UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR
CENTRO DE HUMANIDADES DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA (MESTRADO)
O CONCEITO DE NATUREZA EM SCHELLING: Um estudo sobre os escritos de 1797-1799.
ADRIANA ALVES DE LIMA LOPES FORTALEZA
2007
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Adriana Alves de Lima Lopes
O CONCEITO DE NATUREZA EM SCHELLING: Um estudo sobre os escritos de 1797-1799.
Dissertao apresentada ao Curso de Ps-
Graduao em Filosofia da Universidade Federal do Cear como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Filosofia.
rea de Concentrao: Filosofia Contempornea Orientador: Prof. Dr. Kleber Carneiro Amora Universidade Federal do Cear
Fortaleza
Departamento de Filosofia 2007
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Dissertao defendida e aprovada, em 31 de Agosto de 2007, pela banca examinadora
constituda pelos professores:
_______________________________________________ Prof. Dr. Kleber Carneiro Amora Orientador _______________________________________________ Prof. Dr. Manfredo Arajo de Oliveira _______________________________________________ Prof. Dr. Jos Expedito Passos Lima
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AGRADECIMENTOS
A Deus pelo dom da vida.
Aos meus pais, responsveis por toda a minha formao intelectual, pelos desmedidos
esforos para a realizao deste trabalho.
Aos meus irmos Anderson e Valdenisio por compartilhar de todos os momentos de
minha vida.
Ao Prof. Kleber Amora, orientador deste trabalho, pelas excelentes contribuies dadas,
pelo apoio, compreenso, empenho e ateno durante todo este perodo.
Ao prof. Custdio Almeida, mestre e amigo, meu muito obrigado pelas palavras de
incentivo, pelo olhar filosfico dado idealizao deste projeto, com o qual tive o
prazer de compartilhar ainda na graduao.
A Lucas Faustino, companheiro de toda esta jornada, com o qual pude partilhar todo o
processo de constituio deste projeto. Pelo apoio, pelo incentivo e por me fazer
acreditar em mim mesma.
Aos meus amigos e philia presente entre ns. Adail Junior, Adriano Caetano, Helena
Faustino, Patrcia Macena, Rosa Filizola.
FUNCAP (Fundao Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Cientfico e
Tecnolgico) pelo apoio financeiro sem o qual seria invivel a realizao deste projeto.
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Aquele que quer filosofar verdadeiramente
deve desprender-se de todo anseio, de toda nostalgia, deve nada querer, nada saber, sentir-se inteiramente simples e pobre, tudo doar para tudo receber. Este passo difcil, difcil como separar-se da ltima margem.
Schelling
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SUMRIO
RESUMO.........................................................................................................................06
INTRODUO...............................................................................................................07
1. PRIMEIRA FASE: AS INFLUNCIAS DE KANT E FICHTE................................14
1.1 A possibilidade de uma forma de filosofia em geral por meio da afirmao de um Eu
incondicionado: Consideraes preliminares .................................................................14
1.2 Eu absoluto = liberdade.............................................................................................19
1.3 O papel da intuio intelectual .................................................................................24
1.4 O Eu como causalidade absoluta...............................................................................31
1.5 Proposta de uma unidade das teses do dogmatismo e criticismo..............................35
2. O SURGIMENTO DO ORGNICO NA NATUREZA ............................................48
2.1 A possibilidade de representaes fora de ns: como o sistema se tornou real?.......48
2.2 O Sistema da natureza: matria e esprito ................................................................53
2.3 O conceito de organismo e auto-organizao na natureza........................................61
2.4 Natureza = unidade absoluta de ideal e real..............................................................71
3. O PROJETO DE UM SISTEMA DA FILOSOFIA DA NATUREZA......................79
3.1 A dimenso orgnica dos produtos originrios da natureza......................................79
3.2 Filosofia da natureza como fsica especulativa: A filosofia da natureza uma
cincia necessria no sistema do saber..........................................................................88
CONSIDERAES FINAIS........................................................................................100
REFERNCIAS............................................................................................................108
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RESUMO
Este trabalho visa analisar a concepo de natureza de Schelling a partir de seus escritos
iniciais para mostrar que, luz do jovem Schelling, a Filosofia da Natureza surge como
um avano da teoria de Fichte (que reduz a natureza ao No-eu) numa dinamicidade da
prpria natureza. Mas, por outro lado, surge tambm como um resgate desta postura que
assume um Eu absoluto e incondicionado como fundamento de todo saber racional. A
partir desta relao originria entre Eu e No-eu, Schelling elabora a idia de uma
natureza enquanto produtividade livre, orientada por uma atividade originria e
incondicionada. Desse modo, sua Filosofia da Natureza surge como fsica especulativa,
onde se faz necessrio considerar no apenas os seus produtos, mas tambm sua
produtividade; logo, h na natureza uma organizao, de onde se deduz que tudo o que
comprovado na experincia fruto de um princpio constitutivo da prpria natureza, e
no simplesmente por princpios regulativos (como pensara Kant). Portanto, para alm
de uma metafsica da natureza de Kant, Schelling a concebe como unidade objetiva de
matria e forma.
Palavras-chave: Filosofia da Natureza; Eu absoluto; Eu e No-eu; Organizao.
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INTRODUO
Iniciamos este trabalho com a hiptese de que s possvel traarmos o
caminho rumo filosofia da natureza de Schelling ao tomarmos como referencial o que
se denomina a sua fase juvenil; na realidade adotamos a tese de que tais escritos1
iniciais j marcam um foco central de sua filosofia da natureza. Para tanto, utilizamo-
nos das posturas de Fichte2 e Kant a fim de mostrar que, na realidade, a filosofia da
natureza de Schelling consiste em uma reformulao, ou melhor, uma ampliao destas
posturas anteriormente indicadas.
Um aspecto imprescindvel compreenso da questo com a qual nos
defrontamos no presente escrito gira em torno da problemtica inicial posta pela
filosofia crtica de Kant, que assume uma posio dualista do real, concebendo uma
distino entre sujeito e objeto, razo terica e razo prtica.
Para Kant, por um lado, a filosofia tem a tarefa de analisar criticamente as
faculdades cognitivas por meio das categorias do entendimento; a atividade do sujeito
(ao reconhecer seu mundo fenomnico) que determina as leis do entendimento. Por
outro lado, Kant reconhece que sua investigao no se detm somente ao primado
terico, onde o conhecimento do mundo limita-se aos seus fenmenos; mas, preciso
uma anlise do primado prtico (o dualismo agora firma-se entre razo terica e razo
prtica).
Desse modo, luz desta nova distino, Kant principia a sua investigao no
mbito da liberdade, onde o sujeito livre na medida em que sua ao se autodetermina
como independente do mundo sensvel e age por intermdio de sua prpria vontade.
preciso, porm, ir mais alm dessas duas esferas do conhecimento (terico e prtico) j
1 ntido esclarecer que nossa trajetria segue o perodo dos escritos de sua juventude1 (1794-1796) at o perodo de sua filosofia da natureza (1797-1799). Na realidade no se trata de um exame cronolgico da trajetria schellingniana, mas de apresentar, a partir desse perodo, os elementos relevantes para compreendermos sua proposta de uma filosofia da natureza, visto que tais escritos representam, ainda que de forma implcita, as primeiras tentativas de assumir uma filosofia da natureza. 2Os escritos do jovem Schelling tm como ponto de partida a idia fichtiana de que cada conscincia de algo condicionada pela conscincia imediata de ns mesmos.
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que estes no se unificam, pois como compreender a relao entre a atividade livre do
homem que s tem sentido em seu mundo fenomnico?
Nesta perspectiva, a Crtica da faculdade de julgar fornece alguns elementos
essenciais para se compreender uma possvel mediao entre estas duas esferas, pois
nesta Kant vai mais alm e julga necessrio conceber um intermdio entre o mundo da
natureza e o mundo da liberdade, por isso ele pensa a faculdade do juzo como capaz de
realizar tal mediao. Assim, com base na idia de uma fora do juzo, torna-se-
possvel, com efeito, uma sntese entre o terico e o prtico. Entretanto, ao admitir esta
mediao, concebe-a somente a partir do que ele denomina idias regulativas da razo.
Nisto consiste a grande questo que marca a filosofia ps-kantiana. Kant ao
admitir uma conexo entre os dois mundos, aceita um fundamento do conhecimento que
no pode por ele mesmo ser conhecido. Nesse contexto, o Idealismo Alemo nasce com
a tentativa de apresentar um princpio da Filosofia que fundamente tanto o prtico
quanto o terico. A questo primordial defendida por esta postura advoga uma unidade
que deve preceder toda e qualquer representao do mundo: a unidade de sujeito e
objeto, finito e infinito, eu e no-eu. A realidade s pode ser compreendida como um
todo, como uma conscincia que contm em si mesma o fundamento de toda Filosofia.
Assim, seguindo a idia-chave do idealismo alemo, cujo movimento
filosfico surge a partir da ruptura com Kant acerca da dualidade de conceito e objeto,
(embora reconhecendo a relevncia do pensamento kantiano), Schelling avana, com
efeito, para alm deste (onde o sujeito cria apenas as condies supremas do
conhecimento (formas e categorias transcendentais)) na tentativa de fundamentar um
conhecimento auto-reflexivo e cognoscvel, ou melhor, na defesa de um princpio
superior do saber humano que possa servir de fundamento para todo e qualquer
conhecimento e compreende tal relao no como um processo regulativo da razo, mas
como constitutivo desta.
Neste sentido, o resgate da filosofia kantiana no suficiente para a
constituio de um saber sistemtico, isto , embora Schelling reconhea o carter
ineliminvel da filosofia transcendental, esta no toda a Filosofia, mas, sim, o meio de
passagem Filosofia como tal. Em outras palavras, Schelling retoma a filosofia
transcendental de Kant como via de acesso realidade, ou seja, se apodera do
argumento transcendental como uma entidade ontolgica, capaz de dar conta da
realidade.
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preciso tambm retornar metafsica tradicional, que defendia a idia de
um princpio absoluto e incondicionado como tarefa da razo. Faz-se necessrio resgatar
esse absoluto como necessrio constituio de todo e qualquer saber racional, algo que
constitui o limite de Kant.
