DO VERDE DO PAMPA AO AZUL DO LITORAL:
A INVENÇÃO DOS BANHOS DE MAR NO RS (1890-1920)
Mscn. Felipe Nóbrega Ferreira
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Resumo: Ao procurar uma imagem-síntese do Rio Grande do Sul, não é sem esforço
que logo será a figura do deserto verde do pampa. Neste trabalho, abandonamos essa
miragem verde e lançamos um olhar para o horizonte azul do litoral riograndense –
partimos em busca de um gaúcho que deixou o poncho de lado e encontrou nos banhos
de praia uma nova forma de viver o pulsar do cotidiano. Ao deslocar esse sujeito para o
ambiente de praia, chegamos até Rio Grande, que no ano de 1890 inaugura a primeira
estação de banhos do Rio Grande do Sul – Estação Villa Sequeira. É através de duas
fontes que vislumbramos uma análise dos itens referidos acima: 1) O Guia dos
Banhistas, que data de 1890 2) fotografias do balneário que datam de 1895 até 1920.
Por fim, esse trabalho pretende, de forma sintética, apresentar os pressupostos daquilo
que entende como a concepção de um “Gaúcho do Calor”.
Palavras-Chaves: Praia, Guia dos Bahistas, Cotidiano
Descarregando as malas na Villa Sequeira
Era o nascer do dia 26 de janeiro de 1890 na Villa Sequeira. O trem apitava por
volta das oito da manhã e a fumaça das caldeiras anunciava que ele já estava chegando
na estação. Nos vagões, os olhares curiosos dos sujeitos se debruçam sobre as janelas,
as malas começam a ser descarregadas e encaminhadas até o hotel mais próximo. Ao
desembarcarem, logo percebem que é no fim da longa alameda de pinheiros e eucaliptos
que está a razão primeira da viagem, é ao cabo dessa avenida que um mar se anuncia em
forma de ribombo e ganha status de praia de banhos. Está sendo inaugurada, assim, a
primeira temporada de veraneio marítimo do Rio Grande do Sul.1
Na cidade de Rio Grande, extremo sul do Estado do Rio Grande do Sul a
estação de banhos Villa Sequeira (hoje chamada de Balneário Cassino) é projetada e
levada á cabo no espaço de cinco anos. Inventava-se, no ano de 1890, em uma região
1 A informação sobre o horário do trem foi retirado de ENKE (2001).
onde o vento Minuano soprava mais forte e o frio dava a tônica dominante, uma nova
forma de operar o cotidiano de verão no Estado.
É na investigação histórica de recônditos ainda pouco explorados pela
historiografia local, que o cotidiano de banhos emerge desse trabalho. Não só um
cotidiano vivido pelo homem, mas também aquele construído para dar sentido a esse
itinerário junto ao mar que, então, passa a fazer parte do pulsar da vida sulina.
Pensando dessa forma, esse artigo pretende realizar um deslocamento de olhar
em torno da figura do gaúcho. Nesse novo espaço construído pelo homem não se fazem
presentes as marcas elaboradas a partir de uma imagem/síntese2 propagada no Rio
Grande do Sul quando na segunda metade do século XIX.
Do deserto verde do pampa rumamos em direção ao horizonte azul do litoral.
Tentamos assim, reconstituir um cenário forjado pelos sujeitos, suas práticas e
sociabilidades3 instauradas nesse local, bem como estabelecer algumas hipóteses sobre a
forma de apropriação dos banhos no Rio Grande do Sul
Ao pensar em um historiador aos moldes de um Sherlock Holmes,
compartilhamos dos pressupostos de Carlo Ginzburg (1989) quando esse lança mão do
método que adotou em seus escritos: o paradigma indiciário. Para o autor, a
possibilidade de uma narrativa composta a partir da experiência da decifração de pistas
remonta mesmo a um paradigma ou modelo epistemológico baseado na observação dos
detalhes e pequenos sinais.
