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INTR OD UO

1.1

Um pas ond e o te le spec tador an tec ipou -se ao le itor Coube televiso dar escala industrial e alcance nacional fico produzida

no Brasil. Antonio Candido, em "Literatura e Subdesenvolvimento", apontou o fato com sensvel melancolia: "(...) quando as grandes massas chegarem finalmente instruo elementar, buscaro satisfazer fora do livro as suas necessidades de

fico e poesia." No artigo, de 1973, o crtico ainda observa: "Quando alfabetizadas e absorvidas pelo processo de urbanizao, passam para o domnio do rdio, da televiso, da histria-em-quadrinhos, constituindo a base de uma cultura de massa."1

Candido chama a ateno para um processo que ento se acelerava e hoje est

plenamente configurado: o da consolidao de uma indstria cultural no Brasil. Esse processo teve na televiso um veculo privilegiado que, por sua vez, fez da telenovela o gnero de fico de massa e nacional por excelncia. A televiso, atravs da telenovela, passou, ainda na dcada de 70, a satisfazer a necessidade de fico e poesia de grande parte da populao brasileira. Antonio Candido descreve o processo como passagem de uma "fase

folclrica" para "essa espcie de folclore urbano que a cultura massificada". Se nos pases europeus -sobretudo Frana e Inglaterra- o livro ainda no sculo 19 foi veculo de uma produo ficcional voltada para as massas, no Brasil teria havido uma passagem direta de um estgio de comunicao oral para um estgio de

comunicao eletrnica, sem estgio na cultura escrita.

CANDIDO, Antonio. "Literatura e Subdesenvolvimento". In: Argumento (Revista Mensal de Cultura), Ano 1, n 1. So Paulo, Paz e Terra, outubro de 1973.1

De fato, as "grandes massas" ainda no chegaram instruo elementar e nem sequer tm o domnio bsico da linguagem escrita. Estimativas do Fundo das Naes Unidas para a Populao (FNUAP) para o ano de 1990 indicam que 17% dos homens e 20% das mulheres brasileiras so analfabetos. A partir de 1950, os sucessivos projetos governamentais de alfabetizao em massa fracassavam, o

processo de urbanizao se realizava rapidamente. Em 1950, 36% da populao vivia em zonas urbanas; em 1990, 76% dos brasileiros estavam nas cidades. A instalao, no Brasil, de uma das maiores indstrias de televiso de todo o mundo ocorreu em paralelo ao processo de urbanizao. A primeira emissora foi inaugurada em 1950. Em 1969, a TV atingia simultaneamente as cinco principais cidades do pas com o incio das transmisses em rede. Em meados dos anos 70, uma empresa privada de televiso era capaz de se comunicar simultaneamente com metade da populao brasileira, o que nenhum outro veculo de comunicao conseguira at ento e ainda hoje no conseguiu. A televiso tornava-se o primeiro e nico veculo de massa de alcance efetivamente nacional.2 Em 1974, havia cerca de sete milhes de aparelhos no pas, com um pblico potencial de 27 milhes de telespectadores diariamente expostos ao veculo.3 No

2

A constituio da Globo como rede comeou em 1966 com a compra da TV Paulista em So Paulo e ampliou-se com a instalao de estaes geradoras em Belo Horizonte (1968), Braslia (1971) e Recife (1972). Com a instalao do Tronco Sul em maro de 1969, pela Embratel, a Globo passava a atingir tambm Curitiba e Porto Alegre, alm do Rio de Janeiro, So Paulo e Belo Horizonte. A ligao entre So Paulo e Rio de Janeiro j havia sido feita em 1957, conforme indica reportagem da Radiolndia de 17/08/1957; no entanto, at o final dos anos 60 as transmisses simultneas para vrias cidades tinham carter intermitente e no se pode falar propriamente de transmisses em rede. 3 Os dados sobre a tiragem de livros constam do Anurio Estatstico do IBGE de 1976; os dados sobre o nmero de aparelhos de TV e o pblico potencial do veculo foram citados por Mauro Salles em palestra intitulada "Comunicao Social - Uma Anlise Brasileira", realizada na Escola Superior de Guerra em 22/08/1977.

mesmo ano, a tiragem total de livros no Brasil foi de pouco menos de 145 milhes de exemplares. Assim, no Brasil o telespectador antecipou-se ao leitor.4

1.2

O pape l p ecu liar da lit erat ura n a TV bra sile ira O texto literrio, no entanto, desempenhou papel peculiar nos programas de

fico veiculados pela TV. Desde a instalao da televiso no Brasil, os programas de maior prestgio e/ou audincia das diversas emissoras regularmente realizam adaptaes de textos literrios. Nos anos 50, os teleteatros consistiam basicamente na transposio para o vdeo de obras da literatura internacional. A mesma frmula logo em seguida foi aplicada s telenovelas, que ganharam crescente popularidade at se tornarem, nos anos 60, fenmenos de audincia. Na dcada de 70, criou-se um horrio para a exibio de telenovelas baseadas em textos literrios, desta vez exclusivamente brasileiros. A partir dos anos 80, as adaptaes de obras brasileiras deslocaram-se para as minissries. A recorrncia literatura, portanto, atravessa a histria da TV brasileira em adaptaes de textos literrios realizadas para diversos tipos de programa. Nos Estados Unidos, a soap opera consiste em histrias especialmente escritas para a

TV. A longevidade dessa forma de fico seriada assemelhada telenovela brasileira

4

Os surtos de leitura registrados na Europa ainda no final do sculo 18 no causaram aqui preocupaes de sade pblica como as expressas num tratado de 1795 que listava, alm dos efeitos sobre a moral e a poltica, os efeitos colaterais da leitura excessiva: "suscetibilidade a resfriados, dores de cabea, enfraquecimento dos olhos, calores, gota, artrite, hemorridas, asma, apoplexia, doenas pulmonares, indigesto, priso de ventre, distrbios nervosos, enxaquecas, epilepsia, hipocondria e melancolia." 4 No nosso caso, muitas dessas doenas foram associados exposio excessiva televiso antes que pudessem acometer o pblico leitor.

inviabiliza a adaptao de peas teatrais e romances5. O modelo das soaps norteamericanas o adotado na Inglaterra e, mais recentemente, na Frana.6 Nos

Estados Unidos, as adaptaes por um curto perodo frequentaram, em emissoras comerciais, britnica, o programas texto semelhantes aos teleteatros dos brasileiros7. Na televiso

literrio

matria-prima

classic

serials,

programas

semelhantes s minissries com durao em torno dos 20 captulos.8 Portanto, nos dois pases de mais longa tradio televisiva -Estados Unidos e Inglaterra-, o texto literrio no chegou a frequentar os produtos principais das emissora locais, como ocorreu no Brasil atravs telenovela. Em outros pases latino-americanos, a produo ficcional da TV privilegia a telenovela, com caractersticas muito semelhante s da telenovela brasileira, embora as produzidas no Mxico, Argentina e Venezuela concentrem-se em textos originais e no em adaptaes. Isso certamente est relacionado vasta produo do

As soap operas norte-americanas so apresentadas ao longo de dez, quinze anos, o que obviamente impossibilita adaptar para esse formato qualquer histria com comeo, meio e fim; General Hospital, uma das mais populares entre as cerca de quinze soap operas da programao diurna da televiso norte-americana, vem sendo exibida diariamente desde 1963. 6 Armand e Michle Mattelart, em obra de 1987, descrevem assim a situao da televiso francesa: "(...) [a TV francesa] levada a acolher soaps norte-americanas, novelas brasileiras e a fabricar in dommo longos folhetins que retomam a frmula da soap opera." In: MATTELART, Armand e Michle. O Carnaval das Imagens - A Fico na TV. So Paulo, Brasiliense, 1989, p. 194. 7 Michael Kerbel, em "The Golden Age of TV Drama" [in: NEWCOMB, Horace (ed.), Television: The Critical View, New York, Oxford University Press, 1982), refere-se a vrios programas com essas caractersticas exibidos pela TV norte-americana a partir de 1947: "Kraft Theatre", "U.S. Steel Hour", "Actors Studio", "Pulitzer Prize Playhouse", "Celanese Theatre", etc. Kerbel faz as seguintes observaes sobre o programa "Philco Television Playhouse", dirigido por Fred Coe e exibido pela NBC durante oito anos a partir de 1948: "A princpio Coe concentrouse em adaptaes de clssicos teatrais, apresentando atores da Broadway: a idia era levar Cultura aos lares. Quando ele esgotou as peas (frequentemente porque os estdios de cinema guardavam com zelo os direitos), passou aos romances, que se provaram mais difceis num formato de 52 minutos. Coe finalmente seguiu a direo pela qual a poca Aurea se tornou famosa: peas originais, de novos autores, dirigidas e interpretadas por desconhecidos." (p. 50). A partir dos anos 60, as adaptaes passaram a frequentar, tambm em forma de teleteatro, programas como o "Masterpiece Theater", veiculado por uma emissora pblica de televiso, a PBS. 8 Horace Newcomb, em "Toward a Television Aesthetic" (In: NEWCOMB, Horace. Television: The Critical View. New York, Oxford University Press, 1982, p. 487) afirma que a durao desses programas gira em torno de vinte captulos.5

melodrama cinematogrfico nesses pases, que chegaram a abrigar uma indstria de filmes entre os anos 30 e 50. Com o declnio da produo local de filmes, muitos profissionais dessa indstria migraram para a televiso, transferindo para o veculo emergente a experincia na produo de textos originais. Esse fator foi decisivo para que, naqueles pases, o texto literrio mantivesse maior distncia da produo ficcional da televiso do que se verificou no Brasil. O caso brasileiro, portanto, apresenta especificidades em dois nveis. Primeiro, na presena constante de adaptaes nos mais variados tipos de programas (teleteatros, telenovelas, minissries, sries, etc.). Segundo, no fato de concentraram-se principalmente na telenovela, tipo de programa voltado para o

espectro de pblico mais amplo e heterogneo que a televiso alcana. Enquanto em outros pases a literatura est associada a programas de audincia restrita, constituindo-se como matria-prima para a produo de programas voltados a um pblico segmentado, aqui ela frequenta a telenovela, programa de massa por excelncia. As adaptaes atingem seu auge a partir de 1975, quando ganham carter sistemtico. At ento distribudas pelas diversas emissoras em programas

veiculados em diferentes horrios, em maio daquele ano cria-se um horrio dedicado exclusivamente exibio de telenovelas adaptadas de obras da literatura brasileira. A iniciativa coincide com o incio da exibio das telenovelas em rede nacional9. Helena, baseada no romance de Machado de Assis, inaugura o horrio, batizado como "Faixa Nobre". Nesse momento em que a telenovela se consolidava como forma de fico de alcance nacional, duas adaptaes de textos literrios esto

9

A Rede Globo passa a transmitir suas telenovelas, simultaneamente para todo o Brasil, a partir de maro de 1975; at ento, havia defasagem de alguns dias na exibio dos captulos em diversos pontos do pas.

sendo exibidas pela Rede Globo: Helena, s 18h15, e Gabriela, baseada no romance de Jorge Amado, s 22h. Esse inusitado cruzamento da TV com a literatura colocou-me questes que esto na origem deste trabalho: por que dois universos to distintos como o da literatura e o da televiso estabeleceram tantos pontos de contato no Brasil? Por que o texto literrio, historicamente voltado a um pblico to restrito, uma referncia constante para o principal produto de um veculo de massa? As perguntas levaram-me a fazer o levantamento das adaptaes realizadas nas emissoras brasileiras desde a instalao da televiso no Brasil, em 1950. Uma vez que o texto literrio frequentou programas de fico com as mais variadas caractersticas -teleteatros, casos especiais, seriados, telenovelas e minissries-, era preciso delimitar o universo de estudo. Como o objetivo era realizar um levantamento histrico, privilegiei a telenovela, nico gnero que atravessou a histria da televiso com uma produo regular de adaptaes.10 A continuidade permite observar a formao, o

desenvolvimento e as alteraes dos procedimentos de produo dessas narrativas dirigidas ao pblico mais universal atingido pelo veculo. Enquanto o teleteatro e a minissrie, em diferentes momentos, visam a um pblico mais familiarizado com a literatura, a telenovela veicula uma imagem de literatura a um pblico em grande parte alheio ao universo literrio. O resultado do levantamento foi surpreendente: mais de um tero das 600 telenovelas at hoje produzidas no Brasil basearam-se em obras literrias. Os dados

10

O teleatro praticamente desaparece das emissoras brasileiras em 1967 e a minissrie surge apenas em 1984.

numricos, por si s, sugerem que a relao entre a telenovela e o texto literrio foi subestimada pelos estudos j realizados sobre o assunto.

