1
Transversalidade e justiça de gênero: uma análise de políticas brasileiras de
proteção social e enfrentamento da pobreza
Documento para su presentación en el IX Congreso Internacional en Gobierno,
Administración y Políticas Públicas GIGAPP. (Madrid, España) del 24 al 27 de
septiembre de 2018.
Autor(es): Calvi, Valéria
Eger, Talita Jabs
Email: [email protected]
Resumen/abstract:
El objetivo aquí propuesto es contribuir al debate y perfeccionamiento de instrumentos de análisis de las políticas que incorporan la perspectiva de género. Para eso, nos fundamentamos sobre la Matriz propuesta por Benavente y Valdés (2014), analizando cualitativamente tres políticas dirigidas hacia los pobres, objetivando identificar i) en qué medida la perspectiva y la justicia de género se incluyen en sus directrices y ii) cómo esas políticas repercuten sobre la dimensión de género, aunque ésta no sea su prioridad. Para ello, seleccionamos una política elaborada en 1993 y que figura como un marco en el campo de la seguridad social en el país (Benefício de Prestação Continuada – BPC), y dos políticas elaboradas en la década de 2000, período en que Brasil asistió a un avance en el debate sobre la equidad de género, Programa Bolsa Familia (PBF) y Programa Mulheres Mil (PMM).
Palabras clave: Análisis de políticas públicas; Transversalidad; Justicia de género;
Políticas sociales; Pobreza.
Nota biográfica: Calvi, Valéria: Doutoranda em Políticas Públicas e mestre em Sociologia pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Desenvolve pesquisa na área de Políticas Sociais,
Atores e Participação, com ênfase em regimes de proteção social na América Latina, gênero e cuidado.
Eger, Talita Jabs: Doutoranda em Políticas Públicas e mestre em Antropologia Social pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Vinculada ao Núcleo de Pesquisa sobre Culturas
Contemporâneas (NUPECS/UFRGS), ao Núcleo de Pesquisa em Gestão Municipal: capacidades estatais,
federalismo e administração municipal para o desenvolvimento na América Latina (NUPEGEM/UFRGS)
e integrante do Grupo de Antropologia da Economia e da Política (GAEP/UFRGS)
2
1. Da construção da pobreza como um risco social à pauperização das mulheres
como agenda governamental
A pobreza e a desigualdade social não são problemas a serem enfrentados apenas
pelos países da América Latina, no entanto, é incontestável que nessa região seus efeitos
ganham novos contornos e intensidades. A América Latina, apesar das transformações
socioeconômicas ocorridas nas últimas décadas, continua sendo a região mais desigual
do mundo, tendo Coeficiente de Gini estimado em 0,5 (CEPAL: 2018). À desigualdade
de renda, medida pelo referido coeficiente, somam-se outras, constituindo um quadro
complexo e multifacetado para a formulação de políticas públicas. Uma das estratégias
encontradas para enfrentar essas condições é a formulação de políticas
interseccionalizadas com gênero e/ou raça/etnia para o acesso ao bem-estar social e
promoção da cidadania. O Brasil vai ao encontro dessas estratégias, promovendo,
principalmente nos anos 2000, políticas de enfrentamento à pobreza e garantias de
direitos sociais mínimos sob responsabilidade Estatal.
Até a década de 1930, a pobreza era compreendida como uma espécie de
disfunção individual e não como problema social; a política para seu enfrentamento era
o uso das forças repressivas Estatais. Com a crescente pauperização da força de trabalho
e o projeto de industrialização nas/das zonas urbanas do país, foram criadas as primeiras
iniciativas direcionadas à garantia de direitos sociais mínimos providos em maior
medida pelas associações profissionais – que arcavam com a previdência, moradia e
saúde -, e pela família e, em menor medida, pelo Estado. Estavam lançadas as bases
para o sistema de proteção social brasileiro, inicialmente vinculado ao trabalho formal e
urbano, o que significou, para as mulheres, a exclusão do mesmo, pois as que
trabalhavam o faziam majoritariamente em condições informais. Além disso, o sistema
corporativista contribuiu com a reprodução e o aprofundamento das desigualdades
sociais de forma geral (Soares, Sátyro, 2009:27).
A partir dos anos 1940, o Estado assume progressivamente a responsabilidade
pela Previdência Social, se fortalecendo como agente promotor de direitos sociais, sem,
contudo, desvinculá-los do sistema contributivo, e, por isso, da condição formal de
trabalho, dificultando o acesso à cidadania por parte da maioria da população. Durante a
ditadura militar o quadro se agrava, adquirindo os direitos sociais um caráter regressivo
que seria revertido apenas na redemocratização do país (Bichir 2010:1-2), período em
que há esforço para a garantia, universalização e efetivação desses direitos.
3
A década de 1980 foi marcada pela crescente organização e luta de movimentos
sociais que extrapolavam as questões relativas à tensão entre capital e trabalho, dentre
eles o movimento feminista. Esses novos movimentos sociais possibilitaram a entrada
na agenda política de pautas candentes na sociedade como saúde, educação, emprego,
renda e desigualdades de gênero e raça. Os contornos da pobreza e do trabalho formal
como problemas sociais e políticos que precisam ser pensados também com relação às
mulheres encontram sua origem nesse processo.
O movimento feminista brasileiro se estrutura com base na experiência das
mulheres na luta armada pela democracia, na participação dos partidos de esquerda
clandestinos ou não e no exílio político, consolidando um feminismo marcado pela
afirmação da democracia enquanto valor social, crítica ao capitalismo e afirmação da
igualdade na diferença. Contribuiu para esta, o exílio de muitas feministas em países da
Europa e América do Norte, que alargaram a pauta feminista para além da questão
econômica, aprenderam a se relacionar com as instâncias institucionais em contextos
democráticos e alinharam o Brasil ao cenário internacional das políticas de gênero
(Pinto, 2006).
A contribuição das feministas a partir desses aprendizados pode ser percebida já
na formulação da Constituição Federal de 1988 (CF/88). O processo de feitura da CF/88
contou com uma metodologia inovadora que previa e requeria a participação da
população em geral e da sociedade civil organizada. Com isso, as organizações
feministas, articuladas com os partidos políticos progressistas e com todas as deputadas
constituintes - independentemente de suas posições ideológicas -, tiveram papel
extremamente atuante e definitivo na garantia dos direitos das mulheres em diversas
áreas. Para tanto, valeram-se do princípio da isonomia entre homens e mulheres para
assegurar igualdade jurídica a elas, e da igualdade na diferença para garantir
mecanismos e direitos que dissessem respeito a desigualdades específicas ao gênero
feminino.
A promulgação da CF/88 também foi importante para alterar os rumos do
enfrentamento à pobreza e da garantia de direitos sociais no Brasil. Foram consolidados,
nesse sentido, aspectos essenciais para a construção de um novo sistema de proteção
social - agora, pautado pela cidadania em direção à universalização -, elevando o status
da assistência social ao de outras políticas sociais universalizadas, a saber, saúde e
educação. Da garantia de direitos via contribuição previdenciária, foram reconhecidos o
direito à aposentadoria não integralmente contributiva aos(às) trabalhadores(as) rurais e
4
instituindo uma renda de solidariedade a idosos(as) e pessoas com deficiência que
viviam em condições de vulnerabilidade econômica - o Benefício de Prestação
Continuada (BPC). O sistema de proteção social brasileiro deixa de ser, portanto,
vinculado apenas à contribuição previdenciária, e passa a prever direitos aos(às)
cidadãos(às) que não podem fazer uso da sua força de trabalho. Foi nesse contexto que
se passou a discutir sobre os riscos sociais associados à pobreza, bem como sobre a
necessidade de criação de estratégias para enfrentá-la (Soares, Sátyro 2009:28).
Se o aumento do papel do Estado enquanto pilar do bem-estar social aumentou
com a CF/88 e a universalização dos direitos sociais pareceu se estabelecer como
horizonte, ambos encontram nas limitações orçamentárias (Silva e Silva et al, 2009) e
no Consenso de Washington - cujas diretrizes de desenvolvimento social para os países
latino-americanos pressupunham a garantia de direitos sociais mínimos via políticas
públicas focalizadas nos mais pobres – fortes barreiras para sua efetivação. Essa foi a
conjuntura que permitiu, no final da década de 1990, a criação dos programas de
transferência condicionada de renda (PTCR) associados à educação e à saúde no Brasil.