O historiador, na leitura de Ginzburg (1989), seria esse investigador que, ao se
deparar com pequenos indícios deixados pelos homens do passado, é capaz de montar
uma trama inteligível para a escrita da história. Assim, é no que tange a reconstituição
de uma cena (ou de uma encenação) que os apontamentos de Carlo Ginzburg nos
interessam e servem como ponto de partida para a montagem de nossa intriga.
Duas fontes colaboram nessa tessitura forjada pelos sujeitos, e dá suporte a uma
reconstituição cênica por parte desse historiador-Sherlock: 1) o Guia dos Banhistas,
publicado em 1890 e distribuído quando da chegada dos banhistas ao balneário 2)
material fotográfico do acervo do Museu Histórico da Cidade do Rio Grande e as 2 Pensamos aqui na construção literária do gaúcho que tomou forma na segunda metade do século XIX e é ilustrada, entre outros, por Pesavento (1999) 3 Pensando sociabilidade nos termos de Simmel (1983). O autor postula a idéia de uma sociação dos indivíduos em unidades que partilham dos mesmos interesses, temporários ou duradouros, mas que requerem sempre uma manutenção em forma de jogo social capaz de sustentar a interação.
respectivas fotos da Villa Sequeira que datam entre 1895 e 1920. Esse material servindo
não como ilustração, mas sim como possibilidade de percebermos as formas de
inscrição dos sujeitos nesse espaço balnear, em imagens que dão para ler alguma coisa
além delas.
A cidade de Rio Grande e a construção da Villa Sequeira
Ao situarmos a invenção de uma praia na segunda metade do século XIX,
extremidade sul do Estado, precisamos remontar um quadro histórico capaz de dotar de
inteligibilidade tal ação humana especificamente nesse tempo e espaço. Nesse esforço
de criação para um cenário riograndino, um elemento se faz preponderantes nas linhas
que se seguem: as transformações causadas pelo desenvolvimento industrial da cidade e
o desembarque de uma modernidade que levará a uma reconfiguração dos espaços e,
conseqüentemente, do modo de operar da sociedade.
Se o charque traz acúmulo de capital para a região sul, Rio Grande ganha
importância nesse cenário à medida que é o único porto marítimo do estado. Com esse
porto em franco movimento, Fraga (2006) aponta que:
Isso acabou atraindo e enriquecendo uma leva de imigrantes de diversas nacionalidades. As charqueadas durante o século XIX se expandiam e era por Rio Grande que essa produção escoava. Tudo isso possibilitou a melhoria da infra-estrutura urbana, o alargamento de algumas ruas, o calçamento das ruas mais centrais e a expansão urbana em direção ao sul e oeste (FRAGA, 2006, p. 77).
O espaço citadino, com a inserção das diferentes nacionalidades, ganha um
contorno moderno4 e cosmopolita, em que os sujeitos passam a conviver em meio a
diversidade imposta por um contexto industrial e, acima de tudo, um local conectado
com o mundo através de seu porto.
Somado a isso, em 1873 é fundada a Companhia União Fabril Rheingantz. A
fábrica e sua dinâmica empresarial altera a cidade em todas as instâncias. O cotidiano da
cidade é invadido por um mundo do trabalho baseado na racionalidade da fábrica –o céu
se transforma em gris, e o ritmo agora gira em torno do apito da fábrica que organiza a
vida dos sujeitos.
4 Pensando no termo “moderno” enquanto a proposição feita por Marshall Berman, que leva em consideração que “Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo que somos” (BERMAN, 2007; p. 24).
O fenômeno da urbanidade, que se consolida em Rio Grande através do intenso
mundo fabril e portuário, traz para o espaço urbano algumas questões a serem
resolvidas, e dentre elas estão as questões do saneamento, habitação popular, a racional
utilização dos recursos naturais e também o lazer (PESAVENTO, 1995).
A reorganização citadina pode ser verificada quando novos espaços de encontro
são criados: cafés, bares, teatro, confeitarias, livrarias e bibliotecas (BITTENCOURT,
2007). Os lugares públicos passam a ser os locais onde as coisas acontecem, onde os
indivíduos convivem, trocam informações, se apropriam das novidades da moda, enfim,
se socializam no espaço citadino que se almeja cosmopolita.
