UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES
PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU
INSTITUTO A VEZ DO MESTRE
REFLEXÕES SOBRE AS DANÇAS CIRCULARES SAGRADAS
COMO INSTRUMENTO DE TRANSFORMAÇÃO INTERIOR E
INTEGRAÇÃO SOCIAL
Por: Márcia Maristela Ramos
Orientadora: Profª. Fabiane Muniz da Silva
Co-orientadora: Profª. Narcisa Castilho Melo
Uberaba/MG
2010
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1
UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES
PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU
INSTITUTO A VEZ DO MESTRE
REFLEXÕES SOBRE AS DANÇAS CIRCULARES SAGRADAS
COMO INSTRUMENTO DE TRANSFORMAÇÃO INTERIOR E
INTEGRAÇÃO SOCIAL
Apresentação de monografia ao Instituto A Vez do Mestre
– Universidade Candido Mendes como requisito parcial
para obtenção do grau de especialista em Arteterapia em
Educação e Saúde.
Por: Márcia Maristela Ramos
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AGRADECIMENTOS
Dedico o esforço de realização
deste trabalho aos meus pais
Alonso e Aneyde pela
oportunidade de vivenciar o amor
e à Annie Rottenstein pela
oportunidade de vivenciar a arte
como instrumento de recriação de
uma vida plena.
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DEDICATÓRIA
Dedico o esforço de realização desta pesquisa
ao mestre Bernhard Wosien (in memória).
A dança é a linguagem figurativa mais imediata que fluiu do hálito do movimento. Ela é tida, enfim, como o primeiro testemunho de comunicação criativa. Nos povos que ainda atribuem um sentido ao invisível, a dança é, ainda hoje, pedido e oração. Nela, o homem consegue exteriorizar todos os atos primevos da alma, desde o medo até a entrega libertadora. Mas o número de povos que consegue se elevar, a partir de seus medos primitivos, ao verdadeiro encantamento e à loucura, no êxtase da dança, é cada vez menor.
Bernhard Wosien
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RESUMO
Os conceitos contemporâneos são de dicotomia e de separatividade, onde as
partes funcionam por si mesmas, obedecendo aparentemente a leis próprias, onde a
sobrevivência é a base das atitudes. Parece ser o momento de expandir os conceitos e
alargar os horizontes. É preciso que a pessoa se enxergue por inteiro, aceite-se
integralmente. É preciso conhecer e gostar de si mesmo, apesar de todas as
imperfeições, para se chegar ao equilíbrio e à saúde. As danças circulares sagradas
propõe a superação da dicotomia corpo/alma e podem se tornar um instrumento de
autoconhecimento capaz de proporcionar não somente a integração com o grupo, mas
também com o eu superior e a centelha divina que cada ser humano traz em si. Esta
pesquisa de caráter bibliográfica procura estabelecer as intrincadas e intimas relações
que se estabelecem entre o corpo, o movimento, a consciência e o sagrado, através do
ritmo, do contato e da exploração dos espaços externos e internos promovidos pelas
danças circulares sagradas. Mais do que um exercício do corpo no espaço e dentro de
um grupo, a dança circular é um instrumento de equilíbrio emocional, de descoberta e
consciência de si mesmo, e, portanto, um agente transformador capaz de produzir até
mesmo a cura de sintomas psicossomáticos.
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METODOLOGIA
Este TCC está fundamentado na análise qualitativa, utilizando-se referências
bibliográficas e a observação desta aluna, que atua como organizadora e mediadora de
Danças Circulares Sagradas em escolas, grupos terapêuticos e empresas.
Na revisão da literatura foi realizada uma seleção de autores reconhecidos pela
importância de sua contribuição para o estudo da consciência corporal, da
psicossomática, da arte como instrumento terapêutico, da música, da dança e das danças
circulares sagradas.
Procurou-se reunir um conjunto de referências bibliográficas capaz de oferecer
uma abordagem da temática sob diversos aspectos e com diferentes pontos de vista
analíticos.
O trabalho foi iniciado com o levantamento, a leitura e a resenha de literatura
disponível sobre a temática enfocada. A apresentação deste texto obedece às instruções
da ABNT para monografias.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 07
CAPÍTULO I – Concepções do Corpo Através dos Tempos ....................................... 10
1.1 O corpo a partir da dialética materialista ................................................................ 15
1.2 O corpo para a Psicologia ...................................................................................... 17
1.3 O corpo e a dança ................................................................................................... 27
CAPÍTULO II – O Mecanismo Psicossomático ........................................................... 30
CAPÍTULO III – A Arte Como Terapia ....................................................................... 38
3.1 A evolução neurológica da musicalidade ................................................................ 43
CAPÍTULO 4 - As Danças Circulares .......................................................................... 49
4.1 As danças circulares sagradas como instrumento terapêutico ................................. 53
CONCLUSÃO ............................................................................................................... 56
BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................... 61
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INTRODUÇÃO
Há uma ordem que pode ser percebida em tudo, guiando e dando sentido a todas
as coisas. Essa ordem não se perde ou se desfaz e é viabilizada através de leis que a tudo
regulam, leis essas que agem independente do conhecimento humano sobre elas, leis
imutáveis, não burláveis, não distorcíveis, que se sobrepõem a tudo, buscando conduzir
tudo à harmonia e à ordem universal.
A sociedade humana vive numa desordem dentro da ordem, como uma doença
de um órgão dentro de um organismo sadio. Esta desordem pode ser provisória, pode
ser um estado momentâneo dentro da eternidade e o fruto desta experiência humana
pode não ser senão o aprendizado e o amadurecimento.
As leis que regem a química e a física, isto é, a matéria, as quais o homem
procura conhecer para poder utilizar-se delas para o seu proveito próprio, também
existem na biologia e no psiquismo humano. Essas últimas precisam também ser
conhecidas, para então, poder-se guiar através delas para a aquisição de saúde, não só
física, mas integral, no corpo, na mente, e porque não, no espírito.
O homem é um ser social e histórico. Isto significa que a sua relação com o meio
ambiente se dá de uma maneira permeada socialmente. O fato histórico que persiste é
que o homem precisa sobreviver. E o que muda não é o que se produz num determinado
período histórico, são as relações de produção, são as relações sociais que permeiam ou
que significam, stricto sensu, a relação entre os homens.
A comida que mantém o homem em pé, o sexo que mantém gerações se
sucedendo, a forma de expressão do homem estiveram presentes em qualquer momento
histórico que se tomar. O que muda, se transforma, são as relações sociais que os
homens utilizam para essa produção.
O que ultrapassa o biológico é a alma, e alma não é corpo. Esse ainda é o senso
comum na cultura ocidental. Se por trás dos condicionamentos e determinações sociais,
busca-se a emancipação, a liberdade, na presença de um corpo-uno e integrado na sua
relação com os outros corpos e o mundo, conceitual e também pragmaticamente ainda
não se conseguiu fugir às divisões.
Culturalmente o homem tem vários corpos, dependendo de sua prática e do
ângulo de análise em que pende sua reflexão. O próprio saber médico-científico só
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muito raramente incursiona para além do meramente fisiológico e psicológico,
demonstrando uma visão não só limitada, como também fragmentada e às vezes,
distorcida do corpo.
É preciso superar a visão do corpo como um simples objeto, um utensílio cuja
preocupação básica é o rendimento e a produtividade tecida pelo lucro. O corpo não
deve ser apenas um objeto sendo inscrito na categoria do jurídico, isto é, estar sempre
sendo julgado como feio ou bonito, bom ou ruim, grande ou pequeno, forte ou fraco,
magro ou gordo, feminino ou masculino, preto ou branco, sensual ou imponente, novo
ou velho, rico ou pobre, e a partir daí ser discriminado, deixando-se de lado sua
natureza dialética.
O corpo não deve ser uma peça que cumpre a sua função (de produtor,
reprodutor ou consumidor) dentro da engrenagem social de um capitalismo periférico,
dependente e selvagem que tem como meta a lucratividade a qualquer custo.
Superestimado o lucro (para alguns), todos os demais aspectos e problemas que
envolvem a existência passam a ser secundários para aqueles poucos que detêm o poder,
e só são resolvidos quando o sistema, por eles montado, começa a correr algum perigo.
A competição feroz que se estabelece nesse regime não permite que o autenticamente
coletivo e solidário tenham espaço.
Uma experiência desumanizante do individualismo é a consequência natural do
processo. Uma pessoa só é entendida como elo de identidade social, quando interessa à
lógica da produtividade lucrativa. Nesse sentido, falar do outro como elo fundamental
capaz de humanizar o outro (ato de amar) soa como ingênua poesia. E é por aí que a
visão do corpo degenera-se, não podendo ser visto como um sistema-bioenergético-de-
relação, dentro de um contexto ecológico amplo e complexo e em permanente processo
de crescimento e desenvolvimento, que busca, enfim, desempenhar plenamente a sua
missão de produtor e criador da história.
Uma investigação crítica da realidade humana, necessária a uma melhor
compreensão dos problemas atuais, requer certos cuidados para que se fuja da leitura
que faz a ideologia dominante a seu respeito. Convém que se entenda como as coisas
são impostas no sentido de se perpetuar a estrutura social dividida e altamente
hierarquizada (em classes). É preciso perceber que os Aparelhos Ideológicos e
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Repressivos de Estado se encontram fundamentalmente a serviço da classe dominante, e
que através de seus instrumentos os corpos são produzidos.
Neste trabalho de pesquisa acadêmica sobre as danças circulares sagradas, foram
elaborados quatro capítulos que tentam demonstrar a possibilidade de utilização das
danças circulares sagradas como instrumento terapêutico, através dos benefícios que
trazem aos seus praticantes.
O capítulo I, com o título Concepções do corpo através dos tempos, ressalta o
papel do corpo como lócus onde é possível acontecer todas as integrações, quer consigo
mesmo, com o outro, com o social e com o espiritual. Trás também a visão que as
principais escolas contemporâneas de Psicologia têm a respeito do corpo.
O capítulo II, denominado O mecanismo psicossomático, apresenta as teorias
que permeiam a compreensão dos mecanismos de atuação dos processos emocionais
sobre o corpo.
O capítulo III, A arte como terapia, aborda a importância da arte, com destaque
para a música, como instrumento terapêutico, transformador não apenas de processos
emocionais, mas também de mudanças positivas em sintomas manifestos de doenças.
Finalmente, o capítulo IV, As danças circulares, descreve as possibilidades das
danças circulares sagradas como instrumento terapêutico, de afloramento e
desenvolvimento espiritual e da construção de um ser humano mais harmonioso e pleno.
A dança circular é em sua essência uma atividade de grupo, onde um ritmo
comum coloca todos os participes em sintonia, propiciando maior fluxo e circulação de
energia. Assim, o próprio grupo se torna um canal para entrada da energia que vibra em
uma frequência diferente da energia comum individual. O círculo é uma forma
geométrica perfeita, onde todos os pontos estão à mesma distância de seu centro.
Socialmente, estar em roda simboliza esta fraternidade, esta igualdade e a sensação de
pertinência em algo que só passa a existir se houver a colaboração de várias pessoas. As
culturas antigas, ligadas à natureza, já faziam da roda o ambiente ideal para atuar
socialmente, fosse conversando e ensinando, fosse praticando rituais em grupo, fosse
dançando. Dançar é uma forma de expressão da natureza humana e sempre esteve
presente no dia-a-dia dos ancestrais humanos, integrando significados e valores,
trazendo alegria, comemorações e celebrações. Pode-se dizer que a origem das danças
circulares é a própria origem antropológica do homem.
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CAPÍTULO I
CONCEPÇÕES DO CORPO ATRAVÉS DOS TEMPOS
Para Abbagnano (2000), em um certo prisma filosófico as noções de corpo e
coisa se confundem. Num outro também filosófico, porém mais “humanizado”, o corpo
é sinal da alma, é o instrumento do espírito. E é a partir deste dualismo corpo-alma que
a Civilização Ocidental se faz e se impregna de divisões. A cultura hipertrofia a
abstração e, com ela, sedimenta o idealismo e a metafísica. O homem se separa do
mundo. Divide-se.
Durante muito tempo a doutrina da instrumentalidade do corpo (o corpo
como instrumento da alma) perpassa os pensamentos dos grandes filósofos antigos e
medievais. Assim, segundo Abbagnano (2000, p. 196), pensaram os “Órficos, Platão,
Aristóteles, Epicuro, Plotino, São Tomás de Aquino, Hobbes, entre outros”. No
agostinismo medieval, entretanto, vamos encontrar o corpo orgânico sendo
considerado como uma forma ou substância diferente. Mas é só com o dualismo
cartesiano que se abandona o conceito de instrumentalidade do corpo. Segundo
Descartes, o corpo e a alma constituem-se duas substâncias diferentes e
independentes.
O cogito cartesiano, como passou a ser chamado, fez com que Descartes privilegiasse a mente em relação à matéria e levou-o a conclusão de que as duas eram separadas e fundamentalmente diferentes. Assim, ele afirmou que ‘não há nada no conceito de corpo que pertença à mente, e nada na idéia de mente que pertença ao corpo’? (ABBAGNANO, 2000, p. 196)
A divisão cartesiana entre matéria e mente teve um efeito profundo sobre o
pensamento ocidental. Ela ensinou a conhecer a si mesmo como egos isolados
existentes ‘dentro’ dos corpos; levou a atribuir ao trabalho mental um valor superior
ao do trabalho manual; habilitou indústrias gigantescas a venderem produtos –
especialmente para mulheres – que proporcionem o ‘corpo ideal’; impediu os
médicos de considerarem seriamente a dimensão psicológica das doenças e os
psicoterapeutas de lidarem com o corpo de seus pacientes. Nas ciências humanas, a
divisão cartesiana redundou em interminável confusão acerca da relação entre mente
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e cérebro; e, na física, tornou extremamente difícil aos fundadores da teoria quântica
interpretar suas observações dos fenômenos atômicos.
Segundo Heisenberg, que se debateu com o problema durante muitos anos
“essa divisão penetrou profundamente no espírito humano nos três séculos que se
seguiram a Descartes, e levará muito tempo para que seja substituída por uma atitude
realmente diferente em face do problema da realidade” (Capra, 2000, p. 55).
Abbagnano (2000) procura definir as tendências da filosofia moderna e
contemporânea, que tentam solucionar este problema colocado por Descartes, a partir
de quatro grandes grupos de pensadores.
A primeira tendência nega a diversidade das substâncias, e reduz a substância
corpórea à espiritual. “O corpo é um agregado de substâncias e não é, ele próprio
uma substância” (Leibniz, citado por Abbagnano, 2000, p. 197). Certas correntes do
espiritualismo também pensam dessa forma.
A segunda entende o corpo como expressão da alma, do espírito. Recupera-
se, numa nova roupagem, o pensamento dos órficos, de Platão, Aristóteles, etc. Os
românticos, e em especial Hegel, assumem esta postura. Aqui o corpo é a
“manifestação externa” ou a “realização externa” do espírito.
A terceira tendência indicada por Abbagnano (2000) interpreta o corpo e a
alma como sendo duas manifestações de uma mesma substância. Spinoza, por
exemplo, dizia que a alma e o corpo são modos ou manifestações de dois atributos
fundamentais da única substância divina, o pensamento e a extensão.
A quarta e última tendência analisa o corpo como forma de experiência ou
como modo de ser vivido, mas que tem um caráter específico ao lado de outras
experiências ou modos de ser. Um exemplo desta tendência encontra-se na
fenomenologia de Husserl. Também Sartre inclui-se nesta vertente. Mas foi
indubitavelmente Merleau-Ponty que avançou mais nesta interpretação. “Quer se
trate do corpo de outrem, ou quer se trate do meu, não tenho outro modo de conhecer
o corpo humano senão o de vivê-lo, isto é, de assumir por minha conta o drama que
me atravessa, e confundir-me com ele” (Abbagnano, 2000, p. 197).
