Desafios do Controle Social em Democracias Recessivas
Presentación en el VIII Congreso Internacional en Gobierno, Administración y
Políticas Públicas GIGAPP. (Madrid, España) del 25 al 28 de septiembre de 2017.
Francisco Fonseca
Email: [email protected]
Resumen/abstract:
Objetiva-se analisar o tema do “controle social” em duas dimensões: conceitual, que
envolve seu caráter polissêmico; e empírica, pois aplicada ao Brasil neste momento de
recesso democrático – após a quebra da ordem constitucional de 2016 –, mas num
contexto mundial de hegemonia conservadora e neoliberal, à luz do modelo de
acumulação flexível do capital.
Para tanto, será analisada a construção do Estado participativo e social brasileiro desde a
Constituição de 1988 até o atual momento de desestruturação dos direitos políticos e
sociais, entre os quais o de controlar socialmente o Estado e a Administração Pública:
objetivo contraposto às chamadas “reformas orientadas pelo mercado” – vigentes na
década de 1990 e hoje redivivas –, da qual o “gerencialismo” foi proeminente.
Palabras clave:
Controle social, democracia participativa, autoritarismo, neoliberalismo, conservadorismo.
Nota biográfica:
Professor de ciência política na Fundação Getulio Vargas de São Paulo (FGV/Eaesp) e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). É autor, entre outros, do livro “O Consenso Forjado – a grande imprensa e a formação da agenda ultraliberal no Brasil” (Editora Hucitec, 2005).
BREVE INTRODUÇÃO1
1 Em razão do golpe parlamentar/judicial/midiático que o Brasil está passando desde 2016, com a destituição ilegal e ilegítima da presidente eleita Dilma Roussef, parte das afirmações sobre participação
Este texto, de caráter reflexivo, intenta analisar a questão do “controle social”
em perspectiva ao mesmo tempo conceitual e empírica. Quanto a esta, a análise é
aplicada ao Brasil nesse momento de recesso democrático, iniciado em 2016 com golpe
de Estado efetivado pelo consórcio parlamentar/judiciário/midiático/elitista, por sua vez
articulado à hegemonia conservadora e neoliberal, que é a expressão do modelo de
acumulação flexível do capital. Esse conjunto de aspectos é analisado de forma a
demonstrar a oposição às formas de participação social e sobretudo do controle social.
Observa-se, igualmente, os objetivos opostas à participação das chamadas
“reformas orientadas pelo mercado” – vigentes na década de 1990 e hoje redivivas –, da
qual o “gerencialismo” foi proeminente.
Por fim, a partir da estrutura do modelo de acumulação e de sua sustentação
ideológica, avalia-se as estruturas do Estado brasileiro quanto à participação e ao
controle social: desde a Constituição de 1988 até o atual momento de desestruturação de
direitos.
ACUMULAÇÃO CAPITALISTA E IDEOLOGIA
Paralelamente ao modelo de acumulação, cujo capital financeiro ocupa lugar
proeminente, os ideólogos ultraliberais propugnaram um capitalismo altamente
desregulado e desregulamentado, a precedência absoluta do Capital sobre o Trabalho, o
“livre-mercado” como panacéia e lócus da “democracia”, entre outras agendas. O
“capitalismo de cassino” é, nesse sentido, nada mais do que a consequência lógica à
“liberdade” – extremada e sem controles – concedida às frações do Capital.
A grande crise que eclodiu em 2008 e se abateu sobre o mundo capitalista, cujas
consequências são enormes e distintas aos países e sentidas até os dias de hoje, é
portanto resultante do enquadramento ideológico dos governos pelo Sistema Financeiro
(SF), mas também pelas instituições multilaterais, pela mídia, entre outros aparelhos
ideológicos2. Afinal, por décadas a cantilena de que o Estado interventor sufocava os
investimentos, o empreendedorismo3, a liberdade e o mérito ressoaram fortemente pelo
mundo: na mídia, nos mais diversos espaços públicos e nas universidades. Quando, na
popular e controle social tem se tornado obsoletas, como veremos na última seção deste texto.2 Compreende-se os aparelhos ideológicos como “aparelhos privados de hegemonia” (Gramsci), que foram fundamentais à construção do ideário e do imaginário ultraliberal.3 O termo “empreendedorismo”, tomado como a liberdade sem limites de ‘empreender’ dominou ideologicamente o discurso e a agenda mundiais nas décadas de 1980 e 1990, e mesmo nos dias de hoje. Toda e qualquer ação, notadamente estatal, que pudesse enquadrar ou mitigar seus eventuais efeitos negativos fora considerada extemporânea e atentatória à liberdade, caso do mercado financeiro.
década de 1970, a crise que sustentou os modelos social democratas, sobretudo na
Europa, fez ruir o chamado “consenso keynesiano” (que na América Latina teve sua
expressão no “nacional desenvolvimentismo”), os ultraliberais possuíam uma agenda
pronta para ser implementada4. Essa agenda possibilitou a desestatização, a
desregulação e a desregulamentação, sustentando-se como legítimos os mercados
financeiros altamente voláteis e dissociados da economia “real”, isto é, não baseados no
lastro da produção de bens e serviços. As justificativas ultraliberais legitimaram a hoje
denominada, popularmente, “farra das hipotecas imobiliárias”, os empréstimos
bancários muitas vezes acima de seu patrimônio e a existência de mercados virtuais, na
esteira da tecnologia digital. Em outras palavras, o capitalismo produtivo fora de certa
forma “substituído” pelo da especulação virtual, embora haja complexa articulação
entre esses dois mercados.
As consequências desse capitalismo flexibilizado e financeirizado, após anos de
crescimento econômico ilusório, desenlaça um capitalismo que necessita do Estado, sem
o qual o sistema como um todo seria devorado por si mesmo, notadamente após o crash
de 2008.
O atual modelo de acumulação, em termos estruturais, é altamente excludente e
precarizante. Nesse sentido, as perspectivas políticas contrárias terão, necessariamente,
de enfrentar os desafios de revisar estruturalmente o modelo vigente, o que não é
propriamente tarefa simples e menos ainda de uma geração.
Ressalte-se que um dos aspectos mais marcantes do mundo contemporâneo –
isto é, dos anos 1970 aos dias de hoje – diz respeito à chamada “crise do emprego”. A
lógica da terceira revolução industrial – “acumulação flexível” –, encarnada em diversas
estratégias, como a reengenharia, implica formas distintas de terceirização, contratações
de autônomos (cada vez mais obrigados a se transformarem em “pessoas jurídicas” e
temporários) no contexto de processos baseados em downsizyng. Paralelamente,
processos just in time – emoldurados pela propaganda como “soberania do consumidor”
– destinam a produção a nichos cientificamente planejados e gerenciados.
