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Um exercício analítico sobre imagens produzidas por drag queens e transformistas
e compartilhadas em ambientes de sociabilidade on-line1
Marina Leitão Mesquita
Doutoranda em Antropologia - PPGA/UFPE
Resumo:
O intuito deste trabalho consiste em refletir sobre os desafios de uma articulação
entre questões teórico-metodológicas que envolvam etnografia virtual e antropologia
visual. Para tanto, realizou-se uma análise da vida social de uma página do Facebook,
dedicada a uma boate gay. O enfoque incidiu na produção e compartilhamento de
fotografias e cartazes criados por transformistas, drag queens e por moderadores/as da
página. Objetivou-se refletir sobre o uso da abordagem etnográfica em contextos de
pesquisa que transitam entre os universos on-line e off-line, almejando uma articulação
entre técnicas de etnografia virtual e antropologia visual. Constatou-se que através
dessas imagens é possível identificar as preferências estéticas do grupo; analisar a
linguagem utilizada e seus significados; observar quais grupos e artistas estão em
evidência; perceber as especificidades dos estilos de montagem. Observou-se, ainda,
que as ausências em fotografias podem dizer muito sobre regras e prioridades do grupo
pesquisado. Entende-se que é necessário à etnografia virtual estar sob a égide da teoria
antropológica clássica, e que a antropologia visual é uma importante via de diálogo.
Palavras-chave: etnografia virtual, antropologia visual, transformistas e drag queens.
1. Introdução
O objetivo deste trabalho consiste em refletir sobre os desafios e as
possibilidades de uma articulação entre questões teórico-metodológicas que envolvam
etnografia virtual e antropologia visual. Para tanto, analisei a vida social de uma página
do Facebook, dedicada a boate Divine (Fortaleza-CE). O enfoque incidiu na produção e
compartilhamento de fotografias e cartazes criados por transformistas e drag queens que
realizam performances na boate, bem como pelos/as moderadores da página. Esse
exercício analítico buscou refletir sobre o uso da abordagem etnográfica em contextos
1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de
agosto de 2014, Natal/RN.
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de pesquisa que transitam entre os universos on-line e off-line, almejando uma
articulação entre técnicas de etnografia virtual e antropologia visual.
O ensejo para desenvolver uma etnografia virtual das práticas de
compartilhamento de frequentadores/as da boate Divine surgiu ainda durante o
mestrado, quando pude observar a importância da sociabilidade nesse contexto para o
desenvolvimento de suas atividades. A boate Divine configura-se no principal local da
cidade de Fortaleza voltada à apresentação de performances trans. Considero importante
salientar, também, que transformistas e drag queens são categorias que se diferenciam
das travestis. Uma das principais especificidades se refere ao fato de que as travestis
permanecem montadas dia e noite, procurando sempre ocultar os fenótipos e as
características atribuídas ao sexo masculino. Já transformistas e drag queens, costumam
se montar apenas em festividades e/ou ocasiões especiais (geralmente noturnas).
As travestis utilizam o nome feminino socialmente, já transformistas e drags
costumam utilizá-lo apenas em alguns contextos. A montagem da travesti é um processo
que requer modificações na carne, pois além da adoção de acessórios e estilos atribuídos
à feminilidade, a ingestão de hormônios e/ou aplicação de silicone quase sempre se faz
necessária. Já entre transformistas e drags é comum que suas intervenções corporais
sejam momentâneas, utilizando-se apenas de maquiagem, indumentárias, acessórios
diversos, enchimentos presos ao corpo etc.
Nesse sentido, a primeira seção deste trabalho busca demonstrar a importância
das novas reflexões sobre técnicas de etnografias virtuais estabelecerem diálogos com
os conhecimentos tradicionalmente desenvolvidos pela antropologia. A argumentação
consiste em evidenciar que as etnografias contemporâneas que transitam entre os
universos on-line e off-line devem estabelecer um debate com as leituras críticas
direcionadas à prática etnográfica, bem como contribuir para o constante
desenvolvimento da disciplina.
A seguir, é realizada uma discussão sobre questões teórico-metodológicas
relevantes para a abordagem da imagem em estudos etnográficos, buscando discutir
estratégias que permitam considerar a imagem em etnografias contemporâneas que
transitam entre um campo face a face (off-line) e contextos de sociabilidade que
utilizam como suporte a internet (on-line).
A última parte do trabalho consiste na análise das imagens compartilhadas na
fan page da boate Divine. Observou-se que através dessas imagens é possível identificar
as preferências estéticas do grupo; analisar a linguagem utilizada e seus significados;
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observar quais grupos e artistas estão em evidência; perceber as especificidades dos
estilos de montagem. Observou-se, ainda, que as ausências em fotografias podem dizer
muito sobre regras e prioridades do grupo pesquisado.
2. Antropologia, Etnografia, Etnografia virtual
Admitindo suas preferencias pelos cânones tradicionais da abordagem
etnográfica, Daniel Miller e Don Slater (2004) desenvolveram uma contumaz crítica
sobre como as chamadas etnografias virtuais vinham sendo construídas. Os autores
argumentam que o termo “etnografia” vem se tornando uma abordagem da moda entre
diversas disciplinas. Observaram que na área dos estudos culturais, por exemplo, usar o
método etnográfico quer dizer apenas se tratar de uma análise não simplesmente textual.
Em outros casos, a noção de “etnografia da internet” designa um estudo centrado em
uma comunidade de relacionamentos exclusivamente on-line, abordagem conhecida
também como “etnografias do ciberespaço”.
Nessa perspectiva, já que a pesquisa de campo não se resume a uma mera
técnica de coleta de dados, mas sim em um procedimento com implicações teóricas
determinantes (PEIRANO, 1995), o objetivo desta seção é demonstrar a importância de
a etnografia virtual estar sob a égide dos conhecimentos tradicionalmente desenvolvidos
pela antropologia. Portanto, buscarei argumentar que as etnografias contemporâneas que
transitam entre os universos on-line e off-line devem estabelecer um debate e/ou
incorporar as leituras críticas direcionadas a prática etnográfica, bem como contribuir
para o constante desenvolvimento da disciplina.
