UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
JOSÉ ROBSON DO NASCIMENTO SANTIAGO
ANÁLISE SEMIÓTICA DE PIADAS COM PASSAGENS
BÍBLICAS: intertextualidade e interdiscursividade na geração de
sentidos.
JOÃO PESSOA
2009
JOSÉ ROBSON DO NASCIMENTO SANTIAGO
ANÁLISE SEMIÓTICA DE PIADAS COM PASSAGENS BÍBLICAS:
intertextualidade e interdiscursividade na geração de sentidos.
Dissertação apresentada ao programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade
Federal da Paraíba, na área de concentração
Linguagens e Cultura, sob a linha de
pesquisa Semióticas Verbais e Sincréticas,
com vistas à obtenção do título de Mestre em
Letras.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria do Socorro Silva de Aragão
João Pessoa, 2009.
ANÁLISE SEMIÓTICA DE PIADAS COM PASSAGENS BÍBLICAS:
intertextualidade e interdiscursividade na geração de sentidos.
TERMO DE APROVAÇÃO
Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade
Federal da Paraíba, na área de concentração Linguagens e Cultura, sob a linha de pesquisa
Semióticas Verbais e Sincréticas, com vistas à obtenção do título de Mestre em Letras.
Aprovada em 30 de abril de 2009.
BANCA EXAMINADORA
Profa. Dra. Maria do Socorro Silva de Aragão (Orientadora)
Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
Prof. Dr. José Américo Bezerra Saraiva (Primeiro Examinador)
Universidade Federal do Ceará (UFC)
Profa. Ivone Tavares de Lucena (Segunda Examinadora)
Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
Prof. Dr. José Wanderley Alves de Sousa (Suplente)
Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
Dedico a Juan, por ter vindo ao mundo para
equilibrar minhas atitudes e me fazer
enxergar melhor o sentido de minha
tempestuosa e divertida caminhada como
professor, pesquisador e pai.
AGRADECIMENTOS
A Deus, força maior que rege o universo e me possibilitou, como mero ser humano,
atuar no teatro da vida e me sentir capaz de investigar e descobrir, nos dizeres mais
controversos, os diálogos mais salutares.
A “Dona Bela” e “Seu Zeca” (in memorian), que me geraram, puseram no mundo e
me apontaram, cada qual a seu modo igualmente valiosos, a importância da educação escolar
e da religiosa.
A Izabel, companheira fiel e devota, por nunca duvidar de minha capacidade para
realizar trabalho intelectual algum e me auxiliar da melhor maneira possível nesta
empreitada.
Ao casal Betânia e Evandro (irmã e cunhado), pelo incentivo ao trabalho acadêmico e
pelo apoio, nas mais diferentes etapas de minha vida estudantil, profissional e pessoal.
A todos os meus familiares, que de uma forma ou de outra contribuíram para minha
formação e para um convívio fraterno e sadio.
Ao amigo, Edvaldo Germano da Hora Junior, pelas diversas piadas que contou,
proporcionando a mim e minha família belos momentos de entretenimento.
Aos colegas de mestrado Gláucio Ramos, Janice Timóteo e Samya, pela impagável
ajuda na identificação de passagens bíblicas durante a seleção do corpus deste trabalho.
Aos colegas da Escola Jordão Emerenciano, em Pernambuco, pela paciência em me
ouvir contar cada piada que analisei, durante as visitas que lhes fiz, no período de
afastamento de minhas funções como professor da Rede Pública naquele estado.
À amiga Wilma Ribeiro, por ter-me oportunizado conhecer as primeiras análises
semióticas, ao me emprestar sua dissertação para ler.
À Prof.ª Dr.ª Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista, pela oportunidade que me
concedeu de estudar Semiótica, como aluno em regime especial, e pelas brilhantes
observações que fez ao meu trabalho, no exame de qualificação.
À Prof.ª Dr.ª Herica Paiva, pelos elogios que direcionou às minhas discussões sobre
Semiótica das Culturas, nas aulas da professora Fátima, e pelas valiosas sugestões no exame
de qualificação.
À Prof.ª Dr.ª Maria Angélica de Oliveira, pelas ótimas discussões sobre gêneros
discursivos e ensino de língua materna, em suas aulas do mestrado, que me levaram a uma
melhor compreensão do gênero piada.
Ao webmaster do humortadela.uol.com.br, que me esclareceu, por e-mail, os critérios
de seu site para a publicação e categorização das piadas que disponibilizam aos internautas.
A todos os demais colegas de mestrado, com os quais dividi ótimos momentos de
aprendizado.
À coordenação e secretaria do PPGL, pela maneira acolhedora com que sempre me
trataram, mesmo quando era apenas um aspirante a aluno dessa instituição.
A todos que acreditaram no meu potencial e respeitaram meus momentos de
isolamento para redigir este trabalho e, enfim, a cada pessoa que contribuiu para a sua
redação, direta ou indiretamente, manifesto meus sinceros agradecimentos.
