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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ARTES
Eduardo Nespoli
Performance, corpo e tecnologia:operaes rituais e percepo
CAMPINAS2009
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Artes do Instituto de Artes da
Universidade Estadual de Campinas, para obteno doTtulo de Doutor em Artes.
Orientadora: Profa. Dra. Regina Aparecida Polo Mller.
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FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELABIBLIOTECA DO INSTITUTO DE ARTES DA UNICAMP
Nespoli, Eduardo.N372p Performance, corpo e tecnologia: operaes rituais e
percepo. / Eduardo Nespoli. Campinas, SP: [s.n.], 2009.
Orientador: Prof. Dra. Regina Aparecida Polo Mller.Tese(doutorado) - Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Artes.
1. Performance. 2. Msica. 3. Ritual. 4. Xamanismo.5. Instalao. 6. Percepo. I. Mller, Regina Aparecida Polo.
II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes.III. Ttulo.
(em/ia)
Ttulo em ingles: Performance, body and technology: ritual operationsand perception.Palavras-chave em ingls(Keywords): Performance ; Music ; Ritual ;Shamanism ; Installation ; Perception.Titulao: Doutor em Artes.Banca examinadora:Prof. Dra. Regina Aparecida Polo Mller.Prof. Dr. Cassiano Sydow Quilici.Prof. Dr. John Cowart Dawsey.Prof. Dr. Lucio Jos de S Leito Agra.Prof. Dra. Marianna Francisca Martins Monteiro.Prof. Dra. Maria de Ftima Morethy Couto.Prof. Dra. Rose Satiko Gitirana Hikiji.Data da defesa: 14-08-2009Programa de Ps-Graduao: Artes.
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINASINSTITUTO DE ARTES
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ARTES
A Comisso Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, em sesso pblicarealizada em 14 de Agosto de 2009, considerou o candidato Eduardo Nespoli Aprovado.
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Para Maju e Myr, por todos os nascimentos.
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AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer, inicialmente, ao povo Asurin do Xingu por ter me
recebido em sua aldeia e permitido minha estadia, assim como o acompanhamento de suas
atividades. Agradeo especialmente a Moreyra, Apeb, Paradju e Takamuin por todo o
acolhimento, simpatia e esclarecimento acerca de diversas questes sobre sua cultura.
Agradeo a Paradju, Ativa, Takamuine Mandukapelos peixes e outras carnes recebidas
de presente, a Myr pela cordialidade e pelos sucos de aa. Agradeo ao Beto pela
receptividade e pela cooperao com a pesquisa. Gostaria tambm de agradecer a Regina
Mller por ter proporcionado a abertura desta experincia de vida e arte. Agradeo a Alice
Villela por todas as conversas e ajudas durante o trabalho de campo. Agradeo ao Prof.
Cassiano Sydow Quilici por todos os comentrios e sugestes no processo de qualificao.
Suas contribuies foram fundamentais para a finalizao deste trabalho. Agradeo a Profa.
Graziela Rodrigues pelas sugestes e provocaes, muito bem colocadas, e de fundamental
importncia para o processo de pesquisa. Meus agradecimentos a todo o pessoal do Ncleo
de Antropologia, Performance e Drama (NAPEDRA), pelas discusses acerca da
antropologia e da arte. Agradeo especialmente ao John e a Franci pelas sugestes
colocadas no seminrio interno, principalmente aquelas relacionadas a obra de Gell.
Um agradecimento especial aos amigos Sandro Canavezzi e Daniel Barreiro,
pelas discusses sobre arte e tecnologia e pelas oficinas sobre max/msp/jitter. Agradeo ao
Gabriel Feltran pelos debates sociolgicos. Agradeo Alexandra e Bibi pela experincia nos
processos artsticos e nas improvisaes audiovisuais. Agradeo a Osvaldo Martins e a
Edna Stella Martins pela recepo e confiana. Agradeo a Leonardo Nespoli e Grasiele
Nespoli pela presena, amizade, carinho e presentes. Agradeo a Vincius e a Laura pela
pacincia. Agradeo a Maju pela sua presena, amor, companheirismo e experincia
artstica. E, finalmente, agradeo a todos os amigos, alunos e companheiros de trabalho da
UFSCar, que direto ou indiretamente cooperaram em minha pesquisa e trajetria de vida.
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RESUMO
Este trabalho foi realizado a partir de dois olhares: de um lado, o olhar que
busca uma potica de criao, localizada no domnio da arte contempornea; de outro, o
olhar que estuda o ritual e as operaes criativas em performances tradicionais. Estes dois
olhares formam uma nica percepo, que explora o tema da transformao corporal e da
criao em performance, focado na relao do corpo com o espao, o som e os objetos.
Para estudar estas relaes, investiguei no ritual xamanstico denominado marak,
realizado pelo povo indgena Asurin do Xingu, os elementos operacionais de sua
performance, as relaes que o xam e o wanapy(papis rituais do marak) desenvolvem
com a preparao do espao e o manuseio de objetos plsticos e sonoros enquanto agentes
de sua transformao corporal. Acompanhei o processo de preparao do espao ritual do
marak e assisti a realizao dos ritos. Esta investigao, por sua vez, forneceu recursos
para observar uma relao especfica que a Arte da Performance desenvolve com o espao,
os objetos e as tecnologias contemporneas: estes elementos so utilizados para transformar
as percepes, como os objetos utilizados no ritual marak. Tecendo este tema, abordado a
partir desta perspectiva, criei uma instalao interativa utilizando recursos tecnolgicos
digitais, cujos contedos referem-se experincia de campo.
Palavras-chave: Performance; Msica; Ritual; Xamanismo; Instalao; Percepo.
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ABSTRACT
This work was accomplished from two perspectives: on one hand, the viewpoint
of the poetry of creation, located in the domain of contemporary art; on the other hand, the
viewpoint that studies the ritual and the creative operations in traditional performances.
These two viewpoints form one perception that explores the subject of the corporeal
transformation and creativity in performance, focused on the relationship of the body with
the space, the sound and the objects. To study these relationships, I researched the shamanic
ritual called marak, performed by the indigenous people Asurin do Xingu, the operational
elements of its performance and the relationships that the shaman and wanapy - ritual
papers of marak - develop with the preparation of the space and the handling of the
plastic and sonorous components as agents of its corporeal transformation. I accompanied
the process of preparing the ritual space of marak,and observed the performance of rites.
This investigation, in turn, supplied resources to observe a specific relationship that the
Performance Art develops with its space, objects within its space, and contemporary
technologies: these elements are used to transform perceptions as objects used in the ritual
marak. Weaving this subject together from this viewpoint, I created an interactive
installation using digital technological resources, whose contents are reflective of
experience obtained in the field.
Keywords: Performance; Music; Ritual; Shamanism; Installation; Perception.
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NDICE DE IMAGENS
Figura 1 - Luigi Russolo e os intonarumori 22
Figura 2 - Mapa 1:TerraKoatinemo 89
Figura 3 - Mapa 2:TerraKoatinemo 89
Figura 4 - Tavyve 94
Figura 5 -Jawaraik 99
Figura 6 -Ivafna tukaiaparaArapo 99
Figura 7 -Ivaf 102
Figura 8 -Ivaf 102
Figura 9 -Tukaia 104
Figura 10 - Xam e Wanapy 105
Figura 11 - Confeccionandojawaraike charuto 106
Figura 12 - Charuto eMiava 108
Figura 13 -Iaf 115
Figura 14 -yvara 115
Figura 15 -Jawar 128
Figura 16 - Stelarc 1 (The Third Hand) 169
Figura 17 - Stelarc 2 170
Figura 18 - Gary Hill - Tall Ships 177
Figura 19 - Objetos da instalao 195
Figura 20 - Ambiente de programao - Max/msp/jitter 196
Figura 21 - Imagem da projeo 1 199Figura 22 - Imagem da projeo 2 200
Figura 23 - Imagem da projeo 3 202
Figura 24 - Imagem da projeo 4 203
Figura 25 - Imagem da projeo 5 204
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Figura 26 - Imagem da projeo 6 204
Figura 27 - Imagem da projeo 7 206
Figura 28 - Sinal de udio do machado 209
Figura 29 - Sonograma de freqncias no temperadas 211
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SUMRIO
Introduo 1
Trajetria da pesquisa 8
I - Performance e tecnologias no sculo XX
A origem da performance 17
Vanguardas 21
Deslocamento de objetos 25
Acaso e indeterminao 27
Happeninge Performance: gneros hbridos 31
Arte e tecnologia 34
Espaos de subjetivao 45
II - Performance, Ritual e Xamanismo
Os agenciamentos mistos e as artes performativas tradicionais 51Relaes territoriais 55
A vida das coisas 57
O espao e o tempo ritual 61
O xamanismo e as tcnicas de transportao 64
O universo transformacional amaznico 70
Planos e caminhos csmicos 77
O fora das imagens e dos sons 79
III - Os Asurin do Xingu e o ritual marak
Os Asurin do Xingu: localizao 89
Seres do universo Asurin 90
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Os rituais: tur, tauva, marak 93
Koatinemo 98
A tukaiae os objetos rituais 103
Dois ou mais corpos no mesmo espao 110
Semelhana e diferena na trama csmica 116
Alteridades 120
Os sons como meios de interao e mudana de estado 123
Ivaf 130
Mquina de percepo 134
Mquinas abertas 137
Duas mquinas de subjetivao 141
IV - Relaes
Performance como produo de realidades 147
Liminar e liminide 151
Performance, msica e instalaes 154
O espao sonoro 160
A ordem e a desordem do mundo 162
O hipertexto 164
As tecnologias digitais na performance 171
V - Outros suportes: memria, registro, imaginao
Imaginao e memria 183
Controle, imprevisibilidade e interao com o pblico 188
Os objetos da instalao e as tecnologias de interao 190
As imagens 197
Os sons 206
O espao intersecional 213
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Um brinquedo antropolgico 215
Uma transferncia 217
VI - Performance, espao e percepo
Corpo e espao 221
Performance e percepo 224
Referncias 229
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Introduo
Como msico e performer interesso-me por trabalhos que investem na
elaborao de espaos sonoros. Os trabalhos baseiam-se no desenvolvimento de objetos
sonoros e instalaes como espao de atuao. Alguns destes trabalhos possuem uma
proposta interativa, buscando inserir o pblico como atuante.