Rio Grande, a partir da segunda metade do século XIX, se entrega ao pulsar de
uma modernidade industrial capaz de alterar as formas de organização da vida social.
Na leitura de Ezio Bittencourt, a cidade sofre mudanças significativas no alvorecer do
novo século, e a condição de cidade portuária acelerava ainda mais essas
transformações. O cotidiano local sofre, dentro do século XIX, aquilo que ele chama de
afrancesamento do lugar:
(...) urbanizaram-se os estilos de vida, outrora rusticamente patriarcais. As influências européias intensificaram-se sobre os trajes, generalizando uma moda mais requintadamente burguesa. Roupas, chapéus, calçados e pequenos acessórios passaram a ser importados por um crescente numero de europeizados. (BITTENCOURT, 2007, p. 164).
Dessa forma, se o porto e a fábrica dão a tônica, é possível perceber que a
criação de um balneário no ano de 1890 atende a uma demanda atrelada a essa
reorganização citadina. Fugir da fumaça e da fuligem que cobrem essa cidade como
uma nuvem ameaçadora é uma necessidade criada no século XIX5, e para que isso
aconteça será preciso se afastar o máximo possível da zona urbana - no caso específico
de Rio Grande, inventar uma praia em meio ao Minuano que sopra forte.
A singular obra de Alain Corbin serve como um referencial que leva em
consideração a relação do homem junto a esse território do cotidiano que possui suas
próprias especificidades. No entendimento de Corbin nesse espaço:
...não se trata de uma meditação estritamente eremítica. A praia abre-se também ao prazer da conversação; sutil equilíbrio entre o retiro solitário e a massa tumultuosa, implica a escolha de algumas pessoas especiais com quem
5 Podemos citar aqui os trabalhos de Chalhoub (1996) e Rago (1985) que contemplam essa perspectiva do alcance da política higienista no Brasil.
nos comunicamos para evitar o tédio e a solidão e o peso da multidão (CORBIN, 1989; 33)
É justamente na invenção de uma praia que se percebe a criação de algo
diferenciado no cenário regional. Uma praia virá a alterar as características de um
cotidiano sulino marcado pelas roupas pesadas do frio. Novas posturas são forjadas e
encenadas a partir do momento em que o poncho dá lugar aos trajes de banho e o
gaúcho precisa pôr em prática uma nova forma de organizar sua vida social.
É na busca desse cotidiano de banhos que aproximamos nossa lupa e, através de
nossas fontes tentaremos reconstituir esse cenário praiano que contrata com um Rio
Grande do Sul que encontrava no latifúndio e no deserto verde do pampa sua expressão
maior.
Os documentos: Guia dos Banhistas e acervo do Museu Histórico da Cidade
O documento que apresentamos, intitulado “Guia dos Banhistas: Informações
sobre a praia de banhos na Villa Sequeira” foi formulado pela Companhia Estrada de
Ferro do Rio Grande-Costa do Mar, e impresso no ano de 1890 pela Typographia da
Livraria Rio-Grandense. Tal documento fora distribuído ao público que chegava no dia
26 de Janeiro de 1890 – data que marcou a abertura da temporada que ainda se
estenderia até o dia 15 de Maio de 1890 segundo o próprio documento.
Para recriar o cenário e as práticas que foram forjadas na primeira estação de
banhos do Rio Grande do Sul, utilizaremos as descrições presentes no Guia dos
Banhistas - tentando fazer com que o leitor se situe nesse local que fez com que o
gaúcho deslocasse o corpo e as idéias para esse espaço de praia.
O Guia dos Banhistas, ao longo de 23 páginas, se organiza em torno de seis
momentos: Situação, O Tratamento Marítimo, Precauções Hygienicas, Commodidades
na praia, Habitações na Villa Siqueira e Salão de visitas e concertos, e de jogo. Dentro
de cada capítulo ainda existem subtítulos que organizam os assuntos a serem detalhados
pelo informativos.