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Para Abbagnano (2000, p. 199) “deve-se observar que essa redução, tão
característica da filosofia contemporânea, do corpo a um comportamento, ou a um
modo de ser vivido, não tem nenhum significado idealista: não implica a negação da
realidade objetiva do próprio corpo ou a sua redução a espírito, ou a ideia, ou a
representação”.
E por aí as ideias avançaram nos últimos dois séculos, acompanhando de
perto os ecos das grandes transformações sociais, e por certo aspectos, influenciando-
as. Em especial após a II Grande Guerra Mundial há como que uma explosão no
discurso sobre o corpo, muito por reflexo de movimentos de certas camadas sociais
dominantes, preocupadas (além dos lucros) com as diversas manifestações corporais
como a sexualidade, a dança, as atividades esportivas, as terapias, etc. Apesar do
desejo humano ser presa fácil do capitalismo monopolista, é no próprio bojo dos
processos sociais manipulados por interesses políticos, econômicos e ideológicos
alienantes, que surgem os movimentos que veem no homem concreto (portanto, no
corpo) um caminho em busca da totalidade humana, de melhor compreensão da
realidade, enfim de uma autêntica libertação.
De qualquer forma, a análise evolutiva da concepção de corpo, da Grécia
Antiga aos dias atuais, revela o confronto entre o Idealismo e o Materialismo, entre a
Metafísica e a Dialética. Estes são os registros que a razão humana, através de sua
história, encontrou para a leitura e interpretação da realidade. E mais: para a sua
conservação ou transformação radical. Aí podem se considerar as questões centrais
da filosofia contemporânea.
A filosofia surge da preocupação do ser humano em compreender o mundo
em que vive. A partir de um dado momento a explicação advinda das experiências
imediatas (sensíveis) e do pensamento mítico já não satisfazem. Surge a necessidade
de uma explicação racional da realidade. É a consciência (a subjetividade) assumindo
o seu papel no desenvolvimento do homem, da cultura. No início o “homo-sapiens”
era um ser uno, integrado e entregue ao mundo. Ele e o mundo são uma coisa só.
Mesmo no pensamento mítico o homem não se separa da natureza. Tudo se relaciona
direta e imediatamente com a sua vida concreta. Esta é a característica do homem
primitivo e também a da criança.
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Para Fontanella (1995, p. 6) “a criança e o primitivo coexistem com o mundo
e os demais. (...) A constituição da subjetividade separada dos demais e do mundo é
contemporânea da constituição da consciência separada do mundo e do tempo”. A
mesma consciência que liberta o sujeito do mundo é a que o aprisiona aos novos
problemas existenciais.
As raízes do dualismo corpo-e-alma talvez sejam as mesmas da origem do
idealismo. Fontanella (1995, p. 7) argumenta:
... a constituição dos objetos só se dá ao preço da separação do sujeito: este é o veio do idealismo. Na medida em que os sujeito se distingue dos objetos, nessa mesma medida ele passa a se diferenciar deles. Quanto mais nítido, claro, distinto o mundo material, tanto mais se afirma o sujeito distinto dele. Quando mais distinto o objeto, mais nítido, claro e distinto se torna o sujeito, mais separado ele se vê do próprio mundo. Aí estão as raízes do idealismo e de seus exageros. O eu, o sujeito, se separou e se tornou todo-poderoso em relação ao mundo. E o corpo, conjunto biológico, material, mundano, cheio de humores e excreções ficou relegado, mais ainda que o mundo. Os sentidos são portas, janelas, passagens, receptores, etc. O corpo, os sentidos, passaram a ter um papel secundário, infelizmente necessário, nessa transição. Muito embora o mundo se tomasse à medida e forma dos sentidos, foram tidos como canais ou veículos na representação do mundo. O homem, formado do mundo, formou a imagem e posteriormente a ideia do mundo. O corpo foi no embrulho do mundo.”
Durante muitos e muitos séculos o pensamento civilizado se nutre do
dualismo corpo-espírito em suas diferentes versões. Mesmo os monismos que
reduzem a substância corpórea à espiritual, ou vice-versa, encontram dificuldades em
se afirmar através da palavra. Isto porque a linguagem lógico-formal, prevalente até
os dias atuais, foi sendo elaborada fundamentalmente, ao longo da história, por fortes
influências idealistas e metafísicas. O código linguístico da civilização ocidental
(qualquer que seja o idioma) é calcado, pela sua própria natureza, no exercício da
divisão. Como falar, por exemplo, do homem integral, total, sem passar por suas
instâncias materiais, biológicas, psicológicas, neurológicas, espirituais, sociológicas,
etc.? Como falar da alma excluindo-se o corpo? O que é o corpo sem a sua
transcendentalidade?
Para Capra (2000) o conhecimento racional dividiu o homem para além dos
monismos. Entretanto, é com o pensamento de Descartes que o dualismo se
radicaliza. O seu método analítico de raciocínio, talvez a maior contribuição que
tenha dado à ciência, também provocou uma excessiva obstinação pela infalibilidade
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dos métodos científicos. Não se admitia – e essa influência permanece impregnada
na cultura contemporânea – que não existe verdade absoluta nas ciências. Na sua
concepção, não se podia pensar que todos os conceitos e teorias são sempre limitados
e aproximados. O método cartesiano fragmentou decisivamente o pensamento do
homem, levando à crença de que todos os aspectos dos fenômenos complexos podem
ser compreendidos se reduzidos às suas partes constituintes.
Ainda segundo Capra (2000), a divisão cartesiana entre matéria e mente teve
um efeito profundo sobre o pensamento ocidental, que dura até hoje. Vem de
influências como estas a extrema dificuldade em entender a dialética enquanto
totalidade, enquanto modo de pensar as contradições do mundo, ou o modo de se
compreender a realidade como totalidade, essencialmente contraditória e em
permanente transformação. A contradição (dialética), que incorpora ao invés de
excluir, não se encaixa muitas vezes na lógica formal (metafísica). Uma linguagem
amplamente dialética ainda está por ser sedimentada pela cultura civilizada.
Por outro lado, a lógica-formal, embora demonstrando um certo ‘rigor
científico’ do pensamento, não raramente, simplifica e reduz a realidade, retratando-a
estaticamente. O pensamento metafísico coloca em evidência a ‘natureza humana’ do
homem, afastando-o, contudo, de sua história. Explica o ser, mas não é convincente
quanto ao devir. Aceita a estabilidade como pressuposto básico do ser enquanto
natureza humana. O que importa é a ‘estrutura ontológica’ do homem, o resto (o
movimento, a história) é ‘acidente’, e, portanto, secundário. Desde que o homem
inventou a civilização, ele (o homem civilizado) tentou justificar a estabilidade do
mundo, da sociedade e de si próprio. E durante muitos e muitos séculos conseguiu.
Todo o arcabouço científico e filosófico desta visão é sedimentado por uma
verdadeira revolução científica que ocorre por volta dos séculos XVI e XVII,
conduzida por cientistas e pensadores como Copérnico (1473-1543), Galileu (1564-
1642), Francis Bacon (1561-1626), Descartes (1596-1650) e Isaac Newton (1642-
1727) entre outros. Com eles desfaz-se a concepção orgânica de mundo, bem
característica até a Idade Média, e cria-se um modelo mecanicista do universo. Como
comenta Capra (2000, p. 61) ao analisar o pensamento newtoniano:
O mundo é “uma máquina, governado por leis imutáveis. A concepção mecanicista da natureza está, pois, intimamente relacionada com um
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rigoroso determinismo, em que a gigantesca máquina cósmica é completamente causal e determinada. (...)” Tudo o que aconteceu teria tido uma causa definida e dado origem a um efeito definido, e o futuro de qualquer parte do sistema podia – em princípio – ser previsto com absoluta certeza, desde que seu estado, em qualquer momento dado, fosse conhecido em todos os seus detalhes. A ideia de movimento, portanto, não superava essa visão maquinal do mundo.
Mas o grande corte epistemológico do registro idealista e metafísico de
interpretação da realidade se dá a partir do século XVIII com a eclosão de
movimentos sociais que acirram o antagonismo entre a classe privilegiada formada
pelo clero e a nobreza de um lado, e pelo povo: comerciantes (burgueses), artesãos,
operários e camponeses, de outro. Os marcos desses movimentos que agitavam a
Europa são, sem dúvida, as Revoluções Industrial (Inglaterra) e Burguesa (França,
1789); que consolidam um novo modo de produção. O homem produz o excedente
econômico. O “movimento” como “acidente” sofre um grande abalo e começa a ser
questionado. Descobre-se a instabilidade e com ela o dinamismo social. O mundo,
socialmente falando, já não é mais estático. Pelo menos não deve sê-lo (Mauss, s/d).
1.1 O corpo a partir da dialética materialista
No terreno das ideias, Hegel revoluciona a filosofia, sistematizando e
ampliando a concepção dialética de interpretação do mundo. É a tese, a antítese e a
síntese explicando o movimento da vida. É o movimento, a história, como motor das
transformações. Só que para Hegel a história é ainda uma história do espírito, uma
história do espírito nas coisas. História é reflexão, consciência do espírito. A cultura
é, portanto, uma manifestação do espírito. A exteriorização e interiorização do
espírito é a causa do movimento. A exteriorização do espírito produz a obra humana.
Para Konder (2001), Hegel enaltece o trabalho como mola propulsora do
desenvolvimento humano, mas o trabalho é produção do espírito. A Ideia Absoluta, o
Estado e a consciência humana são os três ‘estados de espírito’ defendidos por
Hegel, sendo o determinante máximo a Ideia Absoluta. Enfim, Hegel é dialético, mas
idealista.
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Na trilha do pensamento hegeliano, Marx concorda, em síntese, com seus
pressupostos básicos (dialéticos), mas inverte sua concepção idealista: as obras
humanas são manifestações do espírito, mas o verdadeiro motor (o fator
determinante) desse movimento são as contradições materiais da existência. As
contradições se dão fundamentalmente nas relações de produção. São as condições
materiais que determinam a reflexão (o espírito, a consciência) e não o contrário. O
que dinamiza as relações sociais é o trabalho, mas o trabalho que produz é o trabalho
material, físico. O lugar que se ocupa nas relações de trabalho é que determina a
própria realidade. A matéria resgata seu peso perante o espírito. O homem concreto
descobre os elementos para transformar o real através da mudança revolucionária dos
modos de produção. Marx ao refutar o materialismo mecanicista (de Feuerbach), e
também opondo-se à dialética idealista de Hegel, dá bases à dialética materialista
(Marx, 1999).
Apesar de todos os preconceitos contra Marx exercidos das mais diversas
formas pelas classes dominantes, a verdade é que, após ele, não se pode mais
esconder o drama da existência humana. Não se pretende discutir neste breve texto se
todas as suas previsões deram ou não certo. O que interessa aqui é a sua análise da
realidade. Ele, sob determinado ângulo, enxergou além; conseguiu enxergar mais do
que os outros. Decodificou os signos sociais. O século XVIII é palco de um mundo
em crise de crescimento, em ebulição. A história atinge um estágio de fermentação e
transformação no qual o homem e o ambiente já não são os mesmos. As relações
sociais de trabalho tendem a um desenvolvimento tecnológico tal, que faz,
finalmente, superar o regime de escassez que vigora absoluto até a Idade Média. Há
bens materiais para todos. Mas a nova ‘economia de riqueza’ permanece estática. É
preciso dinamizá-la. Como? Distribuindo-se melhor o resultado do trabalho humano.
Tarefa que o homem, apesar da genialidade de Marx e do esforço coletivo de uma
parcela da humanidade, ainda não conseguiu cumprir.
É certo que Marx (1999) analisa muito o efeito do poder institucionalizado
sobre o corpo apenas na situação de trabalho e, sobretudo, privilegiando o papel do
trabalhador e da ideologia. Ao descobrir a verdade das relações sociais do trabalho,
ele indiretamente nos revela os corpos. Resgata o valor do corpo verdadeiramente
humano, mesmo que circunscrito à situação de trabalho. Suas revelações são
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decisivas. Já não interessa o lucro pelo lucro, ou o lucro para alguns apenas. Não
basta atender às necessidades mínimas de sobrevivência em função de um trabalho
alienado e, portanto, desumano.
Pode-se dizer que o que Marx fez foi liberar a energia somática potencial dos
seres humanos. O mundo já não é mais estável. Clama por mudanças. E as mudanças
só os homens podem fazê-las. Não através da ‘ideia pura’ (descompromissada), mas
da prática social. O corpo precisa ‘estar lá’. Não há história feita só de abstrações.
Não há história sem o corpo. Não se trata nem de depositar no espírito humano
(como fazem muitos idealistas) toda a força das transformações sociais, nem
tampouco de colocar esta força no ambiente material (como fazem muito marxistas
dogmáticos). Há nesses dois aspectos uma unidade e uma totalidade que deve ser
compreendida e revelada. Parece não restar dúvidas de que, na relação corpo-mundo,
existe um campo determinante e outro determinado. O pensamento, por exemplo, é
determinado pelos limites impostos pela cultura do indivíduo. Não se pode contestar
que, em grande escala o homem é produto da sociedade. Isto não quer dizer que em
determinadas circunstâncias não se possa ultrapassar os seus limites. Conspirar e
extrapolar. Subverter e transcender. Sair das engrenagens. Construir o novo.
A humanidade como um todo ainda não conseguiu conquistar uma liberdade
mais ampla e condizente com o seu grande avanço científico e tecnológico. Os
aparelhos ideológicos de Estado cumprem mais ou menos eficientemente o seu papel
de dividir para dominar. O homem sabe muitíssimo a respeito das partes e dos
detalhes, sem se aperceber o suficiente da unidade e totalidade que verdadeiramente
nos conduzem a uma existência menos neurotizante. Se a humanidade não conseguiu
garantir para todos sequer os elementos mínimos necessários à sua sobrevivência
biológica, o que se pode dizer, então, da dignidade dos homens enquanto seres
autenticamente humanos!
1.2 O corpo para a Psicologia
Cada grande teórico isolou e esclareceu certos aspectos particulares da natureza
humana. Cada um deles tem uma compreensão profunda de uma parte do todo. Interessa
18
neste trabalho o que cada uma dessas teorias diz a respeito do corpo como instrumento
de compreensão do potencial humano. Cada indivíduo, com e em seu corpo, possui uma
tendência para o desenvolvimento psicológico. Isto foi descrito por vários psicólogos
como uma tendência à autoatualização, um impulso para a autocompreensão, uma
necessidade de aprimorar sua consciência e competência – tudo isso a fim de obter mais
alegria e satisfação da vida.
1.2.1 A psicanálise
O trabalho de Sigmund Freud, nascido das disciplinas especializadas de
Neurologia e Psiquiatria, propõe uma concepção de personalidade que surtiu efeitos
importantes na cultura ocidental. Sua visão da condição humana, atacando
violentamente as opiniões prevalecentes de sua época, oferece um modo complexo e
atraente de perceber o desenvolvimento normal e anormal.
Subjacente a todo o pensamento de Freud (1974) está o pressuposto de que o
corpo é a fonte básica de toda experiência mental. Ele abordou a personalidade sob o
ponto de vista fisiológico. As pulsões básicas surgem de fontes somáticas; a energia
libidinal deriva da energia física; respostas à tensão determinam os comportamentos
tanto físicos quanto mentais. A excitação e o relaxamento instintivo existem num limite
indefinido entre o orgânico e o mental.
O foco primário da energia libidinal encontra-se nos vários modos de expressão
sexual. A maioria das funções cruciais do corpo está ligada à expressão e diferenciação
sexual. A maturidade plena desenvolve-se a partir da plena sexualidade genital. Uma
das muitas contribuições de Freud foi alertar sua geração, mais uma vez, para a
primazia do corpo como o centro de funcionamento da personalidade.