Finalmente, a produtividade e os lucros aumentam vertiginosamente
simultaneamente à redução global da força de trabalho. Essa é a dinâmica da terceira
revolução industrial cujo capital financeiro é uma de suas expressões. Mesmo que novas
regulamentações ocorram quanto ao capital volátil, não há nenhum indicador de que
4 Ver Fonseca, 2005.
essa forma “flexível” de produzir se altere. Ressalte-se que o ultraliberalismo é o
sustentáculo ideológico dessa forma de ser do capitalismo contemporâneo.
CONTROLE SOCIAL E PARTICIPAÇÃO: CONCEITOS E ALCANCES E
LIMITES DA AÇÃO POLÍTICA NO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO
A democracia representativa institucional pode e deve conviver com formas de
participação, que não deixam de ser formas representativas, casos dos conselhos
gestores de políticas públicas, das conferências, dos conselhos participativos diversos,
notadamente em nível local, do orçamento participativo, entre outros fóruns existentes
no Brasil a partir da Constituição de 1988. Trata-se, contudo, da democracia
participativa de base – que vem de baixo para cima –, em que cidadãos comuns se
ocupam da vida política e administrativa. Uma – a democracia institucional dos partidos
políticos, da dinâmica parlamentar e da representação pelo Poder Executivo – convive
com a outra, a democracia de base, cujo vetor é a participação do cidadão comum. Não
há qualquer contradição entre ambas, como o demonstram tanto a teoria política como a
Constituição brasileira.
Além disso, uma terceira forma de democracia é a chamada “democracia direta”,
em que o cidadão participa, de maneira consultiva e/ou deliberativa, das decisões
políticas. Há inúmeras possibilidades abertas pelas novas tecnologias digitais – aquilo
que tem sido chamado, embora pouco utilizado, de “governo eletrônico” –,
paralelamente à participação em audiências públicas, consultas públicas e ouvidorias,
entre outras formas. Trata-se de um amplo espaço de participação que, igualmente à
representação de baixo para cima, se coaduna inteiramente às formas institucionais de
democracia.
Mais ainda, tudo aquilo que envolve o chamado “controle social” das políticas
públicas – entendido como a participação efetiva dos cidadãos em políticas específicas,
como veremos abaixo –, tem enorme espaço de atuação. Trata-se do processo que pode
ser iniciado na fase de planejamento governamental, desenvolvendo-se durante todo o
chamado “ciclo” das políticas públicas5, isto é, na formulação, implementação,
monitoramento e avaliação de políticas específicas.
5 Embora a teoria do “ciclo” de políticas públicas seja mais pedagógica do que real, uma vez que não há etapas tão definidas na construção de uma determinada política, a utilizaremos aqui apenas para demonstrar que em todos os processos de planejamento, formulação e execução das políticas públicas a participação dos cidadãos interessados é uma prática saudável da democracia. Essa participação tanto pode se dar por meio de representantes como direta.
Como se pode observar, a moderna democracia, do ponto de vista político,
envolve diversas dimensões complementares: a representação institucional (Parlamento
e Executivo), a representação social (de baixo para cima) e a auto-representação, ou
participação direta.
O controle social das políticas públicas e mesmo dos atos governamentais é,
dessa forma, expressão desse processo de participação, tanto em relação ao
planejamento como a políticas setoriais específicas. Recente estudo do Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) demonstra o grau de participação da sociedade
politicamente organizada nas várias fases das políticas públicas federais6.
Pois bem, esse conjunto de possibilidades democráticas foi estruturado em forma
de lei pela presidente Dilma Rousseff e intitulado “Política Nacional de Participação
Social” (PNPS), “(...) com o objetivo de fortalecer e articular os mecanismos e as
instâncias democráticas de diálogo e a atuação conjunta entre a administração pública
federal e a sociedade civil” (Decreto nº 8.243, de 23 de maio de 2014, art. 1º)7.
Deve-se notar que o Decreto, como veremos, apenas corrobora o que vem sendo
praticado por governos locais, estaduais e federal (neste caso, pelos governos Lula e
Dilma) progressivamente desde 1988. Tem recebido, contudo, críticas reacionárias dos
setores conservadores por, supostamente, deslegitimar a democracia representativa –
que não procede, como vimos –, assim como criar espécie de “bolivarianismo” no
Brasil, que procede menos ainda, embora a democracia popular venezuelana possui
elementos interessantes e potenciais que poderiam ser utilizados no Brasil.
O Decreto nº 8.243 explicita, em seu Art. 5º, que:
Os órgãos e entidades da administração pública federal direta e indireta deverão, respeitadas as especificidades de cada caso, considerar as instâncias e os mecanismos de participação social, previstos neste Decreto, para a formulação, a execução, o monitoramento e a avaliação de seus programas e políticas públicas.§ 1º Os órgãos e entidades referidos no caput elaborarão, anualmente, relatório de implementação da PNPS no âmbito de seus programas e políticas setoriais, observadas as orientações da Secretaria-Geral da Presidência da República.§ 2º A Secretaria-Geral da Presidência da República elaborará e publicará anualmente relatório de avaliação da implementação da PNPS no âmbito da administração pública federal (Decreto nº 8.243, de 23 de maio de 2014, ênfases nossas).
Como se observa, a PNPS propõe que em todas as fases da Administração
Pública, o que inclui a fase crucial e inicial do planejamento – seja o estratégico, seja o 6 Disponível em http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=151167 Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Decreto/D8243.htm.
Plano Plurianual, seja ainda o Plano de Metas – possa haver participação social de
grupos organizados com vistas a influir nas tomadas de decisão. Trata-se de medida
inédita e que retira dos tecnocratas o poder de decidir o futuro do país. Igualmente,
rompe com a velha dicotomia entre formuladores e beneficiários, isto é, entre Estado
(autoritário no sentido de que se arroga saber mais do que todos) e Sociedade, entendida
tanto como cidadãos como por grupos organizados capazes de pressionar e controlar o
poder. Possivelmente esses são motivos suficientes para os conservadores rejeitarem a
PNPS.