O que compreendemos hoje como pesquisa de campo e trabalho etnográfico se
consolidou como conduta e método ideal em meados do século XX. Franz Boas,
considerado o pai-fundador da antropologia norte-americana, teve relevante influência
nesse processo. Seu empreendimento metodológico visava o conhecimento dos
processos históricos, a busca da especificidade psicológica da humanidade, a coleta de
grandes quantidades de dados que pudessem dar uma base empírica sólida para os
estudos vindouros e indicava que uma investigação seria bem mais produtiva propondo
chegar a uma hipótese, e não partir dela (STOCKING, 2004). Conforme expressa
Peirano (1995), a antropologia não está imune ao poder dos mitos, sendo o trabalho de
campo segundo o modelo executado por Malinowski entre os trobriandeses, em Os
argonautas do pacífico ocidental (1976), preponderante entre antropólogos das mais
variadas escolas.
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A pesquisa de campo nos moldes de Malinowski consiste na realização da
observação participante, onde o etnógrafo deve emergir completamente no universo
pesquisado, por um longo período de tempo e necessariamente isolado de seus pares, de
forma que sua convivência com os nativos possa ser a mais profunda possível. O
cotidiano e as descobertas da pesquisa devem ser registrados em um diário de campo,
que vem a conter as informações coletadas durante a permanência no local da pesquisa.
Esses dados são coletados através de um convívio que se baseia em um relacionamento
face a face, onde o pesquisador se desloca geográfica e simbolicamente a um longínquo
campo de estudo2.
No esteio de Malinowski e do estrutural-funcionalismo desenvolvido por
Radcliffe-Brown, uma nova geração de antropólogos ingleses participou de um
momento entendido por Feldman-Bianco (2007) como uma transição na antropologia. A
Escola de Manchester, representada por Max Gluckman, Clyde Mitchell, Jaap Van
Velsen etc., deslocou a ênfase nas sociedades ditas tradicionais para as sociedades
contemporâneas. Objetivando o entendimento da mudança social e do conflito, esses
autores buscaram compreender a inserção social complexa de indivíduos em situações
de transformação, sobretudo nos processos de descolonização das sociedades africanas
(FRY, 2011).
Já a partir dos anos 1960, surge com muita força a abordagem hermenêutica
interpretativista proposta por Clifford Geertz. Partindo de um conceito semiótico de
cultura, o autor afirma que a prática antropológica consiste na etnografia, e seu objetivo
incide na elaboração de uma descrição densa. As proposições analíticas de Geertz
(2008) sugerem uma prática etnográfica como um empreendimento contestável, pois ela
é intrinsecamente incompleta. No bojo da antropologia interpretativa, ocorre uma crítica
incisiva a respeito do modo como as etnografias clássicas foram construídas. Autores,
como James Clifford e George Marcus, dedicaram-se a uma desconstrução da
disciplina, buscando incorporar elementos que julgavam estar ausentes nas monografias
até então realizadas. Ao refletir sobre a crítica pós-moderna norte-americana, Caldeira
(1988) aponta para transformações teóricas e metodológicas, baseadas em uma ênfase
nas relações de poder inerentes ao convívio social e no que tange os relacionamentos
estabelecidos entre pesquisador e pesquisados.
2 Para além dessas indicações, fortemente utilizadas como modelo, o método de Malinowski também está
baseado na criação/utilização dos quadros sinóticos.
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Nesse contexto, surge uma série de estudos interessados em experiências sociais
que utilizam como suporte novas tecnologias, baseadas no crescente uso da internet
como forma de comunicação e sociabilidade. Christine Hine (2000) pontua que a ideia
de viagem a um campo longínquo, utilizada como um aspecto legitimador de
etnografias tradicionais, ganha outro sentido em se tratando de etnografias do
ciberespaço. Considerando essa viagem como algo para além do deslocamento
geográfico do antropólogo, em pesquisas que tomam a internet como meio, a viagem
física pode ser substituída por uma viagem experimental, por meio do texto, das
imagens e do olhar, baseada em um intercâmbio de experiências.
A perspectiva defendida pela autora incorpora fortemente a crítica realizada
pelos meta-etnógrafos pós-modernos, que tomam como “outro” os textos etnográficos
(CALDEIRA, 1988). Hine (2000) defende a possibilidade de tomar a internet como um
texto, produzido a partir de um contexto cultural específico. Assim, uma etnografia
virtual se configura em um processo de leitura e escrita de textos, isto é, o pesquisador
tem acesso ao que é escrito, interpreta e escreve textos que também serão interpretados
por seus sujeitos de pesquisa. Portanto, em sua concepção, há um encontro etnográfico
dialógico e intersubjetivo, semelhante àquele propiciado por pesquisas off-line, não se
restringindo a uma simples leitura de textos. Nesse ponto, é possível observar que a
autora toma com muito entusiasmo a crítica pós-moderna, posicionando-se no campo da
disciplina.
Outra vertente importante para o desenvolvimento de uma metodologia de
investigação de fenômenos que perpassam os ambientes virtuais é a defendida por
Miller e Slater (2004), que realizam uma sofisticada reflexão sobre as tensões entre
etnografias on-line e off-line. Os autores observam que o fato de estar presente
fisicamente no campo não confere automaticamente a legitimidade do trabalho
etnográfico, assim como realizar um estudo off-line não necessariamente deslegitima
uma pesquisa. Na verdade, salientam os pesquisadores, toda boa etnografia deve seguir
alguns parâmetros que conferem qualidade à investigação, já que a prática etnográfica
constitui e é constituída pelo corpus de conhecimento acumulado ao longo de sua
trajetória disciplinar.
