“É Fogo na Jaca”: performance drag queen no teatro de revista dos anos 1950
ANTONIO RICARDO CALORI DE LION
Seria a drag uma imitação de gênero, ou dramatizaria os gestos
significantes mediante os quais o gênero se estabelece?
- Judith Butler, Problemas de gênero: feminismo e subversão
da identidade.
Ao longo do século XX, foram comuns os personagens no teatro interpretados por
atores vestidos com figurinos destinados às personagens femininas do enredo. Porém, para
além de uma simples substituição de mulheres por homens (pelas mais diversas questões) nos
palcos teatrais, no meio do século passado surgiu no teatro brasileiro uma vedete que não era
tão comum: uma drag queen atuando profissionalmente em peças do teatro de revista e tendo
sua persona respeitada e projetada pelas mídias de massa do período como uma verdadeira
estrela. Essa drag era Ivaná.1
No período a que se refere esta pesquisa – 1953 a 1954 – foi possível levantar que
Ivaná atuou em peças teatrais de revista e em um filme intitulado Mulher de Verdade (dir.
Alberto Cavalcanti, 1954). No filme, ela aparece no final, montada para fazer uma
apresentação: canta em francês, acompanhada pela melodia de um piano e recebendo elogios
da plateia que a contempla. Porém, há duas aparições nesta película do ator que dá vida à drag
queen desmontado, chamado Ivan Monteiro Damião. Ele aparece como Baby, contracenando
com as personagens do filme, falando em francês.
Acerca da biografia de Ivaná – ou Ivan Damião – não se conseguiu muitos dados até o
momento da presente pesquisa. Sabe-se que Ivan Damião era apresentado como francês, mas
na verdade tinha origem portuguesa.2
Ivaná foi capa da revista Manchete em setembro de 1953 (edição nº 75) ganhando
destaque nas páginas centrais em uma reportagem de Ivo Serra, sendo nela mencionado o seu
sucesso com a companhia teatral de Walter Pinto e, de certa maneira, elogiado seu
Formado em História pela UFMT/CUR e mestrando em História pela UNESP/Assis. Bolsista FAPESP
processo nº 2014/16749-3. Membro do grupo de pesquisa Arte.com; e-mail: [email protected]. 1 Ao longo deste texto aparecerão palavras do Pajubá, como também neologismos da cultura LGBT. 2 “Nascido em 1933, Ivan era um rapaz de origem abastada, e estudará até o terceiro ano de odontologia, quando
resolveu seguir a vida artística. Filho de pai português e mãe russa, o rapaz nem mesmo era francês, e sim
português.” (NUNES, 2015: 159)
2
desempenho e aparência enquanto Ivaná, já que o jornalista diz que “às vezes é uma moça
belíssima, quase sempre um rapaz branco e de mau aspecto” (SERRA, 1953: 23).
Figura 01 – Ivaná no camarim
Fonte: revista Manchete, 26 de setembro de 1953, p. 23.
Antes das reflexões sobre Ivaná no contexto da peça É Fogo na Jaca, se faz necessária
uma breve apresentação no que se refere ao meio social e cultural carioca tendo como foco as
sociabilidades LGBTs, no curto arco temporal pesquisado.
A crescente urbanização e cosmopolitismo do Rio de Janeiro no decênio de 50
construía a cena perfeita para as sociabilidades camp3, o ecletismo cultural e a grande
provocação de bichas, travestis e transexuais ao meio social carioca daquele momento.
Obviamente, ao passo que havia mais liberações (ou seria libertações?) comportamentais pela
cidade, na contramão vinha as duras críticas de jornalistas que usavam de toda a moralidade
para condenar tais atos cometidos por “vítimas de desarranjos glandulares”, como um
3 Conceito empregado para definir ou apontar atitude e comportamento do meio gay masculino. Cf. LACERDA
JÚNIOR, 2011.