O self é o ser total: o corpo, os instintos, os processos conscientes e
inconscientes. Um self independente do corpo ou separado dele, não tem lugar nas
crenças biológicas de Freud. Quando tais questões metafísicas eram levantadas, Freud
declarava que estas não faziam parte de sua esfera de ação enquanto cientista.
1.2.2 A psicologia analítica
19
Em seus volumosos escritos Carl Jung não lidou explicitamente com o papel do
corpo, uma vez que escolheu dirigir todos os seus esforços para a análise da psique. Ele
argumentou que os processos físicos são relevantes para o indivíduo apenas na medida
em que eles são representados na sua psique. O corpo físico e o mundo externo não
podem nunca ser conhecidos de forma direta, mas apenas como experiências
psicológicas. “Eu estou interessado sobretudo na psique em si mesma, e estou, portanto,
omitindo corpo e espírito... Corpo e espírito são, para mim, apenas meros aspectos da
realidade da psique. A experiência psíquica é a única experiência imediata. O corpo é
tão metafísico quanto o espírito” (Jung, 1978, p. 200).
Jung foi muitas vezes criticado pela falta de um sistema de pensamento coerente,
claramente estruturado. Seus escritos parecem às vezes divagar por tangentes, mais do
que apresentar ideias de uma maneira formal, lógica, ou até mesmo sistemática. Além
disso, Jung usa, com frequência, várias definições para os mesmos termos, em
momentos diferentes. Ele deliberadamente desenvolveu um sistema aberto, que pudesse
admitir novas informações sem distorcê-las para que se adaptassem a uma estrutura
teórica inclusiva. Ele nunca acreditou que conhecesse todas as respostas, nem que as
novas informações viessem apenas confirmar suas teorias. Jung acreditava que é raro a
vida seguir o modelo lógico coerente que se tornou padrão para escritos científicos e
acadêmicos, e seu próprio estilo talvez esteja mais próximo da complexidade da
realidade psicológica.
1.2.3 A psicologia individual
Para Alfred Adler o corpo é a maior fonte de sentimentos de inferioridade na
criança que está rodeada por aqueles que são maiores e mais fortes e que fisicamente
atuam de forma mais efetiva. Adler (1987) também salientava que o mais importante é a
própria atitude em relação ao corpo. Muitos homens e mulheres atraentes nunca
resolveram sentimentos de feiúra e não-aceitação que sentiram na infância, e ainda se
comportam como se não tivessem atrativos. Por outro lado, através da compensação,
pode ocorrer que os que têm deficiências físicas lutem firmemente e desenvolvam seus
corpos além da média.
20
As teorias de Adler causaram um forte impacto na psicologia humanista,
psicoterapia e teoria da personalidade. Sua ênfase no interesse social proporcionou uma
maior orientação social para a psicoterapia, e seu interesse pelos processos racionais e
conscientes deu origem à primeira psicologia do ego. De fato, sugeriu-se que ‘neo-
adleriano’ é um termo mais correto do que ‘neofreudiano’ para teóricos tais como Erich
Fromm, Karen Horney e Harry Stack Sullivan.
Também Viktor Frankl e Rollo May, analistas existenciais, consideraram Adler
um precursor influente da psiquiatria existencial, e o interesse de Adler pelo holismo,
intencionalidade e papel dos valores no comportamento humano antecipou muitos dos
desenvolvimentos da psicologia humanista.
1.2.4 A psicologia do corpo
Wilhelm Reich descobriu que cada atitude de caráter tem uma atitude física
correspondente e que o caráter do indivíduo é expresso no corpo em termos de rigidez
muscular ou couraça muscular. Reich começou a trabalhar de forma direta no
relaxamento da couraça muscular, concomitantemente com seu trabalho analítico. Ele
descobriu que a perda da couraça muscular libertava considerável energia libidinal e
auxiliava o processo de psicanálise. O trabalho psiquiátrico de Reich lidava cada vez
mais com a libertação de emoções (prazer, raiva, ansiedade) através do trabalho com o
corpo. Ele descobriu que isto conduzia a uma vivência muito mais intensa do material
infantil descoberto na análise.
Reich (1988) começou primeiramente com a aplicação de técnicas de análise de
caráter a atitudes físicas. Ele analisava em detalhes a postura de seus pacientes e seus
hábitos físicos a fim de conscientizá-los de como reprimiam sentimentos vitais em
diferentes partes do corpo. Reich fazia os pacientes intensificarem uma tensão particular
a fim de tornarem-se mais conscientes dela e de eliciar a emoção que havia sido presa
naquela parte do corpo. Ele descobriu que só depois que a emoção ‘engarrafada’ fosse
expressa, é que a tensão crônica poderia ser abandonada por completo. Aos poucos,
Reich começou a trabalhar diretamente com suas mãos sobre os músculos tensos a fim
de soltar as emoções presas a eles.
Na análise final eu não podia livrar-me da impressão de que a rigidez somática representa a parte mais essencial do processo de repressão. Todos
21
os nossos pacientes relatam que atravessaram períodos em sua infância nos quais por meio de certos artifícios sobre o comportamento vegetativo (prender a respiração, aumentar a pressão dos músculos abdominais etc.), haviam aprendido a anular seus impulsos de ódio, de angústia ou de amor... Não deixa nunca de ser surpreendente o modo como a dissolução de um espasmo muscular não só libera a energia vegetativa, mas, além disso, e principalmente, reproduz a lembrança da situação de infância na qual ocorreu a repressão do instinto (Reich, 1988, p. 254-5).
Em seu trabalho sobre a couraça muscular, Reich descobriu que tensões
musculares crônicas servem para bloquear uma das três excitações biológicas:
ansiedade, raiva ou excitação sexual. Ele concluiu que a couraça física e a psicológica
eram essencialmente a mesma coisa.
As couraças de caráter eram vistas agora como funcionalmente equivalentes à hipertonia muscular. O conceito de ‘identidade funcional’ que tive de introduzir, significa apenas que as atitudes musculares e atitudes de caráter têm a mesma função no mecanismo psíquico, podem substituir-se e influenciar-se mutuamente. Basicamente, não podem separar-se. São equivalentes em sua função” (Reich, 1988, p. 230-31).
A terapia reichiana consiste em dissolver cada segmento da couraça, começando
pelos olhos e terminando na pélvis. Cada segmento é uma unidade mais ou menos
independente com a qual se precisa lidar separadamente. Três instrumentos principais
são usados para dissolver a couraça:
• Armazenamento de energia no corpo por meio de respiração
profunda;
• Ataque direto dos músculos cronicamente tensos (por meio de
pressão, beliscões e assim por diante) a fim de soltá-los;
• Manutenção da cooperação do paciente lidando abertamente com
quaisquer resistência ou restrições que emerjam.
A couraça dos olhos é expressa por uma imobilidade da testa e uma expressão
vazia dos olhos, que nos veem por detrás de uma rígida máscara. A couraça é dissolvida
fazendo-se com que os pacientes abram bem seus olhos, como se estivessem com medo,
a fim de mobilizar as pálpebras e a testa, forçando uma expressão emocional e
encorajando o movimento livre dos olhos – fazer movimentos circulares com os olhos e
olhar de lado a lado.
22
O segmento oral inclui os músculos do queixo, garganta e a parte de trás da
cabeça. O maxilar pode ser excessivamente preso ou frouxo de forma antinatural. As
expressões emocionais relativas ao ato de chorar, morder com raiva, gritar, sugar e fazer
caretas são todas inibidas por este segmento. A couraça pode ser solta encorajando-se o
paciente a imitar o choro, a produzir sons que mobilizem os lábios, a morder e a vomitar
e pelo trabalho direto com os músculos envolvidos.
O pescoço inclui os músculos profundos do pescoço e também a língua. A
couraça funciona principalmente para segurar a raiva ou o choro. Pressão direta sobre os
músculos profundos do pescoço não é possível; portanto, gritar, berrar e vomitar são
meios importantes para soltar este segmento.
O tórax inclui os músculos longos, os dos ombros e da escápula, toda a caixa
toráxica, as mãos e os braços. Ele serve para inibir o riso, a raiva, a tristeza e o desejo.
A inibição da respiração, que é um meio importante de suprimir toda a emoção, ocorre
em grande parte no tórax. A couraça pode ser solta através do trabalho com respiração,
especialmente o desenvolvimento da expiração completa. Os braços e as mãos são
usados para bater, rasgar, sufocar, triturar e entrar em contato com o desejo.
O segmento do diafragma inclui o estômago, plexo solar, vários órgãos internos
e músculos ao longo das vértebras torácicas baixas. A couraça é expressa por uma
curvatura da espinha para frente, de modo que há um espaço considerável entre a parte
de baixo das costas do paciente e o colchão. É muito mais difícil expirar do que inspirar.
A couraça inibe principalmente a raiva extremada. Os quatro primeiros segmentos
devem estar mais ou menos livres antes que o diafragma possa ser solto através do
trabalho repetido com respiração e reflexo do vômito (pessoas com bloqueio intenso
neste segmento acham virtualmente impossível vomitar).
O segmento abdominal inclui os músculos abdominais longos e os músculos
das costas. Tensão nos músculos lombares está ligada ao medo de ataque. A couraça
nos flancos de uma pessoa produz instabilidade e relaciona-se com a inibição do rancor.
A dissolução da couraça, neste segmento, é relativamente simples, desde que os
segmentos mais altos estejam abertos.
O último segmento contém todos os músculos da pélvis e membros inferiores.
Quanto mais intensa a couraça, mais a pélvis é puxada para trás e salientes nesta parte.
Os músculos glúteos são tensos e doloridos; a pélvis é rígida, ‘morta’ e assexual. A
23
couraça pélvica serve para inibir a ansiedade e a raiva, bem como o prazer. A ansiedade
e a raiva resultam das inibições das sensações de prazer sexual, e é impossível
experienciar livremente o prazer nesta área até que a raiva tenha sido liberada dos
músculos pélvicos. A couraça pode ser solta primeiramente mobilizando a pélvis e
fazendo com que o paciente chute os pés repetidas vezes e também bata no colchão com
sua pélvis.
Reich descobriu que à medida que seus pacientes começavam a desenvolver
capacidade para ‘plena entrega genital’, toda sua existência e estilo de vida mudavam
basicamente. Esses indivíduos começavam a sentir que a rígida moralidade da
sociedade, que anteriormente reconheciam como certa, era uma coisa estranha e
antinatural. Atitudes em relação ao trabalho também mudavam de forma nítida. Aqueles
que faziam seu trabalho como uma necessidade mecânica, via de regra largavam seus
empregos para procurar um trabalho novo e vital que preenchesse suas necessidades e
desejos interiores. Aqueles que já estavam interessados em sua profissão muitas vezes
desabrochavam com energia, interesse e habilidades novos.
Reich via mente e corpo como uma só unidade. Ele aos poucos passou de um
trabalho analítico baseado apenas na linguagem, para a análise dos aspectos físicos e
psicológicos do caráter e da couraça caracterológica e para uma maior ênfase no
trabalho com a couraça muscular e no desenvolvimento de um livre fluxo de bioenergia.
Para ele o self é o núcleo biológico saudável de cada indivíduo.
Reich foi o pioneiro na área da psicologia do corpo e na terapia orientada para o
corpo. Apenas uma pequena minoria de psicólogos interessou-se seriamente pela
psicologia do corpo. Entretanto, a valorização da importância dos hábitos e tensões
físicas como hipóteses diagnósticas está crescendo continuamente; muitos terapeutas
foram influenciados pelo trabalho de Frizs Perls, que fez análise com Reich.
1.2.5 A Gestalt-terapia
Frederick S. Perls considera a cisão mente/corpo da maioria das psicologias
como arbitrária e falaciosa. A atividade mental é simplesmente uma atividade que
funciona em nível menos intenso que a atividade física. Assim, os corpos são
manifestações diretas de quem se é; Perls sugere que pela simples observação dos mais
24
aparentes comportamentos físicos-postura, respiração, movimentos – pode-se aprender
muito sobre si mesmo.
Perls (1976) descreveu a Gestalt-terapia como uma terapia existencial, baseada
na filosofia existencial e utilizando-se de princípios em geral considerados
existencialistas e fenomenológicos. Embora a Gestalt-terapia não se tenha desenvolvido
diretamente a partir de antecedentes fenomenológicos e existenciais particulares, vários
aspectos do trabalho de Perls equiparam-se àqueles desenvolvidos em muitas escolas do
existencialismo e fenomenologia.
A ideia de que mente e corpo constituem dois aspectos da existência diferentes
e completamente separados, era uma noção que Perls, junto com a maioria dos
existencialistas, achava intolerável. De acordo com suas objeções a uma cisão mente-
corpo, a aplicação que Perls fazia da teoria da Gestalt na compreensão da personalidade
levou-o a abandonar a ideia da cisão entre sujeito e objeto, e, mesmo, a da cisão entre
organismo e meio. Ao invés de considerar que cada ser humano encontra um mundo
que ele experiencia como sendo completamente separado de si mesmo, Perls acreditava
que as pessoas criam e constituem seus próprios mundos; o mundo existe para um dado
indivíduo como sua própria descoberta do mundo.
Na teoria de Perls (1976), a noção de organismo como um todo é central, tanto
em relação ao funcionamento intra-orgânico quanto à participação do organismo em seu
meio para criar um campo único de atividades. No contexto do funcionamento intra-
orgânico, Perls insistia em que os seres humanos são organismos unificados e em que
não há nenhuma diferença entre o tipo de atividade física e mental. Perls definia a
atividade mental simplesmente como atividade da pessoa toda que se desenvolve num
nível mais baixo de energia que a atividade física.
Esta concepção do comportamento humano consistir em níveis de atividades
levou Perls a sugerir que qualquer aspecto do comportamento de um indivíduo pode ser
considerado como uma manifestação do todo – o ser da pessoa. Assim, na terapia, o que
o paciente faz, como ele se movimenta, fala e assim por diante – fornece tanta
informação a seu respeito quanto o que ele pensa ou diz.
Além do holismo ao nível intra-orgânico, Perls acentuou a importância do fato
de considerar o indivíduo como parte perene de um campo mais amplo que inclui o
organismo e seu meio. Assim como Perls protestava contra a noção de divisão
25
corpo/mente, protestava também contra a divisão interno/externo; considerava que a
questão das pessoas serem dirigidas por forças internas ou externas não tinha nenhum
sentido em si, uma vez que os efeitos causais de um são inseparáveis dos efeitos causais
do outro. Há, no entanto, um limite de contato entre o indivíduo e seu meio; é esse
limite que define a relação entre eles. Num indivíduo saudável este limite é fluido,
sempre permitindo contato e depois afastamento do meio. Contatar constitui a formação
de uma gestalt; afastar-se representa seu fechamento. Num indivíduo neurótico, as
funções de contato e afastamento estão perturbadas, e ele se encontra frente a um
aglomerado de gestalten que estão de alguma forma inacabadas – nem plenamente
formadas nem plenamente fechadas.
A visão holística levou Perls a dar ênfase particular à importância da
autopercepção presente e imediata que um indivíduo tem de seu meio. Os neuróticos
são incapazes de viver no presente, pois carregam cronicamente consigo situações
inacabadas (gestalten incompletas) do passado. Sua atenção é, pelo menos em parte,
absorvida por essas situações e eles não têm nem consciência nem energia para lidar
plenamente com o presente.
A Gestalt-terapia é, sobretudo, uma síntese de abordagens que visa a
compreensão da psicologia e comportamento humanos. Isto não lhe tira a originalidade
ou utilidade; em termos gestálticos, a originalidade e utilidade repousam na natureza do
todo e não na derivação das partes.
Enquanto síntese, a Gestalt-terapia incorporou de forma útil muito da psicologia
existencial e psicanalítica, assim como fragmentos e partes do behaviorismo (a ênfase
no comportamento e no óbvio), psicodrama (a representação de conflitos), psicoterapia
de grupo (trabalho em grupos) e Zen-budismo (mínimo de intelectualização e enfoque
na consciência do presente). O espírito da Gestalt-terapia é humanista e orientado para o
crescimento, o que juntamente com as associações de Perls com o Instituto Esalen,
tornou a Gestalt-terapia uma força importante no movimento do potencial humano.
