Educao e Ideologia
Portugal, ptria de heris: a figura histrica em contexto
educativo
(1926-1974
Olga Maria Pereira Ribeiro Martins Pinto
Tese de Doutoramento em Histria
Especialidade de Histria Contempornea
Volume I
maro 2014
Modelo Formal de Apresentao de Teses
e Dissertaes na Faculdade de Cincias Sociais e Humanas
Olga Maria Pereira Ribeiro Martins Pinto
Tese de Doutoramento em Histria
Especialidade de Histria Contempornea
Volume I
maro 2014
i
DECLARAO
Declaro que esta Tese de Doutoramento o resultado da minha investigao pessoal e
independente. O seu contedo original e todas as fontes consultadas esto devidamente
mencionadas no texto, nas notas e na bibliografia.
A candidata,
_______________________________________________
(Olga Maria Pereira Ribeiro Martins Pinto)
Lisboa,..........de....................de 2014
ii
DECLARAO
Declaro que esta Tese de Doutoramento se encontra em condies de ser apreciada
pelo jri a designar.
A orientadora,
___________________________________________________
(Maria Cndida Ales Mouro Dias Barroso Proena)
Lisboa, .de..de 2014
iii
AGRADECIMENTOS
A realizao do presente trabalho tornou-se possvel graas ajuda de vrias pessoas,
ligadas a entidades e instituies. Deste modo queremos agradecer, em primeiro lugar,
Professora Doutora Maria Cndida Proena, que acedeu gentilmente a ser orientadora deste
estudo para alm de nos ter incentivado para o investimento no tema desta dissertao.
Apresentamos, ainda, o nosso sincero reconhecimento pelo auxlio prestado ao
Professor Doutor Fernando Rosas, docente da Universidade Nova de Lisboa.
Expressamos, tambm, o nosso agradecimento aos Conselhos Executivos das Escolas
Secundrias: Passos Manuel; Cames; Pedro Nunes; Filipa de Lencastre e Maria Amlia Vaz
de Carvalho que disponibilizaram os seus recursos materiais e pessoais para tornar possvel
parte da investigao realizada. Aqui queremos expressar o nosso especial agradecimento ao
Dr. Fernando Faria (Escola Secundria Passos Manuel) que nos ajudou imenso na pesquisa
solicitada bem como a Dra. Manuela Sena (Escola Secundria Filipa de Lencastre) e a Dra.
Ftima Cristo (Escola Secundria Maria Amlia Vaz de Carvalho).
Tambm queremos agradecer ao Padre Francisco Rodrigues (Vice-Postulador da
Causa da Canonizao do Beato Nuno) que nos facultou informao importante; ao pessoal
auxiliar do Arquivo Histrico da Educao e Centro de Documentao do Ministrio da
Educao que manifestaram a sua total disponibilidade para colaborar na pesquisa documental
onde destacamos, de forma especial, o apoio dado pela D. Maria do Cu Miguel Teixeira e a
Dra. Anabela do , Coordenadora do j extinto Instituto Histrico da Educao, sem o qual a
investigao em arquivo ficaria muito aqum das expetativas. No arquivo fotogrfico da Torre
do Tombo queremos fazer um especial agradecimento ao Dr. Fernando Costa pelo apoio e
pela ajuda demonstrados. Um muito obrigada ainda Dra. Ana Lopes, Coordenadora da
Sociedade Histrica da Independncia de Portugal que nos ajudou na pesquisa de fontes e
tambm no queremos deixar de expressar o nosso agradecimento ao alfarrabista Antnio
Brando pela aturada diligncia que realizou a nvel nacional para encontrar as obras em falta
da coleo Grandes Portugueses e tambm ao Professor Manuel Caixaria que nos ajudou na
reviso da anlise literria das colees que foram objeto de estudo neste trabalho.
Por fim dedico esta dissertao minha filha e restante famlia que me auxiliou no
meu percurso de vida, em especial ao meu marido que desde sempre me demonstrou o seu
apoio incondicional em mais uma das etapas decisivas da minha vida profissional e aos
colegas de profisso e amigos que sempre acreditaram na realizao deste longo trabalho.
iv
RESUMO
A presente dissertao foi elaborada no mbito do Curso de Doutoramento em
Histria, especialidade de Histria Contempornea. objetivo deste estudo analisar o
discurso histrico e ideolgico por detrs da tica e mentalidade que caraterizaram a escola e
o ensino no perodo que medeia entre 1926 e 1974.
O quadro conceptual do regime foi marcado por um forte pendor ideolgico que
influenciou a historiografia oficial do regime. Esta formou durante dcadas a mentalidade
histrica das geraes desse perodo direcionada para valores morais que tinham em vista a
promoo de atitudes e comportamentos tendentes ao patriotismo. Nesta perspetiva,
assumiram um papel de extrema relevncia no processo de ensino/aprendizagem da Histria,
um conjunto de figuras histricas cuja ao refletia os princpios ideolgicos que o regime
pretendia transmitir e fazer prevalecer.
A ideologia do Estado Novo produzia as suas prprias representaes das figuras
histricas. A construo das tipologias ideais do regime situava-se numa conceo pr
concebida das figuras. O Estado Novo lanou mo de um investimento mtico e imaginrio
relativamente a vrias figuras histricas que deram o seu contributo em perodos decisivos do
percurso da Histria nacional, promovendo o seu engrandecimento.
O sistema educativo do Estado Novo empreende um tipo de socializao poltica que
se baseava essencialmente no processo de identificao do aluno com as figuras heroicas da
nao, da a necessidade de questionar as vrias imagens que os portugueses foram criando de
si prprios e a importncia do conhecimento dos mitos histricos como meio de auto
conhecimento de uma comunidade nacional e da sua personalidade cultural para compreender
o tipo de sociedade que pretendia o regime construir.
O regime empreende uma estratgia de camuflagem idealista dos seus heris
imaculados que os torna nicos, aureolados por uma aura de herosmo e santidade que lhes
permitia ascender a um plano superior, sacralizando-os, tornando-os exemplos para o futuro,
nos quais as geraes vindouras se deveriam rever, por um lado para venerar o passado
histrico nacional e, por outro, para desejarem imitar o modelo comportamental destas figuras
que colocam Portugal no caminho do progresso. Desta forma, estes heris tornaram-se cones
na Histria e na mentalidade histrica e cultural da sociedade do Estado Novo, onde a
educao dirigida em prol deste fim ideolgico e nacionalista omitia uma vertente relevante
da memria histrica da nao.
v
Para a realizao deste estudo foi delimitado um corpus constitudo por diplomas
legais, programas, manuais escolares e colees de literatura infantojunenil que foi objeto de
anlise. Este corpus foi analisado segundo a seguinte matriz:
- a tipologia dos contedos abordados,
- o discurso histrico e a forma como este apresentado ao aluno,
- o aproveitamento ideolgico da figura histrica no mbito escolar.
vi
Tese
Educao e Ideologia
Portugal, ptria de heris: a figura histrica em contexto educativo
(1926-1974
Autor
Olga Maria Pereira Ribeiro Martins Pinto
PALAVRAS-CHAVE: Ideologia, (ensino da) Histria, identidade nacional, memria
histrica, smbolo
vii
ABSTRACT
This dissertation was prepared under the PhD course in History, specializing in
Contemporary History. The objective of this study is to analyze the historical and ideological
discourse behind the ethics and mentality that featured the school and teaching in the period
between 1926 and 1974.
The conceptual framework of the regime was marked by a strong ideological bias that
influenced the official historiography of the system. This formed during decades of historical
mentality of the generations of that period directed to moral values that were intended to
promote attitudes and behaviors leading to patriotism. In this perspective, took an extremely
important role in the teaching/learning of the History, a set of historical figures whose actions
reflected the ideological principles that the regime intended to convey and enforce.
The ideology of the Estado Novo produced their own representations of historical
figures. The building typologies "ideals" of the system was in preconceived conception of
characters. The Estado Novo resorted to a mythical and imaginary investment in a range of
historical characters whom have contributed in decisive periods of the course of national
history, promoting their aggrandizement.
The educational system of the Estado Novo embarks on a new kind of political
socialization based essentially on the process of student identification with the heroic figures
of the nation, hence the need to question the various images that the Portuguese were creating
for themselves and the importance of knowledge of historical myths as a means of self-
knowledge of a national community and its cultural values to understand the kind of society
the system wanted to build.
The system undertakes a strategy of concealment of its immaculate idealistic heroes
that makes them unique, haloed by an aura of heroism and holiness that allowed them to
ascend to a higher level, sacralizing them, making them examples for the future in which
generations to come should review, on firstly to honor the national past, and secondly, to wish
to imitate the behavioral model of these figures that put Portugal in the way of progress. Thus,
these heroes became icons in history and historical and cultural mindset of the society of the
Estado Novo, where education directed towards this end and nationalist ideological omitted
an important part of the historical memory of the nation.
viii
For this study a corpus was delimited by legislation, programs, textbooks and youth
and childrens literature collections that were analyzed. This was analyzed according to the
following matrix:
- the type of content covered,
- the historical discourse and how it is presented to the student,
- the use of ideological historical figure in the school.
