O Dogma 2005explicado às crianças
(em 30 passos simples)
#01Tu não és um artista, és uma pessoa.
#02Não penses que vais fazer uma peça sobre o
“amor”; pensa que vais fazer uma peça, apenas. E podes acreditar que isso é mais do
que suficiente.
#03Espera que a “ideia” (seja lá isso o que for)
venha ter contigo. Não corras atrás dela feito totó. Em vez de dizeres “preciso de ter uma ideia”, diz “preciso de deixar de ser totó”.
#04Ou seja, sê preguiçoso, e orgulha-te disso.
Tudo o que procuras está no contexto à tua volta. E se fores realmente “justo” com esse
contexto, perceberás que o que procuras está mesmo espetado à frente do teu nariz.
Relaxa. Não precisas de procurar muito mais.
#05Porque vai ser difícil acreditarem que o que dizes é verdade, documenta tudo o que te
acontecer daí para a frente: fotografa, filma, escreve, cria mnemónicas, inventa maneiras
de fixares as coisas e resgata-as da sua morte anunciada. Vais transformar-te num Warhol’zito anacrónico de trazer por casa?
Vais.
#06Diz sempre a verdade, a ti próprio primeiro, e aos outros depois. Mais do que um artista, és
um antropólogo, um etnólogo, um historiador, um cientista, um investigador.
Não, não és um político, nem um publicitário e muito menos um crítico de arte. Não és
mentiroso, porque não crias, revelas.
Pois não. É só a reprodução de um quadro famoso...
#07Faz muitas perguntas, sim, mas sem esperar
respostas.
#08Nunca penses em resultados finais; produz resultados à medida que fores vivendo as
situações, sem teres propriamente consciência que em vez de estares em
processo, o que tu estás é em resultado. Quem diria, hein?
Vais transformar-te num Guy Debord’zito anacrónico de trazer por casa? Vais.
#09Separar teoria de prática é o mesmo que
retirar a frente ao verso da folha de papel. Leia-se: é impossível. Por isso, mais vale
desistires.
#10Idem para a separação entre processo e resultado. Idem para a separação entre
pergunta e resposta. Etc.
#11Ou seja, tu não vais ser um freak do "work-in-progress" eternamente em processo. Tu vais
é ser um freak do "work-in-progress" eternamente em resultado!
#12Esquece tudo o que te disseram. Faz tábua
rasa, folha branca, começa tudo de novo, ou então começa tudo outra vez. Vais
transformar-te num empirista racionalista, num relativista ético-moral, num
desconstrucionista da linguagem, num marxista cultural, num existencialista
materialista, ou seja, num estóico'zinho anacrónico de trazer por casa.
#13Não queiras ser mais interessante/importante
que o teu projecto. Deixa-o ser/viver de acordo com as suas próprias regras. Lá
porque gostas muito de azul, não vais logo a correr pintar a mesa de azul, a menos que te
caia uma lata de tinta azul em cima da cabeça, antes de tu sequer pensares que
poderias ir a correr pintar a mesa de azul ou de outra cor qualquer.
#14Ou seja, aceita as coisas como elas são; não
tentes torná-las melhores, mais interessantes ou mais importantes. Lembra-te que “o melhor não é necessariamente bom”.
#15Todas as pessoas que se cruzarem contigo —
espectadores potenciais, efectivos, especializados, ou não, incautos,
interessados, desinteressados, etc. — fazem parte do teu contexto. Não as elimines, portanto; inclui-as e dá-lhes poder para
mudarem o teu projecto. Leia-se: dá-lhes poder para te mudarem a ti.
#16Não obstante: esquece lá essa coisa
abominável da “interactividade”. Os meninos se quiserem “brincar aos teatrinhos” podem
sempre ir à feira popular. Não lhes dês tarefas, responsabiliza-os. Se eles não gostarem, podem sempre ir embora.
#17Ou seja, o teu trabalho é “fazer” um
espectáculo. Não é “dar” espectáculo.
