
por alguma frase que o jovem havia dito naquela hora.
- Que estranho você dizer isso.
- Dizer o que? – indagou o jovem.
- Você poderia até achar que é bobagem minha, mas
quando eu era criança, eu tinha sonhos que se repetiam
com insistência. Nesses sonhos, eu via um anjo... Ele tinha
uma espécie de aura azulada, e quando se aproximava de
mim, ele dizia exatamente essa sua frase: “Se você falar,
eu poderei ouvir”. Na noite anterior ao dia do clarão, eu tive
esse sonho novamente, só que dessa vez, ele dizia algo
mais. Ele dizia: “Se você falar, eu poderei ouvir. E se você
escutar, eu poderei chamar”. Naquela manhã, eu acordei
me sentindo tão bem, tão leve, mas ao mesmo tempo eu
sentia uma certa apreensão diante da vida. O dia estava
lindo, o céu azul... Sentei na rede que ficava na varanda e
fiquei admirando o tempo. Acenei para meu pai e meus
irmãos mais velhos que estavam a cavalo.
- Você tinha outros irmãos? – interrompeu o jovem.
- Sim. Tinha. Era um final de semana em família,
todos nós aqui na fazenda. Meu irmão caçula brincava
perto do carvalho. Tudo era perfeito. Fiquei na varanda um
bom tempinho, olhando o céu azul. Na noite anterior, eu
tinha visto no noticiário a reportagem sobre o meteoro que
iria cair na Terra naquela mesma manhã. Sempre tive um
grande fascínio pelo espaço, pelos astros celestes, desde
criança tinha vontade de estudar Astronomia. Meu pai até
brincava comigo, pois dizia que eu sempre vivia com a
cabeça nas estrelas. Naquele dia, eu tive realmente
vontade de poder observar de perto a queda do meteoro.
Não através dos noticiários de TV, mas ao vivo, de perto, o
mais próximo que pudesse. De repente, eu olhei ao meu
redor, e senti um silêncio estranho, assustador. Foi quando
aquele clarão forte tomou conta do céu. Fechei os olhos,
assustada. Ouvi gritos. Todos haviam se assustado com
aquilo. Meu coração palpitou. Depois daquele clarão, um
estrondo atravessou o espaço, abafado, distante. Foi então
que eu vi cavalos correndo, o meu pai caído na estrada,
meus irmãos socorrendo ele. Minha mãe tava na varanda,
aos prantos, e meu irmão veio correndo em minha direção,
assustado. Não me lembro naquele momento se chorava
ou não, eu me lembro que estava muito assustada. Corri na
direção onde estavam meus irmãos, e encontrei meu pai
ainda estendido na estrada, inconsciente. Carregaram ele
para dentro de casa, mas eu não acompanhei eles. Eu
estava assustada demais com aquilo, e me custava a
acreditar no que estava acontecendo. Eu sentei na
escadaria e me lembro que comecei a chorar naquele
momento.
A moça interrompeu a conversa. Transparecia agora
toda sua emoção naquele desabafo. A voz embargada por
um choro contido, as mãos indo ao rosto, limpando as
lágrimas que caíam discretamente. O jovem percebeu
naquele momento que não apenas ele precisava de ajuda,
mas também aquela moça e seus irmãos, eles também
precisavam de apoio, de auxílio.
- Desculpe, acho que exagerei. Eu acho que minto
para mesma quando digo que superei tudo.
- Não precisa se desculpar. Eu acredito que você
realmente precisava desabafar. Existem coisas em nossa
vida que não podemos guardar durante muito tempo em
nosso coração.
- Eu sei... Eu não consigo esquecer tudo o que
aconteceu – disse a moça, abraçada a si mesma.
Cabisbaixa, chorava silenciosamente.
Naquele momento, começava a cair uma fina garoa.
Voltaram os dois para o casarão. O jovem não sabia
explicar, mas sentia uma certa perturbação no ar, algo
indefinido que lhe incomodava o espírito. Era como se ele
não estivesse mais reconhecendo o mundo ao seu redor.
Aquele mundo que ele conhecia antes parecia ter
desaparecido, e que a partir dali, nada seria mais como era
antes. Era como se tivessem tirado o chão debaixo de seus
pés, e agora ele caía de uma altura desconhecida, e a
sensação de frio na barriga persistia com essa queda. Uma
queda vertiginosa na qual não era possível definir a
profundidade nem enxergar o fundo de onde se estava
caindo. A insustentável leveza de si mesmo havia sumido.
Queria encontrar razões para aquela queda e para todo
aquele sofrimento. Quem sabe não seria um aprendizado
para a elevação de seu espírito? Não tinha certeza.
Um gosto amargo invadiu sua boca. Não sabia ao
certo o que dizer naquele momento. A moça estava
sentada na cadeira perto da porta, olhos voltados para o
chão. Seus lindos cabelos negros escondiam agora o seu
rosto moreno marcado pelas lágrimas. Mostrava-se agora
uma pessoa vulnerável envolvida em seu silêncio
momentâneo. O jovem manteve certa distância, como que
respeitando o silêncio e as lágrimas da moça. Sentia-se
impotente diante do que ela havia lhe contado, e sabia que
ela não havia contado tudo, pois tinha interrompido a
conversa pelo choro que despontava. Permaneceram ali,
imóveis, silenciosos, até que ouviu um barulho vindo do
lado de fora. Pareciam passos. Viu, então, o rapaz e o
garoto adentrarem pela porta da cozinha.
// capítulo 11
O jovem e o rapaz entreolharam-se por alguns
segundos com certa desconfiança um do outro. Tudo
indicava que havia um certo desconforto entre os dois, até
porque o única vez em que se encontraram havia sido
justamente durante a recepção hostil oferecida pelo rapaz
ao jovem. Tanto o irmão mais velho quanto o mais novo
vestiam apenas calças jeans e botas pretas. O rapaz trazia
a espingarda numa mão, e na outra uma bolsa de couro
marrom escuro. O garoto segurava um saco de aniagem
cheio de tangerinas. Um leve odor de amêndoas de cacau
misturado ao cheiro das tangerinas escapou pelo ar. Vendo
a irmã triste, o garoto correu ao seu encontro, e a abraçou
silenciosamente. Tirou uma fruta de dentro do saco e
ofereceu a ela, que retribuiu com um sorriso. Ela então se
levantou e abraçou o irmão mais velho. Ele a encarou nos
olhos e balbuciou algo em seus ouvidos, palavras que o
jovem não conseguiu ouvir. Carinhosamente, o rapaz
enxugou as lágrimas dela, e pediu ao irmão mais novo que
a levasse para o quarto. Antes de sair, a moça olhou
timidamente para o jovem, como se estivesse pedindo por
ajuda, por socorro.
Ficaram o jovem e o rapaz sozinhos na cozinha. O
rapaz acomodou sutilmente a espingarda sobre a mesa,
como se não quisesse romper o silêncio reinante naquele
momento. Demonstrava muito apego àquela arma, tinha
um olhar fixo e brilhante quando olhava para ela, deixando
transparecer uma estranha e assustadora veneração. Seus
olhos negros brilhavam.
- Essa espingarda pertenceu ao meu avô. Tem um
rifle guardado aqui na fazenda que era de meu pai, mas eu
ainda prefiro usar essa espingarda – A voz do rapaz soou
completamente diferente para o jovem agora,
diferentemente da primeira vez em que se encontraram.
Sua voz agora era calma e compassada. – Eu adorava
meu avô, apesar de ter conhecido ele por pouco tempo. Eu
era criança ainda quando ele morreu. Mas me lembro
perfeitamente de quando ele me chamava para contar suas
histórias...
- Meu avô também me contava histórias quando eu
era garoto. – disse o jovem, que sentiu certo incômodo com
o olhar frio e duro lançado pelo rapaz naquele momento.
- Meu avô desbravou essas terras e contribuiu muito
para o progresso dessa região, para o progresso das
cidades que aqui surgiram. Viveu no tempo dos coronéis,
era respeitado, influente, rico. Hoje tem até uma rua com
seu nome. Sempre reclamava dos tempos modernos e
vivia dizendo que o mundo estava se perdendo. Quando
ele morreu, meu pai guardou todos os pertences de meu
avô aqui nessa fazenda. Essa espingarda foi uma das
relíquias guardadas. Ele dizia que era uma herança
preciosa, parte da história de nossa família. Meu pai...
O rapaz parou de falar. Balançou a cabeça
lentamente, mordeu os lábios, deu um murro seco na
mesa. Parecia tentar dominar uma raiva contida.
- Acho que sua irmã não teve coragem para contar
tudo o que houve.
- Só eu sei o quanto ela está transtornada com tudo o
que a gente ta passando! – a voz do rapaz se tornou
ríspida, enquanto ele apontava o dedo em direção ao
jovem. Estava começando a ficar nervoso, ainda que não
transparecesse isso por completo.
- Deve ter sido muito doloroso para vocês.
- Mas você não faz a menor idéia do quanto estamos
sofrendo! Você não faz idéia do que seja perder o pai, a
mãe, os irmãos, tudo num mesmo dia. Depois do dia do
acidente com meu pai, minha irmã nunca mais foi a
mesma. Ninguém na minha família foi mais o mesmo.
Parecia tudo tão normal naquele dia, até aquele maldito
clarão surgir! Meu pai, meus irmãos, andando a cavalo, a
família toda aqui na fazenda, os filhos, os netos. – O rapaz
tentava conter as lágrimas, mas não estava conseguindo. –
Minha irmã estava na varanda, deitada na rede, pensativa.
Foi a última vez que vi seu rosto sereno, calmo. Assim
como foi a última vez que vi meu pai andar com passos
firmes... Aquele clarão acabou com minha família. Os
animais se assustaram com aquela claridade, e quando
meu pai caiu do cavalo, eu fiquei desesperado. Corri para
ajudar meus irmãos a trazer meu pai para dentro de casa...