Nesta perspectiva, Schelling parte da noo de Eu como a esfera absoluta e
incondicionada capaz de realizar a sntese de sujeito e objeto. Seus escritos iniciais, a
saber, Sobre a possibilidade de uma forma de filosofia em geral(1794); Do Eu como
princpio da filosofia ou sobre o incondicionado no saber humano(1795); Cartas
filosficas sobre o dogmatismo e criticismo(1795) indicam um princpio que possa ser
compreendido como condio de possibilidade de todo e qualquer saber. Princpio este
que, para Schelling, deve ser incondicionado.
Assim se prossegue a pergunta inicial da filosofia: Qual a relao entre ser e
pensar? Entre ser e liberdade? Qual a relao entre a estrutura do mundo e as
representaes que fazemos dele? Para Espinosa, a resposta est na definio de
Absoluto, que consiste na unidade do todo, ou melhor, na unidade de ser e pensamento.
Este Absoluto, porm, concebido por ele como substncia fora de ns (portanto
condicionado). Contrrio a esta postura, Schelling apresenta o Absoluto como
constitutivo da nossa prpria natureza.
Desse modo, Schelling atribui ao Eu esta esfera incondicionada: Um Eu que
no substncia e se autodetermina, um Eu puro e absoluto posto por liberdade e no
condicionado por nenhum objeto. Tal Eu se configura como a unidade de ser e pensar,
ou seja, uma unidade absoluta que fundamenta o todo do sistema. Visto que o absoluto
no necessita de nenhum conceito para determin-lo, como possvel, entretanto,
conhecer o sistema?
Dada a impossibilidade de pressupor um conceito desse absoluto, somente
por meio de uma intuio intelectual que podemos pens-lo. Esta necessria para que
se possa afirmar a existncia do Eu absoluto como unidade do saber que contm em si
mesmo uma infinitude. Se o Eu este infinito, este todo, porm, deve conter tambm
algo finito, ou seja, finito e infinito, condicionado e incondicionado se exigem
mutuamente.
Nesse contexto, Schelling atribui Filosofia a tarefa de evidenciar tal relao
por um processo de autoconscincia, cujo propsito consiste em intuir a sua prpria
natureza em desenvolvimento. Trata-se, portanto, de um esprito capaz de intuir a si
mesmo, e no simplesmente uma matria morta. Este Eu agora esprito (absoluto) e
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nele se encontra a unidade originria de sujeito e objeto, finito e infinito. vlido
ressaltar que tal intuio no poderia ser sensvel , mediata, visto que nesta s se intui
objetos, mas sim imediata, cuja atividade transcende o mundo emprico e qualquer
dimenso conceitual deste.
Diferentemente da postura fichtiana que assume uma identidade do Eu
consigo mesmo e admite um absoluto como unidade de real e ideal, onde Fichte dir
que tal fundamento encontra-se no sujeito do conhecimento, ou seja, somente o Eu
contm realidade e o no-Eu seria apenas oposio ao Eu. Schelling introduz a sua
filosofia da natureza onde prope justamente uma conexo entre aquilo que se conhece
e aquilo que se pode conhecer, pondo o Absoluto como a esfera na qual o fundamento
real e o fundamento ideal so postos como identidade contida no objeto do
conhecimento, como um processo natural. Sua proposta de natureza est em um patamar
mais elevado que a simples noo de ksmos e mediante uma atividade de si mesma,
no seu prprio processo de constituio e desenvolvimento, que se encontra este
princpio unificador que possibilita ao homem o reconhecimento de sua existncia.
por intermdio da pergunta de como surge em ns as representaes das
coisas exteriores que Schelling centraliza sua investigao. Seu objetivo consiste na
exposio de um sistema no qual a teoria da natureza surja como filosofia e vice-versa,
isto , filosofia natureza, e natureza filosofia. O sistema da natureza matria e
esprito, sujeito e objeto, e somente com base nesta relao podemos ter a noo de
totalidade do sistema.
Conseqentemente, para se compreender a natureza necessrio pens-la
como uma totalidade de objetividades, como algo que contm em si mesma toda e
quaisquer possibilidades do Eu. A natureza autnoma, viva, dinmica, tem a sua
atividade em si mesma, no necessita de nenhuma causa exterior que a determine, pois a
sua atividade infinita e incondicionada. A natureza tambm unidade absoluta,
idealidade e realidade. Aqui o orgnico anterior ao inorgnico. A natureza o
esprito visvel, o esprito a natureza invisvel3.
Desse modo, podemos aqui distinguir duas dimenses em que a natureza
posta: primeiramente, Schelling a concebe como uma dimenso originria que antecede
dicotomia sujeito e objeto, como algo que subsiste por si mesma ou que por meio de
3 SCHELLING, F.W.J. Idias para uma filosofia da natureza, p. 115.
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si mesma; e, por outro lado, como algo que constitui o plo de sujeito e objeto, ou seja,
o outro do sujeito.
Neste sentido, valendo-se desta distino fundamental, ao dialogar com
Fichte, Schelling comea a se distanciar cada vez mais deste. Ao passo que, para Fichte,
todo conhecimento dos objetos constitudo pelas aes do Eu e no tem outro
fundamento, a no ser o saber acerca de si mesmo; Schelling concebe os atos pr-
conscientes como atos que originam tanto a natureza real, como tambm a prpria
autoconscincia, o prprio Eu. Neste sentido, Fichte enraza a sua filosofia ancorada
somente em uma subjetividade inerente ao prprio Eu, deixando de lado a dimenso
objetiva da natureza.
Em contraposio a esta postura, para Schelling, h na natureza uma
atividade inconsciente e livre que age por fora de suas prprias leis. Nesta o homem,
por liberdade, tem a capacidade de conceber a unidade do mundo com as representaes
que fazemos dele. Por uma atividade da conscincia, podemos falar em um equilbrio
entre o mundo e as suas representaes. No h, portanto, uma forma de mecanicismo
presente nesta atividade, mas, sim, h no sistema a tendncia auto-organizao: no
como algo dado ou pr-determinado, mas como um sistema no qual o esprito reconhece
a si mesmo como natureza e vice-versa.
Desse modo, conceber a natureza como organizada implica afirmar que h
nela uma inteligncia ordenadora que se encontra em constante processo de formao,
em devir, pois, a natureza no pode estar presa aos mecanismos externos presentes nela.
Por isso, Schelling se utiliza do conceito de organizao para explicitar que parte e todo
se encontram em um nico conceito, em uma reciprocidade de ambos os conceitos
como elementos constitutivos da totalidade do sistema.
justamente o esprito que nos possibilita pensar a sntese de sujeito e
objeto, parte e todo, ideal e real. Assim como tudo o que h s pode ser pensado como
produto da prpria natureza, Schelling descarta toda e qualquer idia de um Deus
criador externo a esta, pois a produtividade da natureza absoluta e autnoma.
Desse modo, a filosofia da natureza de Schelling no tem como limite a
formulao de uma teoria que visa simplesmente uma explicao cientfica dos
fenmenos do mundo, mas a pe como um ato absoluto do conhecimento, como uma
filosofia que, como cincia dos princpios, compreendida como unidade absoluta de
ideal e real, simultaneamente.
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Aps esclarecer que a natureza em Schelling surge com base no prprio
conflito do homem com seu mundo, onde este se aparta deste, para por liberdade, tomar
conscincia de si mesmo, Schelling identifica o sistema da natureza como um sistema
da liberdade. Neste sentido, mister esclarecer que para ele no se trata de uma relao
simplesmente causal e mecnica, mas identifica a natureza como unidade absoluta,
como um processo dinmico, orgnico, enquanto produtividade livre e incondicionada.
Desse modo, Schelling acrescenta um novo conceito sua filosofia da
natureza: esta agora chamada fsica especulativa. H uma fora configuradora em sua
prpria essncia, mediante a qual sua produtividade se sobrepe frente aos seus
produtos medida em que tambm identifica-se com estes. Schelling ressalta a sua
concepo de cincia (j que anteriormente identifica a filosofia como cincia) para
diferenci-la de uma cincia emprica, na qual no est presente a idia de um devir, j
que os objetos so dados como produtos prontos e acabados.
Para Schelling, como a Filosofia deve partir do incondicionado esta tambm
se pe como produtividade livre e infinita. Assim, passa a compreend-la como
continuidade, devir, como sujeito no sentido de que representa a prpria construo de
suas potncias, do orgnico e do inorgnico. Desse modo, a Filosofia como fsica
especulativa visa a anlise de seus fundamentos ltimos, ou seja, tem como propsito
fornecer uma cincia da natureza no sentido rigoroso da palavra (ou seja, preciso
compreend-la como um saber a priori) e para experimentar se uma Fsica especulativa
seria possvel temos de saber o que pertenceria possibilidade de uma doutrina da
natureza enquanto cincia4.
Tendo como pressuposto tais idias, dividimos a dissertao em trs
momentos principais:
No primeiro captulo, apresentamos o aspecto incondicionado da natureza e
a necessidade de um princpio absoluto que a fundamente que Schelling denomina de
Eu, onde expe a Filosofia como uma cincia absoluta do saber.
No segundo captulo, explicitamos o conceito de organizao da natureza
como caracterstica ineliminvel desta.
No terceiro captulo, indicamos uma caracterstica fundamental do sistema: a
idia de uma produtividade infinita na natureza. Com base nisto, Schelling comea a
analisar os produtos na natureza e a conceb-los como resultado da atividade dessa
4 SCHELLING, Introduo ao projeto de um sistema da Filosofia da Natureza, p. 22.
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produtividade, onde at mesmo no processo de evoluo da natureza est presente este
princpio de unidade do todo, o que confirma a idia da natureza como organismo.
Aqui tambm possvel distinguirmos outra perspectiva em que a natureza
vista: como natura naturans e natura naturata. Como sujeito inconsciente, uma
natureza que compreendida como unidade originria, produz seus objetos e, ao mesmo
tempo, como um conjunto de todos os objetos naturais (sujeito consciente). Feito esta
ressalva, pode-se dizer que, a filosofia da natureza de Schelling segue agora com a
tarefa de compreender tal natureza produtiva que, com base em si mesma, faz emergir
produtos naturais.
Desse modo, a natureza como natura naturans (como produtividade) tem
primazia no sistema, e at mesmo a sua prpria organizao interna caminha orientada
por tal caracterstica. Como se d, porm, esse processo dinmico na natureza? A
natureza agora fsica especulativa e a sua anlise se principia com base nos graus de
desenvolvimento dessa produtividade at chegar ao seu produto.