O primeiro nível de definição de uma boa etnografia diz respeito à observação
participante e ao tempo necessário para sua execução, que deve ser longo e paciente, de
modo que as relações extrapolem uma condição de superficialidade. Esse aspecto é
determinante para diferenciar uma boa etnografia daquelas que utilizam
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inapropriadamente o termo. A etnografia deve compreender, ainda, uma diversidade de
métodos, ou seja, realizar uma triangulação, permitindo que surjam conhecimentos mais
profundos e que possam ressignificar as impressões iniciais. Outra questão importante
para atribuir qualidade a uma etnografia, consiste em possibilitar, ao longo do tempo,
que os sujeitos e objetos da pesquisa possam ser vistos no âmbito de contextos mais
amplos. Os autores entendem que a etnografia elabora um conhecimento holístico, que
situa um fenômeno dentro de contextos mais abrangentes.
Ao traçarem parâmetros de qualidade e confiabilidade da etnografia, Miller e
Slater (2004) dialogam com a tradição disciplinar da antropologia, bem como se
esforçam para propor alternativas contemporâneas a um conjunto de autores pós-
modernos que problematizaram a noção mais clássica de campo. O objetivo dos autores
é tornar viáveis as novas possibilidades que a internet oferece para a produção da
pesquisa de campo e, ao mesmo tempo, evitar usos equivocados da perspectiva
etnográfica. Nesse sentido, os fatores que determinam a qualidade de uma etnografia
on-line passam por todos os parâmetros abordados pelos autores, bem como pelo
compromisso em relacionar o fenômeno a contextos mais amplos. Deve-se, sobretudo,
evitar que noções como “virtualidade” ou “ciberespaço” constituam-se como
pressupostos metodológicos. É preciso, pois, cercar o fenômeno pesquisado de todas as
formas possíveis, o que consiste, muitas vezes, em realizar uma pesquisa que transite
entre os universos on-line e off-line.
Nesse sentido, os autores defendem que mesmo pesquisas desenvolvidas
inteiramente on-line, devem buscar compreender quais aspectos off-line são
determinantes para configurar o fenômeno em questão. Portanto, há o reconhecimento
de um relacionamento complexo e cheio de nuanças entre os universos on-line e off-
line, onde cada recorte de pesquisa determinará o modo como eles serão trabalhados.
Algumas pesquisas iniciam-se on-line e partem para aspectos off-line, de acordo com a
necessidade da abordagem de cada fenômeno específico. Outras iniciam um campo face
a face, deslocando-se fisicamente e participando de seus eventos e momentos
cotidianos. Entretanto, atualmente, é cada vez mais comum que mesmo em pesquisas
face a face, as trajetórias dos sujeitos levem o pesquisador a lidar com algum tipo de
sociabilidade na internet. Cabe ao etnógrafo definir, baseado na realidade em questão,
se as atividades on-line dos sujeitos são significativas para sua pesquisa.
Dessa forma, acredito que as proposições de Miller e Slater (2004), que
estabelecem parâmetros de qualidade e confiabilidade de uma etnografia e preocupam-
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se com as nuances entre os mundos on-line e off-line, configuram-se em perspectivas
promissoras para o desenvolvimento de etnografias que transitam entre o virtual e o
real. Para dar seguimento ao diálogo aqui iniciado, a próxima seção irá discutir aspectos
relativos à antropologia visual, já que o intuito deste trabalho consiste em tratar aspectos
metodológicos de uma etnografia virtual de imagens.
3. Antropologia visual: considerando a imagem
Conforme Clarice Peixoto (1999), não seria uma tarefa fácil inventariar o escopo
bibliográfico que constitui a antropologia visual, visto que seria necessário remeter a
todas as formas de expressões imagéticas e iconográficas presentes nos mais remotos
estudos antropológicos. Portanto, a intenção desta seção consiste em discorrer sobre
algumas questões teórico-metodológicas relevantes para a abordagem da imagem em
estudos etnográficos, bem como refletir sobre estratégias que permitam considerar a
imagem em etnografias contemporâneas que transitam entre um campo face a face (off-
line) e contextos de sociabilidade que utilizam como suporte a internet (on-line).
Nesse sentido, Collier Jr. (1973), em sua clássica obra dedicada a demonstrar
como proceder à utilização de fotografias e imagens fílmicas em pesquisa social,
observa que, frequentemente, etnógrafos vão a seus campos de pesquisa munidos de
equipamento fotográfico, porém subutilizam suas possibilidades. O autor, então sugere
alguns usos do equipamento, visando o manejo adequado para torná-lo uma técnica de
investigação. Usar a máquina fotográfica de modo indutivo, registrar objetos e
acontecimentos para posterior análise e entendimento, empregar a fotografia como
apoio com capacidade evocativa em entrevistas, são algumas de suas indicações. Collier
Jr. (1973) acredita, ainda, que a câmera pode funcionar como porta de entrada e
consolidação da relação entre pesquisador e pesquisados. Entretanto, é preciso
esclarecer que no momento histórico em que autor desenvolveu essa reflexão, a
utilização de câmeras fotográficas, sobretudo as digitais, ainda não havia sido
popularizada como nos dias atuais. Seria necessário, portanto, refletir sobre como a
presença da câmera é recebida contemporaneamente, levando em consideração cada
contexto de pesquisa específico.
Sébastien Darbon (1998) desenvolve uma série de reflexões metodológicas
visando esclarecer questões referentes ao realismo das imagens, aos problemas de
sentido e interpretação que elas colocam e, finalmente, à relação entre imagem e texto
acadêmico. Primeiramente, observa que o realismo alcançado por uma imagem é
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sempre relativo e determinado por um sistema de representações, haja vista que um
egípcio da quinta dinastia e um japonês do século XVIII não compartilhariam uma
maneira semelhante de proceder a representação. Isso significa que é necessário deixar
claro o quadro de referencias utilizado no procedimento de representação.