Destaque deve ser dado igualmente ao Art.10:
Ressalvado o disposto em lei, na constituição de novos conselhos de políticas públicas e na reorganização dos já constituídos devem ser observadas, no mínimo, as seguintes diretrizes:I - presença de representantes eleitos ou indicados pela sociedade civil, preferencialmente de forma paritária em relação aos representantes governamentais, quando a natureza da representação o recomendar;II - definição, com consulta prévia à sociedade civil, de suas atribuições, competências e natureza;III - garantia da diversidade entre os representantes da sociedade civil;IV - estabelecimento de critérios transparentes de escolha de seus membros;V - rotatividade dos representantes da sociedade civil;VI - compromisso com o acompanhamento dos processos conferenciais relativos ao tema de sua competência; eVII - publicidade de seus atos.§ 1º A participação dos membros no conselho é considerada prestação de serviço público relevante, não remunerada.§ 2º A publicação das resoluções de caráter normativo dos conselhos de natureza deliberativa vincula-se à análise de legalidade do ato pelo órgão jurídico competente, em acordo com o disposto na Lei Complementar n º 73, de 10 de fevereiro de 1993 .§ 3º A rotatividade das entidades e de seus representantes nos conselhos de políticas públicas deve ser assegurada mediante a recondução limitada a lapso temporal determinado na forma dos seus regimentos internos, sendo vedadas três reconduções consecutivas.§ 4º A participação de dirigente ou membro de organização da sociedade civil que atue em conselho de política pública não configura impedimento à celebração de parceria com a administração pública.§ 5º Na hipótese de parceira que envolva transferência de recursos financeiros de dotações consignadas no fundo do respectivo conselho, o conselheiro ligado à organização que pleiteia o acesso ao recurso fica impedido de votar nos itens de pauta que tenham referência com o processo de seleção, monitoramento e avaliação da parceria. (Decreto nº 8.243, de 23 de maio de 2014, ênfases nossas).
Deve-se observar que os grupos da chamada “sociedade civil” – entendida como
esfera de organização sócio/política independente do Estado – devem expressar
pluralidade de opiniões e interesses: daí a ênfase em sua rotatividade. Mais importante,
a paridade desses membros em relação aos representantes governamentais demonstra
claramente o intuito democrático da PNPS no sentido de institucionalizar a participação
social, de certa forma horizontalizando a relação Estado/Sociedade. Por mais que
disputas de poder no interior dessa mesma “sociedade civil” constitua o cerne da
política8, o fato é que o Estado abre-se à participação plural da sociedade, notadamente
a sociedade politicamente organizada. Trata-se de visão arrojada da relação
Estado/Sociedade, uma vez que o aparato estatal não controla os grupos sociais
participantes que, por seu turno, devem expressar pontos de vista/interesses distintos.
A PNPS, como um todo, não representa visão idealizada da sociedade,
supostamente sem conflitos, mas abre o Estado, em diversas perspectivas, ao conflito,
permitindo que o impacto das ações estatais seja controlado por um conjunto
heterogêneo de interessados.
É nesse sentido que a PNPS dialoga fortemente com a perspectiva do “controle
social”, uma vez que tal prática envolve a participação efetiva na construção e
implementação de uma dada política pública. De certa forma, democracia participativa
(de baixo para cima) e controle social são quase sinônimos, embora possam haver
nuances entre ambos, no sentido de que a democracia participativa envolve processos
mais amplos de tomada de decisão, tais como os referentes ao planejamento, por
exemplo, e o controle social volta-se mais especificamente às políticas públicas. Na
prática há mais semelhanças do que propriamente distanciamentos, embora seja
importante demarcar essas nuances.
Os eixos temáticos da “1ª Conferência Nacional sobre Transparência e Controle
Social” (1ª Consocial), ocorrida em 2010, expressam alguns sentidos do controle social:
1) Transparência e Acesso à Informação, 2) Mecanismos de Controle Social, 3) Atuação
dos Conselhos de Políticas Públicas, e 4) Prevenção e Combate à Corrupção9. Em outras
palavras, novamente se entrecruzam forma de participação com forma de controle,
como se essa última se subsumisse à primeira.
Esses eixos envolvem temas amplos e transversais, como os relacionados com a
transparência das informações, à atuação de conselheiros e à prevenção à corrupção,
8 “Sociedade civil” é um conceito polissêmico e, como tal, sujeito a interpretações distintas ainda nos dias de hoje. Sua característica essencial, a nosso ver, é a disputa por posições que influenciarão o Estado. Nesse sentido, a característica desse conceito é o conflito e a adoção de pontos de veto, e não o consenso. Esse pode ocorrer, mas em razão de estratégia de atuação conjunta – motivada por convicção ou cálculo político –, do que propriamente por haver imediata concordância entre esses personagens.9 Disponível em http://www.cgu.gov.br/assuntos/controle-social/consocial/produtos/relatorio-final.
uma vez que possibilitados pela participação, que implica controle democrático do
aparato estatal.
Todo esse processo expressa o vigor da democracia brasileira, que teve nos
Governos Lula e Dilma a capacidade de incentivar a mobilização social, por meios
diversos, o que implicou contradições e críticas: das que exigiam maior radicalização da
democracia às – como vimos – reacionárias.
A democracia como inovação permanente, caso do “orçamento participativo”,
mobilizou fortemente setores da sociedade brasileira na década de 1990, notadamente
no nível local, entre tantas outras experiências. Esse processo se revitaliza de acordo
com os contextos históricos: o caso da participação feminina na vida política, por
exemplo, ganha novos contornos nos dias de hoje, assim como do jovem, sobretudo a
partir das manifestações de junho de 2013, ocorridas no Brasil.
A “invenção democrática” nutriu-se de grande informalidade, que pode
permanecer, mas que deve avançar rumo à institucionalização no sentido de ser um
“método de governo institucionalizado”, isto é, como forma de ser do Estado, como
“política de Estado”, e não de governos. As diversas conferências que subsidiaram a
PNPS justamente contribuíram para essa concepção de “método de governo”.
Há diversos alcances observados, que podem demonstrar ser a ação política o
gatilho das mudanças estatais a partir da pluralidade societal, em meio a conflitos e
disputas de projetos, reitere-se.
Seus limites são dados por formas estruturais da dinâmica capitalista,
notadamente a geopolítica mundial; o modelo de acumulação flexível (pós-fordista); a
assimetria engrandecida entre Capital e Trabalho; o domínio dos macros fatores
produtivos, como a binômico Capital Produtivo articulado ao Especulativo, o trabalho
pulverizado e a circulação de bens e serviços controlada pelos produtores. Mas também
por estruturas do sistema político brasileiro, marcado pela privatização da vida pública –
via financiamento privado de campanhas e partidos – e pela proteção das elites perante
as grandes transformações, possibilitada pelo multipartidarismo flexível, pela lógica da
coligação (cujo tempo no rádio e na TV são cruciais e motivo de barganha) e da
coalizão, após as eleições, em que mesmo os perdedores governam, impedindo assim
grandes reformas capazes de “radicalizar” a democracia.
