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Diviso sexual do trabalho e o mercado de trabalho brasileiro
Tas Viudes de Freitas e Tatau Godinho
O mercado de trabalho brasileiro, a partir dos anos 1980, assistiu a um aumento
expressivo da participao feminina. As mulheres, embora ao longo de toda a histria tenham
realizado atividades na esfera produtiva, passaram a, cada vez mais, se inserir no mercado de
trabalho. Em uma srie de estudos, esse perodo foi caracterizado pela existncia de um
processo defeminizao do mundo do trabalho (Araujo et al, 2004; Nogueira, 2004). Segundo
os dados da PNAD de 2009, no Brasil, elas compem 42,6% da populao de ocupados
contra 57,4% de homens1. O aumento da participao feminina na populao de ocupados foi
constante a partir dos anos 1970, perodo em que elas representavam 18,5%, subindo para
26,6% em 1980 e ultrapassando os 40% j na dcada de 1990.
No entanto, ainda que a presena feminina seja marcante no mercado de trabalho, ao
olharmos para o modo como este se configura, notamos que homens e mulheres no se
encontram em posio de igualdade. As trabalhadoras tendem a se concentrar nos postos mais
precarizados e menos valorizados. De acordo com os dados da PNAD de 2009, entre as
mulheres ocupadas, 52,2% estavam inseridas na categoria de empregadas (no entanto
aproximadamente 25% destas no possuam carteira de trabalho assinada), 17% eram
trabalhadoras domsticas, 16,1% trabalhava por conta prpria, 2,7% eram empregadoras,
6,3% no eram remuneradas e 5,7% trabalhavam para o prprio consumo. Alm disso, os
dados apontam que as mulheres, em 2008, recebiam salrios equivalentes a 67,1% dos
rendimentos masculinos2.
O desemprego tambm incide fortemente sobre as mulheres. Segundo os dados da
PNAD de 2009, as mulheres eram 58,3% dos desocupados. Estudos, como o de Ndya
Guimares (2004), revelam que o trabalho feminino o primeiro a ser atingido em um
1 Os dados tm como base a Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios PNAD para o ano de 2009.Fonte: IBGE, 2010.2 Segundo os dados, vem ocorrendo uma lenta aproximao entre os salrios de homens e mulheres. Em 2004, asmulheres recebiam o equivalente a 63,3% dos rendimentos masculinos, percentual que seguiu crescente desteento (IBGE, 2010). Alm do ritmo extremamente lento desse fenmeno, no se pode prever que seja constante.Por outro lado, Meszros (2002) indica que este nivelamento dos salrios entre homens e mulheres decorreria deuma reduo do salrio da fora de trabalho em geral, o qual estaria se aproximando dos baixos salrios a que as
mulheres sempre estiveram submetidas. Ele chama isto de uma tendncia ao nivelamento do ndice diferencialda explorao, sendo um nivelamento que se d por baixo, ou seja, este nivelamento no decorre de uma melhoranos rendimentos femininos, mas sim de uma piora dos rendimentos em geral. Assim, o capitalismo se apropriado trabalho feminino para reduzir as condies e o valor da fora de trabalho em geral.
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momento de crise econmica ou de uma reformulao no sistema produtivo. As mulheres so
expulsas do mercado de trabalho para, em seguida, serem reinseridas em postos mais
precrios, menos valorizados e, muitas vezes, sem a garantia de direitos trabalhistas. Esse o
caso dos processos de terceirizao e do trabalho em domiclios, bem como do trabalho em
tempo parcial que normalmente acompanhado por salrios reduzidos e do trabalho
informal. Nestes, as mulheres esto em maioria.
A disparidade entre trabalhos femininos e masculinos e as condies em que as
mulheres se encontram no mercado de trabalho evidenciam o que chamamos de diviso
sexual do trabalho. Esta se refere a uma diviso social do trabalho que difere o trabalho de
homens e mulheres, estando ancorada em uma relao que permeia toda a vida em sociedade,
que so as relaes sociais de sexo. Esta relao toma as diferenas biolgicas de cada sexopara determinar prticas distintas entre homens e mulheres. O que chamamos de relaes
sociais de sexo uma relao construda socialmente, que se caracteriza por ser antagnica,
assimtrica e hierarquizada. Danile Kergoat (2003) aponta que a construo social desta
relao tem uma base material e no apenas ideolgica e, por ser hierarquizada, ela se
constitui como uma relao de poder e de dominao.