1.2.6 A psicologia da consciência
Para Birnan (1999) os laços pessoais de William James com a enfermidade
física fizeram com que ele continuamente reexaminasse a relação entre o corpo e a
26
consciência. Ele concluiu que até mesmo a pessoa mais espiritual devia considerar suas
necessidades físicas e tomar consciência delas, uma vez que o corpo é a fonte original
das sensações. Entretanto, a consciência pode transcender qualquer nível de
excitamento físico por um período limitado de tempo.
O corpo, necessário para a origem e manutenção da personalidade, é
subserviente às atividades da mente. Por exemplo, a concentração intelectual pode ser
tão firmemente focalizada "para não só expulsar sensações comuns, mas até a mais
severa dor" (Birnan, 1999, p. 68). Há numerosos relatos de soldados que sofrem sérios
ferimentos, mas não os notam até que a intensidade da batalha se abata. São comuns
também casos de atletas que quebram um pulso, uma costela ou uma clavícula, mas que
não tomam consciência do fato até que o período de jogo termine. Examinando esta
evidência, James conclui que é o foco de atenção que determina se as sensações físicas
externas terão ou não efeito imediato na atividade consciente. O corpo é um instrumento
expressivo da consciência que o habita, mais do que uma fonte de estimulação em si
mesma.
Embora James tenha escrito que o corpo é apenas o lugar onde a consciência
reside, ele nunca perdeu de vista a importância do corpo. Uma boa saúde física, rara na
vida de James, tem sua própria lógica interna "que emana de todas as partes do corpo de
um homem muscularmente bem treinado e penetra na alma que o habita com
satisfação... É um elemento de higiene espiritual de suprema significação" (Birnan,
1999, p. 68).
Para James, a Psicologia não é limitada pela Biologia, por um lado, e pela
Metafísica por outro; incluía quaisquer questões não respondidas a respeito da
existência humana. A extensão de seus escritos é inigualável. Ele era tão interessado e
conhecedor dos fenômenos bioelétricos do sistema nervoso quanto da psicopatologia
dos santos.
James importava-se com o que as pessoas faziam de suas vidas. Ele atribuía à
ciência que ajudou a desenvolver um papel ativo, comprometido – uma Psicologia
dentro do mercado de trabalho. Em certo sentido, ainda se está em dívida com ele e com
sua obra. O alcance que ele propôs para o estudo psicológico é mais amplo do que
muitos são capazes de compreender. Ele era o que hoje se chama de psicólogo
humanista, profundamente consciente das responsabilidades inerentes ao lecionar sobre
27
a consciência; era também um psicólogo transpessoal, sensível aos estados de
consciência mais elevados e impressionado com os efeitos que esses estados ocasionam
nos que os experienciam.
Sua insistência de que havia algo a aprender com os curandeiros e os médiuns,
com as visões dos místicos e com as agudas percepções do óxido nitroso foi confirmada
pelas descobertas da pesquisa de estados alterados. Pode ser que as principais brechas
em no conhecimento da personalidade surjam não de alas de hospitais nem de exames
intensivos de indivíduos em terapia, mas que se revelem em laboratórios de fisiologia e
parapsicologia de todo o mundo.
1.3 O corpo e a dança
A dança é definida pelos dicionários como uma série de saltos e passos
cadenciados e subordinados ao mesmo ritmo e compasso da música que geralmente a
acompanha. Dançar é mover o corpo segundo as regras da dança. Oscilar, saltar, girar,
mover-se com certa cadência. O dançarino é aquele que dança em público por ofício.
Dancista é a pessoa que dança, dançador, dançante.
Garaudy (1980, p. 13) propõe: “que aconteceria se, em vez de apenas
construirmos nossa vida, tivéssemos a loucura ou a sabedoria de dançá-la? Talvez seja
esta uma das perguntas mais importantes formuladas pela juventude, em sua
contestação dos objetivos do mundo que lhe estamos legando”.
Para Garaudy (1980) a dança moderna retoma o sentido que teve para todos os
povos, em outros tempos, depois de quatro séculos de balé clássico e vinte séculos de
um equivocado desprezo pelo corpo, disseminado pelo dualismo platônico contido no
cristianismo. A dança retoma sua condição de expressão, através de movimentos do
corpo organizados em sequências significativas, de experiências que transcendem o
poder da palavra e da mímica. A dança pode ser concebida como um modo de existir;
não apenas um jogo, mas uma celebração; a participação e não apenas um espetáculo
para assistir; uma expressão ligada à religiosidade e à magia, ao trabalho e à festa, ao
amor e à morte. Os homens podem voltar a dançar em todos os momentos solenes de
sua existência: a guerra, a paz, o casamento, os funerais, a semeadura e a colheita.
28
Garaudy (1980) também chama a atenção para a etimologia da palavra dança,
que tem sua origem no sânscrito e significa tensão. A dança na antiguidade tinha a
valoração da vida vivida intensa, inteira e compartilhada na tensão entre os mistérios
humano e divino. Antes de ser espetáculo, a dança era celebração da existência,
expressão da relação do homem com a natureza, a sociedade e seus deuses. Por meio da
dança, o homem se identificava com os ritmos da natureza, reconhecendo e imitando os
movimentos e as forças naturais que o cercavam.
Mais do que a expressão e a celebração da relação homem/natureza, a dança
evoca nas suas origens um caráter comunitário, ligado a todos os aspectos da
sobrevivência humana, tanto no trabalho, como nos costumes e nos cultos às
divindades. Antes de ser independente como arte, a dança esteve vinculada a conteúdos
e práticas religiosas e de cerimoniais. Entre os povos primitivos a dança era mais que
um meio de diversão, tinha uma finalidade prática e até certo ponto mágica, pois se
acreditava que fosse influenciada por forças ocultas que se procuravam utilizar em
proveito da humanidade.
Garaudy (1980) lembra ainda que as danças eram simbólicas e executadas
com a intenção de atrair o favor dos deuses para alguma atividade humana, aparecendo
assim, tantos tipos de dança quantos objetivos diferentes tiveram os povos da
antiguidade. As danças agrícolas, as danças purificadoras, a dança da caça ou da guerra
são exemplos deste vínculo de funcionalidade da dança com o humano. Os egípcios, os
assírios, os caldeus, enfim, todos os povos primitivos tiveram suas danças
características, cujos movimentos, isolados ou em conjunto, foram preservados pela
História através de gravuras, quadros e objetos encontrados nos monumentos. Mas foi
entre os gregos que a dança encontrou e atingiu seu apogeu, como parte da educação,
estando presente não só nas cerimônias, mas em festividades e jogos. Os monumentos
gregos recordam a multiplicidade e variedade de suas danças, que os historiadores
antigos agrupavam em dois tipos principais: a pírrica, de cunho militar, com ritmo
pesado e música simples, geralmente acompanhada por percussão; e a cíclica, que
englobava todas as outras variedades de danças alegres, acompanhadas de música viva,
ao som da cítara.
Já para os romanos, a dança não teve grande importância, passando a ser
apreciada mais como espetáculo. Com a invasão dos bárbaros, explica Garaudy (1980),
29
ela desapareceu completamente em meio às devastadoras lutas invasoras, permanecendo
esquecida por toda a Idade Média, ressurgindo com a Renascença. Restaurada na Itália e
depois na França, reapareceu novamente sob as mais diversas formas, retomando o
esplendor adormecido por séculos. A dança, como expressão de sentimento, é um
reflexo da índole e dos costumes dos povos e, portanto, evoluiu com a humanidade.
A transcrição de um texto consagrado da literatura, descreve com exatidão a
importância que a dança pode assumir para um ser humano. O livro Zorba – o grego, de
Nikos Kazantzakis (1974, p. 91) releva a sublimação de uma dor enlouquecedora
através da dança:
Deu um salto, irrompeu para fora do barracão, chutou seus sapatos para o ar, arrancou colete, camisa, enrolou a calça nos joelhos e pôs-se a dançar. Jogou-se à dança, batendo as mãos, erguendo-se no ar, fazendo piruetas, como se fosse de borracha. De repente, ele atirava-se para o alto como se quisesse vencer as leis da natureza e sair voando. Sentia-se nesse corpo cheio de vermes a alma em luta para empolgar a carne e jogar-se com ela nas trevas, como um meteoro. Ela sacudia o corpo que tombava, não podendo mantê-lo no ar por muito tempo; ela o impulsionava de novo, impiedosa, dessa vez um pouco mais alto, mas o coitado caía, arquejante. Zorba franzia as sobrancelhas, sua face havia tomado um ar inquietantemente grave. Não gritava mais, com as mandíbulas cerradas ele se esforçava para atingir o impossível. - Zorba! Zorba! Já chega! – gritei ...Podia gritar a vontade. Como poderia Zorba ouvir os gritos da terra? Suas entranhas se haviam transformado nas de um pássaro.
30
CAPÍTULO II
O MECANISMO PSICOSSOMÁTICO
O ponto de vista ocidental de que corpo e mente são partes separadas do homem
é tão velho quanto a história escrita; embora essa fatídica confusão tenha sido
codificada por Descartes, já existia muito tempo antes que ele tivesse escrito e afetou a
psiquiatria mais que qualquer setor. Mitologias, religiões e filosofias preocuparam-se
com a relação entre o corpo e a mente, mas em épocas diferentes e pensadores
diferentes avaliaram-na diferentemente. Dethelefsen & Dahlke (2003) explicam que a
noção platônica era de que a mente governa o corpo, que não é senão o executor de
desejos e ideias. Hipócrates, por outro lado, considerava os processos psicológicos
como nada mais que epifenômenos, insignificantes reflexos dos processos corporais que
também estavam sujeitos às leis universais do universo físico.
O homem primitivo explicava os acontecimentos naturais em termos
psicológicos. O homem moderno primeiramente pôs de lado esse ponto de vista
sobrenatural e espiritual sobre o mundo inanimado e tentou depois desespiritualizar seu
ponto de vista a respeito de si próprio, até um ponto em que a personalidade humana
passou a ser considerada sem importância para o estudo científico do homem. Só no fim
do século XIX esse pêndulo começou a oscilar de volta à personalidade – emoções e
motivações do homem – tornou-se objeto legítimo de indagação metódica e controlada,
isto é, científica. Dethlefsen & Dahlke (2003) lembram que o método psicossomático na
medicina é a primeira tentativa de estender a personalidade passada ao próprio
problema mente-corpo.
As reações corporais às emoções se incluem entre as experiências mais comuns
da vida cotidiana. A pessoa sente medo: seu pulso bate mais depressa e sua respiração
fica mais funda. A pessoa sente cólera: suas faces ficam coroadas e seus músculos ficam
tensos. A pessoa sente repugnância: seu estômago começa a virar. Um palhaço faz com
que o diafragma tenha contrações espasmódicas e os músculos faciais se contorçam:
desata-se a rir. Presencia-se um acontecimento trágico ou perde-se um ente querido: as
glândulas lacrimais começam a segregar lágrimas e chora-se.
Para Pacheco (2004) as sensações subjetivas como medo, cólera, repugnância,
alegria e tristeza mobilizam assim processos corporais altamente complexos como
31
alterações no ritmo cardíaco e na circulação do sangue, na respiração, na atividade do
estômago e dos intestinos, no sistema muscular e nas glândulas. Como esses fenômenos
fazem parte da experiência humana cotidiana, são consideradas muito naturais e não se
reconhece que quando se ri ou chora está-se envolvido em um dos maiores mistérios da
ciência biológica. Todos esses processos, nos quais os primeiros elos de cadeia de
acontecimentos são percebidos subjetivamente como emoções e os elos seguintes são
objetivamente observados como alterações em funções corporais, são chamados
fenômenos psicossomáticos. Sua natureza parcialmente subjetiva e parcialmente
objetiva levou à confusão prevalecente sobre a dicotomia de mente contra corpo. A
elevação da pressão arterial e aceleração do ritmo cardíaco que acompanham a cólera ou
o medo podem ser estudadas objetivamente através de medição. No entanto a cólera e o
medo só podem ser experimentados subjetivamente e pela pessoa envolvida. Este fato
de acontecimentos fisiológicos e psicológicos que ocorrem no mesmo organismo foi
interpretado em termos de uma divisão entre uma psique (alma) e um soma (corpo), e o
estudo do homem foi igualmente separado nesses dois métodos gerais, que
permaneceram separados e isolados durante séculos.
De acordo com Pacheco (2004) os sentimentos influenciam continuamente as
funções corporais. Todavia, experiências que funcionam em sentido contrário são
igualmente comuns, isto é, mudanças corporais exercem efeito sobre o psiquismo. Este
tráfego funciona nos dois sentidos. Ingere-se álcool, que altera a química corporal;
prontamente reage-se com mudanças de disposição. Alguns perdem as inibições e
tornam-se agressivos, outros ficam sentimentais e chorosos.
Parece claro que os seres humanos são, simultaneamente, físicos, psíquicos,
emocionais e sociais. É apenas o ponto de observação de onde se preferimos vê-los que
os faz parecer diferentes. Do ponto de vista psicológico, aproveita-se do fato de entes
vivos serem subjetivamente conscientes de grande parte do que ocorre em seu interior:
sentem fome quando o estômago está vazio, dor quando os processos normais do corpo
estão perturbados, prazer quando as necessidades estão satisfeitas. Além disso, os seres
humanos podem comunicar esses acontecimentos psicológicos internos empregando
palavras para descrever estados de espírito subjetivamente percebidos. A faculdade de
comunicação verbal é o que torna possível o estudo psicológico preciso de seres
humanos. Para Pacheco (2004) o ponto de vista fisiológico em geral ignora a
32
comunicação subjetiva em favor da medição rigidamente mecânica de reações
observáveis, exteriores com muita frequência.
Tenta-se demonstrar aqui a maneira violenta como os modos de produção
capitalista se apropriam do produtor, ou seja, a apropriação do comportamento do
homem. O trabalho se imiscui e determina o comportamento do Homem, quando não se
identificam coisa e outra. O trabalho, hoje, é o trabalho alienado, descolado do Homem
que o realiza, expropriado.
Só existe um fato histórico, o de que o Homem precisa sobreviver. Sobreviver é
literalmente controlar o meio ambiente, transformá-lo à sua imagem e semelhança. Na
opinião de Pacheco (2004), apenas por esta razão, pode-se perceber que: 1) lidar com o
controle que o indivíduo tem sobre o meio é lidar com todo o comportamento de
qualquer indivíduo, em qualquer sistema social e, concomitantemente, 2) qualquer
escala, ou experimento, por mais completo que seja, não será capaz de lidar com o
fenômeno como um todo, transformando-se em um instrumento ou tosco ou fluído.
O problema do controle do homem sobre o seu meio e/ou sobre si mesmo é
fundamental para a Psicologia, e não poderia ser de outra forma.
Não se trata do início da reflexão sobre o homem, pois esta tarefa sempre foi
exercida pela filosofia desde Aristóteles, trata-se de transformar a reflexão do homem
em ciência.
Gorz (1999) esclarece que a Revolução Burguesa tratou de deslocar o processo
de exploração, de diferenciação entre classes, do domínio divino-hereditário para o
plano da livre concorrência – o poder herdado cede terreno ao poder adquirido. A trama
econômico-social passa a depender da capacidade de apropriação do trabalho alheio, a
mais-valia se dá então, na proporção em que o trabalho do homem puder ser colocado
sob controle, na medida em que os ditames de sangue são substituídos pelos ditames da
produção.
Tempo em que a capacidade de acumulação do Capital é inversamente
proporcional ao controle do homem sobre seu próprio meio ambiente.