A tentativa de conciliar estes trs momentos como necessrios para a
compreenso da totalidade do sistema de sua filosofia da natureza o nosso maior
desafio. Nossa proposta consiste, portanto, em percorrer tal caminho na tentativa de
expor como se d esta relao entre natureza e filosofia e em que medida podemos
identific-la como cincia suprema dos princpios, posto que a filosofia deve partir de
um princpio absoluto. Com isso, apresentamos a defesa do projeto de uma filosofia da
natureza de Schelling, destacando a sua relevncia para a filosofia.
Apostamos na idia de que luz de sua fase juvenil, o sistema da natureza
funda-se como um todo orgnico e infinito, que fortemente influenciado pela postura
de Fichte, que tem o Eu absoluto como base para o sistema. Assim, Schelling assume,
com efeito, a idia de uma atividade originria na natureza, visto que em Fichte esta
atividade de um Eu com um no-Eu produz o mundo dos objetos ao infinito.
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CAPTULO I
1. PRIMEIRA FASE5: AS INFLUNCIAS DE KANT E FICHTE
1.1 A possibilidade de uma forma de Filosofia em geral por meio da
afirmao de um Eu incondicionado: Consideraes preliminares. A filosofia tem o papel de adequar o contedo daquilo que se conhece, que
se busca conhecer e que dado para ns de forma condicionada, e a forma que os
determina. Por isso, a filosofia trata da conexo entre forma e contedo com base em
um fundamento para este saber. Portanto, para tal exerccio, o conhecimento da
realidade efetiva no suficiente: preciso buscar o seu fundamento ltimo. Na
linguagem de Schelling, preciso buscar uma proposio de fundo incondicionada
como garantia do conhecimento da realidade efetiva.
Para Schelling, Filosofia significa unidade de forma e contedo. Qual ,
porm, o fundamento dessa ligao? A forma a forma do contedo; o contedo, o
contedo da forma. Assim sendo, ele toma como ponto de partida de seu sistema a
busca pelas condies (da forma) de todo saber. Ao enveredar por este caminho,
entretanto, assume como pressuposto a tese de que buscar a forma de uma filosofia em
geral remete necessariamente ao princpio de unidade absoluta de todo saber.
Com base nisso, tal perodo marcado pela preocupao de Schelling na
busca de uma proposio de fundo que vise a deduo de uma forma originria de toda
cincia. neste sentido que ele concebe a necessidade de um princpio supremo
absoluto que possa responder questo: como a filosofia, quanto sua forma e ao seu
contedo, possvel como cincia?
5Recorrer a este primeiro perodo do projeto de Schelling faz-se necessrio para explicitarmos a mudana de paradigma no que concerne ao seu conceito de natureza. Aqui a oposio se d entre ser e liberdade, portanto, a natureza ainda no aparece como atividade produtiva, que ser basicamente a definio que ele tomar mais adiante, onde a relao dar-se- entre esprito e natureza. Neste primeiro momento, a natureza compreendida na mesma perspectiva fichtiana que a concebe como puro no-eu, como algo morto, como algo negativo, como atividade inconsciente do Eu; pois, para Fichte, a natureza vista somente por meio do domnio das representaes necessrias do Eu.
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Em outras palavras, a investigao presente em uma de suas primeiras obras,
a saber, Sobre a possibilidade de uma forma de filosofia em geral (1794), est voltada
para a forma da Filosofia que tem por base a busca por esse princpio absoluto, capaz de
sistematizar as proposies de modo que tal conexo possa chegar ao saber em geral.
Logo, para firmar-se como cincia, a Filosofia6 no deve ser condicionada por nenhuma
outra cincia, posto que, a sua pedra angular o prprio incondicionado.
Desse modo, a ligao entre forma e contedo s possvel com a existncia
de um princpio absoluto, princpio de todos os princpios, que consiste justamente na
afirmao de um Eu puro, onde somente por meio deste concebvel tal unidade. Pois o
problema gira em torno da questo de como possvel uma Filosofia em geral, na nossa
relao com a natureza.
vlido ressaltar, entretanto, que a preocupao aqui no est em
demonstrar se na verdade h um contedo determinado para cada forma determinada,
nem vice-versa, mas o que se pretende afirmar uma cincia compreendida como um
todo, como unidade: esta a nica condio que determina todas as partes da cincia,
que Schelling define como a proposio de fundo que buscada para que possa dar
conta de todas as proposies particulares.
Portanto, na anlise desta proposio de fundo que Schelling dedica esta
primeira fase de seu pensamento:
Esta forma de unidade, da conexo contnua de proposies condicionadas, cuja primeira no condicionada, constitui a forma geral de todas as cincias e difere da forma especial das cincias particulares, cuja medida onde ela est depende ao mesmo tempo de seu contedo determinado7.
Com isso, ele pretende inferir que a Filosofia no pode ser condicionada por
nenhuma outra cincia. Logo, a prpria pergunta pela possibilidade de uma Filosofia em
geral remonta necessariamente busca das condies ltimas de possibilidade de toda
Filosofia, donde se percebe que buscar tais condies em seu fundamento, significa
poder abarcar tambm as condies de todo contedo e de toda forma possveis. por
intermdio da organizao de tais proposies que possvel se chegar ao princpio que
6Para Schelling, assim como para Fichte, a Filosofia s faz sentido como cincia dos princpios, como um saber que precede, do ponto de vista da argumentao, o saber emprico das cincias. Cf. OLIVEIRA, Manfredo Arajo de. Para alm da fragmentao, p. 169. 7SCHELLING, F.W. Sobre a possibilidade de uma forma de filosofia em geral, p.19.
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conecta os seus contedos; ou melhor, a Filosofia pergunta pela origem da forma, pela
conexo de forma e contedo.
Desse modo, indaga Schelling:
Como, no que concerne sua forma e ao seu contedo, a filosofia possvel enquanto cincia, seu contedo obtm sua forma determinada por algo puramente arbitrrio, ou ainda todos os dois se produzem mutuamente um ao outro8?
A resposta de Schelling orientada pela sua definio acerca do
incondicionado; pois, nem se pode afirmar uma ligao arbitrria de forma e contedo,
nem tampouco por uma proposio terceira, visto que tal ligao consiste no fato de que
esta proposio de fundo posta de forma incondicionada. No se pode pensar, com
efeito,em uma forma geral sem pressupor tambm um contedo. Com isso, Schelling j
indica para a necessidade de um princpio absoluto que consista justamente numa
unidade de matria e forma. A afirmao dessa proposio de fundo (incondicionada e
absoluta) a garantia de todo o nosso saber.
Schelling tenta justificar tal hiptese afirmando a tese de uma fundao
recproca de um para com o outro. Desse modo, sua pesquisa prossegue na tentativa de
apresentar a possibilidade de tal proposio, que contm em si mesma o seu
fundamento. Diz Schelling: O objetivo principal deste estudo no reside mais do que
na deduo da forma originria de toda cincia a partir desta proposio de fundo9.
Esta ltima se autodetermina, posto que marcada por suas prprias caractersticas,
determinando-se a si mesma pela sua prpria incondicionalidade.
Aqui Schelling repete o raciocnio fichtiano do primeiro princpio da
Doutrina-da-cincia afirmando a tese de um Eu que se pe a si mesmo (Eu=Eu) como
incondicionado. Desse modo, tem-se a possibilidade de um algo que se pe e que
originrio no pelo fato de estar posto, mas pelo fato de que se trata de um Eu que como
est posto ele mesmo que se pe (fruto de uma causalidade absoluta10).
Afirmar a proposio de fundo do tipo Eu=Eu implica, porm, dizer que
forma e contedo se relacionam reciprocamente, de modo que, pensar algo diferente do
8 SCHELLING, F.W. Sobre a possibilidade de uma forma de filosofia em geral, p.21. 9Ibidem, p.25. 10Schelling define a causalidade absoluta como causa sui, isto , como algo que age por necessidade de sua prpria essncia e no condicionada por leis externas, mas sim aos efeitos de suas prprias leis.
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Eu seria afirmar a tese de que Eu = No-Eu, posto que aqui o contedo no seria dado
pela sua forma nem vice-versa. Com esta tese, Schelling apresenta duas possibilidades:
1) Ou a proposio de fundo no deveria existir ou 2) ela no poderia ser originada do
fato de que seu contedo e a sua forma se fundam reciprocamente.
A concluso que ele percebe nisto que pelo fato de afirmar a necessidade
desta proposio de fundo mais elevada, uma forma de estar posta absoluta dada, o
que pode trazer dela mesma um contedo, o que confirma a tese de que A=A. Porm,
se este estar posto incondicionado no condio de possibilidade de todo contedo,
ento a afirmao ser a seguinte: A = No-A. Com isso, ratifica-se a tese de que s se
pode conceber o contedo e a forma de uma proposio de fundo unicamente pela
afirmao do Eu.
Ainda com base em tal relao, Schelling se refere a um terceiro termo que
seria condicionado pelo Eu e pelo No-Eu, sendo um produto da ao recproca desses
dois. Ainda que, mesmo sendo possvel imaginar tal produto, ele ressalta a importncia
da forma originria do Eu (sua incondicionalidade) como a pedra angular deste. Em
realidade, esse terceiro termo seria uma forma da condicionalidade determinada pela
incondicionalidade.
Teramos, com efeito, trs proposies: O Eu, o No-Eu e a Representao.
A primeira radicalmente incondicionada; a segunda incondicionada na forma e a
terceira, incondicionada segundo o contedo. Donde Schelling conclui que tais
proposies possuem a forma originria de toda cincia. Em outras palavras, possuem
a forma da incondicionalidade, a condicionalidade e a condicionalidade determinada
pela incondicionalidade11.
Diferentemente da perspectiva cartesiana que define o princpio do cogito
ergo sum como o princpio real, onde o pensar concebido como condio do Eu e no
se encontra presente a idia de um Eu absoluto, Schelling tem por objetivo fundar a
forma originria de toda Filosofia, afirmando a existncia de um princpio primeiro e
incondicionado que, ainda que desconhecido pela realidade emprica, manifesta-se em
todas as suas proposies. Isso para mostrar que tal princpio identifica-se com aquilo
que se afirma como Eu.