Desta forma, no apenas foram determinadas prticas distintas para homens e
mulheres, como foram atribudos diferentes valores a elas. Assim, aos homens coube a
esfera pblica e o trabalho produtivo, sendo mais valorizados socialmente, e s
mulheres, atrelou-se a esfera privada e o trabalho reprodutivo, os quais no foram
valorizados socialmente. As mulheres foram submetidas a uma posio de opresso e de
submisso em relao aos homens.
Esta relao antagnica se reflete no campo do trabalho. Como indica Danile Kergoat
(1989), as relaes sociais de sexo e a diviso sexual do trabalho no podem ser analisadas
separadamente, uma vez que elas so indissociveis e formam, em conjunto, um sistema. Adiviso sexual do trabalho tem como base dois princpios fundamentais (Kergoat, 2003):
o da separao: existem trabalhos especficos de homens trabalhosmasculinos e especficos de mulherestrabalhos femininos;
o da hierarquizao: os trabalhos masculinos so mais valorizadossocialmente.
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A partir destes dois princpios, estabelece-se uma diviso entre trabalho produtivo e
reprodutivo e masculino e feminino. O trabalho domstico e de cuidados foi, historicamente,
configurado como responsabilidade primordial feminina. A funo primeira da mulher era o
cuidado do lar e da famlia. A famlia se configurava com base em um modelo dual: o homem
provedor e a mulher dona de casa e me.
O trabalho realizado pelas mulheres no mbito domstico se dava de forma
gratuita, permanecendo invisvel ao longo da histria. O trabalho da reproduo, to
fundamental para o desenvolvimento do sistema capitalista, ao permitir a reproduo da
fora trabalhadora, o cotidiano da vida das pessoas e a criao das novas geraes, no
era valorizado socialmente. Apontava-se que esta era uma funo natural da mulher, que
deveria ser feita em prol dos outros e por amor. Como aponta Helena Hirata (2002), foinecessrio que o movimento feminista denunciasse a invisibilidade deste tipo de trabalho, sua
importncia para o desenvolvimento social e econmico e sua relao indissocivel do
processo de organizao da sociedade para que se comeasse a discutir criticamente a
separao artificial entre trabalho produtivo e reprodutivo. Ao evidenciar a separao dessas
duas esferas como um constructo social, que alimenta o capitalismo, o movimento
feminista trouxe a explorao do trabalho das mulheres para dentro das anlises do
sistema capitalista e da sociedade em geral, denunciando sua posio fundamental na
organizao econmica e social e que at ento permanecia apagada (Faria e Nobre,
2002; 2003)3.
Na participao da fora de trabalho feminina na esfera chamada produtiva, a lgica
de assimetria entre os sexos foi reproduzida e intensificada. As mulheres que, no sculo 19,
trabalhavam nas fbricas e indstrias foram incorporadas na esfera produtiva como uma fora
de trabalho menos valorizada. Considerava-se que o salrio feminino era apenas
complementar ao do homem e, portanto, justificava-se seu baixo valor. Da mesma forma, ashabilidades que as mulheres j dispunham, como aquelas aprendidas na esfera domstica por
meio do trabalho de costura, por exemplo, foram apropriadas pelos empresrios, mas sem
serem reconhecidas e valorizadas. Elas apareciam como habilidades naturais femininas e no
como qualificaes para o trabalho.
3 Nesse sentido, o movimento de mulheres contribui de forma fundamental para que a anlise das formas deexplorao e dominao d conta de aspectos importantes da complexidade das relaes humanas e dodesvendamento dos mecanismos de dominao. Ao fazer isso, desafia tambm os movimentos polticos de
esquerda, ao pensar outro projeto de sociedade no qual a reproduo da vida humana e o bem viver das pessoassejam centrais, a romper com a lgica dominante de produo e de mercado e com a dicotomia entre o que seconsidera trabalho produtivo e improdutivo.
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Certas habilidades tidas como femininas como pacincia, acuidade visual, destreza
manual, ateno e delicadeza foram tomadas como naturais e inatas s mulheres. Esta
naturalizao foi determinante quanto s condies e s posies que as mulheres passaram a
ocupar na esfera produtiva.
A ocupao da esfera produtiva se deu, assim, por nichos, isto , segmentos
profissionais que passaram a concentrar um ou o outro sexo. As mulheres predominam
nas atividades onde o trabalho mais rotineiro, montono, manual, submetido a um forte
controle da chefia e envolve baixa tecnologia. Ao contrrio, os homens se concentram em
atividades que envolvem mais um trabalho de concepo e faz uso de maquinrios complexos
e de tecnologia. Da mesma forma, as atividades que requerem uso de fora fsica e envolvem
situaes de perigo ou insalubridade tendem a concentrar os homens. Essa diviso e
hierarquizao dos trabalhos e funes foram se alterando em diferentes momentos,
podendo criar uma readequao da insero de mulheres e homens, mas sem, no
entanto, eliminar a diviso sexual do trabalho.
