Dívida Pública: quem deve a quem?Gabriel Strautman1
O recente anúncio da elevação do Brasil à condição de credor externo líquido –
situação em que os ativos externos de um país superam os seus passivos – foi
bastante festejado pelas autoridades brasileiras como um marco em nossa
política econômica. De acordo com o governo, graças ao elevado nível de
nossas reservas internacionais, pela primeira vez possuímos recursos
suficientes para pagar as dívidas externas pública e privada, se assim o
desejarmos. Essa euforia, no entanto, se justifica apenas numa perspectiva
estritamente política. Do ponto de vista econômico, a dívida externa hoje é um
problema menor quando comparado à dívida interna, e o pagamento de ambas
continua a ser uma barreira para os avanços sociais tão urgentes ao País.
Segundo dados do Banco Central, em janeiro de 2008, o Brasil possuía uma
dívida externa total de US$ 196,2 bilhões, contra ativos que somaram, no
mesmo período, US$ 203,190 bilhões. Isso significa que o Brasil possuía uma
dívida externa negativa de US$ 6,983 bilhões, que elevou o País à condição de
credor externo líquido. Os ativos externos brasileiros são compostos,
principalmente, pelas reservas internacionais do País – que, em janeiro,
alcançaram a marca de US$ 187,507 bilhões – além de US$ 12,864 bilhões em
haveres de bancos comerciais e US$ 2,819 bilhões em créditos no exterior.
Em relação aos números da dívida externa (passivo), interessa notar que,
desde março de 2001, o Banco Central exclui dos cálculos o valor dos
empréstimos intercompanhia (dívidas de filiais de transnacionais no Brasil com
suas matrizes no exterior). Ao adicionarmos o valor destes empréstimos - que,
entre dezembro de 2003 e fevereiro de 2008, saltaram de US$ 20,484 bilhões
para US$ 49,926 bilhões -, o total da dívida externa brasileira ultrapassa a
marca dos US$ 240 bilhões, valor que supera o total dos ativos e que
desmente a suposta condição de credor externo líquido.
1 Economista do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS), membro da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais e da Rede Jubileu Sul
Porém, mesmo deixando de considerar os empréstimos intercompanhia e
aceitando a condição de credor externo líquido, ainda estamos muito longe de
poder considerar a questão da dívida um problema superado. A prova disso é a
previsão do Banco Central para o déficit nominal (resultado final das contas
públicas após o pagamento dos juros da dívida), para 2008, de 1,6 pontos
percentuais em relação ao Produto Interno Bruto (PIB). O grande vilão do
orçamento público continua a ser o pagamento dos juros, encargos e
amortizações das dívidas externa e interna que, sozinhos, correspondem a
30,59%2 do orçamento geral da União executado em 20073. Para se ter uma
idéia, no mesmo ano foram gastos apenas 5,17% dos recursos do orçamento
com saúde, 2,58% com educação e 0,41% com ciência e tecnologia.
Apesar das despesas financeiras com o pagamento das dívidas externa e
interna absorverem praticamente 1/3 do orçamento da União, e apesar de
serem estas as despesas que mais cresceram ao longo dos últimos anos, elas
raramente são consideradas nos debates sobre a maior eficiência dos gastos
públicos. Quem faz esta crítica é Ronaldo Coutinho Garcia, do Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), para quem, curiosamente, o pagamento
dos juros, encargos e amortizações da dívida são “intocáveis, impronunciáveis,
inexistentes para a política fiscal, ainda que a onerem pesadamente”4.
Para Garcia, o perfil atual dos gastos públicos privilegia um restrito número de
famílias e grupos econômicos com acesso ao mercado financeiro, enquanto
pune a maioria dos brasileiros que depende do avanço das políticas públicas
redistributivas. Assim, não discutir o pagamento dos juros da dívida pública
equivale a reconhecer a “intocabilidade destes privilégios”, quando intocável
deveria ser a garantia dos direitos sociais e individuais da maioria.