1.3

Um cruza me nto sube s timado A relao entre literatura e televiso, quando estudada, oscilou entre duas

posturas que podemos considerar paradigmticas. De uma lado, h os autores que se limitaram a apontar uma aproximao entre esses dois universos, como o caso de Jos Mario Ortiz Ramos e Silvia H. S. Borelli, em Telenovela - Histria e Produo. Nesse livro, os autores criam a categoria novela literria para abrigar as adaptaes realizadas no perodo 1970-1980. O trabalho aponta o carter sistemtico desse tipo de produo. No entanto, no observa seus antecedentes e no discute a

propriedade da qualificao literria atribuda telenovela. Por outro lado, h estudos que desqualificam de imediato qualquer

aproximao entre o universo literrio e o televisivo, como o caso de "Eu Vi um Brasil na TV", de Maria Rita Kehl: "No h nenhuma relao de qualidade entre o romance escrito e a adaptao novelesca, alm do nome do autor e, evidentemente, alguns elementos do enredo e da ambientao da novela".11 Assim, atribui-se a

priori uma qualidade ao texto literrio enquanto o texto televisual , tambm a priori, desqualificado. Uma variante dessa postura orienta a crtica jornalstica, quefrequentemente cobra da adaptao fidelidade ao texto original. Assim, quanto mais fiel ao texto literrio, melhor seria a telenovela. Tanto ao atribuir uma caracterstica literria telenovela quanto ao desqualific-la como objeto de estudo sob o argumento de que ela no detm

11

KEHL, Maria Rita. "Eu Vi um Brasil na TV". In: Um Pas no Ar - Histria da TV Brasileira em 3 Canais. So Paulo, Brasiliense, 1986, p. 251.

qualidades literrias, a telenovela adaptada pensada exclusivamente em funo da literatura e no enquanto aquilo que : um programa de televiso que faz

referncia a um texto literrio. Parece-me bvio que a telenovela adaptada jamais ser um texto literrio e, portanto, no se pode aplicar a ela os critrios utilizados no estudo do texto literrio. Assim, este estudo tende a concordar com Raymond Williams, para quem "a pior espcie de adaptao aquela organizada para tomar o lugar do romance" 12. Entretanto, no se pode afirmar que a adaptao nada tem a ver com o texto original, uma vez que, no mnimo, o apresenta como referncia e veicula uma imagem ou uma interpretao desse original. Assim, qualquer estudo sobre adaptaes que procure aplicar telenovela os critrios de valor utilizados na anlise do texto literrio em ltima instncia pressupe a existncia de uma possvel identidade entre um programa de televiso e uma obra literria. Se interessa a algum fazer acreditar na equivalncia entre ler um livro e assistir sua adaptao, s emissoras de televiso, que j anunciaram telenovelas como sendo "de Machado de Assis" ou "de Jos de Alencar" ou "da obra imortal de rico Verssimo". A confuso extrapola o terreno especfico das adaptaes. A associao da telenovela literatura est presente em expresses como "folhetim eletrnico" e "melodrama televisivo" frequentemente empregadas para designar a telenovela. Aparentemente imobilizados por esses clichs, os estudos nunca investigaram a propriedade e os limites da identificao da telenovela com essas categorias literrias e nem as especificidades que os adjetivos "eletrnico" e "televisivo" lhes atribuiriam.

12

WILLIAMS, Raymond. On Television. London, Routledge, 1989.

Em tese de mestrado intitulada "Telenovela e Folhetim", Samira Youssef Campedelli retoma a comparao ao analisar Pai Heri, exibida pela Rede Globo em 1979. A tese conclui que a telenovela "guarda filiao inequvoca ao romance folhetim, no seu modo de contar a histria, nos temas que utiliza, no emaranhado tramtico." 13 O trabalho tem o mrito do ineditismo. No entanto, elege um nico caso para o estudo de um universo amplo e complexo e reduz o televisual ao literrio, sem considerar suas diferenas formais. Alm disso, parece considerar o "folhetim" como continente de um universo temtico fechado. Marlise Meyer, especialista no assunto, quem observa: "Note-se tambm

que, na origem e pelo Romantismo e Realismo afora, entende-se por romancefolhetim, antes de mais nada, um modo especfico de lanamento de fico: em fatias." 14 Se o parentesco telenovela/folhetim existe, ele melhor identificado no modo de veiculao dessas narrativas. Em ambos os casos, estamos diante de histrias contadas aos pedaos, em que o fluxo narrativo regularmente suspenso com a promessa de continuao, onde a participao do pblico decisiva para os desdobramentos da histria e as caractersticas do veculo -num caso, o jornal, no outro, a televiso- tm repercusses imediatas no contedo do relato. O parentesco muito menos evidente no que diz respeito s temticas da telenovela e do folhetim. Nesse terreno, se alguma coisa os aproxima o fato de contemplarem um espectro temtico muito amplo e difuso, como indica Marlise Meyer ao observar que o romance-folhetim pde abrigar tanto o universo temtico do Romantismo quanto do Realismo. A mesma versatilidade pode ser verificada na telenovela.

13

CAMPEDELLI, Samira Youssef. "Telenovela e Folhetim", tese de mestrado apresentada ao Departamento de Letras Clssicas e Vernculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo em 1983. mimeo. 14 MEYER, Marlise. "O Que , ou quem foi Sinclair das Ilhas?". In: revista Almanaque, n. 14, So Paulo, Brasiliense, 1982.

Assim, tanto ao abordar as adaptaes quanto as telenovelas em geral, at agora tem-se procurado entend-las atravs de categorias literrias. O esforo

compreensvel, uma vez que no terreno dos estudos literrios que se encontram conceitos e categorias para o estudo das narrativas em geral. No entanto, a aplicao desses conceitos e categorias deve ser relativizada atravs da

compreenso das particularidades da televiso. Torna-se fundamental proceder a uma anlise comparativa, adotando o procedimento proposto por Franois Jost em L'Oeil Camera - Entre Film et Roman: "(...) adotar uma estratgia dinmica, entre filme e romance, fazendo variar os pontos de vista, a fim de estabelecer as premissas de uma tipologia narratolgica, ao mesmo tempo vlida para a anlise cinematogrfica e a anlise literria, em resumo: uma narratologia comparada."15 O estudo produtivo da relao obra literria/telenovela adaptada deve reconhecer sua natureza comparativa, observando que a comparao s pode ser realizada mediante o reconhecimento das especificidades dos dois universos de significao. Trata-se daquilo que Fredric Jameson definiu como um processo de "traduo ou transcodificao" 16 De fato, a passagem do texto literrio ao televisual resulta de uma interpretao e de uma traduo ou transcodificao do texto original. No Brasil, o estudo comparativo entre o texto escrito e os sistemas audiovisuais so incipientes. Sobretudo na Frana e nos Estados Unidos, esse tipo de estudo j tem tradio e deu origem a uma bibliografia extensa que, no entanto, privilegia a comparao entre o romance e o filme. Sabemos que a televiso, comparada ao cinema, tem especificidades que se estendem do processo de

15

JOST, Franois. L'Oeil Camera - Entre Film et Roman. Lyon, Presses Universitaires de Lyon, 1987. 16 JAMESON, Fredric. "Reading Hitchcock", in October (Winter 1982), Cambridge, MIT Press, p. 15.

produo ao regime de recepo dos seus programas, o que certamente repercute na constituio das narrativas que ela produz. A utilizao da bibliografia existente sobre as adaptaes pressupe, portanto, sua adequao s especificidades da TV. A consecuo desse estudo terico e multidisciplinar exige tambm a anlise de exemplos concretos, ou seja, de programas de televiso que adaptem textos literrios. 1.4 O r eper trio lit err io da t ele viso A pergunta que se coloca no horizonte deste estudo como se d a passagem

do

texto

literrio

para

o

texto

televisivo,

consideradas

suas

respectivas

especificidades?

Por hora, restrinjo-me a

delimitar um campo de estudo

privilegiado, o das adaptaes. Este trabalho prope-se a estudar o que da literatura chegou televiso, ou seja, estabelecer o "repertrio literrio" da televiso brasileira ao longo da sua histria, indicando alguns procedimentos da passagem do texto literrio ao programa de televiso. Para isso, realizei o levantamento das telenovelas baseadas em textos literrios a partir de 1952, anexado como apndice a este trabalho. O levantamento inclui tambm os ttulos das obras em que as telenovelas se baseiam, o nome do autor, o nome do adaptador e do diretor, a emissora em que foi exibida, a data de estria e o nmero de captulos. O material, indito, constitui subsdio fundamental para o estudo das questes apontadas acima, uma vez que d profundidade histrica a qualquer trabalho realizado a partir daqui. A partir desse levantamento, da pesquisa em publicaes e de depoimentos de adapatores, descrevo o comportamento das adaptaes ao longo da histria, sempre relacionando-o com o das telenovelas originais. Mostro tambm o impacto sobre as adaptaes das inovaes tecnolgicas introduzidas nas emissoras e como

alteraes do contexto cultural brasileiro repercutem no perfil das obras literris adaptadas. Finalmente, procuro delinear o perfil das obras literrias em que a telenovela buscou, em diferentes momentos, material para se constituir como a principal forma de fico popular brasileira e esboar uma interpretao sobre o porqu da presena constante da referncia literria nesses programas de televiso e as funes que o texto literrio assume, em diferentes momentos, no mbito da televiso. Antes de proceder ao estudo propriamente dito, apresentarei algumas definies e opes adotadas para a realizao deste trabalho.