AGRADECIMENTO ESPECIAL
À minha orientadora
Professora Dr.ª Maria do Socorro Silva de Aragão,
pela competência com a qual conduziu as orientações para a redação deste trabalho, pela
paciência de lidar com um orientando residente em outro estado, pela atenção e tolerância
com que leu meus e-mails cheios de perguntas e desculpas, pelas referências bibliográficas
que me indicou no início das pesquisas sobre humor e pelo carinho e alegria com os quais me
tratou desde a entrevista da seleção para o mestrado até os momentos de mais dificuldade
para a conclusão desta dissertação, agradeço.
HOMENAGEM
A todo professor da rede pública de Pernambuco, porque são merecedores de uma
atenção maior e melhor das autoridades daquele estado.
São heróis da resistência, guerreiros entrincheirados, linha de frente de batalha, carne
à beira da navalha, baluartes interligados, conteúdo escondido pela aparência.
Assim são os educadores de meu estado, que se perguntam uns aos outros,
constantemente: “É possível?”.
“O senhor é meu pastor, e fica latindo a
noite inteira lá no quintal.”
Mestre Borghal1
1 Personagem da seção Cantinho da Sabedoria, da revista humorística Piadas & Charadas, publicada pela Editora Gênero.
RESUMO
Na perspectiva de apresentar um ponto de vista diferente, mas não necessariamente contrário ao de outros pesquisadores, analisamos piadas com passagens bíblicas, com o objetivo maior de descobrir o percurso gerativo de sentido desses textos, que se constituem a partir de relações intertextuais e interdiscursivas, a fim de desvelar como seus discursos significam. Para tanto, assumimos os pressupostos da semiótica greimasiana, a qual tem por objeto de pesquisa a significação, e consideramos os fundamentos das teorias do humor verbal, cunhados por Raskin, aceitando seu postulado de que se deva encarar o humor como um fenômeno multifacetado e de forma interdisciplinar. Nosso corpus foi constituído a partir de piadas coletadas em sites de humor, das quais selecionamos doze entre mais de quinhentas, categorizadas como religiosas ou de religião pelos sites pesquisados. No exame, verificamos os três níveis de geração do sentido, conforme postulam Greimas e seus seguidores: narrativo, discursivo e fundamental. Comparamos os textos humorísticos analisados às passagens bíblicas a que os mesmos remetem e verificamos as controvérsias existentes entre o discurso religioso e o discurso das piadas. Relevamos valores ideológicos relegados a segundo plano nas piadas e concluímos que ora os valores religiosos são postos nessa posição, ora não; além disso, concluímos que há textos cujo efeito de humor advém da apropriação do texto bíblico, mas em outros tal efeito pouco tem a ver com as passagens. Nesse sentido, propusemos que as piadas analisadas à luz da intertextualidade e interdiscursividade possam ser entendidas numa tipologia própria, posto que tais relações sejam determinantes para sua significação, que desvelamos aqui com base na teoria semiótica. Acreditamos, por fim, que esse trabalho possa contribuir para os estudos semióticos e para os estudos sobre o humor verbal, no sentido de apresentar uma visão mais ampla dos discursos veiculados em piadas.
Palavras-chave: piada, semiótica, discurso religioso, intertexto e interdiscurso.
RESUMÉ
Dans la perspective de présenter un point de vue différent, mais aucun nécessairement contrairement au d'autres chercheurs, nous avons analysé des plaisanteries avec passages bibliques, avec le plus grand objectif de découvrir le cours génératif de sens de ces textes que les sont constitués initial d'intertextuais des rapports et interdiscoursivité pour révéler comme leur moyenne des discours. Pour si beaucoup, nous avons assumé les présuppositions du greimasiana des sémiotiques qui a pour objet de la recherche la signification et nous avons considéré les fondations des théories de l'humour verbal, inventées par Raskin, en acceptant son postulat qu'elle devrait faire face à l'humour comme un multifacetado du phénomène et dans un chemin interdisciplinaire. Notre corpus a été constitué initial de plaisanteries rassemblées dans sites de l'humour de que nous en avons sélectionné douze parmi plus que cinq cents, classifié comme religieuses ou de religion pour les sites faits des recherches. Dans l'examen, nous avons vérifié les trois niveaux de génération du sens, comme ils postulent des greimas et leurs partisans: narratif, discursif et fondamental. Nous avons comparé les textes amusants analysés aux passages bibliques ce que les mêmes envoient et nous avons vérifié les controverses existantes entre le discours religieuse et la parole des plaisanteries. Nous avons accentué les valeurs idéologiques ont relégué pour appuyer le plan dans les plaisanteries et nous avons conclu qu'il prie les valeurs les personnes religieuses sont mises en cette place, il ne prie pas; il y a des textes dans que l'humour se produit de l'appropriation du texte biblique, mais dans autre son petit effet doit faire avec les passages. Dans ce sens, nous avons proposé que les plaisanteries ont analysé à la lumière de l'intertextualité et interdiscoursivité peut être compris dans une propre typologie, car nous croyons que les tels rapports sont décisifs pour sa signification, desvelda ici avec base dans la théorie du semeiotic. Nous croyions, finalement, que ce travail peut contribuer pour les études du semeiotic et pour les études de l'humour verbal, une vision plus large du discours a transmis dans les plaisanteries dans le sens de l'apreentar.