Neste momento, o pensamento humano necessita transformar a reflexão sobre o
homem na intervenção sobre si mesmo.
Pacheco (2002) apresenta algumas observações sobre os mecanismos de
psicossomatização:
33
a) Mecanismo de formação das doenças
São basicamente dois os mecanismos da formação das doenças: um, o somático,
no qual o desequilíbrio se inicia no corpo para depois acometer o psiquismo; o outro,
aquele em que o desequilíbrio acomete inicialmente a mente, o psiquismo, para, em
seguida, se estender ao corpo.
O primeiro mecanismo tem geralmente etiologia física e o segundo etiologia
psíquica. O mecanismo somático era prioritário em outras épocas em que a virtude era
mais calma: na atualidade o segundo mecanismo se tornou mais comum em virtude da
vida agitada e atribulada do homem moderno, em função do estresse. Já se aceita bem o
mecanismo somático das doenças desde a sistematização da medicina como ciência e,
nos últimos quinze anos, muito se tem esclarecido neste sentido. Hoje em dia já se
reconhece como etiologia, além das más condições sanitárias, do micróbio, da
hereditariedade e da desnutrição, outros fatores como o tabaco, o alcoolismo, a
alimentação desregrada, o sedentarismo, etc. O mecanismo psicossomático ainda é mal
aceito pela ciência, apesar dos fatos e demonstrações óbvias neste sentido. Já se
pesquisou e se fundamentou, na teoria do estresse, uma compreensão que abriu as portas
para uma breve constatação laboratorial desta realidade inequívoca.
O psiquismo hoje causa mais doenças do que se imagina e, senão é a causa, é o
seu coadjuvante. Importa, porém, bem compreender como se processa esta somatização.
Muitos ainda se equivocam ao confundir somatização inconsciente com somatização
consciente, que é artificial, criada como um método de fuga da realidade não desejada.
Não é preciso estar nervoso, ou com um problema pessoal, para somatizar. A
somatização é um processo inerente a qualquer um, dentro de suas características
pessoais. Pode ser resultante de conflitos, traumas e dificuldades intrínsecas totalmente
ignoradas, alojadas nos porões do inconsciente. Assim sendo, qualquer um pode e
normalmente somatiza, isto é, estende o seu desequilíbrio íntimo até o corpo físico.
b) Níveis de acometimento das doenças
No mecanismo somático, a doença comumente inicia-se através de distúrbios
funcionais, por adaptações celulares; posteriormente, através de distúrbios lesionais
leves, por degeneração celular e, finalmente, por distúrbios lesionais mais intensos, que
provocam a morte celular (necrose).
34
No mecanismo psicossomático, inicia-se comumente com distúrbios sensoriais,
por alteração apenas dos sentidos; posteriormente, através de distúrbios funcionais por
sobrecarga de estímulos que levam a adaptações celulares; em seguida, através de
distúrbios lesionais leves e, posteriormente graves, por degeneração, e, mais tarde, por
necrose celular.
A sequência em patologia é a mesma tanto no mecanismo somático como no
mecanismo psicossomático, exceto a fase sensorial que somente existe neste último.
Todavia, o mecanismo fisiopatológico, isto é, a forma em que se processa o
distúrbio celular, é diferente.
Um se processa por agressão física e química provinda do exterior, o outro por
agressão química do interior, consequente de desequilíbrio originário do sistema
nervoso e glandular.
c) Órgão de choque
Existe em cada organismo um tecido de menor resistência, chamado “Locus
Minus Resistente”. Este tecido ou órgão é mais suscetível de desequilibrar-se ante as
adversidades do meio exterior ou interior. O que lhe dá esta fragilidade são defeitos em
sua estrutura genética, provindos de transmissão hereditária. Um órgão ou tecido
também intensamente agredido pode se fragilizar, apesar de boa estrutura genética e,
com isto, tornar-se um órgão de choque (Exemplo: excesso de café e gastrite, fumo e
efisema, etc.). Esse tecido ou órgão, que pode ser qualquer um, é normalmente aquele
que, com frequência, manifesta primeiro os sintomas de desequilíbrio funcional,
acompanhado de desequilíbrio de outros que mais se relacionam com ele. Exemplo:
constipação e, posteriormente, hemorróidas ou diverticulose, diabetes e, posteriormente,
alterações do aparelho respiratório, etc. Esse tecido deve ser estimulado e poupado
sempre que possível.
d) Agente desencadeante - agente agressor
São geralmente estímulos externos de grande poder de agressão, ou de grande
potencial desequilibrador. Exemplo: frio, calor, pressão, umidade, vento, irritantes
químicos, substâncias alergênicas, traumas emocionais, etc.
Um agente desencadeante pode se tornar uma etiologia (causa) se for muito
intenso (Exemplo: uma queimadura química, ou por calor, um envenenamento, etc.).
35
Porém, na maioria das vezes, desencadeia um desequilíbrio já iminente, em função de
desordens somáticas ou psicossomáticas.
e) Constituição e hereditariedade
É o estado orgânico adquirido de seu ascendente que concede ou não ao
indivíduo um corpo forte e com uma grande capacidade de defesa e de adaptação às
agressões do meio exterior e interior. Não é fruto de uma conquista, mas de uma
herança. Essa boa constituição pode ser mantida, conservada e transmitida para os seus
descendentes; pode, porém, ser perdida através de abusos e descuidos e, assim, em
decadência, também ser transmitida aos seus descendentes, o que significa dizer que, se
o indivíduo pode, por possuir uma boa constituição, cometer inúmeros abusos sem,
muitas vezes, sofrer as consequências imediatas que somente aparecerão tardiamente,
seu filho não poderá fazer o mesmo porque, em consequência de já possuir um
organismo menos sadio, quaisquer abusos menores terão repercussão muito mais
rapidamente.
Assim, pode-se transmitir uma constituição má aos filhos, embora se tenha
aparentemente uma boa constituição, porque a ausência de sintomas não significa
rigidez orgânica interior.
É comum observar que indivíduos de boa constituição tiveram pais que viveram,
pelo menos na juventude, em cidades do interior, em ambiente saudável, ou, então, que
tiveram vidas regradas.
f) Estados da doença
A doença existe muito antes de se manifestar sob forma de sintomas, quer no
ambiente celular ou no plano dinâmico, isto é, no plano somático ou no plano
bioplástico (psicossoma).
Apesar de sua enorme capacidade de adaptação, o organismo humano sofre, ao
longo de muitos anos, acúmulo de substâncias não assimiláveis, que minam e arruínam
progressivamente a sua harmonia. Sofre, também, acúmulo de tensões dinâmicas que
sobrecarregam o corpo com excesso de estímulos.
O organismo nestas condições já se encontra enfermo. Embora não se manifeste
ainda claramente através de sintomas, está em estado de predisposição latente a um
desequilíbrio, a qualquer momento em que chegue ao seu limite ou em que algum
agente agressor o catalise (desencadeie) e o leve ao estado manifesto. É, pois, um
36
engano confundir saúde com ausência de sintomas. Saúde é uma condição plena e não
apenas exterior.
g) Função da doença
A doença não surge somente como forma de desequilíbrio, consequência de um
fracasso orgânico. O organismo humano, em sua sabedoria ancestral, utiliza-se da
doença física como forma de alertar o indivíduo de que algo não vai bem. Utiliza-a,
também, como forma de aliviar pressões e tensões em nível mais profundo e de maior
importância para o todo. Exemplo: uma gastrite, além de drenar tensões acumuladas,
desvia a mente do exterior para o interior do corpo, desligando-a dos problemas e
conflitos externos.
A doença física pode ser encarada, algumas vezes, como uma cura num nível
mais profundo, um alívio num outro plano. Assim, querer o doente sanar apenas o
corpo, sem sanar a mente, é fechar as comportas por onde lhe chegava o alívio e,
portanto, comprimi-lo. Além disso, arrisca-se o doente a obrigar a doença a drenar, ou
escoar-se, num outro órgão mais importante e, dessa forma, colocar-se diante de um
risco muito maior.
A doença, muitas vezes, principalmente se incurável, abranda o espírito, conduz
à humildade e à limitação do ego, como forma de aprendizado edificante. A sua
presença já é, por si, uma grande cura, a liberdade do espírito.
Dychtwald (1994) defende que o processo de leitura do corpo é explicado como
sendo o caráter do indivíduo, tal como se manifesta em seu padrão típico de
comportamento também se revela a nível somático nas formas e movimentos do corpo.
A soma total das tensões musculares, vista como uma Gestalt, constitui a “expressão
corporal” do organismo. A expressão corporal é a perspectiva somática da expressão
emocional típica que, a nível psíquico, é vista como “caráter”.
Dentro do referencial bioenergético existe toda uma variedade de “caracteres” e
de “expressões corporais”, identificadas como doentias ou neuróticas. Através do
cuidadoso diagnóstico da condição física e psicológica da pessoa é possível alcançar um
entendimento mais completo da forma pela qual aquele indivíduo veio a modelar sua
vida e si mesmo. Assim pode-se inferir que pensar a dança é pensar esta relação tal
como foi formulada historicamente e tal como sempre se colocou para os intérpretes da
arte do corpo expressivo: emoção fisiológica e forma psicossomática.
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Uchôa (1996) afirma que a música e a dança são artes intrinsecamente
associadas em diversas culturas. Povos em várias partes do mundo praticam em seus
rituais uma arte composta de música e dança sem haver uma distinção clara que
caracterize especializações e a separação dos componentes musicais e coreográficos
como artes independentes. Se em diversas culturas a música tornou-se uma arte
independente, não se pode dizer o mesmo da dança, que raramente está dissociada da
música.
Uchôa (1996) ressalta que o gesto e o movimento corporal estão intimamente
ligados e conectados ao trabalho musical. A realização musical implica tanto em gesto
como em movimento, porque o som é, também, gesto e movimento vibratório, e o corpo
traduz em movimento os diferentes sons que percebe. A música e a dança compreendem
significados muito abrangentes, tal como os cheiros, as músicas convidam a reviver o
imaginário. Ao ouvir certas músicas, muitos são os sentimentos revividos, marcando
momentos agradáveis ou tristes. Não só as memórias são ativadas, mas também o corpo,
as crianças, mesmo as pequenas, sabem que dançar é uma atividade que está associada à
música e buscam produzir com seus corpos movimentos que acompanhem os ritmos e
as melodias sugeridas nas canções que escutam. Por isso cantam, batem palmas, mexem
os braços, quadris e as pernas de forma alegre e entusiasmada se a melodia assim
convidar e for desejo delas se expressarem desta forma alegre e entusiasmada se a
melodia assim convidar e for desejo delas se expressarem desta forma.
Para Uchôa (1996), ouvir, compreender e interpretar estruturas rítmicas, como
sequência de batidas de palmas, é uma proposta que envolve ritmo, pausa e duração.
Esse exercício integra o pensamento auditivo como pensamento para o movimento.
Quanto mais o ambiente sonoro, especialmente da criança, puder ser expandido e
diversificado, favorecendo múltiplas experiências, mais intenso e significativo será o
contato e o conhecimento do próprio corpo, como dos sentimentos e ideias.
Ouvir música, aprender uma canção, participar de uma dança circular, brincar
com ritmos, dançar simplesmente, podem ser atividades que despertam, estimulam e
desenvolvem o gosto pela atividade musical, além de atenderem à necessidade de
expressão que passam pela esfera afetiva, estética e cognitiva. Mantém contato estreito
e direto com as demais linguagens expressivas (movimento, expressão cênicas, artes
visuais), e por isso torna possível a transformação dos corpos e das doenças.
38
CAPÍTULO III
A ARTE COMO TERAPIA
Capelier (1990) resume a condição humana em três premissas:
- o homem é este ser que se faz imagem;
- o homem é este ser que se faz das imagens;
- o homem é este ser que se faz as imagens.
Entretanto, a imagem não é uma característica humana específica. No reino
animal, há a presença das formas e das cores que, além de sua função específica para a
conservação do organismo, desempenham um papel na aparência deste, ligado ao que se
poderia chamar de uma função estética num sentido amplo, capaz de tocar os sentidos
de um parceiro biológico, diretamente associadas às necessidades de reprodução, de
defesa ou de alimentação. Se o pavão real se pavoneia, é preciso acreditar que o
espetáculo que ele dá seduz a fêmea. Essa reação, ligada a sensações, indica que há um
registro morfológico das qualidades do objeto do pulsão. Portanto, o registro sensorial
se faz somente sob a forma de uma imagem. Em compensação, o que é próprio do
homem é a capacidade de investir uma forma qualquer para dar-lhe a qualidade de
imagem.
Aliás, não é somente em nível de atrativo que a lógica da imagem se registra,
mas também naquele da repulsa, visto que a beleza não é, de maneira alguma, o
contrário do horror, e ambos estão a serviço da proteção do organismo.
A função estética está ligada, em suas origens, à evocação mágica e aos
emblemas da riqueza do poder à medida que objetivada por elementos ao mesmo tempo
estimados e supérfluos. O formidável trabalho das iluminuras nos livros de oração é o
exemplo mais puro do sentido acrescentado ao texto pela beleza da imagem. No
supérfluo, há também a ideia de festa, de maneira que é vivida em todos os carnavais,
como desafio e triunfo sobre a morte. Mesmo nas festas cívicas e laicas, a representação
dos personagens históricos e dos acontecimentos, através de uma formalização estética,
dá à história uma dimensão mitológica. Transformar o ordinário em extraordinário
também é função estética: os objetos mais comuns adquirem uma qualidade sublime em
39
uma composição de Chardin.1
Dessa maneira, desde o início de sua história, o homem acrescentou à fabricação
dos objetos um excedente não-funcional ligado à forma e à decoração. O trabalho de
realização era, assim, marcado na sua individualidade e na sua unicidade. Nele,
encontra-se uma tentativa de captação do outro, mas também uma necessidade de se
apropriar das obras como autor, portanto, uma tentativa de sobreviver como sujeito.
A eficácia da reprodução industrial, que caracteriza a época atual, aumentando a
capacidade de consumo da população, exige um esforço constante de variação na
concepção dos objetos. As formas reproduzidas em séries se equilibram pela renovação
constante dos estilos e dos modos, rapidamente difundidos e gastos. É por essas
mudanças tão frequentes quanto efêmeras dos materiais e das técnicas que o artista
significa seu tempo, ao passo que o consumidor marca sua adesão à época renovando,
frequentemente, suas aquisições.
Por outro lado, podem-se observar tendências sociais de resistência a esses
diktats, simbolizados através do atrativo pelo objeto único, pelo artesanato, pelo gosto
das práticas antigas e folclóricas. Há ainda uma tendência muito marcante pela
conservação do passado, entendido como "patrimônio", assim como um interesse
crescente pela arqueologia e pelas modalidades de expressão das populações pré-
industriais. As obras de arte também são submetidas a uma grande usura de difusão;
quanto aos artistas, são obrigados a encontrar os meios de se diferenciarem para
chegarem a existir em um universo onde os embaraços puramente artísticos se
abrandaram de tal maneira, que tudo parece possível.
Considerando-se que não existem mais cânones acadêmicos, os critérios que
determinam uma hierarquia estética entre as obras de arte e, no máximo, sua identidade
enquanto tal, tornam-se incertos. É por isso que uma atividade como aquela que
propõem os Arte-Terapeutas é, sob esse nome, concebível somente na amplitude de
ideias e de práticas que caracterizam a produção artística atual.
O trabalho de arte-terapia se orienta de acordo com várias tendências. As mais
próximas de clínica psicoterápica consideram a atividade plástica como secundária, o
efeito terapêutico sobrevém somente das trocas verbais em torno do conteúdo da obra.
A expressão plástica é, então, utilizada como meio de aceder a comunicação verbal ou
1 Jean Baptiste Siméon Chardin (1699-1779), pintor e pastelista francês.
40
como a única maneira de estabelecer uma comunicação. Mesmo que a representação
gráfica e a modelagem sejam atividades completamente justificáveis em um processo
psicoterápico, ela não parece depender da arte-terapia, porque os problemas próprios à
representação simbólica nela são ignorados. A arte é um instrumento dentro da Arte-
Terapia que é um processo de saúde mental.