3
jornalista da revista Manchete se refere a gays prostitutos que viviam em Copacabana, citado
no livro de James Green (2000: 258):
Ao escrever, um ano depois, sobre as casas noturnas, outro jornalista retratou uma
cidade decadente com “Boites de todos os naipes, inclusive existencialistas – ou
meio existencialistas”. A referência à nova filosofia importada de Paris,
potencialmente subversiva e perigosa, era bem pouco sutil. O jornalista então passa
a fazer comparações-clichês com o ambiente da Rive Gauche parisiense: os bares
escuros e esfumaçados atraíam “os mais consumados cafajestes, fáceis borboletas,
restos dos pós-guerra mundial, bonitões cuja profissão é isso mesmo, pervertidos,
homossexuais”. Apesar desse retrato depreciativo de Copacabana, foi precisamente
a imagem moderna e boêmia da cidade à beira-mar com sua vida noturna
glamourosa e de sexo fácil que atraiu tantas pessoas, os turistas estrangeiros, assim
como os próprios brasileiros. Essa foi também uma das muitas razões pelas quais
muitos homossexuais optaram por viver e divertir-se nesse bairro.
A “cena homossexual” narrada por Green, mostra uma cidade repleta de sociabilidades
e cultura construída por pessoas LGBTs que, ao longo dos anos 50 no Rio de Janeiro, se
colocaram à prova de repressões e investidas por parte de homens heterossexuais em que se
sentiam afoitos com a presença de bichas (principalmente as afeminadas) em ambientes
coletivos, como por exemplo, a praia de Copacabana em frente ao hotel Copacabana Palace.
Este famoso bairro carioca é o grande protagonista da história contada por James
Green, pois como grande reduto homossexual do Rio (mas não exclusivo) atraía bichas da
própria cidade, do país e também de outras nações.
Com bares, becos, boates, clubes, praias etc. onde as manas viadas podiam se
encontrar - talvez - para conseguirem sexo fácil a qualquer hora do dia ou da noite, a fama de
Copacabana só foi aumentando, colocando os mais moralistas e homofóbicos a testarem seu
próprio ódio e desrespeito.4 No entanto, não se tinha em Copacabana locais exclusivamente
4 “A concentração de homens, em sua maioria efeminados, na Bolsa, em Copacabana, provocou uma reação dos
jovens “machos” da vizinhança, que usavam a mesma área para sua própria socialização e atividades de lazer.
Carlos lembrou-se um dia específico em 1954 ou 1955, quando acabava de chegar ao Rio: “Houve agressão.
Jogaram areia. Chegaram até a levar uma faixa dizendo ‘Fora as Bichas’. Um dia, quando chegamos tinha uma
faixa de pano pintado fincada na areia”. Segundo Carlos, os garotos do bairro fincaram a faixa na areia como
aviso de que os homossexuais não eram bem-vindos em frente ao Copacabana Palace. O tiro, contudo, saiu pela
culatra. A areia que eles jogaram nos bichas [sic] atingiu também as famílias que estavam sentadas por perto.
Mães protetoras, irritadas com a areia que caía sobre suas crianças, começaram a defender os homossexuais
acossados, argumentando que eles não incomodavam ninguém. Elas até ameaçaram levar o assunto ao
conhecimento dos pais dos garotos, uma vez que viviam todos por ali e conheciam uns aos outros. A agressão
parou, e a Bolsa de Valores permaneceu como uma área social de encontros para homossexuais.” (GREEN, 200:
265)
4
para homossexuais, e os espaços que serviam para essas sociabilidades que existiram ao longo
dos anos 50 não duraram muitas temporadas, como aponta Green em sua pesquisa.
O travestismo em cena
O homoerostismo na cena teatral brasileira está presente desde fins do século XVIII,
porém suas formas de se apresentar não eram necessariamente ligadas à sexualidade dos
atores, mas sim a uma construção simbólica dos personagens que compunham o espetáculo.
Também não se pode afirmar que haviam travestilidades5 em cena, mas sim a uma
apresentação artística, na qual haviam atores interpretando personagens femininas em
substituição de atrizes.
A presença de amapôs atuando no teatro do período colonial havia sido proibida por
D. Maria I e consagrava aos homens o domínio sobre o fazer teatral, em todas as instâncias,
assim apresentado por João Silvério Trevisan em Devassos no Paraíso (2002).