A oposição ao pagamento da dívida externa tornou-se bandeira de luta dos
partidos de esquerda e dos movimentos sociais latino-americanos após o
processo de endividamento iniciado pelos governos militares da década de
2 Se considerarmos as despesas com refinanciamento (pagamento de amortizações com emissão de mais títulos), o percentual sobe para 53,2% do orçamento executado em 2007. 3 Números extraídos da terceira edição da cartilha “ABC da Dívida”, disponível em http://www.divida-auditoriacidada.org.br/ 4 Garcia, R. G. “Despesas correntes da união: visões, omissões e opções”. Brasília: Ipea, jan. 2008 (Texto para discussão nº 1319)
1970. Esta demanda foi fortalecida, nos anos de 1980, devido à elevação
unilateral dos juros realizada pelos Estados Unidos que arruinou as finanças
dos países endividados. Durante todo esse período foi decisiva a atuação das
Instituições Financeiras Multilaterais (IFMs), como o Banco Mundial e o Fundo
Monetário Internacional (FMI). Enquanto o primeiro se encarregou de endividar
países periféricos, oferecendo crédito fácil para grandes, e questionáveis,
projetos de infra-estrutura, o segundo foi o responsável pela imposição de
medidas de maior liberalização dos mercados aos países endividados, como
condição para o acesso aos empréstimos. Pelo compromisso com os
interesses do capital internacional, estas instituições também se tornaram alvo
dos movimentos de esquerda.
Assim, ao anunciar a nova condição do Brasil de credor externo líquido,
sugerindo que o problema da dívida está superado, o governo pretende se
capitalizar politicamente, repetindo uma estratégia também utilizada em 2005,
quando, através do pagamento antecipado de US$ 15,5 bilhões, nossa dívida
com o FMI foi cancelada. Porém, tanto este cancelamento quanto a suposta
superação do problema da dívida externa já não têm o mesmo significado na
atual conjuntura política e econômica.
A dívida interna alcançou, em fevereiro de 2008, a astronômica cifra de R$
1,242 trilhão, superando quase em três vezes o valor da dívida externa,
estimada em R$ 417 bilhões5. Se considerarmos as operações de mercado
aberto do Banco Central, ou seja, a colocação de títulos no mercado para
enxugar a liquidez advinda principalmente da compra de dólares, a dívida
interna ultrapassa R$ 1,4 trilhão6. Dos R$ 237 bilhões executados no
orçamento da União para o pagamento de juros e amortizações da dívida pelo
Brasil em 2007, R$ 219 bilhões foram para o pagamento da dívida interna,
contra apenas R$ 18 bilhões da dívida externa, o que significa 12 vezes mais.
Numa meteórica expansão, a dívida interna brasileira, foi multiplicada por sete
no espaço de uma década. Após a implantação do Plano Real em 1994, o
5 Este valor foi convertido para reais para efeito de comparação com a dívida interna e incluí os empréstimos intercompanhia.6 http://www.bcb.gov.br/htms/infecon/demab/ma200802/index.asp (tabela 11)
aumento das importações decorrentes da imediata apreciação do Real
provocou um déficit na balança comercial brasileira. Este desequilíbrio precisou
ser compensado mediante a atração de capitais especulativos que vinham ao
Brasil em busca da remuneração por uma das mais elevadas taxas de juros do
planeta. Uma das saídas encontradas pelos gestores da política econômica foi
transformar a dívida pública em títulos negociáveis no mercado financeiro7.
Dessa forma, muitos dos credores externos se tornaram "internos", processo
que vem se intensificando ainda mais diante da recente tendência de
valorização do Real frente ao Dólar8.