ix
Thesis
Education and Ideology
Portugal, land of heroes: a historical figure in the educational context
(1926-1974)
Author
Olga Maria Ribeiro Pereira Pinto Martins
KEYWORDS: Ideology, (teaching) history, national identity, historical memory, symbol
x
NDICE
Volume I
INTRODUO ...................................................................................................................................................... 1
CAPTULO I: ESTUDO DE CASO ...................................................................................................................... 5
I.1. FORMULAO DO PROBLEMA ....................................................................................................................... 5 I.2. OBJETIVO DO ESTUDO ................................................................................................................................. 19 I.3. ESTADO DA QUESTO ................................................................................................................................. 20 I.4. DESCRIES DE TERMOS ............................................................................................................................. 22
CAPTULO II: ESTRUTURA CONCEPTUAL ................................................................................................. 23
II.1. DEFINIO DA PROBLEMTICA .................................................................................................................. 23 II.2. DEFINIO DO OBJETO .............................................................................................................................. 35
CAPTULO III: METODOLOGIA ..................................................................................................................... 37
III.1. SELEO DE TCNICAS ............................................................................................................................. 37 III.2. SELEO DE TEMAS .................................................................................................................................. 38 III.3. RECOLHA DE DADOS ................................................................................................................................. 38 III.4. ANLISE DOS DADOS ................................................................................................................................ 39
CAPTULO IV: RESULTADOS E DISCUSSO ............................................................................................... 41
IV.1. DESCRIO DOS RESULTADOS.................................................................................................................. 41 IV.1.1. As concees ideolgicas do Estado Novo ...................................................................................... 41
IV.1.1.1. A escola nacionalista e o Homem Novo ................................................................................................ 41 IV.2. O IMPRIO: A MENINA DOS OLHOS DO REGIME ...................................................................................... 86 IV.3. O PAPEL DA PROPAGANDA ....................................................................................................................... 98
IV.3.1. As Organizaes Paramilitares e a Educao: MP, MPF e OMEN ............................................... 98 IV. 3.2. As Comemoraes Centenrias .................................................................................................... 124
IV.4. A FIGURA HISTRICA ............................................................................................................................ 148 IV.4.1. A explorao da figura histrica em contexto educativo ............................................................... 148
IV.4. 1.1. Os mitos fundadores e (re)fundadores .................................................................................................... 174 IV.4.1.2 Os construtores do imaginrio imperial .................................................................................................... 195 IV.4.1.3. Mrtires, santos e exemplos de moralidade ............................................................................................. 224 IV. 4.1.4. Os heris da Restaurao da Independncia ........................................................................................... 231 IV.4.1.5. As figuras mticas do Estado Novo ......................................................................................................... 233 IV.4.1.6. As figuras femininas ................................................................................................................................ 262
IV. 5. A IDEOLOGIA E O ENSINO DA HISTRIA ................................................................................................. 264 IV. 5.1 As reformas programticas............................................................................................................ 291 IV.5.2. Anlise de resultados ..................................................................................................................... 329
IV.6. MANUAIS ESCOLARES ............................................................................................................................ 336 IV.6.1. Introduo...................................................................................................................................... 336 IV. 6.2. Anlise dos resultados .................................................................................................................. 345
IV.7. LITERATURA INFANTOJUVENIL .............................................................................................................. 373 IV.7.1. Breve enquadramento da sua evoluo ......................................................................................... 373 IV.7.2. A biblioteca escolar como instrumento educativo ......................................................................... 388 IV.7.3. Anlise das Colees Ptria, Grandes Portugueses e Grandes Portuguesas .................. 391
CONCLUSES .................................................................................................................................................. 460
xi
Volume II
BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................................................ 475
OBRAS DO PERODO CRONOLGICO EM ANLISE ............................................................................................. 476 OBRAS DE CONSULTA ...................................................................................................................................... 501 OBRAS RELATIVAS EDUCAO..................................................................................................................... 518
LEGISLAO SIGNIFICATIVA ..................................................................................................................... 528
LISTA DE ANEXOS .......................................................................................................................................... 538
Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris
1
INTRODUO
A abordagem que fazemos no nosso trabalho insere-se no contexto da Histria das
Mentalidades que retrata a evoluo do quadro mental da sociedade, num esforo de
reconhecimento da identidade nacional ou conscincia da alteridade numa esfera que modela
a conceo que ns, portugueses, temos sobre ns prprios, ou seja, as imagens dominantes
que os portugueses traaram de si mesmos ao longo dos tempos.
O sentido da nacionalidade e do nacionalismo uma questo que se coloca atualmente
como uma questo relevante cada vez mais pertinente no contexto da identidade nacional e da
memria coletiva. Todas as sociedades precisam de ter smbolos que funcionem como
referncias que lhes deem continuidade e ligao a um passado.
A memria nacional que exprime ideologias presentes na ao do Estado incutida
desde muito cedo na escola atravs do ensino. A escola a mentora do pensamento e da
conscincia abstrata do aluno e tem uma funo fundamental na construo das
representaes e do simbolismo, fatores estruturantes da memria coletiva.
A formao das mentalidades est intimamente relacionada com a cultura escolar, mais
concretamente com os programas escolares, porque desde sempre foi atribudo escola o
papel de instrumento privilegiado nesta funo. Neste sentido, a anlise dos contedos
programticos bem como dos manuais escolares constitui a base para avaliar o discurso
escolar e as orientaes que prevaleceram no ensino ao longo do tempo. Esta questo remete-
nos para a construo do imaginrio nacional que est intimamente relacionado com a funo
que a cultura escolar desempenha, especialmente a disciplina de Histria precocemente
introduzida nos currculos escolares por apresentar um papel determinante na formao da
conscincia nacional.
O entendimento que temos do mundo est ligado causalmente a situaes do passado
uma vez que este influencia a nossa vivncia do presente, por isso difcil omitir o passado
do nosso imediato. Segundo Paul Connerton, as experincias do presente dependem das
memrias que temos do passado e estas justificam os acontecimentos do presente1.
A memria um conceito muito lato e complexo na medida em que congrega formas de
representao que se interligam entre si mas que nem sempre se orientam no mesmo sentido.
A memria coletiva e a memria histrica comportam smbolos e cdigos de representao
dos factos. No entanto, a memria coletiva () o que fica do passado na vivncia dos
1 CONNERTON, Paul, 1993, Como as sociedades recordam, trad. de Maria Manuela Rocha, Oeiras, Celta
Editora, p.2.
Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris
2
grupos ou aquilo que os grupos fazem do passado. () Evoluem juntamente com os grupos
para quem so um bem simultaneamente inalienvel e manipulvel, um instrumento de luta e
de poder ao mesmo tempo que um valor afetivo e simblico. Por sua vez, a memria
histrica () fruto de uma tradio sbia e cientfica, ela prpria a memria coletiva do
grupo dos historiadores. () Analtica e crtica, precisa e distinta, tem a ver com a razo que
instri sem convencer. Esta filtra, acumula, capitaliza e transmite; a memria coletiva
conserva por um momento a recordao de uma experincia intransmissvel, apaga e
recompe a seu gosto, em funo das necessidades de momento, das leis do imaginrio e do
retorno dos recalcamentos2.
A afirmao da memria nacional fundamenta-se em representaes construdas ao
longo do tempo atravs das continuidades e descontinuidades, tal como defende Claud Gilbert
Dubois: La conscience nationale n`est pas un fait universel et elle n`a rien d`inn. Elle est le
fruit d`une longue laboration historique : elle ne se trouve pas au dbut de l`histoire, comme
rfrence une commune naissance ou une race, mais encours d`histoire, comme tape
d`une prise de conscience de la socialit humaine. Elle n`est pas non plus en bout d`histoire,
comme le thorisent les idologies nationalistes3.
A identidade nacional construda atravs de processos de identificao dos cidados
de um pas e de diferenciao, relativamente aos outros que se traduzem na produo de
imagens de representaes refletindo-se nos vrios tipos de discursos culturais, mas sobretudo
no discurso pedaggico. No que respeita ao discurso histrico veiculado pela escola, este
prende-se com os elementos subjetivos que caraterizam essa identidade. A psicologia coletiva
expressa em termos de atitudes, comportamentos e valores apresentada como marca
identificadora de um povo e de uma nao.
A questo da identidade nacional um tema atual porque levanta problemticas
relacionadas com a ideia que temos de ns prprios, com o conjunto de valores pelos quais
nos regemos, e com aquilo que entendemos ser um esforo de conservao da memria
nacional. Este conceito explorado desde h sculos est na base da atualidade cultural e tem
vindo a evoluir e a ganhar novos contornos ao longo dos vrios perodos da histria, pois
elaborado atravs de uma construo que se faz por meio de contradies e antagonismos e,
nem sempre de uma forma contnua.
2 LE GOFF, Jacques e, Chartier, Roger (dir.), 1990, A nova Histria, trad. de Helena Arinto e Rosa Esteves,
Coimbra, Almedina, p.p 451-452. 3 DUBOIS, Claud G., 1991, Mythologies des origines et Identit National in: BETHENCOURT, Francisco e
Curto, Diogo Ramada, 1991, A memria da Nao, Colquio do Gabinete de Estudos de Simbologia, Lisboa,
Livraria S da Costa, p.43.
Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris
3
A segunda metade do sculo XX marcou a evoluo das sociedades e a importncia do
papel que a memria coletiva desempenhou nesse processo evolutivo. Esta constitui a
temtica das sociedades desenvolvidas ou em vias de desenvolvimento. A memria um
elemento fundamental da identidade coletiva, cuja busca uma das principais atividades das
sociedades atuais, talvez num esforo de compreender essa identidade que simultaneamente
um instrumento e um objetivo de poder.
O conceito de identidade nacional apresentou uma tendncia para evoluir no sentido de
uma transformao significativa, sobretudo a partir dos anos 70 com a introduo do conceito
de globalizao proporcionada pelo surgimento do ciberespao inicialmente nos pases mais
desenvolvidos e, mais recentemente, divulgado em grande escala por todo o mundo. Mas, se a
transformao do conceito de identidade um sinal de evoluo dos tempos tambm um
sinal de alterao de valores e da memria nacional de um pas. As vantagens e desvantagens
desta evoluo s o tempo nos dar a conhecer talvez num futuro no muito longnquo. A
questo que se coloca que no presente o conceito de identidade uma noo muito
abrangente que no se restringe ao nosso pequeno espao nacional, a ns prprios ou ao
nosso ser portugus.