Nesse último campo, inserem-se os Programas Bolsa Escola e Bolsa Alimentação que
junto ao Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), do Auxílio Gás e do
Cartão Alimentação, que antecederam aquele que seria considerado uma das principais
políticas de enfrentamento à pobreza no Brasil, o Programa Bolsa Família (PBF).
Em nível internacional e fruto da militância feminista, a pauperização das
mulheres ganhou reforço enquanto pauta política e de governo com a Conferência de
Beijing, em 1995, que colocava como questões a serem enfrentadas pelo Estado a (i)
pauperização das mulheres, (ii) a desigualdade no acesso à educação e capacitação
profissional e (iii) a desigualdade relacionada à participação das mulheres nas estruturas
econômicas, atividades produtivas e acesso a recursos. O Brasil foi signatário do
documento produzido pela Conferência, bem como da Estratégia de Montevidéu para a
Implementação da Agenda Regional de Gênero no Marco do Desenvolvimento
Sustentável até 2030, assinada em 2016, cujo objetivo número um é o fim da pobreza.
Porém, ainda que a igualdade de gênero tenha ganhado cada vez mais espaço na agenda
do governo federal já nas décadas de 1980 e 1990, apenas na década de 2000 ela veio a
ser incorporada institucionalmente na esfera federal através da criação da criação da
Secretaria Especial de Políticas para Mulheres (SPM-PR), em 2004.
Vinculada à Presidência da República e, por isso, sem orçamento próprio, a
SPM-PR nasceu com o objetivo de institucionalizar e sistematizar a perspectiva de
5
gênero nas políticas públicas do país, atuando, para isso, de forma transversal a todos os
ministérios do governo. Se gênero é categoria interseccional, as respostas às
desigualdades de gênero, também precisam ser, de modo que a transversalidade se
configura enquanto a melhor estratégia para a promoção da igualdade de gênero no país
(Bandeira e Almeida, 2013). O objetivo da SPM-PR não era centralizar todas as
questões de gênero em um único órgão, mas fazer com que a perspectiva da igualdade
de gênero estivesse presente nas formulações de todas as políticas públicas, em todos os
ministérios (Bandeira, 2005). A SPM-PR produziu três Planos Plurianuais de Políticas
para as Mulheres (PNPMs), tendo as três políticas aqui analisadas sido contempladas
em um ou mais PNPMs.
O avanço das políticas de gênero na América Latina, de modo geral, e no Brasil,
especificamente, possibilitaram não só a estruturação de novos direitos e conquistas
para as mulheres, como também a avaliação das estratégias adotadas para isso. É nesse
contexto que a Matriz de Análise para identificar políticas justas de igualdade de gênero
é elaborada (Benaventes, Valdés, 2014). Surgida da crítica à perspectiva de gênero, a
matriz propõe o conceito de justiça de gênero como instrumento teórico empregado na
formulação de políticas públicas transversalizadas.
1.1 Aspectos conceituais
A partir do programa da Divisão de Assuntos de Gênero da Comissão
Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL), o Observatório de Igualdade de
Gênero da América Latina e Caribe, em 2010, inicia o processo de identificação de boas
práticas estatais na formulação de políticas públicas que representassem avanços na
igualdade de gênero. É desse trabalho que surge a matriz em questão como instrumento
de análise e sistematização de políticas públicas de gênero que considerem a igualdade
de gênero não apenas como objetivo final, mas também como elemento que deve estar
presente em todo o ciclo de políticas públicas, desde a formulação até a avaliação da
política. Além disso, diferentemente da perspectiva de gênero - que acabou sendo
incorporada como sinônimo para toda e qualquer política que tivesse mulheres como
público-alvo e carecia de critérios objetivos para mensurar o sucesso das políticas -, a
matriz propõe como instrumento conceitual e de medição a justiça de gênero. Na sua
utilização, portanto, não basta apenas analisar se a perspectiva de gênero foi incorporada
na formulação de uma política, é necessário observar se ela, efetivamente, contribuiu
para a promoção da justiça de gênero, que pode ser medida por indicadores segundo seu
6
caráter. A seguir, passamos à explicação dos conceitos implicados na matriz de análise e
à articulação entre eles.
A matriz considera as políticas públicas como ferramentas estatais que podem
ser utilizadas para a diminuição das brechas de gênero, sendo essas definidas como
desigualdades entre homens e mulheres passíveis de mensuração. Dada a
interseccionalidade entre gênero e outros marcadores sociais, as brechas dizem respeito
a diversas áreas da vida das mulheres, exigindo, por isso, políticas transversalizadas
com outros marcadores como raça, etnia, território e classe social. A interação entre
ministérios ou outros órgãos estatais se torna necessária na busca por soluções para a
situação das mulheres e, a isso chamamos transversalização de políticas públicas.
A construção patriarcal dos papeis e expectativas sobre homens e mulheres fez
com que a elas coubesse uma cidadania e uma individuação de segunda ordem, ou seja,
sempre atreladas ao papel que cumprem com relação a outrem como, por exemplo,
mães, esposas e filhas. As desigualdades de gênero impedem, por isso, a autonomia das
mulheres - a autodeterminação enquanto indivíduo portador de cidadania -, fazendo com
que o fechamento ou diminuição de brechas de gênero representem ganhos na promoção
da autonomia feminina. A autonomia, embora interseccionalizada com outras
categorias, pode ser de três tipos: econômica, física e política. A cada um deles
corresponde um tipo de política pública. Políticas que visem à promoção da autonomia
física consideram a subordinação cultural e social das mulheres, exigindo a
reestruturação das relações de reconhecimento por meio da valorização das mulheres
enquanto indivíduos em padrões culturais mais igualitários. Têm, portanto, caráter de
reconhecimento. Já a autonomia econômica está ligada a padrões de desigualdade de
rendimentos e acesso ao mercado de trabalho entre homens e mulheres, exigindo do
Estado seu padrão redistributivo como garantidor da igualdade. Políticas que visem à
promoção da autonomia econômica tem caráter redistributivo. Por fim, a autonomia
política se refere à condição que as mulheres possuem de ingerir sobre as fórmulas
normativas do Estado, fazendo-se presentes enquanto sujeitos políticos ativos. Essa
autonomia exige que o Estado reconheça as desigualdades de gênero implicadas na
estruturação de normas, leis e promova a reformulação das mesmas com a participação
das mulheres. Essas políticas têm caráter representativo.
A correção das desigualdades entre homens e mulheres - brechas de gênero -
promovem a justiça de gênero, condição necessária para a igualdade nesses termos. A
justiça de gênero está, portanto, diretamente vinculada à autonomia das mulheres e, por
7
isso, também diz respeito à redistribuição, reconhecimento e representatividade. No
caso da justiça redistributiva, questão implicada nas políticas que serão aqui analisadas,
a mesma pode ser medida, por exemplo, pela diminuição das diferenças de renda entre
homens e mulheres, de qualidade do vínculo empregatício ou de acesso ao mercado de
trabalho por meio da qualificação profissional - sendo renda e qualificação profissional
focos do PBF e PMM, respectivamente.
Há, portanto, conforme a matriz de análise, um fluxo que vai da intervenção
estatal - por meio de políticas públicas tendo a igualdade de gênero como processo e fim
-, à justiça de gênero - como critério de medição do sucesso ou não dessas políticas. A
intervenção visa ao fechamento das brechas de gênero e a consequente promoção da
autonomia e justiça de gênero. Por fim, cabe dizer que a justiça de gênero, para além de
sua tipificação, possui um duplo caráter: justamente por ser representativa, de
reconhecimento e redistributiva, ela contém o princípio da igualdade para que mulheres
sejam consideradas em igualdade com os homens, sem desconsiderar, contudo, o
histórico de submissão e desvantagens que as mulheres ainda enfrentam. Isso posto,
compreendemos, que a justiça de gênero almeja a igualdade entre homens e mulheres,
considerando no processo ações afirmativas que abarquem as construções de gênero
historicamente desiguais. Assim, ela diz respeito à igualdade enquanto fim, e à
igualdade na diferença, enquanto processo.
1.2 Aspectos metodológicos
A matriz para análise qualitativa de políticas justas de igualdade de gênero
compreende as três fases do ciclo de políticas públicas - formulação, implementação e
avaliação e monitoramento -, acrescida de uma fase anterior destinada a analisar como o
problema a que se refere determinada política pública se originou na sociedade e como
foi, por ela, interpretado. A cada uma dessas fases corresponde um conjunto de
perguntas norteadoras que, desde a gestão do problema, já apontam à justiça de gênero e
à participação social na construção da política. A seguir, passamos à breve explicação
da matriz por fases.