A questo tecnolgica que envolve a confeco destes espaos sempre foi o
ponto focal de minha pesquisa, mas meu olhar no se encerra na investigao das
tecnologias produtoras de som somente em relaoa seus aspectos estruturais. Importa-me
uma relao mais sutil que envolve o tecnolgico e o corporal. Assim, entendo o termo
tecnologia no somente em relao aos meios materiais de produo e realizao, mas
tambm em relao aos meios cognitivos e perceptivos que envolvem a operao artstica
na performance.
A questo referente ao tecnolgico possui, neste sentido, estreita relao com a
ao corporal e os processo cognitivos e perceptivos que envolvem a expressividade
sonora. Nesta linha de pensamento, em meu trabalho de mestrado busquei compreender a
performance como um meio hbrido e interdisciplinar que trabalha com a produo de
mltiplos cdigos e suportes para agenciar e produzir processos de subjetivao (Nespoli,
2004).
Esta pesquisa tem como objetivo estabelecer relaes entre performance ritual e
performance esttica, buscando um ponto de convergncia entre estas qualidades, tomando
como foco a idia de que na arte da performance1 o campo esttico mistura-se operao
de ordem ritual. Para alcanar este objetivo realizei pesquisa de campo com o povo
indgena Asurin do Xingu, investigando seu territrio ritual como meio de obter contato
direto com as operaes rituais desta sociedade, sua organizao no tempo e no espao, o
uso especfico de seus instrumentos rituais. Busquei, deste modo, traar relaes entre a
operao ritual desta cultura e as operaes artsticas realizadas na arte da performance.
1
1Refiro-me a arte da performance como uma linguagem artstica especfica desenvolvida no sculo XX.
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Embora a arte da performance se localize em um contexto diferente dos rituais
Asurin, sua propenso se faz na explorao de sentidos e relaes entre sujeitos num
espao construdo especialmente para isto ocorrer. A preparao do espao no objetiva a
criao de um evento de representao. Ao contrrio, uma operao sobre os meios
estticos e tcnicos, que so deslocados de sua funes originrias para produzir novos
contextos de sentido e, concomitantemente, uma transformao nos corpos dos
participantes.
A arte da performance, operando signos, formas estticas e tecnologias de
imagem e som aproxima-se de um ritual, pois a natureza de seu processo compreende a
decomposio de componentes, seguida de uma re-inveno de diversos saberes e posies
subjetivas no espao-tempo social.
Esta questo coloca a arte da performance numa posio pontual em relao
histria da arte no ocidente. Algumas qualidades intrnsecas que contribuem para esta
constatao podem ser observadas na operao do discurso artstico na arte da performance.
A primeira delas o aspecto hbrido e no-hierrquico que a arte da
performance prope quanto utilizao de componentes diversos que manipula para
produzir sentido. H uma heterogeneidade dos componentes, acompanhada de uma forma
discursiva que revela relaes complexas trazidas do inconsciente, e que ocasionam
polissemias e associaes em rede.
Uma segunda questo a forma singular em que cada artista manifesta e opera
sua obra. A singularidade ope-se ao discurso homogneo como modo de subverter as
estticas pr-estabelecidas e consagradas.
Uma terceira caracterstica seu aspecto no-representativo, isto , as
manifestaes localizadas na arte da performance se formalizam enquanto experincias que
resultam na propagao e na incorporao de aes que objetivam transformar a realidade
social, alterar perspectivas e criar novas percepes de mundo.
E ainda h uma outra caracterstica: a interao. A performance contempornea
uma arte de natureza interativa que se preocupa pelas relaes de recepo, e que coloca,
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em diversos trabalhos, o pblico enquanto atuante. H, neste sentido, uma negao da
passividade do outro diante da obra do artista, j que a performance no realizada para ser
apenas apreciada, mas para se obter um resultado. Ela , portanto, uma arte das
provocaes.
Considerando o entrelace entre operao esttica e ritual que a arte da
performance procura desenvolver em seus processos criativos, uma questo torna-se
especialmente pertinente para o desenvolvimento deste trabalho: Quais as relaes que
podem ser estabelecidas com os rituais xamansticos Asurin e, especificamente, o que a
investigao acerca do xamanismo Asurin acrescenta para a arte da performance em
termos operacionais?
A arte da performance, tomada enquanto linguagem artstica especfica
manifestada no contexto histrico dos anos 60 e 70 do sculo passado, investe em aspectos
de hibridizao de elementos estticos. Caracteriza-se, deste modo, como um agenciamento
de formas e matrias expressivas que se relacionam numa rede de significados. Sons,
plsticas, pinturas e aes so componentes modificadores do espao circundante;
elementos que modificam as relaes dos indivduos com o ambiente.
Este gnero artstico caracteriza-se pela nfase na ruptura com as tradies
artsticas ocidentais, concentrando sua ao em procedimentos que relevam o deslocamento
de significados, a interatividade e a co-autoria. Segundo Mller (1996), o carter dialgico
e processual torna especfico o campo de manifestao da arte da performance, revestindo
esta forma de expresso enquanto manifestao auto-reflexiva que transpe o limiar da
individualidade e investe no aspecto coletivo como elemento motivador da expresso
esttica.
Aproxima-se, deste modo, do ritual, principalmente quanto ao modo de operar a
criao. A aproximao da arte da performance com o ritual se d pelo modo pelo qual o
corpo do performer submetido a transformaes durante o processo esttico vivenciado.
Tanto o ritual quanto a arte da performance investem no fato de que o sujeito envolvido na
ao vive a experincia de um processo de liminaridade. Ou seja, o sujeito coloca-se num
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espao ou perodo intersecional, entre uma situao j existente e outra que se desdobrar
dos efeitos alcanados nas performances.
Se por um lado, o ritual visa transformar o estado corpreo dos participantes,
demarcando uma passagem para um novo papel social dentro do territrio, por outro, a arte
da performance investe na transformao subjetiva dos participantes, que vivem a arte
enquanto ritual de passagem (Mller, 1996).
Em ambos os casos, os componentes estticos do ritual, isto , os sons, as
imagens, as plsticas e as aes, interferem na corporeidade dos sujeitos, causando uma
mudana sensorial e perceptiva da realidade. Contudo, necessrio apontar que tais
componentes estticos, tomados enquanto elementos fundamentais da ao e do discurso
ritual na arte da performance, formam um territrio pelo qual o coletivo procura dar evaso
aos seus desejos e simbolizaes.
Podemos entender que a presena deste territrio dos desejos na arte da
performance algo que torna especfico o modo de operar este gnero de arte, o que
aproxima seu campo de ao do ritual das sociedades tradicionais, j que, neste sentido, a
arte deixa de ser algo produzido para a apreciao para se compor enquanto territrio de
relao fundamentado na experincia esttica (Mller, 1996).
Buscando esta funo para a experincia artstica, a performance
contempornea vai se inspirar na investigao de processos que cruzam vida e arte. neste
sentido que procura nos rituais de sociedades no ocidentais informaes acerca de um
processo de criao expandido, tomado em seu aspecto auto-reflexivo e transformador.
A noo de territrio algo que nos prope a idia da arte enquanto campo de
identidade coletiva. Identidade que, expressando-se esteticamente atravs da ao ritual, o
espao de singularizao de um grupo.
Esta funo territorial deve ser considerada na arte da performance como um
processo de singularizao do corpo e do espao. A singularizao do espao e do corpo se
forma, portanto, como escritura dos processos criativos vivenciados. Na arte da
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performance, o acontecimento no mais delimitado pelo mito, mas se torna foco de
relance processual (Guattari, 1992, p. 135).
No de se estranhar que a arte da performance v buscar a criao de um
territrio distinto da vida cotidiana enquanto forma de singularizao coletiva. Num tempo
em que as imposies estticas do sistema scio-econmico tornam-se extremamente
coercitivas, a experincia de singularizao esttica tornou-se uma preocupao de artistas,
que j no incio do sculo XX aclamavam por mudanas de ordem operacional para a arte
contempornea.
Neste sentido, a noo de ritual aplicada a contempornea pode ser entendida
como o processo pelo qual o artista transpassa o espao regrado pelas foras de
subjetivao colocadas pelo sistema scio-econmico, para elaborar um territrio de ao
esttica singular, cujo objetivo proporcionar uma outra experincia de vida.
Diversos foram os desdobramentos no campo da arte aps o limiar demarcado
pelo surgimento dos Happeningse Performances nos anos 60 e 70. Podemos destacar os
processos de hibridizao que resultaram numa perda de hierarquia dos elementos
expressivos. J no incio do sculo XX a necessidade de fuso de linguagens encontrava-se
latente, mas foi aps a Segunda Guerra Mundial, que tornou-se claro que a arte como
experincia esttica hbrida se firmava em diversas atividades.
Definir a arte da performance de forma explcita no uma tarefa fcil. A
performance se caracteriza por uma arte que pode se manifestar com a maior intensidade de
uma ou mais linguagens artsticas. Deste modo, h performances que atuam com maior
proximidade com as formas teatrais, outras operam com maior influncia da dana, e h
ainda as performances que utilizam a msica e os sons para realizarem suas criaes. Isto
decorre do fato de que a performance uma arte de borda, que atrai diversos artistas que
buscam um processo de criao voltado para o manuseio de diversos suportes. Portanto, a
interdisciplinaridade e a variedade de suportes uma caracterstica da arte da performance.
H tambm uma proximidade da arte da performance com a explorao de
meios tecnolgicos diversos. A explorao das tecnologias caracteriza a ao vanguardista
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da arte da performance, que no se prende s regras e aos suportes tradicionais, mas incita a
explorao de novas possibilidades de produzir eventos e experincias. As novas
tecnologias so utilizadas pela arte da performance como meio de alcanar posies
especficas das percepes do espao e do tempo. Deste modo, pode se dizer que uma
relao exploratria das tecnologias percorrem o espao de criao da arte da performance.