Contudo, para além das particularidades do sistema político brasileiro, deve-
se ressaltar a incompatibilidade entre os pressupostos rentistas e neoliberais à
participação popular e ao controle social. Afinal, tais pressupostos apontam para a
defesa dos interesses defendidos pelo capitalismo em que o Estado deve ser mínimo
no duplo sentido: desregulamentação e desregulação da economia, notadamente
quanto ao capital especulativo; e diminuição vigorosa dos direitos sociais e
trabalhistas, tendo em vista voltar as finanças públicas propícias ao “ambiente de
negocios”, assim como tornar os trabalhadores fortemente flexibilizados perante as
necesidades do capital – produtivo e especulativo, que atuam cada vez mais
articulados – e consequentemente atrativos aos capitais internacionais.
Dessa forma, tais pressupostos e interesses são essencialmente antipopulares
e antissociais, em que a participação social e popular é vista como óbice aos
negocios. O rentismo e o neoliberalismo assentam-se na desigualdade social: esta
adquire a aparência de “meritocracia” individual, que nada mais é do que a ideologia
do “esforço individual” cujas estruturas sociais são devidamente sonegadas.
A REFORMA GERENCIAL
Em contraposição às formas societais de gestão pública (PAEL DE PAULA), o
gerencialismo é atinente às “reformas orientadas para o mercado”, por sua vez
sustentáculo do capitalismo flexível. Mesmo que, no Brasil, tenha sido pensado em
bases democráticas (embora não necessariamente participativas), o fato é que sua
origem é consentânea ao neoliberalismo.
“Setores do Estado e Formas de PropriedadeOutra distinção importante é a relacionada às formas de propriedade.
Ainda que vulgarmente se considerem apenas duas formas, aPROPRIEDADE PRIVADA, existe
no capitalismo contemporâneo uma terceira forma, intermediária,extremamente relevante: a PROPRIEDADE PÚBLICA NÃOESTATAL,
constituída pelas organizações sem fins lucrativos, que nãosão propriedade de nenhum indivíduo ou grupo e estão orientadas
diretamente para o atendimento do interesse público. O tipo depropriedade mais indicado variará de acordo com o setor do aparelho
do Estado.No núcleo estratégico a propriedade tem que ser necessariamente
estatal. Nas atividades exclusivas de Estado, onde o poder extroversode Estado é exercido, a propriedade também só pode ser estatal.
Já para o setor não-exclusivo ou competitivo do Estado a propriedadeideal é a pública não-estatal. Não é a propriedade estatal porque aí não
se exerce o poder de Estado. Não é, por outro lado, a propriedadeprivada, porque se trata de um tipo de serviço por definição subsidiado.
A propriedade pública não-estatal torna mais fácil e direto o controlesocial, através da participação nos conselhos de administração dosdiversos segmentos envolvidos, ao mesmo tempo que favorece a
parceria entre sociedade e Estado. As organizações nesse setor gozamde uma autonomia administrativa muito maior do que aquela possíveldentro do aparelho do Estado. Em compensação seus dirigentes são
chamados a assumir uma responsabilidade maior, em conjunto com asociedade, na gestão da instituição. No setor de produção de bens e
serviços para o mercado a eficiência é também o princípioadministrativo básico e a administração gerencial, a mais indicada. Em
termos de propriedade, dada a possibilidade de coordenação viamercado, a propriedade privada é a regra. A propriedade estatal só sejustifica quando não existem capitais privados disponíveis - o que não
é mais o caso no Brasil - ou então quando existe um monopólio natural.Mesmo neste caso, entretanto, a gestão privada tenderá a ser a mais
adequada, desde que acompanhada por um seguro sistema deregulação.”
(Plano Diretor da Reforma do Aparelho de Estado, págs 43 e 44 –http://www.bresserpereira.org.br/Documents/MARE/PlanoDiretor/pla
nodiretor.pdf)
A reforma gerencial parte do pressuposto de que há setores cuja atuação
exclusiva do Estado não seria necessária, abrindo espaço para setores privados,
chamados de “privados não lucrativos” ou “públicos não estatais”. Seu principal mentor
no Brasil, o então ministro Bresser-Pereira, descartara inspiração neoliberal do projeto,
embora o mesmo tenha sido lançado por um governo – FHC – cujos pilares eram
claramente vinculadas à essa corrente ideológica. Mais ainda, o gerencialismo, como se
disse, advém da New Public Menegement, corrente que se desenvolve num contexto de
hegemonia do capitalismo liberal, cuja consolidação se deu com o ocaso do chamado
“socialismo real”.
Trata-se portanto da lógica do consumidor, isto é, do “cidadão consumidor” de
bens e serviços públicos, assim como da própria competição entre si – ou com agentes
privados – de agências e equipamentos estatais para provisão de “serviços internos” ao
próprio Estado e, em certos casos, competição entre agentes públicos e privados para
que o “cidadão consumidor” seja “soberano” em sua “escolha”. Aqui, a lógica da –
suposta – “soberania do consumidor” é transposta ao Estado.
Portanto, mesmo que o gerencialismo tenha aparecido como alternativa à
burocratização excessiva do Estado e da prestação de serviços públicos, por meio da
promessa de se preocupar mais com os resultados das ações públicas do que com os
“meios”, tais promessas ou não se cumpriram ou simplesmente implicaram espécie de
“governo empresarial”, tal como definido por Dardot e Laval (2016: 272): “(...) o
neoliberalismo não procura tanto a ‘retirada’ do Estado e a ampliação dos domínios da
acumulação do capital quanto a transformação da ação pública, tornando o Estado uma
esfera que também é regida por regras de concorrência e submetida a exigências de
eficácia semelhantes àquelas a que se sujeitam as empresas privadas.” (grifos dos
autores).
O “governo empresarial” se adequaria, portanto, aos pressupostos do mercado
para exercer suas funções “públicas”, incluindo a provisão de bem-estar social, vista –
não sem contradições e particularidades regionais – à luz das “boas práticas” e da “boa
governança”, em que tanto o Estado é enquadrado, em termos fiscais, orçamentários,
contábeis e operacionais, ao sentido de eficácia e eficiência do setor privado, como este
último (com ou sem fins lucrativos formais, pouco importa) passa a fazer parte direta da
prestação dos serviços, tal como o gerencialismo acima referido indica.