#18Ah! E nada de mistérios! Diz tudo o que há para dizer. E di-lo de uma forma rápida, concisa e simples. Nada de esconder pormenores, desfragmentar narrativas,
deturpar a cronologia ou criar ilusões espácio-temporais. Antes de seres artista, és jornalista, a
quem coube comunicar um evento de uma maneira de tal modo simples, que até a velhinha de Cascos de Rolha (que não foi à escola), irá perceber. Lembras-te do “quem, onde, quando, como, porquê, para quê?”. É
isso.
Vais ser uma mistura encantadora de talento artístico com acutilância comunicativa? Vais.
#19E já agora: tu não vais fazer um “vídeo”, nem uma “fotografia”, nem um “texto”, nem uma
“dança”, nem um “teatro”, nem uma “instalação”, nem um “happening”, nem um “projecto transdisciplinar”. O nome da tua
coisa é o nome que a coisa tem. Ou seja, os meios são meios; não são fins.
#20Se te sentires perdido e sem estrutura de
trabalho fixa onde te ancorares, não te preocupes. Quem é que disse que a
metodologia tem que ser encontrada no início? Respira fundo, conta até 10, imagina que és uma grande montanha e espera. Em caso de emergência, é só voltar ao início! No
recomeçar é que está o ganho.
#21Ensaio?? Esquece lá isso...
#22Autoria?? Não, mediação! Entre quem está ali para conhecer, e aquilo que tu tens para dar.
A conhecer, claro. E onde se lê “dar a conhecer”, leia-se: comunicar ao mundo a tua descoberta científica. Foste tu que a
descobriste, mas tal nunca aconteceria se ela não te tivesse descoberto a ti também. E ao mesmo tempo! Todos iguais, todos iguais...
Sim, vais ser um daqueles artistas interessados na e-racionalidade e no e-learning, nos neuro-media e na inteligência artificial, nos biomechatronics e nos media tangíveis, na cozinha molecular e nas comunicações virais, na sociedade da mente e nas cidades inteligentes, na computação afectiva e nas máquinas cognitivas, na peta-byte age e na possibilidade remota de algum dia Portugal enviar artistas em residência para o Media Lab do MIT.
#23Sim, e é da tua vida que estamos a falar. Não
vale a pena fugires com o rabo à seringa.
#24Sim, e é de exposição pessoal que estamos a
falar. Idem...
#25Sim, e é da anulação da liberdade artística
que tu julgas possuir — em prol de uma nova (e mais autêntica) liberdade artística que tu nem sonhavas que tinhas — que estamos a
falar. Idem...
#26Sim, e este projecto tem que te marcar. De
facto. E para sempre.
Vais fazer uma tatuagem? ?!!?Se calhar, vais...
#27E isto só é “artístico” porque tu disseste que era. Não interessa a forma do “artístico” (a arte não tem que se parecer com “arte”),
mas sim o compromisso que ambos assinámos e que dá mais importância à
legenda que ao objecto legendado.
Sim, ainda... Agora e sempre! Amen.
#28Ah! E esse copo de plástico que tens na mão é para com ele beberes o café, não é para o pores na cabeça a fazer de conta que é um
chapéu, certo?
#29E depois, das duas uma: ou segues estas regras ou não segues
estas regras. Não percas tempo a discuti-las, a rebatê-las, a desconstruí-las, a concordar ou a discordar com elas. Não vale
a pena. É perda de tempo e desgaste desnecessário de neurónios. Mas também não faças disto a tua religião. Não
penses sequer em criar um partido político ou um movimento artístico com sotaque e retórica pós-modernos! De nada te irá valer convenceres os outros que isto é que está certo. Porque
nem está nem deixa de estar. Não é aí que reside o “interesse”. Pensa que és um mero funcionário do “Dogma”:
picas o ponto, entras, fazes, depois voltas a picar o ponto e vais embora para casa.
#30No fim, vais perceber que fizeste “arte”, sem
ter pensado de antemão que era “arte” aquilo que estavas a fazer. Não é fantástico?
É que às vezes, o ‘making of’ chega a ser mais importante que o filme. Outras vezes, o
‘making of’ é mesmo ‘o’ filme. São estas vezes as que interessam!
Tenta!...
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