Este trabalho objetiva investigar tais relaes. A relao entre o espao, o corpo
e o manuseio de instrumentos tecnolgicos ser tratada neste trabalho. O foco encontra-se
na preparao do espao e mais precisamente no modo como os xams Asurin utilizam
seus objetos rituais e instrumentos musicais na preparao de um espao especfico onde o
ritual ir ocorrer.
Minha tese a de que o espao ritual do xamanismo dos Asurin do Xingu, a
tukaia2, funciona como uma espcie de mquina perceptiva que fortemente mediada por
informaes audiovisuais. Atravs da tukaia, os Asurin podem transformar seus corpos e
tornar perceptveis determinados nveis de realidade.
Para apoiar esta imagem do ritual como uma tecnologia de percepo utilizarei
largamente a noo maqunico desenvolvida Flix Guattari (Guattari,1988). A tukaia ser
compreendida ento como um espao de maquinismos e articulaes entre o mundo
imaterial e o mundo material. A idia de mquina encontra-se, nesta situao, estendida aos
processos cognitivos, sendo que no se refere somente s instncias materiais de produo,
mas tambm a forma como o corpo e o psiquismo humano acoplam-se aos meios, travando
uma relao homem/mquina. Consideraremos, neste sentido, os campos relacionados aos
desejos e linguagem como parte integrante dos maquinsmos e devires que os homens
produzem em suas relaes scio-culturais e histricas, sendo que os meios materiais so
apenas uma faceta destas relaes.
Neste sentido, o instrumento musical ser entendido como uma mquina. Os
instrumentos musicais so mquinas sonoras pois so acoplados aos corpos para
estenderem suas possibilidades de se manifestar atravs dos sons. Mas ao mesmo tempo, o
6
2A tukaiarefere-se ao espao ritual do marak. Descreverei este termo mais adiante.
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som uma mquina de percepo, pois sua potncia refere-se possibilidade de gerar
modificaes nas qualidades do espao e do tempo. Os sons no so meros ornamentos
estticos dos rituais, mas formas concisas de marcar o tempo coletivo, pois agenciam
faixas de sintonia coletiva.
Conforme buscarei demonstrar, os xams utilizam os sons e imagens em seus
rituais para agenciarem estados de percepo especialmente voltados para alcanar seus
objetivos. desta relao com o sonoro que os xams podem tornar tangveis uma certa
qualidade do real que encontra-se oculta no cotidiano.
Mas a agncia sonora no ocorre separadamente dos outros meios utilizados.
H uma relao de continuidade entre os meios sonoros e plsticos, assim como com as
pinturas corporais, de modo que o ritual se apresenta como uma mquina formada pelas
conexes entre estas partes. Esta conexo entre formas sonoras, visuais e plsticas, por sua
vez, encontram-se articuladas aos corpos.
A relao entre os corpos e o espao ritual (entendendo o espao ritual como o
conjunto das partes conectadas) produz o maquinismo coletivo como uma tecnologia de
percepo do mundo.
Mas este aspecto tecnolgico do ritual no se encontra destacado da dimenso
humana e mgica. Assim, buscaremos expandir o sentido de tecnologia, no limitando a
acepo aos aspectos puramente voltados para a produo material. Ao nos referirmos s
tecnologias, estamos pensando na forma como as tecnologias de produo de sons e
imagens atuam na memria humana e nas relaes coletivas produzidas num determinado
contexto social. Um aspecto importante refere-se classificao colocada por Gell (1988),
que considera as expresses da performance como tecnologias de encantamento.
Nesta via, abordaremos a questo das tecnologias audiovisuais como
componentes necessrios do processo de armazenagem e transformao do conhecimento.
Partindo deste campo de relaes, iremos considerar a tukaiaAsurin (entendida como um
instrumento prprio do ritual marak) como uma tecnologia audiovisual que integra a
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totalidade dos meios e suportes relacionados a ela. As partes que integram esta grande
tecnologia so os mitos, as danas, os gestos, as palavras, os cantos, os sons, etc.
Esta abordagem, por sua vez, ser utilizada como subsdio para observar e
analisar o uso de tecnologias audiovisuais no campo da performance contempornea e
manifestaes artsticas relacionadas. O que interessa nesta abordagem destacar este uso
como uma forma de produzir efeitos na realidade dos indivduos.
Os performers contemporneos, neste sentido, fazem uso de tecnologias de
produo audiovisual para produzirem percepes. Entretanto, as tecnologias audiovisuais
contemporneas possuem uma qualidade particular relacionada ao mundo ps-moderno.
Se as tecnologias sonoras e visuais dos xams Asurin podem ser vistas como
um meio de modificar o corpo e as percepes assim como as tecnologias audiovisuais
contemporneas utilizadas na arte da performance, podemos concluir que o evento
performtico, em sua dimenso maqunica, uma tecnologia de produo de conhecimento
e de transformao da realidade, e que atravs de atos performativos os homens modificam
seus estados de percepo, agindo diretamente sobre o mundo material e o imaginrio.
Trajetria da pesquisa
A trajetria desenvolvida nesta pesquisa passou por diferentes fases. Durante o
ano de 2006 e incio de 2007, envolvi-me com o trabalho Documentao e transmisso
dos saberes tradicionais dos Asurin do Xingu, cujo objetivo foi organizar, catalogar e
digitalizar o acervo multimdia da Profa. Dra. Regina Polo Mller, composto por vdeos,
gravaes de udio, fotografias e imagens de motivos de pinturas corporais e artesanato,
pesquisados e registrados em mais de 30 anos de contato com o povo Asurin do Xingu. O
projeto foi patrocinado pelo Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional
(IPHAN) e resultou na produo de um kit multimdia. Este material foi destinado escola
indgena Asurin, assim como para outras instituies de ensino e pesquisa.
A participao neste projeto tornou-se algo de fundamental importncia no
desenvolvimento da pesquisa de doutorado, pois proporcionou o contato com um grande
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nmero de informaes audiovisuais. Este contato proporcionou uma preparao para a
pesquisa de campo que ocorreu em Setembro de 2007.
Uma questo importante relacionada ao desenvolvimento do projeto acima
citado refere-se insero destes registros na prpria aldeia Asurin, de modo que
servissem como elemento de articulao da memria e das prticas rituais atuais com as
prticas realizadas em seu passado. Tal questo torna-se pertinente quando se observa o fato
dos Asurin terem sofrido uma sbita transformao cultural nas ltimas trs dcadas.
Recentemente, no ano de 2006, a televiso foi inserida na aldeia, e tornou-se
um foco de ateno no horrio em que a aldeia possui energia eltrica (gerada por um
gerador a gasolina), que vai aproximadamente das 19:00 s 22:00 horas. A insero do kit
multimdia na aldeia cria uma espcie de contraponto de informaes geradas a partir de
tecnologias audiovisuais: de um lado, a televiso e outras tecnologias de produo de
subjetividade que atuam e introduzem novos aspectos (estticos, polticos, culturais,
tcnicos) na cultura Asurin, e de outro o prprio passado das tradies Asurin,
atualizado na memria dos indivduos pelas imagens e sons do kit multimdia. O kit
agencia, portanto, a recordao dos modos de comportamento tradicionais dos Asurin do
Xingu, o que os leva a discusso acerca das transformaes sofridas em sua prpria
identidade. Este conflito entre o modo de vida do passado e o modo de vida atual encontra-
se presente no incmodo vivido pelos indivduos mais velhos da aldeia em relao aos mais
jovens, que segundo aqueles, no se interessam mais em aprender a msica e os
procedimentos rituais, nem tampouco em exercer os papis rituais necessrios na
perpetuao de suas performances.
Esta dimenso de uso da tecnologia digital de imagem e som, considerando o
aproveitamento de suas potencialidades particulares (facilidade de reproduo e suporte)
fez ressaltar uma questo que demarcou a relao entre os rituais Asurin e a arte da
performance em minha pesquisa de doutorado. Esta questo refere-se aos aspectos
tecnolgicos que envolvem a produo de memrias e agenciamentos que fazem parte dos
rituais indgenas, mas que tambm permeiam as prticas contemporneas.
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Quando fui aldeia Asurin, levei gravaes de cantos e fotografias que foram
mostrados ao xam e ao wanapy3, e tambm a outros integrantes da comunidade. O
processo desencadeado nesta ao modificou minha percepo acerca do uso das
tecnologias, revelando uma relao estreita entre performance, tcnica, agncia e memria.
Ao observar que no contato com as imagens e sons o xam Asurin (Moreyra)
resolveu realizar a produo de um ritual que continha os objetos mostrados nas fotografias,
me dei conta de que uma das questes mais presentes na produo de um ritual a sua
articulao com a memria. O ritual um agenciamento da memria e dos ciclos
relacionados ao tempo mtico. Uma outra questo gradativamente foi sendo traada no
decorrer da pesquisa: no ritual ocorre uma transformao do estado de percepo dos
participantes. Assim, memria e imaginao so combinados nas aes rituais, produzindo
novos vetores de subjetivao coletiva, produzindo aquilo que Turner (1990) denomina de
experincia e auto-reflexividade.
A Profa. Regina Mller j havia me contado que o xam Asurin gostava de ver
vdeos com efeitos nas imagens. Os vdeos crus, no formato original de registro, no
interessavam tanto aos xams, que preferem os vdeos funcionando como as imagens dos
sonhos. Isto comprova a idia de que o sonho do xam, um dos principais elementos
indutores na criao do ritual, possui um aspecto tecnolgico, funcionando como uma
extenso do poder de viso. O sonho mostra aquilo que est oculto, e que o olhar
desprovido de transformaes no poder ver. Ao sonhar, o xam penetra o espao dos
espritos, revelando que o sonho um espao diferente do espao cotidiano.
Assim, o ritual Asurin pode ser visto como uma grande tecnologia da
memria, da experincia e da percepo, assim como potencialmente podem ser o vdeo e o
som armazenados e modificados em aparatos modernos, considerando seu poder de
transformar o tempo e o espao.
Baseando-se nesta constatao, faz-se pertinente, por outro lado, observar a
forma com que artistas contemporneos tm utilizado o domnio tecnolgico da imagem e
10
3Papel ritual do marak. Descreverei este termo mais adiante.