A fase A, identificação do problema, é aquela em que se analisa a definição das
agendas social, política e governamental. Aqui, importa qual é o problema a ser
enfrentado; como ele foi definido e interpretado em cada um desses âmbitos; que atores
participaram do processo de definição do problema; que injustiças pretende se combater
8
e que injustiças de gênero vivem as mulheres nesse contexto. A fase B, formulação da
política, se destina a apreender os objetivos da política pública e seu público-alvo; o seu
marco normativo; os atores político-sociais envolvidos, bem como alianças e conflitos
entre eles. A transversalidade entra como questão central aqui, pois que as alianças e
conflitos envolvem atores estatais de diferentes áreas. A fase C diz respeito à
implementação da política pública e, portanto, como a transversalidade é
operacionalizada. Devido aos limites deste artigo não nos deteremos sobre essa fase,
haja vista que é uma das que apresenta o maior número de componentes a serem
analisados. Do mesmo modo, dada a forma como as políticas sociais são implementadas
no Brasil desde a CF/88, para analisar o processo de implementação de pelos menos
duas das políticas aqui mencionadas (PBF e PMM), fazer-se-ia necessário debruçarmo-
nos sobre os contextos municipais, lócus da execução dessas políticas. Por fim, a fase D
diz respeito à avaliação e monitoramento da política. No monitoramento são relevantes
questões referentes à elaboração ou não de indicadores para mensurar o impacto da
política e, se existe - e em que grau de formalização - o diálogo entre Estado e sociedade
civil que permita acompanhar e garantir o cumprimento dessas ações. Na avaliação, são
analisados e comparados os objetivos e metas traçados com aqueles que foram
efetivamente alcançados; que injustiças de gênero foram corrigidas e quais não foram
ou tornaram-se relevantes no processo; se a política é focalizada ou universal e como se
dá a difusão das informações à ela relacionadas. Identificar se houve ou não produção
de informação pública e de que forma ela foi difundida; se a sociedade civil participou
desse processo e se tem como exigir informações sobre a política caso o Estado não as
forneça, configuram-se como questões igualmente relevantes.
Há questões presentes na matriz que justificam nossa escolha pelas política. Em
primeiro lugar, em todo o processo da política pública a matriz atenta para a
participação ou não da sociedade civil e para a transversalidade implicada nessa
política, estando ela presente tanto na interação entre atores políticos e sociais, quanto
na relação entre diferentes setores governamentais e entes federativos. Considerando-se
que a SPM-PR, órgão responsável por garantir institucionalmente a transversalidade de
gênero nas políticas brasileiras, passa a existir em 2003, é interessante averiguar se há
diferença nesse aspecto entre políticas criadas antes da SPM-PR (BPC) e políticas
criadas quando a mesma já existia (PBF e PMM). Em segundo, a matriz permite seu uso
tanto para políticas que já têm nos seus objetivos a justiça de gênero, quanto para
aquelas que não os consideram, mas podem impactar mulheres. O BPC não faz
9
distinção entre homens e mulheres nos seus objetivos, o PBF, embora também não o
faça, dados os objetivos voltados à família garante às mulheres a titularidade na
transferência de renda e o PMM tem como foco principal as mulheres. Assim, é
interessante comparar políticas cujas justiças de gênero não aparecem no início com
outras em que elas estão presentes, o que nos leva ao terceiro motivo pelo qual
escolhemos essas políticas.
O Brasil é o país mais desigual do mundo (Pesquisa Desigualdade Mundial,
2018), com 27,8% da renda do país nas mãos do 1% mais rico da população. Entre
homens e mulheres recai sobre elas, interseccionalizadas com etnia, raça e território, os
piores índices. Renda, portanto, é fundamental quando se pensa em corrigir brechas de
gênero e promover a autonomia de mulheres no país. Não por acaso Astelarra (2004)
aponta a estratégia de igualdade no mundo público como a mais comum dos países
latino-americanos no que diz respeito às políticas públicas de gênero. A diminuição da
concentração de renda e o aumento da renda das mulheres são, portanto, fundamentais
não podendo ser desconsideradas das análises a justiça redistributiva. Tanto o BPC
quanto o PBF são programas destinados à garantia de renda para aqueles(as)
impossibilitados(as) de garantirem seu sustento no mercado de trabalho e/ou
considerados(as) pobres, nos termos de cada um dos programas. O PMM, por sua vez,
ao promover qualificação das mulheres por meio da educação profissional, procura
garantir a elas condições para melhor colocação no mercado de trabalho e,
consequentemente, o aumento da sua renda. Por isso, a nossa escolha recai sobre essas
políticas.
2. Políticas de enfrentamento à pobreza no Brasil: renda e educação como
mecanismos para reduzir as desigualdades sociais
2.1 Benefício de Prestação Continuada (BPC)
Previsto pela CF/88 e instituído pela Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS
[Lei nº 8.742/93]), o Benefício de Prestação Continuada (BPC) destina-se à garantia de
benefício financeiro no valor de um salário mínimo mensal à pessoas com deficiência
que tenham impedimentos de longo prazo para trabalhar e ao(às) idoso(as) com 65 anos
ou mais que comprovem não possuir renda própria ou oriunda da família para o seu
sustento, constituindo-se no programa de assistência social brasileiro com o maior
volume de gastos e o segundo maior programa não contributivo de transferências do
10
país, sendo menor apenas que o Bolsa Família. O benefício é concedido à pessoas que
comprovem renda mensal familiar per capita inferior a ¼ (um quarto) do salário
mínimo em vigor e que estejam devidamente cadastradas no Cadastro Único para
Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico). Figura, ainda, como objetivo dessa
política, a promoção da autonomia da pessoa com deficiência e da pessoa idosa, de
modo a colaborar na identificação e garantia de outras necessidades básicas além da
renda.
A trajetória do BPC inicia no final dos anos 1980, quando o Brasil enfrentava
grave crise econômica e social ao mesmo tempo em que se preparava para voltar à
democracia. Esse período foi marcado por intensa mobilização social em torno de
direitos que a população almejava fossem incluídos na Constituição nascente.
Objetivava-se, sobretudo, assegurá-los institucionalmente, estruturando um arranjo de
bem-estar social sob o resguardo do Estado. Dentre os direitos demandados estava a
renda mínima necessária para garantir a cidadania econômica e social.
Sendo uma política que diz respeito à proteção social de pessoas que, por
alguma razão, estão impossibilitadas de trabalhar, o BPC assume o amplo objetivo de
garantir autonomia econômica e física, promovendo assim justiça redistributiva e de
reconhecimento para ambos os sexos. No ano de 1996, cerca de 304.227 pessoas com
deficiência recebiam o BPC, em 2015, 2.323.794 na mesma situação eram beneficiadas
pela política, representando um aumento de 764% em 9 anos. Com relação aos(às)
idosos(as), em 1996, 41.992 eram beneficiados(as) pelo BPC, já em 2015, 1.918.903
idosos(as) recebiam os recursos financeiros oriundos do programa, registrando, em
menos de 10 anos, um aumento de 1225%. Os dados aqui mencionados dão a dimensão
da importância do benefício para a população brasileira. Especificamente com relação
às mulheres, em 2015 cerca de 1.095.528 beneficiárias viviam com algum tipo de
deficiência, enquanto outras outras 2.219.770 eram idosas. Wajnman, Marri e Turra
(2009) afirmam que o benefício destinado às mulheres idosas representa, muitas vezes,
a principal renda familiar, sendo imprescindível para que muitas delas, bem como seus
dependentes, não vivam abaixo da linha da pobreza.
Quanto à formulação do BPC, a CF/88 estabeleceu o tripé da seguridade social -
saúde, assistência e previdência -, ficando a cargo da assistência social a formulação
dessa política que fora, mais tarde, incluída no texto da LOAS. A elaboração da Lei
Orgânica da Assistência Social foi um processo tenso, marcado por inúmeras disputas
acerca da extensão e caráter dos benefícios a ela vinculados. Do processo constituinte
11
participaram não apenas os(as) deputados(as) federais e senadores, mas houve também
participações individuais e da sociedade civil organizada. A metodologia participativa
utilizada na feitura da CF/88 foi inovadora e representou grande momento de
mobilização e participação política da sociedade brasileira. Com a estruturação da
política de Assistência Social a partir dela, o BPC teve garantida a sua implementação.