Atualmente fala-se de uma crise da memria coletiva e histrica, fruto de uma mudana
da vida atual, da forma como o homem moderno organiza e vive o tempo. As causas dessa
crise podero estar relacionadas com as transformaes sociais que trouxeram consigo um
sentimento de descontinuidade, compartimentao relativamente ao tempo histrico que leva
a esquecer a memria, o passado como conceito intimamente ligado ao futuro. Quanto a ns
esta crise poder antes ser uma afirmao de novas formas de socializao e de experienciar
memrias.
A identidade nacional um instrumento de autognose prprio de um pas. O conceito de
identidade nacional, a construo do Estado-Nao e a escolarizao so processos histricos
que esto e sempre estiveram intimamente ligados, passando por fases em que, por um lado, o
Estado exerce domnio sobre a escola e outras em que a escola o motor de novas relaes de
cidadania. A relao entre estas duas estruturas poltico-sociais converge para a imagtica que
melhor carateriza a modernidade atravs da narrativa histrica.
Se por um lado pertencemos a um espao global, com fronteiras imaginrias e se est
ultrapassada a ideia de espao nacional, tambm no podemos deixar de nos interessar pelo
estudo da nossa memria histrica, numa busca constante pela nossa identidade nacional que
cada vez menos se aprende a preservar.
Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris
4
inegvel que a memria histrica e o aproveitamento que dela foi retirado teve um
peso fundamental e repercusses visveis na formao do imaginrio histrico e na afirmao
das mentalidades das geraes escolarizadas durante o perodo que objecto de estudo no
presente trabalho. Esta problemtica afigura-se bastante atual, uma vez que a evocao das
figuras histricas materializa um sentimento de pertena capaz de mover uma sociedade.
Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris
5
CAPTULO I: ESTUDO DE CASO
I.1. Formulao do Problema
O que uma nao? Quem o povo que nela habita? O que um hino? O que uma
bandeira? Todas as questes colocadas tm uma resposta comum: todos fazem parte da
identidade de um territrio que se constri custa de realidades mas tambm de mitos.
O conceito de identidade nacional surge na Europa no perodo do Renascimento4 mas
refunda-se com o advento das Luzes atravs das teorias de Montesquieu e Rouseau.
sobretudo uma noo de carter poltico e cultural que implica uma conscincia coletiva, uma
memria que surge associada s razes histrico-simblicas e s tradies de um povo.
uma definio complexa, abstrata e pluridimensional porque atua em muitos domnios
atravs de uma reatualizao da histria e de uma nacionalizao da escola, podendo dizer-se
que () a partir do sculo XVIII, e no quadro histrico-cultural das Luzes, nos contextos da
afirmao do Estado-Nao, de legitimao histrica das revolues liberais e do
republicanismo, os textos de natureza histrica - vidas de heris, pequenos factos, narrativas
de natureza lendria e efabulosa - no s passam a integrar, como tendem a constituir-se na
principal substncia e argumento da cultura escolar5.
Em Portugal, a formao do conceito de identidade nacional aliada noo de unidade e
independncia remota, podendo ser datada praticamente do incio da nacionalidade o que
lhe atribui o estatuto de pioneira na construo deste conceito no mbito europeu e para a qual
contriburam os conflitos de 1383-85.
A exaltao e evocao de figuras histricas bem como a sua influncia no
engrandecimento da dimenso do Estado portugus remontam aos primrdios da nossa
nacionalidade, sobretudo atravs da literatura publicada. Basta pensar nas obras de autores
como Ferno Lopes, Zurara, Damio de Gis, Gil Vicente, Cames, Padre Antnio Vieira, D.
Francisco Manuel de Mello, Rui de Pina, Germo Galharde, Fr. Jernimo de Ramos, s para
citar alguns. A estes conceitos alia-se a criao de uma mitologia fundadora da identidade
nacional divulgada pelos cronistas rgios a partir do sculo XV. Estes mitos que
correspondiam a figuras histricas fundamentais no desenrolar do processo histrico, eram
4 esta poca moderna que coloca a nao como principal base do Estado. Esta modernidade que arrasta consigo
o progresso cultural e econmico, culminando com os processos de descolonizao e, consequentemente com a
queda do imperialismo. 5 ARAJO, Alberto F. e, Magalhes, Justino, 2000, Histria, Educao e Imaginrio - Actas do IV Colquio,
Braga, Universidade do Minho, p.36.
Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris
6
tomadas como modelos de referncia obrigatrios sempre que a nao passava por momentos
de crise. Estes tornavam-se necessrios para estimular a fora anmica do povo ou para
encorajar a iniciativa de conquista de novos espaos. Estes mitos remetiam para um povo
remoto de caratersticas guerreiras, decidido e forte, protegido pela providncia, do qual
emergiam determinadas figuras enquadradas na esfera mitolgica e que ainda so vistas assim
atualmente. Estes mitos constituram matria de doutrinao nacionalista atravs dos tempos
acabando por chegar ao sculo XIX completamente consolidados, constituindo a parte
fundamental da historiografia oficial durante os quatro regimes polticos que vigoraram em
Portugal durante o sculo XX: Monarquia Constitucional, I Repblica, Estado Novo e II
Repblica.
Em Portugal, no sculo XVII com a afirmao da lngua materna como reforo da
portugalidade no contexto da restaurao da independncia, inicia-se uma pedagogia escolar
com base nos valores axiolgicos da moral, da tica, da ordem cvica e humanista, uma
pedagogia que tinha como finalidade a modelao da mente do aluno atravs de mensagens
que visavam orientar e formar o processo de personificao do aluno.
A pedagogia jesutica caraterizada pela universalidade e latinidade baseava-se sobretudo
no pressuposto pedaggico do mtodo catequstico, ou seja, a educao baseava-se
essencialmente na memorizao de mensagens escritas com valor axiolgico. A modelao da
conscincia dos alunos era conseguida atravs de expresses escritas com representao
personalizada.
A afirmao e construo dos Estados-Nao, que marcam a segunda metade do sculo
XVIII caraterizam-se por uma refundao das nacionalidades e consequentemente, um reforo
de uma memria comum, passando a escolarizao a desempenhar um papel fundamental
como promotora de uma razo de Estado atravs do fomento de um dever cvico e de
cidadania. A escola passa a ter uma funo de informadora do suporte memorial atravs da
recriao da cultura nacional, nacionalista e historicista.
No sculo XVIII desenvolveu-se uma racionalidade pedaggica que encarava a escola
como referente fundamental e concebe o sistema educativo simultaneamente como estrutura e
como educao, viso oposta at ento aceite que concebia a educao como uma estrutura
clerical e familiar. A escola passa assim a ter uma estrutura prpria assumindo-se como um
espao de simbolizao.
Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris
7
No entanto, a pedagogia oratoriana6 que vai desbravar caminho no sentido de uma
textualidade pedaggica e didtica permitindo o ensino de um historicismo nacionalista e de
memrias e narrativas nacionais e ptrias. A pedagogia oratoriana inscrevia-se no mbito de
uma valorizao das aprendizagens de tudo quanto respeitava ptria e no ensino dos feitos
fundadores das nacionalidades. Com os oratorianos o estudo da lngua latina passou a estar
intimamente relacionado com a Histria de Portugal e no apenas centrado no estudo da
latinidade e dos marcos da civilizao latina como fora apangio da pedagogia jesutica. Com
os oratorianos a escola e, sobretudo, a cultura escolar surgem como vetores principais para a
implantao do conceito de portugalidade. este contexto que proporciona a criao de uma
memria escrita, de uma gesta ptria e de uma genealogia rgia que marcou um ponto de
viragem na educao em Portugal no sculo XVIII e influenciou a pedagogia escolar at
poca contempornea.
A partir dos finais do sculo XIX acentua-se o carter positivista e nacionalista da
educao, passando a cultura escolar e a sua ao educativa a constituir uma representao e
adequao do sujeito realidade. no sculo XIX, com o Romantismo que se criam os
smbolos nacionais e se constri a simbologia da nao e do ser portugus. Almeida Garrett
e Alexandre Herculano foram duas figuras fundamentais para o desenvolvimento deste
movimento em Portugal. As suas obras contriburam para a divulgao do amor ptria e do
ruralismo bem como a exaltao da religiosidade.
A Histria comea a ser vista como o veculo de reencontro com a ptria, um meio de
conhecimento e de formao da conscincia nacional. Esta tendncia refletiu-se tanto no
Liberalismo, como na Repblica e, mais tarde, no Estado Novo. Esta matriz referencial
baseada na promoo da memria nacional tinha como objetivo a refundao para a
nacionalidade. Nos vrios perodos histricos, foi introduzida uma gesta heroica e uma
imagtica medievalista qual se acrescentou uma gesta ocenica de reforo do imprio
colonial7.
A mitologia nacional agregada ao simbolismo e a memria histrica passam a
caraterizar a cultura escolar (em todos os nveis de escolaridade) durante o perodo
republicano, consolidando-se esta adaptao historiogrfica no sentido da recuperao da
fundao, da expanso e do pombalismo como pocas de ouro e motores de progresso.
6 Desde o reinado de D. Joo V que a Companhia de Jesus se depara com a concorrncia da Congregao do
Oratrio de S. Filipe de Nery que praticava um ensino moderno, dialogante e experimental. 7No qual a obra de Cames adquire um importante papel.
Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris
8
O Estado Novo centrava as suas aspiraes ideolgicas da mitologia nacional sobretudo
nas capacidades da raa, na () Ptria de eleio de navegadores intrpidos, apostados na
dilatao da f e do imprio, solidarizados no projeto comum de dar novos Mundos ao
Mundo e de lanar os alicerces de uma ptria pluricontinental e multirracial8. A expanso
martima constituiu o smbolo augusto da grandeza do povo portugus e a consequente
motivao da glria nacional. O ato de simbolizar implicava uma escolha e a Histria
transforma o smbolo representativo em causa explicativa ou fora propulsora. O smbolo
torna-se na expresso evolutiva das aspiraes do homem, por isso, ele est presente na
histria. A evocao do smbolo levava criao do mito que servia um determinado fim
tornando-se uma instncia duradoura, mais forte, colorido e sedutor do que a realidade.