Em relação ao processo de interpretação, o autor observa que a imagem não
possui um sentido inerente, visto que o seu sentido é sempre construído. Assim, a
imagem não se configura em uma representação da realidade, mas sim em um sistema
simbólico. Em decorrência dessas colocações, Darbon (1998) considera que a imagem é
um suporte para o discurso, visto que ela não possui sentido inerente, necessitando
sempre ser edificado.
Assim como os textos, as imagens constituem-se em artefatos culturais,
conforme salienta Sylvia Caiuby Novaes (1998). A autora argumenta que com a
produção e a análise de registros imagéticos é possível proceder à reconstituição da
história cultural de grupos sociais, compreender processos de mudança social e entender
aspectos da sociabilidade de determinados grupos. As imagens coletadas em pesquisa
de campo podem ser utilizadas como dados para facilitar a compreensão do universo
simbólico dos grupos estudados, tornando possível acrescentar novas dimensões à
interpretação, bem como possibilitando uma investigação mais acurada dos processos
pesquisados. Segundo Novaes (1998, p. 116):
Se um dos objetivos mais caros da antropologia sempre foi o de contribuir
para uma melhor comunicação intercultural, o uso de imagens, muito mais
que o de palavras, contribui para essa meta, ao permitir captar e transmitir o
que não é imediatamente transmissível no plano linguístico. Certos
fenômenos, embora implícitos na lógica da cultura, só podem explicitar no
plano das formas sensíveis o seu significado mais profundo.
Como a fotografia, o cinema, a televisão e a internet são elementos que fazem
parte do nosso cotidiano, interagimos com as imagens transmitidas por esses meios,
muitas vezes, sem perceber que elas comunicam e moldam valores e preferencias em
nosso meio social. A composição imagética tem a capacidade de conciliar em sua
narrativa significados diversos, construídos e repassados no contexto social em que
transita. Dessa forma, as imagens estão impregnadas de um sentido de realidade, porém
constituem-se em invenções interpretativas produzidas por um imaginário social
específico. Há, ainda, uma negociação de sentidos para além da imagem em si, no que
tange a relação entre o sujeito que emite e aquele que recebe (NOVAES, 1998).
As imagens informam não apenas sobre o sujeito ou objeto retratados, mas
também evidencia os estilos de vida daqueles que captam as imagens. Dessa forma, é
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possível compreender muito sobre uma dada realidade a partir da investigação das
ausências, isto é, as situações que não aparecem nos registros imagéticos são
importantes vias de acesso à compreensão dos fenômenos. Assim, é tarefa da pesquisa
etnográfica buscar apreender os olhares direcionados a algo, bem como debruçar-se
sobre os significados que circundam os registros (NOVAES, 1998).
Ao refletir sobre as antigas práticas e as novas perspectivas de investigação da
antropologia visual, José da Silva Ribeiro (2005) observa que por muito tempo foi
estabelecida uma divisão das sociedades e as das culturas entre aquelas que observavam
(pesquisavam, fotografavam, filmavam) e aquelas que eram observadas. Como opostos
bem demarcados, era habitual que ocidentais, ricos, urbanos e homens estudassem e/ou
captassem imagens audiovisuais de orientais, pobres, campesinos e mulheres. Apesar de
não podermos afirmar que esse processo foi totalmente superado, baseado em Benjamin
e Jenkins, o autor argumenta que com a passagem da era da reprodutibilidade técnica
para a era da transformação digital originaram-se novos problemas, bem como
transformações nunca antes encaradas.
Ribeiro (2005) chama atenção para o fato de que o processo de digitalização
corrente na sociedade desestabiliza os modos de representação e visualização outrora
estabelecidos, levando a um reexame de discursos científicos, estéticos e
metodológicos. Nesse sentido, a popularização de aparatos tecnológicos da era digital
torna a produção de imagens muito mais acessível, borrando as fronteiras entre as
categorias de profissionais e amadores. Segundo Ribeiro (2005, p. 618-619):
As tecnologias digitais tornam-se tecnologias da memória (arquivos digitais)
suscetíveis de armazenar, organizar e comunicar uma grande quantidade de
informação, de qualquer tipo e suporte (textos, imagens, sons,
audioimagético), de fazer circular e tornar facilmente acessível e disponível
simultaneamente numa pluralidade de lugares por um grande número de
utilizadores – as bases de dados serão as formas simbólicas ou culturais
contemporâneas, aparentemente caóticas mas estruturadas, nas quais se
podem realizar um grande número de operações básicas: navegar, ver,
organizar, reorganizar, selecionar, compor, enviar, imprimir etc.
Nessa perspectiva, torna-se imprescindível aos cientistas sociais desenvolverem
estratégias para encarar os desafios colocados pelas novas tecnologias digitais, tanto em
relação ao ensino, como à investigação da realidade social, que passa por profundas
transformações, já que a sociedade e a cultura de um período específico sempre se
refletem em sua técnica (RIBEIRO, 1995). Assim, amparada pelas reflexões teórico-
metodológicas discutidas ao longo deste trabalho, experimentarei caminhos e estratégias
para compreensão de produções imagéticas compartilhadas em redes sociais.
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4. A vida social de uma fan page: a montagem das imagens
O propósito desta seção consiste em analisar a vida social de uma página do
Facebook, dedicada a boate Divine. O enfoque incide na produção e compartilhamento
de fotografias e cartazes, criados pelas artistas trans que realizam performances na
boate, bem como pelos/as moderadores da página. Esse exercício analítico visa refletir
sobre o uso da abordagem etnográfica em contextos de pesquisa que transitam entre os
universos on-line e off-line, assim como buscar uma articulação entre técnicas de
etnografia virtual e antropologia visual.
O Facebook é uma rede social criada em 2004 e que conta com mais de um
bilhão de usuários em todo o mundo. Atualmente, é o site de interação social com a
maior adesão em território nacional3. Além dos perfis pessoais, o site permite a criação
de páginas (fan pages) de artistas, empresas, indústrias etc., que divulgam seus produtos
e aglutinam admiradores que podem interagir com os perfis. As principais formas de
interação propiciadas pela rede consistem no compartilhamento, no ato de curtir e de
comentar as postagens.