Entre os atores envolvidos nesse processo estavam, de uma lado, os órgãos relacionados
à categoria profissional dos(as) assistentes sociais, a Frente Nacional dos Gestores
Municipais e Estaduais, o movimento feminista, o Movimento pelos Direitos da Pessoa
com Deficiência, dos(as) idosos(as), das crianças e adolescentes de um lado e, de outro,
o governo federal. Reforçamos, desse modo, o fato de que a LOAS e, consequentemente
o BPC, são fruto da estreita interação entre sociedade civil organizada e o Estado.
No que tange à sua implementação, na medida em que os(as) demandantes
devem estar cadastrados(as) no CadÚnico, cabe aos Centros de Referência de
Assistência Social (CRAS), vinculados às Secretarias Municipais de Assistência Social
(SMAS) ou órgão correspondente, conduzi-los ao cadastramento. No caso das pessoas
com deficiência, para que se possa iniciar o processo de solicitação do benefício, é
preciso que se dirijam ao Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), vinculado ao
Ministério do Trabalho e Previdência Social (MTPS) com laudo médico que comprove
a deficiência e a impossibilidade para o trabalho. Nesse caso, a concessão do benefício
só é feita após o(a) requerente passar pela avaliação dos(as) médicos(as) do INSS.
Os(as) idosos(as), à semelhança daqueles(as) que vivem com alguma deficiência física
ou mental, também devem solicitar a concessão ao INSS. Em ambos os casos, faz-se
necessário comprovar a renda familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo em
vigor.
O processo de avaliação, controle e vigilância do BPC envolve os três entes
federativos, sendo financiado pela União, todo o seu recurso proveniente do Fundo
Nacional da Assistência Social (FNAS), vinculado ao Ministério do Desenvolvimento
Social (MDS). Segundo o artigo 21 da LOAS, a cada 2 anos deve ser verificado se o(a)
beneficiário(a) continua atendendo aos critérios para o recebimento do benefício.
Cabendo aos CRAS, munidos de formulários padrão utilizados em todo o território
nacional, realizar a visita domiciliar aos(às) beneficiários(as) para averiguação. Todo o
processo de revisão do benefício é informatizado, tendo o DATAPREV, em parceria
com o MDS e o INSS, desenvolvido um sistema para isso - o Sistema de Revisão de
Avaliação Social (REVAS). Para o acompanhamento dos(as) beneficiários(as), foi
12
desenvolvido o Programa Nacional de Monitoramento e Avaliação do BPC, sob
coordenação e responsabilidade da Secretaria Nacional de Assistência Social
(SNAS/MDS), cujo objetivo é registrar o acompanhamento dos beneficiário e sua
família no âmbito do SUAS, por meio de um banco de dados, de forma a permitir o
acesso a outras políticas. Havendo, nesse caso, razoável nível de desagregação dos
dados por sexo, tipo de benefício, tipo de deficiência, distribuição por estados e
municípios e séries históricas. Os dados também são produto da interação entre União,
Estados, Municípios e Distrito Federal (DF), estando disponíveis no site do MDS eles
podem ser acessados pelo público em geral, valendo o mesmo para os dados
orçamentários.
2.2 Programa Bolsa Família (PBF)
O PBF, instituído em 2003, é um programa de transferência direta de renda com
condicionalidades e se constitui como uma política intersetorial, haja vista que articula,
no que concerne às contrapartidas a que seus(suas) beneficiários(as) estão sujeitos(as),
várias políticas sociais à transferência de renda. Na prática, a transferência direta de
renda significa que o valor mensalmente repassado aos(às) seus(suas) beneficiários(as) é
depositado em uma conta bancária particular na Caixa Econômica Federal (CEF), não
havendo, portanto, intermediários entre o benefício monetário e o sujeito-alvo da
política. Tendo o PBF unificado outros programas de transferência de renda existentes à
época de sua criação, a ausência de quaisquer intermediações no processo de repasse do
benefício fora considerada um dos principais avanços por ele promovidos (Eger: 2013;
Eger e Damo: 2014).
Criado em um contexto de maior interferência do Estado brasileiro sobre as
políticas sociais, o programa procurou efetivar, ainda que tardiamente, alguns direitos
sociais constitucionalmente previstos, instituindo uma renda mínima não contributiva,
focalizada em famílias pobres e extremamente pobres. O PBF destina-se, assim, à
superação do ciclo de reprodução intergeracional da pobreza (BRASIL, 2006), objetivo
que deve ser alcançado através da promoção do alívio imediato da pobreza
(transferência de renda); do reforço ao exercício de direitos básicos nas áreas de saúde,
educação e assistência social (condicionalidades) e da promoção de oportunidades para
o desenvolvimento das famílias (inclusão social através do acesso a bens e serviços).
Considerado uma das mais importantes políticas sociais beneficiou, em agosto de 2018,
13
beneficiou quase 14 milhões de famílias, cujo valor médio dos benefícios foi de R$
188,16, alcançando um valor total de R$ 2.625.161.695,00 no mês (MDS, 2018). Ao
longo de sua implementação, o programa não apenas reajustou o valor dos benefícios,
como também ampliou sua cobertura. De 6.571.839 famílias beneficiadas em 2004, o
PBF passa a beneficiar 13.569.576 de famílias em 2016 (MDS, 2017).
A fonte de financiamento do PBF é nacional, sendo os recursos orçamentários
direcionados ao pagamento dos benefícios oriundos do Tesouro Nacional. No entanto,
recursos injetados por organismos internacionais, como o Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID) e o Banco Mundial, foram utilizados, principalmente, para
financiar pesquisas de avaliação de impacto e capacitações aos(às) técnicos(as) que
atuam na gestão do programa. De modo que duas avaliações de impacto foram
produzidas para verificar as mudanças socioeconômicas proporcionadas pelo programa
(Cedeplar/UFMG: 2007; FUNDEP/UFMG: 2012). Do ponto de vista da divulgação de
informações, além das inúmeras pesquisas realizadas em âmbito governamental e
acadêmico (Medeiros et al: 2008; Soares e Sátyro: 2009; Cotta e Paiva: 2010; Eger;
2013; Eger e Damo: 2014), o programa conta com um dos sistemas informacionais mais
completos e atualizados do governo brasileiro.
Quanto aos critérios de elegibilidade, para participar do PBF, as famílias
precisam realizar a inscrição no CadÚnico, devendo possuir uma renda mensal familiar
per capita inferior a R$ 170,00. Na medida em que o principal critério de seleção
dos(as) beneficiários(as) é a renda familiar, o Bolsa Família baseia-se em um processo
de triagem orientado pelo princípio da focalização, segundo o qual são determinadas
duas linhas de elegibilidade: Linha de Pobreza e Linha de Extrema Pobreza. Enquanto
a primeira diz respeito às famílias que possuem renda mensal familiar per capita entre
R$ 89,01 e R$ 178,00, a segunda refere-se à famílias que possuem renda mensal
familiar per capita de até R$ 89,00. Os valores dos benefícios, por sua vez,
correspondem às linhas de pobreza e extrema pobreza e possíveis variações na
composição familiar, de modo que i) a presença de gestantes, nutrizes, crianças e
adolescentes até 15 anos, jovens entre 16 e 17 anos permite que as famílias acumulem
até 3 benefícios variáveis no valor de R$ 41,00 cada um e, ii) a presença de jovens entre
16 e 17 anos, permite que as famílias recebam até 2 benefícios variáveis no valor R$
46,00 cada. Assim, os valores atuais do Bolsa Família, uma vez que as famílias podem
acumular até 5 benefícios variáveis ao valor base, variam entre R$ 41,00 e R$ 304,00.
14
Soma-se à transferência de renda, a participação obrigatória dos(as)
beneficiários(as) em ações das áreas da educação, saúde e assistência social, de forma
que as condicionalidades tornam-se um elemento importante do processo de
implementação do programa. Sendo assim, no campo da educação, cabe às famílias
beneficiárias manterem as crianças entre 6 e 15 anos matriculadas e com frequência
escolar mensal mínima de 85% da carga horária, enquanto os(as) adolescentes, entre 16
e 17 anos, devem ter frequência mínima de 75%. Quanto à saúde, as famílias se
comprometem em acompanhar o cartão de vacinação e o crescimento e
desenvolvimento – através de pesagem e medição de altura – das crianças menores de 7
anos. As meninas, após os 7 anos, permanecem cumprindo a condicionalidade da saúde,
assim como as mulheres em idade fértil até os 49 anos de idade e, quando gestantes e/ou
nutrizes, devem realizar periodicamente o pré-natal e acompanhamento da saúde do
bebê. E, por fim, em relação à assistência social, é dever das famílias beneficiárias do
PBF encaminhar (e possibilitar a permanência de) crianças e adolescentes com até 16
anos de idade que se encontram em risco - ou tenham sido retirados(as) do trabalho
infantil - aos Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) do
Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), obtendo uma frequência mínima
de 85% da carga horária mensal. Devem, ainda, participar das atividades ofertadas pelos
Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) e/ou Centros de Referência
Especializada de Assistência Social (CREAS) e realizar o recadastramento a cada dois
anos (prazo máximo), levando a documentação completa de todos os integrantes do
grupo familiar.
