EDUCAÇÃO PARA A SEXUALIDADE E RELAÇÕES DE GÊNERO:
POR QUÊ SE OCUPAR COM ISSO?
Claudete I. de Souza Gomes1
Cláudio Orlando Gamarano Cabral2
Anderson Ferrari3
Este trabalho busca estabelecer diálogo entre nossas trajetórias acadêmicas e profissionais, e
nossos interesses nas discussões que envolvem as relações de gênero, sexualidades,
subjetividades e escolas. Somos professores que atuamos na escola básica e, ao mesmo
tempo, estamos vinculados a um programa de pós-graduação em educação investindo em duas
pesquisas distintas que discutem os modos de subjetivação que estão presentes nas escolas.
Nosso encontro neste texto se deu a partir do desejo de realizar pesquisas que surgem destas
experiências como docentes, com vistas a problematizar as ações de professores/as das
escolas municipais de Juiz de Fora com relação aos temas gênero e sexualidades. Partiremos,
em um primeiro momento, de dados obtidos por meio de um questionário, respondido por
professores/as das referidas escolas, e, num segundo trabalharemos com elementos
encontrados em outra pesquisa que oferece a possibilidade de discutir atravessamentos entre
uma determinada masculinidade e a medicalização.
Palavras-Chave: relações de gênero, sexualidades, escola, subjetividades,
medicalização.
Introdução
Influenciados pelos estudos foucautianos, somos convidados diariamente, em nossa
prática pedagógica, a nos atentarmos para as formas de funcionamento da maquinaria escolar
e de como nos constituímos como sujeitos neste espaço. A escola apresenta-se como uma das
mais importantes maquinarias de produção de sujeitos dentre as inauguradas na modernidade
(VEIGA-NETO, 2011). Ao mesmo tempo, contribuindo para alimentar a máquina, temos o
fato de praticamente todas as crianças passarem pela educação escolar, ou seja, vivenciarem a
experiência de relações que, muito além dos conteúdos programáticos das várias disciplinas,
1 Mestranda em educação na Universidade Federal de Juiz de Fora – FACED/UFJF. E-mail:[email protected] 2Mestre em educação pela Universidade Federal de Juiz de Fora – FACED/UFJF. Professor de história na rede municipal de Juiz de Fora. E-
mail: [email protected] 3Professor Adjunto da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: [email protected]
as constituem também de acordo com padrões culturais de seu grupo social, como no caso que
nos interessa neste trabalho: as questões de gênero e das sexualidades.
Embora reconheçamos que a escola seja apenas um dos espaços educativos para
nossas crianças e adolescentes – visto que a educação e formação acontece em todas as nossas
relações sociais como família, igrejas, meios de comunicação, redes sociais, etc. - é da escola
que nos ocuparemos neste texto, pois somos professores da educação básica que, por meio de
nossas pesquisas, nos encontramos em um programa de pós-graduação em educação. Assim,
nosso encontro neste texto se deu a partir do desejo de realizar pesquisas que surgem destas
experiências como docentes.
Nosso diálogo acontecerá a partir do encontro entre duas pesquisas. Uma em
andamento, cujo objetivo é problematizar as ações de professores/as das escolas municipais
de Juiz de Fora ao abordarem os temas gênero e sexualidades e outra, já concluída, que
oferece a possibilidade de discutir atravessamentos entre a produção de uma determinada
masculinidade e seus atravessamentos com a medicalização e a escola.
Como docentes, lidamos com um cotidiano escolar que se desdobra na esteira de
situações corriqueiras, fortuitas e às vezes incomuns, dentro e fora da sala de aula, nas mais
distintas situações de aprendizagem, no âmbito das quais se (re)constroem saberes, sujeitos,
identidades, diferenças, hierarquias, possibilidades (CAMARGO, ANA MARIA FACHIOLLI
& MARIGUELLA, MÁRCIO 2007, p.27). Nesse sentido, é possível pensar em como temos
nos posicionado ao perceber, assumir e discutir as situações que se descortinam todo o tempo,
trazidas por alunos/as, colegas e comunidade, que podem passar como que despercebidas ou
ignoradas. Entretanto, muitas situações e ações relacionadas às questões de gênero e
sexualidades atuam na construção dos sujeitos escolares e estão, ainda que não
assumidamente, fazendo parte do currículo – oculto4 ou formal - e da dinâmica da escola.