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do som em suas performances, com a inteno de produzir corporeidades e espacialidades.
Neste sentido, a arte da performance sempre afirmou uma posio de vanguarda em relao
s novas tecnologias, mantendo-se numa inteno de explorao destes suportes e das
possveis relaes desencadeadas com o corpo.
desta trama entre os aspectos tecnolgicos do ritual xamanstico Asurin e os
aspectos tecnolgicos das performance artsticas contemporneas que esta pesquisa se
alimentou. Esta relao tornou-se o foco principal deste trabalho, na medida em que tanto
em um contexto quanto em outro, a tecnologia audiovisual pode ser utilizada com o
objetivo de agenciar espacialidades e corporeidades.
A primeira parte deste trabalho realiza uma descrio histrica acerca do
surgimento da arte da performance no sculo XX. Trata tambm de apontar as
caractersticas particulares deste gnero. A questo do rudo, do deslocamento de objetos,
da collage, do acaso e da indeterminao so abordados como elementos que iro constituir
o discurso performtico no sculo XX. Tambm destacada a relao entre as vanguardas
artsticas e as novas tecnologias. O desenvolvimento de novas tecnologias, especialmente
as que se referem a armazenagem de sons e imagens, produziram uma mudana
significativa na operao artstica durante o sculo XX. O domnio da armazenagem de
sons e imagens, desencadeados no incio deste sculo, integrou de forma significativa as
operaes artsticas dos seguimentos vanguardistas, estabelecendo novas abordagens acerca
da relao entre arte e tecnologia. Doravante, o surgimento dos Happenings e da arte da
performance nas dcadas de 60 e 70 ir possuir estreita relao com a forma como as
vanguardas artsticas exploraram a operao tecnolgica em relao ao corpo e ao espao.
Buscando delinear tal relao, nesta primeira parte apresento a noo de
tecnologia e mquina enquanto fenmenos relacionados ao domnio do corpo e da memria
humana. O que exploro o aspecto de integrao corpo-objeto-mquina, demostrando que
objetos e mquinas funcionam como extenses corporais. Deste modo, apresento ao leitor a
idia de que os objetos artsticos, os instrumentos musicais e visuais, possuem aspectos
tecnolgicos.
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A segunda parte um estudo sobre o ritual e o xamanismo. Trata-se de uma
compreenso das transformaes corporais que ocorrem no xamanismo. Nesta parte,
busquei desvendar as relaes dos xams com a preparao do espao ritual, o uso de
pinturas, vestimentas, objetos e instrumentos musicais que compem o processo de
transformao de seus corpos. Para tanto, utilizei as noes de perspectivismo amerndio,
desenvolvida por Eduardo Viveiros de Castro, para propor a idia de que os aparatos rituais
dos xams so componentes que, acoplados em seus corpos, possuem a funo de
modificar suas potncias e suas percepes. Nesta sentido, desenvolvo a idia de que os
objetos, sons e imagens funcionam, no ritual, como um tipo de vestimenta do corpo. Os
xams, relacionando-se com estes componentes, desenvolvem tcnicas de transformao e
transportao corporal atravs das quais podem transitar pelos planos e caminhos csmicos.
A terceira parte deste trabalho relaciona-se com a pesquisa de campo realizada
com o ritual marak, dos Asurin do Xingu. Nesta parte, apresento aspectos da cosmologia
Asurin, seus seres, espaos e substncias, assim como as caractersticas especficas da
operao ritual realizada no marak. Trabalhando com o xamanismo Asurin, procurei
expandir as questes tratadas na parte anterior e, observando que a relao entre diversos
componentes do ritual deve ocorrer de forma integrada, proponho a idia de que o espao
de realizao do ritual marak atua como uma mquina de percepo. A partir desta
noo, realizei uma anlise do ritual xamanstico marak, considerando a experincia da
pesquisa de campo realizada em Setembro de 2007 e as diversas informaes colocadas por
Mller em seu livro. Conforme j descrevi, um fato importante desta experincia foi o
contato dos Asurin com as fotografias e gravaes de udio (1978 e 1979) que levei
aldeia. Neste contato, o xam Asurin sonhou que deveria realizar um ritual, e solicitou ao
seu ajundante (wanapy) que produzisse um tambor semelhante ao que eu lhes havia
mostrado nas fotografias. As informaes audiovisuais armazenadas e levadas por mim
aldeia desencadearam o processo de realizao de um ritual para o esprito apykwara,que
durou cerca de dois meses. Durante os primeiros 20 dias, pude acompanhar a produo do
ritual e a confeco dos objetos utilizados pelo xam, alm de assistir e filmar uma srie de
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ritos realizados. A partir desta experincia, tambm reflito sobre uma questo observada: a
tendncia que o xam demonstrou de querer integrar ao ritual marak os equipamentos
audiovisuais levados por mim.
Na quarta parte deste trabalho, produzi uma reflexo sobre as possveis relaes
que podem ser apontadas entre as operaes performticas realizadas no xamanismo, visto
especialmente atravs da pesquisa de campo realizada com o ritual marak,e as operaes
artsticas realizadas na arte da performance. Nesta parte exploro as relaes entre
performance artstica e performance ritual, buscando mostrar que h um entrelace entre
estes dois domnios. Tambm assinalo como caracterstica comum a linguagem hipertextual
e os processos sensoriais que encontram-se presentes tanto no xamanismo quanto na arte da
performance. Neste sentido, a preparao do espao ritual do marak aproximada ao
processo de montagem de uma instalao, de um ambiente que envolver os corpos em sua
dimenso esttica, constituindo, deste modo, um agenciamento. A mudana de estado
corporal, presente tanto no xamanismo quanto na arte da performance, encontra-se
relacionada a produo de um agenciamento que articula corpo e espao. Para ampliar esta
questo do espao e do agenciamento proponho uma discusso acerca do espao sonoro,
percorrendo a idia de que o som um agente que modifica o estado corporal. Finalmente,
busco levantar os aspectos especficos do uso de tecnologias digitais em processos artstico
contemporneos, caminho atravs do qual chego ao tema das imagens sem matria e das
matrias sem imagem, da vida e da morte, da conservao e da transformao, enquanto
poticas que aproximam os processos relacionados a arte da performance e a performance
xamanstica.
Como um desdobramento da experincia obtida no decorrer desta pesquisa,
especialmente na pesquisa de campo, a quinta parte deste trabalho descreve o processo de
criao e funcionamento de uma instalao audiovisual interativa como suporte de minhas
prprias memrias. Esta instalao, vista por mim como um instrumento de decomposio
das experincias inerentes a esta pesquisa, resulta de uma interseo entre a memria e a
imaginao. A instalao contm os registros em udio e vdeo realizados durante a
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pesquisa de campo, mas tambm imagens e sons extrados do acervo da Profa. Dra. Regina
Mller. um espao em que o pblico poder atuar e acessar as informaes referentes ao
ritual marak, a performance e as relaes entre corpo, percepo e tecnologia
desenvolvidas nesta pesquisa. A instalao desdobra-se, deste modo, da experincia
relacionada a preparao do espao ritual do marak e da relao estabelecida com o
wanapy, vivida to intensamente por mim no perodo da pesquisa de campo, mas tambm
das investigaes intelectuais realizadas no decorrer da pesquisa. , portanto, um suporte
no-verbal que acompanha o material textual que esta tese.
Finalmente, exponho algumas ltimas questes, a partir de toda a trajetria da
pesquisa, traando, assim, algumas concluses. Neste sentido, retomo a questo do corpo,
das tecnologias e do espao na performance, porm para confirmar a tese de que a
performance possui uma estreita relao com a experimentao sensorial. Esta relao
ocorre, na arte contempornea, atravs do hibridismo de linguagens e suportes, da
explorao de objetos, sons e tecnologias como dispositivos que, acoplados aos corpos,
transformam seus estados de percepo. A criao do espao de percepo sinestsica
apoiado em mltiplos suporte, processo tpico desenvolvido na arte da performance,
aproxima seu modo de operao operao ritual. A descontinuidade e transformao dos
nveis de percepo aproxima, deste modo, a arte da performance ao xamanismo,
apontando para um modo de operar a arte que possui como foco a produo de realidades.
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I
Performance e tecnologias no sculo XX
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A origem da performance
A performance enquanto uma linguagem artstica de mltiplos suportes,
composta de aes rituais que buscam explorar a multiplicidade expressiva e existencial do
corpo possui suas origens nas manifestaes mais antigas. As mais antigas sociedades nos
mostram que suas manifestaes artsticas mistas no se encontram sob o domnio de uma
especializao de linguagens, nem tampouco deslocadas de uma integrao com os demais
variados setores sociais. Rituais de todos os tipos so responsveis por mobilizar msica,
plsticas, pinturas, dana e gestos, como forma de expressar um sentido que deve ser
manifesto num contexto social.
Todavia, sabemos que o processo de racionalizao e universalizao que
demarcou a cultura europia nos ltimos 600 anos, culminou numa diviso das artes
enquanto fenmenos pertencentes a campos especficos. A linguagem especfica de cada
um destes campos deveria ento se distanciar das demais, para ser melhor observada e
tecnicamente aprimorada de acordo com os treinamentos oferecidos por uma determinada
escola.
Conforme veremos mais adiante, as vanguardas artsticas do incio do sculo
XX iniciaram um movimento que, de certo modo, renunciou a esta segmentao. Assim,
diversos trabalhos desenvolvidos na primeira metade do sculo XX se caracterizam como
fenmenos que se manifestam em diversos suportes.
Mas no somente a fuso de linguagens artsticas que ir influenciar o
surgimento da arte da performance na dcada de 70. Uma proximidade com os ideais
anarquistas, com a perda de hierarquia e de ruptura com as tradies artsticas europias
iro influenciar a arte no incio do sculo XX. Tambm devemos observar que as mudanas
de ordem tecnolgica tiveram extrema importncia na modificao das operaes estticas,
considerando desde o surgimento de novos suportes at as mudanas de ordem perceptiva
relacionadas a inveno da fotografia, do cinema e dos gravadores de udio. A relao com
as novas tecnologias to significativa neste movimento histrico da performance, que
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poderamos mesmo afirmar que a arte da performance possui, como algo inerente ao seu
discurso, a explorao destas novas tecnologias em processos de criao.