Mots-clef: plaisantez, sémiotiques, discours religieuse, intertextualité et interdiscoursivité.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 15
1. BASES TEÓRICAS 22
1.1 A SEMIÓTICA GREIMASIANA 22
1.1.1 O percurso gerativo do sentido 24
1.1.2 Semiótica e cultura 27
1.1.3 Semiótica e humor 32
2. PREPARANDO O CORPUS 36
2.1 TEORIAS DO HUMOR VERBAL: O CASO DAS PIADAS 36
2.1.1 A heterogeneidade no discurso das piadas 41
2.2 O DISCURSO RELIGIOSO 44
2.2.1 Discurso religioso, mídia e intertextualidade 47
3. ANÁLISE SEMIÓTICA DE PIADAS INTERTEXTUAIS 49
3.1 A PRIMEIRA PEDRA 49
3.1.1 Narrativização 50
3.1.2 Discursivização 52
3.1.3 Estrutura fundamental 54
3.2 QUEM EU SOU? 56
3.2.1 Narrativização 57
3.2.2 Discursivização 58
3.2.3 Estrutura fundamental 60
3.3 ABRAÃO E ISAAC 62
3.3.1 Narrativização 63
3.3.2 Discursivização 66
3.3.3 Estrutura fundamental 68
3.4 LÁZARO 70
3.4.1 Narrativização 71
3.4.2 Discursivização 73
3.4.3 Estrutura fundamental 75
3.5 JESUS E AS CRIANCINHAS 77
3.5.1 Narrativização 77
3.5.2 Discursivização 79
3.5.3 Estrutura fundamental 81
4. ANÁLISE SEMIÓTICA DE PIADAS INTERDISCURSIVAS 83
4.1 FÉ DEMAIS NÃO CHEIRA BEM 83
4.1.1 Narrativização 84
4.1.2 Discursivização 86
4.1.3 Estrutura fundamental 88
4.2 PROBLEMAS NA TERRA 90
4.2.1 Narrativização 92
4.2.2 Discursivização 95
4.2.3 Estrutura fundamental 98
4.3 PROFESSORA ATÉIA 100
4.3.1 Narrativização 101
4.3.2 Discursivização 104
4.3.3 Estrutura fundamental 106
5. ANÁLISE SEMIÓTICA DE PIADAS TRANSGRESSIVAS 108
5.1 CONVITE IMPRÓPRIO 108
5.1.1 Narrativização 109
5.1.2 Discursivização 111
5.1.3 Estrutura fundamental 113
5.2 AS BODAS 115
5.2.1 Narrativização 116
5.2.2 Discursivização 117
5.2.3 Estrutura fundamental 119
5.3 O CAMINHO DAS PEDRAS 122
5.3.1 Narrativização 123
5.3.2 Discursivização 124
5.3.3 Estrutura fundamental 126
5.4 NOÉ PERDEU. CABRAL DESCOBRIU 128
5.4.1 Narrativização 129
5.4.2 Discursivização 130
5.4.3 Estrutura fundamental 132
CONSIDERAÇÕES FINAIS 134
REFERÊNCIAS 138
ANEXOS 141
ANEXO I: quadro sinóptico 142
ANEXO II: fichas dos sites 143
ANEXO III: contatos com webmaster (www.humortadela.uol.com.br) 145
INTRODUÇÃO
Quando buscamos “entender” uma piada após lê-la ou ouvi-la, um dos procedimentos
que adotamos é analisar o que nos surpreende; procuramos saber o que faz rir. Mas isso já foi
respondido por pesquisadores conceituados, como Victor Raskin e Sírio Possenti. No entanto,
o que revela – ou esconde – seu discurso? Como ele se constrói? E quando se está diante de
piadas que se constituem a partir de relações intertextuais e interdiscursivas, como elas
significam? Essa é uma resposta para ser dada pela Semiótica, que estuda a significação.
Por entendermos que a Semiótica pode apresentar um ponto de vista diferente sobre
piadas – não necessariamente contrário ao que já foi feito pela Linguística ou pela Análise do
Discurso, mas sim complementar – o presente trabalho toma como objeto de estudo a
significação de piadas conhecidas como religiosas ou de religião. Mais especificamente,
direcionamos nosso olhar para as piadas que remetem à ideologia cristã. Nosso propósito é,
pois, descobrir como e o que ocorre com o discurso religioso nesses textos, que ora parecem
verdadeiras passagens bíblicas, ora uma grande brincadeira – ou uma enorme heresia, para os
mais “fervorosos”.