Depois desse dia, meu pai nunca mais enxergou, nunca
mais andou. Ficou cego e paralítico...
O rosto do rapaz estava ficando avermelhado, seus
olhos se encheram de lágrimas, apesar dele continuar
buscando engolir aquele choro teimoso.
- Porque vocês não levaram seu pai logo para um
hospital?
- E você não acha que nós tentamos fazer isso? Nós
tentamos, mas nada mais estava funcionando. Nem a
camionete de meu pai, nem a de meu irmão queriam
funcionar. Procuramos entrar em contato com algum
hospital da cidade mais próxima, mas nenhum aparelho
funcionava. Celulares, videofones, nem mesmo os antigos
aparelhos de telefone funcionavam. Ficamos isolados aqui
na fazenda. Meu pai agora estava imóvel em cima de uma
cama. Minha mãe chorava constantemente, implorando por
qualquer ajuda possível. E meu irmão mais novo ficou tão
traumatizado com tudo o que estava acontecendo que
desde o dia do acidente não disse mais uma palavra
sequer. Ficou mudo...
O jovem começou a sentir a real dimensão do
sofrimento daqueles irmãos, isolados naquela fazenda,
mas ainda desconhecia fatos ainda mais dolorosos que
havia mudado completamente a vida daquela família.
- Meu pai estava morrendo, e meus irmãos não
sabiam realmente o que fazer. A gravidade da situação fez
eles perderem a paciência, e até a discutir uns com os
outros. Nunca tinha visto eles daquele jeito. Foi quando os
malditos apareceram. – o rapaz levou a mão à boca, o
choro engasgado na garganta, os olhos vermelhos. – Eu
estava com minha irmã e o caçula na beira do rio, a gente
conversava sobre alguma coisa, nem me lembro o que
era... Lembro que estava indo na garagem pegar alguma
coisa, quando eu vi os quatro homens se aproximando do
casarão. Vinham correndo, e estavam armados. Senti um
arrepio gelado de medo me dominar. Voltei correndo para
onde estavam minha irmã e o caçula, e contei o que estava
ocorrendo naquele momento. Ela ficou apavorada, e eu
pedi aos dois para se esconderem no meio do mato. Ela
não queria, mas eu convenci ela a ir. Eu voltei para tentar
ajudar, mas já era tarde demais. Ouvi gritos, discussões, e
tiros. Apavorado, me escondi próximo ao casarão. Eles
demoraram algum tempo e depois se foram. Quando eu
cheguei aqui, encontrei todo mundo morto.
O rapaz não suportou mais e se entregou a um choro
soluçante.
- Eles tinham matado todo mundo. Meu pai, minha
mãe, meus irmãos, meus sobrinhos. Todos mortos!
Caralho, por que eles mataram meu pai? Ele estava
indefeso, paralítico em cima de uma maldita cama! Estava
cego! Os desgraçados mataram minha mãe! Por que eles
fizeram isso? Era por causa de dinheiro? Por que porra
eles mataram todo mundo?
O jovem estava completamente chocado com aquele
relato. O rapaz esmurrava a parede, enquanto chorava
compulsivamente. Levou um bom tempo até que ele
engolisse aquele choro, e voltasse a se controlar. Virou-se
para o jovem, enxugou as lágrimas e prosseguiu com suas
palavras.
- Corri para o meio do mato, e encontrei minha irmã e
o caçula abraçados embaixo de um cacaueiro. Estavam
chorando. A partir daquele momento, eu sabia que agora
éramos apenas nós três. Os canalhas foram embora
levando os cavalos e tudo de valor que eles encontraram.
Mas eu ainda vou encontrar esses malditos novamente. E
quando a gente se encontrar, eu não vou hesitar em matar
todos eles, um por um. – o rapaz tinha agora um tom de
voz decidido e ameaçador, e um olhar assustador - Eles
vão sentir a morte pelas minhas mãos. Vou matar todos,
um por um.
// capítulo 12
O rio passava caudaloso e forte por trás da fazenda.
Suas águas barrentas criavam pequenos redemoinhos e
algumas ondas em determinados trechos. Todo aquele
volume de água transbordava pelas margens e arrastava
terra, plantas, pedaços de troncos, criando turbilhões
aquáticos. Era um rio que passava impassível e indiferente
aos acontecimentos que se desenrolavam por aquelas
bandas. Em pé na varanda, o jovem observava com certa
admiração as águas assustadoras daquele rio cheio. Ainda
estava meio chocado com o relato daqueles irmãos, e
ainda mais com as palavras ameaçadoras do rapaz, que
jurava vingança contra todos aqueles que haviam
exterminado quase toda sua família naquela fazenda. Era
uma mente confusa e perturbada com tanto sofrimento pela
qual havia passado em tão pouco tempo. Primeiro, o
acidente que deixou seu pai cego e paralítico, e logo
depois, a assassinato a sangue frio de seus pais e seus
irmãos. O jovem tentava imaginar como o rapaz poderia
viver sua vida carregando lembranças tão dolorosas,
momentos tão dramáticos, um sofrimento com o qual teria
que conviver até seus últimos dias. Pensou também na
moça e no garoto, ainda tão novos e já passando por tanta
dor e tristeza. O rapaz apareceu na porta, e aproximou-se
dele, devagar, meio sem jeito.
- Eu peço desculpas pelo que eu fiz você passar
naquele dia, quando você chegou aqui pedindo ajuda. –
disse num tom de voz mais calmo agora.
- Tudo bem, você não tem do que se desculpar.
- Eu estava muito assustado e me sinto envergonhado
pelo que fiz com você.
- Antes eu não entendia, mas depois de tudo o que
você me contou, agora posso entender seu
comportamento.
- Depois que aquele pessoal apareceu aqui em casa,
mais ninguém apareceu aqui. E quando eu vi você se
aproximando, eu fiquei fora de mim, uma raiva estranha me
dominou. Eu não sei explicar...
- Você não precisa se explicar. É lógico que você
estava agindo daquele jeito para se proteger e proteger
seus irmãos. Você fez o certo naquela hora. Imagine se eu
fosse uma pessoa má e que quisesse fazer mal a você e
seus irmãos. Como você reagiria?
- Eu acho que teria matado você aqui mesmo. - o
rapaz ficou desconcertado, sem jeito com sua própria
resposta e soltou um sorriso que demonstrava um certo
incômodo com relação a toda aquele diálogo.
- Não precisa ficar sem graça com a resposta. Você
estaria apenas agindo em defesa própria e protegendo a
todo custo seus irmãos, pois eles agora são tudo o que
você tem de valioso nessa vida.
- Minha irmã é até muito sensata. Ele sempre foi
controlada e ponderada nas decisões. Quando nós
discutimos naquele dia, ela insistia em dizer que você
poderia nos ajudar de alguma forma, e que por isso
mesmo, a gente tinha que ajudar você.
- Ela tem razão. Agora precisamos nos ajudar.
O rapaz ficou em silêncio, como que meditando sobre
aquele diálogo. O jovem voltou a olhar para o rio, e ficou
pensando na bela moça e no garoto, órfãos num mundo
cruel e sem saber o que o futuro reservava para eles.
Naquela noite, sentados na varanda iluminada por um
lampião e algumas velas, os três irmãos ouviram
atentamente o relato do jovem sobre tudo o que ele havia
passado desde o dia do acidente na viagem de volta para
sua cidade. Falou sobre seus planos de passar o Natal com
sua família, contou um pouco sobre sua vida, desabafou
seus anseios e dúvidas sobre o que realmente poderia ter
acontecido no dia do acidente, aquele clarão. Desabafou
sobre sua imensa vontade de saber se sua família estava
bem, e demonstrou certa angústia pela impossibilidade de
entrar em contato com seus pais.
A manhã do dia seguinte amanheceu com aquele
mesmo tempo inalterado, nublado, escuro, e
ocasionalmente cortado pelo estrondo distantes de trovões.
O jovem levantou-se cedo, e já encontrou a moça de pé,
fazendo o café da manhã. Após o desjejum, ela o convidou
para uma caminhada até o carvalho. Trajando um longo e
belo vestido florido a moça andava descalça pela grama, e
seus lindos e lisos cabelos negros dançavam
graciosamente ao sabor dos ventos. Parecia arrumada
para um momento especial, apesar da simplicidade dos
trajes. O jovem a olhava de relance, admirando sua incrível
beleza.
- Seus irmãos acordam bem cedo.
- É. Eles já se acostumaram a fazer isso todos os dias.
Acordam bem cedinho e saem andando por aí pelas
plantações.
- Você sabe dizer o que eles costumam fazer, ou para
onde eles vão nessas caminhadas? – indagou o jovem.
- Não sei dizer com certeza... Eles começaram a fazer
isso depois de tudo o que aconteceu... Eles acordam antes
do sol nascer e saem sem dizer uma palavra sequer. Se
embrenham no mato, levam a espingarda e alguns sacos.
Geralmente retornam com o saco cheio de frutas.
- Por que você não acompanha eles?
- Não sei, mas eu prefiro ficar aqui no casarão. Eu
acho que só acabaria atrasando a caminhada deles pelo
mato. Eles já conhecem os caminhos e as trilhas por dentro
das roças. Eles caminhavam com meu pai por aí...
A moça silenciou-se e olhou na direção do rio. O
jovem acompanhou seu olhar, e respeitou aquele momento
de silêncio. Segundos depois, ela continuou a falar.
- Não sei porque eles fazem isso, mas acho que meu
irmão está confuso com tudo o que houve.
- Realmente, é uma situação difícil de se superar de
uma hora pra outra.
- Ele está diferente, eu sinto isso nele. É como se ele
estivesse guardando ódio e rancor dentro dele, e isso está
começando a afetar muito ele. Ele foi o único que viu tudo
no casarão, os corpos de meus pais, meus irmãos... Ele
age agora como se estivesse sem saber direito o que fazer,
ou sem saber que caminho tomar agora para nossas vidas.