O autor supracitado trata essa questão atestando que o teatro colonial no Brasil era tido
como marginal e degradante e, por vezes, as mulheres não eram “bem vistas” nestes lugares.
Mas haviam exceções e algumas atrizes até atuavam, sendo que os atores eram (em muitos
casos) de negros escravizados ou alforriados. São nestes espaços cênicos entre os séculos
XVIII e XIX que a representação teatral se constitui como “cena travestida” apontada por
Trevisan.
Já com a chegada da Família Real portuguesa, em 1808, o teatro ganha um outro valor
sociocultural e passa a receber atores e atrizes de companhias internacionais, ainda incipiente
e com caráter de marginalidade e “má fama”.
Ao longo do século XIX, o uso da estética travesti ocorreu não por uma questão de
identidade, mas por uma apresentação dramática requerida pelo elemento cênico sendo parte
do fazer artístico do ator, por vezes se confundindo com questões de sexualidade:
5 O uso do termo travestilidade hoje conecta-se a uma questão de identidade de gênero. De acordo com Wiliam
Peres (2015: 34) apontando a origem do termo travesti diz que: “[...] foi Magnus Hirschfeld, quem cunhou o
termo travesti em princípio do século XX (entre 1905 e 1910), sendo um dos pioneiros a distinguir travestismo
de homossexualismo, acreditando que poderiam ser explicados pelas variações dos hormônios sexuais, sendo
criticado por Havellock Ellis, representante da sexologia da época que pensava o travestismo como uma
‘inversão sexo-estética’.”
5
Consagrada no ambiente teatral, a prática profissional do travestismo ocorria num
contexto social nada inocente de disseminação da pederastia, que com certeza Ihe
adicionava conotações não exclusivamente profissionais. Vale lembrar que, já na
primeira metade do século XIX, era comum e escandalosa, numa cidade como o Rio
de Janeiro, a prática homossexual - sobretudo no baixo comércio, onde imperavam
os imigrantes portugueses, que muitas vezes mantinham casos de amor com seus
empregados caixeiros. (TREVISAN, 2002: 238)
Esta prática artística nos palcos de uma estética travesti traz consigo o elemento
fundamental da categoria teatro para quem o faz: o emprego. O trabalho profissional usando
do que Trevisan chama de “travestismo”, traduzindo-se na ação de um ator vestir-se com
roupas, elementos e modos de ser atribuídos ao universo feminino vão da questão da não
presença de atrizes nas montagens das peças ao caráter da provocação através desta estética
corporal, assim como, a reações do público, como o riso.
Esta questão está calcada puramente em elementos artísticos e estéticos, não
desconectados dos contextos sociais, de usar a estética travesti na cena enquanto uma saída
para a atribuição de papéis de personagens nas peças e, assim, sanar um problema, que
segundo João S. Trevisan (2002: 238) foi corriqueiro, como já tratado acima sobre a
profissionalização:
Do travestismo teatral não escaparam nem certas personalidades locais. Assim, na
Bahia desse mesmo período, um provável membro da família de José Mana da
Salva Paranhos, o emérito visconde do Rio Branco, muito se salientou, fazendo em
travesti os papéis de dama-galã, no conjunto Regeneração Dramática, fundado em
1854.
O uso da aparência travesti pelos atores em cena reflete também, já no século XX,
uma questão de escolha estética e profissionalizante, tornando-se uma categoria de trabalho
no campo artístico, com certa visibilidade e conexões entre a travesti enquanto atriz e
enquanto uma “variação” do ser homossexual. Sobre esta esfera do ser travesti nas artes
dramáticas, Trevisan (2002: 242-243) comenta:
A outra vertente do travestismo voltou-se para um objetivo mais profissional, com o
surgimento nos palcos do ator-transformista, que passou a viver profissionalmente
da imitação das mulheres e, com frequência, tornou-se travesti também na vida
quotidiana.