No que tange a “Situação”, o Guia apresenta as características gerais do
balneário que foi construído. Nas suas características geográficas:
A praia de banhos Villa Sequeira está situada sobre a costa do Oceano Atlântico, a 8 kilometros ao sul da boca da barra do Estado do Rio Grande do Sul, no districto da Mangueira no município do Rio Grande (...) Abrange 300
metros ao longo da costa e cerca de 2200 metros de fundo, cortada ao meio pela linha férrea que a liga com a cidade do Rio Grande (GB6, 1890: 3).
Uma alameda é projetada, 2.200 metros de extensão por 40 metros de largura,
cercada por terrenos de 100x50 metros, formando ruas de 16 metros de largura (GB,
1890). Quando o documento menciona 2.200 metros de fundo, se refere à longa
alameda que corta o balneário em toda sua extensão.
Para tal empreendimento foi necessário realizar expropriações, já que segundo o
manual esses proprietários anteriores não estariam fazendo bom uso das terras, as
deixando pouco valorizadas, resultando em uma aparência agreste e deixando os
caminhos intransitáveis, bem como permitindo a invasão das areais vindas do mar (GB,
1890)
O que está em jogo é justamente a necessidade de domesticar a natureza e criar
um balneário moderno em pleno Rio Grande do Sul. Assim, o projeto de arborização e
arruamento logo se faz sentir com a plantação ao longo da alameda de pinheiros e
eucaliptos, que possuíam a função justamente de proteger esse caminho até o mar das
intempéries da natureza.
O encontro dos banhistas com o espaço, e as indicações de como se portar nos
banhos, são as primeiras informações descritas no Guia dos Banhistas: “Impressiona de
maneira especialissima a primeira visita ao espetáculo que a vista domina” (GB, 1890,
p.5). É por esse misto de surpresa e excitação que o banhista, segundo o Guia, estava
sujeito ao pisar na areia e se defrontar com o mar: “Um extenso baixio, que se mede por
milhas, offerece o bello quadro da arrebentação das ondas, lançando-se uma sobre as
outras, como se despenshassem dos rochedos de uma cascata” (GB, 1890, p.6).
Desse encontro com o mar resultariam três banhos, de acordo com a
profundidade desejada: “... o maior fundo para natação, o ponto médio da arrebentação
para o banho de choque, ou somente o baixio para a immersão do corpo7” (GB, 1890,
p.6).
6 Optamos por trabalhar no texto, no decorrer das citações, com a sigla GB referente a Guia dos Banhistas 7 “Banhos de imersão” na leitura de John Urry dizem respeito a um forma de banhar-se que hoje não encontraria similar: “Essas caídas no mar eram estruturadas e ritualizadas, prescritas apenas para tratar graves estados de saúde. O banho só devia ser tomado após devida preparação e conselhos” (URRY, 2001, p.35)
O Guia inicia o tópico “Tratamento Marítimo”8, diferenciando dois pontos de
vista sobre os banhos, são: hydroteraptico e o medicamentoso. O primeiro ligado as
águas de baixa temperatura e que pode ser levado á cabo em qualquer água fria, não
somente na praia. O segundo ponto de vista se conecta aos banhos com a água quando
ela está com a temperatura mais elevada e a duração do banho mais longa (três quartos
de hora).
Na leitura apropriada pelo Guia, se aponta as contra-indicações do banho frio,
que devem ser evitados quando o sujeito padecer de problemas cardíacos, congestão ou
reumatismo e gota. E sobre isso ainda postula as comidas que devem ser evitadas antes
de se lançar ao mar: “Os almoços, tão usados em Portugal, de café com café com leite e
pão com manteiga, são umas massas mais indigestas e mais affrontantes que se podem
ingerir nos estômagos” (GB, 1890, p.9). Com isso, a refeição ideal seria “O bife de
vitella ou a costeleta de carneiro grelhada, os ovos quentes e uma pequena chávena de
chá preto, ou simplesmente o bom leite fresco...” (GB, 1890, p.9).