A identidade nacional est pois intimamente ligada Histria, ao passado e ao presente
de um pas. O estudo da identidade nacional e da memria reveste-se de importncia porque
todos os povos procuram a sua identificao simblica, todas as naes lutam para caraterizar
a essncia de cada nao, a definio da sua identidade relativamente ao passado versus
presente mas tambm quanto ao futuro9.
A identificao simblica de uma nao traduz-se em imagens, smbolos que so
preferencialmente lderes, guias que funcionam como exemplos. A Histria sempre se apoiou
nas grandes figuras que se destacaram no panorama geral, por tomarem decises com vista a
dar rumo ao pas e a determinar os seus destinos, no entanto, h uma tendncia para a sua
individualizao. Nessa sucesso de ideias surge tambm o conceito de ptria cuja estrutura
assenta em legislao e instituies com objetivos polticos. Associado a estes conceitos surge
ainda o conceito de nacionalismo que derivou dos discursos filosficos e histricos que
surgiram entre os sculos XVII e XVIII na Europa ocidental. Segundo a teoria de A. Smith,
o nacionalismo, enquanto ideologia, uma doutrina das unidades de poder poltico e um
conjunto de prescries sobre a natureza dos detentores de poder () a um nvel mais geral, o
nacionalismo deve ser visto como uma forma de cultura historicista e de educao cvica10
.
O conceito de nacionalismo em Portugal um conceito vasto que abarca vrios
domnios, estendendo-se ao imprio. Geralmente associa-se aos elementos cvicos e
territoriais unidade ou coeso e, consequentemente, indivisibilidade da nao, entendida
como predestinao. Joo de Almeida defende que Nenhum povo, em nenhuma poca, foi,
8 HOMEM, Amadeu Carvalho, 1995, Identidade Nacional e Contemporaneidade in Revista Histria das
Ideias, Vol.17, pp.587-596. 9 Portugal o pas da Europa que est h mais tempo convicto da sua identidade, uma vez que as fronteiras
terrestres so estveis h muitos sculos comparativamente com outros pases europeus. 10
SMITH, Anthony D., 1997, A Identidade Nacional, Lisboa, Gradiva, p.117.
Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris
9
porm, como o portugus, animado por fora de expanso to viva e original, mantida atravs
dos tempos em todos os perodos do seu desenvolvimento. A vocao expansiva dos
portugueses no foi, com efeito, como tantos por algum tempo julgaram, uma atitude de
momento que as circunstncias provocavam e a sorte prolongou. H antecedentes que a
explicam. Tem razes no tempo, que importa descarnar () recuaremos, pois, numa viso
rpida, aos tempos longnquos em que surgem atravs das neblinas, os primeiros indcios da
vocao ecumnica de Portugal antes de ser Portugal, e dos portugueses, antes de serem
portugueses11
.
A ao dos portugueses na constituio do imprio e consequentemente na realizao de
uma misso civilizadora bem como a utilizao de um mtodo prprio e original de ocupao
resultava de um carter prprio que se mantinha desde as origens. Esta ideia de
providencialismo e da predestinao da nao reforada atravs do vnculo entre o Estado
Novo e a religio onde ganha expresso a utilizao do milagre de Ftima que se assumia
tambm com um carter nacionalista12
.
A unidade nacional estava tambm relacionada com o conceito de autonomia muito
divulgado pelo regime. Este conceito afirmado por Kant torna-se um imperativo tico quer
para o indivduo quer para a coletividade, um fundamento da sua gnese que deu origem a
uma filosofia de autodeterminao. Neste sentido, a poltica nacionalista desenvolvida pelo
regime foi extremamente bem organizada e to ativa na formao das mentalidades para
cumprir o objetivo de inculcar essa vontade nacional para que o objetivo de unir a nao e
torn-la num todo uno e indivisvel fosse uma realidade13
.
O nacionalismo refletia a individualidade do povo portugus, a lusitanidade, a
existncia de um territrio histrico a partir do qual se formou a ptria, uma mitologia e uma
memria histrica, um conjunto de caratersticas culturais comuns e pressupostos cvicos
(direitos e deveres) da comunidade. Este conceito podia ser entendido como uma forma de
cultura mas tambm como uma ideologia poltica que atuava fortemente no conceito de
unidade nacional, social e cultural de uma nao, colocando-a no centro das atenes. uma
doutrina cultural ligada a um movimento ideolgico para preservar a identidade de uma
nao.
11
ALMEIDA, Joo de, 1931, O esprito da raa portuguesa na sua expanso alm-mar, Lisboa, Coleco Ao
Servio do Imprio, Parceria Antnio Maria Pereira, p.31. 12
Sobre este assunto vide BROCHADO, Costa, 1948, Ftima luz da Histria, Lisboa, Portuglia. 13
A autonomia o objetivo de qualquer poltica nacionalista. O slogan Orgulhosamente ss foi um indicador
da clara inteno do regime de implementar este valor na sociedade.
Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris
10
Tambm o conceito de gnio nacional ou carter nacional, conceito divulgado por
Rousseau que se constituiu como uma noo relevante para a definio poltica de uma nao
comeou a ser aceite e divulgado a partir de meados do sculo XVIII e Herder adotou-o para
fundamentar o seu populismo cultural. Segundo este autor era necessrio () redescobrir a
individualidade atravs da filosofia, da histria, e da arqueologia, e de fazer remontar as
nossas razes a um passado tnico, de forma a confirmar a identidade autntica que existe
por detrs dos acrscimos estranhos dos sculos14
.
O conjunto de conceitos intimamente relacionados com o nacionalismo, tais como
identidade, autonomia, gnio nacional e unidade formavam uma linguagem que fazia parte de
um discurso simblico e expressivo caraterstico do discurso pedaggico, poltico e
comemorativo que o regime utilizou para levar a cabo a sua poltica do esprito. A simbologia
inerente ao nacionalismo era um aspeto importante e poderoso porque transmitia os princpios
da ideologia. Esses princpios apontam sobretudo para sentimentos relacionados com o
domnio territorial, a coletividade e a histria heroica porque essa vertente da histria que
parece responder de forma mais completa viso historicista que sustentava a ideologia do
nacionalismo: a grandeza, a superioridade e a individualidade da nao. Para alm do domnio
ideolgico, o nacionalismo atuava na vertente social, procurando incutir na sociedade um
esprito de coeso e solidariedade nacional e tambm na vertente econmica15
.
As tradies e as crenas ancestrais, o orgulho na nao e nos antepassados, bem como
todos os smbolos relacionados com estes enformavam as caratersticas da ideologia
nacionalista e da identidade nacional. O nacionalismo constitua um conjunto de tradies,
sentimentos e simbologia que assumia a forma do contexto que se pretendia divulgar
assumindo um poder manipulador.
A noo de coletivo surge no sculo XIX com a poca dos historicismos caraterizada
por transformaes que motivaram a reinveno do passado. tambm nesta fase que surgem
conceitos como memria social e memria coletiva e que h um reforo da viso da sociedade
como um todo. Esta ideia trouxe consigo a entificao de sujeitos coletivos ou figuras
simblicas que funcionam como propulsores da dinmica do futuro. Este processo de
identificao das figuras do passado foi sendo cada vez mais aceite como fundamental para
entender o presente e, sobretudo para transformar o futuro e as sociedades.
14
Citado por SMITH, Anthony D., 1997, Ob. Cit, p.99. 15
Esta vertente que implica um esforo de autossuficincia de recursos, foi cuidadosamente observado por
Salazar.
Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris
11
A formao individual e coletiva do eu est intimamente relacionada com os valores
que a sociedade transmite, intervindo na forma como se estrutura e na conduo do seu
percurso tendo em conta o passado. O eu ou a personalidade do eu constroem-se segundo os
parmetros sociais da memria que assumem o passado e as suas interpretaes. Para ser
possvel a memria desenvolver nos indivduos a sua funo social e normativa, so
necessrios suportes materiais, sociais e simblicos de memrias, pois o seu contedo
inseparvel do dilogo permanente entre, por um lado as imagens do passado e, por outro das
expectativas relativamente ao futuro - a anamenese. A componente prtica da memria tem
como objetivo inserir os indivduos em padres de identificao comuns, distinguindo-se
relativamente a outros, exigindo-lhe deveres e dedicao em prol da identidade do eu.
A memria coletiva e a memria histrica so como que duas faces da mesma moeda
porque convergem para um mesmo objetivo prtico porque so ambas expresses da condio
histrica do homem, mas tm objetos e significados diferentes. No entanto, a memria
histrica tem uma funo social prtica, prestando-se ao ensino e a diversos meios de
reproduo. A sua formao e reproduo encontram-se patentes em vrios registos. No s a
escola reproduz essa memria, mas tambm a literatura, a toponmia, a estaturia, as
comemoraes, etc.
A memria coletiva tem um cariz normativo e est relacionada com as tradies do
passado. Esta tem uma origem annima e espontnea e comporta sempre uma mensagem que
tende a implantar-se como norma e como opositora ao esquecimento. A identidade e o
sentimento de pertena so conceitos que se vo construindo atravs da funo integradora da
memria coletiva que cria nos indivduos o reconhecimento projetando-se no futuro. A
memria histrica tambm um conceito que ganhou maior projeo no sculo XIX com a
importncia que a histria adquiriu na construo mtico-simblica do novo conceito de
nao. Procurava-se no passado a legitimao para o presente, ou seja, para as transformaes
sociais, culturais e simblicas ocorridas no presente.
O sentimento coletivo, produto resultante da conscincia nacional desencadeado pelo
Romantismo onde a exaltao nacional assumiu particular relevo. Iniciado em Portugal por
Garrett, este movimento do sculo XIX foi o motor da evocao nacionalista. Os heris que
ao longo dos tempos se foram tornando figuras emblemticas, sobretudo atravs das correntes
historiogrficas que se foram impondo nas mentalidades das sociedades, eram encarados com
misticismo e respeito pela historiografia pr-romntica.