Para essa busca nos debruçamos em leituras e discussões, partindo da perspectiva pós-
estruturalista e autoras e autores que com ela dialogam como Michel Foucault, Tomás Tadeu
da Silva, Ana Maria Faccioli de Camargo, Márcio Mariguela, Rogério Diniz Junqueira, Jane
Felipe, Guacira Lopes Louro, Anderson Ferrari e outros/as, que, ao apontarem possibilidades
4 O currículo oculto é constituído por todos aqueles aspectos do ambiente escolar que, sem fazer parte do currículo oficial, explícito,
contribuem, de forma implícita para aprendizagens sociais relevantes [...] o que se aprende no currículo oculto são principalmente atitudes,
comportamentos valores e orientações [...] como ser homem ou mulher, como ser heterossexual ou homossexual, bem como a identificação
com uma determinada raça ou etnia. (Silva, 2002: 78-79)
de visões diversas da escola, nos auxilia a aguçar o olhar acerca de como cada aluno/a se faz
perceber no universo da escola, e como nós, docentes, nos inserimos e atuamos com eles neste
universo. Dagmar Meyer (2010) nos auxilia a pensar a escola enquanto instituição, e nosso
olhar sobre ela, ao sugerir que
O olhar intensivo e extensivo posto sobre os corpos das crianças, dos jovens e dos
adultos ganha em atenção e torna-se mais minucioso quando se volta para o gênero e
a sexualidade. Não seriam essas, afinal, as questões primeiras que são lançadas aos
indivíduos? A "definição" sexual e de gênero resulta central; ela se constitui, via de
regra, na referência primordial sobre os sujeitos. (MEYER, DAGMAR
ESTERMANN (2010. P.5)
Partindo dessa afirmação podemos pensar nas ações e atitudes da escola frente ao
desafio de conviver com as diferenças e subjetividades,onde o currículo, reiteradamente,
surge como norma a ser adotada, e achamos factível que este mesmo currículo possa ser
pensado como campo de produção, contestação e disputas; que abriga relações de poder,
formas de controle, possibilidades de resistência/conformismo, e, nesse currículo colocado em
ação, os universos simbólicos e desiguais se enfrentam ao largo de processos de resistência
(JUNQUEIRA, ROGÉRIO DINIZ. 2013).
Na parte inicial deste trabalho, apresentaremos a proposta de uma pesquisa de
mestrado cuja questão central é buscar perceber como os/as professores/professoras estão
abordando (de forma consciente ou não) as discussões de gênero e sexualidades em suas
aulas, no segundo segmento do ensino fundamental, em discussões nas diferentes áreas e
conteúdos. Como base de discussão recorreremos à forma como os discursos acerca das
relações de gênero e sexualidade ainda encontram respaldo nas diferenças biológicas e como
essas, muitas vezes, fazem com que homens e mulheres admitam características inatas ao
sujeito masculino e ao sujeito feminino como definidoras de suas maneiras de viverem seus
desejos e práticas sexuais admitindo a heterossexualidade como norma e,como via de regra,
prática social única, aceitável e possível.
Consideramos, como Jane Felipe,que gênero deve ser entendido como um conceito
relacional que amplia as discussões em torno da constituição das feminilidades e das
masculinidades, uma vez que homens e mulheres são constituídos a partir das interações e
referências recíprocas que os/as constituem (FELIPE, JANE. 2010). Écom essa autora que
pensamos poder inferir que os corpos que circulam pelo universo da escola são múltiplos,
variados e, às vezes,contrastantes.
Os corpos e seus significados na escola e para além dela, como potencialidades
nos processos de formação
Pensando os corpos que habitam e circulam nos espaços onde se desenvolvem os
processos que compõem a educação de crianças, jovens e adultos, podemos problematizar que
importância é dada a esses corpos. Como eles se diferenciam e são diferenciados por nós e
pelos papéis que desempenhamos nesses espaços? Como tantos e variados corpos são vistos,
olhados e significados nesses espaços e no desenrolar de todos os processos que ali se
instalam? Nosso interesse de pesquisa está nas discussões de gênero e sexualidades presentes
no universo que abarca a escola e seus atores e pensamosque não é possível conduzir essa
discussão se ignorarmos a importância fundamental do corpo e de suas representações dentro
desses espaços e com todos os seus significados, já que o gênero e as sexualidades são
ancorados em corpos.