1.5

Uma def inio de t elenove la No Brasil, o termo telenovela j foi empregado tanto para designar histrias

de 10 captulos de 15 minutos cada e exibidos duas vezes por semana quanto para se referir a histrias de mais de 400 captulos com durao de 50 minutos e exibidos seis vezes por semana. Para os limites deste trabalho, proponho a seguinte definio: "telenovela" um programa de fico seriada exibido pela televiso cuja

narrativa tende a uma concluso final. Por fico seriada entende-se uma narrativadividida em captulos exibidos regularmente que observam uma progresso narrativa que visa a um desfecho. A definio permite distinguir a telenovela dos programas de fico exibidos em um nico episdio (teleteatros e "casos especiais") e de todas as formas de fico em srie, narrativas televisuais em que um ncleo central de personagens vive uma histria completa a cada episdio. Permite tambm distingui-la das soap operas que, conforme observa John Ellis em Visible Fiction17, so uma forma hbrida de fico televisiva, uma vez que os eventos so cumulativos, h uma lenta progresso

narrativa entre os captulos (como na fico seriada), mas suas narrativas no

17

ELLIS, John. Visible Fictions - Cinema: Television: Video. London, Routledge, 1982.

tendem a um desfecho. A definio privilegia a forma narrativa da telenovela em detrimento dos contedos veiculados por esse gnero de fico televisiva. No que se refere especificamente s adaptaes, verificamos que

frequentemente uma mesma obra literria deu origem tanto a espetculos de teleteatro, quanto a sries e telenovelas. H tambm uma enorme coincidncia de obras levadas televiso que anteriormente haviam sido adaptadas pelo cinema ou pelo rdio, em forma de radionovelas. Ou seja, constatou-se que um mesmo texto literrio pode dar origem a vrios tipos de programas de televiso ou a espetculos exibidos por outros veculos. Essas coincidncias, portanto, tornam impossvel distinguir telenovela, teleteatro e srie pelas temticas que abordam ou pelo tipo de texto literrio que privilegiam. A definio de telenovela apresentada acima coloca um problema. Ela

tambm se aplica minissrie, tipo de fico seriada em que h continuidade de enredo de captulo a captulo e a narrativa tambm visa a um desfecho. A diferenciao s seria possvel atravs de critrios extranarrativos, que levassem em conta questes de produo, como a relao custo/captulo ser mais alta na minissrie que na telenovela, ou o fato de todos os captulos da minissrie geralmente serem gravados antes do incio de sua exibio, o que eventualmente pode ser aplicado s telenovelas18. Assim, preferimos considerar a minissrie como uma especializao da telenovela. No caso brasileiro, essa especializao tem confirmao histrica. A

minissrie, a partir da dcada de 80,

o formato criado para abrigar um tipo

especfico de telenovela: aquela adaptada de texto literrio. Assim, considerei fundamental incluir a minissrie no levantamento. O deslocamento das adaptaes

18

A telenovela Helena, exibida pela Globo em 1975, teve todos os seus vinte captulos gravados antes de comear a ser exibida.

para as minissries, como veremos, representa uma espcie de "correo de rota" no sentido de dirigir as adaptaes a um pblico mais familiarizado com a literatura.19 Assim, seria mais preciso dizer que o levantamento apresentado como apndice deste trabalho inclui os programas de fico seriada da televiso baseados em textos literrios. Outro problema refere-se ao termo adaptao. O cineasta Jean-Claude Carrire, referindo-se ao cinema, faz uma observao to pertinente quanto radical a respeito do termo: "Na realidade, no cinema tudo adaptao. Que me peam para procurar uma histria em um romance, que me contem um fato corriqueiro, uma lembrana pessoal que eu escave na minha prpria memria ou na minha `imaginao', que eu simplesmente oua os bilhes de partculas invisveis que atravessam a cada instante o lugar onde eu me encontre, de toda maneira meu trabalho ser uma adaptao."20

Para Carrire, o problema da adaptao um falso

problema. No entanto, nem tudo adaptao de um romance ou de um texto literrio, como o prprio cineasta admite ao afirmar que "quando se adapta um romance h mais etapas [no processo de adaptao]" No plo extremo de Carrire, colocam-se consideraes como esta, de Alain Garcia, num estudo recente sobre as adaptaes de romances para o cinema: "() a adaptao no se constitui como tal se o romance for ruim. () esse termo no assume sua dimenso autntica a no ser que o romance seja uma obra de qualidade." 21

19

Exibidas aps as 22h, horrio de pblico de maior poder aquisitivo e nvel de instruo, o aparecimento das minissries marca o fim do perodo iniciado em 1975 quando a Rede Globo passou a dedicar o horrio das 18h para a adaptao sistemtica de clssicos da literatura brasileira, dirigidos a um pblico amplo e em grande parte alheio ao universo literrio. 20 CARRIERE, Jean-Claude. "Jean-Claude Carrire scnariste ou le voyage Bruxelles". In: Revue Belge du Cinma, Hiver 1986, n. 18, p. 48. 21 GARCIA, Alain. L'adaptation du Roman au Film. Paris, Diffusion, 1990, p. 14.

Nesse terreno movedio, considerei como telenovela adaptada qualquer telenovela que se baseie em um texto de fico publicado, seja ele romance, conto ou crnica, e apresente nos crditos a obra em que se baseia.

1.6

As fo nt es de pe squ isa Para o levantamento dos ttulos das telenovelas adaptadas, utilizei vrias

fontes de pesquisa. "Histria da Telenovela"22 e O Teleteatro Paulista nas Dcadas de 50 e 6023, foram fontes preciosas de informaes, principalmente sobre as produes realizadas em So Paulo nos anos 50. O livro Memria da Telenovela Brasileira24, de Ismael Fernandes, foi um outro ponto de partida para o

levantamento, embora Fernandes adote o ano de 1963 como marco inicial das telenovelas. A Telenovela no Rio de Janeiro 1950-196325, organizado por Marta Klagsbrunn e Beatriz Resende, foi valioso para a histria das produes cariocas. As discrepncias e lacunas de informaes apresentadas por esses

levantamentos histricos levaram-me pesquisa direta em revistas e jornais. Principalmente em relao s produes dos anos 50, perodo em que grande a dificuldade de obteno de informaes. Raramente os nomes dos diretores desses programas so citados nas publicaes e muitas vezes no se distinguem dos produtores que, frequentemente, respondem tambm pela adaptao das obras. Essas lacunas refletem tanto a falta de definio, poca, de funes hoje

22

Pesquisa realizada por Maria Elisa Vercesi de Albuquerque, Yara Marina Joana Rodrigues, Rita Okamura, Flvio Luiz Porto e Silva e Edgard Ribeiro de Amorim sob a superviso de Carlos Queiroz Telles e Jorge Cunha Lima para o IDART. Mimeo. 23 PORTO E SILVA, Flvio Luiz (coord.). O Teleteatro Paulista nas Dcadas de 50 e 60. So Paulo, Secretaria Municipal de Cultura, Departamento de Informao de Documentao Artsticas, Centro de Documentao e Informao sobre Arte Brasileira Contempornea, 1981. 24 FERNANDES, Ismael. Memria da Telenovela Brasileira. So Paulo, Brasiliense, 1994. 25 KLAGSBRUNN, Marta e RESENDE, Beatriz (org.). A Telenovela no Rio de Janeiro 1950-1963. Quase Catlogo 4, CIEC Escola de Comunicao UFRJ, Rio de Janeiro, 1991.

claramente distintas, como tambm a pouca importncia atribuda ao gnero pelas publicaes especializadas. Outra dificuldade colocada para a pesquisa a inexistncia, nos anos 50, de uma cobertura sistemtica, por parte da imprensa, do que se passava na televiso. Muitas vezes as nicas referncias s primeiras telenovelas encontram-se em depoimentos interessantes, de profissionais envolvidos em sua produo. So relatos

mas comprometidos pela memria afetiva e pouco teis para o

estabelecimento de informaes bsicas sobre esses programas, tais como data de estria, nome do diretor e do adaptador, horrio de exibio e durao em nmero de captulos. As publicaes especializadas do perodo, como a revista "Radiolndia" 26, "So Paulo na TV", "7 Dias na TV", muitas vezes no trazem sequer os ttulos das telenovelas em exibio.27 Os horrios desses programas quase sempre so indicados nas programaes como "Romance Kolynos" ou "Telenovela Mesbla", sem especificao do ttulo da telenovela. O procedimento dificultou e muitas vezes inviabilizou determinar, por exemplo, o nmero de captulos de muitas das

telenovelas exibidas nos anos 50, j que ocupavam uma mesma faixa de horrio em que invariavelmente figurava o nome do patrocinador e no o ttulo da telenovela. Crticas e notas sobre esses programas, quando publicadas, apareciam semanas aps a estria, sem qualquer referncia data do incio de exibio.

26

A revista "Radiolndia" era uma publicao semanal da Rio Grfica e Editora, dirigida por Roberto Marinho. Embora originalmente fosse uma revista dedicada ao rdio, a partir de novembro de 1956 passa a destinar 20 de suas 70 pginas a comentrios sobre programas e a vida dos teleatores das emissoras paulistas e cariocas. Em janeiro de 1957, a Radiolndia passa a publicar as programaes dirias das emissoras de So Paulo e Rio e tambm da TV Itacolomi, de Belo Horizonte. 27 Tudo indica que havia precariedade no fornecimento das programaes pelas prprias emissoras; vrias notas publicadas nas revistas especializadas traziam apelos para que os departamentos de divulgao das emissoras se comunicassem com mais frequncias com as redaes das publicaes.

O desprestgio do gnero em relao, por exemplo, ao teleteatro, ao qual essa publicaes dedicavam espaos mais generosos, tambm responsvel pela escassez de informaes sobre a telenovela dos anos 50. O mesmo desprestgio revela-se ainda hoje nos depoimentos de alguns adaptadores, que evitam o termo telenovela e preferem referir-se a esse tipo de programa como "teatrinho dividido em captulos", "romance em captulos" e "minissrie", termo que s surgiria nos anos 80. Outra dificuldade encontrada para o levantamento das adaptaes dos anos 50 o fato de muitas telenovelas serem veiculadas como quadros de programas dirigidos ao pblico infanto-juvenil ou ao pblico feminino. Geraldo Vietri e Manoel Carlos fazem referncia a adaptaes apresentadas num quadro do programa vespertino "Revista Feminina", transmitido pela Tupi de So Paulo e apresentado por Maria Tereza Greggori. No entanto, encontramos registro escrito de apenas uma adaptao, a telenovela A Viuvinha, baseada em obra de Jos de Alencar, transmitida pela TV Tupi de So Paulo durante esse programa.28 Recortes de jornais e revistas guardados pelos prprios profissionais envolvidos nessas produes tambm contriburam muito para o estabelecimento de informaes. As informaes referentes as perodo posterior a 1958 so mais acessveis, uma vez que surgem publicaes especializadas em televiso e os grandes jornais

28

A referncia a esse programa, apresentado por Maria Tereza Greggori e produzido por Abelardo Figueiredo e Ciro Mena Barreto foi encontrada na revista "Radiolndia" de 26/07/1958, p. 59; Geraldo Vietri e Manoel Carlos afirmam ter adaptado e dirigido vrias novelas adaptadas de romances para esse programa, como Eu Soube Amar, de Edith Wharton, adaptada por Manoel Carlos e exibida durante um ms; no entanto, no encontramos referncia a esse ttulo nas publicaes consultadas, que no especificam o ttulo da telenovela que estava sendo exibida nesse quadro do programa.

dirios passarem a publicar programaes das emissoras. Alguns jornais dedicam inclusive suplementos para assuntos relacionados ao rdio e TV29. Ainda que nos anos 50 j houvesse emissoras de televiso em outras capitais do pas com uma programao local, a produo de scripts j estava centralizada no Rio de Janeiro e em So Paulo. Era desses centros que provinham a maior parte dos

scripts que seriam encenados ao vivo nas emissoras locais. Quando houve produolocal de adaptaes, ela foi intermitente e concentrou-se em breves perodos. Com a possibilidade de gravao de imagens, no incio dos anos 60, essas produes locais praticamente desapareceram e as emissoras passaram a exibir telenovelas gravadas no Rio e em So Paulo. Assim, as adaptaes exibidas por emissoras de outras capitais do pas so praticamente as mesmas exibidas no Rio de Janeiro e em So Paulo. As excees so poucas e no afetam o corpus das adaptaes apresentado neste trabalho.30 O levantamento includo neste trabalho, portanto, no se pretende definitivo. Mas seguramente delimita um universo bastante representativo das adaptaes realizadas nas emissoras brasileiras e tem abrangncia suficiente para o