O sculo XIX foi apelidado de sculo da Histria porque foi a partir deste perodo que
houve um reconhecimento da funo social e poltico-ideolgica que o estudo do passado
Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris
12
desempenhava na legitimao do presente e dos seus interesses, bem como da compreenso
do futuro. Essa utilidade traduziu-se no campo educativo e em novas ritualizaes da Histria.
Esta realidade levou ao aparecimento dos mitos e, ligados a estes os heris integrados no
discurso cultural que as comemoraes ajudaram a erguer desde a monarquia liberal at
atualidade em Portugal. Estes factos permitiram considerar o primeiro quartel do sculo XIX
o perodo a que se assistiu a um processo de divinizao do sentimento nacional.
Os filsofos do sculo XIX viam o mito como a explicao para o seu mundo. Para os
romnticos o mundo era explicado atravs do mito que, no seu entender era um conceito que
andaria muito prximo da realidade, unindo-se como um s: o subjetivo e o objetivo
interpretavam-se formando um todo.
Correntes como o romantismo e, mais particularmente, o positivismo apoiaram-se
nestas leituras do passado para ultrapassar a crise nacional de oitocentos. Esta finalidade da
Histria tinha em vista a refundao histrica da memria da nao. Paralelamente a esta
inteno, surgiu tambm a comemorao como parte desse investimento, iniciado com a
comemorao do centenrio de Cames em 1880 e o natural aproveitamento poltico e
ideolgico da sua pica obra que se prolongou at ao Estado Novo, atravs da explorao
mtica da f e do imprio. A comemorao vista como iniciativa revivescente do passado
apresentada como arqutipo ao presente e ao futuro. Nesta perspectiva Fernando Catroga
entende que a comemorao pressupe () uma concepo repetitiva e cclica, o seu
significado ltimo sobre determinado pela crena na irreversibilidade do tempo. Isto , o
comemoracionismo, tal como a historiografia dominante, tambm se baseavam numa anloga
ideia evolutiva e continusta de tempo, na qual o melhor do passado era decantado para ser
sugerido como futuro do presente. Portanto, as comemoraes e a escrita historicista da
histria so prticas de representao, ou melhor, de esquecimento da morte e do devir, e
pem em cena uma previso ao contrrio que procura confirmar, o passado, a direo do
porvir. Mas tambm so uma das melhores confirmaes do modo como a ideia continusta e
evolutiva do tempo compaginava bem com a histria dos vencedores e com o seu papel
pedaggico. (...) A esta luz, explica-se que elas se objectivassem em ritualizaes que
enaltecessem figuras modelares, ou momentos de fastgio, para, escondendo o lado mais
sombrio das coisas, exorcizar e criticar decadncias do presente e alentar crenas na redeno
futura, marcando, assim os ritmos ascendentes e, por contraste, os descendentes da histria16
.
16
CATROGA, Fernando, 2001, Memria, Histria e Historiografia, Coimbra, Quarteto, p.61.
Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris
13
O ressurgimento da nao era o objetivo principal da investida comemoracionista. A
exemplaridade ajudava a ultrapassar o negativismo que caraterizava o presente e promovia o
restabelecimento da grandeza nacional. A nao abandona o seu cariz abstrato e adquire
estatuto, passando a designar-se conjunto de homens de Portugal. O sculo XIX foi uma
poca importante dada a sua projeo direta e prxima na modelao do Portugal
contemporneo, em parte devido ao ideal de nao que surgira.
No decurso do sculo XIX, as figuras histricas comearam a ser caraterizadas como
Volkergeist nacional ou esprito de um povo, segundo a conceo romntica alem difundida
pela Europa, aceite tambm em Portugal, introduzindo na historiografia uma perspetiva
didtica e cvica.
A nfase colocada nos heris como personagens que partilham a esfera do mito no
quadro da evoluo das sociedades um tema j explorado desde a antiguidade. Desde os
primrdios da civilizao o heri, pela sua ao na histria assume uma importncia
fundamental na construo da imagem das sociedades. Todavia, a partir do sculo XIX com
a divulgao do pensamento romntico e o Positivismo de Auguste Comte que se assiste
ascenso do heri como elemento integrante do desenvolvimento.
Thomas Carlyle publica nesta poca a obra Os Heris e o Culto dos Heris, onde
destaca o papel fundamental da personagem do heri na transformao das sociedades.
Segundo Carlyle a histria do mundo a biografia dos grandes homens. Tomando o todo
pela parte este autor considera que o rumo da histria ditado pelos heris e que estes devem
ser objeto de exaltao, acrescentando que o heri () o eterno alicerce sobre o qual os
homens podem edificar de novo17
.
No sculo XIX procurou-se forjar smbolos que estivessem relacionados com a
justificao de uma entidade poltico-cultural baseada na Histria nacional e nas
especificidades de um pas, ou seja, a lngua e as suas fronteiras territoriais. Foi este o modelo
largamente utilizado para a construo das identidades nacionais pelas naes que
procuravam consolidar a sua estrutura identitria. Mas a afirmao dos nacionalismos
comportava outras estratgias de reforo da identidade nacional que no se limitavam s j
anteriormente referidas. A busca de um conjunto de imagens de marca, comeando pelos
grandes antepassados fundadores de um povo funcionava como estratgia identitria
legitimadora das naes nos sculos XIX e XX.
17
CARLYLE, Thomas, s/d., Os Heris e o culto dos Heris, S. Paulo, Ed. Cultura Moderna, pp.22-24.
Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris
14
A implantao e a consequente divulgao do pensamento comtiano vieram influenciar
o movimento republicano e, posteriormente o Estado Novo, no sentido de atribuir ao culto dos
heris uma influncia determinante no encaminhamento dos desgnios da nao. O culto da
sua personalidade fazia parte do processo de mitificao no sentido de reforar o sentimento
nacional.
No perodo do ps I guerra mundial assistiu-se a um aprofundamento da Histria e do
seu conhecimento. Os intelectuais desta poca como Paulo Mera, Joo Lcio de Azevedo,
Leite de Vasconcelos, Joaquim Bensade entre outros, atriburam uma significativa
importncia renovao da historiografia portuguesa bem como exigncia do rigor
histrico.
A Histria impunha-se como uma condio fundamental para a cultura nacional e o
discurso histrico orientava-se no sentido das motivaes coletivas e os seus heris ligavam-
se a foras sociais. A historiografia procurava compreender e explicar o passado luz da
estrutura constituda por cada nao expressa nos seus mltiplos aspetos sociais, culturais e
polticos. tambm nesta poca que se definem os heris e que a noo de herosmo se
transforma num tema cultural de interesse.
Assiste-se consolidao da nacionalidade baseada na sua Histria e no
sentimentalismo. Alm do protagonismo que a Histria adquiriu tambm se procedeu
reexaminao da galeria dos heris tradicionais cuja definio no fora alterada desde
Oliveira Martins. Representou este tema um grande debate pblico entre os intelectuais da
poca sendo decerto, gerador de grandes controvrsias18
. Todavia, a questo fulcral deste
debate era a definio da tipologia de heri que se devia apresentar nao como reflexo da
identidade nacional e como exemplo orientador.
A memria coletiva foi percecionada e entendida de formas diferentes pelo homem
atravs do tempo, dependendo entre outros fatores, sobretudo da conjuntura poltica e cultural
em que se inseriam. , por isso, um conceito mutvel, sofrendo uma reorganizao constante
e sistemtica numa relao dialtica entre as tradies do passado e os interesses e a dinmica
social do presente de cada perodo da Histria a par das omisses ou valorizaes atribudas a
determinadas pocas e figuras histricas consoante a ideologia defendida, tal como sucedeu
18
No propsito deste trabalho enveredar pelo estudo destas polmicas, embora nos parea interessante a
posio de alguns intelectuais como Antnio Srgio e Malheiro Dias. Sobre este assunto vide MACEDO, Jorge
Borges de, 1983, Significado e evoluo das polmicas de Antnio Srgio: a ideologia da razo (1921-1930)
in Revista Histria das Ideias, Vol. V, pp.505 a 512.
Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris
15
durante o Estado Novo, que () manteve uma constante linha de oposio ao iderio e s
obras da repblica, esforando-se por apagar a sua memria e os seus smbolos19
.
Impunha-se a reconstituio de um conjunto de heris teis para a comunidade para
fazer frente s dificuldades que o pas enfrentava. Aps a implantao da ditadura militar,
Portugal assiste a um perodo de indefinio ideolgica onde imperaram as posies
integralistas antiparlamentares que privilegiavam a histria poltica, procurando
(re)estabelecer-se uma tradio que suprimisse os elementos republicanos e parlamentares at
ento dominantes. Neste sentido, a (re)definio do herosmo e uma reforma de mentalidade
impunham-se uma vez que a orientao ideolgica era tambm diferente.
A dcada de 30 proporcionou a ascenso de Salazar na cena poltica nacional
originando um perodo de viragem na vida cultural e poltica portuguesa e importantes
transformaes na mentalidade que se enraizaram graas a um empenhado discurso
ideolgico utilizado pelo regime.
No Estado Novo assistiu-se a um fenmeno ideolgico que teve influncia sobretudo no
aspeto social e cultural. Para bem compreender este fenmeno necessrio tentar desmontar o
discurso que lhe est subjacente e a estrutura construda pelo regime que deu forma a esse tipo
de discurso. tambm necessrio compreender quem est por detrs da construo deste
discurso e a estrutura mentis dos idelogos que lhe deram forma.
A anlise do discurso histrico produzido e divulgado pressupe a compreenso do seu
propsito e modelo, considerando que este tipo de discurso algo que culturalmente marca a
sociedade na qual produzido e que faz parte do processo histrico considerado repositrio
de um passado. Inscreve-se no mbito da memria imagtica que durante o regime se
sacralizou, tornando-se num mito enquanto representao coletiva20
.