Uma primeira questão que se impõe ao discutirmos o tema “corpo”, em que há a relevância
de considerá-lo em diferentes aspectos e dimensões, é a necessidade de aceitarmos a condição de que
somos sujeitos-corpos, isto é, que o corpo como parte de nossa identidade, de nossa unidade de
existência é que nos torna visíveis, presentes e nos permite circular no mundo. Esta ideia nos traz o
entendimento de que, nas ações e atitudes que realizamos, pode-se observar três enfoques evidentes: o
biológico, o psicológico e o social, além de outras possibilidades de abordagens relacionadas, como
antropológicas, econômicas, históricas, que podemos considerar imbricadas com as anteriores.
Jefrey Weeks (2015), nos lembra que
na medida em que a sociedade se tornou mais e mais preocupada com as vidas de
seus membros – pelo bem da uniformidade moral; da prosperidade econômica; da
segurança nacional ou da higiene e da saúde -, ela se tornou cada vez mais
preocupada com o disciplinamento dos corpos e com a vida sexual dos indivíduos
(p.52).
Considerando a ênfase dada a essa forma de ver e discutir os corpos e as sexualidades,
que, de acordo com Foucault (2011), assume maior destaque a partir do século XVIIIquando
ocorre a “colocação do sexo em discurso”, este tema, “em vez de sofrer um processo de
restrição, foi, ao contrário, submetida a um mecanismo de crescente incitação” (p. 19). O
corpo e a sexualidade como temas de discussão foram submetidos ao crivo da palavra, ao
controle institucional sobre o que se diz e como se diz.
Para Foucault (2011), há em torno e a propósito do sexo uma verdadeira explosão
discursiva. Esse autor enfatiza que
é preciso ficar claro. Talvez tenha havido uma depuração – e bastante rigorosa – do
vocabulário autorizado. Pode ser que se tenha codificado toda uma retórica da alusão
e da metáfora. Novas regras de decência, sem dúvida alguma, filtraram as palavras:
polícia dos enunciados. Controle também das enunciações: definiu-se de maneira
muito mais estrita onde e quando não era possível falar dele (...). É quase certo ter
havido aí toda uma economia restritiva. Ela se integra nessa política da língua e da
palavra – espontânea por um lado e deliberada por outro – que acompanhou as
redistribuições sociais da época clássica. (p. 23-24).
Na escolapodemos observar de que forma diferentes marcas se incorporam ao corpo
a partir de distintos processos nela presentes. Mas não apenas nela, visto que no meio social
há sempre várias pedagogias em circulação que agem continuamente, contribuindo para essa
construção. Filmes, música, revistas, livros, imagens e propagandas são também
possibilidades pedagógicos que estão, o tempo todo, a dizer de nós, seja pelo que mostram ou
pelo que ocultam. Dizem também de nossos corpos e, por vezes, de forma tão sutil que
podemos nem mesmo perceber o quanto somos capturadas/os e produzidas/os pelo que se diz
(GOELLNER, 2010, p.29).
Os caminhos do Campo e os primeiros resultados
Para a pesquisa em questão, a escolha metodológica foi por trabalhar partindo de um
questionário objetivo, com questões diretas, que funciona como primeiro registro das
narrativas dos/das docentes das três escolas escolhidas como campo, além de registros, em
diário de campopara, a partir daí, construir narrativas que possibilitem problematizar as
condições de emergência das questões de gênero e sexualidades nesses espaços.
Os participantes da pesquisa são professoras e professores de três escolas do município
de Juiz de Fora, situadas na área urbana da cidade, em cujas sedes são oferecidos o segundo
segmento do ensino fundamental - 6º ao 9º ano da educação básica. Em uma delas temos
turmas de educação de jovens e adultos – EJA. A partir das respostas obtidas nos 36
questionários preenchidos, 06 docentes foram escolhidos para a realização de três encontros
em que, por meio de grupos focais, serão discutidas e problematizadas as respostas recebidas.