Em termos institucionais, o PBF, seguindo a lógica de descentralização das
políticas sociais, tal como instituído pela CF/88, é executado e gerido de forma
descentralizada e compartilhada, de modo que os distintos entes federados atuam de
forma corresponsável em sua implementação e execução. Compete, portanto, ao
governo federal, entre outras coisas, normatizar os procedimentos de gestão e execução
do CadÚnico; apoiar financeiramente os estados, municípios e Distrito Federal (DF)
para a efetiva implementação do PBF e do CadÚnico; realizar o pagamento mensal de
benefícios às famílias beneficiadas, etc. Enquanto aos governos estaduais, compete a
constituição de coordenação intersetorial responsável pelo PBF; a gestão intersetorial
em nível estadual do programa; disponibilizar equipamentos estatais vinculados às
condicionalidades, etc. Aos municípios e ao DF, por sua vez, inscrever as famílias de
baixa renda no CadÚnico e atualizar suas informações a cada dois anos; realizar o
15
controle social do PBF; promover a intersetorialidade em nível local; acompanhar e
fiscalizar as ações do programa junto aos(às) seus(suas) beneficiários(as) e ofertar os
equipamentos estatais necessários para oferta das ações relacionadas às
condicionalidades (educação, saúde e assistência social).
Apesar do evidente foco sobre as dimensões de gênero (mulheres gestantes ou
nutrizes) e geração (crianças e/ou adolescentes), conforme podemos observar a partir do
direcionamento das condicionalidades (Klein, 2003), o PBF destina-se, sobretudo ao
alívio da extrema pobreza e ao rompimento do ciclo intergeracional da pobreza em
âmbito familiar. O conceito de família adotado pelo programa é bastante amplo e
incorpora todos(as) aqueles(as) que vivem sob o mesmo teto e dividem, entre si, seus
ganhos e recursos. Desse modo, um dos avanços promovidos pelo Bolsa Família, em
relação aos outros programas de transferência de renda também destinados às famílias,
que foram por ele incorporados, encontra-se no fato de garantir-se, a partir dele, uma
renda mínimo também àquelas famílias consideradas extremamente pobres que não
tenham sob seus cuidados crianças e/ou adolescentes. Com isso, casais, homens e/ou
mulheres sozinhos(as) e pessoas em situação de rua, na medida em que atendam aos
critérios de elegibilidade quanto à extrema pobreza, podem ser beneficiados(as) pelo
programa.
De um modo geral, contudo, é importante mencionar que mais de 90% dos
titulares do cartão do programa são mulheres, sendo que, entre essas, quase 70% são
negras. Schwarzstein (2017), menciona os comentários feitos em 2013 pela, então,
ministra da SPM-PR, Eleonora Menicucci acerca do papel desempenhado pelo PBF em
relação a autonomia financeira das beneficiárias: “[...] o programa assegurou a
autonomia econômica de milhões de brasileiras para gerir os recursos e mostra que a
igualdade de gênero foi colocada no centro das políticas públicas [...]” (Portal Brasil,
2013 apud Schwarzstein, 2017). A referida autonomia aludida pela ex-ministra não
constava, contudo, entre os objetivos do Bolsa Família, sendo, no entanto, apresentada,
no que concerne à primeira avaliação de impacto do programa, como um de seus
resultados positivos. Schwarzstein (2017) chama atenção para o fato de que no relatório
fruto dessa primeira avaliação de impacto, afirma-se que a entrega direta do benefício
financeiro às mulheres, implica em uma melhoria nas condições de vida daqueles(as)
considerados(as) mais vulneráveis no seio familiar, não implicando, porém, no aumento
do bem-estar das próprias mulheres que eram agentes responsáveis por essas mesmas
melhorias.
16
Quanto ao seu principal objetivo, redução da pobreza extrema, dados da
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD/IBGE) apontam que, desde a
criação do PBF em 2003 até 2014, o número de indivíduos extremamente pobres foi
diminuindo progressivamente. Em 2003 eram 26.242.672 indivíduos e, em 2014,
8.191.008. O mesmo se verifica com relação aos indivíduos pobres: de 61.814.129
indivíduos em 2003 para 25.888.565 em 2014. Ambos os cálculos consideram as
necessidades calóricas como critério.
Não obstante, as críticas que o programa vem recebendo ao longo de sua
existência, é inegável que a ampliação da proteção social no Brasil através de estratégias
como o Bolsa Família, foi fundamental para a redução da pobreza, mas principalmente,
para a redução da miserabilidade no Brasil.
2.3 Programa Mulheres Mil (PPM)
O Programa Mulheres Mil (PMM), nacionalizado em 2011, tem por objetivo
oferecer formação profissional, tecnologia e certificação de saberes populares à
mulheres em situação de vulnerabilidade social. Além disso, visa a redução do
analfabetismo entre as mulheres, criando mecanismos para vincular as participantes do
Programa que são analfabetas ao EJA. O PMM foi elaborado na intersecção entre
combate à pobreza, igualdade de gênero e demanda por formação profissional, o que fez
com que ao MEC se juntassem, em âmbito federal, mesmo antes da criação do
Programa, a SPM-PR, que já incluía nos seus PNPMs a formação profissional e o
combate ao analfabetismo das mulheres como eixo temático. Como a elaboração desses
Planos contava com a participação das mulheres e organizações feministas em nível
municipal, estadual e federal, não é equivocado afirmar que, nesse sentido, a sociedade
civil participou da construção da política ao menos na definição do problema, objetivos,
metas e linhas de ação para enfrentá-lo. Também é visível a contribuição da Secretaria
na escolha do público-alvo: além de serem mulheres em situação de vulnerabilidade, a
preferência seria dada àquelas que fossem vítimas de violência doméstica. Tendo em
vista a intersetorialidade presente em seu desenho institucional, a base legal do
programa respalda-se, portanto, sobre portarias e leis da área da educação e gênero,
sendo previsto em planos da educação, do trabalho, assistência social e políticas para
mulheres.
17
De caráter redistributivo, o programa integra as estratégias desenvolvidas no
país para a promoção do acesso e permanência das mulheres no mercado de trabalho
com vistas à autonomia econômica. A inserção das mulheres no mercado de trabalho
formal é um fenômeno que se inicia, no Brasil, na década de 1970 e se consolida nos
anos 2000, sendo considerada irreversível, pois que a participação feminina nessa área
cresce apesar de cenários econômicos recessivos ou expansivos (Sorj, 2004). Passa-se,
por exemplo, de 52,2% de mulheres economicamente ativas em 1996 para 59% da
população feminina em 2006, período em que a taxa de população masculina
economicamente ativa apresentou tendência de queda (II PNPM). Ao mesmo tempo, o
nível de escolarização formal das mulheres aumentou e, atualmente, elas possuem mais
anos de estudo que os homens, sendo a maioria da população matriculada no ensino
básico.
Se por um lado o cenário parecia favorável à elas, por outro, ainda persistiam - e
persistem - barreiras à plena integração das mulheres ao mercado de trabalho de formal.
Embora tenha aumentado a população feminina economicamente ativa (PEA), essa
ainda era bastante inferior à masculina, que em 2006 era de 82,2%. Do mesmo modo,
mesmo com maior nível de escolaridade, as mulheres seguiam ocupando a maioria dos
postos informais de trabalho, recebendo salários menores que os homens para o mesmo
tipo de ocupação e ocupando a maioria das vagas em empregos de meio turno ou com
jornadas reduzidas dado o forte familismo no regime de proteção social brasileiro. O
resultado era, e continua sendo, o menor rendimento feminino em comparação ao
masculino, dificultando a autonomia econômica das mulheres e representando uma
injustiça de gênero de caráter redistributivo. Em 2006, por exemplo, o rendimento
auferido pela população feminina era de R$504 ao passo que o masculino era R$ 774,
ou seja, o rendimento mensal de uma mulher correspondia a 65% do rendimento mensal
de um homem. Somam-se a isso o aumento do número de famílias chefiadas por
mulheres - e, consequentemente, dependentes da renda feminina -, e o persistente
analfabetismo entre os adultos no Brasil.