Ainda segundo Dardot e Laval: “A homogeneidade dos modos de pensar, a
semelhança dos instrumentos de avaliação e validação das políticas públicas, as
auditorias e os relatórios dos consultores, tudo indica que a nova maneira de conceber a
ação governamental deve muito à lógica gerencial predominante nos grandes grupos
multinacionais.” (pág. 276). Dessa forma, o Estado estaria se reconfigurando segundo a
lógica privada: finanças e orçamento, ferramentas gerenciais, indicadores, a referida
lógica da eficácia e eficiência das políticas públicas, e os cidadãos como consumidores
de bens e serviços públicos. Por fim, ressalte-se que, segundo os autores:
“A política que ainda hoje é chamada de ‘social’ por inércia semânticanão se baseia mais em uma lógica de divisão dos ganhos de
produtividade destinada a manter um nível de demanda suficiente paragarantir o escoamento da produção em massa: ela visa a maximizar a
utilidade da população, aumentando sua ‘empregabilidade’ e suaprodutividade, e diminuir seus custos, com um novo gênero de política
‘social’ que consiste em enfraquecer o poder de negociação dossindicatos, degradar o direito trabalhista, baixar o custo do trabalho,
diminuir o valor das aposentadorias e a qualidade da proteção social emnome da ‘adequação à globalização’”. (pág. 284, grifos dos autores).
Logo, as “políticas públicas” e o Estado de “bem-estar” mantêm esas
denominações que, contudo, expressam outros significados: o apoio ao
“empoderamento do indivíduo” em busca de vencer pelos seus próprios “méritos”. Daí
a lógica coletiva ser desvalorizada, assim como os conflitos e as estruturas políticas,
econômicas e sociais. A razão prática e o utilitarismo orientariam as “novas” (velhas)
políticas. O gerencialismo seria a expressão dessas premissas e lógicas tanto nas
atividades-meio como nas atividades-fim do Estado.
Por fim, o golpe de Estado vigente no Brasil tem se utilizado fartamente do
discurso “modernizante” para privatizar, conceder, desnacionalizar, contratualizar para
agentes privados nacionais e internacionais riquezas, bens e serviços antes pertencentes
ao Estado ou a agentes nacionais. Ao mesmo tempo a PEC 55 e a reforma trabalhista,
ambas aprovadas no Congresso Nacional, desestruturam respectivamente os direitos
sociais (Educação, Saúde e Assistência Social) e os direitos trabalhistas (precarização,
terceirização, destruição dos sindicatos, diminuição profunda da Justiça do Trabalho,
ausência de garantias trabalhistas). A única diferença é que esses processos se dão pela
via do golpe, e não do voto!
O GERENCIALISMO NO BRASIL
Como vimos, muito se tem discutido, nas últimas três décadas, tanto
internacionalmente como no Brasil, sobre o papel da iniciativa privada na
Administração Pública e nas Políticas Públicas: desde a utilização de ferramentas e
métodos empresariais na gestão pública às parcerias, terceirizações, concessões e
contratos de gestão, entre outras práticas, em que o empresariado presta serviços e
administra setores do Estado por meio de concessão. Ao lado dessas formas, a
privatização em sentido estrito tem igualmente ocupado a agenda de debates.
Tema eivado de postulações programáticas, no sentido de afirmação ou do
protagonismo estatal ou privado (mercantil) e, desde os anos 1990, do assim chamado
“setor público não estatal”, genérica e vagamente denominado “terceiro setor”, há
vários aspectos confusos neste debate, verdadeiro embate.
Notadamente desde a hegemonia neoliberal, “rolo compressor” propalado por
think tanks, governos, mídia e comunidade empresarial, essa confusão tem aumentado
substantivamente, uma vez que qualquer voz dissonante fora tida como anacrônica. As
aludidas figuras de Von Mises, Von Hayek e Milton Friedman (e Roberto Campos,
Gustavo Franco, entre tantos outros no Brasil), e os referidos governos de Margareth
Thatcher e Ronald Reagan, com apoio maciço da grande mídia – mundial e, no caso
brasileiro, dos grandes conglomerados de comunicação – obstruíram qualquer discussão
acerca do papel do Estado e do mercado. Sua ideologia – o ultraliberalismo – não
apenas obstou o debate como impactou profundamente as sociedades ao aumentar
exponencialmente a desigualdade social em nome da “meritocracia”: verdadeira crença
ideológica.
A utilização de ferramentas de gestão de um setor por outro (do privado ao
público e vice-versa) é antiga, embora ocultada quando o assunto é a importância do
Estado à iniciativa privada, caso, por exemplo, do planejamento e mesmo do papel
estatal como protetor do capital privado em inúmeras guerras travadas ao longo da
história. Mais importante, sem o Estado o capitalismo sequer existiria, como nos
mostrou a clássica obra de Karl Palanyi (“A Grande Transformação: as origens de nossa
época”). Além do mais, as cíclicas crises capitalistas – como as de 1929 e 2008 – só
tiveram resolução em razão do papel ativo do Estado em salvar empresas e o próprio
sistema capitalista como um todo: momento em que cessam as críticas neoliberais ao
“protagonismo” estatal. Aliás, a ação estatal tem sido, notadamente desde a crise de
2008, voltada às empresas e aosbancos, e não ao cidadão comum, como demonstra o
volume de recursos empregados ao salvamento de setores empresarias em detrimento
dos chamados “colchões sociais” capazes de proteger os mais vulneráveis, isto é, aquilo
que o movimento social Occupy Wall Street sintetizou como “we are 99%”.
Dessa forma, como aludido, desde a chamada New Public Management a
Administração Pública vem sendo coagida pelos adeptos poderosos da hegemonia
neoliberal a aplicar métodos e técnicas gerenciais advindos do setor privado e sobretudo
a conceder, contratualizar e terceirizar serviços e responsabilidades públicos a
empresários e a agentes tidos como “privados sem fins lucrativos”10. Essas
denominações são não apenas questionáveis conceitualmente como estão no mesmo
contexto do que genericamente se chama de “sociedade civil” e “bem comum”, dentre
tantas outras caracterizadas pela polissemia e pelo baixo poder explicativo, mas de uso
midiático.