- Seu irmão está obcecado pela idéia de vingança. Ele
não aceitou tudo o que aconteceu.
- Vai ser muito difícil esquecer tudo o que houve. Eu
me sinto frágil agora, é como se tivessem arrancado todas
as energias de mim. Não consigo dormir direito, com
pesadelos horríveis. Sonho com pessoas que me
perseguem, tentando me agarrar, e eu não vejo os rostos
dessas pessoas.
A moça se abraça, talvez para se proteger do tempo
frio, ou para se proteger daqueles pensamentos tristes que
a perseguiam constantemente agora.
- Sinto pena do meu irmão mais novo. Ele era tão
alegre, brincalhão, comunicativo. Agora, ele não é mais
assim. Não diz mais uma palavra. Vive calado, algumas
vezes encontro ele sozinho pelos cantos, encolhido,
chorando. Às vezes tenho a impressão de ouvir a voz dele
me chamando. Mas ele permanece calado, não diz nada.
A cumplicidade de sentimentos e experiência ia
crescendo cada vez mais entre o jovem e aqueles três
irmãos órfãos, assim como a vontade de ajudá-los a sair
daquela situação em que se encontravam ali naquela
fazenda, isolados do resto do mundo. Cada vez que ele
olhava para a moça, percebia seu coração saindo do
compasso normal de seus batimentos, ao mesmo tempo
em que ficava admirando sua beleza morena.
Chegaram ao grande carvalho. Atrás de sua
gigantesca imponência haviam algumas cruzes fincadas na
terra. Eram feitas de galhos de cacaueiros e amarrados
com cipós. O jovem diminuiu um pouco seus passos,
demonstrando certa surpresa com aquela cena que surgia
diante dele. Sentiu um arrepio na espinha. Olhou para a
moça, sem saber o que dizer.
- Foi aqui que meu irmão enterrou nossa família. É a
segunda vez que aqui nesse lugar. Ele fez tudo sozinho,
não queria que eu e o caçula guardássemos imagens
tristes em nossos corações.
Ainda havia flores sobre os túmulos. Um silêncio
pairou sobre os dois por alguns momentos. A moça olhava
para os túmulos com uma expressão vaga em seu rosto.
Finalmente, o jovem arriscou-se a dizer algo.
- Eu acho que a permanência de vocês aqui nesta
fazenda está se tornando um sofrimento constante e
martirizante.
- Eu sei disso... – a moça fez uma pausa em sua
palavras, e prosseguiu – Tudo aqui agora só traz tristes
lembranças.
Lentamente, a moça caminhou em direção a uma
pedra próxima ao carvalho, sentou-se ali e ficou
observando o rio. O jovem a acompanhou, sentando ao seu
lado.
- Eu não quero mais ficar nessa fazenda. No dia em
que você apareceu aqui, eu senti que você poderia nos
ajudar a sair daqui.
- Então esse foi o motivo de você ter discutido com
seu irmão naquele dia?
- Sim. Eu não sei explicar, mas quando eu te vi, eu
sabia que a gente podia confiar em você.
O jovem sentiu seu coração acelerar, e ele sorriu,
desconcertado pelo que ela havia dito. Intimamente, sentiu-
se agradecido pelas palavras e pelo voto de confiança dela.
Apesar dos poucos dias que haviam se conhecido, podia-
se perceber que a moça acreditava realmente na
possibilidade do jovem ajudar ela e os irmãos a saírem
daquele lugar.
- Minha família toda estava preparada para passar o
Natal e o Ano Novo aqui na fazenda. A família toda, era
uma tradição já de todos os anos. Meu pai reunia todo
mundo aqui, filhos, netos, noras.
- Estavam todos aqui na fazenda? Toda sua família?
- Todos não. Minhas duas cunhadas viriam apenas na
véspera de Natal, junto com meus sobrinhos. – A moça
lembrou-se de seus sobrinhos, a quem tinha todo um
carinho especial, e sentiu um aperto no coração – Depois
de tanta coisa que aconteceu, nem sei dizer se eles estão
bem ou não.
- Então acredito que esteja na hora de procurar saber
sobre eles, se eles estão bem. Eu também preciso
encontrar minha família, estou apreensivo com relação a
tudo o que pode ter ocorrido, e creio que eles estejam me
procurando nesse momento.
O jovem esperou por algum tipo de resposta da moça,
mas ela permaneceu em silêncio depois do que ele havia
dito. Parecia estar imaginando as conseqüências de
possíveis decisões que viesse a tomar com relação a ir
embora daquela fazenda e deixar todo o passado de sua
família para trás. Enquanto ela se deixava levar pelo
silêncio de seus pensamentos, seus dois irmãos
caminhavam mata adentro, marcando as trilhas por entre
os cacaueiros com seus passos.
// capítulo 13
O mundo ao redor permanecia ainda perdido num
período escuro e tenebroso, dissolvido numa espécie de
época de transição, entre um fim caótico e um reinício difícil
e vagaroso. Tudo continuava acinzentado, contornado por
dias completamente nublados e noites sem Lua e estrelas,
encoberto por uma espessa manta de incertezas. A
Natureza ao redor da fazenda pulsava serena em sons
soturnos. Vagalumes dançavam imprecisamente através da
escuridão reinante. Ventos frios e furtivos sopravam
constantemente, e o barulho das águas caudalosas do rio
próximo parecia estranhamente poderoso e ameaçador.
Mais uma noite escura. Iluminados pela luz modesta
de um lampião, o jovem e os três irmãos estavam mais
uma vez sentados na varanda dos fundos do casarão.
Sentado em um canto estava o garoto, perdido em seu
mundo silencioso, com um olhar imóvel e um pouco
intimista. Observava de uma maneira até insistente o
jovem, que por alguns momentos percebeu e começou a
prestar mais atenção aos seus olhos negros. O rapaz,
sentado nos degraus da escada, olhava silencioso o breu
diante de si. A moça apareceu na porta, agasalhada. Trazia
uma bandeja com três canecas com uma bebida quente.
Ofereceu a primeira caneca ao jovem. Tomou o primeiro
gole, e ficou curioso em saber que tipo de bebida era
aquela, que deixava escapulir sua coloração azulada
através da transparência daquela caneca. Tinha um sabor
forte e um pouco adocicado. O rapaz, então, esclareceu
sua dúvida.
- É chá de anil.
- Anil? – perguntou o jovem, um pouco intrigado. – É
alguma planta daqui da região?
- Eu não sei dizer ao certo. Eu estava andando pela
mata esses dias e encontrei um lugar coberto por umas
flores azuis, muito bonitas, de folhas miúdas e redondas.
Eu achei um pouco estranho, pois já havia passado por
aquele local e nunca tinha percebido essas flores. E
comecei a perceber que elas estão nascendo
repentinamente por toda parte.
- Você está querendo dizer que elas apareceram de
repente?
- Sim. Surgiram do nada, e estão em muitas partes da
mata agora. Então eu trouxe algumas para minha irmã. Aí
ela resolveu fazer chá com as folhas e as flores.
O jovem virou para a moça, curioso.
- De onde você tirou essa idéia de fazer esse chá?
- Não sei. De repente, me deu vontade de fazer
alguma coisa com aquelas folhas e flores. Aí coloquei num
bule com água e fervi. Coloquei um pouco de açúcar e
umas gotas de conhaque.
- Açúcar e conhaque? – o jovem sorriu, surpreso.
- Sim, apenas para dar um toque diferente.
O jovem tomou outro gole quente do chá, agora ciente
do que realmente estava tomando, e dessa vez procurava
decifrar o gosto da bebida. Olhou para o garoto, e notou
que ele ainda o olhava insistentemente, e parecia estar se
preparando para dizer algo. Seus lábios se movimentaram
na intenção de falar, mas ele permaneceu mudo. O jovem
teve a nítida sensação de que sabia o que o garoto queria
dizer para ele. Seu coração acelerou e ele esperou pelas
palavras daquele menino, mas este levantou-se meio
assustado e correu para dentro do casarão. O rapaz havia
notado a situação. Baixou a cabeça, e ficou em silêncio
alguns segundos. Em seguida, levantou-se e entrou, para
dali a poucos momentos sair com a espingarda na mão.
Sem dirigir uma palavra a ninguém, desceu as escadas e
caminhou em direção à escuridão da noite.
- Para onde foi seu irmão?
- Não sei. Acho que foi sentar na beira do rio.
- Foi por causa do seu irmão mais novo?
- Sim. Ele não suporta ver o caçula sofrer assim, e não
dizer nada. Ele não diz, mas demonstra através de suas
atitudes.
O jovem permaneceu silencioso, ponderando no que
estava para dizer logo em seguida à moça. Havia tomado
uma decisão muito importante naquele dia e tinha
esperança de que a moça e seus irmãos pudessem
acompanhá-lo em sua atitude. Aproximou-se da moça e
começou a explicar o que iria fazer no dia seguinte.
- Estou indo embora amanhã. Tenho que ir para
Itabuna. Quero descobrir realmente o que houve no dia em
que sofri o acidente.
A moça olhou para ele com certo ar de surpresa e
alguma tristeza. O jovem continuou a falar.
- Eu queria que você e seus irmãos pudessem ir
comigo. Eu acredito que vocês não precisam mais ficar
aqui nesta fazenda. Podemos ir todos juntos para Itabuna.
- Como você pretende fazer isso? Como chegar até a
cidade?
- Não pensei nisso ainda, mas a única certeza que
tenho é a de que tenho que seguir em frente. E eu acredito
que vocês deveriam fazer o mesmo.