De fato, a linguagem humorística já vem sendo bastante estudada, mas não há uma
linguística específica do humor, porque, por exemplo, “não há uma linguística que se ocupe
de decidir se os mecanismos explorados para a função humorística têm exclusivamente essa
função2”. Contudo, uma teoria discursiva do mesmo está em curso, pois há diversos trabalhos
que se preocupam com as implicações do discurso humorístico, nos mais variados âmbitos de
realização da língua, tais como livros didáticos, programas de TV e até sites de humor. Assim,
o que se tem feito é explicar o funcionamento de determinados mecanismos em textos
humorísticos diversos, bem como analisar os discursos que esses textos veiculam. São
exemplos os trabalhos desenvolvidos com charges, tira em livros didáticos, advinhas e piadas.
No caso das últimas, já foram realizadas pesquisas que apresentaram desde a sua defesa como
gênero textual3, até a análise discursiva com viés psicanalítico4. No entanto, a significação dos
discursos nesse gênero tem sido pouco explorada, assim como a sua constituição com base em
outros gêneros textual/discursivos que circulam fora do universo humorístico.
2 POSSENTI, Sirio. Os humores da língua – análise linguística de piadas. São Paulo: Mercado das Letras, 2001. p. 21.3 MUNIZ, Kassandra, Piada: conceituação, constituição e práticas – um estudo de um gênero. Campinas, 2004. Dissertação (Mestrado) – Unicamp.4 CONDE, Gustavo. Piadas regionais: o caso dos gaúchos. Campinas, 2005. Dissertação (Mestrado) – Unicamp.
Por outro lado, a Semiótica, em suas diferentes vertentes, vem ampliando suas
abordagens e reafirmando seu objeto de análise. O que nos autoriza dizer isso é, por exemplo,
a Sociossemiótica, que analisa textos de gêneros diversos, como o romance oral5, propagandas
institucionais6 e redações produzidas por alunos do nível fundamental em escolas públicas e
privadas7. Já a Semiótica das culturas compara culturas de continentes distintos8, valendo-se
da semântica cognitiva para reforçar a compreensão de como os sujeitos constroem e
disseminam diversos conceitos em suas culturas. As análises estruturais de simples palavras,
para analisar mitos em nações diferentes, deram lugar ao exame do espetáculo semiótico em
discursos políticos e educacionais, assim como na arquitetura de países díspares quanto ao
nível de desenvolvimento sócio-econômico9.
E os textos humorísticos? E o discurso do humor? Não seria possível conciliar as
teorias sobre os dispositivos de seu funcionamento, esclarecidos por Raskin e Possenti, com
as de A. J. Greimas e Cidmar Pais, sobre a significação dos discursos? É isto que buscamos
fazer neste trabalho, que não se contenta em demonstrar como funcionam tais dispositivos nos
textos humorísticos, mas busca a significação de seus discursos. Em nosso caso, voltamo-nos
para aqueles antes sacrossantos, veiculados em passagens bíblicas, mas que, em piadas, estão
transformados, passando a fazer parte do universo discursivo do humor.
Neste sentido, o que pretendemos é observar a retomada do discurso bíblico e sua
alteração na produção do humor. Isto nos tem levado a crer numa ampliação da classificação
realizada por Possenti, a qual se fundamenta nas chaves linguísticas que desencadeiam o riso.
Para esse autor, existem piadas fonológicas, morfológicas, sintáticas, lexicais, dêiticas, de
inferência, pressuposição e conhecimento prévio10. Cremos, porém, que as piadas podem ser
analisadas do ponto de vista de sua constituição intertextual e/ou interdiscursiva. Neste caso, a
5 BATISTA, Maria de Fátima Barbosa de Mesquita. A Narrativização do romance oral O cego. Acta semiótica et lingüística, São Paulo, v. 10, 2004. p. 67 – 78.6 PAIS, Cidmar T. Propaganda e publicidade no discurso institucional da educação superior: análise sócio semiótica. Revista do GELNE, v.5, n. 1 e 2,. João Pessoa: UFPB / GELNE, 2003. p. 29 – 36.7 RIBEIRO, Wilma da Silva. Aspectos ideológicos nas redações dos alunos das redes pública e particular do ensino fundamental em Pernambuco: uma abordagem sociossemiótica. João Pessoa, 2004. Dissertação (Mestrado) - UFPB.8 PAIS, Cidmar T. Visões de mundo e sistemas de valores em culturas da América Latina e do Caribe: elementos para um estudo contrastivo em semântica cognitiva e semiótica das culturas. Revista Uniandrade. v. 01. n. 01, 2003b. p. 47-60.9 Pais (2003b) mostra que, em determinadas nações desenvolvidas, a arquitetura antiga é preservada e tem lugar de destaque. Já em certos países em desenvolvimento, a modernidade atropela as construções antigas, que se não são tombadas (pilhadas), relegam-se ao descaso, ao abandono.10 Possenti (2001) diferencia as piadas segundo os mecanismos linguisticos de que dispõem para promover o efeito de humor. Neste sentido, considera fonológica, por exemplo, uma piada que precinde de artifícios sonoros peculiares a uma determinada língua para ocasionar um efeito de humor. Trata-se da ocorrência de ambiguidade em uma palavra ou sentença por causa da mudança no som da pronúncia.
significação dos discursos nelas veiculados parte de um texto/discurso base, que, na mudança
de um script para outro, é transformado.