Deve-se notar, igualmente, o papel da privatização, em sentido estrito, assim
como o protagonismo do setor privado no fornecimento de serviços, caso clássico do
Sistema Único de Saúde e de inúmeras parcerias “público/privadas”. A privatização foi
tomada. O atual prefeito de São Paulo, uma das maiores cidades mundiais, João Dória,
leva ideológica e empiricamente ao limite essa máxima de que o privado é superior ao
público, como espécie de “panaceia milagrosa” capaz de nos salvar de todo o mal
causado pela “doença do estatismo” e devidamente divulgada pela velha mídia
conservadora.
Quanto à terceirização do serviço público e sobretudo da gestão pública, note-se
que tem atingido limiares impressionantes no Brasil, a ponto de diversos setores
estratégicos do Estado terem sido repassados a consultorias privadas. Aliás, consultorias
têm vicejado – e obtido retorno financeiro – devido à fragilização do Estado que, muito
mais do que contar com parcerias privadas, tem transferido a gestão de setores
estratégicos a grupos empresariais.
Especificamente quanto ao município de São Paulo – caso exponencial – deve-se
notar, nesse debate, dois aspectos cruciais: a) que, embora o referido “Plano Diretor da
Reforma do Aparelho do Estado” deixasse claro quais seriam as funções exclusivas e
não exclusivas do Estado (como vimos acima), isso não impediu – ou talvez tenha
“aberto a porteira” – para a privatização do Estado em sentido lato. Sobretudo em São
Paulo, toda sorte de concessão e transferência tem sido adotada desde então,
fragilizando ainda mais o poder público quanto ao cumprimento de suas funções
constitucionais e à prestação de serviços de fato públicos, o que implica ceifar o poder
do Estado como agente capaz de governar e contrariar interesses constituídos,
notadamente os grandes interesses, pois voltados à apropriação privada do espaço e dos
recursos públicos; b) a instituição das aludidas Organizações Sociais (OS) e
Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) tem como resultado,
embora com exceções, a transformação de políticas públicas em apêndices dos grupos
privados que, embora tidos como “sem fins lucrativos”, trazem a lógica do setor
privado: valores, parâmetros de gestão, atuação voltada a grupos muito específicos, sem
articulação do todo, dependência, por vezes, de financiamento privado, no caso das
Oscip, entre outros aspectos. Tal concessão aos agentes privados torna a gestão pública
sem direção e sem capacidade de orientar e fiscalizar os agentes concessionários,
contrariando o caráter monocêntrico do Estado.
O caso da prefeitura de São Paulo nas gestões dos ex-prefeitos José Serra e
Gilberto Kassab (e agora de João Dória – todos do mesmo grupo político) é sintomático
desse processo de privatização – que responde pelo nome de concessão, terceirização e
contratualização, neste caso via OS e Oscip –, uma vez que vários setores, notadamente
o (estratégico) da Saúde pulverizou-se de tal forma que o poder público municipal se
tornou mero “espectador” da gestão dos serviços médicos públicos. Em outras palavras,
na principal cidade do país, em diversas dimensões, o poder público foi esvaziado
efragilizado pelo amplo processo de privatização, em sentido lato, da gestão pública,
devido à crença neoliberal acerca da falaciosa “eficiência” do setor privado, uma vez
que tomada como imanente – e devidamente apoiada pelo BID, Bird e outros agentes de
financiamento internacionais –, ao lado da própria privatização da vida política
brasileira, entendida aqui como o domínio dos interesses privados sobre o público.
Cidades como São Paulo, entre inúmeras outras Brasil afora, sintetizam os
efeitos perversos daquilo que – para determinados segmentos sociais – foi uma tentativa
de
“modernizar” e “arejar” os serviços públicos, saindo da “camisa-de-força” das regras
que regem o Serviço Público: quanto aos funcionários, às contratações, às licitações, ao
orçamento etc. Tal “modernidade” – termo sempre fugidio e problemático por ser
utilizado com sentidos e significados distintos – tem, contudo, liquidado o sentido
“público” de Estado, por mais que haja dificuldade teórica e empírica em definir o
sentido do que é “público” na sociedade capitalista, como nos alerta Norberto Bobbio
no livro “O Futuro da Democracia”. Isso não significa que o Estado tenha
necessariamente de agir sozinho, assim como suas ações só serão efetivas se houver
transparência, participação e sobretudo “capacidade de governar”: aquilo que Carlos
Matus chamou, em seu conhecido método “Planejamento Estratégico Situacional”, de
“triângulo de governo”.
Os processos de concessão de serviços públicos a agentes privados, por meios
diversos e com finalidades distintas, poderiam ser utilizados desde que moderadamente,
isto é, sem descaracterizar a ação do Estado e seu papel estratégico, e sobretudo
mantendo-se suas capacidades de direcionamento e fiscalização perante os agentes
concessionários. Concretamente, isso quer dizer um conjunto de poderes do Estado: a)
voltado ao direcionamento político/administrativo (ressalte-se) quanto à implementação
de políticas públicas, o que implica a coordenação dos agentes concessionários que, sem
isso, agem de forma autônoma justamente pela inexistência de diretrizes estatais e pela
tibieza política do poder público; b) de natureza técnica e política, com o objetivo de
enfrentar os poderes constituídos, especialmente os que tendem a se apropriar
privadamente dos recursos públicos; c) voltado à fiscalização dos agentes privados, o
que implica impor-lhes punições severas caso transgridam as regras estabelecidas. Para
tanto, aparatos técnicos estatais qualificados, regras claras e transparentes e efetividade
nas ações do Estado são pressupostos para a atuação do poder público; e d) por meio da
abertura à sociedade daquilo que se denomina “controle social”: conceito propalado mas
pouco institucionalizado e sobretudo desconsiderado pelos neoliberais e conservadores.
No caso da prefeitura de São Paulo na gestão Serra/Kassab, e agora João Dória,
e muito do que se sabe a respeito de diversas gestões Brasil afora, houve a privatização
no sentido de conceder, terceirizar e contratualizar sem as capacidades acima
delineadas. Dessa forma, houve a privatização do Estado no sentido mais destrutivo
deste termo, sem que houvesse diretrizes e fiscalização burocrático/institucional
efetivos.
Se à gestão pública – e ao pensamento político e administrativo – não cabe
oposição programática pura e simples quanto à utilização de ferramentas e parcerias
com o setor privado, é sabido, pela observação histórica, que tal utilização não pode ser
vista como panaceia, assim como ao Estado cabe o papel de governar, priorizando os
próprios instrumentos da gestão pública: seus funcionários e suas ferramentas – por
meios distintos – tendo em vista os objetivos do poder público a partir do voto e do
Direito Constitucional.