A moça se mostrava meio perdida com as palavras do
jovem, e ainda não sabia direito o que dizer. Porém,
começou a sentir uma angústia crescente em seu coração,
como se tivesse medo de nunca mais conseguir sair
daquela fazenda ou de não encontrar mais ninguém que a
ajudasse a se livrar daquela situação e de todos aqueles
tristes acontecimentos dramáticos que povoavam
cruelmente seu coração. Lentamente, seus olhos foram se
enchendo de lágrimas, e ela balbuciou mansamente tudo o
que seu coração realmente desejava.
- Eu não quero mais ficar aqui. Por favor, ajude a
gente a sair daqui. Por favor. Eu não suporto mais ficar
nessa fazenda. Precisamos ir embora daqui. Todos nós.
A moça abraçou o jovem, que foi pego de surpresa
por aquela atitude inesperada. Ela chorava em silêncio.
Sentiu o calor da moça o envolver num abraço
aconchegante e intenso. Agora ele tinha certeza de que
tinha que ajudar aqueles irmãos a sair daquele lugar, e
juntos seguirem em direção à cidade.
// capítulo 14
O dia mal havia raiado e o jovem já estava de pé. Na
verdade, ele quase não dormiu, passou a maior parte
daquela noite acordado, pensando na decisão que havia
tomado, e em como chegaria à cidade. Muitas coisas
povoaram sua cabeça naquela noite. O acidente que
sofreu, os dias perdido no meio da mata, a situação dos
irmãos que havia conhecido, todo o drama pelo qual
haviam passado e ainda passavam, abrigados naquela
fazenda que foi palco da chacina de sua família. Tinha
certeza de que a moça estava disposta a abandonar tudo
aquilo e ir embora dali, assim como o garoto, que parecia
ter demonstrado ao jovem na noite anterior, através de seu
olhar insistente, sua vontade de sair daquele local e se
libertar dos fantasmas que rondavam aquele casarão,
aquela fazenda. E naquela manhã acordou disposto a
conversar com o rapaz e procurar saber o que ele achava
da idéia de irem embora todos juntos, deixando tudo o que
ocorreu com eles para trás.
Encontrou o rapaz sentado na varanda, agasalhado
contra o frio, contemplando mais uma manhã nublada. O
jovem perguntou, então, pela sua irmã e pelo irmão mais
novo.
- Eles dois foram até o carvalho. Minha irmã não gosta
muito de ir lá, mas hoje, não sei por quê, ela decidiu ir até
lá.
- Você não acompanhou eles?
- Eu não gosto muito de ir lá. Quando eu tinha a idade
de meu irmão, eu adorava brincar perto do carvalho. Mas
depois de tudo o que aconteceu, aquele lugar mudou
completamente para mim. Apesar de minha família agora
estar enterrada ali, eu não me sinto bem indo lá.
- Eu estive com sua irmã no carvalho.
- Eu sei. Ela me disse.
Enquanto os dois conversavam na varanda, a moça e
o garoto estavam ajoelhados próximos aos túmulos sob o
carvalho. Seus lindos e longos cabelos negros esvoaçavam
levemente ao sabor do vento, enquanto ela conversava
com seu irmão mais novo sobre a decisão do jovem e seu
plano de deixar a fazenda naquele dia. Mesmo sem dizer
uma palavra, o garoto demonstrou toda sua aflição ao
saber que o jovem estava partindo, e deixando cair uma
lágrima de seu rosto, abraçou sua irmã. Ela, porém,
também explicou que eles não ficariam mais ali na fazenda,
e que todos iriam embora juntos, em direção de Itabuna. O
garoto ficou surpreso, e olhou para a irmã. Dessa vez, ele
sorriu de alegria pela boa notícia que estava ouvindo.
No casarão, o jovem preparava-se para avisar sua
decisão para o rapaz. Este, entretanto, de forma
surpreendente, fez um convite inesperado.
- Você poderia acompanhar a gente na caminhada
pela mata. Eu, você e meu irmão. O que me diz?
- Está me convidando para ir com vocês?
- Eu sei que deve ter sido traumático todos os dias em
que você ficou perdido. Mas não se preocupe, dessa vez
você não vai perder. Eu conheço muito bem as trilhas da
fazenda de meu pai.
- Não acho uma boa idéia... – disse o jovem, meio
cismado com a proposta. Não estava gostando da idéia de
retornar para o meio da floresta.
- Eu já te disse falei pra não se preocupar, não falei?
Vamos, vou arrumar umas botas e um facão para você.
O jovem lembrou-se da moça. Avistou ela e o garoto
retornando do carvalho. Estavam a meio caminho do
casarão.
- Mas e sua irmã? Não acho que ela vá gostar da
idéia.
- Pode deixar, eu explico a ela.
Momentos mais tardes, o jovem e os dois irmãos já
tomavam uma trilha que começava por detrás das casas
que ficavam um pouco afastadas do casarão. O rapaz, que
ia na frente, seguido pelo jovem e o garoto, apontou para
as casas.
- Aqui morava o empregado mais antigo da fazenda,
que tomava conta de tudo por aqui na ausência de meu
pai. Morava com a mulher e os seis filhos. Meu pai tinha
muita confiança nele, e sabia que a fazenda estava em
boas mãos.
- O que houve com ele e a família? – perguntou o
jovem
- A mulher dele adoeceu e foi levada às pressas para
um hospital em Itabuna. Estava muito doente. Meu pai
pagou todas as despesas com o hospital. Isso aconteceu
mais ou menos uma semana antes do dia do clarão.
- Mas e os filhos? Foram juntos para Itabuna?
- Sim. Esse empregado de meu pai tem parentes na
cidade. Então foram todos para Itabuna. Seria apenas por
uns dois dias, não haveria problema. Mas aí então houve
aquele dia do clarão, e depois desse dia, eles não
voltaram.
Mais um mistério se somava a tantos outros, e
pareciam peças de um quebra-cabeça que ia tomando
forma diante dos olhos do jovem. Mas falar sobre o que
realmente pode ter acontecido no dia daquele clarão
estranho parecia ainda ser um tabu difícil de ser superado.
Era como se ninguém quisesse ainda acreditar que algo
catastrófico pudesse de fato ter acontecido.
Embrenharam-se os três cada vez mais mata adentro,
o rapaz sempre à frente desenhando o caminho a ser
seguido.
- Conheço todas as trilhas por dentro dessas
plantações de cacau. Já perdi a conta de quantas vezes
caminhei por aqui com meu pai e meus irmãos. Existem
muitas trilhas por aqui, e eu sei a direção que cada um
delas toma.
Caminhavam cada vez mais em direção à mata
fechada. Tendo a companhia do rapaz e de seu irmão mais
novo, o jovem foi, pouco a pouco, perdendo o medo e
ganhando um pouco mais de confiança em se meter em
meio à Natureza novamente. E caminharam da mesma
forma como faziam antigamente os desbravadores por
aquelas terras. Abriam caminhos novos com a ajuda do
facão, e assim seguiam em frente. Depois de um bom
período caminhando, fizeram uma parada de descanso.
- Tudo isso aqui ao nosso redor, toda essa roça de
cacau foi plantada pelo meu avô. Eu fico admirado com
tudo isso. – dizia o rapaz. – Meu pai me contou que quase
perdeu essa fazenda para a praga da vassoura-de-bruxa.
- Meu pai também sofreu muito com essa praga. Ele
acreditava naquela teoria conspiratória de que pessoas
ligadas a alguns políticos na região trouxeram essa doença
com objetivo de criar uma espécie de terrorismo biológico
com finalidades eleitoreiras.
- Se isso aconteceu mesmo, ninguém nunca teve
certeza absoluta. A única certeza que ficou foi a de que
essa doença destruiu toda a economia da região. Afinal, o
cacau era o que movia tudo por aqui por essas bandas.
O jovem ficou pensativo por alguns momentos,
enquanto comia alguns bagos de jaca, que estavam
deixando seus dedos sujos de visgo. O garoto, então,
aproximou-se dele, encarando-o de uma maneira diferente,
tinha uma expressão mais amistosa no rosto. Parecia um
pouco mais alegre, apesar de ainda continuar mudo.
Chegou perto do jovem e lhe ofereceu algumas tangerinas.
Tocou suas mãos e sentiu a pele macia do garoto, a
mesma pele macia e morena que tinha a sua irmã. O
garoto novamente o encarou e parecia ensaiar suas
primeiras palavras para ele. Seus lábios se mexeram na
intenção de dizer algo, mas o silêncio permaneceu, seguido
de um sorriso tímido.
- Obrigado pelas tangerinas. Onde você achou?
O garoto nada disse. Apenas apontou em direção ao
leste.
- Ele pegou aqui perto. – disse o rapaz – Ali adiante
tem alguns pés de tangerina.
O garoto mais uma vez olhou para o jovem, e sorriu.
- Essa mata é realmente fantástica, uma riqueza sem
igual. – comentou o jovem.
- Eu me orgulho muito dessas terras. Esses
cacaueiros, toda esse pequeno pedaço da Mata Atlântica
preservado aqui. Eu quero proteger tudo isso aqui, que
meu pai cuidou e pensava deixar para nossa família
quando morresse.
- Proteger? Como assim? – o jovem não havia
compreendido realmente as reais intenções do rapaz com
aquela frase.
- Isso aqui pertence à minha família, é uma herança. E
eu não posso abandonar tudo isso simplesmente. – de
braços abertos, o rapaz rodopiava lentamente em torno de
si mesmo, como que apresentando todo aquele legado que
seu pai havia deixado para ele. – Eu pretendo cuidar
dessas terras, pois eles pertencem agora a mim e meus
irmãos. Meu pai ficaria muito orgulhoso de minha decisão,
eu tenho certeza disso.
- Qual decisão? – perguntou o jovem
- Eu pretendo permanecer aqui, nessa fazenda, e
tomar conta de tudo aqui, junto com meus irmãos.
- Você quer ficar aqui na fazenda?
- Sim. É preciso. Eu não posso deixar isso tudo jogado
à própria sorte.
O jovem não acreditava no que estava ouvindo.