Avançando no terceiro ponto, as Precauções Hygienicas, o manual relata os
horários do banho - tendo no horário matinal o momento ideal para o fortalecimento do
corpo robusto, e o período da tarde sendo qualificado como o momento para “as pessoas
débeis” que encontram em uma água mais quente algum tipo de poder curativo para
seus frágeis corpos.
Ao entrar na água, o Guia aponta que a pele deve estar previamente aquecida,
assim “um certo exercício moderado, um pequeno passeio a pé, ao sol, é muito útil”
(GB, 1890, p.12). Da mesma forma, sugere que não seria aconselhável ter o corpo nu
contato com o ar por tempo prolongado, é dessa forma que se dão as constipações.
Assim: “É importante que o banhista ao chegar a barraca, se dispa com a máxima
rapidez, enfie um calção de malha de lã, se evolva n’uma capa ou n’um plaid e corra
immediatamente para a água, desembuçando-se no momento da immersão” (GB, 1890,
p. 12).
8 Nesse item o Guia dos Banhistas se apropria e transcreve trechos da obra do literato português Ramalho Ortigão, autor de As Praias de Portugal: Guia do Banhistas e do Viajante” de 1876.
Imagem 1: Veranistas à beira-mar (1908)
Nessa imagem, percebemos, no canto esquerdo, os camarotes que serviam como
local de sociabilidade e troca de roupas. Os sujeitos, nessa imagem, não se encontram
em trajes de banho, mas sim praticam o lazer a beira-mar se protegendo – como manda
o Guia – dos ventos que podem constipá-los. A praia, no nosso entendimento, torna-se
um para o exercício de um de teatro social, em que os sujeitos mesmo não praticando o
banho, se dirigem até o local para exporem seus trajes comprados para o veraneio,
exercer a sociabilidade, enfim, viver o cotidiano do veraneio no lugar que dá razão de
ser ao deslocamento até a Villa Sequeira.
Outra regra a seguir durante o banho é a condição de estar sempre em
movimento:
É prejudicialissima durante o banho a immobilidade do corpo. Todos os membros devem estar em movimento durante a immersão”. Da mesma forma, é preciso saber se retirar da água: “Se o banho se prolonga demasiadamente o primeiro calafrio repete-se. É o signal intimativo para sahir imediatamente (GB, 1890, p.13).
Ao sair da água aponta: “Depois do banho deve ser o corpo rapidamente
friccionado como um lençol áspero até dar à pelle uma cor rosada” (G.B, 1890, p.14).
Após os rituais do banho, o documento passa a referenciar sobre as atividades
dentro do balneário, propondo um itinerário dos sujeitos, os locais de sociabilidade ao
longo da alameda que foram construídos e que dão a tônica da vida social do lugar.
No que concerne ao item “Commodidades na Praia”, já deixando de lado as
observações do autor português, o documento evidencia o número de camarotes
disponíveis à beira-mar. São 100 camarotes masculinos de 1° classe e os mesmos 100
para senhoras. Uma segunda classe de camarotes contempla 20 para homens e 20 para
mulheres. E aqueles que não possuem condições econômicas de usufruírem desse item,
podem pagar um preço menor e utilizar umas das 50 barracas sobre rodas (GB, 1890).
Segundo o Guia dos Banhistas: “Estas installações serão sufficientes para
attender a 500 banhistas a um tempo – e se ainda assim demonstrarem insufficiencia,
serão promptamente augmentadas” (GB, 1890, p.15).
Em sua forma física, “Os camarotes são construídos com solidez e elegância
sobre um estrado fixo sobre estacas de madeira de lei, com porta vidraça, xadrez para o
piso, banquinho, cabides para roupa, e espelho” (GB, 1890, 16), Assim, esse lugar
servia para que os sujeitos não só trocassem as roupas, mas também ficasse a beira-mar
contemplando o espetáculo que estava a sua frente, visto que ainda havia uma espaçosa
varanda em que eram colocados bancos e poltronas.