Em 1959, o Dirio de S.Paulo comea a publicar s quartas-feiras o suplemento "TV-Rdio" com a programao diria das emissoras e reportagens sobre programas e artistas de TV; em 1962 comea a circular em So Paulo o jornal semanal O Telespectador, que tambm publicava informaes sobre teatro e cinema. 30 J nos anos 50 as Associadas mantm emissoras locais em Belo Horizonte e Porto Alegre e, em 1960, inaugura a TV Cear, em Fortaleza. Em Belo Horizonte, na TV Itacolomi, no encontramos registros de uma produo local de telenovelas na dcada de 50. A TV Cear veiculou adaptaes nos programas "TV de Romance" e "Videorama"; algumas, como O Morro dos Ventos Uivantes (1960), Jane Eyre (1961) e A Casa das Sete Torres (1961) coincidem com os ttulos de obras adaptadas no Rio e So Paulo; outras, como Luzia Homem, O Cabeleira e Inocncia, aparentemente foram produzidas no Cear. adaptadas na TV cearense, no tm registro de exibio nas emissoras do sul; mesmo assim, o "ciclo cearense de telenovelas" dura apenas seis anos, como informa o livro A Televiso no Cear - 1959/1966, publicado em 1985 pela Secretaria de Comunicao Social do Cear. O que prevaleceu foi a circulao em outras capitais de scripts produzidos em So Paulo, como ocorreu com Pollyana e O Stio do Pica-Pau Amarelo, adaptaes de Tatiana Belinky produzidas em So Paulo e encenadas no Rio de Janeiro e em outras emissoras associadas. Programas produzidos no Rio tambm eram posteriormente encenados em So Paulo, como o caso de adaptaes produzidas por Srgio Britto e Manoel Carlos para o "Grande Teatro Tupi", no Rio de Janeiro, e que posteriormente foram exibidos na TV Record de So Paulo com direo de Manoel Carlos e Nilton Travesso.29

estabelecimento de um perfil das obras literrias privilegiadas pelas telenovelas ao longo de sua histria. 1.7 A d iv iso do s p ero dos Uma vez que meu propsito estudar as telenovelas sob o prisma especfico das adaptaes, adotarei uma diviso de perodos que difere parcialmente daquela adotada pelos autores que j se dedicaram ao estudo histrico das telenovelas brasileiras. Sem desconsiderar que a histria das adaptaes mantm estreita relao com a da telenovela, a diviso que apresentarei a seguir baseia-se no das obras adaptadas em cada perodo. Antes de propor essa periodizao, necessrio apresentar e discutir os limites metodolgicos daquelas realizadas por outros autores. Ismael Fernandes, em Memria da Telenovela Brasileira31, prope dividir a histria da telenovela em quatro perodos. Segundo Fernandes, essa histria perfil

comea em julho de 1963 com a estria de 2.5499 Ocupado, a primeira veiculada em captulos dirios. Para o autor, antes disso "s existiam seminovelas, programas em srie, apresentados duas vezes por semana" 32. O primeiro perodo, segundo Fernandes, dura at agosto de 1965, com o sucesso de O Direito de Nascer, que

teria marcado a "industrializao do gnero". O segundo perodo se estende de 1965 a julho de 1968, marcado por telenovelas em que predominavam os "arroubos folhetinescos" e pelas produes assinadas pela cubana Glria Magadan, que recheavam "os lares brasileiros de

FERNANDES, Ismael. op. cit. A observao, presente na primeira edio do livro, foi retirada da introduo terceira edio, na qual em vrios momentos o autor ainda se refere s telenovelas dos anos 50 como "semi-novelas" e mantm o ano de 1963 como marco inicial da histria da telenovela.31 32

condes, duques, ciganos, vils sem qualquer lgica, mocinhas ingnuas e gals totalmente comprometidos com a bondade" 33. Antnio Maria e Beto Rockfeller, ambas de 1968, marcam o incio da terceira fase, que plantava "a reformulao da telenovela brasileira". Essa reformulao consistia basicamente em deslocar as tramas para cenrios urbanos brasileiros e na adoo de dilogos mais geis, que abandonavam o tom empolado das produes anteriores e eram substitudos por "formas de expresso mais coloquiais, num reflexo fiel do nosso modo de falar" . O quarto perodo teria sido iniciado com Vu de Noiva, que marcou o incio da liderana da Globo na produo das telenovelas. Esse perodo, sempre segundo Fernandes, se estende at hoje e caracteriza-se pelo estabelecimento de um perfil temtico especfico para as telenovelas exibidas pela emissora em diversos horrios. Assim, o horrio das 18h, criado em 1975, adaptava obras da literatura brasileira, o das 19h caracterizava-se por comdias leves, o das 20h dedicava-se a tratar de assuntos do cotidiano do telespectador e o das 22h reservava-se exibio de telenovelas de temtica mais densa. O prprio autor incumbe-se, na apresentao terceira edio do livro, de advertir o leitor de que sua obra "um guia da telenovela brasileira, um banco de dados, sem o interesse em se arvorar como `cientfico"'. Como vimos, para marcar os perodos Ismael Fernandes apia-se ora na regularidade da apresentao dos

captulos, ora no sucesso de audincia e, mais adiante, invoca aspectos do enredo e da linguagem utilizada nos dilogos para definir o terceiro perodo inaugurado por Beto Rockfeller. Fica clara a ausncia de um nico critrio que oriente a diviso de tais perodos.

33

Idem nota anterior.

O livro, de fato, uma importante fonte de consulta para todos que se interessem pela telenovela brasileira, uma vez que contm o levantamento mais abrangente j publicado sobre o assunto. Entretanto, na falta de estudos acadmicos -ou, para empregar o termo de Fernandes- cientficos nessa rea, alguns autores tm recorrido ao livro de Fernandes e repetido alguns de seus erros. Uma das obras mais importantes sobre a fico na TV brasileira, O Carnaval das Imagens, de Michle e Armand Mattelart, acaba por considerar que a histria da telenovela brasileira "comea realmente em 1963 () com o lanamento pela TV Excelsior de 2-5499 Ocupado, adaptao de um roteiro argentino" 34. A telenovela existe na TV brasileira desde 1951. Ainda que no fosse exibida diariamente, nos moldes como a conhecemos hoje, desde ento o termo empregado pelos profissionais de televiso e pela imprensa da poca para designar programas de fico seriada exibidos em um, dois ou trs captulos semanais. O que surgiu em 1963, com a exibio de 2.4599 Ocupado, no foi a telenovela, mas a telenovela diria. A distino entre telenovela, teleteatro e seriado j

suficientemente clara nos anos 50.35

O critrio da periodicidade dos captulos

parece-me, portanto, absolutamente inadequado para caracterizar a telenovela, uma vez que resulta em negar sua existncia antes de 1963, o que os fatos no confirmam. A distino entre telenovela e telenovela diria feita em outra obra que trata da histria do gnero, Telenovela - Histria e Produo36, de Renato Ortiz, Silvia Helena Simes Borelli e Jos Mario Ortiz Ramos. A obra divide essa histria em34

MATTELART, Michle e Armand. O Carnaval das Imagens - a Fico na TV. So Paulo, Brasiliense, 1989, p. 28. 35 Os termos aparecem frequentemente nas publicaes da poca; as telenovelas ora so referidas como tal ou como novelas; os teleteatros so s vezes chamados de teledramas ou telepeas; as sries algumas vezes so referidas como seriados. 36 ORTIZ, Renato; RAMOS, Jos Mario Ortiz; BORELLI, Silvia H.S. Telenovela - Histria e Produo. So Paulo, Brasiliense, 1989.

dois

grandes

blocos:

o

primeiro

correspondente

telenovela

no-diria,

compreendendo o perodo 1951-1963, e o segundo inaugurado com a primeira telenovela diria. Este segundo perodo, por sua vez, subdividido em outros dois: "Melodramas e inovaes: 1963-1970", "Telenovela e modernizao: os anos 70-80". Essa diviso, que considero metodologicamente utilizada aqui e adaptada aos propsitos deste trabalho. Uma vez que este estudo tem um objeto de estudo especfico -as telenovelas adaptadas de textos literrios- procurei observar nesse universo caractersticas que orientassem a diviso dos perodos. Como veremos, a tenso entre o nacional e o estrangeiro constante na histria da televiso e, nas adaptaes, reflete-se na tenso entre a valorizao dos textos literrios estrangeiros e dos nacionais. A relao entre textos nacionais e estrangeiros, portanto, orientam a diviso que proponho aqui. Assim, dividi a histria das adaptaes em quatro grandes perodos. O primeiro vai de 1952 a 1963 e corresponde ao momento em que se estabelece um repertrio literrio para as telenovelas. Aps uma breve tentativa de transposio de romances brasileiros para o vdeo, a telenovela rapidamente adota o modelo do teleteatro, privilegiando romances romnticos e de aventura estrangeiros. O final desse perodo assistir a uma valorizao do texto nacional, que no perodo seguinte ser suplantada pelas adaptaes de scripts latino-americanos O segundo perodo vai de 1964 a 1974, que inclui a ascenso do pastiche de textos literrios estrangeiros, textos melodramticos anteriormente adaptados para o cinema e a valorizao de adaptaes de textos nacionais em superprodues. O terceiro perodo comea em 1975 e vem at hoje. Esse perodo marca o privilgio absoluto das adaptaes de romances brasileiros tanto em telenovelas do horrio das seis quanto, a partir de 1984, nas chamadas minissries. mais consistente, ser

CAPI TULO 1

1952-1 963: OS CLAS SI COS I NTE R NACI ONAI S

1.1

I ntro duo A televiso instalou-se no Brasil em 1950 sob o signo do improviso, o que

fato amplamente conhecido. No primeiro ano de existncia, a programao esteve calcada em programas musicais, dirigidos e apresentados por profissionais

provenientes do rdio. A produo de fico para televiso comea em 1951, com a estria da telenovela Sua Vida me Pertence, de Walter Forster, conhecido autor de radionovelas. Do rdio, esse e outros autores traziam a experincia em contar histrias atravs de falas e dilogos, embora no tivessem familiaridade com a imagem. A associao desses fatores atribua s primeiras telenovelas caractersticas semelhantes quilo que hoje chamamos de audiovisual. A imagem funcionava como ilustrao informaes verbais. Como observa Renato Ortiz a respeito desses primeiros programas, "a narrao no simplesmente um acessrio aos dilogos, parte da estrutura do texto. Atravs dela se faz a ligao com os captulos anteriores e, logo na abertura, um resumo dos eventos relembra s pessoas o eixo principal da estria que porventura tenham perdido." 37 A necessidade de se criar uma linguagem prpria para a TV, que a diferenciasse do rdio, fez com que o novo veculo procurasse referncias no cinema e na literatura, o que fica evidenciado pelo grande nmero de adaptaes de obras literrias e filmes que frequentam as programaes das emissoras j nos seus primeiros anos de atividade.

37

ORTIZ, Renato e outros. op. cit. p. 32.