Destes 36 questionários, é possível identificar potentes informações, ainda que
algumas estejam escritas de forma breve, em respostas curtas. Percebemos que a maioria entre
os/as docentes que os preencheu foram professoras (27). Muitas das respostas dadas são
resumidas, mas nem por isso, menos esclarecedoras, como por exemplo “Trata-se de um bom
espaço, principalmente na disciplina de ciências”, “sim, é um bom espaço”5.Essa afirmação
sinaliza que os/as professores/professoras admitem que a escola é um espaço adequado para
tal o diálogo acerca destes temas. Com frequência argumentam que falta “preparo” a si
mesmos/mesmas e aos/às demais para desempenharem bem esse trabalho: “Não me sinto
preparada para essa discussão”, são assuntos polêmicos e não estamos preparados”. Com
base nisso, podemos problematizar a formação dos/das profissionais da educação, pois, a
maioria dos cursos de graduação/licenciatura, ou não têm, ou não aprofundam suas discussões
relacionadas a gênero e sexualidades, mantendo-as nas disciplinas eletivas/optativas e não as
elevando ao patamar de necessidade primária de discussão no campo da educação.
Nos últimos anos, as ações de formação se fortaleceram com o Programa Brasil sem
Homofobia, em que pese sua desaceleração atual, mas serviu nos anos anteriores para
fomentar um projeto que há muito partia de uma demanda de professores e professoras
(FERRARI, ANDERSON. 2014), o que vem reforçar a necessidade de discutir e investir em
novas e mais potentes modalidades de formação.
Notamos que, ao falarmos de sexualidades e gênero, palavras que estão colocadas nas
perguntas que compõem o questionário aplicado, ainda que, de forma indireta e velada, é
possível perceber que as homossexualidades dominam a discussão e são diretamente
relacionadas aos episódios de discriminação. Uma afirmação, lida em dois dos questionários
recebidos chamou particularmente a nossa atenção: o/a professor/a faz a afirmação de que
“apesar de haver discriminação (...) os alunos respeitam uns aos outros nesse sentido”.
Surge aqui a seguinte questão: se há discriminação, onde está o respeito?
Recorremos novamente a Anderson Ferrari (2014) que nos auxilia nesse diálogo no
qual buscamos compreender as noções de discriminação que estão imbricadas nesses
conceitos colocados nas falas dos/das professores/professoras:
5Sempre que utilizar-me das falas de docentes, retiradas dos questionários recebidos, estas estarão transcritas entre aspas e em itálico, para
diferenciar do restante do texto.
O debate em torno das homossexualidades, é algo social e cultural e pertence a este
momento histórico. Fruto de construção que não é de agora, o fato é parte do nosso
cotidiano, queiramos isso, ou não, ele está nas escolas, porque está na sociedade de
forma geral; ele está nas mídias, basta um olhar atento aos noticiários, às
telenovelas, aos programas de rede aberta de televisão para constatar que a questão
da homossexualidade é quase diária. Há um movimento de mão dupla, que organiza
e constrói esse debate (...) Movimento que nos obriga a olhar com cuidado para tudo
isso, uma vez que, independente da escola realizar e participar ou não desse
movimento, ele está sendo construído e chega às escolas(P.19).6
Várias respostas recebidas se referem a episódios de discriminação como “piadas” e
“piadinhas” permitindo-nos afirmar que a discriminação e o preconceito ainda aparecem,
muitas vezes, disfarçados de “brincadeiras”. A palavra “piadinha”, para se referir a formas
preconceituosas que um aluno usa para se referir a outro, aparece 6 vezes, assim como o
termo “preconceito”, como algo presente no cotidiano escolar. A palavra “discriminação”
também aparece como prática em 5 dos questionários e em 1 a professora cita o
“xingamento”como uma forma de tratamento. O uso do termo “homossexualismo”, ao invés
de homossexualidade, ainda é utilizado por uma das docentes, embora em todos os
documentos advindos de estâncias federais e do município a que tivemos acesso, assim como
nos textos acadêmicos nos últimos 10 anos, pelo menos, o termo homossexualidade seja o
adotado.
O uso do termo “opção sexual” também aparece no texto dos/as docentes, embora há
muito vem se discutindo sua substituição por, por exemplo, “orientação sexual”, visto que não
há nada que ateste que se trata de uma escolha, o fato de alguém ser homossexual,
heterossexual, transexual, ou qualquer outra preferência erótica ou orientação do
desejo.Consideramos pertinente realçar que o termo “orientação sexual” também nos parece,
ainda, um tanto problemático, mas em relação à “opção sexual” acreditamos que seja
preferível.