Este trabalho tem como objeto, portanto, a significação de piadas que se constituem a
partir de relações intertextuais e interdiscursivas com passagens bíblicas. Interessa-nos
verificar como ocorre a transformação do discurso religioso do ponto de vista da
narratividade, das oposições semânticas fundamentais e dos valores veiculados nos discursos
dessas piadas. Uma das hipóteses a ser verificada com a nossa pesquisa é de que essas
relações ocasionam o confronto de dois universos discursivos nas piadas, os quais se
superpõem, do mesmo modo que ocorre com os scripts contrários em toda e qualquer piada11 .
Por universo de discurso, entenda-se “um conjunto não-finito, ou que tende ad infinitum, de
todos os discursos manifestados que apresentam certas características comuns e constantes,
certas coerções, suscetíveis de configurarem uma norma”. 12
Nesse caso, os dois universos de discurso em questão estão estreitamente ligados por
uma relação intertextual decorrente do uso das passagens bíblicas. Mais que isso, estão
sobrepostos, devido aos dois scripts que acionam e que se fazem perceber com a quebra de
expectativa proporcionada pelo gatilho linguístico. Com essa sobreposição de universos
discursivos, a apreciação do percurso gerativo de sentido passa a assumir a mesma dualidade
que constituem as piadas, porque a análise da significação de cada discurso passa a considerá-
los sem seus scripts próprios.
Portanto, é a passagem que significa na piada e a piada que significa através da
passagem que se tornam passíveis de análise. É o percurso gerativo dessa significação
ambígua que se pretende investigar, na perspectiva de desvelar que valores são postos em
primeiro plano, através das relações intertextuais e interdiscursivas entre as piadas e as
passagens bíblicas a que tais textos humorísticos remetem. Por outro lado, buscamos trazer à
tona os valores relegados a segundo plano, devido à constituição das piadas, a fim de
explicitar as controvérsias entre o discurso religioso e o humorístico.
Nessa perspectiva, eis a pergunta crucial que procuramos responder, como problema
dessa pesquisa: qual é o percurso gerativo do sentido de piadas que, para sua constituição
humorística, valem-se de passagens bíblicas, ao estabelecerem relações intertextuais e
interdiscursivas? Para isso, tomamos como objetivo geral analisar, em piadas com passagens
bíblicas, a transformação do discurso religioso. Nesse sentido, é hipótese principal desse
11 RASKIN, Victor. Linguistic heuristic of humor: a script-based semantic approach. In: International Journal of sociology of language. 65. Amsterdam. Mouton de Gruyter, 1987. p. 11 – 25.12 PAIS, Cidmar T. Texto, discurso e universo de discurso. Revista Brasileira de Linguística, vol. 8(1). São Paulo: Plêiade, 1995. p. 135 – 164.
trabalho a idéia de que, em prol do humor, valores concernentes às passagens bíblicas são
postos de lado, são relegados ao segundo plano. Assim, temos como objetivos específicos
desvelar os novos valores que o discurso humorístico confere às passagens bíblicas,
transformadas em piadas; analisar como os valores investidos pelos sujeitos enunciadores
dessas piadas são figurativizados; e identificar, do ponto de vista semântico, que implicações
de sentido surgem das alterações promovidas pelas piadas nas passagens bíblicas.
A construção de nosso corpus ocorreu através da coleta de piadas religiosas, em sites
de humor que apresentavam, em suas categorias, os termos religiosa ou de religião. Nesse
sentido, escolhemos as piadas de quatro (04) sites nos quais realizamos um trabalho
minucioso de leitura e comparação entre os textos neles apresentados:
www.humortadela.uol.com.br; www.aspiadas.com; www.quatrocantos.com; www.piada.com.
Além desses, outros três foram consultados (ver anexo I), mas devido à mínima quantidade de
piadas com passagens bíblicas, decidimos descartá-los. Nesse sentido, realizamos um
levantamento dos recursos disponíveis em cada um dos quatro sites supracitados, a fim de
verificar seu funcionamento como sites de humor ou de piadas propriamente ditas, à medida
que a pesquisa dos textos ocorria. O objetivo de tal verificação foi alargar “o leque de opções”
para a coleta do corpus, mas percebemos que os sites que só dispunham de piadas não
apresentavam muitos textos de interesse para essa pesquisa. Já os de humor – que
apresentavam não só piadas, mas também charges, quadrinhos, animações, questionários
“imbecis”, como os próprios sites intitulam, entre outros recursos – dispunham de uma
variedade maior de piadas.