Parecia que o rapaz tinha perdido certo juízo e não fazia
idéia do que acabava de dizer. “Como ele vai ficar aqui
nessa fazenda e tomar conta de todas essas terras?”,
pensou, considerando que já era hora de conversar com o
rapaz e contar também sobre sua decisão e seus planos de
ir embora daquele lugar.
- Eu preciso dizer algo a você. Eu estou partindo hoje,
estou indo em direção a Itabuna.
- Você está indo embora pra cidade?
- Sim. E eu gostaria que vocês pudessem ir comigo.
- Como assim ir com você? Do que você está falando?
- Eu conversei com sua irmã sobre meus planos de
partir, e considerei o fato de irmos todos embora daqui. E
ela concordou comigo.
- O que? – o rapaz estampou um ar de surpresa.
- Acredite, não está sendo fácil para sua irmã e o mais
novo continuarem aqui na fazenda, ainda mais depois de
todas as tragédias que vocês mesmos me contaram. É
doloroso demais. – o jovem olhou para o garoto, e
percebeu que o sorriso havia sumido temporariamente de
seu rosto.
- Você está dizendo para a gente deixar esta fazenda?
Está me dizendo para deixar as terras de minha família, e ir
embora daqui?
- Pense em sua irmã e no garoto. Eles estão sofrendo
muito. Vai ser melhor para todos se vocês seguirem em
frente com suas vidas longe daqui.
- Você não entende... – disse o rapaz, um pouco
aturdido – Eu não posso deixar esse lugar. Nós não
podemos deixar.
- Não há mais razão alguma para vocês
permanecerem aqui. Tudo aqui só faz lembrar vocês de
todas as tragédias que ocorreram.
- Não. Não! – o rapaz alterou um pouco sem tom de
voz, começando a ficar um pouco nervoso. – O que você
está pedindo não pode ser feito. Não posso abandonar
essas terras. Precisamos ficar e cuidar daquilo que é
nosso, daquilo que nossos pais nos deixaram.
- Mas seus irmãos estão sofrendo permanecendo
nesse lugar, e você ainda não percebeu isso, pois ficou
cego pelo ódio e rancor que você ainda guarda em seu
coração, e tem medo que tomem tudo isso de você.
- Você não sabe o que está dizendo! Já te disse, o
que você está pedindo não pode ser feito. Não podemos
sair daqui!
- Você não quer descobrir o que houve no dia do
clarão? Não quer descobrir o que realmente ocorreu, e
saber o que se passa de fato com o mundo ao nosso
redor?
- Eu não preciso sair daqui de onde estou para saber
o que aconteceu com o mundo lá fora, e o que vamos
encontrar quando sairmos daqui. Sabe o que vamos
encontrar? Um mundo acabado, destruído, gente morta,
escombros, miséria, dor. É isso o que vamos encontrar lá
fora, pois foi isso o que restou do mundo que nós
conhecíamos!
- Nós não temos certeza de nada disso. É por isso que
precisamos sair daqui, e ir em frente. Para encontrar as
respostas definitivas.
Não precisamos sair daqui! Não existe mais um
mundo seguro lá fora. Eu e meus irmãos vamos
permanecer aqui na fazenda, pois aqui é o nosso lugar. Se
você quiser ir embora, pode ir, mas eu e meus irmãos
ficaremos!
O rapaz havia dito tudo aquilo com um certo
nervosismo, mas procurou não alterar muito o tom de sua
voz, respeitando a presença de seu irmão caçula. O garoto,
porém, ao ouvir aquelas palavras de seu irmão, não
suportou a tristeza que invadia seu coração naquele
momento, e saiu correndo desembestado por entre os
cacauais.
- Espere! – o jovem pensou em correr atrás do garoto
e deter sua fuga, mas conteve-se, receoso de que pudesse
acabar se perdendo mais uma vez pelo meio da mata. –
Será que você faz idéia do sofrimento de seus irmãos
permanecendo nessa fazenda?
O rapaz calou-se, olhando fixamente para o jovem,
que reconheceu aquele mesmo olhar, de quando se
encontraram pela primeira vez. O rapaz parecia
visivelmente cego pelas suas próprias idéias, obcecado por
propósitos que dominavam seu íntimo. Voltaram os dois
sem trocar uma palavra, silenciosos em suas idéias e
pensamentos. Fizeram todos os caminhos de volta, todas
as trilhas por onde haviam passado antes.
Aproximavam-se mais uma vez da fazenda. O rapaz
seguiu com passos firmes e adentrou impassível o casarão.
O jovem permaneceu na varanda, e então avistou a moça e
o garoto na beira do rio. Correu ao encontro deles,
ofegante, e quando aproximou-se, descobriu os dois irmãos
abraçados, chorando. Ela afagava os lisos cabelos negros
do garoto, debruçado em seu colo.
- Ele falou... – disse ela, com uma voz emocionada,
num sussurro envolvido em lágrimas – Eu ouvi a voz dele
novamente. Ele falou comigo...
O jovem agachou-se e buscou o rosto do garoto de
olhos negros, que virou-se para ele e finalmente balbuciou
o que tanto queria dizer.
- Eu... quero... ir embora... daqui... com você – falava
pausadamente, em meio ao choro – Por favor... eu quero...
ir embora... daqui... vamos...
- Eu estava aqui, e ele veio correndo em minha
direção, e me abraçou chorando, e disse: “estou com
medo”.
- Não se preocupe. Todos nós vamos embora daqui,
eu prometo. Vamos conversar com seu irmão e convencer
ele de que o melhor a ser feito por vocês é sair da fazenda.
O garoto o abraçou, num gesto de agradecimento pelo
que tinha acabado de ouvir. Naquele momento de sua vida,
sair daquela fazenda era tudo o que ele queria, e agora ele
via o jovem como um amigo que o estava ajudando
naquela situação difícil pela qual passava. Seu coração
batia acelerado, e podia-se ver com clareza que ele estava
começando a criar um vínculo forte de amizade com o
jovem.
Retornaram para o casarão. Entraram pela cozinha e
encontraram o rapaz visivelmente transtornado, nervoso,
andando de um lado para o outro. Ao rever o jovem, correu
ao seu encontro e, assim como fizera na primeira que o
havia visto, novamente apontou a espingarda contra o peito
dele.
- Você não disse que estava indo embora? Então? O
que está esperando?
O jovem parou, visivelmente surpreso por aquela
atitude inesperada do rapaz. Mais uma vez estava diante
de uma situação perigosa, e sentiu outro arrepio gelado
percorrer seu corpo.
- Calma. A gente precisa conversar.
- O que acontecendo com você? Por que agir assim
dessa maneira? – dizia a moça, nervosa, que tentou se
aproximar do seu irmão, mas foi impedida pelo jovem, que
a manteve atrás dele, num gesto de proteção. O garoto,
assustado, se mantinha escondido atrás do jovem.
- Me escuta. Você não tem motivo pra estar agindo
assim, você só está assustando seus irmãos.
- Porra nenhuma! Esse tempo todo você estava
mentindo pra mim, mentindo pra gente. Estava se
passando por nosso amigo, quando na verdade é apenas
outro filho da puta tentando enganar a gente.
- Por favor, me escuta. Você está confundindo tudo,
está apenas cego de ódio e abalado por tudo o que viu e
presenciou aqui nessa fazenda.
- Cala a boca, que você não sabe de nada! Afastem-
se vocês dois dele! Ele está enganando a gente. Vamos!
Sem se virar, o jovem direcionou suas palavras à
moça e aconselhou a ela a se afastar um pouco junto com
o garoto, enquanto tentava dialogar com o irmão dela, cada
vez mais nervoso, transtornado, suando frio.
- É melhor vocês se afastarem.- disse, olhando agora
com extrema calma para o rapaz – Vamos conversar. Você
sabe que precisamos ajudar uns aos outros.
- Não me venha com essa conversa de ajuda! Você
acha que sou otário, é? Hein? Esse papo manso não me
engana mais.
- Você está nervoso, de cabeça quente, você
precisa...
- Cala a boca, já disse! Você não me engana mais!
Você só apareceu aqui para tirar tudo aquilo de valioso que
ainda me resta. Mas escuta uma coisa, seu filho da puta.
Você não vai tirar essa fazenda de mim, e nem meus
irmãos!
Por alguns segundos, seus olhares permaneceram
fixos, penetrantes um no outro, pareciam esperar por um
momento de vacilo para qualquer um deles dois tomarem
uma atitude drástica diante daquele situação perigosa. A
moça, assustada e abraçada em um canto com o garoto
que chorava silenciosamente, não suportou mais ver
aquela cena e decidiu intervir, dizendo algo que com
certeza surpreenderia seu irmão mais velho.
- Não queremos mais ficar aqui. Entendeu? Não
queremos mais. Queremos ir embora.
O rapaz virou o rosto na direção dos irmãos,
mostrando um olhar de espanto, como que não acreditando
no que ela dizia.
- O que?
O jovem percebeu que o momento era aquele, não
podia vacilar. Sabia que era preciso tomar uma atitude
mais enérgica contra aquela situação que se mostrava
inalterável. Aproveitou o segundo de espanto e descuido do
rapaz, que havia baixado um pouco a guarda, e partiu com
ímpeto em sua direção, na tentativa de desarmar ele.
Agarrou a espingarda na mão do rapaz, que tentou se
defender. Lançaram-se de lado para outro pela cozinha,
num jogo quase interminável de forças contrárias. Em
determinado momento daquela luta silenciosa, o dedo do
rapaz forçou o gatilho, fazendo a arma disparar um tiro, que
atingiu a janela da cozinha. O tiro assustou a todos, e o
irmão mais velho da moça aproveitou aquele segundo para
acertar uma coronhada no rosto do jovem, que caiu no
chão completamente tonto. Olhou ao redor, encarou aquela
cena transtornado, viu seus irmãos apavorados, encolhidos
num canto. Largou a espingarda no chão e saiu correndo
porta afora, em direção da mata. Embrenhou-se pelas
plantações, com passos cambaleantes, trôpegos, lágrimas
nos olhos. Perdeu-se em meio a jequitibás, sapucaias,
cedros, enfiou-se no meio dos cacaueiros.