Inaugurada em 28 de janeiro de 2000 e localizada no centro da cidade, a Divine
se apresenta publicamente como a mais tradicional boate gay de Fortaleza4. Com o
slogan “Divine, onde se descobrem os talentos e nascem as grandes estrelas”, a boate
funciona de quarta a domingo, centrando sua programação nos shows de transformistas
e drag queens, que acontecem as sextas, sábados e domingos.
Com base na frequência à boate, nas observações empreendidas, nas conversas
informais com transformistas, drag queens, clientes e funcionários/as da boate, isto é,
na vivência que tive em campo ao longo dos anos5, observei a existência de
determinadas classificações, que hierarquizam as festividades e as artistas trans.
Atualmente, os tipos de shows que acontecem na Divine são nos seguintes formatos: 1)
festas especiais: Halloween, especial Divas, The Best of Drag, Réveillon e Aniversário
da boate; 2) concursos de talentos: Top Drag Divine e Transformistas do ano; e 3) finais
de semana convencionais. Já as artistas trans são classificadas conforme as seguintes
categorias êmicas: 1) Divas: são consideradas artistas completas, com performance e
dublagem irrepreensíveis. 2) Apresentadoras: são artistas de destaque, que possuem um
3 Dados divulgados pelo próprio site.
4 De fato, são poucos os estabelecimentos de lazer noturno que alcançaram tão longo período de atividade
em Fortaleza. Entre as boates voltadas ao público homossexual, a Divine é a mais duradoura em toda a
história local. Antes da Divine, a boate gay mais duradoura havia sido a Navy, que funcionou entre as
décadas de 70 e 80, permanecendo em atividade durante dez anos. 5 Iniciei as idas ao campo na Divine ainda na graduação, no ano de 2008.
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bom show e são boas comunicadoras. 3) Estrelas: são artistas consideradas relevantes
para o casting da boate, geralmente venceram um concurso transformistas do ano. 4)
Top drags: são drag queens que se destacam por sua performance e montagem, muitas
vezes são vencedoras de uma edição do concurso homônimo. Essas classificações
tornam-se símbolos de distinção e conferem prestígio às artistas, que passam a ter uma
condição diferenciada em relação às demais, denotando um ambiente de muita
rivalidade.
Nesse sentido, a ideia de realizar uma etnografia virtual das imagens
relacionadas à página da boate Divine surgiu durante a pesquisa de campo acima
mencionada. Com o objetivo de compreender o processo de amadrinhamento6 entre
transformistas e drag queens, frequentei o estabelecimento onde acontecem as
performances trans empreendidas na cidade (a boate Divine), me relacionando com
estas pessoas, em especial com a família7 Haddukan e com os/as dirigentes da casa.
Durante o decorrer do campo percebi que uma importante esfera da sociabilidade do
grupo acontecia por meio do Facebook, onde os perfis pessoais dos/as artistas e
frequentadores/as curtiam a página da boate, que funciona como uma via de divulgação
de shows e concursos, bem como em um espaço de intensa interação.
Esse processo de descoberta de uma relevante interação social on-line
vivenciada pelos/as sujeitos/as da pesquisa em plena realização do campo corrobora o
que Miller e Slater (2004) defendem como postura desejável em pesquisas etnográficas.
Os autores argumentam que cada campo tem suas particularidades, cabendo ao
etnógrafo buscar acessar os contextos importantes, que podem esclarecer questões e
auxiliar na compreensão do universo simbólico (NOVAES, 1998). É necessário,
portanto, estar atento para a complexidade inerente à relação entre os contextos on-line
e off-line, já que as interações e sentidos de um ambiente, afeta necessariamente o
outro, mesmo que seja para estabelecer diferenças (MILLER e SLATER, 2004). Em
relação ao compartilhamento de imagens em torno da página da Divine, porém, o que se
verifica é muito mais uma continuidade das relações estabelecidas na própria boate: as
artistas buscam se promover compartilhando fotografias e marcando a fan page; as
6 Tema de minha dissertação de mestrado, consiste no estabelecimento de um vínculo entre uma
transformista ou uma drag queen experiente e uma iniciante, que almeja aprender a manipular seu corpo
através da montagem. 7 Família é o grupo que se forma a partir do estabelecimento das relações de amadrinhamento.
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montagens8 consideradas melhores e mais originais são as mais visualizadas; há uma
disputa para obter mais comentários e curtidas; e a publicidade da boate é realizada,
quase exclusivamente, por esta via.
Um dos tipos de imagem compartilhados pela página consiste nos cartazes de
divulgação criados pela diretora de arte da boate, a transformista Condessa Mireille
Blanche. Através da análise desses cartazes, é possível identificar preferencias estéticas
do grupo, a linguagem utilizada, observar quais famílias e artistas estão em evidência,
dentre outras questões a serem abordadas no decorrer desta seção. O segundo tipo, são
fotografias de transformistas e/ou drag queens que fazem shows na boate. Essas
imagens geralmente são postadas pelos/as moderadores/as9 da página, utilizando um
recurso da rede social que permite marcar os perfis daqueles/as que aparecem nas fotos,
fazendo com que a imagem apareça simultaneamente na página da boate e nos perfis
pessoais das pessoas retratadas. O processo inverso também ocorre, isto é, participantes
da página podem postar fotos e marcá-la, fazendo com que todos os/as seguidores da
fan page visualizem a imagem.