A histria da performance no sculo XX a busca de uma arte da
presentificao, que modifica o espao e o corpo, que subverte as formas pr-estabelecidas
de arte relacionadas ao domnio da disciplina do corpo e das percepes de mundo. Assim,
ao invs de haver uma inteno de modelagem, a performance prope o discurso do
processo, da singularizao, como linha de fuga das tradies europias que se colocaram
num movimento de universalizao (Levy, 1987).
Falar em performance falar em uma arte aberta, no sentido mais forte do
termo, pois no somente uma obra aberta s variedades de formas de recepo, mas uma
arte que possui a interatividade como algo inerente ao seu discurso. Falar de performance
falar de uma arte de fronteira, de uma arte que no se sustenta nas cristalizaes do discurso
escrito, mas que encontra-se numa posio constante de tenso entre o mundo real e
ficcional. A performance incita mudanas na realidade, provocando novas percepes,
induzindo os espectadores ao.
A capacidade de agenciar processos de subjetivao inerente arte da
performance, de transformar os estados psquicos e corporais, devolvendo-os s operaes
inconscientes, ao mundo dos sonhos e da loucura, faz desta arte uma espcie de campo
exploratrio das atividades humanas. A explorao dos meios estticos e tecnolgicos, as
intervenes nos espaos sociais e as prticas corporais de limite so processos
desenvolvidos no campo da performance; e que diferenciam este tipo de arte da arte
apreciativa de tradio europia. Neste sentido, a performance se aproxima dos rituais de
sociedades tradicionais, cujas caractersticas so a realizao de passagens entre um limiar
corporal ou de percepo, e no pode ser compreendida como representao, mas como
presentificao.
As origens da performance, ento, esto relacionadas a prpria origem do
homem, aos seus devires, expanso da memria, s tecnologias de apreenso do real, ao
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uso do transe obtido nas longas jornadas de cantos e danas, ao uso prolongado dos
instrumentos de sopro e percusso, ao trabalho respiratrio.
A performance dionisaca, pois refere-se ao inconsciente e aos processos
liminares, s fronteiras. uma arte de imagens ambguas e signos mveis. Procura, com
estes instrumentos, extrair novas relaes entre contextos sociais e tcnicos. Interliga as
relaes do mundo material com o mundo imaginrio, do mundo visvel com o mundo
invisvel, da msica com a plasticidade do mundo, do efmero com o permanente, do real
com o virtual.
Neste sentido, podemos falar de uma performance contempornea que ritualiza
e modifica o corpo e os estados de percepo, mas tambm podemos nos referir a
performances rituais de povos de tradio no europia enquanto performances
contemporneas, que sobrevivem em estticas singulares e territoriais, resistindo aos
interesses da esttica dominante. Assim, ao falar em performance, estamos falando em
multiplicidades, em formas complexas e descontnuas de apreenso de realidades.
No se localizando na linha histrica, mas na operao que entende o universo
enquanto multiplicidade, movimentos finitos que se desterritorializam em velocidades
infinitas para se territorializarem novamente, a performance uma arte que no Arte,
corpo multiplicado, voz de silncios.
A origem da performance , ontologicamente, a prpria origem dos corpos e
dos objetos, sua morte, sua revitalizao, suas passagens. Esta arte que no sculo XX
encontra sua ascenso nas experimentaes das vanguardas, origina-se no prprio processo
de nascimento e morte das coisas. Opera, deste modo, as formas de pensamento e ao, a
corporificao e a descorporificao de conhecimentos.
Um som incessante, sem incio nem fim, um rudo que no harmoniza, fornece
a performance um modo intenso de operar as coordenadas do espao-tempo corporal,
incitando o mundo afinado dos homens e da msica a percorrerem os caminhos csmicos,
os estados alterados, as multiplicidades que no podem ser alcanadas sem que para isto se
realize sacrifcios, sem que para isto no se deva despir o corpo, escarific-lo, mudar suas
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roupagens, seus costumes e hbitos impregnados de tendncias universalizantes e
dominadoras.
Assim, a performance tambm uma arte dos rudos, pois uma arte da
irregularidade e da desterritorializao. Ela pode formar um outro territrio para a
conscincia, mas desterritorializa o que j territrio, intervindo, deste modo, no sentido
do mundo.
A performance uma arte das intensidades. Ela busca intensificar certas
impresses do mundo, produzir fluxos e caminhos entre estados fsicos. Intensifica, assim,
relaes entre diversos meios de expresso, intensifica novos sentidos para os objetos do
mundo que se encontram dominados por um estado de inrcia conceitual.
Aps um longo perodo de universalizao e expanso4, a arte europia, em
contato com a arte de outros povos, diante de novas concepes acerca do corpo e numa
descontinuidade perceptiva que somente pde ocorrer com a intensa renovao dos meios
tecnolgicos, penetra num conflito entre o passado e o futuro, entre as formas temporais
oferecidas pelos encadeamentos da escrita e as formas contextuais desencadeadas pelas
novas tcnicas de armazenagem de sons e imagens. Neste contexto histrico, a busca por
novas formas de expresso marcar os movimentos vanguardistas que culminaro numa
mudana radical das formas de realizao artstica.
O que buscarei mostrar neste captulo refere-se relao da performance
contempornea com os meios tecnolgicos. Neste sentido, penso que os desdobramentos
relacionados revoluo dos meios de apreenso de sons e imagens no sculo XX estejam
relacionados ao surgimento da arte da performance como um gnero exploratrio.
Para realar tal informao, irei buscar uma relao entre as performance
xamansticas e os instrumentos que o xam manuseia, traando o aspecto tecnolgico de
suas operao rituais. Neste sentido, o ritual ser observado segundo uma tcnica de
20
4Pierre Levy (1987) descreve a tendncia de universalizao e o poder de neutralizao relacionados com acultura europia, observados na cincia e a arte. Marshall Mcluhan (1964) escreve sobre a expanso efragmentao referente s tecnologias mecnicas.
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produo de sons, imagens e conexes maqunicas que so agncias da corporeidade e da
memria dos participantes.
Contudo, antes de realizar estas relaes com maior profundidade, buscarei
traar uma pequena trajetria histrica, focando na presena destas relaes na Performance
do sculo XX.
Vanguardas
O rudo, aparecendo como constituinte do espao de escuta, deveria ento ser
incorporado ao fazer musical, assim como os recursos vindos da modernidade. Esta uma
nova era, afirmavam os futuristas na Itlia. O poeta futurista F. T. Marinetti propor uma
arte que se separe das tradies, e manifesta tais idias atravs de suas poesias dinmicas e
sinpticas. Uma tendncia de relacionar a voz ao rudo ir gradativamente constituir as
performances futuristas. O imaginrio rondava os sons das artilharias blicas presentes na
hostilidade dos primeiros anos do sculo XX na Europa.
Influenciado pela artilharia onomatopeica de Marinetti, Luigi Russolo, um
pintor e msico futurista, foi pioneiro na criao de novas sonoridades, e j em 1913
escreveu seu manifesto A Arte dos Rudos. Russolo inventou seus intonarumores,
instrumentos produtores de rudos e alturas indefinidas. Mquinas de som expressando suas
idias acerca da nova paisagem sonora que foi instaurada no mundo do sculo XIX e incio
do sculo XX. Segundo Russolo, o rudo foi originado do resultado da criao das
mquinas pelo homem, e chegou para reinar soberano sobre a sensibilidade humana.
Russolo acreditava ter inventado uma nova arte. (Goldberg, 2006, p. 11).
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Figura 1 - Luigi Russolo ( esquerda) e os intonarumori.5
O primeiro instrumento construdo por Russolo, o scoppiatore, produzia um
som semelhante ao motor de um automvel e podia alcanar uma tessitura de 10 tons
inteiros, passando por todos os microtons6 intermedirios. Nos anos posteriores Russolo
desenvolveu outros instrumentos geradores de rudo, sendo que ao todo, os instrumentos de
Russolo incluam 12 sistemas diferentes de gerao de rudo. Cada instrumento era
composto de 3 partes: Um dispositivo para amplificar o som, um outro para controlar a
altura das notas, e um terceiro mecanismo para gerar o rudo especfico de cada
instrumento. Este ltimo poderia ser algum tipo de mecanismo manual ou um motor
eltrico. O mecanismo que controla a mudana de registro das notas dos instrumentos
composto por uma pele de tambor montada sobre uma armao - como em um tambor,
sendo que um fio faz com que ela seja esticada ou solta at atingir a freqncia desejada.
O mrito de Russolo no se restringe sua determinao pelas novas
possibilidades sonoras, mas tambm sua habilidade para manusear os materiais, pensar
solues mecnicas e acsticas, e construir os instrumentos. A realizao de sua msica
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5http://www.windworld.com/feature_pages/russolo.htm (Visitado em 28/06/2009).6O microton refere-se aos intervalos musicais menores que um semitom.
http://www.windworld.com/feature_pages/russolo.htmhttp://www.windworld.com/feature_pages/russolo.htm7/17/2019 Eduardo Nespoli
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inerente construo de seus instrumentos. Ao criar suas mquinas sonoras, Russolo criou
tambm uma visualidade caracterstica, um campo de experimentao artstica em que o
trabalho com os materiais to importante quanto o resultado sonoro desejado.
Os futuristas no somente envolveram-se com a poesia onomatopeica e o
rudo, cujo principal representante e fomentador foi Marinneti, como tambm pregaram
uma mecanizao dos movimentos nas aes cnicas. O tema da mquina passou a ser
explorado em diferentes trabalhos. Um exemplo desta dramatizao acerca das mquinas
a pea Macchina Tipografica de Giacomo Balla, de 1914, cujos atuantes encenavam um
mbolo e uma roda, emitindo sons onomatopaicos e desenhando peas de mquinas no
espao (Goldberg, 2006).
As performances futuristas, unindo sons, gesto e espao, pregavam
concomitantemente a abolio do espectador, e tinham uma atmosfera de provocao, e
muitas vezes acabavam em confuso. Muitos artistas pregavam o prazer de ser vaiado.