Para Philippini (2010) a arte-terapia é um processo de tratamento que decorre do
uso de modos expressivos diversos que se utilizam da materialização de símbolos para
conectar os mundos internos e externos da pessoa. Tais criações simbólicas manifestam
e indicam níveis profundos e subconscientes da psique, delineando um registro que
permite a comparação, no nível da consciência destas informações, proporcionando
insights que geram a transformação e expansão da estrutura psíquica. É um processo
que deve ser de preferência não verbal.
Philippini (2010) argumenta que a trajetória da criatividade na arte-terapia tem a
finalidade de concluir, resgatar e ampliar potencialidades submersas, de trazer à tona
sentimentos, de oferecer forma e materialidade ao que é intangível, esquecido, disperso,
reprimido e compreender conteúdos inconscientes para estruturar a progressão de um
mundo interior mais equilibrado.
Jung (1978) afirma que a “arte é a expressão mais pura que há para a
demonstração do inconsciente de cada um. É a liberdade de expressão, é sensibilidade,
criatividade, é vida”. O ser humano tem necessidade de expressar-se, e ao trabalhar a
arte como processo terapêutico, está exercitando suas dimensões mental/cognitiva,
física, emocional e imagética. A ativação da energia psíquica através da arte traz à tona
a emoção, pensamentos limitadores, o reconhecimento de seus medos e verdadeiros
sentimentos organizando sua personalidade como um todo, integrando o emocional ao
racional.
Philippini (2010) afirma: “assim com materiais expressivos diversos,
treinamento adequado e disponibilidade interna, temos a bagagem pronta para a
fascinante jornada de caminhar ao lado dos que buscam a si mesmos. E a cada imagem,
e a cada símbolo vamos encontrando o outro, e a nós mesmos”.
Pesquisas na área de neurologia têm comprovado a existência de um mecanismo
na maneira do cérebro aprender por imitação que pode validar a importância da prática
educativa com grupos. Trata-se do neurônio-espelho:
41
Um neurônio-espelho é um neurônio que dispara tanto quando um animal executa uma ação quanto quando um animal observa a mesma ação ser executada por outro animal (especialmente da mesma espécie). Assim, o neurônio espelha o comportamento de outro animal, como se o observador estivesse agindo... Estes neurônios podem ser importantes para o entendimento das ações de outras pessoas e para a aprendizagem de novas habilidades por meio da imitação. (http://psicologiarg.blogspot.com/2008/09/neurnios-espelho.html, 2010)
Ficou demonstrado que os neurônios-espelho desempenham uma função
essencial para o comportamento humano, uma vez que eles são acionados sempre que o
indivíduo observa uma ação de outra pessoa. E o mais interessante é que tal
espelhamento não depende da memória. Se uma pessoa faz um movimento corporal
complexo, que o outro nunca realizou antes, seus neurônios-espelho identificam no
próprio sistema corporal os mecanismos proprioceptivos e musculares correspondentes
e, então, tende-se a imitar, inconscientemente, o que se está observando. Mas os
neurônios-espelho possibilitam não somente a compreensão direta das ações dos outros,
mas também das suas intenções, o significado social de seu comportamento e das suas
emoções.
Philippini (2010) destaca que o sentimento e a vivência de apoio facilitados no
grupo assumem uma dimensão simbólica de solidariedade e cooperação, já que a
experiência alheia remete à própria vivência. É através da relação com o outro que a
pessoa tem a oportunidade de experimentar novos papéis pela comparação com
diferentes tipos de atitudes originadas frente a uma mesma situação explicitada como
tarefa. É possível entender a si próprio através das ações de outra pessoa. O símbolo une
e oferece corpo à energia psíquica para que a pessoa entre em contato com níveis mais
profundos e desconhecidos do seu próprio ser e cresça com estas descobertas. É ele que
une o inconsciente à consciência.
É através do processo de fazer arte que o sujeito materializa, traz para a
realidade as imagens de que seu psiquismo é constituído. O desenvolvimento pessoal no
grupo acontece a partir do momento que o sujeito se vê e vê, através da produção
imagética do outro. Ele aceita e se vê inserido na interdependência de todas as outras
formas de vida à sua volta.
Para poder conduzir um grupo tendo como objetivo o tratamento
psicoterapêutico é preciso que o profissional tenha disposições e conhecimentos
específicos.
42
Fundamentalmente, eles pertencem a três domínios: aquele da técnica das
atividades artísticas, aquele da psicologia da representação e da expressão e aquele da
arte, sua significação e sua história. É importante salientar que as competências a serem
adquiridas não significam uma especialização em cada uma dessas três disciplinas, o
que seria impossível, mas que elas exigem uma preparação contínua de certas zonas que
concernem o procedimento arte-terapêutico.
O arte-terapeuta deve possuir elementos teóricos que lhe permitam observar os
comportamentos de cada sujeito de um ponto de vista funcional, assim como evolutivo,
a fim de continuar sua atividade e orientar suas pesquisas. Convém-lhe ter uma noção
simples, mas operatória, das teorias psicológicas que levam em conta o processo de
formação das imagens e da construção das representações. No desenvolvimento que vai
desde a concepção mental de uma imagem até sua objetivação em uma representação
concreta intervém um conjunto de fatores e de condições cujo estudo torna-se
necessário para se compreender o processo do sujeito e as dificuldades que ele pode
encontrar. Por outro lado, o conhecimento profundo das razões de transformações da
representação em relação à idade permite melhor dosar a utilização dos recursos
terapêuticos.
Assim, é preciso um certo hábito de escutar aquilo que na produção do sujeito
pode ser de ordem do inconsciente, não exatamente para "interpretar" ou dar aos
conteúdos explícitos suas significações implícitas, mas sim para confundir uns com os
outros. Não é o conteúdo inconsciente que se torna consciente, mas pode-se deduzir da
produção consciente – palavra ou representação – aquilo de que o funcionamento
inconsciente é a causa.
As experiências psicoterapêuticas e psicanalíticas pessoais conduzem o arte-terapeuta a uma leitura mais rápida e mais eficaz da relação transferencial, quer dizer, do conjunto dos sentimentos e das reações que tal ou tal paciente e sua produção o inspiram. Na ausência dessa possibilidade, o animador deve limitar-se a intervenções de apoio e de acompanhamento dos sujeitos com os quais se instala espontaneamente uma relação positiva. (OSTROWER, 1998, p. 21-33).
Poder-se-ia perguntar qual é a diferença entre o trabalho de um animador que
acompanha cada paciente na aventura criativa, comentando intuitivamente suas
produções e o de um terapeuta que possui um código de interpretação, psicanalítico ou
43
outro, apto a dar à expressão do paciente um sentido novo religado à subjetividade
deste. De acordo com as condições de tratamento, uma ou outra intervenção se justifica
tendo, ambas, efeitos terapêuticos. Se as condições de trabalho são pouco rígidas
(horário flexível, grupos abertos, assiduidade não garantida, etc.), recomenda-se a
primeira modalidade, mesmo que seja um profissional da psicologia quem intervém. Se,
por outro lado, a assiduidade e o enquadre estão bem "seguros", podem-se tentar
promover relações mais profundas com o outro. Em todo caso, é preciso saber que a
arte-terapia não é uma técnica psicanalítica e que a teoria freudiana do inconsciente,
ainda que sirva para compreender certos comportamentos, produções e transformações
nos sujeitos, não se constitui o meio para levantá-los.
O contrário seria não somente suspeito, como nocivo, visto ser em seu próprio
processo que o arte-terapeuta em formação toca os limites e as possibilidades
terapêuticas da atividade artística. É pela elaboração de seu desejo de "se conhecer" que
ele poderá ajudar o outro a aceitar-se a si próprio.
Portanto, pode-se concluir dizendo que todos os profissionais que trabalham no
domínio da pedagogia (ensinantes, educadores) ou aqueles da assistência (enfermeiros
psiquiátricos, ergoterapeutas, fonoaudiólogos, psicólogos, psiquiatras) e que têm uma
atração pelas profissões da arte podem, passando por uma formação instrumental,
exercer a arte-terapia no domínio de sua formação de base (artística, pedagógica,
psicológica). É evidente que em certos contextos o processo terapêutico será mais
profundo, visto que visa mais ou menos à estrutura inconsciente do sujeito.
3.1 A evolução neurológica da musicalidade
Eysenck & Keane (1994) esclarecem que as origens evolutivas da música
encontram-se envoltas em mistério. Muitos estudiosos suspeitam que a expressão e a
comunicação linguística e musical tiveram origens comuns, e, de fato, separaram-se há
várias centenas de milhares ou talvez até mesmo há um milhão de anos atrás. Há
evidências de instrumentos musicais datando da Idade da Pedra e muitas evidências
presuntivas sobre o papel da música na organização de grupos de trabalho, festas de
44
caça e ritos religiosos; nesta área, porém, fabricar teorias é demasiado fácil e
desacreditá-las, demasiado difícil.
Ainda assim, ao estudar a antogênese da música, conta-se pelo menos com uma
vantagem não disponível em questões referentes à linguagem. Embora ligações entre a
linguagem humana e outras formas de comunicação animal pareçam ser limitadas e
controversas, há pelo menos um caso no reino animal cujos paralelos com a música
humana são difíceis de ignorar: o canto dos pássaros.
Eysenck & Keane (1994) informam que se descobriu muito sobre o
desenvolvimento do canto em pássaros. Primeiramente, observa-se uma ampla gama de
padrões desenvolvimentais de canto de pássaros, com algumas espécies sendo restritas a
um único canto aprendido por todos os pássaros, até mesmo os que são surdos; outras
espécies apresentam uma gama de cantos e dialetos; dependendo claramente de
estímulos ambientais de tipos específicos. Encontram-se entre os pássaros uma notável
mistura de fatores inatos e ambientais. E estes podem ser sujeitados àquela
experimentação sistemática que é impermissível no caso das capacidades humanas.
Dentro destas diferentes categorias há uma via prescrita para o desenvolvimento
do canto final, começando com um subcanto, passando por um canto plástico até que o
canto ou cantos da espécie sejam finalmente atingidos. Este processo apresenta
paralelos não triviais e talvez notáveis com as etapas através das quais as crianças
pequenas passam quando primeiro balbuciam e então exploram fragmentos dos cantos
do seu meio. Certamente, a produção final dos cantores humanos é muito mais vasta e
variada do que até mesmo o mais impressionante repertório de pássaro; e esta
descontinuidade entre as duas espécies vocalizadoras precisa ser mantida em mente.
Mesmo assim, analogias sugestivas no desenvolvimento do canto deveriam estimular a
experimentação capaz de esclarecer aspectos mais gerais da percepção e performance
musical (EYSENCK & KEANE, 1994).
Porém, sem dúvida, o aspecto mais intrigante do canto dos pássaros do ponto de
vista de um estudo da inteligência humana é sua representação no sistema nervoso. O
canto dos pássaros vem a ser um dos poucos exemplos de uma habilidade que é
regularmente lateralizada no reino animal – e neste caso, na parte esquerda do sistema
nervoso das aves. Uma lesão neste local destruirá o canto do pássaro, enquanto lesões
comparáveis na metade direita do cérebro exercem efeitos debilitantes muito menores.
45
Além disso, é possível examinar o cérebro do pássaro e verificar claros indícios da
natureza e da riqueza dos cantos. Mesmo dentro de uma espécie, os pássaros diferem
quanto a se possuem uma "biblioteca de cantos" bem sortida ou escassamente arranjada
e sua informação é "legível" no cérebro da ave. O estoque de canto muda com as
estações e esta alteração pode ser realmente observada através da inspeção da expansão
ou do encolhimento dos núcleos relevantes durante as diferentes estações. Assim,
embora os propósitos do canto dos pássaros sejam muito diferentes dos do canto
humano ("o canto dos pássaros é uma promessa de música, mas é necessário um ser
humano para cumpri-la"), é bem possível que o mecanismo pelo qual determinados
componentes musicais centrais são organizados provem ser análogos aos apresentados
por seres humanos.
São consideráveis as tentações de estabelecer analogias entre a música e a
linguagem humana. Investigadores trabalhando tanto com humanos normais quanto
com humanos com dano cerebral demonstraram para além de toda a dúvida razoável
que os processos e mecanismos que servem à música e à linguagem humana são
distintos.
Beyer (1995) menciona que uma linha de evidências a favor desta dissociação
foi resumida por Diana Deutsch, uma estudiosa da percepção musical cuja pesquisa se
insere grandemente na tradição "de baixo para cima". Deutsch mostrou que, contrário ao
que muitos psicólogos da percepção acreditaram, os mecanismos pelos quais o tom é
apreendido e armazenado são diferentes dos mecanismos que processam outros sons,
particularmente os da linguagem. Documentação convincente advém de estudos nos
quais indivíduos recebem um conjunto de sons para lembrar e então vários materiais de
interferência lhes são apresentados. Se o material de interferência são outros tons, a
recordação do conjunto inicial é drasticamente prejudicada (40% de erro em um
estudo). Se, contudo, o material interposto é verbal - listas de números, por exemplo - os
indivíduos podem manipular até mesmo grandes quantidades de interferências em
efeitos materiais sobre a memória para altura (2% de erro neste mesmo estudo). O que
torna este achado particularmente compelativo é que ele surpreendeu os próprios
sujeitos. Aparentemente os indivíduos esperam que o material verbal interfira com o
material melódico e mostram-se francamente incrédulos quando são tão pouco afetados.
46
Beyer (1995) destaca que esta especialidade da percepção musical é
dramaticamente confirmada por estudos de indivíduos cujos cérebros foram danificados
em decorrência de derrame cerebral ou de outros tipos de trauma. Certamente, há casos
nos quais indivíduos que se tornaram afásicos também experimentaram diminuição na
capacidade musical; mas o achado chave desta pesquisa é que se pode sofrer de afasia
significativa sem qualquer prejuízo musical discernível, assim como pode tornar-se
musicalmente incapacitado enquanto ainda retendo competências lingüísticas
fundamentais.
Os fatos são os seguintes, de acordo com Beyer (1995): enquanto as capacidades
linguísticas são lateralizadas quase exclusivamente para o hemisfério esquerdo em
indivíduos destros normais, a maioria das capacidades musicais, inclusive a capacidade
central da sensibilidade ao tom, está localizada, na maioria dos indivíduos normais, no
hemisfério direito. Assim, danos aos lóbulos frontal e temporal direitos causam
pronunciadas dificuldades na discriminação de sons e em sua reprodução correta,
embora danos nas áreas homólogas no hemisfério esquerdo (que causam dificuldades
devastadoras na linguagem natural) geralmente deixem as capacidades musicais
relativamente não prejudicadas. A apreciação musical também parece ficar
comprometida por doenças no hemisfério direito. (Conforme os nomes pronunciam, a
amusia é um transtorno distinto da afasia).
Ainda um outro desdobramento fascinante apresentado por Eysenck & Keane
(1994) . Na maioria dos testes com indivíduos normais, as habilidades musicais
mostram ser lateralizadas para o hemisfério direito. Por exemplo, em testes de escuta
dicótoma, indivíduos provam ser capazes de processar melhor palavras e consoantes
apresentadas ao ouvido direito (hemisfério esquerdo), enquanto mostram-se mais bem-
sucedidos em processar sons musicais (e também outros ruídos ambientais) quando
estes são apresentados ao hemisfério direito. Mas há um fator complicante. Quando
estas, ou tarefas mais desafiadoras, são propostas para indivíduos com treinamento
musical, há efeitos crescentes no hemisfério esquerdo e decrescentes no direito.