As atividades ligadas ao cuidado e que se aproximam do trabalho realizado pelas
mulheres no mbito domstico so majoritariamente ocupados por elas, como o caso das
reas de enfermagem e servio social, bem como do emprego domstico. Segundo indica
Cristina Bruschini (2000), as mulheres se concentram no setor de prestao de servios,seguido pela rea social e o comrcio de mercadorias, alm do setor agrcola. Neste ltimo,
elas predominam nas atividades voltadas para o autoconsumo familiar e no remuneradas.
Nas ltimas dcadas, uma srie de estudos vem apontando uma tendncia crescente de
mulheres ocupando carreiras de nvel superior e postos de maior prestgio e valorizao.
Embora haja esta tendncia, a maior parte da fora de trabalho feminina segue nos postos de
menor qualificao e remunerao, mais precarizado e vulnervel do mercado de trabalho.
Esta situao aponta para a ocorrncia de um processo de bipolarizao do trabalho feminino,no qual um contingente reduzido, mas crescente, de mulheres ocupam cargos mais
valorizados socialmente e, por outro lado, uma massa de trabalhadoras segue nos postos mais
marginalizados (Bruschini e Lombardi, 2000).
O crescimento no nmero de mulheres ocupando postos mais valorizados est ligado
ao aumento do nvel de escolaridade feminina. No entanto, cabe ressaltar que as mulheres
ainda encontram dificuldades para ascender nas carreiras e galgar postos de maior prestgio na
hierarquia das empresas. Autoras, como Anne-Marie Daune-Richard (2003), apontam para a
existncia de um teto de vidro, isto , uma barreira invisvel que dificulta e/ou impede a
passagem das mulheres para estes postos mais valorizados. Elas, muitas vezes, tm que
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dedicar mais anos profisso e aos estudos para alcanar a mesma funo que um colega de
trabalho homem4. Ademais, como j mencionado, elas seguem recebendo menores salrios.
Esta disparidade , com frequncia, justificada pelo argumento de que as mulheres so
mais frgeis e encontram maior dificuldade para agir em situaes que exigem tomada de
deciso e autoridade. Assim, elas so consideradas como menos aptas para assumirem postos
de controle e de comando nas empresas. Esses e outros argumentos, renovados a cada
momento no mercado de trabalho, so utilizados para aumentar o grau de explorao e
discriminao das mulheres e atribuir as funes mais valorizadas aos trabalhadores do sexo
masculino.
Do mesmo modo, prevalece, no imaginrio dos empregadores, a idia de que as
mulheres se dedicam menos integralmente que os homens carreira profissional. Amaternidade e o cuidado dos filhos disputam, na vida delas, espao com a profisso. Assim,
as mulheres teriam menos disponibilidade de tempo para realizar horas-extras, viajar e
realizar treinamentos fora da empresa (Abramo, 2007).
No entanto, importante considerar que o trabalho de cuidadosde filhos, maridos e
outros parentes dependentes e o trabalho domstico segue como um fator decisivo nas
condies de participao das mulheres no mercado de trabalho. Isto porque estas atividades
continuam sendo majoritariamente consideradas como responsabilidades femininas.As mulheres seguem realizando a maior parte do trabalho domstico e de cuidados em
suas residncias. Segundo dados da PNAD, no ano de 2009, 90% das mulheres ocupadas
afirmaram realizar afazeres domsticos contra apenas 49,7% dos homens ocupados. Os dados
da PNAD de 2005, ao apontar o tempo gasto com os afazeres domsticos, indicaram que as
mulheres ocupadas afirmaram gastar em mdia 21,8 horas por semana enquanto que os
homens ocupados dedicavam apenas 9,1 horas a esse tipo de trabalho (IBGE, 2006).
Devido a esta responsabilizao, a carreira profissional feminina entrecortada, isto , marcada por entradas e sadas do mercado de trabalho ou por alteraes que acompanham o
ciclo vital (Georges e Guimares, 2005; Carrasco, 2003). A presena de filhos pequenos tem
participao decisiva sobre o percurso das carreiras profissionais femininas, inclusive
determinando as formas de insero das mulheres no mercado de trabalho, as quais muitas
vezes significam a submisso a atividades informais e precarizadas.