Artistas futuristas, imersos numa relao agressiva com o pblico, engendraram muitos
manifestos acerca de sua arte. Precisamente, podemos estabelecer como caracterstica
destes manifestos uma inteno de assimilar a transformao tecnolgica que ocorria ao
trabalho artstico, uma tenso decorrente da eminncia da guerra e da presena acelerada
das engrenagens de metal e os rudo - tomados pelos futuristas como representantes deste
novo mundo. Em meio a este jogo de tenses, os futuristas pregavam uma arte hbrida, sem
limites, jogando com diversas expresses. A inteno dos futuristas, conforme afirmada no
manifesto do teatro de variedades, era a utilizao de todos os recursos que arrastasse a
inteligncia do pblico para o mundo da loucura. O teatro de variedades era um gnero
hbrido em que se utilizava cinema, acrobacia, msica, dana, como meios de expresso
para gerar este clima de efervescncia proposto pelos futuristas.
Este movimento em direo loucura e ao rudo tambm pode ser observado
em relao ao movimento surrealista e suas influncias vindas do inconsciente freudiano. O
rudo aparece para denunciar o sentido de pureza que marca a neutralizao e mecanizao
tcnica da msica e das artes em geral. Ele aparece em conjunto com a operao de
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deslocamento de sentidos e livre associao. O inconsciente, enquanto um mundo potencial
e no superficial, relacionado ao mundo dos sonhos, opera no campo das relaes no-
lineares e conflituosas. O inconsciente no puro, ruidoso! Sua materialidade abriga uma
plasticidade sonora complexa e polissmica, e as imagens podem ter sentidos mveis. Sua
no resoluo e seus campos complexos de significado, mais voltados para a livre
associao e os deslocamentos energticos, do que para a objetividade cartesiana, ir
modificar as perspectivas acerca da arte.
O aparecimento de um discurso onrico derivado da noo de inconsciente vai
sustentar a idia de que os smbolos possuem relaes mais amplas, compondo formas mais
associativas de linguagem. O mundo das linguagens inconscientes no incio do sculo XX
um vetor de influncia para a produo das vanguardas artsticas, e sua construo se faz
atravs da investigao de novas relaes com as imagens e a realidade. O inconsciente,
este mundo conflituoso e associativo, prope uma ampliao da linguagem, revelando
aspectos cognitivos no-lineares dos sonhos humanos, aspectos estes que tambm
encontram-se associados ao universo dos mitos, da criana e da loucura.
Um outro campo de experincia muito importante para o surgimento da
performance foram as experincias realizadas na Bauhaus por Oskar Schlemmer (Goldberg,
2006). A escola de artes Bauhaus foi inaugurada em 1919 e uma de suas intenes era
produzir uma unificao de todas as artes. Schlemmer realizou diversos estudos
sistemticos sobre a profundidade e o espao, em busca de um aprimoramento na produo
de relaes com os corpos de seus bailarinos. A questo do espao era uma investigao
que fundamentava os estudos da Bauhaus, e Schlemmer aprimorou tal assunto buscando
relacionar figurinos, objetos e espao com as possibilidades de realizao de movimentos
corporais. Em sua dana das ripas, os movimentos da danarina somente poderiam ser
realizados segundo as ripas longas e finas que estavam presas em seu corpo.
No trabalho de Schlemmer, um peso razovel foi dedicado questo da relao
homem-mquina, que resultaram na criao de diversos bals. Nestes bals, os figurinos
foram projetados para modificarem as relaes do corpo no espao, produzindo a
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metamorfose da figura humana em objeto mecnico. O mais famoso de seus bals, o Bal
Tridico, sintetizava um conjunto de influncias de Schlemmer. Sua teoria da marionete
tinha como propsito modificar os corpos e movimentos dos bailarinos, para que se
movimentassem como marionetes.
As peas de teatro realizadas na Bauhaus exploraram recursos tecnolgicos
com o intuito de modificar as percepes do espao. Em uma pea de Capek intitulada R.
U. R., Kiesler utilizou uma projeo flmica ao fundo, exibindo numa tela circular
imagens de trabalhadores em uma fbrica. Sua projeo objetivava gerar profundidade aos
acontecimentos desenvolvidos no palco e, curiosamente foi reprimido pela polcia de
Berlim, que acreditava que os equipamentos utilizados em suas projees pudessem
provocar um incndio. Deste modo, em todas as noites de apresentaes um sino era tocado
pela polcia, com a inteno de soar um alarme contra a possibilidade de incndio,
ocorrncia que foi aproveitada no espetculo (Goldberg, 2006).
Deslocamento de objetos
Numa outra via, mas ainda operando o significado das imagens e das coisas, os
ready-made de Duchamp colocaram em xeque o significado do objeto, e em especial o
significado do objeto de arte, denunciando a mudana de nvel produtivo em que a
sociedade ocidental havia se inserido no processo de industrializao. Os ready-made so
objetos industrializados que so convertidos em obras de arte atravs do gesto do artista.
Trata-se de uma operao de deslocamento de contexto, que transforma o significado do
objeto. Quando Marcel Duchamp deslocou o urinol para a exposio de arte, seu gesto
produziu no espectador um sentimento de estranheza. Duchamp referiu-se ao urinol como
fonte. A ao de Duchamp criativa num sentido especfico, pois o objeto em si no foi
criado por ele. Encontramos em seu gesto o jogo filosfico que transforma, no o objeto,
mas o seu sentido.
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Nas artes plsticas, outro exemplo deste processo de deslocamento so as
assemblages. Preocupado em deslocar os objetos, recombinando-os numa espcie de delrio
potico, o artista plstico alemo Kurt Schwaitters iniciou em 1923 uma grande assemblage
em seu apartamento, composta por objetos recolhidos na rua. Este procedimento - de
encaixe ou recombinao - ir posteriormente influenciar a dinmica de criao de outros
artistas, como Claes Oldenburg, Rauchenberg e Allan Kaprow (Glusberg,1987). A
influncia de Schwaitters torna-se relevante para a performance, na medida em que as
assemblages colocam-se gradativamente como metodologias de criao. Estas operaes
realizadas nas matrias, nos objetos e nos signos, que possuem como objetivo transformar-
lhes o significado, recombinando e reinventando foram, doravante, largamente utilizadas
por artistas ligados ao movimento doHappening.
Mas a origem das assemblagespassa necessariamente pelos procedimentos de
collage7 criados por Max Ernst. Na collage, utiliza-se imagem justapostas, mas que
aparentemente no ocupariam aquelas posies. A pintura surrealista utiliza a collage para
criar uma linguagem no objetiva relacionada com a linguagem dos sonhos. A
descontextualizao j era portanto algo inerente collage pictrica, e que ter sua
proporo ampliada na medida em que se insere em relao a objetos plsticos. Este salto
da pintura para s obras plsticas e o espao uma caracterstica da arte moderna.
Nas dcadas de 60 e 70, alguns artistas ligados ao movimento da performance
pensaro seus prprios corpos como plsticas. Robert Whitman percebe o tempo e o corpo
como um elemento plstico passvel de modelao, como gesso ou tinta (Goldberg, 2006).
Esta percepo do corpo como um objeto plstico e a performance como uma sntese de
aes no espao material algo recorrente na performance contempornea. O corpo, como
algo modificvel, ser amplamente pensado pela performance como uma escultura. Mas a
escultura do corpo algo que pode ser construdo e reconstrudo no evento performativo.
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7 A Collage refere-se ao deslocamento ou justaposio de imagens que, na realidade ordinria, nopertenceriam a um mesmo espao simblico. Compem, deste modo, antinomias, gerando ambigidades parao espectador. O deslocamento na collage possibilita uma leitura aberta da obra, relativizando o sentido decada objeto contido nela. Segundo Cohen (1989), no ato criativo da performance a collage assemelha-se aos
processos de livre-associao descritos por Freud.
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Assim, percebe-se o corpo como uma plstica em constante modulao, uma imagem em
movimento, com sentidos que vo sendo construdos na prpria ao que, por sua vez,
encontra sua dimenso ampliada na materialidade do mundo, nos objetos e tecnologias de
comunicao.
O projeto criativo de interveno no mundo, presente desde as mais pioneiras
manifestaes das vanguardas, que explora as matrias do mundo para criar sons, plsticas,
texturas, imagens e sentidos ser acentuado nas operaes artsticas relacionadas arte da
segunda metade do sculo XX. O mesmo poder se dizer sobre a relao estabelecida entre
a msica, as artes plsticas e as novas tecnologias, que explorados em conjunto daro
origem a um caminho de convergncia e hibridizao de linguagens.
A tcnica de collage ser utilizada como linguagem na performance com a
inteno de produzir uma dinamizao cnica. No processo de criao, as imagens cnicas
geradas sero deslocadas, intercambiadas e remontadas em eventos, segundo um mtodo
que inclui a livre associao.
A performance gera assim uma linguagem do inconsciente, com imagens
polissmicas e corpos mutantes, para reafirmar aquilo que as pesquisas contemporneas no
campo da psicologia social, da fsica e da antropologia tambm esto preocupadas em
afirmar: a complexidade e multiplicidade do real, a subjetividade e o corpo como elementos
modulares.
A afirmao contnua de que as coisas no possuem um significado fechado,
estando abertas a transformaes e recombinaes, e que o sentido de um espao encontra-
se nas relaes que so estabelecidas com os corpos, fornecer sustentao ao discurso da
performance contempornea, sendo uma das caracterstica da arte ps-moderna.
Acaso e indeterminao
Modificar o objeto musical e a dimenso da escuta foi uma das questes
tratadas por John Cage em seus trabalhos. Uma atitude vanguardista pode ser observada em
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seus trabalhos com o piano preparado8. O piano preparado a negao de uma tradio
relacionada ao som do piano e suas dimenses histricas, de suas relaes tecno-sociais
inscritas em seus aspectos materiais. Cage objetivou a criao de um novo instrumento-som
a partir do piano, que foi deslocado de sua primeira condio atravs da fixao de diversos
objetos entre as cordas. Deste modo, pde criar sua orquestra de percusso. Esta ao de
deslocamento do objeto, de re-posicionamento de sua sonoridade e de seus significados
um gesto que conduziu e conduz muitos dos trabalhos no campo da msica contempornea
e, especialmente, da Arte Sonora9.