A “moderna” gestão pública significa a existência regular de concursos públicos,
carreiras públicas (estrutura de cargos e salários atrativos), treinamento e qualificação
constante do corpo burocrático, ampliação dos percentuais de funcionários públicos em
cargos estratégicos, transparência, abertura de canais de participação popular e controle
social, e sobretudo a compreensão de que a gestão pública tem pressupostos,
características e objetivos distintos da administração privada. Antes de abrir-se a
terceiros, deve-se qualificar o poder público para que seja eficaz, eficiente e efetivo.
Ainda assim, por mais que se possa, reitere-se, utilizar ferramentas da gestão privada na
gestão pública – como é o caso, por exemplo, do programa Gespública do Governo
Federal na gestão Lula –, a grande inovação desta (a gestão pública), que se faz e refaz
continuamente, é criar seus próprios mecanismos capazes de induzir comportamentos
(em diversas dimensões), diminuir desigualdades, ofertar políticas públicas de
qualidade, entre tantos outros objetivos advindos da Constituição Federal de 1988 e das
demandas democráticas de movimentos sociais e do pensamento
progressista....pressupostos derrogados pelo golpe de 2016.
Tanto a privatização das empresas estatais como a concessão, contratualização,
terceirização e parcerias, entre outras, necessitam do comando firme e forte do Estado
de Direito Democrático, sem o qual todas as formas de privatização tornam-se
barbáries. O neoliberalismo entende portanto a “reforma do Estado” com um único e
exclusivo significado: privatização, concessão e diminuição do Estado, em nome da –
ideologia – da “modernização”. Reitere-se que mesmo no plano federal, no Brasil
contemporâneo, que fora golpeado, o tema da “modernização neoliberal” é divulgado
como “novo” quando, em verdade, expressa não apenas velhas – e fracassadas – ideias
como estas o são fundamentalmente excludentes, social e politicamente.
O BRASIL CONTEMPORÂNEO: DESESTABILIZAÇÃO POLÍTICA, GOLPE DE
ESTADO E OCASO DA DEMOCRACIA POLÍTICA E SOCIAL
O golpe parlamentar efetivado em 31 de agosto de 2016 foi o resultado de
diversos fatores conjugados voltados à desestabilização política, institucional, social,
informativa, ideológica e moral do Governo Dilma. Abaixo alguns dos principais
personagens, fatores e fenômenos desse longo processo de golpeamento da democracia
e de incriminação fascista de um governo e de um partido político. A forma abaixo
apresentada não é necessariamente hierárquica ou cronológica, uma vez que vários dos
processos elencados ocorreram de forma simultânea:
1) Setores majoritários da Câmara dos Deputados, a partir da ascensão do deputado
Eduardo Cunha como seu presidente, que ostensivamente, por meio das chamadas
“pautas bombas” e do bloqueio de todas as iniciativas do Executivo, atuou no sentido de
impedir qualquer iniciativa política, econômica e administrativa do Governo Dilma;
2) Tendo como mote o não reconhecimento da derrota eleitoral em 2014, o golpismo
dos partidos políticos derrotados – PSDB, DEM e PPS –, paulatinamente secundados
pelo PSB e, mais adiante, pelos pequenos e médios partidos de centro-direita reunidos
em torno do chamado “Centrão”.
3) A conspiração de segmentos empresariais internacionais e nacionais vinculados ao
rentismo e a cadeias internacionais de produção, cujo objetivo era a fragilização do G-
20 – e consequentemente do banco e do fundo recentemente criados pelos Brics – e a
desestruturação do Mercosul, cujo vetor é a desconstrução da política exterior Sul/Sul.
4) A quase totalidade dos empresários nacionais desejosos, desde sempre, da derrogação
dos direitos trabalhistas e também dos direitos sociais, com vistas a estabelecer
“ambiente de negócios” atrativo ao Capital: nacional e estrangeiro, cada vez mais
interligados.
5) As classes médias superiores, desgostosas das políticas de ascensão social
promovidas pelos governos petistas. Trata-se de resistência à percepção, mesmo que
irreal, da perda de prestígio e privilégios, caso do acesso à universidade e a bens de
consumo e serviços aos pobres.
6) Setores ascendentes das classes médias baixas,
cuja ascensão se deu justamente pelas políticas públicas inclusivas de
Lula e Dilma, foram seduzidas pelo discurso ideológico da “meritocracia
individual”, pendendo ao conservadorismo. Também segmentos de “inocentes úteis”,
que estão sendo fortemente penalizados pela política econômica e antissocial de Temer,
caíram na armadilha ardilosa e fascista do discurso do “combate à corrupção”.
7) A grande mídia comercial (incluindo-se grandes portais da internet) que,
aproveitando-se da mais completa desregulação e desregulamentação da comunicação
pelo Estado brasileiro, e turbinada – curiosa e paradoxalmente – por polpudos recursos
publicitários dos governos petistas, lançarem-se na lancinante campanha golpista. Deve-
se ressaltar o papel decisivo e primordial do Sistema Globo nesse processo, voltado à
desestabilização e ao golpismo.
8) A ação inconstitucional, seletiva, persecutória e articulada à grande mídia comercial
da Operação Lava Jato, cujo objetivo passou a ser fundamentalmente destruir política e
eleitoralmente o Governo Dilma, o PT e Lula. É atentatória vigorosamente contra o
Estado de Direito Democrático. O discurso moralista do suposto combate à corrupção,
catalisado pelo juiz Sérgio Moro, com participação da Polícia Federal, representou a
porta de entrada para todo tipo de oportunismo político. Isso tudo com a leniência do
STF e da PGR aos atentados ao Estado de Direito Democrático desfechados pela
Operação Lava Jato.
9) Os think-tanks, e seus financiadores, internacionais (irmãos Koch, por exemplo) e
nacionais (Instituto Millenium, entre outros), voltados à propaganda ideológica que
instrumentalizou – e financiou – grupos como MBL, Vem pra Rua e Revoltados On
Line, entre outros. Grupos empresariais igualmente participaram e financiaram essa
campanha ideológica.
10) As próprias debilidades do Governo Dilma: composição ministerial, escolhas do
procurador geral da República e de ministros do STF, assim como a escolha de um
neoliberal (Joaquim Levy) para o ministério da Fazenda, entre outras.
11) A perda de hegemonia do PT, com impactos no sistema partidário, sindical, social e
popular. Daí, desde junho de 2013, a direita “sair do do armário” e passar a pautar e
encurralar as ideias progressistas e de esquerda.