Conforme observado por Ribeiro (2005), a passagem da era da reprodutibilidade
técnica para a era da transformação digital trouxe consigo uma série de mudanças, que
desestabilizaram as formas de representação e visualização. A popularização dos
aparatos tecnológicos contribui sobremaneira para esse processo, já que as relações
sociais estão alinhadas a uma cultura material específica e o pensamento de cada época
se reflete em sua técnica. Esse processo pode ser contemplado no depoimento abaixo,
coletado por mim em entrevista presencial:
Conheci assim, na roda das drags, porque na época a gente não tinha câmera
digital e tinha um fotógrafo que ia na boate e tirava as fotos da gente, que era
o Léo, que já faleceu. Também se montava, era Leila Romana, era uma diva
da Divine, era do elenco da Divine. Então ela tirava as fotos da gente, porque
na época as bicha gostava de tirar foto pra ver como tinha ficado depois.
Porque a foto revelava que o espelho, às vezes, enganava a gente [risos].
Chegava no espelho, se achava belíssima, mas quando via a foto, via um
monte de imperfeição. Aquilo ajudava a gente a corrigir a maquiagem, o que
a gente de repente tinha errado naquela montagem anterior.
(Satyne Haddukan, em janeiro de 2012)
A declaração acima demonstra a importância da fotografia para as montagens
dos corpos, pois aspectos que, do ponto de vista das drags, não seriam perceptíveis ao
olhar-se no espelho, tornam-se visíveis ao comtemplarem a imagem. É possível
8 A categoria nativa Montagem diz respeito ao processo de transformação corporal, que no caso de
transformistas e drag queens é momentâneo, realizado para fins artísticos e festivos. 9 O moderador é a pessoa responsável por inserir conteúdo na página do Facebook da qual é responsável.
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visualizar, ainda, as mudanças que ocorreram com o advento da câmera digital, pois se
antes para obter uma simples fotografia era necessário o trabalho de um/a profissional,
com o tempo transformou-se em algo dispensável em eventos corriqueiros. Ocorre,
portanto, uma diluição das fronteiras entre profissionais e amadores, desencadeando
uma atividade de produção descentralizada (RIBEIRO, 2005).
Simultaneamente a digitalização da produção de imagens, as novas formas de
sociabilidade na internet ajudaram a transformar o cenário existente na era da
reprodutibilidade técnica. Se com a câmera digital é possível descentralizar a produção
das imagens, com o adento e a popularização das redes sociais tornaram-se múltiplas as
formas de divulgação e compartilhamento. Assim, essas tecnologias configuram-se em
tecnologias de memória, onde é possível armazenar, organizar e comunicar materiais de
diversos formatos, que poderão circular e serem acessados por uma multiplicidade de
pessoas, em lugares distintos (RIBEIRO, 2005). A página da boate Divine no Facebook
constitui-se em um desses espaços de arquivos digitais de memória; armazenando e
comunicando as produções imagéticas e a interação de seus participantes.
O meu primeiro contato com a fan page da Divine aconteceu no início do ano de
2011, quando mudei-me de Fortaleza para Recife afim de cursar o mestrado. Tentando
encontrar soluções para manter-me em contato com os sujeitos/as de minha pesquisa,
inseri o nome da boate na ferramenta de buscas do Facebook, e tão logo encontrei a
página. Enviei um convite para estabelecer amizade e aguardei durante alguns dias o
aceite. Ao ser aceita, observei que tinha muitos/as amigo/as10
em comum, praticamente
todos/as os meu/minhas interlocutores/as de pesquisa seguiam a página da Divine.
Ao segui-la, passei a receber todas as atualizações da fan page. Observei que a
página servia como um importante espaço de sociabilidade: os/as frequentadores/as
anunciavam a noite em que iriam à boate, as artistas ou seus/suas amigos/as
compartilhavam fotografias de suas montagens, os moderadores/as divulgavam imagens
dos shows, noticiavam as festas através dos cartazes etc. E em torno de todas essas
postagens ocorre uma interação bastante significativa, os/as seguidores/as da página
curtem, compartilham e comentam. Uma das características mais marcantes das
postagens da página incide na preeminência do compartilhamento de imagens.
Para proceder ao exercício analítico a que me propus, passei a acessar a página
da boate Divine diariamente, acompanhando as postagens, os comentários, as curtidas e
10
No Facebook todos os seus contatos são denominados por amigos, independente do grau de
proximidade.
14
os compartilhamentos. Nessa empreitada inicial, raramente pratiquei algum tipo de
interação, que se limitou a curtir algum conteúdo. Porém, pude constatar que as
possibilidades de pesquisa e interação são diversas: adicionar usuários e manter contato
via bate-papo para esclarecer alguma questão; marcar encontros face a face para a
realização de entrevistas; comparecer pessoalmente a encontros coletivos marcados via
Facebook etc. A depender do objetivo da pesquisa é possível recorrer a diferentes
estratégias, considerando a importância da triangulação de métodos para a qualidade de
uma etnografia (MILLER e SLATER, 2004). Assim, conforme o enfoque aqui
proposto, detive minha observação nos diferentes tipos de imagens compartilhadas, bem
como na interação que os usuários estabelecem em torno delas. A seguir reproduzo uma
fotografia compartilhada por uma artista trans, que marcou a fan page da boate,
permitindo que todos os seus seguidores a visualizem:
A partir dessa imagem e da interação em torno dela é possível visualizar
questões relevantes no contexto da cena das performances trans na capital cearense. A
fotografia de Mayrah ilustra o que Novaes (1998) entende como passível de ser
compreendido de forma mais apurada no plano das formas sensíveis. O brilho de sua
indumentária e de suas bijuterias representa a necessidade de sentir-se glamorosa,
15
buscando um encantamento que se dá pelo excesso e pela exacerbação de elementos
culturalmente associados à feminilidade. As lentes de contato azuis e a maquiagem, que
teima em conseguir um tom de pele mais claro, denotam uma preferencia estética pela
raça branca, disfarçando com truques de maquiagem o nariz mais grosso. A sobrancelha
é desenhada com lápis próprio para maquiagem, sendo a natural totalmente raspada para
a criação de outra, considerada perfeita.