O deslocamento entendido aqui como deslocamento de posio,
deslocamento de significados, isto , afirmao da mobilidade de sentidos atribudo aos
objetos e sons. A sonoridade dos pianos preparados de Cage representam esta encruzilhada
de sentidos, pois embora ainda seja possvel reconhecer aspectos timbrsticos do piano, sua
sonoridade produz na escuta uma sensao de estranhamento, pois o timbre tambm remete
ao som de instrumentos desconhecidos. A singularizao do timbre valorizada como
aspecto de extrema relevncia nos pianos preparados de Cage. No piano preparado, a
tradio re-arranjada numa nova possibilidade, atravs de uma ao de deslocamento do
objeto musical.
O pensamento de Cage, anunciado em seu piano preparado, reflexo de sua
concepo de acaso e indeterminao, que ele mesmo levar, doravante, para outros artistas
e que produzir uma verdadeira reviravolta na arte no incio dos anos 60 nos Estados
Unidos da Amrica. Cage estava ciente da necessidade de uma arte que desvendasse os
caminhos do hibridismo e da multimdia, e influenciou radicalmente o processo criativo de
artistas durante os anos 50 e 60, inclusive os que deram origem aos movimentos do
happeninge arte da performance.
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8O piano preparado consiste na fixao de diversos objetos nas cordas do piano, que modificam a suasonoridade.9A Arte Sonora, movimento artstico desencadeado ao final dos anos 70 e incio dos anos 80, caracteriza-se
por ser uma linguagem artstica que, partindo do som, busca um processo de hibridizao com outraslinguagens, especialmente as artes plsticas. Muitos trabalhos de Arte Sonora indicam uma relao estreitaentre o som e o espao, ao contrrio da msica,que possui uma relao mais forte com a dimenso temporal.
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Mas no possvel referir-se ao pensamento de Cage sem localizar suas
influncias, vindas de Duchamp e de sua iniciao na filosofia Zen Budista. Em 1937, Cage
havia escrito seu manifesto intitulado O futuro da msica. Neste manifesto, Cage anuncia
suas idias de composio musical a partir da utilizao de rudos, afirmando suas
intenes de controlar o trabalho sonoro com os sons que extraia dos mais diversos objetos,
alm de sons registrados em gravaes. Sua inteno em manusear tais sons sofreram
influncias tambm do projeto de Luigi Russolo, e Cage muitas vezes se referia a Arte dos
Rudos. Todavia, ao contrrio da difamao e confuso que rodeava as performances
futuristas, ao obra de Cage foi muito bem aceita nos circuitos artsticos de Nova York.
Transformando objetos de todos os tipos em instrumentos musicais, inclusive
objetos tecnolgicos como rdios e toca-discos, Cage anunciava ao mundo,
concomitantemente, a necessidade de explorar as relaes de acaso e indeterminao em
suas performances. Para Cage, conceitos como o de mutabilidade, fluncia e flexibilidade
foram importantes vetores de criao e explorao de uma arte de indeterminao. Cage
anunciou sua idia de msica no-intencional, que segundo ele, deixaria mais claro ao
ouvinte que a audio da pea uma manifestao dele mesmo.
Os procedimentos de acaso desenvolvidos por Cage influenciaram seu parceiro
de trabalho, Merce Cunningham, que abandonou a tendncia narrativa para realizar danas
baseadas em movimentos naturais, como andar, ficar em p, saltar. Para Cage e
Cunningham, cada som e cada ao deveriam ser observados como um microcosmos que
reflete o todo do espetculo. Assim, influenciados por uma lgica oriental, cada parte de
uma obra era vista como algo que contm o todo. Outra questo relevante no trabalho dos
dois que tambm deveria ser observado o compromisso com cada momento e situao, o
valor inerente a cada circunstncia. Esta idia de reagir de acordo com a contingncia da
situao, de tornar o acaso um elemento constituinte da arte foi utilizada por Cage e
Cunningham em 1951: Esse respeito pelas circunstncias dadas foi reforado pelo uso do
acaso na preparao de obras como Dezesseis danas para solista e companhia de trs
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(1951), em que a ordem das nove emoes permanentes do teatro indiano clssico era
decidida pelo arremesso de uma moeda (Goldberg, 2006, p. 114).
Em 1952 Cage apresentou ao pblico a pea 433. Este trabalho possuiu
significado especial, pois Cage sintetizou nele diversas de suas idias. Sentado num piano,
o pianista e companheiro de trabalho David Tudor realizava trs movimentos a cada ao,
porm sem produzir nenhum som. Cage esperava a resposta da plateia, que deveria
compreender que todos os sons daquele espao formavam a msica. Nenhum som era
produzido intencionalmente, e a escuta se coloca como um elemento auxiliado pelo
silncio.
A busca pelas relaes entre som e silncio tambm estavam presentes na obra
de Cage, que chegou a realizar experincias em salas a prova de som, percebendo que no
havia um silncio absoluto, j que mesmo nestas condies, ainda era possvel se ouvir sons
corporais como batimentos cardacos, respirao e frequncias geradas pelo sistema
nervoso.
Cage e Cunningham foram convidados desde 1948 a realizarem cursos de
vero noBlack Mountain College, uma instituio de ensino de artes localizada na Carolina
do Norte, Estados Unidos. Porm, em 1952 um evento iria modificar e influenciar os
caminhos da arte nas prximas dcadas. A performance denominada untitled event,
explorou a utilizao de vrios recursos e suportes, num processo em que as idias de acaso
e indeterminao conduziram o processo:
Os espectadores tomaram seus assentos na arena quadrada - que formava
quatro tringulos criados por corredores diagonais, cada qual segurando um copo branco
previamente colocado em cada poltrona. Pinturas brancas de um estudante no residente,
Robert Rauschenberg, pendiam do teto. Sobre uma escada dobradia, Cage, de terno preto egravata, leu um texto sobre a relao entre msica e zen-budismo e excertos de Mestre
Eckhart. Depois, executou uma composio com rdio, seguindo os parnteses temporais
arranjados de antemo. Ao mesmo tempo, Rauschenberg tocava velhos discos num gramofone
movido mo, e David Tudor tocava um piano preparado. Em seguida, Tudor pegava dois
baldes e vertia gua de um para o outro, enquanto que Charles Olsen e Mary Caroline Richards,
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plantados na platia liam poesias. Cunningham e outros danavam nos corredores, seguidos por
um cachorro alvoroado, Rauschenberg projetava slides abstratos (criados por gelatina
colorida comprimida entre vidros) e filmes projetados no teto mostravam primeiro o cozinheiro
da escola e depois, medida que iam descendo do teto para a parede, o pr-do-sol. Em um dos
cantos, o compositor Jay watt tocava instrumentos musicais exticos, e ouviam-se assobios e
choros de bebs enquanto quatro meninos vestidos de branco serviam caf (Goldberg,
2006, p. 116).
A performance Untitled Event criou grande repercusso em Nova York. Cage
havia, deste modo, realizado uma das coisas que mais lhe interessava: um evento com
muiltiplas mdias em que a indeterminao gerasse relaes complexas e ao mesmo tempo
uma liberdade criativa nos participantes. Logo aps, Cage exclamou sua satisfao,
considerando que aquele foi um evento anrquico e coletivo. A explorao destas
combinaes de meios expressivos em sesses onde a indeterminao estavam presentes
gerou uma clara influncia futura.
Happeninge Performance: gneros hbridos
Uma intensificao das relao entre as operaes hbridas e tecnolgicas
poder ser observada a partir da dcada de 60 e 70 do sculo XX, principalmente no mbito
doHappeninge da arte da performance. O happeninge a performance, sendo movimentos
artsticos de natureza hbrida, proporcionaram o encontro de diversos artistas plsticos,
msicos e atores. H, a partir deste perodo, uma intensa explorao de novos meios de
criao, o que incluiu os equipamentos sonoros de registro e o vdeo. H tambm uma forte
relao entre o som, a imagem e a corporeidade, de modo que a polifonia resultante de
diversos trabalhos indica uma operao no-linear e no-hierrquica dos componentes de
expresso.
A tendncia foi a de explorar e elaborar o processo de criao, incluindo os
novos meios no processo artstico. Os anos 50, 60 e 70 so marcados por uma veloz
modificao dos meios tcnicos de produo e reproduo, especialmente no mbito da
informao, com o aparecimento de inmeras tecnologias de comunicao que deslocam
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diversos aspectos da realidade social e da percepo humana, e que iro desdobrar-se nas
dcadas posteriores na popularizao da televiso, e mais recentemente, dos
microcomputadores. Estamos diante do movimento de contracultura e da revoluo digital.
Os Happenings da dcada de 60 caracterizaram-se por sua propriedade de
manifestar-se de forma singular e anrquica. H neste perodo, uma forte proliferao de
trabalhos que se caracterizam pela singularidade da operao artstica. O caminho traado
peloHappeninge pela arte da performance a partir dos anos 60, e que os sintetiza enquanto
movimentos autnomos, a explorao e singularizao das operaes artsticas. Esta
singularizao no ocorre isoladamente, mas em interao com a realidade cotidiana,
produzindo alteridade, tenso e reflexividade.
Segundo Renato Cohen (1989), a arte da performance atua pela via das
esquerdas, a via do inconsciente, da borda, da liminaridade. O autor assinala que o
Happening pode ser considerado como ponto-limite para um novo paradigma no campo
artstico: o Happening substitui o modelo esttico pelo modelo mtico de arte. No
modelo mtico, ocorre uma ritualizao do instante presente, ao invs de uma
representao. Uma das diferenas entre o modelo esttico e o modelo mtico, que no
segundo o pblico participante e no mero espectador. Na arte contempornea, o
Happeningpode ser considerado um divisor, pois a partir deste movimento que se efetiva
como tendncia um tipo de criao que vai alm das intenes estticas. No Happeninge
na arte da performance ocorre o fortalecimento do processo que inclui a experincia de
transformao e reflexividade. Neste sentido, o Happening se aproximaria mais de um
trabalho ritual e liminar. O happeningse apia no experimental, no anrquico, na busca de
outras formas (Cohen, 1989, p. 132).