Neste captulo, veremos que as adaptaes comeam na televiso atravs do teleteatro, que adapta para o novo veculo principalmente os "clssicos da literatura internacional" previamente adaptados para o cinema. Esse no ser o modelo adotado de imediato pelas primeiras telenovelas, que consistem basicamente em

adaptaes de romances brasileiros e histrias originais escritas por bem-sucedidos autores de radionovelas. A partir de 1954, tanto as adaptaes de obras brasileiras quanto as telenovelas de inspirao radiofnica praticamente desaparecem do vdeo. Num caso, porque o romance brasileiro, ao contrrio do estrangeiro, raramente dispunha de um verso cinematogrfica que facilitasse o trabalho dos adaptadores,

inexperientes na transformao das narrativas literrias em imagens. No outro, porque o modelo radiofnico revela-se inadequado ao novo veculo, voltado para um pblico ainda bastante restrito e elitizado. Assim, as telenovelas passam a constituir-se principalmente de adaptaes de clssicos estrangeiros -voltados tanto para o pblico feminino e adulto quanto para o pblico infanto-juvenil-, adotando o modelo do teleteatro. Este captulo mostra que essa correo de rumos verificada no mbito da telenovela est diretamente associada inexperincia dos primeiros profissionais da televiso no trabalho de criar imagens diretamente a partir da obra escrita. Dessa forma, a adaptao de obras estrangeiras geralmente no se faz diretamente do texto literrio, mas atravs de verses previamente realizadas para o cinema. A existncia de uma verso cinematogrfica facilitava muito o trabalho dos profissionais, que encontravam no filme dilogos prontos e cenas decupadas, alm de referncias para a caracterizao dos personagens e para a criao de cenrios. Isso era extremamente til para os adaptadores e diretores que chegavam

televiso sem saber como contar uma histria atravs de sons e imagens registradas por cmeras de televiso. medida que a dcada de 50 avana, esses profissionais ganham maior domnio sobre o novo veculo. Por outro lado, no final da dcada h uma conjuntura de valorizao da cultura brasileira tanto no teatro quanto no cinema, o que se traduz em peas e filmes que procuram abordar temas nacionais. A tenso entre a cultura nacional e a estrangeira, verificada em outras reas da cultura, afetar tambm a televiso. Essa tenso repercute nas telenovelas e traduz-se na polarizao de uma produo "alienada", calcada na adaptao de obras estrangeiras, e uma produo "nacional", que valoriza a representao de temas e personagens do cotidiano brasileiro e adaptaes de obras da literatura local. nesse momento que se fica ntida a oposio entre nacional e estrangeiro que atravessar a histria da televiso brasileira. Assim, a predominncia das adaptaes de textos estrangeiros nesses primeiros anos est menos associada a uma "alienao" dos profissionais de televiso do que de sua falta de domnio da linguagem do veculo, o que os levava a privilegiar obras Isso literrias coloca que um j fato tivessem novo passado a por um do trabalho gnero, de que desse

"imaginao".

para

histria

frequentemente aponta a telenovela Beto Rockfeller como marco inicial

impulso de aproximao do universo ficcional da TV com a realidade brasileira. Como veremos, esse impulso j est presente desde os anos 50. 1.2 O te le tea tro e as adap tae s de cl s sico s inter nac iona is As primeiras adaptaes para a televiso datam de 1952, ou seja, menos de dois anos depois da primeira emisso de TV no Brasil. Nesses primeiros anos, elas concentraram-se no teleteatro, que adaptou com sucesso principalmente obras da

literatura internacional. O repertrio do teleteatro inclua tanto peas teatrais clssicas de Sfocles e Shakespeare quanto obras de autores contemporneos como Tennessee Williams, Bernard Shaw, Ionesco e Gore Vidal. Tambm eram frequentes as adaptaes de romances de autores do sculo 19, como Charles Dickens, Victor Hugo e Balzac e de autores contemporneos, como Hemingway e Faulkner. Clssicos infanto-juvenis de Mark Twain, Julio Verne e Kipling tambm frequentaram esse tipo de programa, geralmente exibido nos horrios de maior audincia das emissoras. Alm dos espetculos baseados em obras de autores consagrados da literatura, havia vrios espetculos baseados em obras de escritores cuja fama fora adquirida no exatamente por suas produes literrias, mas pelas adaptaes que elas receberam em filmes de Hollywood. o caso de Theodore Dreiser, Daphne du Maurier e Margaret Mitchell, respectivamente famosos pelas verses para o cinema de Uma Tragdia Americana (que deu origem ao filme aqui intitulado Um Lugar ao Sol), Rebeca e E o Vento Levou, obras adaptadas para o teleteatro e tambm para telenovela. Calcados em clssicos da literatura adulta e infanto-juvenil e em filmes de grande sucesso, o teleteatro angariou prestgio entre o pblico ainda restrito da televiso, considerada nos anos 50 como veculo de elite38. Esse prestgio junto aoA expresso foi utilizada por Eugnio Lyra Filho, crtico da revista Radiolndia que, em texto da edio de 5 de janeiro de 1957, afirma que no ano anterior "a TV logrou marcar, finalmente, alguns xitos populares, confirmando que no constitui apenas uma veculo das elites, mas uma forma de diverso e de informao que j atinge a todos indistintamente, da zona sul ou da zona norte, de maiores ou de menores possibilidades financeiras"; a revista Manchete de 1. de janeiro de 1955 publicou a seguinte nota: "Carlos Lacerda foi o responsvel, em 1954, pelo maior ndice de presena diante dos aparelhos receptores de televiso de So Paulo (...) Conseguiu auditrios nunca vistos e se tornou responsvel, sem dvida, pela difuso da TV entre as camadas mais modestas da populao, despertando nelas, inclusive, o desejo de adquirir (a prestao) os carssimos aparelhos cujo desfrute, at ento, era exclusivamente privativo de ricaos." Em junho de 1956, segundo dados do IBOPE, h 583.192 unidades familiares em So Paulo, sendo que 139.966 (24%) tm TV e 443.126 (76%) no dispem do aparelho; entre os que tm TV, 37% so da "classe rica", 57% da "classe mdia" e 6% da "classe pobre", categorias utilizadas pelo prprio instituto.38

pblico e dentro das emissoras fica evidente pelo fato de ocuparem horrios de grande audincia -principalmente horrios noturnos e fins de semana- e por estarem presentes em todas as emissoras em funcionamento no Rio e em So Paulo.39 Nos anos 50, a Tupi de So Paulo, lder de audincia, produziu vrios

programas, como o "Teleteatro GM", o "TV de Comdia", o "Teatro da Juventude", voltado para o pblico infanto-juvenil, alm do "Teatro de Vanguarda". Este programa, que mais tarde seria rebatizado como "TV de Vanguarda", foi o mais conhecido, prestigioso e prdigo, apresentando entre 1952 e 1967 cerca de 400 espetculos, a maioria baseada em obras literrias40. O grande nmero de programas contrasta com o elenco restrito de adaptadores e diretores, que frequentemente eram a mesma pessoa. No raro, o adaptador-diretor tambm atuava. Alguns profissionais eram responsveis por vrios programas, como o caso de Tatiana Belinky e Jlio Gouveia, que em alguns momentos responderam por cinco programas diferentes na Tupi de So Paulo. Exibidos ao vivo em espetculos com at quatro horas de durao, a realizao desses teleteatros justifica o adjetivo "herico" frequentemente atribudo aos primeiros profissionais que chegaram televiso. Foi atravs do teleteatro que

profissionais provenientes do rdio, do teatro e do cinema entraram em contato com a televiso e comearam a estabelecer uma linguagem prpria para o novo veculo. Esse tipo de programa, que em geral consistia na encenao de um espetculo completo a cada exibio, respondeu pela maior parte da produo ficcional da TV na sua primeira dcada de existncia. Foi no teleteatro que atores39

Em 1957, estavam no ar o "Teatro Philco", na TV Rio, o "Teatro Gebara", na Tupi do Rio, o "Teatro de Variedades Moinho de Ouro" e o "Teledrama Trs Lees", na TV Paulista, o "Teatro de Cacilda Becker", na Record, o "Teleteatro GM", na Tupi de So Paulo, alm de alguns teleteatros dedicados ao pblico infanto-juvenil, como o "Teatro da Juventude", exibido pela Tupi e o "Teatro de Variedades Unio e Caboclo", na Record. Em todos eles prevalecia a mesma frmula: adaptaes de obras estrangeiras. 40 O nmero citado por Flvio Luiz Porto e Silva e Edgard Ribeiro de Amorim na pesquisa "A Histria da Telenovela", realizada no IDART, que inclui um estudo bastante completo sobre o teleteatro nas emissoras paulistas nos anos 50 e 60.

aprenderam a representar diante de cmeras de televiso e diretores e adaptadores comearam a construir um modo de contar histrias via TV. Breves currculos de alguns pioneiros do uma idia do trnsito desses profissionais pelo rdio e, indiretamente, pelo cinema antes de chegarem televiso. Antes de dirigir o "Teatro de Vanguarda", Otvio Gabus Mendes realizava na Rdio Difusora o programa "Grande Teatro Tupi". O programa, que consistia na representao radiofnica de textos literrios, emprestaria o modelo e at o ttulo para o programa mais tarde dirigido na Tupi de So Paulo por Cassiano Gabus Mendes, filho de Otvio. Na mesma Rdio Difusora, Walter George Durst dirigiu "Cinema em Casa", que transpunha para o rdio

scripts

de

sucessos

cinematogrficos. A histria de Ivani Ribeiro muito parecida. Antes de se tornar uma bem-sucedida escritora de telenovelas, trabalhou com Durst no programa "Cinema em Casa" e posteriormente, na Rdio Bandeirantes, em "Cinema em seu Lar", programa com as Difusora41. Esses profissionais, portanto, levavam para a televiso uma prtica mesmas caractersticas daquele exibido pela Rdio

desenvolvida no rdio. No novo veculo, a referncia cinematogrfica adquiria importncia ainda maior, uma vez que o programa de televiso e o filme tm a imagem em comum. Assim, para o adaptador, a existncia de uma verso cinematogrfica de uma obra literria representava uma enorme economia de tempo e trabalho. Alm de fornecer os dilogos j elaborados e as cenas j

41

curioso notar que os primeiros ttulos adaptados para o "Teatro de Vanguarda" haviam sido anteriormente adaptados para o rdio. o caso de O Julgamento de Joo Ningum, primeiro espetculo do programa veiculado em 17 de agosto de 1952 pela TV Tupi de So Paulo; baseado em conto publicado na revista "Mistrio Magazine", a obra de V. Sarr tinha sido adaptada para o rdio em 1951 por Dionsio Azevedo, responsvel tambm pela adaptao para a TV; o mesmo aconteceu com Crime Sem Paixo, de Ben Hecht, adaptado por Walter George Durst para a Rdio Difusora em outubro de 1951 e para o "Teatro de Vanguarda" em 1952.