O campo ideolgico de valores e conscincia nacional que o Estado Novo privilegiou
recorria sobretudo a figuras histricas que personificam os ideais que se pretendiam
promover, elevando alguns deles ao nvel da mitificao. O campo disciplinar das
mentalidades durante o regime privilegiava as certezas acerca da natureza humana
circunscrevendo alguns dos perfis nacionais a uma galeria de heris ou at mesmo esfera do
mito.
Os mitos foram os cones instrumentalizados pelo regime que se transformaram nos
seus prprios alicerces ideolgicos. Eles eram a personificao do homem ideal devoto
19
BETHENCOURT, Francisco e Curto, Diogo Ramada, 1991, A memria da Nao, Colquio do Gabinete de
Estudos de Simbologia, Lisboa, Livraria S da Costa, p.11. 20
BUESCU, Ana Isabel, 2000, Memria e Poder : Ensaios de Histria Cultural (scs. XV-XVIII), Lisboa, Ed.
Cosmos, p.14.
Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris
16
nao, disposto a sacrificar-se por ela. Desconstruir o mito pois, tentar compreender qual a
sua utilidade no patrimnio e sonho coletivos.
O culto dos heris integra uma parte relevante da memria histrica construda pelo
Estado Novo enquanto estrutura de poder e como parte do corpo central das ideias do
salazarismo, onde tambm se destacam entre outros os conceitos de antiliberalismo,
nacionalismo, o trptico mitolgico de Deus, Ptria e Famlia, e o discurso imperial.
Assunto caro ideologia patritica do regime, as grandes figuras da Histria nacional
constituem um campo representativo do ideal social que este pretendia instituir. A
historiografia do Estado Novo elevou ao extremo a consagrao mtica de algumas figuras
histricas assemelhando-as a devotos e bravos guerreiros conotando-as com Salazar, fazendo
crer que este faria parte do panteo heroico do regime, imagem de marca da nao. Foi criada
uma representao nacionalista prpria do regime, sendo este um dos aspetos mais suis
generis do Estado Novo: a construo e consolidao de uma mentalidade e de uma cultura de
homenagem a uma figura que progressivamente entra para a esfera do mito porque apresenta
semelhanas com figuras histricas tais como Afonso Henriques, Nuno lvares Pereira, pelas
suas qualidades de chefia, e com o Infante D. Henrique, como visionrio, extraordinariamente
inteligente na conduo dos altos desgnios da ptria21
.
O ser portugus conhece durante o Estado Novo uma verdadeira evocao do seu
carter e da sua fora cujo objetivo era a reproduo constante de um passado coroado de
glrias e de prosperidade. Este facto explica que durante este perodo se tenha dado particular
destaque s comemoraes dos centenrios e festas do culto ptrio no sentido de valorizar a
memria de perodos importantes da Histria nacional, perpetuando o passado no tempo
presente.
A pretenso de igualar o passado ao presente revelava semelhanas com o discurso
mtico que visava a continuidade e a conservao de um perodo originrio, atravs da
reproduo cclica. Nesse sentido, atravs do estudo da memria histrica dos heris, entrava-
se no campo privilegiado onde uma conceo de histria exemplar, espcie de sistema
explicativo do devir da nao vinha substituir a mitologia.
No Estado Novo uma das mais importantes funes da educao escolar nas suas
variadas vertentes e, sobretudo da Histria enquanto disciplina curricular, era construir e
desenvolver uma conscincia nacional que tinha por base a evocao das grandes figuras
21
Esta semelhana foi alvitrada nos painis de S. Vicente da autoria de Nuno Gonalves (1460) onde se encontra
o Infante D. Henrique, figura que foi assimilada a Salazar, com o intuito de mostrar a personagem como
participante daquele ambiente sagrado.
Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris
17
histricas. Neste processo de construo da memria nacional, o lendrio e a efabulao
estavam presentes na construo do mtico histrico que se revestia de interesse pedaggico
na formao dos alunos, por ser a Histria uma disciplina que se prestava talvez mais do que
nenhuma outra a um ensino que sem deixar de ser informativo se transformou essencialmente
num ensino formativo.
As fases marcantes da Histria nacional tm associados mitos historiogrficos como
seja o nascimento da nao ou os descobrimentos que espelham o carter portugus. O
providencialismo sempre presente nos desgnios do nosso destino est bem patente na
construo da ideia de devir nacional e na ideia que ao longo dos tempos construmos de ns
prprios.
O regime pretendeu construir luz dos exemplos nacionais, uma () lusitanidade
exemplar, cobrindo o presente e o passado escolhido em funo da sua mitologia arcaica e
reacionria que aos poucos substitui a imagem mais ou menos adaptada ao pas real dos
comeos do Estado Novo por uma fico ideolgica, sociolgica e cultural mais irrealista
ainda que a proposta pela ideologia republicana, por ser fico oficial, imagem sem controlo
nem contradio possvel de um pas sem problemas, osis da paz, exemplo das naes,
arqutipo da soluo ideal que conciliava o capital e o trabalho, a ordem e a autoridade com
um desenvolvimento harmonioso da sociedade. () No vivamos num pas real, mas numa
Disneylndia qualquer, sem escndalos, nem suicdios, nem verdadeiros problemas. O
sistema chegou a uma tal perfeio na matria que no parecia possvel contrapor uma outra
imagem de ns mesmos quela que o regime to impune mas to habilmente propunha sem
que essa imagem-curta (no apenas ideolgica, mas cultural) aparecesse como uma sacrlega
contestao da verdade portuguesa por ele restituda sua essncia e esplendor22
.
Qual a verdadeira dimenso do sistema educativo como instrumento poltico do regime?
Certamente a ligao entre o poder poltico e a educao foi muito estreita. To estreita que o
regime lhe confiava o seu futuro e continuidade. A educao era um importante aparelho
ideolgico e um instrumento fundamental para a construo de uma imagem grandiosa da
Histria nacional que legitimava o regime ao mesmo tempo que criava uma nova
mentalidade.
Questionar a realidade educativa durante o Estado Novo uma tarefa interessante e
pertinente, tendo em conta o manancial de anlise histrica que ela pode propiciar. Do ponto
22
LOURENO, Eduardo, 1991, O labirinto da saudade. Psicanlise mtica do destino portugus, Lisboa,
Publicaes D. Quixote, p.28.
Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris
18
de vista cientfico, esta anlise reveste-se de particular interesse para o estudo do contexto
poltico-ideolgico e cultural em que a educao se desenrolou.
As representaes e a divulgao da memria das figuras emblemticas da nossa
histria esto ainda hoje bem presentes na conscincia da sociedade portuguesa e em boa
parte do nosso quotidiano. Desde a toponmia aos monumentos comemorativos, estaturia at
literatura produzida em torno destas, mostram que no passado e tambm no presente
geraes antigas e atuais rendem homenagem a esse conjunto de vultos proeminentes que
povoam o imaginrio mtico da nossa histria.
A identidade exprime-se e materializa-se atravs destes critrios que consagram as
figuras heroicas que estiveram na base do percurso glorioso da nao, a construo de uma
viso mtica de um povo intrpido e prudente.
Atualmente o conceito de identidade nacional est desligado de afirmaes de
nacionalismo e de concees egocntricas da nossa existncia, encontrando-se associado a um
conceito global de identidade. Desde que Portugal se incorporou na Comunidade Europeia
que pretende desembaraar-se da velha conceo mtica e egocntrica de nao que fabricava
os mitos lendrios da portugalidade, condenando o modelo retrgrado de tipo integralista-
salazarista que vigorou durante dcadas. Mas esta noo globalizadora de identidade recente
e ainda em fase de construo. Ela vem substituir a velha conceo identitria que o regime
construiu dentro do ideal Omnia pro Ptria atravs de smbolos e engrandecimento de um
conjunto de figuras que se foram sucedendo ao longo de vrias geraes divulgando sempre
um ideal, e nas quais se depositavam todas as esperanas quando se tratava de vencer
perodos de conjuntura desfavorvel para a nao.
Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris
19
I.2. Objetivo do Estudo
A questo do ethos nacional um conceito que pode ser estudado sob diversos nveis de
anlise conceptual: enquanto questo antropolgico-cultural; histrico-cultural e poltico-
ideolgica; como questo ligada s reas da Sociologia e Psicologia coletivas ou tambm
como questo filosfica.
Pretende-se com o presente trabalho descodificar as tendncias historiogrficas ao nvel
cultural e educativo e, sobretudo a nvel dos seus conceitos ideolgicos que sustentaram as
opes do regime poltico em matria de perfis nacionais. Interessa-nos desmontar e entender
os mecanismos de afirmao das verdades utilizados que evidenciavam o aproveitamento
que o regime retirava das figuras histricas ao nvel do imaginrio educativo para firmar os
valores nacionais no aluno. Os mecanismos de afirmao que nos propomos analisar
revestem-se de particular interesse porque contm uma carga simblica significativa que deu
consistncia ideologia do regime e alicerou a conscincia histrica nacional.
A explorao desta temtica interessa sobretudo ao nvel dos aspetos culturais, polticos
e ideolgicos contidos no discurso histrico escolar e extraescolar. A temtica do herosmo e
dos mitos da Histria est relacionada com a questo da identidade nacional, com a imagtica
que ela criou em ns prprios e envolve uma determinada tica e mentalidade.
A criao de mitos e de heris foi desde h muito tempo, uma inevitabilidade constante
na sociedade portuguesa. Apresentou-se como uma soluo para as consequncias das crises
geradas enquanto evaso da realidade. A memria coletiva perante situaes desfavorveis
demonstrou necessidade de buscar nos feitos e nas personagens do passado as esperanas de
ultrapass-las. Assim, a nao foi criando ao longo da Histria os mitos imitao das suas
necessidades e das circunstncias nacionais. Segundo Gusdorf L` histoire efficace, l`histoire
utile n`est pas celle ds historiens rudits, mais bien celle qui se formule l`imagerie nave des
livres d`cole primaire, ou se trouvent rassembls les figures stylises des hros rcits
romancs des grands vnements du pass, revues et charriages par le sens civique23
.