Como afirma Ferrari (2014),“é no espaço escolar que podem ocorrer a apreensão e a
transformação das palavras alheias em palavras próprias, o que demonstra, de certa forma, a
influência e o poder da Escola e das relações que se desenvolvem em seu interior”, e o peso
das palavras, dos termos usados e seus significados, quem faz uso deles, direta ou
indiretamente, contribui para o processo de discriminação ou desconstrução deste na escola e
6Fiz ajustes de forma do texto, para adequá-lo à sequência de minha escrita, tomando cuidado para não perder sentido ou interferir nas
informações do autor.
na sociedade. Daí a relevância de discutir os papeis a serem desempenhados pela escola e seus
atores.
Na resposta de uma professora de artes visuais, encontramos, a respeito do tratamento
de questões das sexualidades e de relações de gênero durante as aulas: “Não é um tema
incluído na proposta pedagógica. Abordagem espontânea”. Isso nos leva a pensar na
relevância de uma maior colaboração interdisciplinar entre as áreas/disciplinas, visto que, na
Proposta Curricular de Ciências do município de Juiz de Fora (2012) a temática é sugerida.
Em outra resposta, uma docente aponta a escola como um bom espaço para as discussões de
gênero e sexualidades, mas enfatiza que seja “Começando pela aula de ciências e anatomia
do corpo”. Aqui destacamos a importância de se abrir o leque de possibilidades de discussão
do tema extrapolando o estudo anatômico, pois parece ainda haver uma crença de que o
assunto tem endereço certo: a aula de ciências e o foco no biológico.
Em mais um questionário, ainda, uma professora que declara abordar as questões de
gênero e sexualidades em suas aulas concorda que a escola é um bom espaço para discussão,
mas também faz a ligação dos temas com a disciplina de ciências e deixa claro que o assunto
é amplo e que os preconceitos precisam ser combatidos, assim como a violência. Em especial
ela cita um aluno que é menos tolerante, ao contrário da maioria, segundo ela, “em função de
sua religião, alegou não gostar de comentar o assunto e disse não ter gostado de assistir aos
vídeos sobre o tema”. A afirmação dessa professora deixa transparecer o quanto as práticas e
visões religiosas estão presentes na escola e como essas aprecem na fala dos/as alunos/as por
meio da utilização de diferentes recursos e materiais na abordagem da temática.
Partindo da afirmação da docente, destacada acima, podemos pensar com Tatiana
Lionço e Débora Diniz, (2009) ao dizerem que“a escola é um espaço de construção de novas
práticas sociais e saberes compartilhados. A vida escolar não se resume à socialização formal
de crianças e adolescentes, pois é também uma experiência potencial de revisão e crítica de
práticas sociais injustas e discriminatórias” (LIONÇO, TATIANA, DINIZ, DÉBORA. P.50).
Em mais um conjunto de respostas, outra professora se refere à escola como espaço de
discussão ao afirmar que a escola “para muitos alunos talvez seja o único espaço que permita
essa discussão com clareza e respeito”. É importante que os espaços da escola estejam
abertos e que as discussões sejam mantidas de forma ampla, podendo assim trazer mais alunos
e alunas para os debates e possíveis mudanças de paradigma. A escola que não se abre à
problematização das relações estabelecidas em seu espaçoafasta os/as alunos/alunas da
possibilidades de problematização de suas atitudes, bem como, as da própria instituição e da
comunidade na qual está inserida, pois, é sabido que “aliados, insulto e humilhação atuam na
objetivação, no silenciamento, na hierarquização e na marginalização de indivíduos e
grupos(...) tornando ainda mais difícil um reposicionamento individual e coletivo frente às
“verdades” constantemente reiteradas por preconceitos, estereótipos, normas e instituições
(JUNQUEIRA, ROGÉRIO. 2014. P. 36).
A produção de masculinidades e a medicalização
De acordo com o que conversamos até agora, percebemos a extrema importância das
problematizações propostas em nossas pesquisas, pois entre as tantas facetas das relações de
gênero e sexualidades que estabelecemos em nossas escolas, algumas podem suscitar fortes
incômodos, dores, sofrimentos e a medicalização como passaremos a discutir.