Especificamente, quanto mais treinamento musical o indivíduo possuir, mais ele tenderá
a basear-se pelo menos parcialmente nos mecanismos do hemisfério esquerdo ao
resolver uma tarefa que o novato enfrenta principalmente através do emprego de
mecanismos do hemisfério direito.
47
Eysenck & Keane (1994) explicam também que uma imagem de competência
musical cruzando o corpo caloso a medida em que o treinamento aumenta não deve ser
levada longe demais. Um dos motivos é que ela não é encontrada com todas as
habilidades musicais: por exemplo, verificou-se que até mesmo músicos realizaram
análise de acordes com o hemisfério direito ao invés de como esquerdo. Outro é que não
fica exatamente claro porque efeitos crescentes do hemisfério esquerdo são encontrados
com o treinamento. Embora o processamento real da música possa mudar de loco,
também é possível que a mera afixação de rótulos verbais para fragmentos musicais
promova um aparente domínio do hemisfério esquerdo para a análise musical. Músicos
treinados podem ser capazes de usar classificações lingüísticas "formais" como auxílio
onde sujeitos não treinados devem basear-se em capacidades de processamento
puramente figurativas.
O que se deve enfatizar nesta revisão, contudo, é a surpreendente variedade de
representações neurais da capacidade musical encontrada nos seres humanos. Esta gama
baseia-se em pelo menos dois fatores. Primeiramente, há a tremenda gama de tipos e
graus de habilidades musicais encontradas na população humana; já que os indivíduos
diferem tanto no que podem fazer, é concebível que o sistema nervoso possa oferecer
uma pluralidade de mecanismos para efetuar estes desempenhos. Em segundo, e
relacionado a isso, os indivíduos podem fazer seu encontro inicial com a música através
de meios e modalidades diferentes e, mesmo assim continuam a encontrar a música de
forma idiossincrática. Assim, embora todo o indivíduo normal seja exposto à linguagem
natural principalmente através de ouvir outros falarem, os humanos podem encontrar-se
com a música através de muitos canais: cantar, tocar instrumentos com as mãos, inserir
um instrumento na boca, ler notação musical, escutar gravações, dançar ou observar
danças, que é o interesse desta pesquisa. Da mesma maneira como a linguagem escrita é
representada neuralmente e reflete o tipo de escrita usada na cultura da pessoa, as várias
maneiras pelas quais a música pode ser processada corticalmente provavelmente
refletem a riqueza das maneiras que os humanos encontraram para fazer e absorver
música.
Finalizando, pode haver considerável regularidade subjacente na representação
musical entre indivíduos. A equação para explicar esta uniformidade pode ser
complicada, tendo-se que levar em conta os meios pelos quais a música é inicialmente
48
encontrada e aprendida, o grau e o tipo de treinamento que o indivíduo tem, os tipos de
tarefas musicais que a pessoa é solicitada a desempenhar. Dada esta variedade, pode ser
necessário examinar grande número de indivíduos antes que as uniformidades genuínas
se tornem evidentes. Talvez uma vez que se tenha refinado as ferramentas analíticas
adequadas para estudar diversas formas de competência musical, possa-se verificar que
ela é até mesmo mais lateralizada e localizada do que a linguagem humana. De fato,
estudos recentes convergem para as porções anteriores direitas do cérebro com tamanha
previsibilidade a ponto de sugerir que esta região pode assumir para a música a mesma
centralidade que o lóbulo temporal esquerdo ocupa na esfera linguística.
49
CAPÍTULO IV
AS DANÇAS CIRCULARES
Frances & Bryant-Jefferies (2004) afirmam que as danças circulares sempre
estiveram presentes na história da humanidade, seja nos ritos de nascimento, casamento,
plantio, colheita, mudanças das estações climáticas, e refletiam a necessidade de
celebração, proteção e comunhão entre as pessoas. Por outro lado, a primeira formação
que o ser humano adotou no desenvolvimento da vida grupal e social foi a roda, que
desde a mais remota antiguidade as culturas ligadas à terra perceberam a especialidade
da forma circular para o estar e fazer junto. Através das formas circulares passaram a
representar os ciclos da natureza, como o ritmo das estações, os tempos da agricultura
(semeadura, crescimento, maturação e colheita), os movimentos solares, da lua e dos
astros, o ritmo da respiração e do coração, além da própria relação entre vida e morte.
Para Frances & Bryant-Jefferies (2004) as danças circulares em sua maioria são
danças folclóricas de diversos povos. São concebidas como uma meditação em
movimento e possuem diferentes propriedades, trazendo benefícios terapêuticos,
mentais e físicos, além de relaxamento, diversão e integração dos grupos. São adotadas
em rituais de passagem, em celebrações, em ocasiões de reverência, por temor, louvor,
gratidão e oração à terra e aos deuses. Ao trabalharem o equilíbrio entre o indivíduo e o
coletivo estimulam a cooperação e o respeito às diferenças, já que a dança circular
precisa de todos para acontecer e cada um tem seu tempo de aprender.
Frances & Bryant-Jefferies (2004) explicam ainda que o círculo é uma forma
geométrica especial por simbolizar a perfeição e a plenitude que o ser humano busca
alcançar. Na circunferência há um número incontável de pontos que distam igualmente
do ponto central. Todos os pontos, ou todas as pessoas que neles se encontram voltadas
para o centro, têm a visão de todos os demais da roda e todas são igualmente relevantes
na composição final do círculo. A roda contém também o vazio, que simultaneamente
garante a distância entre as pessoas e o vazio através do qual elas estão unidas e de onde
pode emergir a criação feita por todos. Apenas participar da roda já constitui uma
criação. O círculo representa a aspiração humana à paz completa, a estar em unidade,
ser um e inteiro consigo e com o criador, estar no divino, em Deus. Tanto religião como
50
ciência tratam da separação do homem do seu estado de unidade, seja através da queda
do paraíso, seja ao nascer, com a saída do aconchego do útero materno.
As Danças Circulares Sagradas têm mil faces; das mais delicadas às mais delicadas às mais assertivas, das lentas às rápidas, das mais simples às mais complexas. Todas são um meio fantástico de expressão: por exemplo, em um minuto conseguimos ter a experiência da vitalidade da primavera na rápida dança Le Printemps, originária da França; sentimo-nos a noiva jovem e pensativa, prestes a se casar, de Odano Oro, da Macedônia; sentimos profunda ternura, amor e gratidão na dança de Israel Ahawat Hadassa, por uma querida sobrinha, e podemos até reconhecer nossa própria agressividade na dança do guerreiro em Arap, da antiga Iugoslávia ( e está é, certamente, uma maneira inofensiva de expressar esse tipo de emoção). As coreografias mais recentes acrescentam uma nova dimensão à experiência. Podemos voar como o Pássaro Branco ao som da música atmosférica tocada em flautas de pã da América do Sul; sabemos como nos abrir e fechar como uma flor ao sol em Dandelion e podemos comemorar a alegria de viver em Aleluia Elohim. Se você nunca dançou uma dança de roda, eu recomendo que você o faça. É uma experiência maravilhosa, mas prepare-se para ser fisgado! (FRANCES & BRYANT-JEFFERIES, 2004, p. 59-60.)
Wosien (2006) foi bailarino clássico, coreógrafo, pedagogo e pintor, que nas
décadas de 1950 e 1960 viajou pelo mundo localizando e resgatando as danças dos
diferentes povos. Ele buscava uma prática corporal mais orgânica para expressar seus
sentimentos, e então, percebeu que havia encontrado o que procurava, pois dançando
em roda, vivenciou a alegria, a amizade e o amor, tanto para consigo mesmo como para
com os outros. Ele compreendeu que as danças circulares possibilitavam uma
comunhão sem palavras e mais amorosa entre as pessoas. A partir de 1976 ele
incorporou centenas de danças ao seu repertório e o movimento passou a se chamar de
Danças Circulares Sagradas. Daí em diante, este repertório se espalhou pelo mundo.
Para Wosien (2006, p. 29) a dança circular se denomina e se torna sagrada pelo
fato de propiciar que os participantes entrem em contato com sua essência, com seu eu
superior, com a centelha divina que existe dentro de cada um. No instante deste contato,
ocorre a união do corpo com o espírito:
Este processo é comparável a um trabalho de lapidação, que permite ao diamante bruto tornar-se numa pedra preciosa lapidada, brilhante e reluzente. Da mesma forma, um bailarino bem treinado reflete as leis cósmicas. A qualidade deste reflexo só se verifica quando corpo e espírito estão fundidos em harmonia. Esta perfeição, se for, só será atingida, através de longos anos de meditação da dança. O ser iluminado significa aqui o domínio das leis estáticas e dinâmicas, durante o movimento de dança: domínio da rotação, das forças centrífugas e
51
centrípetas, assim como do exato direcionamento do corpo e das articulações nos ângulos que garantam o equilíbrio. Na vida das antigas culturas altamente desenvolvidas e dos povos naturais, a dança atuou profunda e amplamente em sua existência. O que restou disto para nossa região europeia se cindiu em divertimentos sociais, dança como apresentação em sua forma artisticamente mais elevada, o balé, e as danças de roda populares mantidas mais ou menos vivas. Nas danças por exemplo, da Grécia, a sua origem cúltica é nitidamente sensível. Aqui não se trata somente de um caminho do encontrar-se-a-si-mesmo, mas também, do encontrar-a-comunidade. O passo do individual para o grupo encontra, aqui, a sua expressão mais intensa. Aquele que medita dançando encontra um adensamento de seu ser em um tempo não mais mensurável, no qual a força mágica da roda se manifesta. Quando os dançarinos se ordenam num círculo, de acordo com a tradição, eles se dão as mãos. A mão direita torna-se a que recebe e a esquerda a que dá.2
Wosien (2006) ressalta que qualquer pessoa, de qualquer idade, pode dançar em
uma roda. Não é preciso ter experiência anterior em dança, basta ter vontade, querer
entrar em contato com a alegria e com a oportunidade de comunhão com o outro.
Dançando o corpo se expressa através do movimento e aquieta a mente. A alegria brota
espontaneamente e o movimento simples e repetido aproxima os participantes,
promovendo a integração física, mental, emocional e espiritual. As danças circulares
promovem uma rápida integração de grupos, reflexões sobre o trabalho em equipe,
compreensão sobre conflitos, o despertar da criatividade, a integração dos hemisférios
cerebrais, a ativação corporal, meditação dinâmica, conexão com seu eu superior.
Ainda segundo os ensinamentos de Wosien (2006), na roda é possível perceber
que todos se percebam como iguais, o que é necessário à realização de um projeto
comum, em paz e harmonia com os demais. Desta forma, muitas vezes, a dança circular
é chamada de um tipo de meditação ativa. Nas danças circulares sagradas, o tema é
coletado do folclore e geralmente tocado em um aparelho de som, mas a presença de
músicos pode trazer ainda mais brilho à experiência e os passos são ensinados por um
facilitador. Os participantes cantam e dançam a música trazida pelo facilitador, temas
tirados das diversas religiões do mundo.
Para Maria-Gabriele Wosien (2002), filha de Bernhard Wosien, as danças
circulares promovem uma experiência de aprendizado, favorecendo a percepção de si
mesmo e do outro através da integração, da comunicação e da flexibilidade que o
desafio de participar de uma dança conjunta exige de todos. Cada participante é
2 Para o hemisfério sul, a mão direita dá e a mão esquerda recebe.
52
convidado a rever os seus próprios passos, a entrar em contato com seu esquema
corporal, suas facilidades e dificuldades, suas reações e posturas diante de novos
desafios. Cada nova dança motiva o participante a valorizar o trabalho em equipe e
compartilhar suas limitações e seus talentos, percebendo e respeitando o espaço da roda,
de si mesmo e do outro. Convidado a se adaptar a ritmos e estilos diferentes, amplia seu
repertório de movimentos e seus conhecimentos sobre a cultura da humanidade.
Woisen (2002) defende que as danças circulares sagradas englobam em seu
movimento as danças étnicas, que remontam à cultura de um determinado povo,
simbolizando sua expressão musical, corporal e espiritual. Realizadas em círculo e de
mãos dadas, as danças proporcionam ao sujeito uma experiência de aprendizado que
favorece a integração, a comunicação, a flexibilidade, a percepção de si mesmo e do
outro. O contato com outras culturas e suas expressões na roda da dança gera para o
grupo um desafio, que passo a passo é superado e ao terminar a música resta o aplauso
coletivo em comemoração à conquista de todos.
De acordo com Woisen (2002) a dança circular pode ser realizada com o
objetivo de desenvolver temas significativos para os participantes, despertando a
espontaneidade e a criatividade, competências que favorecem o trabalho em equipe. De
acordo com o foco estabelecido podem ser selecionadas danças que aproximam os
participantes dos objetivos traçados. Para trabalhar com as danças circulares sagradas
deve haver um profundo respeito a esta egrégora. O facilitador deve estar consciente
dessa responsabilidade, já que focalizar uma dança circular sagrada vai um pouco além
de simples orientação dos passos e do ritmo. Implica na postura do orientador que se
coloca como foco de atenção dos participantes e, principalmente, como foco catalisador
e expansionista de energias mais sutis no momento da vivência, facilitando o sagrado. O
facilitador deve informar a origem da dança, a fonte e se por alguma razão alterar a
coreografia, deve informar ao grupo. A dança circular sagrada é um tesouro que deve
ser utilizado com respeito e cuidado amoroso.
A dança, segundo os modelos sacros tradicionais é, antes de tudo, um treinamento de consciência na qual o equilíbrio, no sentido mais amplo da palavra, é treinado. Pelos caminhos da dança e as suas etapas desenvolve-se o sentido de espaço, forma, linha de medida de tempo, assim como a memória para a seqüência do movimento. O intelecto fixado é suspenso e a consciência presa no corpo é libertada, pois na dança a soberania do pensamento analítico deve ser sacrificada: pela interação das energias inspiradoras e conteúdos de movimento de totalidade cada posição fixa se funde. Na concentração total, no equilíbrio do corpo e do espírito, desperta-
53
se no dançarino uma clareza e uma sensibilidade intensificadas; “... aquele que dança, pertence ao espaço, quem não dança, não entende o que acontece”. Inscrito no quadrado e no círculo o dançarino é simbolicamente absorvido na unidade do céu e da terra; assim, a vida na dança contém uma ordem, que não somente prevê, mas também estimula os desvios (variações) das estruturas e dos modelos básicos dominantes. A dança de roda como forma de dança e símbolo de uma ordem universal harmônica é, assim, um exercício contínuo de transformação. No concentrado de suas figuras espaciais e de suas sequências de passos ela contém a sabedoria da antiguidade e a traz para a atualidade pela repetição do ato, afim de compreender de forma fecunda as fontes de nossa vivência. (WOSIEN, 2002, p. 65.)
Segundo Ramos (1998), no Brasil, as danças chegaram através de Sarah Marriot,
que viveu em Findhorn, na Escócia, e foi convidada em 1983 a iniciar um trabalho de
educação holística no Centro de Vivências Nazaré (atualmente Nazaré Uniluz),
comunidade fundada em 1981 por um grupo de pessoas lideradas por Trigueirinho em
Nazaré Paulista no Estado de São Paulo. A partir de então, pessoas de Findhorn vieram
ao Brasil e brasileiros foram até lá em nome da expansão do movimento.
4.1 As danças circulares sagradas como instrumento terapêutico
Na roda é possível que todos se percebam como iguais, necessários à execução
da dança, que é um projeto comum. Por isso, às vezes, a dança circular é chamada de
um tipo de meditação ativa. Nas danças circulares sagradas promovem uma experiência
de aprendizado, favorecendo a percepção de si mesmo e do outro através da integração,
da comunicação e da flexibilidade, que o desafio de participar de uma coreografia
coletiva. Wosien (2002, p. 64) explica como isso pode acontecer:
Na dança, na sua ligação de imobilidade e movimento, repete-se para nós o processo energético que cria as formas e através dele nós finalmente nos tornamos conscientes de nosso self : “se o espírito está perturbado surge a multiplicidade das coisas, se ele se acalma, desaparece a multiplicidade das coisas”. Apesar de todo o conhecimento sobre as coisas na sua multiplicidade, o seu ser permanece estranho para nós. Contudo, numa extensão para uma dimensão de funções de relação combinadas, surge uma abertura para a amplidão da criação e a compreensão de que o ser humano só pode viver como ser humano em função de uma relação.