11 SCHELLING, F.W. Sobre a possibilidade de uma forma de filosofia em geral, p.30.
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Em Descartes, o Eu j princpio. Na afirmao de um cogito ergo sum
(penso, logo existo), posto que o Eu se constitui por si mesmo, firma-se ento uma
certeza imediata que serve de fundamento para todas as outras certezas possveis. Como
o Eu entendido como a nica certeza necessria, tudo o que estiver fora do mesmo
duvidoso; ou seja, a dvida exprime-se como dvida da existncia de tudo o que existe
fora do Eu, j que esta a nica certeza que se pode afirmar. A superao da dvida em
relao ao mundo externo passa necessariamente pela prova de Deus que, como garantia
suprema, possibilita que se assuma o no-ser (o mundo).
Contudo, Fichte rejeita a tese cartesiana e Schelling, influenciado pela
exposio da Doutrina-da-cincia(1794), retoma a crtica fichtiana que se contrape ao
pensamento cartesiano na medida em que pe no Eu sou e no no Eu penso, na coisa
pensante, na res cogitans, o fundamento do Eu. Ao passo que Descartes parte da
estrutura de uma coisa pensante, que para afirmar a realidade do mundo necessita de
uma prova externa para o mesmo, Fichte v a dimenso do Eu sou como estrutura
fundamental de todo existente, constituindo, desta forma, o princpio mais elevado da
Filosofia.
Conseqentemente, a exigncia de um sistema eminentemente filosfico est
no em mostrar uma base ontolgica exterior ao Eu, como fizera Descartes, mas est
voltada para um sistema que tem como referencial um princpio que possa pensar a
Filosofia como um sistema que englobe a totalidade do mundo. Da se explica o porqu
da defesa de uma forma de Filosofia em geral, que em outras palavras, significa
justamente o estabelecimento dos princpios que fundamentam essa totalidade, na busca
pelo conhecimento do conhecimento, pelo saber do saber.
Com isso, Schelling busca pela gnese da filosofia (compreendida como
cincia dos princpios) com base na afirmao de que Eu=Eu. Esta forma
incondicionada posta como uma proposio absoluta, a partir da qual se tem tanto a
forma do pr (posio de algo) como a forma do ser posto, ou seja, o ato pelo qual uma
dada coisa posta; isto , a proposio de fundo da filosofia consiste nessa identidade
entre aquilo que posto e o modo como posto.
Embora Kant tenha apresentado em sua Crtica da razo pura tanto uma
deduo transcendental das formas sintticas (as quais pem a possibilidade da
existncia de uma realidade exterior) quanto a existncia de um eu penso, com base
no qual seria possvel realizar a aplicao epistmica daquelas formas, ele no assume
19
um princpio incondicionado auto-reflexivo a partir do qual elas poderiam ser
deduzidas. na hiptese de uma reformulao desse pensamento kantiano que
Schelling vai mais alm e passa a indagar: Como chegar a tal princpio incondicionado?
Qual o caminho que deve ser percorrido pela verdadeira Filosofia?
Pois, apostando na hiptese de que se faz necessrio uma sistematizao de
tais proposies do saber, assim como o reconhecimento desta ligao, Schelling
apresenta o conceito do Eu Absoluto como incondicionado, incondicionvel e posto por
liberdade, como a instncia fundante do sistema de toda e qualquer Filosofia possvel.
1.2 Eu absoluto = liberdade
Para isso, Schelling conduz a um princpio absoluto e incondicionado, ou
seja, afirma a necessidade de um Eu que, ao mesmo tempo em que se pe, ele mesmo
a instncia que realiza este ato de pr a si mesmo. Toda filosofia, portanto, deve partir
do incondicionado;onde reside, porm, este incondicionado,no Eu ou no no-Eu?
Segundo Schelling, o incondicionado Eu puro, no condicionado por
nenhum objeto, mas posto por liberdade. Tendo o Eu como foco de sua empresa,
Schelling concebe com base na concepo fichtiana, o princpio do Eu por meio de um
ato de liberdade que o que permite chegar-se conscincia pela intuio, visto que a
prpria liberdade representa o ponto de partida de toda e qualquer Filosofia.
Segundo Fichte12, a conscincia da intuio do Eu se d por um ato de
liberdade. Tal afirmao, entretanto, no significa a afirmao de um Eu anterior
conscincia, pois este Eu autoconscincia. Em outras palavras, trata-se de um Eu que
ao tornar-se consciente, realiza tal atividade por intuio graas a noo de liberdade a
ele atribuda. Desse modo, assumir esta autoconscincia imediata do Eu como intuio
significa afirmar a unidade de sujeito e objeto como absolutamente o mesmo, pois se
trata de um Eu que no ato de pr j est pondo-se a si mesmo.
Nesta perspectiva, Schelling caminha orientado pelo Idealismo prtico de
Fichte, ressaltando o Eu Absoluto como liberdade, como pura atividade criadora, onde a
relao existente dada entre ser e liberdade. Em Kant, por conceber uma distino
entre o sensvel e o supra-sensvel, faltava a idia de um princpio que pudesse 12Ver Fichte in O princpio da Doutrina-da-cincia,de 1757,em que a conscincia da intuio do Eu se d por um ato de liberdade. Na medida em que a atividade da conscincia se inicia por liberdade, que se d o reconhecimento de tal intuio que se encontrava em repouso.
20
fundamentar uma filosofia como sistema13, como cincia, conforme prope Fichte. A
proposta de Schelling a de uma nova leitura valendo-se da deduo das categorias
kantianas, tendo por base os princpios expostos por Fichte na Doutrina-da-cincia.
Desse modo, tal princpio no pode ser nem objetivo, nem subjetivo, mas
sim, absoluto. O que significa que tem que ser incondicionado (Unbedingt)14,donde se
pode afirmar que, por no se tratar de algo coisificvel, nem possvel de tornar-se
objeto, portanto, no representvel, podemos defini-lo como aquilo que porque e
no necessita de nenhum outro para determin-lo; pois consiste simplesmente na
afirmao: (Eu=Eu).
A questo posta por Schelling est em saber se a afirmao de tal princpio
como fundamento de todo saber verdadeira ou falsa: faz sentido pensar a idia de um
princpio que possa fundamentar a Filosofia como um sistema? Para ele, tal anlise deve
partir dos prprios princpios que a fundamentam, da porque a sua investigao segue
na anlise de tais princpios que ele supe como verdadeiro e incondicionado.
Neste sentido, a Filosofia s tem a crescer cada vez que indaga pelos
princpios supremos de todo saber, pois s assim possvel fundament-los valendo-se
deles mesmos. A questo principal tratada na obra Do Eu est em explicar o significado
daquilo que afirmamos que sabemos, em mostrar que afirmar um saber no somente
enunciar um conjunto de proposies singulares, mas significa afirmar uma realidade
que condio para todo saber, que contm a forma e o contedo de todo saber.
Em verdade, h um saber que condio de possibilidade de todo saber e
por ser dotado de forma e contedo o que permite que as proposies no sejam
vazias. E como tal saber existe, pode-se pensar numa instncia ltima do saber que
admitida simplesmente como algo que porque .
13Kant, na Crtica da faculdade de julgar, embora no tenha assumido to claramente a idia de um incondicionado, como fizera Fichte e Schelling, admite a existncia de unidades incondicionadas, s que estas podem ser pensadas somente do ponto de vista regulativo. 14Cf. Bicca, Luiz. Racionalidade moderna e subjetividade, p.74. Schelling destaca uma diferena da palavra alem Bedingen, que significa condicionar e faz aluso palavra Ding (coisa). Diz Bicca: A absolutidade do Eu exclui, em Schelling, toda e qualquer auto-objetivao do Eu. O absoluto no objetivvel, seu modo de ser a imediaticidade {...} a anlise etimolgica do verbo Bedingen normalmente traduzido por condicionar, o que deixa escapar todo um espao de significado vinculado raiz Ding (coisa) presente no ensaio Do Eu, de 1795. Schelling afirma a a propsito da palavra originariamente alem designativa do que absoluto, unbedingt (incondicionado, o que no condicionado): Condicionar (Bedingen) o ato pelo qual algo torna-se coisa (Ding), condicionado (bedingt) o que se tornou coisa, do que fica claro que nada pode ser posto por si mesmo como coisa, isto , uma coisa incondicionada (unbedingtes Ding) uma contradio. Incondicionado (ou Absoluto = unbedingt) aquilo que no coisa, nem pode ser coisa.
21
Para Schelling, a prpria Crtica da razo pura kantiana s pode ser
compreendida, levando-se em conta princpios superiores, pois, embora no se conceba
nenhum princpio superior entre a sua filosofia terica e a sua filosofia prtica,
Schelling julga necessrio apresentar a filosofia de Kant mediante princpios superiores,
e no estabelecimento destes que sua investigao prossegue, apostando na tese de que
a prpria Crtica da razo pura j aponta para a necessidade de algo originrio.
Desse modo, para explicitar a necessidade do conhecimento, do saber algo a
respeito de algo, do conhecer relativo ao nosso condicionamento emprico, preciso
situ-lo no apenas na esfera do pensamento, mas na da realidade, isto , somente
considerando a realidade, tornar-se- possvel o conhecimento de algo. Nesse contexto,
necessrio um fundamento ltimo de toda realidade, onde ser e pensar sejam
concebidos como unidade.
Este fundamento ltimo, porm, independente. Isto significa dizer que no
h um princpio ltimo que deve ser pensado porque um outro princpio tambm
pensado, mas este e deve ser pensado por ele mesmo. Assim, uma vez que a afirmao
de tal princpio est contida tambm no prprio pensar (o que confirma a unidade de ser
e pensar como fundamento ltimo e absoluto do saber), pode-se, com efeito, inferir que:
{...} Enquanto a filosofia comea a ser cincia deve pressupor tambm uma proposio
suprema, e com ela, ao mesmo tempo, algo incondicionado15.
Com isso, tem-se a seguinte suposio: primeiramente, afirma a necessidade
de um fundamento ltimo da realidade, que assume as duas caractersticas bsicas:
independente (pelo fato de no ser determinado por nenhum princpio exterior a ele
mesmo) e, por outro lado, incondicionado. No entanto, o que significa tal afirmao?
Como chegar a este incondicionado? Onde busc-lo?
Para Schelling, assumir tais caractersticas significa dizer que a busca por
este algo incondicionado consiste no fato de que seu ser e pensar devem coincidir: algo
que no deve ser pensado como simples objeto, como uma coisa. Isto equivale a dizer
que no podemos busc-lo no mundo imediato, pois este s pensvel em relao a um
sujeito e vice-versa, o que implica que ambos so condicionados um pelo outro
reciprocamente).