6
Tentando recuperar a história das travestis e transexuais, João Silvério Trevisan busca,
principalmente pela questão artística, mostrar a visibilidade de pessoas trans*6 em um
momento da História do Brasil em que as subjetividades, identidades e especificidades não
eram pensadas pelo viés dos estudos de gênero, não eram dadas à condição de serem
discutidas. Eram vistas/os todas/os como homossexuais e um dos espaços em que se podia
expressar quem se era foi o ambiente artístico.
Apesar de Trevisan chamar o recurso que um ator/atriz dispõe de se montar como
travestismo e colocar a palavra travesti para identificar esses atores transformistas, reflete a
impossibilidade de tratar sobre essas questões no período em que o autor realizou sua
pesquisa e escrita da obra.
Como apresentado, era comum – e ainda é em muitos lugares – confundirem gênero
com sexualidade, ou seja, tratar as travestis como uma bicha travestida de mulher. Nota-se -
conforme mencionado neste texto – que as travestis de Trevisan estariam, na realidade,
próximas da arte drag queen, no entanto, não seriam ainda como a contemporânea drag de
hoje.
Do início dos anos 50 em diante, houve outra visibilidade para sujeitas/os fora da
heteronormatividade da cena artística, sem vincular essas/es artistas ao escárnio, ao deboche
ou puramente a uma atração pelo “travestismo” necessário à substituição de atrizes.
Diferentemente do caso pioneiro do espetáculo Les Girls, dos anos 60, que colocou de
vez as travestis tal como são enquanto protagonistas da peça, contando com a
profissionalização do seu fazer artístico e com o impacto queer naquele contexto, a
Companhia Walter Pinto trouxe uma drag queen da Europa para atuar como vedete em uma
peça que estava sendo montada – É Fogo na Jaca.
A primeira metade dos “anos dourados” foi marcada politicamente pela volta
democrática de Getúlio Vargas à presidência da República e, assim, eram feitas críticas
abertas ao seu governo, visto que já não havia mais a forte censura do período anterior em que
liderou o país como ditador. Na cena artístico-cultural, encontravam-se grandes espetáculos
teatrais de variedades, como as peças teatrais das companhias de Walter Pinto e de Zilco
Ribeiro.
6 Usa-se esse termo com asterisco para tentar englobar travestis, transexuais e outros gêneros fora da
hetenormatividade.
7
Ambas as companhias buscavam cada vez mais ampliar seus contatos no showbiz e
seus espetáculos, com aparatos cênicos grandiosos e equipe técnica/artística profissionais. Na
apresentação do acervo de Walter Pinto da FUNARTE é afirmada a importância de suas
produções:
Produtor e autor dos maiores espetáculos do Teatro de Revista brasileiro, Walter
Pinto revolucionou o gênero entre as décadas de 40 a 50. Coube a ele garantir o
caráter de espetáculo à cena, com escadas, luzes, coreografias grandiosas, coros e
orquestras numerosos. Coristas francesas, argentinas e russas foram contratadas
para suas produções, das quais participaram vedetes, atores e atrizes como Dercy
Gonçalves, Grande Othelo, Mara Rubia e Virginia Lane. (FUNARTE, 2010: n.p.)
Sendo este empresário um líder no mercado de espetáculos de revistas naquele
período, a projeção que tomou Ivaná para além dos aplausos não é tão descabida, tendo em
vista a elevação da drag a um espaço importante na construção teatral, a colocando como uma
vedete fato esse que chamava a atenção também por ser anunciada no período como uma
travesti francesa.
Figura 02 – Um dos quadros do espetáculo É Fogo na Jaca
8
Fonte: revista Manchete, “Cinco Milhões Por Um Show”, 18 de julho de 1953, p. 28.
Walter Pinto investia tempo, dedicação e grande quantia de dinheiro para a realização
do espetáculo. O autor Salvyano Paiva (1991, p. 594) ao traçar um panorama dos espetáculos
que ocorreram no ano de 1953, diz:
Mas uma das melhores e certamente uma das campeãs de permanência em cartaz
chamou-se É Fogo na Jaca! [...], estreada no Recreio a 15 de maio para uma
temporada de cinco meses e meio, até 25 de outubro, praticamente meio ano. A um
custo de cinco milhões de cruzeiros, arrecadou entre 50 e 60. Seus dois atos e 19
quadros esplendiam de alegria e riqueza. Boa música de Vicente Paiva, Alberto
Lazzoli e Walter Schultz Porto-Alegre, regida pelo primeiro. Cenários de Manuel
Lima, Angelo Lazary, Otavio Goulart e Armando Iglésias. Figurinos de Joselito.