Conforme Darbon (1998), a imagem não possui um sentido inerente, sendo ele
sempre construído pelas relações que se estabelecem. Portanto, o conjunto formado pela
fotografia e pelos comentários que a acompanham, demonstram como a condição de
diva é almejada e se configura em motivo de orgulho. Originária da língua italiana, essa
noção evoca uma condição de ser, mais que uma qualidade da pessoa. Fazendo-se
necessário, além do talento artístico, uma personalidade cativante e sedutora. A diva é
uma noção aglutinadora, que se origina entre grandes cantoras de ópera, mas passa a
compreender uma diversidade de celebridades (Markendorf, 2010). Conforme é
possível constatar pelos comentários de Mayrah, ser diva é a condição mais almejada
pelo elenco da Divine. A diva, além de ser o objetivo de produção a ser alcançado, é
também a identificação de um seleto grupo de artistas consideradas as mais talentosas,
com montagem e performances impecáveis, bem como portadoras de uma fama que
pode causar, a um só tempo, empatia e inveja.
Refletindo sobre o significado das legendas em fotografias, Darbon (1998)
argumenta que uma imagem sem legenda (e sem contexto) pode corresponder a uma
infinidade de enunciados, sendo um suporte mais livre para o processo de atribuição de
sentidos. Porém, na fotografia analisada constata-se que a transformista direcionou a
construção do sentido, já que escreve um texto onde agradece à boate por ter sido alçada
ao patamar de diva. Caso não houvesse um direcionamento em seu texto de
apresentação, as construções de sentido em torno da imagem seriam muito mais
abrangentes, podendo estar relacionadas a uma simples exibição de uma montagem bem
realizada, por exemplo. Os/as seguidores/as da página que curtiram ou comentaram a
fotografia estavam cientes da mensagem que ela queria passar, o que pode ser
comprovado pelo teor dos comentários na postagem. Entretanto, vale ressaltar que na
relação entre emissor e receptor sempre há uma negociação de sentidos (NOVAES,
1998), portanto os significados atribuídos à imagem podem, muitas vezes, ir de
encontro à intenção daquele/a que repassa a mensagem.
16
A segunda espécie de imagem compartilhada pela página da boate Divine
consiste nos cartazes de divulgação da programação. Essas peças não constituem
imagens fotográficas, mas sim criações da diretora de arte, Condessa Mireille Blanche,
que os confecciona por meio de um software de edição de imagens, o Adobe Photoshop.
Compostos por um estilo bem marcante, os cartazes funcionam como a principal forma
de publicidade do estabelecimento, que costuma divulgar seus eventos pela internet.
Além de compartilhados no Facebook, todas as semanas esses cartazes são impressos e
fixados na bilheteria. Já em volta da pista de dança existe uma coleção de cartazes de
festas especiais, que estão sempre em caráter rotativo, a depender da festa que se
aproxima. O modo como os cartazes são preservados e exibidos em ocasiões especiais
denota um tipo de colecionismo, bem como uma tendência a exibir a memória da boate
por meio dos cartazes. A seguir, reproduzo um cartaz de divulgação do especial Divas:
Observando a imagem acima, é possível ter uma dimensão do estilo prevalecente
nos cartazes. Fundos coloridos, uma fonte que chama atenção e, o que considero a
característica mais marcante; a junção de fotografias originalmente individuais de
vários/as artistas da casa. Conforme salienta Novaes (1998), o exame de imagens pode
propiciar o entendimento de aspectos da sociabilidade de grupos, bem como se
configurar em dados para facilitar a compreensão do universo simbólico em questão.
Portanto, a análise desse cartaz pode nos dizer muito sobre a sociabilidade das artistas
trans da boate Divine. Primeiramente, vê-se que a quantidade de pessoas selecionadas
para participar da festa de comemoração dos treze anos da boate é expressiva, porém é
um processo que denota não somente uma seleção de pessoas, mas também uma
exclusão de muitas outras. Como se pode constatar, o festival Divas está em sua nona
17
edição, e visa reunir o elenco alçado ao patamar de diva. As outras categorias de
classificações das artistas - estrelas, apresentadoras e top drags - ficam de fora desse
evento, fato que pode vir a acirrar a rivalidade e as disputas internas.
Os estilos de montagem que podem ser visualizados no cartaz demonstram o
ideal estético de uma diva, pois a quase totalidade das artistas retratadas buscam uma
produção que exacerba a feminilidade, com maquiagem carregada, brincos
extravagantes e vestidos de festa. Vê-se, portanto, que ser uma diva está associado com
a produção de um estilo identificado com as transformistas, que em suas montagens
procuram se aproximar ao máximo das qualidades culturalmente atribuídas à mulher,
entretanto recorrem a uma noção idealizada de feminilidade. A exceção dentre o elenco
de divas fica por conta de Tablata Fiterman, que encarna um estilo drag queen caricata,
isto é, como drag recorre a características mais surrealistas em suas produções e como
caricata busca a criação de uma personagem engraçada, bem ao estilo dos humoristas
cearenses11
. Acredito que buscar compreender o que levou Tablata Fiterman a ser a
única drag queen que alcançou o mais cobiçado título da boate pode revelar muito sobre
as possibilidades de carreira de uma artista na Divine, bem como sobre uma espécie de
predileção cearense pelo humor.
Além das questões já explicitadas, uma análise do histórico dos cartazes
divulgados semanalmente pela boate pode demonstrar quais as artistas e grupos estão
em evidência no contexto das festas e performances. Durante as semanas em que
acompanhei diariamente a página da boate, pude perceber que Tablata Fiterman, Adma
Shiva, Camilly Leyker e Satyne Haddukan, além de Condessa Mireille Blanche, são as
artistas que mais estiveram em destaque em festas produzidas pela boate. Destas cinco
artistas, a única que não faz parte do casting de divas é Satyne Haddukan. Pelo que
acompanho da programação da boate, Satyne obtém destaque mesmo sem ser diva por
conta não somente de sua montagem considerada impecável, mas também por sua
capacidade de comunicação. Sendo uma das apresentadoras da boate, é comum que
suas noites deem retorno financeiro para os dirigentes da casa, fator que explica sua
preeminência nos shows.