Ainda nesse espaço de praia atividades eram realizadas, de forma que são
descritas no Guia: “corridas de cavallos, passeios em carruagens e trolys, jogo de bollas
de borracha, cricket, trapesios balanços, velocípedes, volante (lawn-tenis), tirando-se
assim partido dos 200 metros de varandas dos camarotes, nas horas impróprias para o
banho” (GB, 1890, p. 16)
No item “Habitações da Villa Sequeira”, entram em cena as questões referentes
as instalações existentes para receber os visitantes durante o período de veraneio. Com
isso, um importante elemento surge no balneário, o Hotel Cassino: “com 136 quartos, 8
lojas, salão de jantar, banheiros, water-closets, circumdadas todas estas instalações por
700 metros correntes de varandas cobertas” (GB, 1890, P.17).
Imagem 2: Hotel Cassino (1906)
Na imagem acima está o Hotel Cassino e a sua vista de direção para o mar. A
varanda que podemos ver, em nosso entendimento, se constitui não só como um espaço
de cruzamento entre os hóspedes, mas também como um local que permite ter uma
visão geral da alameda que está logo a sua frente – propiciando assim essa interação que
forja um ver e ser visto, um cotidiano que tem ao redor do hotel essa possibilidade de
exercer a sociabilidade de veraneio.
O hotel se constitui, então, como um local importante no entendimento do
funcionamento das engrenagens do balneário, visto que é nele para onde convergem o
maior número dos banhistas. Acreditamos ser a partir dele que se irradia a sociabilidade
no espaço da alameda, já que em sua varanda frontal as poltronas ficam disponíveis para
tornar a alameda um espaço para ver e ser visto, um teatro social em que os sujeitos
participam como atores e espectadores dessa poética do dia-dia.
Somado as instalações do hotel, ainda foram dispostas 40 casas mobiliadas, que
possuíam a característica de: “... accommodações para família regular; sala de casa de
campo. 3 grandes alcovas, cosinha, área de 19 metros, e portão de serventia ao fundo”
(GB, 1890, P.17). Pensando também que, para que o gozo do veraneio fosse ainda mais
completo, pensando aí em não ter preocupações com as lides diárias de uma casa, a
empresa informa no Guia que “já para esta estação” um serviço de lavanderia, cocheiras
e leitaria.
Segundo a própria Companhia, os preços tanto do hotel, como dessas casas de
aluguel, visavam atender as mais variadas economias, sem distinção, daí “... o empenho
da Companhia em proporcionar á pessoa mais econômica o goso dos banhos do mar,
quando é certo que em hotéis de condições menos completas, e nas cidades do Estado,
paga-se 5$000 por dia, por pessoa” (GB, 1890, p.18).
No último item do documento, “Salões de visitas e concertos, e de jogos” fica
bastante evidente a idéia da construção de uma sociabilidade balnear, quando anuncia
para a próxima estação a abertura de salões de encontro:
É devido a estas installações que a vida na praia se torna agradável; e serão estes salões o rendez-vous dos moços empregados no commércio, que indo na viagem da noite para pernoitarem na ‘Villa Sequeira’, darão brilho as danças e folguedos em companhia das famílias ali residentes (GB, 1890, P.21)
Da mesma forma, para que essa sociabilidade aconteça, o Guia evidencia as
formas de segurança do local, com patrulhamento diurno e noturno, como também uma
iluminação exterior.