A historiografia e o discurso histrico so dois elementos que concorrem para a
constituio da noo de identidade coletiva de um pas, sendo o discurso histrico o veculo
fundamental do sistema de representaes ideolgicas que se produzem e que se manifesta
atravs da narrativa.
23
GUSDORF, G., 1953, Mythe et mtaphysique, Paris, Flammarion, p. 226.
Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris
20
A historiografia e o discurso histrico esto, pelo campo de estudo que servem e pelas
suas caratersticas especficas, relacionados e dependentes da orientao que o poder poltico
lhes atribui. Neste sentido, a construo da memria histrica est diretamente relacionada
com a operatividade das representaes e das imagens transmitidas mantendo entre si uma
estreita relao. O sistema de imagens e representaes alimenta-se de mitos que assumem
uma importncia fundamental na configurao da memria nacional.
I.3. Estado da Questo
O estudo dos perfis nacionais um campo de investigao que mereceu j a
investigao por parte de alguns autores. Existem alguns estudos que se inscrevem dentro da
temtica sobre a qual versa o nosso trabalho, no entanto, nenhum deles foi realizado tendo em
vista o mesmo limite cronolgico nem o mesmo objetivo que delinemos para o estudo das
figuras histricas.
Julgamos ser importante referir aqui alguns dos estudos j realizados como obras24
e
trabalhos de investigao de teor acadmico que consultmos. Destacamos, dentro desta
temtica que engloba diversas reas, o contributo de vrios autores, cujas obras consideramos
24
FERREIRA,Virglio, 1983, Cames e a Identidade Nacional, Lisboa, Temas Portugueses, INCM; LAMAS,
Maria, 1991, Mitologia Geral: o mundo dos Deuses e dos Heris, 2 vols., Lisboa, Editorial Estampa / Imprensa
Universitria;
LOPES, Antnio, 1995, Heris da misso em 500 anos da Evangelizao Portuguesa, Editora Misses
Consolata;
LOURENO, Eduardo, 1991, O Labirinto da Saudade: psicanlise do destino portugus, Lisboa, Biblioteca D.
Quixote;
MARTINS, Moiss de Lemos, 1991, Para uma Imersa Navegao: o discurso da identidade, Porto, Edies
Afrontamento;
MATTOSO, Jos, 1993, A Identidade Nacional, Lisboa, Fundao Mrio Soares/Gradiva;
PROENA, Maria Cndida et alii., 2000, Os Descobrimentos no Imaginrio Juvenil (1850-1950), Lisboa, Ed.
Comisso Nacional para as Comemoraes dos Descobrimentos Portugueses; PROENA, Maria Cndida
(coord.), 1999, Um Sculo de ensino da Histria, Lisboa, Edies Colibri, Instituto de Histria Contempornea
da Faculdade de Cincias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa;
SECRETARIA DE ESTADO DA COMUNICAO SOCIAL, 1978, O Sebastianismo: breve panorama de um
mito portugus, Lisboa, Terra Livre;
SELLIER, Philippe, 1979, Le mythe du hros, Univers de Lettres, Paris, Bordas;
CENTENO, Yvette Kace, 1993, Portugal: mitos revisitados, Lisboa, Edies Salamandra;
GRCIO, Rui, 1995, Da Educao I, Textos de Educao, Obra Completa, Lisboa, Fundao Calouste
Gulbenkian; JOO, Maria Isabel da Conceio, 1999, Memria e Imprio: Comemoraes em Portugal (1880-
1960), Dissertao de Doutoramento (texto policopiado), 2 volumes, Lisboa, Universidade Aberta;
BETHENCOURT, Francisco e Curto, Diogo Ramada (org.), 1991, A Memria da Nao, Colquio do Gabinete
de Estudos de Simbologia, Lisboa, Livraria S da Costa; LEAL, Ernesto Castro, 1999, Nao e Nacionalismos:
a Cruzada D. Nuno lvares Pereira e as origens do Estado Novo (1918-1938), Lisboa, Edies Cosmos;
MACHADO, Jos Barbosa, 1996, O mito de Viriato na Literatura Portuguesa, Braga, Universidade do Minho/
Instituto de Educao, Dissertao de Mestrado (texto policopiado); SILVA, Antnio Lus Cerdeira Coelho e,
1993, Imagens de D. Sebastio no Portugal Contemporneo, Coimbra, Dissertao de Mestrado (texto
policopiado); ANDRADE, Lus Oliveira, 2001, Histria e Memria - a Restaurao de 1640: do Liberalismo s
comemoraes centenrias de 1940, Coleo Minerva Coimbra, Coimbra, Edies Minerva Coimbra;
Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris
21
de particular interesse para o nosso trabalho, como: Lus Manuel Reis Torgal25
que se dedica
a um campo de investigao vocacionado para o estudo da Histria e das ideologias; Srgio
Campos Matos26
cujo campo de investigao est relacionado com a questo dos
nacionalismos, Fernando Catroga27
que se dedicou ao estudo das identidades e Paulo Archer
de Carvalho28
, cuja temtica de investigao versa sobre a historiografia integralista e os seus
mitos.
Contam-se tambm artigos publicados29
que evidenciam o debate em torno desta
problemtica, sendo este tema matria de discusso nas ltimas dcadas.
25
TORGAL, Lus Reis, 1989, Histria e Ideologia, Coimbra, Livraria Minerva; TORGAL, Lus Reis, 1982,
Pombal Revisitado, Vol. I, Lisboa, Ed. Estampa; TORGAL, Lus Reis, 1998; TORGAL, Lus Reis et alii.,
Histria da Histria em Portugal (scs. XIX-XX), Lisboa, Crculo de Leitores. 26
MATOS, Srgio Campos, 1988, Histria, Mitologia e Imaginrio Nacional: a Histria no curso dos liceus,
Dissertao de Mestrado (texto policopiado), Lisboa, Universidade Nova; MATOS, Srgio Campos, 1998,
Historiografia e Memria Nacional no Portugal do sc.XIX:1846-1898, Lisboa, Edies Colibri/ Faculdade de
Letras de Lisboa; MATOS, Srgio Campos, 1993, Na gnese da teoria do heri em Oliveira Martins, Lisboa,
INIC. 27
CATROGA, Fernando e Carvalho, Paulo A.M. Archer de, 1996, Sociedade e Cultura Portuguesas III, Lisboa,
Universidade Aberta; CATROGA, Fernando, 2001, Memria, Histria e Historiografia, Coimbra, Quarteto.
28 CARVALHO, Paulo Archer de, 1993, Nao e Nacionalismo: mitemas do Integralismo Lusitano, Coimbra,
Universidade de Coimbra, Faculdade de Letras, Dissertao de Mestrado em Histria Contempornea de
Portugal. 29
CARVALHO, Paulo Archer de, 1994, Memria Mtica da Nao - o caso do Integralismo Lusitano in:
Vrtice 61/Julho-Agosto, pp.51-66; CARVALHO, Paulo Archer de, 1995, De Sardinha a Salazar: o
nacionalismo entre a euforia mtica e a formidvel parania in: Revista de Histria das Ideias, Vol.17, pp.79-
123; CARVALHO, Paulo Archer de, 1996, Ao princpio era o verbo: o eterno retorno e os mitos da
historiografia integralista in: Revista de Histria das Ideias, Vol. 18, pp.231-243;
PAULO, Helosa de Jesus, 1996, Salazar: a elaborao de um mito in: Revista de Histria das ideias, Vol. 18,
pp.245-275.
HOMEM, Amadeu Carvalho, 1991, Identidade Nacional e Contemporaneidade, Revista Histria das Ideias,
Vol.XVII, pp.587-596;
LEAL, Ernesto Castro, 1993, Projeco pblica do smbolo Nun`lvares (1918-1931) in: Revista da
Faculdade de Letras, n15, 5srie, FLUL, pp.67-80;
LOUREIRO, Francisco de Salles, 1989, Uma mitogenia nacional in: Revista da Faculdade de Letras, n12,
5srie, pp.47-58;
MATOS, Srgio Campos, 1988, Heris e anti-heris de uma memria histrica in: Clio, Vol. 6, pp.39-77;
MATOS, Srgio Campos, 1992, Histria, Positivismo e funo dos Grandes Homens no ltimo quartel do
sc.XIX, Lisboa, Separata de Penlope, n8; pp.51-71; MOLES, Abraham A., 1985, A funo dos mitos
dinmicos na construo do imaginrio social in: Logos, n4/dezembro, pp.33-49;
SEABRA, Jorge, 1995, O Imprio e as memrias do Estado Novo- os Heris de Chaimite in: Revista Histria
das Ideias, Vol.17, pp.33-78; JOO, Maria Isabel da Conceio, 2001, Memria e Construo dos Mitos:
reflexo em torno dos heris in: Discursos, III srie, 3, Lisboa, Universidade Aberta, pp.74-97; TORGAL, Lus
Reis, 1998, Ensino da Histria, in: Histria da Histria em Portugal (scs.XIX-XX), Lisboa, Crculo de
Leitores, pp.85-193; TORGAL, Lus Reis, 1976, A Restaurao: reflexo sobre a sua historiografia in:
Separata da Revista Histria das Ideias, IHTI, Coimbra, Universidade de Coimbra, pp.23-40; ROSAS,
Fernando, 1995, Estado Novo, Imprio e Ideologia Imperial in: Revista Histria das Ideias, Vol.17, pp.19-32;
RAMOS, Paulo Oliveira, 1998, Pequenas Ptrias in: Poder e Sociedade, Vol. II, Coleco de Estudos Ps-
Graduados, Lisboa, Universidade Aberta, pp.523-538.
Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris
22
I.4. Descries de termos
Memria histrica coletiva um conceito recente de cariz historiogrfico desenvolvido
por Pierre Nora. Representa o esforo consciente da sociedade para construir ideias,
conhecimentos, representaes e imagens com recurso ao passado, seja este real ou
imaginrio.
Educao um processo que implica a relao entre o ensino e a aprendizagem. uma
forma de reproduo dos saberes que pertencem a uma cultura. Intencionalmente ou no, a
educao reproduz ideologias dominantes.
Ideologia um elemento cultural. Traduz uma determinada viso da verdade que se
pretende transmitir. Apresenta um sistema de ideias e valores padronizado com vista
orientao do futuro.
Mentalidades (Histria das) um conceito historiogrfico que d nfase s formas de
pensar e de sentir dos indivduos de uma mesma poca. um sistema de valores, crenas, e
representaes especficas de uma poca ou de uma sociedade. tambm o padro de
pensamento que forma a estrutura da conscincia dos indivduos.
Perfis nacionais a representao das caratersticas de um conjunto de indivduos.
Smbolo um elemento de identidade que pressupe uma correspondncia ou associao
com um determinado significado. A relao entre significado e smbolo obtida atravs da
ao da propaganda.
Identidade nacional um conceito, uma criao do plano cognitivo que explica o
sentimento de pertena dos indivduos a uma nao. Promove um vnculo entre a sociedade e
a nao e uma ideia de unio, essenciais para a construo da identidade individual.
Representaes sociais uma forma de interpretao que construda e partilhada
coletivamente e promove a construo de uma viso comum a uma sociedade.
Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris
23
CAPTULO II: ESTRUTURA CONCEPTUAL
II.1. Definio da problemtica
Atualmente discute-se a educao como um tema central do desenvolvimento das
sociedades. Neste debate intervm dois conceitos de especial relevncia: a Histria Cultural
ou das Mentalidades e a Histria da Educao. A Histria Cultural ou das Mentalidades uma
rea que se insere num mbito geral da Histria e que mantm uma relao estreita com a
Histria da Educao uma vez que partilham conceitos caros a ambas.
Nas ltimas dcadas a Histria da Educao tem vindo a ganhar terreno, destacando-se
a pesquisa e a investigao realizada no mbito desta temtica que ocupa uma posio de
destaque naquela que a relao de interdisciplinaridade entre as duas reas de referncia. A
problemtica do nosso trabalho toca estes dois conceitos e, numa perspetiva histrica pretende
refletir sobre questes culturais e de mentalidade inseridas num contexto educativo.
A Histria Cultural sensvel s representaes e ao simbolismo e d o seu contributo
Histria da Educao colocando-lhe desafios, o que torna importante a reflexo em torno
desta problemtica, atendendo ao legado que o pensamento ps moderno doou nova
Histria Cultural.
O simblico parte integrante da existncia humana. Mircea Eliade quem afirma que
o pensamento simblico inseparvel do ser humano30
. O imaginrio vem sendo objeto de
uma preocupao cientfica crescente, sobretudo no que se refere ao aprofundamento do
conhecimento sobre o homem e sobre as sociedades humanas porque confere sentido
existncia humana.
O simblico condio fundamental para que o humano exista e a cultura escolar que
ela comporta so os espaos privilegiados para a sua transmisso, por isso a cultura escolar
uma cultura simblica onde a imagem influencia de forma direta a educao a nvel do
racional e do mental. Assim, a imagem e o imaginrio, no seu conjunto, envolvem diversos
conceitos como ideais, ideologias, emoes/sentimentos, crenas, mitos, valores, etc., e
constituem um meio fundamental para perspetivar a pedagogia e o ensino.
atravs do domnio do imaginrio que se representa o essencial, o cerne da educao e
os objetivos primordiais da educao. A educao enquanto prtica social uma prtica
simblica e um dos meios que permite agir sobre o imaginrio coletivo.
30
ELIADE, Mircea, 1963, Images et Symboles, Paris, Gallimard, p.13.
Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris
24
A recorrncia ao imaginrio permite criar e recriar os heris mitolgicos e os
movimentos histricos regeneradores que representam auges na histria e que desencadeiam
reaes no domnio emocional, contribuindo para alimentar o ego nacional. De acordo com
Maria Ceclia Sanchez Teixeira () o imaginrio no um simples conjunto de imagens
que vagueiam livremente na memria e na imaginao. Ele uma rede de imagens na qual o
sentido dado na relao entre elas, as quais organizam-se de acordo com uma certa lgica,
uma certa estruturao, de modo que a configurao mtica do nosso imaginrio depende da
forma como arrumamos nele nossas fantasias31
. Esta conceo enquadra o mito no domnio
do emocional, tal como tambm defende Ernest Cassirer que o concebe sob a seguinte forma:
O mito no nasce somente de processos intelectuais, brota das emoes profundamente
humanas. Contudo, por outro lado, todas aquelas teorias que acentuam exclusivamente o
elemento emocional esquecem um ponto essencial. O mito no pode ser descrito como uma
simples emoo porque a expresso de uma emoo. A expresso de um sentimento no o
prprio sentimento - a emoo tornada imagem32
.
Por estas razes o imaginrio um conceito fundamental no que toca compreenso da
memria e identidade nacionais. O sentimento de pertena um ato da imaginao. atravs
das razes imaginrias que o indivduo adquire esse sentimento de pertena que se vai
alterando com o decorrer do tempo. As sociedades precisam de ter representaes simblicas
para se afirmar o sentimento de pertena.
A mitanlise tem como objetivo, segundo a perspetiva de Alberto Arajo () a
deteco dos traos mticos (esquemas mticos) latentes ou difusos (mito implcito) e patentes
(mito explcito), no interior das sociedades, das civilizaes e das respetivas ideologias que as
enformam33
. Estas consideraes remetem-nos para a relao entre mito e ideologia tambm
demonstrada pelas teses de Jean-Pierre Sironneau34
que se entrecruzam com o conceito de
inconsciente coletivo relevante para compreender como se opera a conscincia cultural.
Segundo Sironneau, o inconsciente coletivo junguiano () a instncia proto-simblica
universal responsvel pela produo de figuras constantes do imaginrio que, por sua vez,
moldam ou afectam as mltiplas variaes culturais ou singularizaes histricas35
. O
31
TEIXEIRA, Maria Ceclia Sanchez, 2003, O imaginrio como dinamismo organizador e a educao como
prtica simblica in: ARAJO, Alberto Filipe e Arajo, Joaquim Machado, 2003, Histria, Educao e
Imaginrio- Actas do VI Colquio, Braga, Centro de Investigao em Educao/Universidade do Minho, p.36. 32
CASSIRER, Ernest, 1961, O Mito do Estado, Lisboa, Publicaes Europa-Amrica, p.64. 33
ARAJO, Alberto Filipe e, Magalhes, Justino, 2000, Histria, Educao e Imaginrio Actas do IV
Colquio de Histria, Educao e Imaginrio, Braga, Universidade do Minho, p.96-97. 34
SIRONNEAU, Jean-Pierre, 1980, Le Retour du mythe, Grenoble, PUG. 35
SIRONNEAU, Jean-Pierre, 1990, Les quivoques de la religion rvolutionnaire in : CHALAS, Yves (dir.)
Mythe et Rvolutions, Grenoble, PUG, p.99-132.
Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris
25
imaginrio humano composto por uma dupla dimenso inseparvel: a scio-cultural e a
arquetipal. Esta ltima est na base da ideia e da narrativa mtica que carateriza o inconsciente
coletivo que produz as imagens. A narrativa mtica e as imagens arquetipais com a sua carga
semntica influenciam a conscincia cultural.
O recurso mitanlise e ao papel que esta desempenha no inconsciente coletivo
justificado pela busca e explorao da dimenso arquetipal no contexto das emoes e
sentimentos que desperta no inconsciente. A mitanlise procura identificar os grandes mitos
diretores dos momentos histricos. Conceito, por vezes complexo de explicar, o mito anda a
par com a explicao da memria histrica. Para Roland Barthes, o mito um sistema da
comunicao, uma mensagem () um modo de significao, uma forma () o mito uma
fala, tudo o que passvel de um discurso pode ser um mito36
.
o enunciado da sua mensagem que define o mito, o modo como este se apresenta e se
representa, -a sua intencionalidade que obedece a esteretipos e purificao, eternizao e,
por vezes sacralizao do objeto. O mito constri todo um sistema de significao complexo
em torno do seu objeto, sobre o qual exerce uma funo intencional, respondendo aos
interesses ideolgicos das sociedades porque transmite conceitos de uma forma intencional.
O mito descreve e carateriza um conjunto social, implementando uma determinada
mitologia. Os mitos histricos de um pas tm a sua gnese junto dos poderes governativos e
dos centros culturais e surgem ancorados a uma perspetiva temporal, inseridos nos contextos
que lhes servem simultaneamente de estrutura de apoio e de base de desenvolvimento.
O poder serve-se de um vasto universo de significaes, apropriando-se dele e
apresentando os elementos simblicos como instrumentos decisivos na afirmao e orientao
desse mesmo poder. em torno da simbologia e dos elementos simblicos que a base
ideolgica de um regime se constri e tambm em torno desta que o seu poder se
fundamenta e legitima. Os elementos simblicos so apresentados pelo poder com uma
caraterstica de imutabilidade e perenidade que lhe confere consistncia e uma estrutura
conceptual slida. Este processo permite entender a memria histrica como um meio vital
para a compreenso de conceitos, tais como o nacionalismo ou o culto dos heris.
o mito que nos apresenta os modelos de referncia escolhidos por aqueles que deles se
servem para legitimar regimes ou concees ideolgicas, mas tambm para omitir, induzir,
deturpar e silenciar a verdade histrica, estando, por isso sujeito s influncias e presses que
sofre a Histria. Nesta perspectiva, a Histria e a fico mantm uma estreita relao, na
36
BARTHES, Roland, 1956, Mitologias,
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