Berni (in RAMOS, 1998) enfatiza que cada participante é convidado a rever os
seus próprios passos, e ao entrar em contato com seu esquema corporal, poderá
identificar suas facilidades e dificuldades, suas reações e posturas diante de novos
desafios. Cada nova dança pode motivar o participante a valorizar a atividade em grupo
54
e compartilhar suas limitações e seus talentos, perceber e respeitar o espaço da roda, de
si mesmo e do outro. O sujeito é convidado a se adaptar a ritmos e estilos diferentes,
ampliando seu repertório de movimentos e seus conhecimentos sobre a cultura da
humanidade.
Entre os muitos benefícios que se pode alcançar com a participação sistemática
ou eventual nas danças circulares sagradas, Rodrigues (in RAMOS, 1998) destacam-se:
• perceber a relação entre as pessoas, como os olhares e os gestos, ou
como a necessidade de companheirismo para a execução da dança.
• Amplia a percepção, a concentração, a atenção e a flexibilidade.
• Desenvolve a autoestima, transformando medos, angústias e ansiedades.
• Desperta a leveza, a alegria, a beleza, a paz, a serenidade e o amor que
existe dentro de cada um.
• Aprimora o apoio mútuo, a integração, a comunhão e a cooperação;
favorecendo o autoconhecimento e a autocura.
Para Eid (in RAMOS, 1998) as danças circulares sagradas têm a propriedade de
acolher as pessoas, proporcionando a oportunidade de estar em contato direto com o
outros em uma situação calorosa e cheia de ritmos. Fazem refletir sobre a vida, sentir o
amor, a paz e a união. Incentivam a alegria de viver e ajudam a compreender o mundo.
Também transmitem paz e harmonia e os passos fazem com que os participantes se
toquem e se transmitam energia e alegria. As diferenças tornam-se sem importância
diante da paz e da sabedoria, que coloca o sujeito em sintonia com o Criador.
Bonetti (in RAMOS, 1998), por sua vez, afirma que a dança circular equilibra os
corpos físico, emocional, mental e espiritual, combatendo o estresse e a depressão. A
musicalidade e o ritmo incentivam o participante a expressar o que ele tem de melhor
dentro de si, além de trazerem leveza, alegria e bem-estar. Também ajudam a encorajar
a pessoa a ocupar seu lugar no espaço, no mundo, na vida. Ampliam a percepção, a
concentração e a atenção. E são eficazes instrumentos para a harmonização dos grupos.
As danças circulares sagradas têm sido praticadas também em empresas, como
um valioso instrumento de integração das equipes. Por serem eficazes na conquista do
autoconhecimento e autocura, ajudam na realização dos projetos pessoais e
profissionais. À medida que se vai dançando, vai-se abrindo o canal da percepção, da
intuição e descobrindo as dimensões em que estas danças atuam. Assim, são
55
promovidas verdadeiras mudanças de vida, através da esperança do crescimento e da
transformação conscientes, da alegria e da leveza em comunhão com outras pessoas. As
danças trabalham o pensar, o sentir e o agir ao mesmo tempo.
Para Tiveron (in RAMOS, 1998) as danças circulares sagradas desenvolvem
posturas de liderança cooperativa, já que trabalha a individualidade dentro do processo
grupal. Gerando uma maior percepção e concentração, contribui para harmonizar os
grupos antes e depois de praticarem suas tarefas cotidianas. Ajuda também na resolução
de conflitos, já que traz maior autodisciplina e centramento, ao mesmo tempo que
facilita a comunhão e a cooperação.
A maioria das empresas, inclusive no Brasil, funcionam dentro de uma estrutura
hierarquizada, compartimentalizadas, isto é, divididas em setores, departamentos, onde
cada um faz o seu trabalho separadamente e se esquece de olhar o todo, de integrar
todas as atividades. Esse modo de funcionar acaba por provocar a dispersão na
realização dos objetivos, os bloqueios na execução dos projetos, o esvaziamento da
força produtiva e a desmotivação dos colaboradores. Na opinião de Tiveron (in
RAMOS, 1998) para mudar isso é preciso que todos estejam integrados numa unidade
para que o sucesso seja alcançado em plenitude e se sustente com base na união. E a
dança circular sagrada pode contribuir para isso, porque é vivenciada em círculo, que é
um símbolo de totalidade, possibilitando a integração entre as pessoas, os setores e
departamentos. É possível vivenciar danças e cantos que trabalham a liderança, a
motivação, a expressão, a amorosidade, a força de vontade, o equilíbrio, a alegria, o
centramento, a criatividade, a espontaneidade e a descontração.
O objetivo ao utilizar as danças circulares nas empresas, segundo Tiveron (in
RAMOS, 1998), não é acertar os passos que são ensinados, mas vivenciá-los em todas
as suas perspectivas, sentindo os movimentos do corpo, sentindo o que a dança quer
informar, comunicar, sinalizar naquele instante, já que o movimento traz o sujeito para
o aqui e agora. Ele sente seu corpo e estado interior provocado e instigado pelo
movimento no aqui e agora, no instante em que o executa e por consequência o é. O
movimento advindo da dança é cuidadosamente e precisamente articulado para
provocar determinados estados de percepção, que conduzem progressivamente ao bem-
estar, à busca por melhor qualidade de vida e por saúde.
56
CONCLUSÃO
Grande parte das doenças do homem moderno se encontra inicialmente no
psiquismo e, posteriormente, se manifesta no corpo material, que é seu prolongamento.
Na realidade, o corpo é prolongamento da mente e a mente é prolongamento do corpo.
Tudo o que se sente num plano é transmitido para o outro. Em função disto, os
desequilíbrios do psiquismo se transmitem para o corpo físico e o desequilibram. São
chamadas doenças psicossomáticas, porém nem sempre se somatiza nos órgãos; muitas
vezes o desequilíbrio se complica no plano psíquico, afetando preferencialmente, como
consequência, o sistema nervoso, isto é, uma somatização com reflexo principalmente
no plano do comportamento, possibilitando disfunções e, com o tempo, até lesões
cerebrais mínimas.
Conhecer a mente, o psiquismo é, pois, fator essencial para a prevenção das
doenças e desequilíbrios inúmeros, tanto mentais quanto físicos. Neste plano, mais do
que em outros, somente medicamentos não trarão uma resolução definitiva aos
sofrimentos. Tem-se que se autoconhecer para poder se tornar ativo no restabelecimento
da própria saúde. Tem-se que saber como o corpo é constituído, como funciona, como
reage e que leis o guiam rumo à harmonia.
Bem se sabe que não se pode ditar regras nesta área, já que a verdade no plano
humano é relativa e a verdade de um pode não ser a do outro. Porém, sem dúvida
alguma, existem necessidades básicas a serem satisfeitas para a harmonia e o sustento
do psiquismo.
Existem também leis naturais imutáveis neste plano que independem do querer
do sujeito, das suas convicções, do seu conhecimento sobre elas, porque atuam
automaticamente e tendem a levar tudo à harmonia e perfeição.
O conhecimento sobre elas muda de acordo com a teoria em voga, mas isto não
as altera. O que for verdade na compreensão sobre o humano se confirma e se mantém,
porém, o que for falso, ou destorcido, não se sustenta e cai por si só, até ser preenchido
sucessivamente por outras teorias, chegando a uma aproximação progressiva da
verdade. É preciso se basear na lógica e na observação dos fatos para se aproximar desta
compreensão e a praticar, observando seus efeitos. Só assim se tem condição de lidar
com estas Leis. Não se trata de criar normas, ou padrões, e, sim, compreender estas Leis
57
e aprender a lidar com elas de forma suave, aderindo a elas, progressivamente, à medida
da própria capacitação. Não são coação, são expressão de harmonia.
Estar bem física e psiquicamente é muito mais do que fazer o que se gosta e
liberar-se; é saber, sobretudo, seus limites, aprender a respeitar a si mesmo e aos outros
e a entrar em harmonia consigo, com as pessoas e o meio; é interagir-se em harmonia.
Não se trata de dilatar o ego, romper com a depressão e ver-se livre de traumas,
mas sim, de fazer harmonia dentro de si e expandir essa harmonia para o ambiente em
torno.
Não se trata de querer mudar o mundo impondo as próprias vontades e verdades,
mas de mudar a si mesmo aprendendo a se adaptar e a tolerar a realidade alheia,
diferente, muitas vezes, daquilo que se acredita como certo.
É adquirir respeito para consigo e para o outro. Não basta fazer as pazes
consigo, é preciso fazer as pazes com o meio e com a natureza. É preciso ser pleno, ser
íntegro, ser verdadeiro, buscando primeiro a harmonia em si e não cobrando a harmonia
no outro.
Dentro de tal perspectiva, como se concebe o corpo humano? Um modo finito
do atributo extensão, isto é, um indivíduo extremamente complexo constituído por
uma diversidade e pluralidade de corpos duros, moles e fluidos relacionados entre si
pela harmonia e equilíbrio de suas proporções de movimento e repouso. É uma
unidade estruturada: não é um agregado de partes, mas unidade de conjunto e
equilíbrio de ações internas interligadas de órgãos, portanto, indivíduo. Sobretudo, é
um indivíduo dinâmico, pois o equilíbrio interno é obtido por mudanças internas
contínuas e por relações externas contínuas, formando um sistema de ações e reações
centrípeto e centrífugo, de sorte que, por essência, o corpo é relacional: é constituído
por relações internas entre seus órgãos, por relações externas com outros corpos e
pro afecções, isto é, pela capacidade de afetar outros corpos e ser por eles afetados
sem se destruir. O corpo, sistema complexo de movimentos internos e externos,
pressupõe e põe a intercorporeidade como originária.
O trabalho dos pioneiros da somática revelou a importância de cada parte do
corpo para todas as outras partes. A tensão nos olhos e no pescoço de uma pessoa
pode estar relacionada com as rotações de seus pés. Úlceras, dores nas costas e
ansiedade têm sido sinais dos sistemas de stress espalhando-se por todo o corpo. Os
58
impulsos sensoriais não são acontecimentos isolados desencadeados por discretos
dados dos sentidos que disparam respostas mecânicas. Captam-se padrões sensoriais
que desencadeiam movimentos (emoções) através de todo o corpo, que formam
percepções ulteriores num ciclo sistemático que envolve o corpo num mundo de cor,
som e movimento.
Mais do que o status, é a função que determina se alguma parte do corpo tem
prioridade sobre as outras. Quando se quer dar um passeio, os pés e pernas tornam-se
importantes. Para ler livros necessita ter uma boa visão. Se os intestinos não
funcionam bem, tem-se dificuldade em digerir a comida de que precisa para ter
energia. Para um intelectual, um pé quebrado pode significar apenas algumas
semanas de desconforto; para um bailarino profissional, pode ser o fim da carreira.
Mas afora tais propósitos, nenhuma parte pode ser considerada a soberana
“metafísica” das outras; todas detêm importância. O poder é distribuído de tal forma
em proveito do ponto de vista, gênio e raio de experiência particulares de cada
pessoa. Esta forma de experimentar os próprios corpos dá a base para se perceber os
valores interligados, por exemplo, de gerentes e trabalhadores de colarinho branco e
azul, ou de operários, cientistas e artistas.
Porém, o grande surto de mudanças e avanços tecnológicos do último século não
impediu que para a grande maioria dos indivíduos ocidentais as experiências de si
continuassem marcadas pela distinção corpo-mente na sua forma original, a de uma
mente executiva impondo-se a um corpo disciplinado. No entanto, tornaram-se cada vez
mais precárias as condições para que se mantivesse a crença numa cisão corpo-mente
segundo os moldes racionalistas.
As irrupções do corpo no território mental foram tornando-se frequentes e
intoleráveis, o que é atestado, por exemplo, pela história da histeria no século XIX. Em
acréscimo, a inversão dos sinais e as compreensões românticas do corpo (e da mente)
continuaram presentes e influentes na cultura contemporânea. Os movimentos de
contracultura do século XX reviveram periodicamente a perspectiva romântica em que a
libertação do corpo na sua essencial expressividade converte-se em bandeira e palavra
de ordem. No campo das psicoterapias por sinal, esses movimentos encontraram sempre
uma grande repercussão, gerando uma variada gama das chamadas técnicas corporais.
59
A arteterapia mediante a aplicação de técnicas e práticas expressivas promove o
confronto consigo mesmo, o contato com a subjetividade (inconsciente) e através do
processo expressivo surge a materialização das formas que simbolicamente expressam a
concretude de si mesmo. Essa expressão, quando o trabalho é realizado no grupo, torna-
se acessível a todos e estabelece um processo de inclusão social, de percepção e
aceitação das diferenças. Nesse diálogo com o outro o indivíduo pode reestruturar seus
valores pessoais, configurando sua autoconsciência.
Através do grupo, o sujeito pode identificar suas necessidades, bem como
perceber que suas limitações sentidas como dificuldades, são compartidas com os
demais membros. A vivência do “compartilhar” dificuldades possibilita a estruturação
psíquica de aceitação das diferenças individuais, bem como a integração consigo
mesmo.
As danças circulares sagradas, criadas pelo bailarino e coreógrafo alemão
Bernhard Wosien em 1976, estão baseadas nas danças folclóricas de cada povo e
buscam a integração e o autoconhecimento. Para Bernhard, dançar em grupo é uma
oportunidade para que as pessoas eduquem umas às outras e a si mesmas. Um conceito
notadamente religioso pode ser atribuído às danças circulares, uma vez que a verdadeira
religião deve ser prática e expressar a profunda unidade que se encontra por trás de
todas as tradições. As música que acompanham as danças circulares são buscadas nas
tradições religiosas mais antigas.
A força do círculo é sua expressão de totalidade, unidade e igualdade. A dança
circular evoca esse poderoso símbolo, quando de mãos dadas, significando a confiança
e o apoio, os participantes aprendem o valor das atitudes cooperativas, aprendem a
superar os próprios erros e a ajudarem-se mutuamente.
No círculo é possível criar um espaço seguro para todos os potenciais dos
participantes possam se manifestar, proporcionando a identificação dos sentimentos, das
qualidades, da superação, do afloramento dos valores adormecidos. As danças sagradas
circulares escondem muitas vezes atrás de sua simplicidade e facilidade de aprendizado,
um sentido secreto, que só aquele que participou de um roda de dança pode avaliar a
dimensão de seus benefícios.
60
Os passos repetidos que cada dança exige, pode ser um caminho para se entrar
num estado de relaxamento onde não se pensa em nada e é neste estado de campo
relaxado que se tem a grande oportunidade do insight criativo.
Sintetizando, pode-se afirmar que as danças circulares sagradas são
desenvolvidas com o objetivo de ampliar o autoconhecimento, de direcionar ao bem-
estar físico, mental, emocional, energético e social, de promover o diálogo amoroso
entre as pessoas, desenvolver o senso de organização coletiva, através do senso rítmico
da música e do movimento corporal. Suas propriedades terapêuticas se manifestam não
somente a nível individual, mas também para o grupo como um todo, seja despertando
um sujeito mais íntegro, seja produzindo relacionamentos mais saudáveis.
Gradativamente o participante vai adquirindo mais autocontrole, maior consciência
corporal e responsabilidade por seus gestos e atos. A dança circular possibilita ao seu
praticante acessar e desenvolver dimensões de sua personalidade de forma prazerosa,
ajustando emoções, organizando pensamentos, descobrindo sentimentos, enfim
ajudando a construir um sujeito equilibrado, saudável e amoroso.
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