Este foi mais um motivo que nos restringiu aos quatro sites indicados: mais de 500
piadas foram encontradas sob a classificação religiosa, ou de religião. Embora grande fosse a
quantidade, muitas se repetiam em mais de um site; quando não, apresentavam-se como uma
variante da outra. Em contato com o webmaster do humortadela.com.br, verificamos que
grande parte das piadas era enviada por “internautas” e postas em “ranking” conforme o
maior número de acessos e votações dos leitores do site13. Acreditamos que tais critérios
contribuem para as repetições que detectamos, uma vez que tal procedimento não impede que
o internauta possa enviar a mesma piada a mais de um site. Ou, como ocorre na oralidade,
contar a mesma piada, com algumas alterações, a diferentes pessoas, neste caso, leitores dos
diferentes sites.
Entretanto, nem todas interessavam à nossa pesquisa, pois nem todas possuíam, em
sua constituição, um (suposto) diálogo com alguma passagem bíblica. Muitas apenas
13 No anexo III, o webmaster Adrianete esclarece como é feito o ranking de piadas em seu site.
apresentavam alguma autoridade eclesiástica com condutas inesperadas ou situações
inusitadas em conventos, igrejas, trânsito. Por isso, reduzimos ainda mais a quantidade de
piadas e as enquadramos em três categorias que instituímos de acordo com a análise prévia de
cada texto, pouco depois da coleta. Tal categorização nos serviu como ponto de partida para
organizar a ordem de análise e foi criada a partir da relação que cada piada mantém com as
passagens bíblicas a que remetem. Sendo assim, a distribuição das piadas, segundo cada
categoria, pôde ser representada da seguinte forma:
Intertextuais
São consideradas neste grupo as piadas que, pela
heterogeneidade mostrada, utilizam o texto
bíblico como gatilho para a passagem de um
script a outro.
A primeira pedra
Quem eu sou?
Abraão e Isaac
Lázaro
Jesus e as criancinhas
Interdiscursivas
Consideramos nesta categoria aquelas que,
mesmo não utilizando de forma notória o texto
bíblico, compõem-se com trechos que remetem à
ideologia bíblica, pela heterogeneidade
constitutiva, estando o gatilho justamente nesses
trechos.
Fé demais não cheira bem
Problemas na terra
Professora atéia
Transgressivas
São consideradas neste grupo as piadas que
operam com criações a partir das passagens,
transgredindo o discurso que ali se instaura,
apresentando novas situações, e bem destoantes
das apresentadas na Bíblia, quanto ao caráter
sacro.
Convite impróprio
As bodas
O caminho das pedras
Noé perdeu, Cabral descobriu...
Por outro lado, o quadro de categorização que construímos não encerra a classificação
das piadas como uma definição estanque. Pelo contrário, cremos que algumas piadas possam
pertencer a duas ou mais categorias, de acordo com os recursos de que disponham para
propiciar o humor. Seu enquadramento numa determinada categoria segue, pois, um critério
de predominância de recursos, ou da importância dos mesmos para promover o efeito de
humor.
À guisa de esclarecimento, não tomamos aqui o termo piada religiosa baseando-se
numa classificação científica mais precisa. O uso desse termo está alicerçado apenas na
categorização comum aos sites de humor nos quais coletamos as piadas para análise. São eles
que ora usam o termo religiosa, ora de religião para enquadrar diversas piadas, que versam
sobre cristãos, judeus, muçulmanos, hindus, budistas e outros. Assim, trazem à tona papéis
temáticos comuns à realidade cristã, como padres, pastores, freiras, apóstolos de Cristo e
Deus, ou quaisquer outros papéis e divindades que compõem as narrativas de outras religiões,
como rabinos, monges, profetas, Buda, Maomé ou Alá.
Neste cerne, após a seleção do grupo de piadas relacionado acima para organizar os
dados da pesquisa, passamos a analisar os três níveis de geração do sentido, conforme a teoria
semiótica greimasiana. Paralelamente, discutimos as relações intertextuais e interdiscursivas
existentes entre as piadas e as passagens bíblicas a que tais textos humorísticos remetem,
realizando considerações semântico-discursivas sobre os gatilhos linguísticos que
desencadeiam o riso. Além disso, tecemos comentários sobre as estratégias do sujeito
enunciador para promover o efeito de humor e discutimos as controvérsias existentes entre
piada e passagem bíblica, do ponto de vista do discurso que veiculam.
Da mesma forma, buscamos desvelar os valores obscurecidos pelo humor, visões de
mundo e ideologias subjacentes que se sobrepõem a outras nas malhas intertextuais (e
interdiscursivas) constitutivas das piadas com passagens bíblicas.