// capítulo 15
Havia lampiões e velas acesas por todo o casarão,
iluminando as incertezas que dominavam aquela noite fria
e tenebrosa. Os ventos frios pareciam agora trazer consigo
um clima de insegurança por toda a fazenda. O jovem, a
moça e o garoto estavam sentados na varanda, os corpos
protegidos do frio por grossas mantas e cobertores. O
garoto, mostrando certo cansaço físico diante de tudo,
dormia sereno, com a cabeça encostada no ombro do
jovem. A moça, talvez cansada de tanto chorar durante
aquele dia, após o desaparecimento de seu irmão, agora
trazia no rosto uma expressão impávida, silenciosa,
pensativa. Tinha os olhos marcados pelas lágrimas. O
jovem sentia-se envolvido pelo calor dos dois irmãos, ali
sentados ao seu lado, enquanto refletia sobre todo aquele
caos onde havia se envolvido durante todos aqueles dias.
Tentava juntar novamente todas as peças do quebra-
cabeça que a vida havia lhe oferecido, procurando
visualizar algo maior em sua frente, algo que lhe pudesse
enfim explicar tudo o que aconteceu. O clarão, o acidente,
seus dias perdido na mata, seus momentos de delírio, o
coro de vozes que vez por outra sempre ouvia, e todos
aqueles acontecimentos desde que havia chegado àquela
fazenda. Passou a mão no rosto, e sentiu uma dor ainda
presente na face, que mostrava uma marca roxa onde o
rapaz o havia acertado com a arma. A moça observou seu
gesto com certa preocupação.
- Você está melhor agora? A cabeça ainda dói?
- Um pouco, mas não como antes.
- Ainda não consigo entender por que meu irmão agiu
daquele jeito. Ele parecia não ser ele mesmo.
- Ele apenas está confuso e guarda muita raiva ainda
por tudo o que houve com a família de vocês.
- Você disse que ele estava cego de ódio.
- Não se preocupe. Seu irmão vai voltar, eu tenho
certeza. – disse o jovem, encarando aqueles olhos negros,
iluminados pela luz dos lampiões e das velas. Não sabia ao
certo, mas parecia se sentir um pouco atraído pela moça
morena. Sabia que havia se sentido enamorado por ela
desde a primeira vez em que seus olhos a viram. Mas pela
primeira vez naquele momento, começou a pensar
seriamente na possibilidade de estar realmente apaixonado
pela moça. Talvez estivesse na hora de começar a
acreditar em destinos traçados, em vidas que se cruzam
com um determinado propósito, uma missão a cumprir.
Talvez sua vida tivesse razões maiores do que apenas a
realização de seus próprios sonhos, e ele ainda
desconhecesse tais razões. Provavelmente ele havia
chegado até aquela fazenda não por acaso, mas tivesse
algo a realizar ali, algo que tivesse a ver com aqueles
irmãos órfãos. Será que toda sua vida, todos os seus
sonhos e metas pudessem esconder um objetivo talvez
maior que ele próprio desconhecesse realmente?
- Você acredita em destino? – perguntou o jovem.
A moça ponderou um pouco, e então respondeu.
- Acredito. Eu confio em algo maior a guiar nossas
vidas, mesmo que de uma maneira indireta. E você,
acredita em destino?
- Estou começando a acreditar. Eu sei que nós
decidimos os caminhos que tomamos em nossas vidas,
mas parece que existe uma missão maior por trás de
nossas próprias decisões.
- Você está falando isso por causa do acidente que
sofreu?
- Provavelmente... Sabe, quando eu decidi deixar
minha terra, minha família, e ir estudar no Sul, eu estava
indo em busca de sonhos maiores, e da possibilidade real
de poder realizá-los. Havia faculdades em Itabuna que
ofereciam o curso que eu queria, mas eu queria ir mais
além, buscava metas maiores. Por isso decidir ir embora e
correr atrás desses meus sonhos maiores.
- E você conseguiu, não é?
- Em parte, sim. Apesar de todas as dificuldades,
encarei o desafio de ir estudar no Sul do país, enfrentando
todas as adversidades. Cursei Jornalismo numa boa
faculdade, e fiz estágios em alguns grandes jornais e
revistas conhecidas. Aprendi muito nesses anos que passei
longe de minha terra. Mas então, decidi retornar.
- Eu admiro você, pelas coisas que contou sobre sua
vida e seus sonhos. Eu também tenho meus sonhos.
Pretendo terminar o 2º Grau e cursar faculdade de
Astronomia. Meu fascínio pelas estrelas permanece até
hoje. Sempre adorei vir para esta fazenda, porque as noites
aqui são fantásticas. Você pode enxergar todas as estrelas
que cintilam no céu.
- Uma pena que ultimamente o céu esteja sempre
nublado.
- Quando era mais nova, eu ganhei um livro sobre
Astronomia. Falava sobre os planetas, os sóis, as estrelas.
Tinha alguns mapas estelares incríveis, e eu ficava
admirando as fotos das nebulosas, das galáxias distantes,
e imaginando se realmente poderia haver vida em algum
outro planeta distante do nosso.
- Os astronautas estão pesquisando muito sobre isso
ultimamente, na Estação Espacial Internacional.
- Eu acredito que não somos os únicos no universo.
Algo tão imenso e fantástico não seria criado para abrigar
apenas um minúsculo planeta com vida como o nosso.
Deve haver outros planetas habitados por seres que vivem,
morrem, sorriem, choram, amam, odeiam...
O jovem arriscou uma opinião mais descontraída.
- Será que nesses outros planetas deve haver algo
mais delicioso do que o nosso chocolate? Ou do que
aquele seu chá de anil?
A moça o encarou, e soltou um sorriso. Ficou um
tempo pensativa, e logo em seguida levantou-se, indo até a
escada da varanda. Olhou para o céu. Estava buscando
encontrar as estrelas que sempre brilhavam na vastidão do
espaço, mas só encontrou um tempo fechado e frio. Porém,
por um breve instante, ela teve a impressão de ter visto
uma estrela brilhando por uma brecha entre as nuvens. Ela
brilhou por poucos segundos.
- Uma estrela. – disse a moça.
O jovem ficou curioso e levantou-se. Acomodou
cuidadosamente o garoto, que estava dormindo, e foi na
direção da moça.
- Você está vendo uma estrela? – perguntou ele.
- Sim. Ela estava logo ali. – disse ela, apontando em
um ponto do céu, que estava novamente escuro.
Os dois entreolharam-se silenciosos naquele
momento. Por um breve momento, a intenção de um beijo
pairou sobre seus lábios, mas se detiveram, um pouco
envergonhados. Relâmpagos iluminaram o jovem e a
moça, parados ali na escada. Trovões ecoaram pelo céu, e
os ventos frios se tornaram um pouco mais intensos.
Voltaram para a varanda iluminada pelos lampiões. Viram o
garoto acordar meio assustado com os trovões. O jovem
sentou-se ao lado dele, e o abraçou num gesto de
proteção. A moça deixou os dois na varanda e caminhou
até a cozinha. Decidiu preparar um pouco do chá de anil.
// capítulo 16
Foi uma noite longa e cansativa, costurada por
cochilos breves e sonos agitados por sonhos que
incomodavam o juízo. A moça acordava quase a todo
momento, assustada, lembrando de seu irmão
desaparecido. O jovem, numa vigília constante, acalmava
ela, enquanto ele próprio permanecia acordado, pensativo.
O garoto agora dormia ao seu lado, e tinha a impressão de
que ele estava se sentindo protegido estando ali, próximo
do jovem. Sem conseguir dormir, observava os irmãos ao
seu lado, ciente da responsabilidade que tinha com ele
desde que passou a fazer parte de suas vidas. Levantou-se
e aproximou-se um pouco mais da escuridão que tomava
conta de tudo ao seu redor. Concentrou-se naquele
momento único, e então começou a ouvir aquele coro
novamente, aquele cântico suave invadindo seus ouvidos e
sua mente. Dessa vez parecia mais próximo, quase podia
entender o que diziam. Um lampejo invadiu seus olhos e
um trovão o acordou daquele transe momentâneo. Voltou
para perto dos irmãos, que dormiam iluminados pelas luzes
dos lampiões.
A madrugada corria solta quando o cansaço venceu o
jovem, e ele adormeceu sem nem perceber o momento.
Teve um sonho impregnado de imagens desconexas,
aparentemente sem sentido algum. Passos de criança
correndo por uma calçada, o garoto de abertos para um
céu azul, folhas caindo de uma amendoeira numa praça, os
rostos de seus irmãos ainda crianças sorrindo para ele, o
quintal de sua casa numa tarde de sol, sua bicicleta
esquecida na entrada da garagem. Tudo surgia e
desaparecia de forma inconsistente, meio desfocado, como
se estivesse assistindo a um vídeo amador. Acordou vendo
a manhã despontando mansa ainda numa penumbra. Ao
seu lado, o garoto havia acordado e estava sentado a lhe
observar, sorrindo. Retribuiu o sorriso, e então
permaneceram acordados, conversando, enquanto viam o
dia raiando mais uma vez nublado. O garoto perguntava o
que eles fariam quando saíssem daquele lugar, e o jovem
pacientemente explicava o que pretendia fazer assim que
deixassem a fazenda. Um passarinho de papo azul pousou
próximo a eles, e ensaiou movimentos tímidos pela
varanda, diante de seus olhos atentos, até sair voando
novamente pelo céu. A moça finalmente acordou e
perguntou pelo irmão desaparecido. Percebeu que ele
ainda não havia retornado, e levantou-se um pouco
desapontada. Caminhou até a cozinha, decidida a preparar
o desjejum daquela manhã.