Para que seja alcançado o sucesso dessa empreitada, a empresa anuncia no Guia
os trens entre as 8 e 10 da manhã diários, que serão capazes de com de dar uma
freqüência de viagens e assim permitindo a circulação dos veranistas nos mais variados
períodos dentro do veraneio. E para que isso aconteça, combinações de tráfego passam a
ser feitas, segundo o Guia, entre diferentes companhias:
existem comcombinações de trafego que permittirão que pessoas vindas de pessoas de Pelotas ou do interior, ou para alli destinando-se, passem, sem perda de tempo, de um para outro trem, dos da Estrada de Ferro Southern Brazillian para os da Rio Grande-Costa do Mar. Com uma das companhias de vapores da linha entre Rio Grande e Porto Alegre, far-se-há accordo para obtenção de passagens a preço reduzido, para as pessoas que vierem em demanda da Estação Balnear da ‘Villa Sequeira’(GB, 1890, 22)
É importante salientar que desde o ano de 1874 já existe uma linha de trem Rio
Grande-Bagé, que foi criada justamente para o escoamento de produtos para o porto
marítimo de Rio Grande (FRAGA, 2006). Assim, quando o documento usa o termo
“interior”, pensamos na região da campanha, que estabelece desde muito cedo uma
conexão ferroviária com a cidade.
O Guia dos Banhistas vai chegando ao fim com a questão do transporte, que é
feito até a praia por tração animal – tendo em vista que o terreno ainda era por demais
acidentado e a distância a ser percorrida longa (800 metros), tal serviço foi implantado
e atendia aos veranistas que se deslocavam do hotel ou de suas residências alugadas –
com horários para tal locomoção a partir das quatro horas da manhã até as 10 da noite
Se encerra o documento com a seguinte colocação: “Eis os informes que para a
estação de 1890-1891 pode a Empreza apresentar ao público. Na estação seguinte com
maior desenvolvimento na edificação, e melhor coordenação de dados ou informações,
será editado novo folheto” (GB, 1890, p. 23).
O novo folheto nunca se concretizou.
Aproximando a lupa histórica
Ao abordar tal documento, faz parte do nosso horizonte as palavras de Roger
Chartier (1990) quando refletimos sobre a leitura que esses veranistas fazem do manual.
Se a leitura se impõe como uma prática criadora que vai além do autor, em que o
condicionamento do texto não é capaz de frear a liberdade dos sujeitos/leitores,
acreditamos que a circulação poderia gerar sim um condicionamento social, mas ao
mesmo tempo os sujeito/leitores teriam a liberdade de inscrever-se no texto de
diferentes formas. (CHARTIER, 1990).
Uma praia se dá a ler, ganha forma nas letras e no suporte dado. Percorremos a
alameda central, entramos e saímos do banho, conhecemos as instalações locais, através
do documento. Nesse processo, elementos se escondem por trás escrita e fazem com que
o historiador encontre pistas, rastros, que sugerem uma forma de representar o mundo a
partir do Guia, e do tensionamento desse com os leitores.
No seu primeiro tópico intitulado “Situação”, o documento evidencia mais do
que os melhoramentos do local, como o arruamento e arborização, mas sim a inscrição
num projeto civilizacionalque consiste na domesticação da natureza litorânea. A
importação de um projeto balnear em pleno Rio Grande do Sul, não surge como um
fator aleatório a todo o processo de complexificação das relações sociais que se dão com
o advento da moderna indústria instalada na cidade.
No bojo dessa modernidade industrial, encontramos aquilo que Maria Izilda
Matos vai diagnosticar como uma “nova economia de gestos” que surge desse encontro
entre o mundo industrial e o quanto isso afeta as práticas cotidianas. Da mesma forma
que ela, Nicolau Sevcenko (1992) aponta essas transformações nas práticas da vida
social passam a inscrever os corpos no espaço de forma diferenciada a partir do advento
da indústria moderna. Está em jogo agora um corpo em movimentação, higienizado,
afastado do mundo da fumaça e fuligem, em suma, um corpo saudável, ou como diria
Sevcenko “um corpo máquina” (SEVCENKO, 1992)
Com tais premissas, começa a ganhar sentido a idéia da construção desse local,
que permite que os sujeitos passem um ou dois meses junto ao espaço de praia, se
valendo do calor como uma forma de prática da sociabilidade, mas também como um
local em que esses corpos, que almejam a salubridade, possam se expor.