15SCHELLING, F.W. Do eu com princpio da filosofia ou sobre o incondicionado no saber humano, p.73.
22
De modo que
O ato de condicionar significa a ao atravs da qual algo devm coisa, condicionado, aquele que se tem feito coisa, do que se deduz que nada pode ser posto por si mesmo como coisa, isto , como coisa incondicionada um contra-senso. Incondicionado aquilo de que de nenhuma maneira pode ser feito coisa, que em absoluto pode chegar a ser coisa16. (grifo nosso).
Por isso, querer demonstrar objetivamente este incondicionado algo
contraditrio, pois para ser dito como absolutamente incondicionado, o Eu deve
preceder a todo pensar e a todo representar, donde se pode inferir a seguinte proposio:
EU SOU! Ou seja, somente atravs de seu prprio pensar, na condio de um Eu que
porque pensa a si mesmo e se pensa a si mesmo porque , que constitui este Eu com
alicerce do saber.
Por conseguinte, o Eu assume duas caractersticas fundamentais: por si
mesmo incondicionado e no-condicionvel por nenhum objeto ou coisa; porm,
afirmar o Eu por si mesmo no nada, visto que este no pode ser pensado sem que
simultaneamente seja posto por seu ser, ou seja, s pensvel como Absoluto enquanto
que . No mbito desta perspectiva, pode-se afirmar duas possibilidades:
Se o Eu o absoluto, aquilo que no o Eu s se pode determinar em oposio ao Eu, ou seja, baixo o pressuposto do Eu, uma contradio um No-Eu posto absolutamente como tal, no como contraposto ao Eu. Se no se pressupe o Eu como o absoluto, o No-Eu pode ser posto precedendo a todo Eu ou simultaneamente como ele17.
Toda esta dialtica18 caminha para as duas teses fundamentais da filosofia
retomadas por Schelling como crtica, mas ao mesmo tempo, como resgate de alguns
elementos presentes nestes pontos de vista que so de extrema importncia para a
formulao de seu sistema. Tais teses correspondem a tese do Dogmatismo e a do
Criticismo19.
16SCHELLING, F.W. Do eu com princpio da filosofia ou sobre o incondicionado no saber humano, p.75. 17Ibidem, p.78. 18 Na realidade, em traos gerais esta dialtica entre Eu e No-Eu corresponde a idia de que para Schelling o No-eu (o ser) natureza; isto , consiste na relao mais concreta entre Eu e No-eu. 19Estes conceitos sero aprofundados no ltimo tpico deste captulo.
23
Na primeira, o princpio constitudo por um No-Eu anterior a todo Eu; e
na segunda, o Eu anterior a todo No-Eu e se contrape a este. Da porque o princpio
de toda filosofia no deve partir de nenhum fato emprico, visto que este
condicionado, pois embora parta de um sujeito, ao pressup-lo como coisa-em-si,
implicaria num objeto, numa mera representao. E at mesmo afirmar a possibilidade
de um No-Eu como absoluto e independente do Eu algo contraditrio, pois o
condicionaria a uma coisa-em-si a partir da qual se tem a representao dos objetos.
Desse modo, Schelling afirma que at mesmo a pergunta kantiana de como
so possveis juzos sintticos a priori pode coincidir com a pergunta de como de um Eu
chega-se a um No-Eu. Visto que a cincia parte do Eu Absoluto e exclui toda oposio,
pois somente diante deste Eu (que, como vimos, posto por si mesmo de modo
absoluto) que se pode opor um No-Eu; e como s se pode conceber o princpio ltimo
da filosofia no contexto do Eu absoluto, este s pode ser causalidade e identidade pura;
isto , absolutamente um Eu que exclui todo No-Eu. Logo,
O ponto ltimo, do qual depende todo o nosso saber e a srie inteira do condicionado, no pode ser condicionado por nada mais. A totalidade de nosso saber no teria consistncia alguma se no estivesse respaldado por algo que se sustenta a si mesmo, e isto no mais que aquele real efetivo graas liberdade. O incio e o fim da filosofia a liberdade20.
Por conseguinte, partir de um Eu Absoluto que se pe a si mesmo e que
absolutamente porque , tem como pressuposto o fato de que sua forma originria j
implica numa identidade pura. Portanto, a prpria forma de toda e qualquer identidade
s pode ser dada no Eu Absoluto, pois expressar um dado A antecedendo a este Eu
absoluto significaria coloc-lo fora dele mesmo, o que teria como conseqncia a perda
de seu carter absoluto, passando, assim, a ser condicionado por um No-Eu absoluto.
Como o Eu no pode ser determinado por nenhuma outra coisa, a no ser
pela sua prpria incondicionalidade e, dado que o Eu se pe a si mesmo, segundo sua
prpria essncia, seu prprio ser, significa dizer que, ao pr-se como identidade
absoluta e incondicionada, sua essncia mesma liberdade. Isto no sentido de que, se
autopondo e excluindo todo No-Eu, esta liberdade s e pode ser concebida por si 20SCHELLING, F.W. Do eu com princpio da filosofia ou sobre o incondicionado no saber humano, p.83.
24
mesma (visto que tornar esta liberdade objetiva seria retir-la da esfera do Absoluto e
coloc-la na esfera dos objetos). Desse modo, define Schelling: Esta liberdade do Eu se
deixa determinar tambm positivamente. Esta liberdade no para o Eu nem mais nem
menos que o pr incondicionado de toda realidade em si mesmo mediante seu prprio
poder absoluto.21
1.3 O papel da intuio intelectual
Visto que o Eu no pode ser dado mediante conceitos, o que implicaria
condicion-lo por objetos22, e nem pode ser dado por algo exterior a ele, seno por ele
mesmo, ento ele s pode ser determinado por uma intuio, ou seja, no atravs de um
raciocnio ou de um juzo sinttico a priori, porque aqui o objeto seria dado de modo
mediato, mas sim por uma intuio intelectual, como Eu absoluto, como simples Eu
apartado de qualquer objeto. ntido, porm, esclarecer que no se trata de um Eu
penso (no sentido de Kant), no qual os objetos so dados na representao na medida
em que se torna possvel o pensamento de algo.
Nesta perspectiva, Schelling avana para uma formulao essencial de sua
Filosofia: o papel da intuio intelectual, a saber, a afirmao de que o Eu
determinado por tal intuio23. Tal exigncia de uma autofundamentao reflexiva, no
entanto, equivale justamente proposta fichtiana que concebe o Eu como ao, como
atividade pura do voltar-se sobre si mesmo. Desse modo, o Eu consiste na identidade
originria de pensante e pensado, identidade esta que dada somente por meio da
intuio intelectual.
21SCHELLING, F.W. Do eu com princpio da filosofia ou sobre o incondicionado no saber humano, p.85. 22Neste sentido, Schelling define o conceito de Eu emprico, explicitando as condies necessrias para que este possa existir: O Eu emprico s existe por e em relao a unidade das representaes, fora destas no tem nenhuma realidade em si mesmo, seno que desaparece, de igual maneira que se anulam os objetos e a capacidade de sua sntese. Sua realidade como Eu emprico determinada por algo externo a ele, por seus objetos; seu ser no determinado de forma absoluta, seno mediante formas objetivas, isto , como existente. No obstante, s no Eu infinito, e por ele, j que os simples objetos no poderiam produzir a representao do Eu como princpio de sua unidade. Cf. SCHELLING, F.W. Do eu com princpio da filosofia ou sobre o incondicionado no saber humano. Nota H, p.86. 23C.f. MORUJO, Carlos. Schelling e o problema da individuao, p.132. Morujo explica esta relao nos seguintes termos: Acedemos quele Eu por intuio intelectual. Para Schelling, ela uma libertao de cada eu emprico face sua disperso no mundo dos objetos, mas, por isso mesmo, a conscincia de si deixa de ser pensvel com ela. Intuir um mundo inteligvel intuir um mundo sem objetos, sem limites, onde toda a conscincia - que s o quando regressa a si mesma, ao ver sua atividade entravada por algo de exterior, quando, portanto, algo de limitado lhe devolve seus prprios limites - aniquilada. Visar objetos e reentrar em si mesmo so atividades idnticas. Para ganhar o mundo preciso no perder o seu prprio eu: que h uma relao inversa entre a inteno da conscincia e a extenso de seu ser.
25
Pode-se afirmar, com efeito, que a autoconscincia no pode ser
compreendida como uma mera representao intelectual pura como pensara Kant, mas
sim como uma intuio intelectual, ou melhor, imediata no sentido de que vista como
uma conscincia sensvel e intelectual simultaneamente. Neste sentido se desfaz o
dualismo kantiano e passa-se a pensar uma unidade entre o sensvel e o inteligvel,
afirmando assim a tese de uma unidade absoluta como condio de possibilidade de
toda filosofia.
Schelling procura recuperar, em oposio a Kant, o conceito de intuio
intelectual. Segundo Kant, as representaes do Eu devem ser produzidas pelo
entendimento com o apoio da experincia, onde o Eu constituinte de objetividades. J
em Schelling, assim como em Fichte, leva-se em considerao um Eu originrio em
oposio a um No-eu tambm originrio. Porm, no se trata de uma intuio emprica,
nem tampouco sensvel, mas sim de uma autointuio do Eu.
Em Kant, a intuio somente sensvel, pois atribuir razo um carter
intuitivo significaria tornar possvel o conhecimento das coisas-em-si. De modo que,
neste sentido, a auto-conscincia (Eu transcendental) representa o pice de toda a
Filosofia. Kant considera a apercepo transcendental como o ponto mais alto da
unidade da conscincia. vlido ressaltar, entretanto, que a unidade sinttica da
apercepo ou a conscincia de si tratada por Kant como algo que tem respaldo na
experincia. Neste sentido, ainda preso a um Eu penso que tem de poder acompanhar
todas as representaes, a conscincia do Eu descoberta em toda conscincia emprica,
portanto, mediata24.