Depois do café, permaneceram na varanda, na
expectativa de que o rapaz reaparecesse. A moça
começava a demonstrar certa aflição por toda aquela
situação persistir.
- Onde estará o meu irmão?
- Não se preocupe. Ele vai voltar. Eu sei que ele não
iria abandonar vocês dessa maneira.
- Eu não sei mais o que se passa no íntimo dele. Ele
está muito pertubado.
Enquanto conversavam, escutaram barulhos que
vinham da frente do casarão. Parecia som de cavalos
relinchando, vozes estranhas, passos cautelosos subindo
as escadas. O garoto, impacientemente, correu curioso,
buscando saber quem poderia estar chegando na fazenda
naquele momento. Sua irmã procurou segurá-lo, mas não
conseguiu, seguindo-o com passos mais cautelosos. Viu
seu irmão parar meio assustado, e aproximou-se dele,
abraçando-o. Olhou para o estranho à sua frente, de pele
branca, barba por fazer, andando vagarosamente e
mostrando gestos comedidos. Seu corpo deixava exalar um
forte odor de suor, que chegava a incomodar as narinas de
quem estivesse próximo a ele. A moça deu uma rápida
olhada para fora e viu um moreno, um caboclo e um negro,
ainda montados nos cavalos, e pela maneira como se
vestiam, ela teve a estranha sensação de estar diante de
jagunços ameaçadores saídos diretamente das páginas de
algum livro de Jorge Amado. A descrição de seus aspectos,
realmente, não poderia ser mais perfeita. Traziam em seus
rostos semblantes ameaçadores de assassinos cruéis. A
moça não estava gostando do que estava vendo, e
considerou a possibilidade incômoda de estar diante de
tipos suspeitos e perigosos.
- Quem é você? O que você deseja? – interrogou a
moça, no momento em que percebeu a presença do jovem
ao seu lado.
O sujeito branco, de chapéu e capa, olhava fixamente
para a porta e as janelas do casarão, quando virou o rosto
na direção onde estavam os irmãos e o jovem. Soltou um
sorriso estranho, como que satisfeito com o que acabava
de ver.
- Ora, veja só o que temos aqui. Parece que ainda
vive gente nesta fazenda. – enquanto falava, o sujeito
branco caminhava na direção dos três.
- O que vocês querem? – o jovem insistiu na pergunta
feita pela moça.
- O que eu disse a vocês? – gritou o sujeito branco na
direção dos outros dois nos cavalos. Voltou-se novamente
para a moça e o garoto, lançando um olhar fixo e
assustador – Eu tinha certeza que o serviço não estava
completo, e que a gente não havia acabado com todo
mundo por aqui.
Assim que ele soltou essas palavras, os dois irmãos
travaram de pavor. Seus olhos se arregalaram e eles
sentiram arrepios gelados dominando seus corpos e seus
corações aceleraram. O jovem, visivelmente horrorizado,
percebeu que estava diante dos homens que haviam
exterminado a família daqueles irmãos. O sujeito branco
aproximou-se mais da moça, observando-a
cuidadosamente. Ela sentiu aquele fedor mais forte e
quase insuportável. O sujeito passou levemente os dedos
no rosto dela, acariciando sua pele.
- Você é uma gracinha. O que houve com você antes?
Se perdeu de seus pais? – Agachou-se e passou a
observar o garoto, abraçado à irmã – E você, garotão? É o
caçula da família? Deve ser. Tem o mesmo rosto do pai.
Subitamente, o jovem avançou para frente da moça, e
empurrou educadamente o sujeito branco, que continuava
mantendo o sorriso na boca.
- Acho melhor você sair dessa fazenda e deixar a
gente em paz.
- Você não parece ser da família. Não me lembro de
você.
- Eu sou amigo da família, e sugiro que saiam daqui,
por favor.
- Quanta educação. – disse, afastando-se do jovem.
O sujeito moreno, demonstrando certa desconfiança
com relação àquele lugar, ajeitou um pouco o chapéu para
trás e disse que era melhor irem embora logo dali, pois não
havia mais nada por ali a ser feito.
- Estamos perdendo tempo aqui nesse fim de mundo.
- Também acho – concordou o negro, olhando ao
redor – O serviço já foi feito aqui.
- Eu discordo – retrucou o sujeito branco – O serviço
ficou incompleto, e foi por isso que eu quis voltar.
- Ainda acho que a gente devia se mandar. Aí a gente
aproveita e leva junto essa mocinha linda. – disse o
moreno, sorrindo maliciosamente.
- Esse cara é maluco. Fez a gente voltar até essa
maldita fazenda e perde tempo com um bando de
moleques perdidos. – reclamou o caboclo, com cara de
poucos amigos.
- Você fala demais. Tenha cuidado pois é capaz de
você morrer por falar o que não deve. – Disse o sujeito
branco, num tom de voz calmo, porém profundamente
ameaçador.
- Vamos parar de discutir e cair fora. E traga a
mocinha aí pra gente curtir um pouco com ela. – insistiu o
moreno com a idéia.
- Eu não sei. Eu acho que acabaria sendo cruel com a
pobrezinha. Ela merece coisa melhor, merece uma morte
mais rápida.
O jovem estava completamente abismado com a
presença daquele sujeito branco, que se comportava como
um completo psicopata, uma pessoa sem sentimentos e
que parecia estar desfrutando de cada segundo daquele
momento diante daqueles irmãos aflitos. Estava
começando a despertar um sentimento de ódio de dentro
de si por estar diante da pessoa que praticamente destruiu
a vida daqueles irmãos. Teve uma vontade impetuosa de
partir para cima do sujeito branco e acabar com ele ali
mesmo, mas se conteve o máximo que podia, pois a
situação era complicada, e aqueles homens armados eram
capazes de matá-los ali mesmo, sem qualquer compaixão.
- O que essa família fez a você para você ter agido da
maneira que agiu?
- A pergunta correta é: o que o pai dessa mocinha e
desse garoto fez a mim para que eu decidisse matar a
família dele? – o sujeito branco mantinha agora uma certa
distância dos três, sempre dando passos curtos e
vagarosos.
- Nada justifica o que você fez. Você não tem
realmente idéia da dimensão de seus atos.
O sujeito branco balançou a cabeça, sorrindo
sutilmente.
- O que eu sou hoje e o que eu me tornei, eu devo
tudo ao pai deles. Eu trabalhava na empresa de seu pai,
mocinha – apontou o dedo na direção da moça – Até que
um belo dia, ele descobriu que eu estava desviando
dinheiro ilegalmente da empresa. Eu já vinha fazendo isso
há um bom tempo, era um esquema bem armado e que
envolvia muita gente. Fui denunciado pelo seu pai. Acabei
na cadeia. Mas eu sabia que não ficaria para sempre na
prisão, e quando saísse, seu pai iria receber o que merecia.
- Você é um doente. – disse o jovem, com os punhos
fechados.
- O pai deles apenas não sabia com quem estava
mexendo. Eu não gostei de perder tanto tempo de minha
vida preso. A vingança, para mim, era o caminho a seguir.
- Eu não sei como você saiu da cadeia, mas lá era o
lugar para onde você deveria voltar. – o jovem estampava
uma expressão de raiva contida em seu rosto.
- Pouco importa como eu consegui sair da prisão.
Cadeia, aqui no Brasil, não reabilita ninguém, serve apenas
para segurar os criminosos. E pelo visto, não me segurou
por muito tempo, não é?
O sujeito branco fez uma breve pausa, olhou ao seu
redor, como que averiguando se não havia mais alguém ali
no casarão, e continuou a falar.
- Eu pensei que quase não conseguiria alcançar meu
objetivo, quando a gente sofreu o acidente na rodovia, no
dia daquele estranho clarão. Mas eu pensei comigo
mesmo, “O mundo pode estar se acabando, mas nada vai
me impedir de chegar até aquela maldita fazenda e acabar
com raça daquele desgraçado e de toda sua família”. Eu
não desisto facilmente de meus objetivos.
- Você destruiu uma família quase inteira. Você não é
normal.
- Sabe, você está começando a me irritar com essa
sua maneira de falar comigo. Você não está pensando em
bancar o herói numa hora dessas, está? Eu vou matar
todos vocês, e acho que você será o primeiro a morrer.
Assim que acabou de dizer essa frase,
inesperadamente, o garoto desgarrou-se dos braços da
irmã, e saiu correndo aos gritos em direção ao sujeito
branco. Este, com um olhar impassível, agarrou o garoto, e
aplicou-lhe um golpe forte, arremessando-o contra a
parede. A moça gritou ao ver seu irmão caçula tomar
aquela atitude, e se desesperou quando ele caiu no chão,
chorando, sentindo a dor do golpe. O jovem não suportou
ver aquela cena e partiu para cima do sujeito branco, que
se esquivou de seus murros com movimentos rápidos e o
empurrou contra a parede. Torceu o braço do jovem para
trás e o segurou firme pelo pescoço, quase o sufocando,
pressionando sua cabeça. Chegou perto de seu ouvido, e
sussurrou de maneira ameaçadora.
- Não brinque comigo. Você não faz idéia do que eu
sou capaz. Você tentou dar uma de herói, agora você vai
morrer.
Soltou, então, o braço do jovem, e aplicou-lhe alguns
socos na altura do abdômen, observando-o cair ao chão
sentindo as dores dos murros. O garoto aproximou-se do
jovem, e o abraçou, como que tentando proteger a pessoa
a quem ele buscava agora apoio e proteção. O sujeito
branco estava visivelmente alterado, parecia ter sido
possuído por uma força incontrolável. Tirou uma pistola
automática prateada escondida na cintura, e apontou na
direção da moça, indo na direção dela.
- Cansei de toda essa conversa. Estou disposto a
terminar o que eu comecei aqui. E todos vocês irão morrer
agora!