Conforme j assinalei, as actions paintings de Pollock, as assemblages e os
environments de Kaprow, procedimentos criativos derivados da collage de Max Ernst,
antecederam o aparecimento dos Happenings. Algumas caractersticas da Performance j
rodeavam as actionspaintings de Pollock, j que estes eventos transformavam o ato de
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pintar na obra e o artista em ator (Glusberg, 1987). a ao que cria o significado artstico.
O corpo em movimento aparece como arte de presentificao.
Por outro lado, a liveart, fundamentada na idia de uma arte tirada da vida, da
existncia cotidiana, suscitada por artistas japoneses como Atsuko Tamaka e Tetsumi Kudo,
dentre outros, tambm contribuiu para o surgimento do Hapenning. No entanto, foi Allan
Kaprow, artsta performtico norte-americano que idealizou em suas performances a
passagem da collageplstica para a collagede eventos, dando um carter plstico e cnico
sua obra pioneira 18 Happenings em 6 partes, encenado em 1959 em Nova York
(Carlson, 1997).
Com estas experincias, a arte da performance se afirma enquanto campo
exploratrio, especialmente caracterizado por operar matrias hbridas de expresso,
traando redes semiticas que transpe limites identificados com a esfera cotidiana. Esta
arte se ocupa em produzir agenciamento atravs de elementos heterogneos, operando
intercmbios e intersees subjetivas, afirmando em sua prpria ao o carter de
mutabilidade da existncia humana:
A arte da performance, liberando o instante vertigem da emergncia de
universos ao mesmo tempo estranhos e familiares, tem o mrito de levar aoextremo as implicaes dessa extrao de dimenses intensivas, a-temporais, a-espaciais, a-
significantes a partir da teia semitica da cotidianeidade. Ela nos evidencia a gnese do ser e
das formas antes que elas tomem seu lugar nas redundncias dominantes como a dos estilos, das
escolas, das tradies da modernidade. Mas essa arte me parece menos resultar de um retorno a
uma oralidade originria do que uma fuga para frente nas maquinaes e nas vias maqunicas
desterritorializadas capazes de engendrar essas subjetividades mutantes. (Guattari, 1992, p.
114)
Esta operao, definida por Guattari como uma fuga na direo de
maquinismos desterritorializantes, produzem novas possibilidades para a subjetividade. J
que no h a possibilidade de retorno ao mundo dos mitos e da oralidade originria, a arte
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da performance apresenta-se como um acontecimento de irrupo, de desvelamento e
mutao subjetiva, esttica e operacional.
O carter efmero caracterstico dos Happenings e Performances, de certo
modo, dificulta sua passagem pelo mundo do produto, e especialmente do produto de
consumo. O mais relevante nestas manifestaes o desdobrar dos processos e no os
produtos finalizados. Neste sentido, a arte da performance aborda a produo de
agenciamentos que se colocam margem do sistema, provocando-o, e que caracterizam-se
enquanto processos que suscitam interrupes na semitica do cotidiano.
Para delinear este caminho, diversos performers vm travando uma forte
relao entre seus corpos e as novas tecnologias, trabalhando com o conceito de arte
hbrida, produzindo significados a partir da manipulao de imagens, sons e aes
corporais. Os desdobramentos conseqentes das manifestaes artsticas dos anos 60 e 70
trouxeram tona novas formas de hibridizao de linguagens artsticas, e a investigao
dos novos recursos tecnolgicos passou a ser uma caracterstica de diversos segmentos
artsticos.
Arte e tecnologia
No sculo XX as tecnologias apareceram, muitas vezes, como elemento de
destruio associado as catstrofes e ao fim do mundo. Elas foram tomadas como um
importante fator na destruio das paisagens naturais. Neste sentido, foi substancialmente
posta enquanto signo de um mundo mecanizado e artificialmente produzido que gerou
oposio ao mundo natural dos seres vivos.
Esta crena de que a mquina apenas o agenciamento de um mundo
mecnico que se ope ao mundo natural foi o elemento motivador de muitas confuses e,
sobretudo, de uma viso simplificada acerca das tecnologias. Na realidade, tal viso o
reflexo simblico de uma civilizao que embora tenha acentuado a produo e a inovao
tecnolgica, ainda cultiva uma viso restrita acerca de seus instrumentos e possibilidades de
utilizao. Esta viso, dominada pelo aspecto quantitativo das tecnologias, estabelece um
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certo impedimento de uma observao ampliada e sensvel das tecnologias atuais. A
tecnologia, vista apenas como uma agncia da velocidade e da produo, e mais
recentemente como meio de efetivao de um controle social, uma percepo limitada das
potencialidades que podem ser exploradas na relao homem-mquina.
Ser necessrio, portanto, reforar o princpio de que toda tecnologia envolve
uma dinamizao social e no confundir tecnologia com o artefato material simplesmente.
Uma tecnologia no somente um artefato usado como instrumento, mas uma rede de
relaes que inclui todo o conhecimento necessrio em sua inveno, reproduo e
utilizao. Uma tecnologia produto de uma larga rede de interao social, de diversos
sistemas de troca de conhecimentos e modos de utilizao (Gell, 1988).
A arte sempre manteve uma relao de proximidade com as tcnicas e as
tecnologias. Vejamos, mais uma vez, o exemplo da relao entre o corpo e os instrumentos
musicais. Estes, por sua vez, podem operar o espao dos acontecimentos numa relao
estreita com a percepo dos participantes. Um instrumento musical uma mquina, uma
extenso do corpo e de suas potencialidades de se comunicar no domnio de uma linguagem
no-verbal.
Entretanto, a existncia de diferentes tipos de tecnologias sonoras determina
diferentes qualidades de relao entre os corpos e as percepes. No universo das
tecnologias acsticas, o gesto corporal e a execuo musical estavam continuamente
associados, de modo que a msica somente existia na performance. Porm, a inveno dos
meios de registro sonoro ao final do sculo XIX modificaram fortemente a relao da
escuta com a imagem corporal, j que com os gravadores de udio tornou-se possvel o
acesso a sons executados em espaos e tempos no presentes. Nesta condio, a imagem do
corpo e o gesto no necessariamente so componentes que se interligam escuta. A
tecnologia de registro de sons modifica to significativamente a execuo musical, que para
reproduzir as msicas gravadas em estdio com a mesma qualidade de execuo, os
msicos necessitam se adequar a uma exatido tcnica, percebendo, portanto, sua relao
com os sons sob um novo prisma.
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Por outro lado, o registro dos sons forneceu a msicos a possibilidade de
manipulao e combinao de todo e qualquer tipo de som, o que deu origem msica
concreta em meados do sculo XX. O mesmo podemos afirmar sobre a msica eletrnica,
que modificou totalmente as relaes com os meios de gerao de sons. Em seu limite,
tanto a msica concreta quanto a msica eletrnica, por serem resultantes de trabalhados
realizados em estdio de gravao, foram responsveis por uma srie de composies que
no dependiam da participao do corpo em tempo real nas apresentaes. Fato este que
somente ser revisado com o advento das novas tecnologias digitais, em especial o
computador pessoal, que permitiu recentemente a manipulao e o processamento de udio
em tempo real.
Mas temos que considerar tambm que a expanso dos materiais sonoros
utilizados em composies musicais gerou a necessidade do desenvolvimento de novos
conceitos e processos que dessem conta destas novas possibilidades. Assim, conceitos
como o de textura sonora, objeto sonoro, campos sonoros, e tambm novas formas de
representao de sons musicais acompanharam o processo de desenvolvimento dos meios
de registro.
Evidentemente, h uma magia em toda tecnologia, j que elas sempre colocam
o homem numa nova encruzilhada do espao-tempo. Toda tecnologia fruto de um desejo,
de uma inteno que os homens possuem de alterar seus modos de relao com o mundo.
Uma nova tecnologia produz linhas de desterritorializao, e uma tecnologia tambm um
meio de produzir uma flutuao das percepes. Pode ser uma condensao em relao ao
domnio material, mas tambm uma fuga em direo a novos conceitos e desejos de se
relacionar com o mundo. Esta questo torna-se mais clara na atualidade, pois com a
acelerao das mudanas tecnolgicas, tornou-se mais evidente o quanto uma nova
tecnologia interfere nas dinmicas de relaes do corpo e da sociedade.
Gell (1988/1998) apontou em sua teoria antropolgica que o potencial de
agenciamento dos objetos artsticos aponta para uma eficcia sobre as relaes humanas.
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Segundo este autor, objetos artsticos no so apenas elementos estticos. Objetos artsticos
so tambm tecnologias, pois produzem efeitos na realidade.
Neste sentido, Gell chama ateno acerca de uma ciso produzida entre arte e
tecnologia na sociedade moderna. Esta separao seria resultante da dependncia e
banalizao dos meios tecnolgicos, efeitos apresentados na sociedade ocidental moderna.
Uma viso restrita induz o homem moderno a uma viso do tecnolgico que acentua
somente a sua dimenso material e instrumental, associando tecnologia diretamente
subsistncia. Tecnologia , para o homem moderno, instrumentos ou mquinas que fazem
parte da vida do homem racional, e no elementos que encontram-se no domnio da
criatividade e da autenticidade. A arte seria vista, portanto, enquanto legtima representante
do campo criativo, em contraposio ao tecnolgico, que pressupe a participao do
homem no mundo da razo e do empreendimento material.
Porm, para Gell, a tecnologia encontra-se inserida na rede social, o que inclui
a totalidade de conhecimentos necessrios para a inveno, a fabricao e a utilizao da
tecnologia. A tecnologia insere-se na continuidade de todas as outras relaes sociais de um
contexto, e inclui, neste sentido, os conhecimentos e os modos de operao produzidos.
Uma tecnologia mediadora de uma srie de aes sociais, que somente tornam-se
possveis atravs dela.
Entretanto, algo mais pode ser destacado nesta relao. O objeto artstico
tambm um objeto tecnolgico, porm, encontra-se numa posio diferenciada dos outros
objetos sociais, pois seu uso no est diretamente relacionado subsistncia material.
Os xams, por exemp
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