Conseqentemente, para Schelling afirmar a unidade sinttica da apercepo
significa dizer que se trata de um Eu que pode ser considerado quer como sujeito quer
como objeto. Logo, enquanto a atividade originria se autoconstitui por intuio
intelectual, e mediante essa construo originria o Eu nasce de seu prprio ser como
24Aquilo que Kant denomina como conscincia-de-si luz de uma subjetividade, compreendida por Schelling como intuio intelectual. Cf. OLIVEIRA, Manfredo Arajo de. Para alm da fragmentao, Nota 113, p.133. Para M. Frank, h dois momentos decisivos na Crtica da razo pura a favor de um saber do Eu Transcendental, ou seja, daquilo que Fichte e Schelling chamaro intuio intelectual. Em primeiro lugar, nos pargrafos 24-25 da Deduo Transcendental, em que trabalhada a diferena entre ser e manifestar-se a si prprio do Eu puro. Mais significativa, ainda, seria uma observao na segunda edio do captulo sobre os paralogismos. A, Kant distingue: 1) Entre a existncia da apercepo pura ou transcendental e conceitos como realidade (determinaes categoriais); 2) Tambm entre a existncia do eu puro e qualquer relao sua de doao faculdade receptiva ou como representao emprica. Essas poderiam ter sido as passagens das quais Fichte e Schelling teriam partido para tematizar o conhecimento do princpio de todo conhecimento, o Eu absoluto.
26
indeterminado e infinito. Isso implica dizer que, para Schelling25, a intuio
compreendida como absoluta identidade entre sujeito e objeto.
Em suma, Schelling afirma uma instncia ltima do saber. Ao mesmo
tempo, se ope posio kantiana de uma unidade transcendental da apercepo. Para
ele, o Eu penso kantiano, que organiza a sntese pura do diverso, ou seja, sintetiza o
diverso no explicita as condies sob as quais unicamente ser possvel salvar a
unidade originria do Eu, que consiste na garantia ltima de qualquer saber. Embora a
funo realizada pelo Eu penso kantiano seja transcendental, Schelling ainda o
considera emprico. Para ele, o Eu precede necessariamente todo pensamento emprico e
resultado de uma pura intuio intelectual.
Desse modo, afirma:
Se o princpio da filosofia no pode ser nem meramente terico, nem meramente prtico, ento deve ser ambas as coisas ao mesmo tempo. Ambas as coisas esto reunidas no conceito de postulado: terico porque exige uma construo originria, prtico porquanto (como um postulado da filosofia) ele retira sua fora de obrigao (para o sentido interno) apenas da filosofia prtica. Logo, o princpio da filosofia necessariamente um postulado26.
Aqui o foco da questo no pode ser apenas o ser. Para se alcanar a relao
entre ser e pensamento, preciso, entretanto, levar em considerao outro elemento com
o qual Fichte inicia a sua argumentao, a saber, o plano da ao27. Da porque Fichte se
enquadra em um Idealismo subjetivo. O conceito de ao s se torna possvel pela
autointuio daquele que atua, pois na existncia de uma conscincia dessa ao que
se comprova o papel da intuio intelectual. Conseqentemente, na esfera da ao
25Acerca da concepo desta unidade enquanto atividade originria do Eu que cria a si mesmo, Cf. L. Bicca, p.70. Schelling admite noutro lugar que o Eu puro ou o absoluto, o princpio supremo do filosofar um postulado. Ele sustenta a exigncia de que o princpio bsico da filosofia no pode ser apenas terico, no que enxerga o risco de que se torne um caminho excelente em direo ao dogmatismo; nem pode tal princpio ser puramente prtico, j que um princpio puramente prtico no um postulado, mas um imperativo (um postulado prtico uma contradictio in adjeto). 26SCHELLING, F.W. Tratados para a elucidao do idealismo da doutrina da cincia [1796-1797], in M. Frank (ed.), obras escolhidas, Frankfurt, Suhrkamp, vol. 1, p.240. 27C.f. OLIVEIRA, Manfredo Arajo de. Para alm da fragmentao, p.136. Ao exigir uma autofundamentao reflexiva Fichte transpe para a esfera do pensamento, e no da experincia, a instncia fundante do saber. O procedimento do fundamento de toda a doutrina da cincia de 1794/1795 consiste em partir de um contedo qualquer da conscincia at chegar, por meio de um progresso ininterrupto de condicionado a condio - ou seja, de um transcender do emprico na direo de pressupostos apriricos -, a algo de que no se pode mais abstrair, ao princpio absolutamente necessrio de todo conhecimento e de toda ao, o Eu que se pe a si mesmo como ao, como atividade, como ato (Tathandlung).
27
produtora que se permite tanto a relao quanto a diferena entre o mundo sensvel e o
mundo inteligvel.
A afirmao dessa autoconscincia do Eu como ativo abre espao para algo
essencial no pensamento de Schelling, a saber, que o desdobramento desse Eu equipara-
se ao primeiro plano em que a natureza concebida: como No-eu. A natureza nasce,
desse modo, da pura imaginao produtora do Eu, como atividade inconsciente, como
fora criadora ancorada numa inteligncia tambm inconsciente.
Na conscincia, um ato s se consolida se a ele se contrapuser outro ato, pois
na esfera da ao, o Eu no pode encontrar-se ativo sem a existncia de um objeto
qualquer; entretanto, o Eu s existe no interior da ao produtora. Da se segue a
questo: como o Eu se torna consciente do No-eu? Como nasce dele a esfera dos
objetos, do mundo exterior? Como podemos pensar a produo de objetos,
independentemente destes serem dados na experincia, como se tal produo tivesse
sido posta por meio de esquemas?
Schelling recorre a Fichte para responder a esta questo: Na Doutrina-da-
cincia (1794), Fichte distingue trs princpios fundamentais: o primeiro princpio,
enquanto absolutamente incondicionado expressa o Eu sou como o Eu que pe a si
mesmo. Porm, a reflexo da conscincia de si mesmo e a posio do Eu s possvel
quando ocorre, simultaneamente, a conscincia do objeto, em relao ao qual o Eu
superior e se destaca.
Desse modo, passa-se ento ao surgimento do segundo princpio, equivalente
anttese do primeiro, em que o Eu pe um No-Eu. Por conseguinte, para o Eu pr-
se a si mesmo, necessariamente deve pr tambm um No-Eu. Tal princpio parece,
entretanto, contraditrio: como o Eu se pe a si mesmo e simultaneamente nele mesmo
pe um No-eu? Nesse sentido, o Eu e o No-Eu se anulariam reciprocamente. Disto
resulta ento o terceiro princpio como tentativa de eliminar a contradio: O Eu
contrape no Eu um No-Eu divisvel a um Eu divisvel. Portanto, com a afirmao
desses trs princpios, Fichte julga ter completado o projeto de construo da cincia, ou
melhor, da Filosofia.
O Eu assume uma caracterstica fundamental: uno e esta unidade deve
necessariamente ser dada, posto que, do contrrio, seria necessrio afirmar uma
multiplicidade de partes que o determinaria. Imaginar o Eu sem uma dessas partes seria
28
anul-lo em sua totalidade: algo que traria uma srie de conseqncias, levando tambm
anulao de sua liberdade. Isto seria, porm, contraditrio, pois como vimos
anteriormente, a liberdade condio para toda representao.
Com isso, pode-se afirmar que o Eu, ao determinar-se a si mesmo por sua
prpria liberdade, tambm unidade absoluta; pois, impor ao Eu diferentes atributos s
pode se d porque ambos se determinam conforme aquela mesma incondicionalidade,
que o caracteriza como um Eu absoluto.
Na condio de um Eu que no determinvel nem determinado28 por nada,
pois transform-lo num conceito seria medi-lo por algo, leva a concluir que querer
demonstrar o Absoluto significa neg-lo em sua totalidade. Ora, se a tarefa da Filosofia
consiste em partir do incondicionado para chegar ao saber, logo, tambm se permite
afirmar que possvel partir do incondicionado, mas no do universal, pois pensar o
universal s faz sentido em relao a um conceito emprico que o condiciona.
Com base nisso, Schelling atribui Filosofia a misso de encontrar esse Eu
puro e absoluto. Tal Eu, no mediado por nenhum conceito, se apresenta como si
mesmo. De modo que, at mesmo toda a sua realidade posta por essa
incondicionalidade que o constitui como tal, pois pensar uma realidade fora de sua
prpria incondicionalidade levaria a afirmao de um outro Eu: algo que seria
contraditrio.
Por isso seria tambm incoerente pensar a realidade de um No-Eu em
oposio ao Eu, pois este no se realiza da mesma forma que o Eu. Se assim o fosse
seria Eu e no um No-Eu. O No-Eu se ope ao Eu de modo absoluto e originrio, pois
como vimos o prprio pr do Eu leva necessariamente sua oposio, ou seja, ao No-
Eu. Schelling retoma esta questo para mostrar que, por ser dado como negao do Eu,
como oposio absoluta, impossvel afirmar qualquer realidade intrnseca ao No-Eu,
de modo que s o Eu pode conter realidade.
Ento, como realidade infinita (como pondo-se a si mesmo), como causa
imanente de tudo o que , o Eu no s causa do ser, seno tambm da essncia de
todo aquele que 29. Neste ponto, Schelling acrescenta a idia de poder30 absoluto para
28Com relao a esta questo Schelling esclarece que o Eu no pode ser determinado, pois determinao s pode ocorrer mediante uma constituio conceitual: o conceito atribui ao ente propriedades que lhe permite ser isto e no aquilo. 29SCHELLING, F.W. Do eu com princpio da filosofia ou sobre o incondicionado no saber humano, p.97.
29
explicar a causalidade do Eu, que, luz de Espinosa, posta na substncia como
condio de possibilidade de tudo o que h. No Eu, no reside, segundo Espinosa,
nenhuma sabedoria, porque sua ao mesma lei; nenhuma vontade31, posto que atua a
partir do poder prprio de sua essncia, desde a necessidade do seu ser32.
Entretanto, Schelling critica Espinosa, pois este termina por anular todos os
conceitos de uma sabedoria livre, pois lhe falta o primado prtico, pois mesmo que seja
regido por leis, trata-se das leis de seu prprio ser, de um poder absoluto atuante por si
mesmo. Como conseqncia, pode-se dizer que, em Espinosa,
a causalidade do Eu infinito no pode ser representada em absoluto como moralidade, sabedoria, etc., seno s como o poder absoluto que enche toda a infinitude e no tolera em sua esfera nada que o oponha, nem sequer o No-Eu apresentado como infinito33.
Posto que Espinosa centraliza a sua filosofia na idia de uma substncia
absoluta, onde tudo o mais concebido como modos ou atributos desta, Schelling se
ope a este porque Espinosa pe a substncia fora do Eu Absoluto, pois, para Schelling,
no h uma passagem do Eu Absoluto substncia, uma vez que ambos constituem a
mesma unidade originria fundamental.