Com relação à chefia familiar, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
(PNAD) aponta que entre 2001 e 2009 o percentual de famílias brasileiras chefiadas
por mulheres subiu aproximadamente de 27% para 35%. Em termos absolutos eram
quase 22 milhões de famílias que identificavam como principal responsável alguém do
sexo feminino (PNAD 2009 – Primeiras análises: Investigando a chefia feminina de
família). Esse crescimento foi verificado também em casas em que o marido estava
18
presente. Das mulheres no papel de cônjuge, 73% ganhavam menos que seus maridos.
Com relação ao analfabetismo, em 2009 o Brasil possuía 14.104.984 de analfabetos,
9,7% da população. A taxa de analfabetismo entre as mulheres era de 9,6% e entre os
homens, 9,8%. É nesse cenário de urgência com relação às mulheres e ao mercado de
trabalho formal que o Programa Mulheres Mil é elaborado, em 2007, e replicado
nacionalmente, em 2011, significando, com isso, sua entrada na agenda dos governos
federais do Partido dos Trabalhadores (PT), marcadamente progressistas com relação às
políticas sociais, de modo geral, e àquelas destinadas às mulheres, de modo específico.
No que tange à sua execução, faz-se necessário que o município interessado
adira ao PMM via Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS) ou órgão
correlato. A Rede Socioassistencial (RSA) local em parceria com a equipe
multidisciplinar do ofertante (Instituto Federal [IF]) mapeia os territórios e faz a busca
ativa das mulheres que almejam participar dos cursos. O acompanhamento das
participantes e seu percurso formativo deve ser realizado em conjunto entre a RSA e a
equipe técnica da unidade ofertante. A articulação com outras políticas públicas de
trabalho e emprego, ou de outras necessidades identificadas, é de responsabilidade dos
CRAS/SMAS. A sua implementação, porém, ganhou contornos distintos ao longo do
tempo.
Entre 2007 e 2011, por exemplo, o PMM era desenvolvido como projeto-piloto
na região nordeste com apoio técnico da cooperação internacional Brasil-Canadá. Os
financiadores e executores brasileiros foram à Agência Brasileira de Cooperação
(ABC), a SETEC/MEC e à Rede Norte/Nordeste de Educação Tecnológica. Os
canadenses, à Association of Canadian Community Colleges (ACCC), à Canadian
International Development Agency (CIDA) e às universidades canadenses. Ao Brasil,
nesse contexto, cabia o fornecimento de infraestrutura e equipes profissionais para o
desenvolvimento dos cursos, ao Canadá, a metodologia e capacitação das equipes.
Nesse período, o público-alvo do PMM eram mulheres nordestinas em situação de
vulnerabilidade social. Já em 2011, com a nacionalização do PMM, o programa tornou-
se responsabilidade da Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica
(SETEC/MEC). Tornaram-se instituições parceiras, em âmbito federal, a SPM-PR a
Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, o MDS e o Conselho
Nacional de Instituições da Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica
(CONIF) (ALMEIDA, 2014). Ampliou-se o público-alvo, considerando as mulheres em
19
situação de vulnerabilidade social, priorizando-se, contudo, àquelas que eram vítimas de
violência doméstica.
Em 2013, atendendo a pedidos dos IFs, o MEC vinculou o PMM ao Programa
Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC/MEC), sendo o
custeio da implementação do Programa garantido pela Bolsa Formação do
PRONATEC. A Bolsa garantia verba para todas as despesas de custeio de vagas
(mensalidades, material didático, encargos educacionais e fornecimento de alimentação
e transporte aos e às estudantes). No início de 2014, contudo, o Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e o MEC firmaram parceria,
integrando o PMM ao PRONATEC no âmbito do Plano Brasil Sem Miséria
(Pronatec/BSM), cujo recorte mantinha-se específico para pessoas em situação de
vulnerabilidade social, ampliando-o, no entanto, àquelas mulheres que eram vítimas de
violência doméstica e/ou beneficiárias do PBF.
Em relação ao monitoramento do PMM, esse é realizado através do Sistema
Nacional de Informações da Educação Profissional e Tecnológica (SISTEC/MEC). O
SISTEC é alimentado pelas unidades de ensino ofertantes dos cursos, que fornecem
dados sobre os cursos que são disponibilizados, quantas mulheres foram/estão
matriculadas, sobre evasão, conclusão, desligamentos e trocas de curso. Não há,
contudo, campo para o preenchimento do quesito raça/cor. O programa, em nível
federal, dispõe de um amplo aparato para divulgação de informações pertinentes à sua
condução. Especificamente sobre a quantidade de mulheres formadas pelo PMM, pode-
se acessar os Relatórios Anuais de Avaliação do PPA, que estão disponíveis à
população via acesso on line e, também, um blog que fora produzido quando o
programa era ainda um projeto-piloto, no qual se encontram algumas publicações sobre
a política e o testemunho das participantes. Porém, em nível local, não foram
desenvolvidos muitos mecanismos de acompanhamento da implementação e, uma vez
que esses ficam a cargo dos municípios, ao contrário do que acontece com o BPC, são
pouco padronizados.
A título de resultados, a meta do PMM era de formar 100 mil mulheres de 2012
a 2014. Segundo o Relatório Anual de Avaliação do PPA 2012-2015 com ano-base
2014, o PMM tinha formado, até 31/12/2014, 75.064 mulheres em todo o território
nacional. Dados sobre a inserção ou não delas no mercado de trabalho e sobre o impacto
do programa nas suas vidas, na vida de suas família e comunidade - dimensões
também previstas nos objetivos do Programa - não foram encontrados.
20
2.4 Políticas brasileiras de combate à pobreza: considerações à luz da matriz
analítica para identificar políticas justas à igualdade de gênero
Neste momento, retomamos as três políticas voltadas ao enfrentamento da
pobreza aqui apresentadas, com o objetivo de refletir sobre elas à luz da matriz analítica
desenvolvida por Benaventes e Valdes (2014) para identificar políticas públicas justas à
igualdade de gênero. Dessa forma, não obstante a complexidade e a peculiaridade de
cada uma das ações governamentais sobre as quais nos debruçamos, focaremos em
alguns pontos: i) interconexão com outras políticas; ii) interseccionalidade com outros
marcadores sociais; iii) transversalidade da SPM-PR e as políticas de enfrentamento à
pobreza por nós analisadas; iv) participação da sociedade civil; v) o conceito de
vulnerabilidade social que fundamenta cada uma dessas políticas; vi) os objetivos
relativos à justiça de gênero; vii) avaliação e produção de dados sobre essas políticas e,
por fim, viii) a aplicação dessa matriz às políticas de gênero que não tenham as
mulheres como foco.
No que diz respeito ao primeiro ponto - a interconexão entre o BPC, o PBF e o
PMM com outras políticas -, chamamos atenção para o fato de que, uma vez que essas
políticas, apesar de não se constituírem como ações governamentais universais,
possuem uma ampla cobertura e desenhos institucionais bastante complexos, não seria
possível implementá-las desconsiderando a existência de outras políticas - executadas
em âmbito municipal, estadual e federal - que, igualmente, visam garantir um vasto
leque de direitos. Compreendemos, portanto, que há uma clara tentativa do Estado
brasileiro no sentido de se estruturar enquanto promotor de bem-estar social, ainda que
atuando, preponderantemente, de maneira focalizada com relação à justiça
redistributiva. No caso do PMM, por exemplo, a existência de outras políticas de base
educacional (como Pronatec e IFs), foi imprescindível para sua viabilidade e
exequibilidade em território nacional.
Essa, no entanto, não é uma realidade para todas as dimensões em torno da
justiça e autonomia de gênero aqui abordadas. Há que se considerar, nesse sentido, que
não são feitas menções, nos documentos governamentais oficiais, à relação dessas
políticas com outras ações direcionadas a gênero, como àquelas de enfrentamento à
violência contra a mulher - situação vivida por muitas brasileiras e que, por sua
complexidade, exige respostas ancoradas nos mais diversos setores sociais e
21
governamentais. A autonomia física, como se sabe, é condição necessária para uma vida
digna e essa só consta como elemento a ser considerado nas preferências de público-
alvo do PMM - mulheres vítimas de violência doméstica -, não havendo, contudo,
desdobramentos no que diz respeito à sua promoção por meio do encaminhamento à
políticas específicas. O que mostra a pouca articulação entre muitas dessas ações
governamentais, haja vista que a autonomia física, tal como promovida pela Lei Maria
da Penha (2006), constitui-se como um direito estendido a todas as mulheres devendo,
portanto, ser resguardado.