Coreografia de Henrique Delff. E um elenco fabuloso com Mesquitinha, Violeta
Ferraz, Marina Marcel, Ankito, o travesti Ivaná, Iris Delmar, Manoel Vieira, Jane
Grey, Paulo Celestino, Natara Ney, Pedro Dias, Lia Mara, a inesquecível cantora
portuguesa Gilda Valença – que unia talento a uma extrema simpatia -, Léo Lanc,
Regina Nacer (no esplendor de sua nudez), 15 bailarinas, 10 bailarinos, 16 gilrs
figurantes, 10 manequins, 10 modelos nus que a publicidade trombeteava serem
“nus realmente artísticos”. [...] Durante cinco meses e meio, a revista manteve a casa
cheia todas as noites.
9
O espetáculo foi matéria de capa da revista Manchete, edição nº 75, de 18 de julho de
1953. A reportagem com título Cinco milhões por um show distribuída em cinco páginas do
periódico, tem autoria de Nicolau Drei e Aymoré Marella. O texto escrito está em apenas uma
página, as outras quatro são destinadas a fotografias de parte do espetáculo e seus bastidores,
muitas das quais são coloridas.
O apelo visual da reportagem não se dá por acaso: a revista Manchete, nos anos 50,
consegue – principalmente por investir em uma nova identidade visual – se sobrepor a sua
concorrente:
A partir de 1952, a revista Manchete tornou-se a principal concorrente de O
Cruzeiro. Ambas, afora serem publicadas na cidade do Rio de Janeiro, recorriam à
linguagem do fotojornalismo, incluindo em todos os números bem elaboradas
fotorreportagens, tal como a Life e a Paris Match o faziam. Não por coincidência, o
processo de decadência de O Cruzeiro se iniciou quando a Manchete, em meados
dessa década, contratou jornalistas que se demitiram da revista concorrente
e aprimorou a qualidade gráfica para ficar cada vez mais colorida, atraente e fácil
de ler. Eram as condições exigidas para manter e conquistar mais leitores. Dado
que o público leitor só podia ser definido experimentalmente, os editores levavam
em consideração o fascínio que o assunto da capa da revista exercia sobre os
leitores ou a aptidão dos leitores para receber as informações divulgadas pela
revista. Ajustava-se a revista ao interesse e à capacidade de percepção do receptor
da informação. Detendo o poder de controlar a informação e formar opinião, a
imprensa é porta-voz dos interesses de determinados grupos sociais. (ANDRADE;
CARDOSO, 2001: 247)
Figura 03 – Walter Pinto e elenco de É Fogo na Jaca
10
Fonte: revista Manchete, 18 de julho 1953, p. 32, “Walter Pinto vive entre mulheres bonitas e de pouca roupa.
Com ôlho clínico descobre nelas as vedetas que se tornarão famosas”.
O texto que abre a reportagem sobre É Fogo na Jaca traz um histórico do gênero
musicado no Brasil, chegando até Walter Pinto e a companhia teatral herdada de seu pai. A
narrativa é construída de modo a deixar para W. Pinto os louros pela renovação da linguagem
e estética do teatro de revista, que se tornou a “indústria de milhões” (DREI; MARELLA,
1953: 28) na metade do século passado.
Com a morte do velho Manoel surgiu seu filho Álvaro. Morto este num desastre de
aviação chegou a vez de Walter. Menino ainda, o filho mais moço do velho Pinto
não deixou morrer aquilo que já se tornara uma tradição da família. Muito ao
contrário. Inverteu milhões, deu novas roupagens ao musicado e garantiu um nome
que hoje vale milhões. “Muié Macho, sim Sinhô”, “Sassaricando”, foram seus
grandes sucessos.