Na dissertação de mestrado intitulada “Entre Xaropes, Baleias e TDAHs: a escola e a
medicalização”, ver referências, defendida por um dos autores, cujo objetivo foi
problematizar os atravessamentos entre escola e medicalização de alunos/as da rede pública
municipal de Juiz de Fora, encontramos elementos que apontam para questões de gênero
relacionadas à medicalização de alunos (sexo masculino) nas referidas escolas. Esta pesquisa
realça, a nosso ver, a importância da problematização dessastemáticas nas e com as escolas.
No desenrolar da pesquisa que teve como uma das fontes os relatórios de
encaminhamento de alunos/as “problema” das escolas da rede pública do município à sua
respectiva Secretaria de Educação, encontramos, entre tantos motivos de encaminhamento, a
indicação ou sugestão de acompanhamento ou tratamentos médicos com vistas a melhorar o
relacionamento do/a encaminhado/a com a instituição escolar ou, mais especificamente, com
as normas e regras escolares. Parece-nos que, em sua maioria, eram casos de “indisciplina”
que eram encaminhados, embora em muitos deles houvesse a solicitação da intervenção de
um profissional de saúde como solução.
O interesse em pesquisar junto a tais documentos surgiu após o contato com Almeida
(2010) que pesquisando, com outros objetivos, no mesmo arquivo7, apontou a fala muito
7São documentos arquivados junto ao Departamento de Inclusão e Atenção ao Educando na Supervisão de Mediação e Conciliação (SMC)
da SME/PJF.
emblemática de uma escola que, em um encaminhamento, afirmava: “embora não seja
médica, acredito que o aluno tem algum distúrbio emocional e precisa de medicamento para
controlar sua conduta” (ALMEIDA, 2010, p. 60). Essa fala disparou a desconfiança de que
condutas indesejadas pelas escolas poderiam estar contribuindo para a medicalização de
crianças e adolescentes e foi um dos primeiros incômodos que motivaram e alimentaram a
pesquisa. Foi imenso o incômodo de perceber a forma banal como a escola apontada lida com
alunos/as atribuindo-lhes distúrbios e sugerindo medicamentos para “controlar sua conduta”,
seu comportamento, sua disciplina.
Envolvidos e atentos às discussões de gênero, logo percebemos seus atravessamentos
com as relações estabelecidas entre os envolvidos nos referidos documentos. Em sua grande
maioria, eram meninos os encaminhados por questões de “indisciplina”, brigas, desordens,
desrespeito às normas ou desatenção que geralmente resultavam, na visão das escolas, em
baixo aprendizado dos conteúdos ensinados. Em muitos desses encaminhamentos, a
medicalização que aqui trataremos como a transferência,para a área da saúde, de questões que
podem ser sociais, políticas ou econômicas -em nosso caso as educacionais - era sugerida
como solução.
Contribuindo com as observações que fazíamos junto aos documentos, encontramos
Luengo (2010) afirmando que são questões de indisciplina, e não de aprendizagem, que levam
muitas crianças e adolescentes aos consultórios médicos. São os agitados, os que não param
no lugar, os que perguntam ou se mexem muito, os que subvertem as normas, questionam e
quebram as regras que, vistos como portadores de Transtorno de Déficit de Atenção e
Hiperatividade (TDAH), são medicados como forma de melhorar seu comportamento em
relação às exigências escolares e, consequentemente, sua aprendizagem. São corpos indóceis
que são levados ao uso das chamadas drogas da obediência8, cujo consumo tem crescido
preocupantemente no Brasil e no mundo e têm o poder de calar, acalmar, docilizar e colocar
nos eixos aqueles e aquelas que não atendem às exigências da máquina escolar de produção
de corpos.
Os atravessamentos entre escola, medicalização e gênero ganharam mais destaque a
partir das considerações de Moysés (2013) e Luengo (2010) ao apontam que os meninos são
mais diagnosticados com TDAH do que as meninas. 80% dos diagnosticados com o
8 As drogas da obediência são medicamentos à base de metilfenidato e são mais conhecidas por seus nomes comerciais: Ritalina e Concerta.
transtorno são meninos de acordo com Leber (2013). O que pode estar por trás de tamanha
discrepância entre o número de diagnósticos emitidos para meninos e meninas? Seriam
questões hormonais, biológicas e individuais? Ou seriam questões de gênero?