Para o cumprimento de nossos objetivos, apresentamos, no primeiro capítulo, a teoria
semiótica greimasiana, a qual tomamos como base para nossas análises. Partimos de seus
pressupostos fundamentais, como a visão de signo de Saussure e Hjemslev e o percurso
gerativo de sentido. Sobre tal teoria, buscamos discutir o princípio da articulação linguística
sob as perspectivas duais de significante e significado, expressão e conteúdo, abstração e
concretude, ou, como se prefere na semiótica discursiva atual, o sensível e o inteligível. Em
seguida, esboçamos o percurso gerativo do sentido em suas etapas distintas, com base em
autores que desenvolvem trabalhos na linha de Greimas. Além disso, demonstramos como a
semiótica greimasiana dialoga com a semiótica das culturas e com as teorias do humor. Nesse
sentido, trabalhos de alguns autores são exemplificados, a fim de que seus pressupostos
teóricos sejam aclarados, fundamentando nossas discussões posteriores sobre as piadas com
passagens bíblicas.
Em seguida, passamos para as teorias do humor verbal, de que nos valemos para a
preparação do corpus. Neste segundo capítulo, com atenção especial para as piadas, buscamos
esboçar conceitos relevantes para o estudo do humor, ao apresentarmos discussões de diversos
autores. Também buscamos demonstrar, à luz do dialogismo, a constituição das piadas sob o
caráter heterogêneo, que lhes é peculiar. Por fim, reservamos o encerramento desse segundo
capítulo para a apreciação do discurso religioso, sobre o qual discorremos conceitos, marcas e
propriedades, além de apresentarmos um pequeno esboço de estudos sobre sua apropriação
em contextos de uso da linguagem não-religiosos.
No terceiro capítulo, principiamos as discussões sobre as piadas com passagens
bíblicas a partir do quadro de categorização que propomos. De início, analisamos o percurso
gerativo das piadas intertextuais, buscando identificar pontos divergentes e comuns às piadas
que enquadramos em tal categoria, como implicações ideológicas e constituição do ponto de
vista das estruturas de superfície.
Já no quarto capítulo, com as piadas interdiscursivas, nosso foco é demonstrar a
manutenção da ideologia cristã. Para tanto, traçamos o percurso gerativo de sentido para a
significação do discurso religioso nas piadas com passagens bíblicas, ao passo que analisamos
as passagens de que tais piadas se apropriam do ponto de vista ideológico.
Para concluirmos as análises, apresentamos, no quinto capítulo, um grupo de piadas
que operam com transgressões ao texto bíblico. Realizamos a análise dos três patamares do
percurso gerativo e comparamos os valores subjacentes às ideologias das piadas. Com isso,
demonstramos o quanto elas destoam das passagens a que remetem do ponto de vista do
discurso veiculado e da narrativa construída.
Por fim, discorremos nossas considerações finais sobre as análises realizadas,
comparando os resultados obtidos, a fim de verificar a validade de nossas propostas.
Propomos, no fim, uma atenção maior a discussões sobre o uso do texto/discurso religioso
fora de seu contexto, por acreditarmos que implicações além da intenção humorística de
simplesmente fazer rir possam ocorrer em tais usos, sendo tarefa dos estudiosos da linguagem
desvelar os sentidos que tamanho exercício linguístico implica.
1. BASES TEÓRICAS
1.1 A SEMIÓTICA GREIMASIANA
Algirdas Julien Greimas concebeu uma teoria que visa explicar, através de um
percurso gerativo do sentido, a geração dos discursos em qualquer sistema semiótico. Em
verdade, o objeto de estudo da semiótica é a significação, entendida não como um a priori já
constituído, mas como o resultado de articulações do sentido14. Ao sentido, Greimas, atribui
um conceito de indefinição, e sobre ele nada se pode dizer antes que se manifeste sob forma
de significação15. Já Fontanille (2006) trata o sentido como uma direção a que tendem objetos,
práticas e situações quaisquer16, pertencentes aos sistemas semióticos.
A compreensão de tais sistemas sob a ótica greimasiana vem na esteira de Saussure,
com seus estudos do signo e sua dicotomia entre significado e significante. Para este autor, o
signo seria, então, uma articulação aleatória entre som e pensamento (ou ideias). A língua,
nessa perspectiva, é um sistema de valores puros, que são elementos da significação, frutos da
arbitrariedade que une significante e significado. Articulada, pois, de maneira dupla, entre
dois planos amorfos, ela nem pertence ao plano dos sons, nem ao plano das ideias. Seu papel,
segundo Saussure (1997), não é criar um material fônico para a expressão das ideias, mas
servir de intermediário entre o pensamento e o som17.
Por outro lado, Hjelmslev (1975) reinterpretou tais considerações, conferindo-lhes
uma ampliação do ponto de vista conceitual. O signo, para ele, existe por meio de uma relação
de solidariedade entre conteúdo e expressão, segundo a qual uma expressão só é expressão
porque é expressão de um conteúdo, e um conteúdo só é conteúdo porque é conteúdo de uma
expressão18. Estas colocações dialogam e reforçam a metáfora com a folha de papel que
Saussure apresenta para exemplificar sua definição de língua.