decupadas, o filme oferecia solues para a caracterizao dos personagens, construo da cenografia e cortes de cenas. Pressionados pelo pouco tempo para a adaptao, realizao de ensaios e construo de cenrios para esses espetculos, que eram levados ao ar

semanalmente ou quinzenalmente, os adaptadores

frequentemente tomam como

referncia direta os filmes, como atesta Walter George Durst: "Quando a gente fazia uma transposio dos clssicos da literatura mundial, tipo () Sinfonia Pastoral, de Andr Gide (...), no fundo a gente estava copiando algum filme () No tnhamos outros modelos e s aos poucos fomos descobrindo o que se podia fazer mais especificamente, como se podia utilizar com personalidade prpria uma cmera de televiso. () Na verdade -sem muita conscincia- estvamos criando as formas de televiso mais bsicas." 42 A importncia que a referncia cinematogrfica assumia nos primeiros anos da televiso explica, em parte, por que os teleteatros concentraram-se sobretudo

em textos estrangeiros e raramente adaptaram obras de autores brasileiros como Jorge de Lima, Guimares Rosa e Martins Pena, que no dispunham de verses para o cinema. Isso se confirma ao observarmos que no final da dcada de 50, quando os profissionais adquirem maior familiaridade com os novos equipamentos e tm maior domnio sobre as possibilidades expressivas da televiso, as adaptaes de obras brasileiras tornam-se mais frequentes tanto no teleteatro quanto na

telenovela. Durst explicita o motivo da preferncia por obras estrangeiras em outro depoimento: "Adaptar um romance brasileiro era mais complicado. No 'Mistrio

Magazine', os contos tinham no mximo cinquenta pginas, estava lido e pronto. O

42

Depoimento de Walter Geroge Durst ao IDART, So Paulo, em novembro de 1976.

romance brasileiro, no, tinha trezentas pginas. Acho que foi um pouco por isso, pelo tempo. () Quando tinha um pouco mais de tempo, a gente fazia romance brasileiro, da saa melhor. A gente sentia que estava mais perto, que o ator sabia interpretar, no era uma coisa to falsa quanto uma histria da Agatha Christie."43 O depoimento coloca um elemento novo: o fato de haver uma produo industrial de histrias estrangeiras, o que no ocorria com as brasileiras,

diretamente associadas a longos romances. Durst aponta tambm para uma tenso que se tornar constante na histria da televiso brasileira: aquela criada pela necessidade de afastar a televiso cada vez mais da "falsidade" das histrias estrangeiras e aproxim-la da "verdade" nacional. Essa tenso, como veremos, vai se tornar mais clara no final da dcada de 50. Por enquanto, os profissionais estavam demasiadamente preocupados em aprender a lidar com o novo veculo. Mesmo os adaptadores que chegaram TV atravs do teatro tinham o cinema como referncia. Tatiana Belinky, que realizou um teleteatro baseado em A Bela e a Fera, conta que sua verso reproduzia recursos cnicos do filme de Jean Cocteau, como aquele em que braos fazem as vezes de candelabros no corredor do castelo habitado pela fera. Manoel Carlos, outro pioneiro da televiso que tambm comeou no teatro, reconhece o cinema como fonte de inspirao, tendo inclusive fornecido o vocabulrio tcnico utilizado na televiso: "No comeo a gente usava ainda fade-in, fade-out, close-up, medium shot, todos os termos do cinema, depois ns fomos mudando isso. Se voc pegar adaptaes minhas, como devem ser do [Walter George] Durst, como deviam ser as do Syllas [Roberg] e as do [Alvaro] Moya, voc vai encontrar o script todo decupado e com sonoplastia determinada." 44

43 44

Depoimento de Walter George Durst concedido a mim em So Paulo em 14/11/1994. Depoimento de Manoel Carlos concedido a mim em novembro de 1994.

A literatura, portanto, chega TV principalmente atravs de

adaptaes

anteriormente realizadas para o cinema. s vezes, a partir de adaptaes de scripts radiofnicos que, por sua vez, j eram adaptaes de um filme. Ou seja, estamos diante de um processo de adaptao em segundo ou terceiro grau. Esse modelo seria gradativamente adotado pela telenovela, aps uma breve experincia na transposio de radionovelas e romances brasileiros para o vdeo. A alterao pode ser creditada ao sucesso do teleteatro e tambm ao fato de que os profissionais do teleteatro eram praticamente os mesmos da telenovela, o que implicava transferncia de experincias de um gnero a outro. A experincia acumulada com o teleteatro seria definitivamente transferida para a telenovela a partir de meados da dcada de 60, quando o teleteatro comea a desaparecer da programao das emissoras e a telenovela assume a posio de principal produto de fico da TV. Walter George Durst, Cassiano Gabus Mendes, Dionsio Azevedo, Geraldo Vietri, Syllas Roberg e Manoel Carlos, que comearam na televiso adaptando e dirigindo teleteatros, passam a produzir telenovelas.

1.3 As primeira s te le nove la s ad apta da s Ao contrrio do que ocorre no teleteatro, as primeiras telenovelas adaptadas privilegiam obras de autores nacionais. Sem dispor de verses cinematogrficas anteriores, constituem-se como as primeiras adaptaes realizadas diretamente para a televiso, sem intermediao do cinema. Helena, de Machado de Assis, foi a primeira adaptao de texto literrio realizada na TV brasileira, em 1952. O papelttulo foi interpretado por Vera Nunes, famosa por estrelar dois filmes ento recmproduzidos pela Maristela, Presena de Anita e Suzana e o Presidente, ambos de

1951. Jos Renato, que mais tarde dirigiria o Teatro de Arena em sua primeira fase,

era o diretor da telenovela. O diretor de TV era Antonino Seabra, profissional de rdio no Rio de Janeiro, que se mudou para So Paulo para trabalhar na TV Paulista. semelhana do que ocorria no teleteatro, profissionais oriundos do rdio, do teatro e do cinema participaram da telenovela, exibida em dois captulos semanais de pouco mais de vinte minutos de durao. A apresentao de Helena marcou o incio das operaes da TV Paulista e deu origem a uma srie de telenovelas que ocuparam o mesmo horrio, intitulado

"Romance Brasileiro", abandonado pela emissora depois da exibio de Diva (1952), Casa de Penso (1952) e Senhora (1953). Apesar da breve durao do projeto,

trata-se de uma primeira tentativa de adaptao sistemtica de romances brasileiros para telenovelas. A experincia seria repetida vinte e trs anos mais tarde, na Rede Globo. Curiosamente, Helena e Senhora seriam os romances escolhidos para dar incio srie de adaptaes de obras brasileiras que a Globo comeou a veicular em 1975, srie que permaneceria no ar durante sete anos. A brevidade da experincia pioneira da TV Paulista pode ser explicada pelas condies de produo da telenovela, muito semelhantes s do teleteatro. Os mesmos profissionais -atores, diretores, atores, cenografistas, cmeras-

trabalhavam nesses dois tipos de programa, que eram inclusive gravados nos mesmos estdios.45 Como vimos, a exiguidade de tempo para escolher uma obra, adapt-la, ensai-la, providenciar figurinos e cenrios foi um dos fatores que dificultou a produo de telepeas baseadas em romances nacionais. O tempo era ainda mais exguo nas telenovelas, que geralmente se estendiam por quinze ou vinte captulos apresentados duas vezes por semana. Exibidas ao vivo, precisavam ter os

45

No caso da TV Tupi de So Paulo, todos os programas da emissora eram produzidos em apenas trs estdios, obrigando a montagem e desmontagem dos cenrios a cada apresentao

cenrios remontados a cada apresentao. Todas essas dificuldades contriburam para que a TV Paulista rapidamente abandonasse o projeto "Romances Brasileiros". O depoimento de Mrcia Real, que interpretou Aurlia Camargo na primeira verso de Senhora para a televiso, revela a falta de recursos para garantir o mnino de "naturalismo" adaptao: "Senhora era uma pea de poca, inclusive eu usei pra casar, pra Aurlia Camargo casar, eu usei o meu vestido de noiva () os sapatos com tudo, porque ningum dava nada.() Voc tinha uma tapadeira () de um metro, que era um cenrio. Ali voc botava uma pianola que voc ia buscar na Casa Teatral (). Quando voc no tinha mesmo o que vestir, voc ia l na Casa Teatral alugar aquelas roupas horrveis, horrorosas, mas era aquilo. A noutro cenrio, noutra tapadeira de um metro, voc botava um sof e uma poltrona, ento era uma sala, era uma sala de visitas de Aurlia Camargo."46

O depoimento indica a precariedade das condies de produo e as dificuldades de se criar uma ambientao para contar a histria. O que pode parecer insignificante assume grande importncia num veculo em que os detalhes visuais so fundamentais para a constituio de sua linguagem. No entanto, as dificuldades eram ainda mais estruturais e estavam relacionadas falta de

conhecimento e experincia em contar uma histria atravs das cmeras de televiso. Miroel Silveira, que em 1954 adaptou o romance A Muralha, de Dinah Silveira de Queiroz para a TV Record, ilustra bem o fato: "Ns fazamos trs

captulos por semana. () E era uma coisa muito engraada o captulo, por exemplo, de externas. Ns no tnhamos externas. No existia externa nesse tempo. No havia tambm possibilidade de filmagem. () E as cenas de batalhas (), h a

46

Trechos de depoimento da atriz Mrcia Real srie "Histria da Telenovela", produzida pela TV Cultura em 1979.

Guerra dos Emboabas dentro da Muralha, ns tivemos como

nico recurso

convidarmos a autora, que veio do Rio de Janeiro e contou a Guerra dos Emboabas num captulo especial, que era uma entrevista. () Havia uma inexperincia total."47

A referncia impossibilidade de filmagem revela o apego aos padres de representao do cinema que, disponveis, resolveriam o problema da adaptao. O depoimento mostra mais: a inexistncia de um inventrio de procedimentos que

dessem conta de transpor elementos do livro para a TV. Hoje sabemos que, diante da impossibilidade de reproduzir cenas de batalhas, as informaes sobre a guerra poderiam ser levadas ao telespectador, por exemplo, atravs de dilogos entre os personagens. Esse tipo de soluo estava longe de ser bvia na poca, a ponto de a autora da obra ser convocada para invadir o discurso ficcional e relatar o que narrado no livro com sua autoridade de escritora. Paralelamente aos romances brasileiros, algumas adaptaes de contos e romances norte-americanos aconteceram em So Paulo e no Rio. Em 1953, a TV Rio e a Paulista exibem telenovelas baseadas num mesmo conto de Edgar Allan Poe, Corao Delator ("The Tell-Tale Heart"). O original de Allan Poe consiste

basicamente de uma situao: um assassino procura ocultar um cadver durante a visita de policiais ao local do crime. O conto, narrado em primeira pessoa, antes um exerccio de construo psicolgica de um personagem do que uma histria baseada numa sucesso de acontecimentos. Diante da conciso do original, fica difcil imaginar como o adaptador conseguiu transform-lo em uma histria de

vrios captulos. O romance A Casa das Sete Torres, de Nathaniel Hawthorne, foi adaptado tambm em 1953 pela Tupi do Rio. Os dois ttulos, que apresentam histrias de suspense e mistrio ambientadas no nordeste dos Estados Unidos no

47

Depoimento de Miroel Silveira ao IDART, s/d.

sculo passado, destoam bastante do tipo de histria privilegiado pelas telenovelas atuais e nos do idia de como essas primeiras telenovelas diferem das que conhecemos hoje. Embora as adaptaes de obras literrias se faam presentes nas primeiras telenovelas, o que prevalece nesses primeiros anos so as telenovelas originais, com textos escritos especialmente para o vdeo, e aquelas adaptadas de radionovelas. De 1951 a 1953, h registro de pelo menos 22 telenovelas originais exibidas em So Paulo e no Rio escritas por Walter Forster, Jos Castellar, J. Silvestre, Dionsio Azevedo e Pricles Leal, todos provenientes do rdio. O fato dessas primeiras telenovelas serem escritas por autores de radionovelas sugere que a passagem de uma forma de fico seriada a outra foi considerada a princpio como "natural" pelas emissoras de televiso. De fato, a radionovela era o modelo mais imediato de fico seriada. Era na produo dessas narrativas radiofnicas que existia a prtica dos cortes de captulos e da criao de "ganchos" que atrassem o pblico para a continuao da histria. Alm disso, a passagem da radionovela telenovela tambm foi vista como "natural" pelo fato de as emissoras de televiso pertencerem a grupos proprietrios de estaes de rdio. Assim, as estaes de TV tinham disposio a experincia dos escritores de radionovelas na produo de histrias em captulos.48 Esses fatores explicam por que num primeiro momento a influncia do rdio sobre a telenovela foi bastante mais direta do que sobre o teleteatro, mais prximo do espetculo

cinematogrfico e teatral, uma vez que cada apresentao consistia em uma histria completa.