Os estudos de gênero nos oferecem valiosas ferramentas para discutir a forma
diferenciada como educamos meninos e meninas em nossa sociedade, e também nas escolas, e
podem nos ajudar com a problematização dos dados acima. Não é preciso ser um/a
estudioso/a de gênero para perceber o quanto a educação oferecida/imposta aos meninos, por
meio das tantas relações sociais a que são expostos, os ensina/incentiva a serem agitados,
ativos ou hiperativos, agressivos e violentos, bem como, do quanto essas atitudes em
confronto com as exigências educativas, normativas e disciplinares das escolas podem entrar
em choque.
O relato de uma conversa acerca do aluno KA colhido junto ao um dos relatórios
utilizados por Cabral (2016), parece dizer dessa educação oferecida aos meninos:
Contribuindo para nossa argumentação, Felipe (2012, p. 223),aponta que
[...] a educação dada aos meninos é extremamente violenta, pois eles são vigiados –
pelos pais, pela escola – e em alguns casos, até perseguidos, se não apresentarem
comportamentos ‘dignos de macho’. Outro componente importante na construção de
uma masculinidade que se pretende hegemônica é a misoginia – desprezo por tudo
que possa parecer feminino.
Daí, pensamos poder atribuir a tal comportamento ora estimulado, ora exigido dos
meninos, como resposta a determinados padrões de masculinidades, poderem, ao extrapolar o
(Aluno KA, p. 85)
cabível ou aceitável pelas regras escolares, levarem tais meninos a serem tratados como
“indisciplinados” que precisam de médicos e de medicamentos para controlarem suas
condutas.
Outro elemento curioso que nos desperta para o tema deste artigo é fato de médicos
(homens) emitirem mais diagnósticos de TDAH para meninas em relação às médicas e
também o contrário, ou seja, médicas oferecem mais diagnósticos para meninos em
comparação com os médicos (Moysés, 2013). Este fato nos leva a tecer considerações acerca
do fato de sermos criados/educados com fortes marcações e diferenciações entre os gêneros e
o consequente desconhecimento, desconsideração ou desinformação de um em relação ao
outro. Médicos avaliam com sua visão masculina, provavelmente preconceituosa, o que deve
ser o comportamento adequado para uma menina enquanto médicas, por outro lado, fazem o
inverso.
Como podermos notar, a produção social de comportamentos de meninos e meninas
pode estar levando os primeiros à medicalização. Como a constituição dos gêneros é
relacional, vamosaprendendo e ensinando os comportamentos de um em relação ou em
comparação com o outro. Ampliando nossa discussão, encontramos em Butler que a
heterossexualidade é construída em relação à homossexualidade(SALIH, 2012), como seu
oposto. Assim, pensamos poder atribuir à produção de determinada masculinidade vista como
naturalmente agitada, agressiva e ativa em oposição ou em temor à homossexualidade,
apontada como aproximação do feminino, como um importante elemento para explicar o fato
de termos mais meninos diagnosticados com TDAH do que meninas.
Breves considerações
Nosso objetivo, com este artigo, foi realçar a importância de discutir as temáticas de
gênero e sexualidades, junto às escolas, por meio das pesquisas em educação, pois elas podem
disparar políticas públicas, mobilizações sociais e educacionais que incrementem a
problematização da produção de hierarquias e privilégios que geram “opressões e clivagens
concernentes tanto aos padrões heteronormativos, que historicamente modularam e modulam
as relações de gênero, quanto às dinâmicas de (re)produção de diferenças e
desigualdades”(JUNQUEIRA, ROGÉRIO DINIZ. 2014).
As demandas atuais por uma educação e uma sociedade mais equânimes e
democráticas exigem de todos/as nós atuação no sentido de alterar as relações de poder que
criaram e sustentam uma escola que ainda convive com práticas discriminatórias,
preconceituosas, normatizantes e até medicalizantes. É urgente nos dedicarmos a
repensar/desconstruir a lógica das regras e formas de convívio que estão postas, investindo em
novas concepções de currículo e novas maneiras de ensinar e aprender em nossas escolas.
Referências
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