Considerando, ainda, o princípio da focalização como um importante aliado para
alcançar grupos minoritários, a falta de interseccionalidade entre essas políticas com
outros marcadores sociais, aponta para necessidade de prudência quanto aos seus
méritos. No contexto brasileiro, raça e/ou cor importa. Quando, a partir da noção de
gênero, observamos o cenário em torno das mulheres, são visíveis as diferenças entre
brancas e negras. Enquanto as mulheres negras têm os piores rendimentos, os piores
níveis de escolarização e são as que mais sofrem violência doméstica, sendo, por essa
razão, as que se encontram em maior situação de vulnerabilidade social, o PMM e o
PBF não prevêem produção de dados que considerem a categoria raça como um
instrumento para direcionar ações a esse contingente populacional. O PMM, embora
promova formação sobre direitos sociais, não toca na questão de raça e o BPC, por sua
vez, mesmo contando com bom nível de desagregação de dados, não permite verificar a
distribuição do benefício segundo essa categoria. Ao observamos a atuação pública
sobre as especificidades de outras etnias, o quadro tende a piorar. De forma, que são as
mulheres indígenas as mais vulneráveis dentre todas as brasileiras, sendo, igualmente,
as que menos têm direitos sociais garantidos pelo Estado, ainda que apareçam nos
PNPMs.
Constar como prioridade nos PNPMs não garante, portanto, a presença em
planos de outras áreas. Seguindo nessa linha, apontamos para a pouca formalização da
transversalidade entre a SPM-PR e as políticas aqui analisadas. A SPM-PR, ao longo de
sua existência, não angariou recursos financeiros e políticos suficientes para se fazer
presente e participar ativamente nas duas maiores políticas assistenciais do país - em
termos de volume de gasto e cobertura -, o BPC e o PBF. Possivelmente, pese, nesse
caso, o fato da SPM-PR ser um órgão que não conta com orçamento próprio, o que
inviabiliza seu potencial em termo de negociações interministeriais e intersetoriais.
22
O quarto ponto que consideramos fundamental para compreender o
direcionamento das políticas em direção a justiça e equidade de gênero é a garantia de
participação da sociedade civil em seus processos decisórios. Essa é uma dimensão que,
ainda incipiente, parece ter sido mais intensa no momento da colocação das demandas
sociais na agenda política da CF/88, que resultaram, entre outras coisas, na formulação
da LOAS/1993 e na criação das bases legais necessárias à posterior formulação do
PMM e do PBF. Embora as Conferências de Políticas para as Mulheres, das quais os
PNPMs são o produto, contem com participação de mulheres nos níveis municipal,
estadual e federal, ela acaba ficando restrita à identificação de prioridades, o que não
garante participação na formulação da política. No entanto, com relação ao
monitoramento das políticas pela sociedade civil, o PBF é o que mais avança nesse
sentido, prevendo a participação social através dos Conselhos nos três níveis
federativos. Na prática, porém, essa participação ainda é frágil, principalmente nos
municípios, pois que as realidades locais no Brasil são muito díspares. Há aqueles,
portanto, em que a sociedade civil é bastante organizada e atuante, enquanto, em outros,
ela não chega a assumir um papel significativo.
Avançamos, pois, para o quinto ponto de nossa análise - o conceito de
vulnerabilidade social presente no BPC, no PBF e no PMM. Infelizmente, apesar da
amplitude do conceito de vulnerabilidade, no escopo das políticas aqui analisadas, esse
é considerado apenas como sinônimo de carência material. Há, no entanto, a dimensão
psico-social da vulnerabilidade que precisa ser considerada no desenho dessas políticas,
haja vista que o Brasil é o país com maior número de casos de depressão da América
Latina (5,8%) e com maior incidência de ansiedade do mundo (9,3%) (OMS, 2018),
sendo ambas as enfermidades mais significativas na população feminina. A título de
exemplo e em relação direta com uma das políticas aqui analisadas, apontamos para o
fato de que depressão e ansiedade foram identificadas como os principais empecilhos
para a conclusão dos cursos do PMM no município de Tubarão, em Santa
Catarina/Brasil. É importante, portanto, lembrar que muitas vezes - e principalmente na
população de baixa renda - o único tratamento é a medicalização, que pode não ser
adequada e não necessariamente prescrita por médico especialista nas Unidades Básicas
de Saúde - porta de entrada da população à garantia do direito universal e gratuito à
saúde. Assim, políticas focalizadas na vulnerabilidade social não podem prescindir da
questão psico-emocional.
23
Em relação ao sexto ponto - objetivos relativos à justiça de gênero -, esses são
claramente explícitos apenas no PMM, política que tem as mulheres como público-alvo
e, também, aquela em que mais se verificou a presença da SPM-PR, mencionada em
documentos oficiais como parceira do MEC. O BPC, embora fundamental para a
autonomia econômica feminina e para que muitas famílias se mantenham acima da linha
da pobreza, não tem objetivos específicos para o público feminino. Enquanto o PBF,
por sua vez, mesmo sendo o maior programa social de transferência de renda, sendo as
mulheres mais de 90% das titulares do benefício, não possui objetivos relacionados
especificamente às mulheres e à autonomia econômica e empoderamento (Schwarzstein,
2017). As mulheres são mencionadas no escopo do programa enquanto mães e
responsáveis pelo cuidado familiar, o que pode reforçar a divisão sexual do trabalho
(Klein, 2003). Não queremos dizer, com isso, que o PBF impede o avanço da justiça
redistributiva de gênero - ou outra - e autonomia financeira das mulheres. Os dados
sobre o aumento do trabalho remunerado entre as beneficiárias indicam que são
possíveis mudanças nesse sentido. Porém, isso ocorre de forma não intencional, o que
demonstra que, dada a envergadura dessa política, poder-se-ia avançar muito na
dimensão de justiça e equidade de gênero tendo o PBF como aliado.
Quanto à avaliação e o monitoramento dessas políticas, é indiscutível que esses
instrumentos de gestão pesam muito sobre os CRAS, estruturas municipais ainda
fragilizadas. Isso, de modo geral, compromete o avanço e correções de rota nas
políticas. Ademais, apesar do avanço experimentado nos últimos anos em torno da
construção de dados e indicadores em torno das políticas brasileiras, é preciso qualificar
sua produção em termos qualitativos, permitindo, assim, estudos longitudinais sobre as
mulheres que são beneficiadas por políticas como as que analisamos aqui e,
possibilitando avaliações sobre a promoção da cidadania através dessas ações
governamentais. Com relação às estatísticas de gênero, por exemplo, a SPM-PR criou
em 2006 o Sistema Nacional de Informações de Gênero (SNIG), cujo objetivo era
produzir relatórios e sobre a situação das mulheres a partir dos censos do IBGE. Desde
2013, o IBGE seguindo recomendação das Nações Unidas desenvolve e realiza pesquisa
com um conjunto de indicadores de gênero, disponibilizando os bancos de dados, notas
técnicas e publicações no seu site. Não há, contudo,cruzamento entre esses indicadores
e as metas estabelecidas por políticas como o Mulheres Mil.
Por fim, e à guisa de conclusão, apontamos para a dificuldade de aplicar a matriz
analítica às políticas de gênero que não tenham mulheres como foco, como é o caso das
24
políticas relacionadas a homens e cuidado, por exemplo. Os pontos levantados pela
matriz conduzem as análises para a consideração das mulheres como sujeitos-alvo de
políticas públicas e a sua colocação na esfera pública. Porém, dado que gênero é
categoria relacional, é necessário analisar, também, como os homens estão sendo
considerados nos processos com vistas à igualdade de gênero. Políticas que incentivam,
por exemplo, o cuidado paterno na esfera privada, contribuem para a reorganização da
divisão sexual do trabalho e se apresentam, consequentemente como uma questão
positiva à vida das mulheres. Talvez a pouca visibilidade de políticas desse tipo -
familiares e voltadas para o cuidado paterno e parental - seja reflexo das estratégias para
a igualdade de gênero latinoamericanas que, em comparação com as europeias, focam
menos nesse aspecto e mais nas políticas de oportunidades em âmbito público.
Referencias bibiográficas
Astelarra, Judith (2004). “Políticas de género en la Unión Europea y Algunos Apuntes
sobre America Latina”. Unidad Mujer y Desarrollo Secretaría Ejecutiva CEPAL.
Bandeira, Lourdes Maria; Almeida, Tânia Mara C. A transversalidade de gênero nas
políticas públicas. Revista do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (Ceam),
v. 2, Universidade de Brasília, 2013, p. 35-46.