Entre 1978 e 2007, nossa dívida externa, que era de US$ 52,8 bilhões, saltou
para US$ 243 bilhões. Neste mesmo período, pagamos US$ 262 bilhões a
mais do que recebemos de empréstimos. Logo, a relação entre a dívida interna
atual e a dívida gerada durante os anos de ditadura, e renegociada sucessivas
vezes durante o período democrático, significa que continuamos a pagar por
uma dívida ilegítima que já foi quitada.
Se considerarmos ainda o incalculável passivo socioambiental provocado
pelos grandes projetos financiados com recursos da dívida, chegaremos à
conclusão de que, na verdade, somos nós os verdadeiros credores dessa
dívida.
Deveríamos, portanto, fazer cumprir a Constituição Federal de 1988 que, em
seu artigo 26, do Ato das Disposições Transitórias, determina a realização de
uma auditoria da dívida externa, o que abriria uma oportunidade para a
retomada do debate sobre o peso do pagamento dos juros da dívida sobre o
orçamento.
7 Fattorelli, M.L. e Ávila R. “A dívida e as privatizações”. Disponível em http://www.divida-auditoriacidada.org.br/artigos/artigo.2007-05-18.86631256668 “Em 2007, o Real se valorizou 20% frente ao dólar. Portanto, o investidor estrangeiro que no início de 2007 trouxe dólares para aplicar na dívida interna brasileira ganhou, durante o ano, 13% em média de juros, e mais 20% quando converteu seus ganhos em dólar. Logo, em 2007, os estrangeiros ganharam uma taxa real de juros (em dólar) de mais de 30% ao ano”. Ávila R. “A dívida não acabou”.Disponível em www.divida-auditoriacidada.org.br.
É exatamente o que está fazendo o governo do Equador, liderado pelo
presidente Rafael Correa que, em 2007, criou a Comissão para a Auditoria
Integral do Crédito Público (Caic), sob a responsabilidade do Ministério de
Economia e Finanças daquele país, com o objetivo de examinar e avaliar o
processo de endividamento entre os anos de 1976 e 20069A auditoria busca
identificar tanto as taxas de juros, comissões e multas impostas, muitas vezes
de maneira unilateral nos contratos de empréstimos – violando a soberania dos
países tomadores, como também as conseqüências das condicionalidades
assumidas na contratação dos empréstimos sobre as condições de vida da
população. Além disso, será analisada a relação entre a finalidade de um
projeto financiado e os impactos sociais e ecológicos provocados, numa
abordagem multicriterial, que ajude a comprovar e dar visibilidade à ilegalidade
e à ilegitimidade da dívida reclamada.
Olhamos com expectativa para os avanços do processo equatoriano de
auditoria, na esperança de que possamos tomá-lo como exemplo num futuro
próximo. Esperamos que a força de seus resultados abra caminho para
retomarmos o debate sobre o peso da dívida para a sociedade brasileira e que
possamos, numa perspectiva mais ampla, inverter o senso comum ao
comprovar que são os povos os verdadeiros credores dessa dívida.
9 “Auditoria Já!” Nº 0, disponível em http://www.jubileubrasil.org.br/
Brasil: Despesas do Orçamento Geral da União Executado até 31/12/2007 (%)
0% 5% 10% 15% 20% 25% 30% 35%
Habitação
Saneamento
Cultura
Urbanismo
Ciencia e Tecnologia
Segurança Pública
Educação
Assistencia Social
Saúde
Transferência a Estados e Municípios
Previdência Social
Juros e Amortizações da Dívida
Fonte: Auditoria Cidadã da Dívida
Brasil: Evolução das Dívidas Externa e Interna (R$ milhões)
R$ 0,00
R$ 200.000,00
R$ 400.000,00
R$ 600.000,00
R$ 800.000,00
R$ 1.000.000,00
R$ 1.200.000,00
R$ 1.400.000,00
dez/03 dez/04 dez/05 dez/06 mar/07 jun/07 set/07 dez/07 fev/08
Dívida Externa
Dívida Interna
Fonte: Banco Central
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