11
O Ceará é conhecido como a terra do humor. Vários humoristas representam esse estilo, inclusive a
primeira propaganda oficial do Estado ao chegar no Aeroporto de Fortaleza consiste na divulgação dos
shows de humor. Rocicléa, Raimundinha, Laiutinho Brega e Adamastor Pitaco são alguns exemplos.
18
As duas imagens anteriores são dedicadas a retratar, em sua quase totalidade, a
montagem e o estilo das transformistas. Abaixo, segue um cartaz de divulgação do
festival Interplanetária Drag, edição de 2013:
Com a análise desse cartaz é possível observar as especificidades dos dois tipos
de montagem. Se anteriormente foi exposta uma produção que persegue símbolos
culturalmente atribuídos à mulher, vê-se agora um estilo de montagem que também
utiliza outras referências estéticas, como o estilo gótico e a androgenia, denotando uma
construção corporal mais extravagante. Outra questão importante a ser visualizada nessa
imagem diz respeito à linguagem utilizada na apresentação das artistas. É comum que
tanto nos cartazes, como nas apresentações dos shows, seja utilizada uma série de
adjetivos para anunciá-las. Esses adjetivos fazem parte do universo simbólico do grupo,
portanto as expressões abala, comanda, supertalento, fenômeno, total superstar, dentre
outras que não se encontram nesse cartaz específico, funcionam como palavras
consideradas expressivas, que representam as preferências estéticas, valores morais e
ideais de performance do grupo.
Em todas as imagens aqui analisadas, foi possível observar a preeminência da
escolha de nomes e sobrenomes extravagantes e/ ou pouco convencionais. É uma
característica da cena das performances trans cearense a opção por uma grafia repleta de
letras repetidas e nomes estrangeiros. A utilização de mais de um sobrenome, muitas
vezes, significa que a artista pertence a mais de um grupo ou, simplesmente, que optou
por criar um nome maior, considerado causador de mais impacto. A estética dos nomes
das artistas trans cearenses é outra questão que merece um aprofundamento analítico. Se
comparado aos nomes de artistas de outros estados, por exemplo, fica patente o quanto
19
os nomes das transformistas e drags fortalezenses são excêntricos. Uma estratégia
metodológica pode partir da análise acurada dos cartazes, para posteriormente buscar
entrevistá-las, com o intuito de compreender a história de seus nomes.
Conforme o entendimento de Novaes (1998), se a imagem é eloquente e sempre
repleta de sentidos, as ausências de determinadas imagens também falam muito sobre o
contexto em que foram produzidas. Com a observação das fotografias compartilhadas
em torno da fan page da boate Divine, é possível visualizar inúmeras montagens bem
executadas, de diversos estilos e com variadas propostas. Em menor medida, também se
vê algumas imagens de artistas quando estão desmontadas, isto é, quando estão vestidos
com roupas e acessórios entendidos como masculinos. Entretanto, nunca são
compartilhadas, divulgadas ou expostas fotografias que retratem o processo da
montagem. O processo de anexar uma peruca, maquiar-se e produzir um corpo
configura-se uma espécie de segredo, onde somente em momentos bastante específicos
pode ser revelado. Um estudo mais acurado desse processo, de suas proibições e de suas
expectativas, pode ser uma oportunidade para compreender concepções nativas de
gênero, corporalidade e beleza.
Nesse sentido, se a fotografia fala não somente sobre o objeto fotografado, mas
também sobre quem opera a câmera (NOVAES, 1998), entendo este trabalho como uma
tentativa inicial de aprimorar estratégias metodológicas para pesquisas acerca de
produções imagéticas digitais e descentralizadas, compartilhadas em universos on-line
de redes sociais.
5. Considerações finais
O trabalho aqui proposto procurou refletir sobre os desafios e as possibilidades
de uma articulação entre questões teórico-metodológicas que envolvam etnografia
virtual e antropologia visual. Travando, primeiramente, uma discussão sobre a
importância de associar as novas técnicas de etnografia virtual à tradição disciplinar da
antropologia, argumentou-se sobre a necessidade de contextualização das pesquisas e da
primazia por estudos que estejam disponíveis para compreender as íntimas relações
entre os contextos etnográficos face a face (off-line) e aqueles que vivenciam uma
sociabilidade via internet (on-line).
Buscou-se, ainda, discorrer sobre algumas questões importantes para a
abordagem da imagem em etnografias que transitam entre os universos on-line e off-
line. Assim, foi possível observar que o processo de popularização das tecnologias
20
digitais e a maior possibilidade de acesso à internet acarretaram em transformações
decisivas, que devem ser levadas em consideração por pesquisadores contemporâneos.
Finalmente, realizou-se uma análise sobre a vida social da fan page da boate
Divine, existente na rede social Facebook. Objetivou-se examinar a produção e
compartilhamento de fotografias e cartazes de divulgação, ambos produzidos pelos
moderadores/as da página ou por transformistas e drag queens que se apresentam na
boate. Constatou-se que através dessas imagens é possível identificar as preferências
estéticas do grupo; a linguagem utilizada e seus significados; observar quais grupos e
artistas estão em evidência; perceber a rivalidade; a concorrência; as diferenças e
especificidades dos estilos de montagem. Observou-se, ainda, que as ausências e os
silêncios em fotografias podem dizer muito sobre regras e prioridades do grupo
pesquisado.
Nesse sentido, acredito que o objetivo de refletir sobre possíveis articulações
entre técnicas de etnografias virtuais e o trabalho etnográfico com imagens, foi útil para
a necessidade atual de pensar sobre novas abordagens e suas relações com a tradição da
disciplina antropológica. Considero, ainda, que a tentativa de desenvolver uma
triangulação de métodos e técnicas, bem como uma contextualização que transita entre
aspectos on-line e off-line constituíram-se em um exercício relevante.
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21
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