A articulao entre trabalho domstico e trabalho profissional , portanto, um
fator decisivo quanto ocupao e posio das mulheres no mercado de trabalho. Esta
4 Segundo os dados da PNAD, de 2009, as trabalhadoras brasileiras apresentam, em mdia, 8,7 anos de estudo,enquanto que os trabalhadores do sexo masculino apresentam, em mdia, um ano a menos (IBGE, 2010).
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uma tenso presente para as mulheres de todas as classes sociais. Para aquelas das classes
econmicas mais favorecidas, que normalmente so as mesmas que se inserem na minoria
crescente de mulheres em carreiras de nvel superior e em cargos de chefia, a questo se
resolve a partir da contratao de outras mulheres para realizarem suas atividades domsticas.
A presena da empregada domstica marcante nos lares das famlias brasileiras. De acordo
com os dados da Pesquisa Mensal de Emprego, os/as trabalhadores/as domsticos/as, em
fevereiro de 2010, somavam 7,6% da populao economicamente ativa nas seis regies
metropolitanas. Em 2009, 94,5% dessa categoria era composta por mulheres e apenas 36,9%
do total dos/as trabalhadores/as domsticos/as tinham vnculo de emprego formalizado na
carteira de trabalho5.
Para aquelas que no tm a possibilidade de contratar outras mulheres, a soluo,muitas vezes, a insero no mercado de trabalho em atividades que permitam alguma forma
de flexibilidade para as tarefas domsticas e familiares. Assim, o trabalho em domiclio e o
trabalho em tempo parcial (tipos de trabalhos marcados, geralmente, por uma ausncia de
direitos trabalhistas e por baixos salrios, respectivamente) so considerados como ideais para
a insero da fora de trabalho feminina, uma vez que permitem a elas compatibilizar o
trabalho domstico e de cuidados com o trabalho profissional e remunerado.
Muitas mulheres tambm recorrem a outras mulheres das redes prximas a elas, comoa rede de parentesco e de vizinhana, para conseguirem fazer essas tarefas. Este ciclo
contribui para manter o trabalho domstico e de cuidados como responsabilidade das
mulheres e mant-lo como um problema que deve ser resolvido entre elas no mbito privado.
O movimento feminista tem questionado a responsabilidade exclusivamente
feminina por este tipo de atividade. H a necessidade de se desnaturalizar o papel da
mulher como o de ser me e esposa. Atualmente, comum vermos chamadas em
propagandas televisivas, por exemplo que clamam pela necessidade de a mulher ser umaprofissional qualificada, manter um padro de beleza agradvel e ser uma boa me e esposa.
Estas se tornam obrigaes impostas s mulheres, que levam a uma sobrecarga de funes,
bem como a naturalizao quanto ao papel da mulher na sociedade. O movimento feminista
reivindica que no apenas o trabalho domstico e de cuidados deva ser tomado como uma
responsabilidade igualitria entre homens e mulheres, como tambm cabe ao Estado assumir
5 Fonte: IBGE, 2010b. As seis regies metropolitanas consideradas so: Recife, Salvador, Belo Horizonte, Riode Janeiro, So Paulo e Porto Alegre. importante frisar que se considera trabalhador domstico a pessoa que
trabalha prestando servio domstico remunerado em dinheiro ou em benefcios, em uma ou mais unidadesdomiciliares. A pesquisa abarca nessa categoria as empregadas domsticas, faxineiras, diaristas, babs,cozinheiras, lavadeiras, passadeiras, arrumadeiras e acompanhantes de idoso, de doente, de criana escola,entre outros.
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parte deste tipo de atividade, inclusive pela oferta de polticas pblicas, como por meio de
restaurantes e lavanderias coletivos, creches, ampliao da jornada escolar, entre outros
(Silveira, 2008).
As contradies evidentes e que ainda persistem no mercado de trabalho apontam para
uma srie de obstculos que so enfrentados pelas mulheres, seja para se inserirem e se
manterem nele, seja para avanar no sentido de uma relao igualitria entre homens e
mulheres. Elas seguem recebendo menores salrios, permanecendo nos postos mais
precarizados de trabalho, submetidas a trabalhos intensos e sem proteo social. Seguem
como as principais responsveis pelo trabalho domstico e de cuidados, pela manuteno do
cotidiano das pessoas e das famlias. Assim, o capitalismo se apropria e explora o trabalho
feminino em duas vertentes: na esfera produtiva e na da reproduo social. Alterar essas
relaes hierrquicas entre homens e mulheres demanda mudar profundamente a
sociedade em que vivemos, isto , findar tanto o sistema produtivo capitalista que
explora os trabalhadores e mais incisivamente as mulheres como as relaes
machistas que perduram no tempo e que mantm uma relao de poder e de dominao
dos homens sobre as mulheres.
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