A última delas custou dois milhões. Agora Walter Pinto, tornou a ir a Paris, trouxe
nova exibição de francesas famosas e montou “E’ Fogo na Jaca”.
Cinco milhões, numa montagem fabulosa, a mais fabulosa que se tem notícia na
história do teatro musical brasileiro. 5 milhões que voltam para Walter Pinto.
(DREI; MARELLA, 1953: 28)
Não é intuito deste trabalho falar exclusivamente sobre “o show de cinco milhões” e
sua montagem, sua linguagem, seu enredo, etc. Contudo, é importante apresentar esses pontos
sobre É Fogo na Jaca para que se tenha uma breve noção da proporção que o espetáculo
obteve, já que foi a estreia de Ivaná e como isso influiu em sua notoriedade naquele momento
– e vice e versa.
Figura 04 – fragmento de um quadro de É Fogo na Jaca
11
Fonte: revista Manchete, 18 de julho de 1953, p. 31.
Na estreia desta revista, Paschoal Carlos Magno publicou uma grande crítica sobre o
espetáculo e suas impressões em relação a Ivaná:
A outra “atração de Paris” é o sr. Ivana. Faz sucesso com seu rosto sem barba,
seus olhos enfeitados de longos cílios, seu corpo longo sempre vestido com
elegância e propriedade. Sua voz é um quase nada. Mas diz, move-se com muita
graça. Ganhou, na estréia, as maiores ovações. (MAGNO, 1953:11)
O jornal Correio da Manhã foi um dos veículos noticiosos de maior relevância na
história do país no século XX e teve grande circulação pelas grandes cidades, já que suas
oficinas eram instaladas na então capital da República, o Rio de Janeiro. Teve forte impacto
no cenário político brasileiro, sendo que nos anos 50 “exerceu grande influência durante o
segundo governo Vargas, chegando a pesar nas decisões políticas” (LEAL , s.l.: n.p.).
As críticas existentes no jornal referentes a espetáculos teatrais escritas por Paschoal
Carlos Magno eram periódicas. A importante contribuição de Magno para o teatro nacional
com a criação do Teatro do Estudante do Brasil (TEB), em 1938, marcou a história do teatro
brasileiro. Suas críticas e análises dos espetáculos teatrais são uma rica fonte documental,
12
contando principalmente com seu ponto de vista acerca do cenário político do momento,
como a defesa da não-censura de É Fogo na Jaca nos quadros em que haviam críticas
políticas ao governo de Getúlio Vargas.
A revista Manchete também falou de Ivaná pela ocasião da repercussão do espetáculo
É Fogo na Jaca:
O nome do rapaz é bem brasileiro: Ivan Monteiro Damião. Mas para todos os
efeitos êle é somente Ivana (pronúncia no último a, à francêsa) e seu nome
masculino já está quase inteiramente esquecido. Francês de nascimento, 20 anos de
idade, descendente de portuguêses, Ivana é a grande sensação do teatro musicado,
no Rio. Importado por Walter Pinto na última leva de artistas francêses que o
empresário trouxe para sua peça “É Fogo Na Jaca”, Ivana foi um sucesso completo
cantando e dançando num dos últimos números da revista a canção “Cherches Le
Milionaire”. (SERRA, 1953: 22)
Esta reportagem sobre Ivaná traz questões que são no mínimo inquietantes para se
pensar quanto a gênero e à subversão da norma vigente, ou seja, à heteronormatividade e à
propulsão que tomou sua imagem:
A publicidade foi formidável apresentando Ivana como a grande atração da revista.
Metido em longos vestidos prêtos e capas estampadas, fumando em longas piteiras
não foi dito nada sobre seu sexo, se homem ou mulher. E quando chegou ao palco
ninguém imaginou que na verdade fôsse um homem. Cantava como mulher, trajava-
se como mulher e apresentava o “charme” e o “sexy” das grandes francêsas das
“boites” cariocas. Depois o público descobriu que Ivana era apenas um homem
desempenhando o papel travesti. O “cartaz” aumentou. Aí além de trabalhar no
Recreio êle foi para o Monte Carlo onde é grande sensação do “show” da
madrugada naquela casa. (SERRA, 1953: 22)
Podem ser notados problemas de gênero nas citações sobre Ivaná transcritas acima. A
transgressão da drag queen ao binômio masculino/feminino na década de 50, pode gerar
inúmeras indagações acerca da fragilidade entre papéis de gênero, o próprio conceito de
gênero e suas relações fora do âmbito artístico.