Opondo-se, assim, idia espinosiana de uma substncia, frente ao Eu
absoluto, afirmando uma unidade originria de ideal e real, finito e infinito em ns,
Schelling se apropria da tese de Leibniz e passa a dialogar com este, partilhando da
idia de mnada. Esta definida por Leibniz como unidade de foras que so postas em
formas diferenciadas.
Diferentemente da concepo cartesiana de que os corpos, a matria, so
dados de forma mecanicista e geomtrica, Leibniz constri um processo dinmico em
que os corpos no so vistos como mquinas, mas sim como foras vivas, cuja matria
se encontra em plena atividade.
30C.f. B. Espinosa. Para Espinosa, o poder de Deus, da substncia inerente a ela mesma: Por conseqncia, a potncia de Deus, pela qual ele prprio existe e todas as coisas existem e agem, a prpria essncia dele mesmo. (tica, p. 113). 31C.f. B. Espinosa, tica, Primeira Parte, proposio 32, p.108. vlido ressaltar que o sentido de vontade explicitado por Espinosa consiste numa causa necessria e no simplesmente numa causa livre. 32SCHELLING, F.W. Do eu com princpio da filosofia ou sobre o incondicionado no saber humano, p.98. 33Ibidem, p. 102.
30
Ao admitir na mnada um princpio que ao mesmo tempo material e
espiritual, interligando estes aspectos por meio da percepo, isto , mediante a
representao daquilo que se encontra em outra mnada, e da apetio, que possibilita o
surgimento de novas representaes, visto que implica numa passagem de uma mnada
a outra, Leibniz explica como se d a conexo dos fenmenos externos. Tais
fenmenos, como vimos, so compostos de tais mnadas, assim tambm como
possvel que estes se dem na realidade.
Contudo, a idia de um princpio autnomo das representaes do mundo,
visto que tudo o que as mnadas possuem so produtos delas mesmas, traz em si um
problema: em Leibniz h a necessidade de se recorrer a Deus, por este estabelecer uma
harmonia entre as mnadas de forma a priori. Aqui se encontra a sua crtica a Leibniz,
pois embora se apossando da sua idia de mnada, discorda de sua afirmao de uma
harmonia preestabelecida, uma vez que desemboca em uma forma de dogmatismo.
Feito esta ressalva, Schelling retoma o conceito de Eu, compreendendo-o
como aquele que , como forma originria de seu prprio ser, absoluto puro. Tal
pensamento leva a uma definio importante: a de que o Eu como absoluto est fora de
toda e qualquer dimenso temporal, pois em si mesmo eternidade pura e, s assim,
deve ser tomado para se pensar o seu prprio ser.
Se a Filosofia nasce da busca de um princpio que a fundamente, que, at
aqui, tem se apresentado como um Eu absoluto, eterno, imutvel, indeterminado, em
que no se pode assumir a forma de um objeto. Visto que, como afirmara Kant, no ser
possvel deduzir teoricamente nenhuma Filosofia valendo-se de conceitos absolutos e
incondicionados, uma vez que, para Kant, o Eu sou est condicionado pela proposio
Eu penso, ento Schelling conclui que impossvel imaginar a vinculao entre o
prtico e o terico sem a mediao desse Eu absoluto como dotado de uma liberdade
originria que o constitui como tal.
Desse modo, o filsofo pe o Eu absoluto como condio de toda e qualquer
Filosofia, como transcendente e determinado por intuio intelectual dado que ele no
equivale nem a um Eu lgico34, que s tem sentido em relao a objetos, e o que
34 A afirmao de um Eu lgico s pode ser feita mediante um Eu absoluto e consiste no esforo em reconhecer, na esfera do mundo objetivo, a sua prpria identidade frente aos objetos, como unidade do pensar que comporta toda realidade.
31
permite que o sujeito lgico possa pensar a existncia de algo, nem a uma substncia
absoluta que possibilitaria a efetivao do Eu lgico ao lado dos objetos.
1.4 O Eu como causalidade absoluta
Assim sendo, o Eu que no dado por idia alguma anterior fornecida pelo
pensamento, visto que se realiza a si mesmo, no pode ser considerado como um sujeito
apartado logicamente do mundo dos objetos, mas como uma unidade de Eu e No-Eu,
trata-se de uma unidade entendida no sentido de que ambos s so determinados no
prprio Eu e o No-Eu surge em simultaneidade com o Eu, ou seja, em oposio e
identidade com o Eu.
Dado que o Eu absoluto no tem a conscincia do pr-se a si mesmo, nem
tampouco de pr um No-Eu, isto conduz afirmao de que a atividade do Eu
inconsciente e se determina a si mesma sem que nada a fundamente, sem nenhuma
realidade que garanta a sua existncia, a no ser a afirmao dele mesmo, ou seja, de
que o Eu simplesmente .
Neste sentido, pode-se afirmar que, de incio, assim como em Fichte,
Schelling parte da idia de que toda conscincia como conscincia de algo
determinada pela conscincia imediata de cada sujeito, visto que, aquilo que conceito
objetivo, s se d mediante a existncia de um sujeito que j pressupe tambm a
existncia de um objeto.
Por outro lado, impossvel no assumir que pode haver algo superior para
alm dessa relao sujeito-objeto, pelo qual no necessite de nada para determin-lo,
que consistiria justamente na afirmao desse Eu absoluto e incondicionado. Pois,
O eu se pe a si mesmo absolutamente e a toda
realidade, pe o todo como pura identidade, isto ,
como idntico consigo mesmo. A forma material
originria do Eu , segundo este, a unidade de seu ser,
32
na medida em que pe o todo como igual a si mesmo.
O Eu absoluto no sai jamais de si mesmo35.
Com esta afirmao de uma forma material originria, Schelling julga
necessrio buscar tambm a forma formal do Eu: como o Eu determinado como
possibilidade de toda realidade, alm de ser visto como contedo, visto tambm como
forma desse pr. A prpria forma desse pr j pressupe, entretanto, uma unidade do Eu
que, idntico a si mesmo, concebe a forma e o contedo do Eu determinado por ele
mesmo. De onde se pode inferir que o que se determina por meio da forma originria
desse Eu apresenta a forma de uma realidade em geral e no como um objeto concreto.
Por outro lado, Schelling julga ainda necessrio para fundamentar este Eu
identific-lo como atividade que, posta de forma incondicionada, tem a capacidade de
acolher todos os tipos de proposies: tanto as proposies analticas (postas
incondicionalmente pela prpria atividade do Eu em identidade consigo mesmo) como
as proposies tticas (equivale forma material), que so todas aquelas condicionadas
por seu estar postas no Eu36.
com base na identidade de tais proposies que a identidade do Eu , com
efeito, assegurada. Trata-se, em verdade, de um Eu que contm, quer a forma quer a
matria em uma s proposio. Ainda que no contexto das proposies tticas
sobreponha-se aquilo que Schelling denomina como proposies idnticas, onde sujeito
e objeto so uma e a mesma coisa (equivale a forma formal); esta identidade no pode
ser definida como absoluta, pois podemos perceber que a anlise aqui se detm no
mbito das proposies formais.
A referncia a estas proposies , contudo, importante porque, em tal
contexto, se destaca mais uma vez a primazia do Eu, que s enquanto pe todo o real.
Fiel filosofia transcendental, Schelling defende, porm, a idia de que apenas a
proposio ttica no suficiente para se fundar um sistema, dado que, neste caso, s se
tem acesso pura identidade do Eu absoluto, mas de se admitir de modo necessrio o
recurso aos juzos sintticos a priori, sem os quais no haveria a possibilidade de se
35SCHELLING, F.W. Do eu com princpio da filosofia ou sobre o incondicionado no saber humano, p.114. 36Ibidem, p. 115-116.
33
realizar a passagem do Eu para o no-Eu e, deste modo, fazer derivar os conceitos a
implcitos. Como Schelling salienta:
Portanto, nica e exclusivamente o puro ser pode expressar-se em proposies tticas, porque nelas o posto no est determinado em absoluto como algo oposto ao Eu, como objeto, seno somente como realidade do Eu em geral37.
Da ser preciso, ainda seguindo a proposta kantiana da tbua das categorias,
pensar uma sntese entre Eu e No-Eu, onde possvel pensar o ser puro como contido
no Eu e, ao mesmo tempo, pensar um No-Eu identificando a forma de seu no-ser
como inerente a este. S na medida em que o no-ser do No-Eu determinado pelo
ser do Eu, isto , na medida em que se acomete uma sntese de ser e no-ser, o No-Eu
pode ser suscetvel de ser posto no Eu38.
Desse modo, tudo aquilo que pe o Eu absoluto determinado pela simples
forma de ser puro (substancialidade, unidade e realidade); diferentemente do Eu finito
que tem possibilidade, necessidade e realidade efetiva. No Eu finito, tem-se a tentativa
de fazer daquilo que real possvel e daquilo que possvel tornar-se realidade.
Disto resulta uma problemtica com a qual Schelling se defronta: assumir a
idia de uma possibilidade prtica do Eu finito, que se constitui na realidade efetiva,
requer o esclarecimento da sua liberdade emprica, pois passar do plano do Eu ao plano
da objetividade uma tarefa um tanto minuciosa. J se tem em mente a distino entre o
Eu emprico e o Eu absoluto e tambm que suas liberdades so diferenciadas. No Eu
absoluto, a liberdade absolutamente posta, na medida em que ele tambm posto, ou
seja, como causalidade absoluta. J a liberdade do Eu emprico no pode ser absoluta,
mas sim transcendental, posto que s pode ser pensada em relao a objetos.
Compreender esta distino relevante para compreendermos o sistema,
pois, por intermdio dela, Schelling ressalta a necessidade da afirmao dessa liberdade
absoluta, pois esta que determina absolutamente o incondicionado. Ora, uma vez que
este representa a pedra angular do sistema, torna-se impossvel afirmar o absoluto
separado de uma liberdade absoluta que o acompanhe. Contudo, falta ainda a
compreenso de como se poderia atribuir ao Eu emprico liberdade. 37Ibidem, p. 119. 38Ibidem, p.120.