Imagem 3: Banhista da Villa Sequeira à beira-mar (1916)
Ao levar a cabo a construção do balneário, foi preciso logo em seguida forjar as
práticas desses corpos em movimento, as posturas que deveriam adotar, efetivamente
inscrever os corpos no espaço. Tal premissa fica clara quando percebemos na imagem
acima os trajes de banho que permitem que corpo figure no espaço, fique exposto ao
olhar de todos e, através de outras atividades, como jogos e competições, possibilitem
uma forma diferenciada de viver a sociabilidade no Rio Grande do Sul.
Esses veranistas que chegam de Bagé, Pelotas, Porto Alegre, entre outras
localidades, certamente fazem parte daquele grupo que Urry (2001), ao caracterizar os
turistas balneares, entende como pertencentes a uma burguesia que precisa do ato de
viajar para locais diferentes como uma forma de manutenção de um status dentro da
sociedade moderna.
Por isso, compreendemos que essa praia inventada no extremo meridional do
Brasil possui em sua feitura um público alvo bastante claro: o grupo de sujeitos que está
inserido nesse processo de modernização da sociedade através da indústria, e com isso
comungando das novas idéias que circundam o Brasil no final do século XIX. Da
mesma forma que estar conectado com as novas idéias seja uma prerrogativa, se alia a
isso as condições financeiras objetivas, sendo isso que vai permitir esses deslocamentos
em busca do lazer de verão.
Ao percorrer esse caminho passamos a compreender melhor a proposta de um
deslocamento do olhar sulino que, a partir do verde do pampa, ruma para uma direção
que compreenda o azul do litoral também como uma forma do pulsar cotidiano da
história do Rio Grande do Sul. Sendo esse espaço balnear como àquele que propõe ao
sujeito que vem do interior, ou aquele que sai das mansões da urbe, um comportamento
que rompe com as divisórias privadas e compreende a praia como um lócus de exercício
de sociabilidade constantemente em manutenção.
O resultado dessa inserção do calor a partir de uma estação de banhos se impõe
para nós como uma forma de repensar essa imagem-síntese gaúcha: “esse modelo de
referência identitária, honra, bravura e liberdade que tem mais a ver com a vivência do
pampa do que com a acanhada vida da cidade” (PESAVENTO, 1999; p. 261). O viver o
calor do verão passa a ser uma realidade para o gaúcho, e mais do que isso, passa a ser
praticado e incorporado dentro da sua sociedade.
Corroborando e levando adiante as palavras de Pesavento, acreditamos que essa
articulação de um núcleo simbólico de formulação identitária do gaúcho deixou poucos
espaços para que se deslocasse o olhar em outras direções. Porém, é dentro dessas
pequenas brechas que o historiador pode encontrar possibilidades de propor formas
distintas de entender o Rio Grande do Sul e, efetivamente, o gaúcho.
Nesses termos, ao desembarcar na estação Villa Sequeira, os apetrechos que
compõe essa imagem-síntese do gaúcho conjugado ao frio deixam de fazer sentido no
momento em que o poncho é trocado pelos trajes de banho e o pingo sucumbe a
modernidade do trem. Um sujeito forjado dentro das práticas cotidianas do veraneio,
que passou a inscrever o verão na sua economia de gestos ganha um nome em nosso
trabalho que segue enquanto pesquisa: o Gaúcho do Calor.
Usando a conhecida metáfora: fizemos a praia, agora façamos os banhistas. Ao
expor o Guia dos Banhistas, aliado as imagens, criamos uma trajetória que fez com que
chegássemos nesse tipo de sul-riograndense que surge no final do século XIX. Com
isso, a intenção desse artigo foi justamente propor o início de um debate que pretende
ganhar uma forma mais maturada à medida que avançarmos na pesquisa sobre o tema.
Bibliografia
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Fontes primárias
Guia dos Banhistas: Informações Sobra a Praia e Banhos na Villa Sequeira. Rio Grande.
Typographia da Livraria Rio-Grandense. 1890.
Imagem 1: Museu Histórico da Cidade de Rio Grande
Imagem 2: Museu Histórico da Cidade de Rio Grande
Imagem 3: Museu Histórico da Cidade de Rio Grande
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