Elege-se aqui a pesquisa e o estudo pelo campo cultural por apresentar, em certa
medida, a subversão exposta a normas e padrões que “consumiu” (ou ao menos balançou) o
sistema num movimento vindo do interior para o exterior, vislumbrando Ivaná como uma
protagonista na “destruição” de valores heteronormativos na sociedade branca, culta e com
muitos representantes das classes sociais mais altas na capital federal prestigiando seu
13
trabalho e elogiando sua arte; apontando, em alguns casos, sua estética feminina como mais
agradável do que sua aparência masculina, quando não estava montada.
Ao tratar de identidades trans* neste período ou do próprio meio LGBT como um
todo, visto em Trevisan e Green, a repressão e subordinação a essas/es sujeitas/os abjetas/os
era intenso e aquela/e que não estivesse no padrão hetero e cisgênero de ser era dada/o como
doente e os guetos eram seus lugares de sociabilidades.
Ivaná, como uma drag queen, ou seja, que pode viver o dia-a-dia com os privilégios de
um homem, talvez não estivesse tão subjugada quanto uma travesti. Pelo fato de Ivaná ser
branca, europeia, artista e se passar por francesa naquele período devem ser levados em
consideração quando se pensa o porquê de ter tido certa projeção não só no Rio de Janeiro,
mas em território nacional, dado o alcance da mídia impressa (e do cinema) naquele período.
Ao se levar em consideração também o seu fazer artístico enquanto uma artista
múltipla nos espaços e fazeres desenvolvidos, chama a atenção a questão da performatividade,
não apenas no que tange ao gênero, mas também no possível entendimento da arte drag
enquanto uma performance. Ivaná não era apenas uma personagem criada por Ivan Damião,
era ela mesma a artista que tomava o destaque. Seria um alter ego? Provavelmente sim e não.
Sim por se tratar de uma persona desenvolvida por um ator, cantor, dançarino e costureiro
para um fim exclusivo: a atuação em espaços artísticos; e não por se tratar de algo que
transcende a uma personagem criada como um “eu ficcional”. Voltando à citação da revista
Machete escrita por Ivo Serra, seu nome – Ivan – já era quase esquecido, quem sobrevivia era
Ivaná.
O brilhantismo da drag queen, encontra-se justamente neste ponto, e não apenas na
paródia, caricatura ou qualquer outra coisa que tente reduzir o seu fazer como apenas um ato
de “imitar uma raxa”. A drag se coloca num entrecruzamento dos papéis atribuídos deveras
antiquado da polarização homem/mulher.
Figura 05 – Ivaná em É Fogo na Jaca
14
Fonte: FUNARTE/Centro de Documentação e Informação em Arte - Acervo Walter Pinto. No verso desta
fotografia há a legenda: “É Fogo na Jaca Ato II – Quadro 3”.
A drag queen performa uma existência em que pano, tinta e peruca podem questionar
que as categorias de gênero por muito definidas como imutáveis, são construções
socioculturais entrevendo também a própria noção de sexo biológico, que gera outras
discussões para se pensar (BUTLER, 2015). A desconstrução desses pressupostos excludentes
propõe um trabalho de construir novos sentidos a partir das cinzas do que se fica quando as
manas, as monas, ocós e toda a gente pintosa coloca em xeque o sistema opressor a que
todas/os são submetidas/os.
Muitas questões acerca da identidade de Ivaná enquanto uma drag queen e possíveis
subversões aos padrões de gênero estabelecidos, na década de 50, ainda carecem de
amadurecimento através da pesquisa e da reflexão. As atuações profissional e artística dela
15
nas peças teatrais precisam ser estudadas com mais detalhes e com mais importância, cabendo
esta tarefa a outro trabalho.
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setembro de 1953.
TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à
atualidade. 5ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2002.
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