48

importante notar que as emissoras de televiso pertenciam aos mesmos grupos proprietrio de rdios, como as Associadas, que em So Paulo tinham a rdio Tupi e a Difusora e, no Rio, tinham a rdio Tupi; a TV Paulista era do mesmo grupo da Rdio Paulista.

No entanto, a aproximao dessas telenovelas com a linguagem e as temticas das radionovelas desagradou o pblico da televiso, que, como vimos, era bastante restrito e elitizado. A inadequao foi frequentemente apontada pela crtica, que ao longo de toda a dcada de 50 cobrou da televiso uma linguagem prpria, que a diferenciasse do rdio49. As emissoras perceberam a situao e mudaram de orientao a partir de

1954, quando a telenovela abandona a inspirao radiofnica. Da mesma forma, as dificuldades para a adaptao do romance brasileiro fez com que se recorresse cada vez mais a obras estrangeiros. Assim, a partir de 1954, depois dessas primeiras iniciativas, a telenovela adota o modelo institudo com sucesso no teleteatro: a

49

A adoo da linguagem radiofnica pela televiso est em pauta durante toda a dcada de 50 e frequentemente apontada pela crtica especializada. No suplemento "Pensamento e Arte" do Correio Paulistano de 16/11/1952, a questo apontada na coluna "Rdio & Televiso": "A televiso em So Paulo, exceto vrias realizaes, que por sinal de grande envergadura e valor artstico, superando mesmo o prprio teatro, tem seguido as mesmas pegadas iniciais do nosso cinema: est apresentando o rdio pela televiso. Rdio uma coisa; televiso outra muito diferente; mesclados no chegam a ser nem uma coisa nem outra (...). Uma prova evidente dada por vrios artistas que esto tendo grande projeo na TV e que nunca trabalharam em rdio. Por outro lado, veteranos do rdio ou fracassaram ou resistem e continuam fracassando, porque no se adatam ao vdeo. H intrpretes masculinos e femininos que no rdio so insuperveis. No entanto, na televiso nada conseguem." Como se v, a preocupao e a conscincia de que se deve distinguir os dois veculos j aparece em 1952. Essa preocupao permanece at o final da dcada, como se pode observar a seguir. O colunista Eugnio Lyra Filho, escreve na ltima pgina da Radiolndia de 27/08/1957: "A televiso sabe que, sem boa imagem, nenhum espetculo ser bem visto, muito menos bem aplaudido. E, por isso, a televiso progride rapidamente -e rapidamente vai conquistando pblico, prestgio, base econmica. Trs decnios de atividade, porm, no trouxeram ao rdio essa mesma preocupao tcnica que tem sido uma constante neste primeiro lustro de atividades da televiso." A diferenciao entre a linguagem da TV e do rdio tambm era cobrada constantemente atravs de broncas dos colunistas, como esta publicada em 11/05/1957 tambm na Radiolndia: "Silveira Lima est fazendo televiso, isso sabido. Mas, pergunto daqui: televiso mesmo? Seu programa dos domingos rdio, mas rdio l de `Deus me livre'. Est muito ruim, meu caro. Pode ser que esteja `tudo premiado', menos o programa." Na edio de 25/05/1957 da mesma revista, aparece outra nota, assinada por Paulo de Oliveira, que mantinha uma pgina semanal intitulada "TeVelndia - Rio": " preciso acabar com esta mania de fazer rdio em televiso. Nesse erro incorre principalmente a Tupi, que pega os seus cantores, coloca uma cortina em fundo e tome musical! Alm de ser um desprestgio para o cantor, muita vez decepciona o telespectador." Em outra nota publicada na Radiolndia de 29/11/1958, escreve-se a propsito da adaptao do romance ramos Seis: "(...) o conhecido novelista de rdio (Ciro Bassini) se ressente ainda de falta de conhecimento da linguagem especfica de TV, conforme se nota pelos contnuos desfoques que marcam a passagem de tempo, e, em vrias cenas, a falta de determinao prvia do local e dos movimentos de cada ator em cena."

adaptao de "clssicos internacionais". Essas adaptaes de obras estrangeiras vo se concentrar sobretudo em clssicos da literatura infanto-juvenil e romances romnticos, voltados para o pblico feminino.

1.4

F bula s e av en tura para o pb lico infa n to-ju ven il Tatiana Belinky e Jlio Gouveia do incio, em 1952, a uma longa srie de

adaptaes voltadas para o pblico infanto-juvenil. Entre 1952 e 1963, Tatiana adaptou e Jlio dirigiu centenas de teleteatros e dezenas de telenovelas baseadas em clssicos da literatura infanto-juvenil. A dupla tambm produziu a primeira verso para a TV de O Stio do Pica-Pau Amarelo. A srie, baseada em obras de Monteiro Lobato, estreou em 1952 e foi precursora dos programas de TV com objetivos educacionais.50 A estria da dupla na fico seriada aconteceu em agosto de 1954, com As Aventuras de Pinocchio, que marcou o incio de um perodo de intensa produo de fico seriada voltada para o pblico infanto-juvenil. Com 40 captulos, o programa baseado na obra do italiano Carlo Collodi considerado por Flvio Porto e Silva como a primeira telenovela de longa durao da televiso paulista.51 No entanto, Tatiana Belinky rejeita o termo "telenovela" para designar esse programa e outros por ela adaptados sob o argumento de que telenovela "marca passo", ao contrrio do que ocorria com suas histrias, que seguiam o ritmo das

obras originais. Esses programas, de fato, no obedeciam a um nmero padro de50

A participao regular de Belinky e Gouveia na televiso comeou em abril de 1952, com a estria de "Fbulas Animadas", programa que a princpio encenou fbulas como "Chapeuzinho Vermelho", "A Raposa e as Uvas", "A Cigarra e a Formiga" em uma nica apresentao; a estria de O Stio do Pica-Pau Amarelo aconteceu em junho de 1952, e o programa exibido ininterruptamente at setembro de 1956; volta a ser exibido em 1958 e fica no ar at meados de 1963. 51 PORTO E SILVA, Flvio Luiz e AMORIM, Edgar Ribeiro. Pequisa citada.

captulos e podiam variar entre trs e vrias dezenas de captulos, de acordo com as possibilidades oferecidas pelas histrias originais. Diferente da maioria dos adaptadores e diretores diretamente filiados ao

rdio e ao cinema, Tatiana Belinky e Jlio Gouveia chegam televiso atravs do teatro52. Apesar da formao teatral, Tatiana Belinky revela sua preocupao precoce em no fazer teatro filmado, mas televiso: "Os seriados eram j adaptados para estdio. No eram teatro filmado. Eu fazia o script , o roteiro, j pensando nas cmeras, na sonoplastia Era uma coisa to criativa, que voc no faz idia do que ns fizemos com trs cmeras e um girafinha. () Naquele tempo voc tinha que inventar um jeito, porque teatro infantil e juvenil tm muita trucagem, muita magia." 53 Entre as trucagens realizadas nesses programas, sempre transmitidos ao vivo, Tatiana cita o episdio de "Os Dez Mandamentos" em que a abertura do mar para a passagem dos egpcios foi filmada e sobreposta imagem ao vivo dos atores que interpretavam os egpcios passando por entre as guas que se abriam. A passagem de Tatiana Belinky e Jlio Gouveia pela televiso constitui um captulo parte na histria do veculo. Os dois trabalharam catorze anos na TV Tupi de So Paulo sem contrato e com autonomia para fazer o que quisessem. Nesse tempo, produziram adaptaes de livros que eles prprios escolhiam, sem qualquer interferncia da emissora ou dos patrocinadores. Vrias das obras adaptadas por

52

A partir de uma apresentao de Peter Pan, no Teatro Municipal de So Paulo, em 1948/49, a dupla passou a apresentar com o grupo do TESP (Teatro Escola de So Paulo), dirigido por Jlio Gouveia, espetculos infantis em teatros da prefeitura. O convite para a televiso viera em 1951, quando Ruggero Jaccobi, um dos fundadores do TBC e ento diretor da TV Paulista, convidou Tatiana e Jlio para fazer uma apresentao para crianas na TV Paulista. O grupo de amadores do TESP exibiu duas cenas baseadas em Monteiro Lobato: "A Plula Falante" e "O Casamento de Emlia". Em seguida veio o convite da Tupi de So Paulo para montar um teatro de Natal para o pblico infantil e, em 1952, o convite para um programa regular na mesma emissora, o "Fbulas Animadas". 53 Depoimento de Tatiana Belinky concedido a mim em novembro de 1994.

Tatiana Belinky eram bastante conhecidas, mas muitas faziam parte do seu repertrio pessoal, lidas na infncia passada na Rssia, de onde emigrou para o Brasil. Em mais de uma ocasio Tatiana Belinky traduziu para o portugus obras que ela adaptara para o vdeo a partir do original estrangeiro: "Aconteceu um par de vezes porque as editoras pediam. Angelika eu traduzi e saiu. () O Pablo, o Indio saiu numa coleo da Brasiliense, uma coleo juvenil, `Jovens do Mundo Todo'. No me lembro se foi depois ou antes [do programa de televiso] () Eu traduzi do alemo o Pablo, o Indio, Angelika e acho que Serelepe." Obras conhecidas tambm eram encenadas, como Pollyana, um grande sucesso da dupla que j havia sido traduzida no Brasil por Monteiro Lobato. Alis, Monteiro Lobato, que foi amigo do casal, uma figura-chave para se compreender o trabalho realizado por Belinky e Gouveia. Alm de transporem para a televiso a obra infantil do escritor, compartilharam com Lobato o empenho em divulgar a leitura e o livro. Assim, todos os programas produzidos por eles em mais de dez anos de televiso eram adaptaes de obras literrias ou dramatizaes de fatos histricos e invariavelmente comeavam com um narrador, interpretado por Jlio Gouveia, retirando um livro da estante: "O importante, a inteno nossa era promover a leitura, promover o livro. Entrava a mo do narrador, tirava o livro, a cmera afastava, ele abria o livro, dizia o nome, o ttulo, o nome do autor, uma informaozinha rpida e comeava a ler. Da, da leitura, passava para o espetculo. Isso tanto no Stio do Pica-Pau Amarelo, como na minissrie, como no "Teatro da Juventude". Sempre comeando com o livro e acabando com o livro." 54

54

Idem nota anterior.