Bandeira, Lourdes. Fortalecimento da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres:
avançar na transversalidade da perspectiva de gênero nas políticas públicas. Brasília:
CEPAL; SPM, 2005.
Benavente R., María Cristina y Alejandra Valdés Barrientos (2014), “Políticas
públicas para la igualdad degénero: un aporte a la autonomía de las mujeres”, Libros
de la CEPAL, N° 130, Santiago de Chile,Naciones Unidas, CEPAL.
Bichir, Renata Mirandola. “O Bolsa Família na berlinda? Os desafios atuais dos
programas de transferência de renda”. In: Novos Estudos CEBRAP, v. 87, 2010. p. 1-
23.
BRASIL. Presidência da República. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres.
Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. Brasília, 2004.
_______. Presidência da República. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. II
Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. Brasília, 2008.
______. Ministério da Educação e Cultura. Secretaria de Educação Profissional e
Tecnológica (SETEC). Mulheres Mil – Educação, cidadania e desenvolvimento
sustentável: um modelo de acesso. Brasília, 2008
_______. Presidência da República. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres.
Plano Nacional de Políticas para as Mulheres 2013-2015. Brasília, 2013.
25
_______. Ministério da Educação e Cultura. Secretaria de Educação Profissional e
Tecnológica (SETEC). Pronatec Brasil Sem Miséria – Mulheres Mil. Brasília, 2014.
_______. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Secretaria de Planejamento
e Investimentos Estratégicos. Relatório Anual de Avaliação do PPA 2012-2015 ano-
base 2014. Volume II - Programas Temáticos. Tomo I - Programas Sociais. Brasília,
2015.
_______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria
Nacional de Assistência Social. Boletim BPC 2015: Benefício de Prestação Continuada
da Assistência Social. Brasília, 2016.
Celi Regina Pinto. 1993. “As ONGs e a política no Brasil: presença de novos atores”,
Rev. de Ciências Sociais. 49: 651-670.
Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Universidade Federal de
Minas Gerais (Cedeplar/UFMG). Avaliação de Impacto do Programa Bolsa Família.
Brasil, 2007
Eger, Talita Jabs; Damo, Arlei Sander. 2014. “Money and Morality in the Bolsa
Família. In: Vibrant Rev. 11: 250-284.
Eger, Talita Jabs. 2013. “Dinheiro e Moralidade no Bolsa Família: uma perspectiva
etnográfica”. Dissertação de mestrado, Programa de Pós Graduação em Antropologia
Social – UFRGS. 210p.
Klein, Carin. “... Um cartão [que] mudou nossa vida?” Maternidades veiculadas e
instituídas pelo Programa Nacional Bolsa-Escola. UFRGS [dissertação], 2003
Rosa, Stela Marcia Moreira. 2016. “Reconhecimento de saberes no Programa Mulheres
Mil: entre a colonialidade do poder e de gênero”. Dissertação de mestrado, Programa de
Pós-graduação em Educação - UFSC. 287p.
Silva e Silva, Maria Ozanira. 2009. “Programas de transferência de renda: uma renda
básica de cidadania e uma renda mínima condicionada (entrevista especial com Eduardo
Matarazzo Suplicy)”. Revista Políticas Públicas São Luís. 13:.231-240
Soares, Sergei, e. Sátyro, Natália, O programa bolsa família: Desenho institucional,
impactos e possibilidades futuras. Texto para Discussão nº 1424 Brasília: IPEA. 2009.
Sorj, Bila et al. Reconciling work and family: Issues and policies in Brazil. Geneva:
International Labour Office, 2004.
Wajnman, S.; Marri, I. y Turra, C. M. 2008. “Os argumentos de proteção social e
equidade individual no debate sobre previdência e gênero no Brasil”. Mudança
populacional: aspectos relevantes para a Previdência. Brasília: Ministério da
Previdência Social.
26
Anexos
Quadro 1: Quadro comparativo da matriz de análise para identificar políticas justas de
igualdade de gênero
BPC PBF PMM
Fo
rmu
laçã
o d
a p
olí
tica
Ano de criação 1993.
Operacionalizaçã
o em 1996
2003 Nacionalizado
em 2011
Problema Desproteção
social de pessoas
impossibilitadas
de buscar a
provisão do seu
bem-estar no
mercado
Pobreza e
extrema pobreza
Brecha
econômica entre
homens e
mulheres e
analfabetismo na
população
feminina adulta
Objetivo Garantia de renda
mínima para
pessoas
impossibilitadas
de fazer uso da
sua força de
trabalho
Enfrentamento
da pobreza
intergeracional e
desenvolviment
o das famílias
em situação de
vulnerabilidade
econômica
Inserção e
permanência das
mulheres no
mercado de
trabalho e
diminuição da
taxa de
analfabetismo
entre mulheres
Desenho da
política
Focalizada -
redistributiva
Focalizada -
redistributiva
Focalizada -
redistributiva
Público-alvo Pessoas com
deficiência que
impossobilite o
trabalho a longo
prazo e idoso/a
com 65 anos ou
mais. Benefício
condicionado à
renda.
Famílias pobres
e extremamente
pobres
Mulheres em
situação de
vulnerabilidade
social e
preferencialment
e beneficiárias do
PBF
Operacionaliza
ção em nível
federal
Atores
governamentai
s envolvidos
Minstério do
Bem-estar Social
(equivalente,
hoje, ao MDS),
MTPS
SENARC MEC, MDS,
SPM-PR
Sociedade Civil Movimentos em
prol da pessoa
com deficiência,
idosos, feminista,
criança e
adolescente,
órgãos da
categoria dos/as
assistentes sociais
Conselhos de
Assistência
Social,
Educação e
Saúde
Organizações
Feministas
Órgão Federal
responsável
pela política
MDS MDS MEC
Orçamento FNAS/MDS Tesouro
Nacional/IGD
FUNDEB/MEC
Marco Legal Lei nº 8.742/1993
: Lei Orgânica da
Assistência
Social;
Lei n º
836/2004:
criação do
Programa Bolsa
Portaria nº 1.015,
de 2011
(instituição
nacional do
27
Lei 10.741/2003 :
Estatuto do Idoso;
Lei nº
13.146/2015:
Estatuto da
Pessoa com
Deficiência;
Família Programa
Mulheres Mil);
Portaria MEC nº
168/2013 (dispõe
sobre a oferta da
Bolsa-Formação
no âmbito do
Programa
Nacional de
Acesso ao Ensino
Técnico e
Emprego
[Pronatec]);
Plano Brasil Sem
Miséria/MDS;
Plano Nacional
de Educação
(PNE); Plano
Plurianual
Federal (PPA
2012/2015); III
PNPM
Imp
lem
enta
ção
da
po
líti
ca
Operacionalizaç
ão em nível
federal
Atores
governamentai
s envolvidos
MDS, MTPS Conselho Gestor
Interministerial,
CEF, MS, MEC,
MDS
MEC e MDS
Sociedade Civil Não prevê Conselho
Nacional de
Assistência
Social
não prevê
Operacionalizaç
ão em nível
municipal
Atores
governamentai
s envolvidos
Rede de
Assistência Social
,Coordenadorias
ou Secretarias
Municipais da
Pessoa com
Deficiência, do
Idoso e das
Mulheres
(participação e
existência sujeita
aos arranjos
institucionais do
município).
Secretarias
Municipais de
Educação,
Saúde e
Assistência
Social; Rede de
Educação, de
Saúde e
Assistência
Social
Rede de
Assistência
Social, IFs.
Coordenadoria
ou Secretaria
Municipal das
Mulheres
(participação e
existência sujeita
aos arranjos
institucionais do
município)
Sociedade Civil Não prevê Conselhos
Municipais de
Educação,
Saúde e
Assistência
Social; Rede de
Proteção
Socioassistencia
l não
governamental
Não prevê
Mo
nit
ora
me
nto
e
av
ali
açã
o d
a
po
a
Produção e
divulgação de
informações
Programa
Nacional de
Monitoramento e
Avaliação do
BPC/MDS em
parceria com o
Relatório de
Informação
Social/MDS
SISTEC/MEC
(dados não
públicos),
Relatórios
Anuais de
Avaliação dos
28
INSS/MTPS PPAS (dados
públicos)
Resultados
alcançados pela
política
1.095.528
mulheres com
deficiência física
e 2.219.770
idosas recebiam o
benefício em
2015
Todos os meses
são pagos mais
de R$ 2,4
bilhões para
cerca de 13,8
milhões de
famílias
75.064 mulheres
formadas em
todo o território
nacional
Top Related