34
Schelling preenche esta lacuna atravs do conceito de causalidade absoluta;
ou seja, em razo de o Eu absoluto, que por ser incondicionado, conter nele mesmo a
sua essncia e abarcar tudo o mais, sendo fruto de uma causalidade absoluta enquanto
resultado de sua prpria existncia. ele que torna possvel, tanto a existncia de um
Eu emprico, que se efetiva nos objetos, quanto a de uma liberdade transcendental.
Logo, esta s pode ser dada se comparada liberdade absoluta, sendo realizada com
base em um fato qualquer. Embora se conceba uma relao entre ambas as liberdades,
no se pode afirmar que seriam postas com a mesma causalidade, j que a liberdade do
Eu emprico pensada apenas em relao a objetos.
Somente ao tomar como ponto de partida a negao da esfera dos objetos,
tornar-se-ia possvel pensar a mesma causalidade, pois s a ambas as liberdades
coincidiriam. Entretanto, a causalidade absoluta no pode ser posta no Eu emprico
categoricamente, pois perderia o estatuto de ser emprico. E sim, somente de forma
imperativa, enquanto dita uma lei que se baseia na negao de todos os seus objetos,
ancorada numa liberdade absoluta.
Por conseguinte, a pergunta de como possvel admitir uma causalidade de
um Eu emprico, s faz sentido se aliada causalidade do Eu absoluto. Este, por sua
vez, pode ser visto como uma harmonia entre a causalidade dos objetos e o Eu emprico,
pois estes s possuem realidade graas realidade infinita do Eu, ou melhor, graas s
suas modificaes.
Com isso, Schelling indica a necessidade de se assumir um elo entre os dois
planos: o emprico e o absoluto, o finito e o infinito, o ser e o pensar;
O que para o Eu absoluto absoluta coincidncia, para o eu finito produzido, e o princpio de unidade, que para aquele o princpio constitutivo de uma unidade imanente, para esta to s princpio regulativo de uma unidade objetiva, que deve vir imanente. Portanto, o eu finito deve esforar-se por produzir no mundo o que no infinito realidade efetiva, e a suprema vocao do homem fazer da unidade dos fins no mundo um mecanismo, e do mecanismo, uma unidade dos fins39.
Aqui j se anuncia o ponto central de sua Filosofia da Natureza, que consiste
justamente numa unidade de teoria e prtica, levando-se em considerao a idia de
39SCHELLING, F.W. Do eu com princpio da filosofia ou sobre o incondicionado no saber humano, p.120.
35
finalidade como o esforo pelo qual podemos pensar toda forma de filosofar, que busca
conciliar, como diz Schelling, as leis da liberdade e as leis naturais em um princpio
superior, no qual a liberdade mesma natureza, e a natureza, liberdade40. E que at
agora tem sido apresentado na figura do Eu absoluto e incondicionado.
Nossa anlise agora prossegue na esfera do finito e do infinito, onde, com
base na concepo espinosiana, veremos como possvel para Schelling conceber tal
unidade de ser e pensar.
1.5 Proposta de uma unidade das teses do dogmatismo e criticismo
A discusso apresentada por Schelling, valendo-se das teses defendidas pelo
sistema do criticismo e dogmatismo gira em torno da tentativa de conciliar, com base na
fragilidade de cada sistema, elementos que possam fundamentar a sua proposta
filosfica. No dogmatismo, tem-se a ausncia de um mundo prtico; no criticismo, a
falta de um primado terico. Apostando, portanto, na idia de uma unidade de ambos os
sistemas que se d o objetivo de seu empreendimento.
Grandes so os questionamentos que perpassam toda a sua filosofia. A
primeira questo que se pe : como explicar num sistema dogmtico a prpria relao
do homem com o Absoluto? Ou seja, como lidar com a potncia com a qual o homem
faz frente ao Absoluto, e o sentimento que acompanha essa luta41? A idia que se tem
que na postura dogmtica o homem escravo desse absoluto, do objeto absoluto ao qual
ele se submete; pois como podemos pensar algo intermedirio entre o homem e o
ksmos?
Para tanto, este sistema recorre necessidade de uma lei moral que possa dar
conta de estabelecer tal mediao. Entretanto, a surge uma outra questo: reconhecer a
necessidade dessa lei moral, como pedra angular para se compreender a relao homem-
mundo, leva tambm afirmao de que Deus s pode ser concebido como moralidade.
Em contraposio a isso, indaga o criticismo: Como chegar idia de um Deus pensado
sob leis morais?
Os dogmticos responderiam a isto dizendo que a idia de Deus exige leis
morais como condio para salvar a prpria moralidade do homem. O problema para
Schelling, porm, que se apoiar nisso significa defender uma razo fraca, pois na
40 Ibidem, p.120. 41 SCHELLING, F.W. Cartas filosficas sobre o dogmatismo e o criticismo, p. 5.
36
razo terica no h espao para uma causalidade absoluta, dado que ela no seria
suficiente para abarcar a idia de Deus.
Ento, como chegaramos idia de Deus por meio do domnio prtico?
Ainda que tal idia no seja elucidada na razo terica, cabe a tal razo compartilhar
dessa mesma idia, pois embora no tenha como tarefa chegar a um objeto absoluto,
com o acrscimo do primado terico, ela pode, pelo menos, ser compreendida, a partir
de um novo domnio42.
Embora seja claro que o mundo prtico fornea o fundamento para se chegar
a uma causalidade absoluta, preciso tambm que a razo terica esteja aberta a isto,
pois, para crer em uma causalidade fora do sujeito, mister estabelecer tal abertura e
mudana da razo terica.
Desse modo, afirma Schelling:
Deves partir da lei moral, deves orientar teu sistema inteiro de tal modo que a lei moral aparea primeiro e Deus por ltimo. Uma vez que tenhas chegado at Deus, a lei moral j estar pronta para pr os limites de sua causalidade, como os quais tua liberdade pode subsistir43.
Uma proposio desse tipo requer, porm, uma anlise mais detalhada: a
Filosofia bem mais minuciosa e busca sempre se perguntar pelo fundamento de tudo.
Embora seja possvel crer na existncia de uma causalidade fora do sujeito, vlido
ressaltar que, para esta, no pode haver nenhuma lei moral. Em verdade, o sujeito
utiliza-se da idia de lei moral para chegar causalidade absoluta: ela meio e no fim.
Schelling recorre a essa noo para mostrar que, para o criticismo, no
possvel que este se fundamente somente com base na faculdade de conhecimento, mas
tambm que tome como pressuposto a idia de ser originrio.
Por isso, acreditar numa razo fraca, como fazem os dogmticos (ou seja,
naquela que tem como pretenso chegar ao conhecimento de um Deus objetivo, como
condio para que o homem possa agir), uma iluso. Na verdade, na esperana de
chegar a esse Deus que o homem esfora-se no seu prprio agir.
42Pode-se dizer que aqui j se enraza a proposta schellingniana, mostrando que possvel pensarmos num alargamento do horizonte da razo, trabalhando o prtico e o terico como interconectados, um em auxlio do outro. 43 SCHELLING, F.W. Cartas filosficas sobre o dogmatismo e o criticismo, p. 8.
37
Com base nisso, o ponto de partida contra os dogmticos decorre justamente
da faculdade de conhecer. Como acreditar num sistema que se baseia em foras
superiores, sendo assim, limitado a estas? Agora a razo conhece a sua fraqueza, o seu
limite, e, ainda assim, fica merc de um ser superior que possa ampar-la.
Tendo como base tal discusso, o criticismo inicia a sua tarefa de demonstrar
essa falha da postura dogmtica:
se tivssemos de tratar apenas com o Absoluto, nunca teria surgido uma controvrsia de sistemas diferentes. Somente por termos sado do Absoluto, surge o conflito com ele, e somente por esse conflito originrio do prprio esprito humano surge a controvrsia dos filsofos44.
Na prpria Crtica da razo pura, Kant concebe tal afastamento do Absoluto
como fundamento da Filosofia, isto , apartando-se da idia de um ser superior,
ordenador, porm, imanente ao mundo. Kant, para tanto, utiliza-se dos juzos sintticos
a priori para escapar dessa postura dogmtica. Porm, como ele realiza esta tarefa?
Como possvel sair da esfera do Absoluto e direcionar-se a algo oposto? Como chegar
a juzos sintticos a priori?
Nas Cartas, a pergunta kantiana de como so possveis juzos sintticos a
priori significa para Schelling, perguntar como possvel sair do absoluto, para afirmar
algo oposto a ele, conservando quela pergunta kantiana toda a sua legitimidade, a partir
do momento em que nos confinamos ao plano da sntese derivada do eu e do no-eu45.
Dado que a unidade sinttica da apercepo uma sntese derivada, Kant instaura uma
ciso entre aquela unidade e o material emprico que ela prpria sintetiza.
A Crtica da razo pura tem como objetivo examinar criticamente,
interrogando-se acerca das prprias possibilidades do saber racional, na tentativa de
ultrapassar os limites da experincia, buscando atender s exigncias da prpria razo.
H em Kant46 dois tipos de conhecimento: a priori e a posteriori. O conhecimento a
44Ibidem, p. 10. 45 MORUJAO, Carlos. Sobre o princpio de individuao, p. 125. 46Conseqentemente, como Kant concebe duas faculdades do conhecimento, a saber, a sensibilidade e o entendimento, acaba por deixar de lado a esfera da razo prtica (a liberdade). Com esta diferena fundamental entre o ser em si mesmo e o mundo exterior (objetividade), v-se que esta ltima resultado da aplicao das categorias puras do entendimento sobre os dados fornecidos pelos sentidos.
38
priori engloba somente proposies necessrias e universais, j o conhecimento a
posteriori engloba as proposies contingentes, da experincia.
Kant distingue ainda entre juzo sinttico e juzo analtico: neste ltimo, o
predicado extrado do sujeito, na simples anlise do contedo do conceito apresentado,
j o juzo sinttico, acrescenta algo novo ao sujeito, representa uma sntese entre sujeito
e predicado. Os juzos analticos so a priori, ou seja, no necessitam da experincia
para conhecer o conceito dado; j os juzos sintticos so a posteriori, pois recorrem
experincia como tentativa de acrescentar atributos ao conceito.
A Revoluo Copernicana47 representou um grande avano para a Filosofia e
por intermdio desta que Kant chega a afirmao de juzos sintticos a priori: esta
Revoluo na forma de pensar consiste na tentativa de explicar o conhecimento no a
partir do sujeito girando em torno do objeto, mas sim dos objetos girando em torno do
sujeit
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