Outra particularidade do trabalho de Tatiana Belinky consiste no fato de que suas adaptaes eram sempre realizadas a partir do texto literrio, e no atravs de

scripts de filmes, ainda que estes pudessem servir de referncia para as encenaes.Alm disso, a adaptadora estabeleceu um caminho de mo dupla entre a televiso e o mercado editorial, introduzindo em ambos os espaos ttulos de livros que no eram obrigatoriamente os fornecidos pelo cinema ou pelo rdio. Ou seja, o seu processo de adaptao mantm relao mais direta com o texto literrio do que o de outros adaptadores do mesmo perodo, para os quais a relao era frequentemente intermediada por outros veculos. As produes de Jlio Gouveia e Tatiana Belinky dariam o tom da programao da Tupi paulista. A partir de 1955, a emissora passa a exibir tambm s quartas e sextas s 20h30 histrias seriadas baseadas em romances de aventura, como Oliver Twist (1955), Kim (1955), Miguel Strogoff (1955), Os Irmos Corsos (1955), O Conde de Monte Cristo (1956), Os Trs Mosqueteiros (1957) e O Corcunda de Notre Dame (1957). Essas adaptaes so realizadas por profissionais como Dionsio Azevedo, J. Silvestre e Jos Castellar, que deixavam de produzir telenovelas originais para dedicar-se a essas adaptaes. Outras emissoras tambm passaram a produzir programas nos mesmos moldes. Na Record, Ciro Bassini adaptou vrias obras de A.J. Cronin, como Anos de Ternura (1958), Anos de Tormenta (1958), Apenas uma Iluso (1958) e A Cidadela (1959), esta ltima tambm exibida na Tupi do Rio em 1959. Ainda em 1958, Tatiana Belinky adaptou O Jardineiro Espanhol, de Cronin, para a Tupi, numa telenovela intitulada Nicholas. Na TV Paulista, Lbero Miguel adaptou duas obras de Dickens, David Copperfield (1958) e Os Irmos Dombey (1959). Assim, o trabalho desenvolvido por Belinky e Gouveia influenciou a programao da prpria Tupi e de outras emissoras, que passaram a investir em

novelas voltadas para o pblico infanto-juvenil, que responderam por grande parte da produo do perodo 1954-1963. Walter George Durst, em depoimento de 1960, faz referncia ao fato ao falar sobre as alteraes que promoveria na programao das emissoras: "Eu procuraria urgentemente recuperar o telespectador adulto que, presentemente, afastou-se da TV em favor do pblico infantil, limitando as programaes infantis no mximo at s 18h, e me proibindo, inclusive, de perturbar a digesto da crianada."55 1.5 H is tria s ro mn tic as para o p blic o adu lto No perodo 1954-1959, so realmente poucas as telenovelas adaptadas em So Paulo dirigidas ao pblico adulto. As obras adaptadas so, em sua maioria, romances romnticos invariavelmente calcados em personagens femininas

submetidas a grandes privaes e sofrimentos e cujo objetivo final o casamento. Assim, as triangulaes so constantes, havendo sempre uma terceira pessoa, virtual ou no, colocando-se como ameaa realizao do amor. Jane Eyre -que teve duas verses no Rio, em 1954 e 1955- e Rebeca (1958) so emblemticas das histrias privilegiadas pelas telenovelas da poca. J se aventou a possibilidade de Daphne du Maurier ter plagiado Charlotte Bronte. As histrias, de fato, so extremamente parecidas. Em ambas, o fantasma de uma mulher impede a efetivao do casamento. Enquanto em Jane Eyre o casamento impedido pela revelao de que o homem amado pela protagonista fora casado

com outra mulher, que ainda vive, em Rebeca o casamento se consuma, embora o fantasma da primeira mulher atormente a plenitude das bodas de Maxim de Winter e sua nova mulher.

In: "Walter George Durst desabafa e fala sobre a TV brasileira", revista Nossa Voz, 14/07/1960.55

O impedimento realizao do amor pode tambm ser representado por fatos histricos que atribuem carter pico aos romances. assim em Mulherzinhas, E o Vento Levou e Dr. Jivago. Nos dois primeiros casos, o melodrama status de painel de poca ao apresentar como pano de fundo a Guerra Civil norte-americana, ainda que os dois romances se situem em fronts diferentes, o de Louisa May Alcot se passa no nordeste dos Estados Unidos e o de Margaret Michell ambientado no sul do pas. Em Dr. Jivago, a Primeira Guerra que possibilita o encontro entre um

mdico casado, Yuri Zhivago, e Lara, que se tornam amantes. Nesse caso, a Revoluo Bolchevique que impede a consumao do amor entre os dois. esse tipo de histria que est presente nas poucas telenovelas voltadas ao pblico adulto -e feminino- nesse perodo. So sempre histrias de amor, como sugere o nome de um horrio em que a Tupi de So Paulo apresentou Csar e Clepatra (1956), baseada na pea de Bernard Shaw. O horrio intitulava-se "Os

Grandes Amores". Entre os outros ttulos apresentados pela emissora paulista nesse perodo esto Eugnia Grandet (1956), Carolina (1957) e Um Lugar ao Sol (1959), baseadas em obras de Theodore Dreiser respectivamente intituladas Sister Carrie e An American Tragedy. Curiosamente, Eugnia Grandet ser a nica obra de Balzac a receber verso para uma telenovela. Nesse perodo, as adaptaes de obras brasileiras comparecem em menor nmero, mas quando o fazem apresentam caractersticas bastante semelhantes s dos romances estrangeiros. Em So Paulo, o romance A Muralha (1954), de Dinah Silveira de Queiroz alinha-se s histrias romnticas com pano de fundo histrico ao situar a ao durante a Guerra dos Emboabas. Restritos ao ambiente domstico e girando em torno da realizao do casamento de suas protagonistas, A Moreninha (1955) e Helena (1959, em segunda verso) so as duas obras adaptadas no Rio, respectivamente pela Tupi carioca e pela TV Rio.

Marta Klagsbrunn observa que, no Rio, a interrupo das telenovelas originais, de forte influncia radiofnica, no se mostra com a mesma evidncia do que em So Paulo: "Constatamos o aparecimento de adaptaes de obras literrias como A Cidadela, de A.J. Cronin, ou O Morro dos Ventos Uivantes, mas no constatamos o abandono da temtica nacional nem do modelo melodramtico de forma radical."56 Klagsbrunn explica o fato em parte pela atuao de Ilza Silveira, que nesse perodo escreveu pelo menos nove telenovelas para a Tupi do Rio.

Mesmo suas telenovelas originais, conforme observa Klagsbrunn, caracterizam-se pelas emoes intensas e pelos personagens extremamente estereotipados. No entanto, "diferentemente dos principais autores paulistas, J. Silvestre e Jos

Castellar, (...) [Ilza Silveira] passa pelo rdio apenas rapidamente e aps o estgio nos EUA dedica-se ao trabalho na dramaturgia televisiva".57 Mesmo em relao s produes de So Paulo, dificilmente se pode falar de um afastamento do "modelo melodramtico" diante de ttulos como Rebeca e E o Vento Levou. O que parece ter contribudo para que no Rio de Janeiro o

deslocamento das telenovelas para as adaptaes no tenha sido to radical a existncia de uma autora como Ilza Silveira, que no estava associada s radionovelas, ao contrrio do que ocorria com seus colegas paulistanos, que se viram obrigados a dedicar-se, pelo menos momentaneamente, s adaptaes.

KLAGSBRUNN, Marta e AZEVEDO, Beatriz. op. cit., p. 73. Ilza Silveira escreveu vrias telenovelas exibidas na dcada de 1950 no Rio de Janeiro. Nascida em 23 de janeiro de 1928 em Santa Maria, comeou carreira na rdio Farroupilha de Porto Alegre em julho de 1945 como atriz de radionovelas. Mais tarde foi para os EUA, onde fez cursos sobre televiso durante seis meses e, na volta, adaptou O Colar, de Guy de Maupassant para a Tupi do Rio de Janeiro. A obra de Ilza Silveira alterna textos originais, como Trgica Mentira (1959, Tupi/Rio) O Passo no Escuro e S Resta o Silncio com adaptaes de clssicos da literatura, como O Morro dos Ventos Uivantes, A Histria de Bernadette e O Dirio de Anne Frank, poca encomendada pela agncia de publicidade Thompson. Ilza Silveira morreu em 1963 num desastre de avio.56 57

1.6

A r efer nc ia c in e mato grf ica Tanto nas obras infanto-juvenis quanto nos romances voltados ao pblico

adulto observamos a convivncia de autores consagrados da literatura, como Alexandre Dumas, pai, Charles Dickens, Charlotte e Emily Bronte, Victor Hugo e Balzac, com as de autores que se tornaram conhecidos atravs do cinema, como Daphne du Maurier e o escritor norte-americano Theodore Dreiser. Essa convivncia sugere no ser propriamente o valor literrio do texto que influa na sua escolha para a adaptao. O prestgio e o sucesso que esses textos adquiriam atravs do cinema parecem ter sido o critrio mais abrangente. A hiptese se confirma quando verificamos que todos os ttulos estrangeiros adaptados para a TV, tanto os destinados ao pblico infanto-juvenil quanto aqueles voltados para o pblico adulto tinham sido anteriormente adaptados para o cinema. A nica curiosa exceo a obra de Bris Pasternak, Doutor Jivago, que recebeu verso para telenovela em

1959, seis anos antes da produo do filme, de 1965. A preocupao das emissoras em capitalizar para o programa de TV o sucesso do filme atestada por um caso ocorrido em 1956. O patrocinador da telenovela exibida s teras e quintas pela TV Paulista exigiu que os produtores adaptassem Sublime Obsesso, de Lloyd C. Douglas, que fazia carreira de sucesso nos cinemas de So Paulo. Depois de vrias discusses, os produtores dissuadiram o patrocinador, alegando que a comparao dos atores locais com Rock Hudson e Jane Wyman poderia ser desfavorvel para a telenovela. Os patrocinadores concordaram ento que fosse exibida Luz de Esperana, contanto que antes de cada captulo fosse veiculada a mensagem: "Do mesmo autor de Sublime Obsesso". Dois anos mais

tarde, em setembro de 1958, a Tupi colocava no ar Sublime Obsesso, com direo de Dionsio Azevedo. Se a comparao com os astros de Hollywood poderia ser desvantajosa para os atores da TV enquanto o filme ainda era exibido nos cinemas, isso no era sempre verdade, conforme sugere nota sobre a telenovela O Corcunda de Notre Dame, exibida pela TV Tupi de So Paulo em 1957: "Douglas Norris est tendo a melhor oportunidade de sua carreira como intrprete, no papel de Quasimodo, na telenovela de Syllas Roberg () Conforme se sabe, somente grandes atores fizeram esse papel no cinema: Lon Chaney, Charles Laughton e mais recentemente Anthony Quinn, na verso italiana, em que contracena com Gina Lolobrigida no papel de Esmeralda, papel esse que na TV feito por Lolita Rodrigues." 58 Ou seja, o fato de um ator brasileiro representar um personagem

anteriormente interpretado por um astro de Hollywood funciona como elemento de distino para o ator local. O mesmo raciocnio do redator da revista parece ter orientado os produtores na escolha dos ttulos a serem adaptados para telenovelas, que privilegiavam obras que deram origem a filmes bem-sucedidos no cinema. Assim, a referncia ao filme de sucesso funcionava como um elemento a mais de interesse e prestgio para a telenovela. O fato de se tratar de textos j decupados em cenas e que ofereciam modelos para a caracterizao de personagens e para a ambientao da narrativa certamente contribuiu para o privilgio de textos previamente adaptados para o cinema. Uma vez que todo o trabalho de "imaginao" do texto literrio j havia sido realizado na passagem para o cinema, o trabalho dos produtores das telenovelas e dos teleteatros fi