12) A crise econômica internacional, provinda do crash de 2008 e não resolvida até os
dias de hoje, mas que fora postergada acertadamente pelo Governo Dilma – embora
com doses por vezes acima do recomendável – por meio das chamadas “políticas
anticíclicas”, que se esgotaram, uma vez que têm validade limitada no capitalismo.
15) Por fim, o modelo contemporâneo de acumulação capitalista, baseado na
flexibilização de todos os fatores produtivos. Tudo isso num contexto de profunda
interconexão internacional. Trata-se de exigência do modelo flexível de acumulação.
Os programas “Uma ponte para o futuro” e “Travessia social”, do PMDB,
publicados em 2015, são peças primorosas dessa concepção retrógrada, antissocial e
afinada ao rentismo, assim como da perda da “soberania nacional” e da “sociedade
civilizada”. Estes programas partidários articulam-se portanto com o modelo de
acumulação capitalista, encarnado por capitalistas, ideólogos, think tanks, meios de
comunicação, financiadores e tantos outros, que repesentam força internacional, com
conexões claras no Brasil, como já fora o caso da “reforma gerencial”.
Portanto, de forma articulada, num verdadeiro consórcio desestabilizador com
vistas ao golpe, esses atores formaram uma grande coalizão. Assim o golpe foi
desfechado.
A sustentação ideológica do “governo” Temer se dá, portanto, por duas camadas
sociais: as classes médias superiores e partes significativas do Capital, ambas
absolutamente minoritárias; e politicamente pela institucionalidade do Congresso
Nacional, dada a maioria na Câmara e no Senado, mas com inúmeras contradições.
Igualmente, setores importantes do Poder Judiciário também sustentam, por ação ou
inação, o grupo comandado por Temer. O restante da sociedade se opõe.
Portanto, a continuidade do golpe se sustenta no Parlamento carcomido, na
leniência judiciária, na violência policial e no apoio da grande mídia carcomida.
As reformas neoliberais – que fracassaram no mundo todo e são espécie de
fantasma que se tenta ressuscitar – e conservadoras, derrotadas nas últimas quatro
eleições presidenciais, beneficiam, se tanto, 5% dos brasileiros.
As consequências da desestabilização política artificialmente forjada por atores
que conspiraram contra o PT, o Governo Dilma e a sociedade civilizada de direitos
implicaram o processo fraudulento da cassação dos votos de mais de cinquenta e quatro
milhões de brasileiros. Somente assim a agenda ultraliberal conseguiu se viabilizar, mas
com consequências imprevistas e resistências que tendem a se polarizar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A militante atuação do movimento ultraliberal desde os anos 1940 foi decisiva ao
surgimento do modelo de acumulação flexível: por meio de mordazes críticas aos
modelos de regulação do Estado, do discurso radicalizado, da ascensão de governos
ideologicamente vinculados a essa corrente e da mudança das instituições
internacionais, dentre outros fatores.
Em outras palavras, a proteção estatal aos direitos sociais e políticos dos
trabalhadores vem paulatinamente regredindo. Ressalte-se que os embates ideológicos
que levaram à hegemonia do ultraliberalismo são reeditados contemporaneamente.
Embora haja movimentos em várias dimensões voltados à crítica ao modelo
ultraliberal, em cujo sistema o capital especulativo ganhou ampla notoriedade, o fato é
que a estrutura produtiva da “acumulação flexível” não foi alterada, e dificilmente o
será em pouco tempo.
Sem uma crítica aos padrões da acumulação flexível e sem a postulação de
alternativas a esse modelo as proposições desenvolvimentistas correm o risco de se
tornar letra morta em sociedades que estão em plena transformação. Daí as respostas do
Estado terem necessariamente de levar em conta essa dimensão. Afinal, os pressupostos
do Sistema Financeiro e da lógica ultraliberal permanecem como balizas estruturantes
ao mundo contemporâneo, mesmo que com fissuras e reconfigurações.
Por outro lado, como procuramos apontar, os mecanismos de participação e
controle social funcionam como contraponto aos limites estruturais – geopolíticos,
vinculados ao modelo de acumulação e ao sistema político. Tal contraponto estica a
métrica do considerado “possível” pelo mainstrem, uma vez que, por meio da invenção,
da pressão e do tensionamento das lutas sociais reposicionam frações, grupos, classes e
movimentos.
Trata-se da essência da política, em que não há, previamente, a chamada “soma
zero”, em que um polo de poder sempre ganha e outro sempre perde. A PNPS, como
vimos (no Brasil), contribui, nos marcos de seus limites institucionais, para
institucionalizar o tensionamento dentro do Estado, tornando o jogo democrático mais
complexo, em que a forma democrática da participação evoca conteúdos de política
social. Ou, para usar um termo clássico, a democracia “formal” – vinculada à forma
democrática de governo – abre-se à democracia “substantiva”, em que políticas públicas
inclusivas passam a fazer parte da própria dinâmica democrática. Há, dessa forma, o
encontro entre forma e conteúdo, método e substância. Tal confluência, contudo, é
ideológica e operativamente obstada pela lógica do capitalismo rentista e neoliberal, que
enxerga a participação popular e o controle social como obstáculos à acumulação
“meritocrática” – terminologia que esconde a desigualdade das estruturas ao delegar ao
indivíduo em seu esforço solitário o papel de ascender socialmente.
Ressalte-se que o projeto rentista/neoliberal é um dos responsáveis pelo golpe de
Estado, desfechado no Brasil no dia 31 de agosto.
Como vimos, o projeto rentista/neoliberal, personificado pelos partidos políticos
PSDB e PMDB, está desestruturarando as políticas sociais e trabalhistas, assim como
derrogando a participação do cidadão comum e literalmente exterminando o controle
social. Trata-se de um lance forjado da nova forma de ser do capitalismo
contemporâneo, que, contudo, está encontrando – no Brasil, na Argentina, na Espanha,
na França, entre tantos outros lugares – enormes resistências.
A reforma gerencial, nesse sentido, cujos tentáculos se estendem vigorosamente
ao Estado brasileiro, em todas as unidades federativas e mesmo entre os poderes, os tem
reestruturado de forma a tornar a sociedade brasileira marcada por “governos
empresariais”. A participação social é cada vez mais extirpada do léxico político: tanto
em perspectiva conceitual como empírica, caso do golpe de Estado no Brasil.
Em democracias recessivas, caso da brasileira desde 2016, e mesmo em
perspectiva conceitual, há incrível ataque às formas de participação e de controle social.
Somente novas correlações de força poderão alterar esse quadro!
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