- Termine logo com isso e vamos embora – reclamou
o negro.
- Ainda acho que devemos trazer a mocinha conosco.
Acabe com os outros dois, e traga a moça. – sugeriu o
moreno.
- Pra mim, ela vai acabar atrapalhando nossa viagem.
Não vai ser lucro nenhum pra gente trazer ela. – o caboclo
parecia realmente cismado com as idéias do moreno e do
negro.
- Calem a boca vocês! Eu decido o que eu vou fazer
com esses três.
O sujeito branco estava decidido a matar todos. Não
queria ninguém daquela família ainda vivo ali. Pressionou o
cano da pistola automática na testa da moça, e olhou em
seus olhos por alguns segundos. Ela, visivelmente
apavorada, ele, soltando um sorriso de canto de boca.
Estava prestes a puxar o gatilho, quando a porta da frente
do casarão se abriu bruscamente.
// capítulo 17
De dentro do casarão, o rapaz surgiu, embriagado
pelo mais profundo ódio. Seus olhos negros brilhavam de
uma maneira intensa, estavam arregalados. A expressão
em seu rosto era de alguém disposto a matar sem pensar
duas vezes. Trazendo na mão o rifle de seu pai, desferiu
tiros certeiros e fatais contra os homens montados nos
cavalos. O moreno, o caboclo e o negro não tiveram tempo
de reação, sendo atingidos rapidamente e caindo já mortos
ao chão. O jovem acompanhou a cena ainda meio aturdido,
mas podia ouvir os gritos do rapaz, que estava
transtornado de ódio.
O sujeito branco virou-se assustado a tempo de ver o
rapaz atingir agilmente os seus comparsas, vendo-os cair
já sem vida. Percebendo que o rapaz preparava-se para
atirar em sua direção, movimentou-se o mais rápido que
pôde, e mirou sua pistola contra o rapaz. Disparou somente
um tiro, e permaneceu imóvel, observando o rapaz ser
atingido em cheio no peito e cair ensangüentado perto da
escada, procurando suportar aquela dor. Ainda com a arma
apontada para ele, o sujeito branco caminhou na direção
dele, e o encarou friamente.
- Você foi corajoso e rápido. Mas não foi o suficiente
para te livrar da morte.
- Você é... um canalha... – disse o rapaz, com extrema
dificuldade, sentindo uma dor cruel pulsando em seu peito.
– Merece... apenas a morte...
- Estou impressionado com sua atitude. Mesmo com
uma bala no peito, ainda tem forças para me dizer isso.
Mas pode ter certeza de que o próximo tiro vai te calar para
sempre.
O sujeito branco mirou em direção à cabeça do rapaz,
e se preparava para o próximo tiro, quando um outro
disparo o atingiu em cheio pelas costas, impedindo-o de
prosseguir com seu gesto. Seu olhar parou no tempo.
Virou-se lentamente, dessa vez, e enxergou a moça
parada, ainda mirando o cano fumegante da espingarda
contra ele. Tudo aconteceu em momentos que pareciam
intermináveis. Aterrorizada, a moça viu o sujeito branco
cambalear dois passos incertos em sua direção, antes de
derrubar a pistola no chão. Ele caiu de joelhos na varanda,
o olhar perdido no tempo, a boca entreaberta deixando
escorrer um filete de sangue, e um último suspiro antes que
seu corpo arqueasse para frente, encontrando apenas o
chão duro e frio.
Em prantos, a moça largou a espingarda que havia
encontrado no chão da cozinha momentos antes, e correu
em direção do seu irmão ferido. O jovem arrastou-se para
perto, seguido pelo garoto, que ajoelhou-se ao lado do
irmão.
- Dói... muito – dizia o rapaz com imensa dificuldade.
Suava frio, cuspia sangue e lutava contra uma dor que
apertava seu coração. Olhou para a irmã – Me perdoe... Eu
fiz isso... pela gente... pela nossa... família.
- Não se preocupe, você vai ficar bem, nós vamos
cuidar de você. Nós estamos aqui. – As lágrimas da moça
caíam sobre o peito ensangüentado do irmão. Ela segurava
firme a mão do seu irmão ferido.
O rapaz procurou a presença do jovem ao seu lado,
olhando em sua direção e agarrando dessa vez sua mão. A
dor em seu peito aumentava.
- Por favor... cuide bem deles... por mim... Eu confio
em você...
Após essas palavras, o rapaz sentiu uma dor maior e
intensa atravessando seu peito. Apesar da forte dor,
prendeu o grito, e sua respiração ficou rápida e arquejante,
demonstrando dificuldade em continuar respirando. Sua
irmã implorava para que ele permanecesse acordado, e
lutasse para continuar vivo. O garoto chorava em soluços.
Subitamente, um forte vento passou por eles, e o rapaz
sentiu sua vida se esvaindo. Deu um último suspiro, até
que sua respiração cessou, seu coração parou de bater e
seu olhar imóvel contemplou sua morte iminente. A moça
desesperada, chorava sobre o corpo do irmão já sem vida,
enquanto o garoto, em prantos, abraçou o jovem, que
deixava agora as lágrimas invadirem seu rosto por
completo.
Nesse mesmo dia, o jovem, a moça e o garoto
deixaram aquela fazenda, e todas as suas recentes e
tristes lembranças para trás. Pegaram os cavalos e
partiram pela estrada. Ao atravessarem a cancela, pararam
os três por um instante e avistaram a fazenda pela última
vez, ainda sob o mesmo céu nublado. A moça lançou seu
olhar para o imenso carvalho ao longe, sempre imponente
em meio a toda aquela paisagem. Ali, aos pés da
gigantesca árvore, havia mais uma cruz, feita com galhos
de cacaueiros e cipós. Mais um túmulo, onde seu irmão
agora descansava em paz.
Calmamente, sob aquele céu cinzento, nublado, eles
abandonaram aquele mundo. Passavam silenciosos pela
paisagem, seguindo o percurso do ramal que iria terminar
na estrada principal. Passaram por outras fazendas, casas,
mas não encontraram ninguém. O silêncio reinava e
nenhuma palavra realmente importante a ser dita mais.
Acharam a rodovia e seguiram por ela. Não importava o
quanto demorasse a jornada, mas nada os impediriam de
seguirem adiante e chegarem ao seu destino. Pela estrada,
encontraram carros capotados, caminhões abandonados,
ônibus virados, e alguns veículos carbonizados, tudo
entregue ao silêncio do tempo e do espaço. Seguiam em
frente sem olhar para trás. E olhando para frente sempre,
começaram a avistar uma paisagem diferente daquela que
os cercavam até aquele momento. Uma paisagem nova,
diferente, desoladora, completamente destruída. Não havia
mais nada a partir dali a não ser pó, pedra, terra e uma
sensação de catástrofe cumprida. O ar parecia um pouco
mais quente e abafado, criando uma sensação de
sufocamento leve, o que chegava a causar uma sutil
angústia. Tudo ao redor parecia ter sido queimado,
incinerado de maneira devastadora. o jovem, a moça e o
garoto continuaram sua jornada silenciosos, e agora
completamente atônitos com o que estavam vendo. Uma
paisagem sufocantemente desértica, e nenhum vestígio de
vida, de sobreviventes, absolutamente nada.
A viagem por aquela terra acabada continuou, e eles
não faziam idéia de quanto tempo caminharam. Já não
tinham mais noção alguma de tempo, e a única certeza era
a visão do inferno que tinham ao seu redor. O jovem sentia
seu coração amargurado com a paisagem, e lembrou do
pesadelo que tivera quando estava perdido na mata
fechada. O seu pior pesadelo parecia mais real do que
nunca agora, e isso o deixava com um aperto no coração,
uma contração que ele não conseguia controlar e que o
angustiava mais ainda. Chegaram ao topo de um pequeno
monte, e então pararam aturdidos. A visão da catastrófe e
do horror havia se completado. Avistaram os escombros de
toda uma cidade destruída, transformada em cinzas. O céu
ainda nublado e cinzento completava aquele cenário
impressionante. Era assustador.
Caminharam em meio aos escombros. Quando não
suportou mais, a moça deixou cair suas lágrimas
silenciosas, chorando abraçada ao irmão. Choravam os
dois, pela perda, pela sensação de vazio, por simplesmente
não terem mais para onde voltar. Não havia mais para
onde voltar. O jovem agachou-se e tocou a terra destruída.
Seu semblante inerte, seu olhar parado no tempo era o
puro reflexo de seu vazio interior. Fechou os olhos e tocou
a terra, deixando suas mãos sentirem tudo o que lhe
restou. Lembrou de sua família e do motivo que o fizera
retornar para sua cidade. Seu choro era silencioso e suas
lágrimas discretas. Começou a ouvir novamente aquele
mesmo coro de vozes em sua cabeça. Abriu os olhos, e
tudo se reportou a um silêncio ensurdecedor ao seu redor.
Ele não queria dizer nada, mais nenhuma palavra
importava. Naquele momento único, elas seriam violentas e
quebrariam aquele silêncio, colidindo com aquele mundo
ao seu redor. Seria doloroso para ele dizer qualquer coisa.
Nada de promessas, pois elas são frágeis e poderiam se
quebrar com o vento ao seu redor. os sentimentos eram
mais intensos, a as palavras se tornaram insignificantes.
Da satisfação de voltar para casa sobrou apenas a dor, e
todas as palavras foram esquecidas. o jovem, a moça e o
garoto entreolharam-se. O jovem decidiu interromper
aquele silêncio imperioso.
- Tudo o que eu sempre quis, tudo o que eu sempre
precisei, estava aqui nos meus braços.
- E agora? - perguntou a moça, ainda abraçada ao
irmão.
- Agora?...
O jovem fez uma pausa e olhou sorrindo para os dois.
- Apreciem o silêncio... Foi tudo o que nos restou.
Top Related