[...] o pensamento é o anverso e o som verso; não se pode cortar um sem, ao mesmo tempo, o outro; assim, tampouco, na língua, se poderia isolar o som do pensamento, ou o pensamento do som; só se chegaria a isso por uma abstração cujo resultado seria fazer Psicologia pura ou Fonologia pura. 19
Martinet (1968), em suas discussões sobre a linguística sincrônica, também concebe a
linguagem como uma dupla articulação. Para este autor, na medida em que se fala, faz-se isso
para ser compreendido, estando a expressão a serviço do conteúdo. É por esse motivo que ele
14 CORTINA, Arnaldo e MARCHEZAN, Renata C. Teoria semiótica: a questão do sentido. In: BENTES, Ana Cristina e MUSSALIN, Fernanda. Introdução à linguística: fundamentos epistemológicos. São Paulo: Cortez, 2007. p. 394.15 GREIMAS, A. J. e COURTÈS, Joseph. Dicionário de Semiótica. São Paulo: Cultrix, 1979. p. 41716 FONTANILLE, Jaccques. Semiótica do discurso. São Paulo: Contexto, 2007. p. 3117 SAUSSURE, Ferdinand. Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix, 1997. p. 131.18 HJELMSLEV, Louis. Prolegômenos a uma teoria da linguagem. São Paulo: Perspectiva, 1975. p. 54.19 SAUSSURE, Ferdinand. Op. Cit. p. 131
afirma haver solidariedade entre os dois planos, mas em um sentido determinado20, o que
ratifica a posição hjelmsleviana de que as línguas se articulam sob dois planos distintos.
Contudo, tanto Saussure quanto Hjelmslev mantiveram suas discussões sobre a
significação no âmbito estritamente linguístico, do ponto de vista das estruturas dos sistemas
semióticos. Neste sentido, completamos o entendimento de signo com os postulados de
Bakhtin, para quem todo signo é ideológico e deve ser entendido como reflexo e refração de
uma dada realidade social. Sendo todo signo ideológico, a ideologia emerge do processo de
interação entre uma consciência individual e outra, numa cadeia21.
Embora Greimas tenha pensado seu projeto semiótico também voltado para questões
além do puramente linguístico, do ponto de vista estrutural, sua concepção de ideologia não é
a mesma de Bakhtin. A semiótica greimasiana entende a ideologia como um conjunto de
valores de uma sociedade, de uma cultura; diferente da concepção bakhtiniana, que é mais
política. Assim, o signo significa o que a ideologia sustenta, sendo ideológico porque reflete
um conjunto de valores da sociedade no uso da linguagem.
Dessas discussões, chegamos ao entendimento de que a significação consiste numa
relação de dependência entre conteúdo e expressão; num processo de produção, acumulação e
transformação da função semiótica, que põe o signo em discurso; e de que as análises da
significação pressupõem também análises linguístico-ideológicas, no que tange aos
mecanismos linguísticos acionados e universos discursivos envolvidos.
1.1.1 O percurso gerativo do sentido
Segundo a proposta greimasiana, a geração dos sentidos parte do patamar mais
simples ao mais complexo, sendo abordado sob três níveis: o fundamental, em que a
significação surge como uma oposição semântica mínima; o narrativo, no qual a narrativa
organiza-se do ponto de vista de um sujeito; e o discursivo, em que a narrativa é assumida
pelo sujeito da enunciação22.
Este também é o entendimento de Fiorin (2006), que, para ilustrar de maneira
resumida as etapas do percurso gerativo do sentido, apresenta um esquema em que a sucessão
de patamares de tal percurso é explicitada. Os níveis se constituem pelas estruturas semio-
narrativas e se completam, na geração do sentido, com as estruturas discursivas, que, assim
20 MARTINET, André. La doble articulacion del lenguaje. In: MARTINET, A. La linguística sincrónica – estudios e investigaciones. Madrid: Gredos, 1968. p. 2921 BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1997.22 BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 2005. p. 09
como as anteriores, também apresentam componentes sintáticos e outros semânticos,
conforme ilustra o quadro seguinte:
Estruturas
semio-
narrativas
Estruturas discursivas
Componente Sintático Componente Semântico
Nível Profundo Sintaxe Fundamental Semântica Fundamental
Nível de Superfície Sintaxe Narrativa Semântica Narrativa
Sintaxe Discursiva: Discursivização, actorialização, temporalização e espacialização.
Semântica Discursiva:Tematização e Figurativização.
Em seguida, o autor passa a esclarecer cada etapa do percurso. Sobre a sintaxe dos
diferentes níveis, Fiorin afirma que ela é de ordem relacional, ou seja, um conjunto de regras
que rege o encadeamento das formas de conteúdo na sucessão do discurso23. Ainda que
relacional, apresenta um componente conceptual, visto que cada combinatória de formas
possa produzir um determinado sentido. Ele acena para os componentes semânticos, em
especial para a semântica fundamental, que abriga as categorias que estão na base da
construção de um texto24. É nesse patamar que se deve determinar a oposição ou oposições
semânticas a partir das quais se constrói o sentido do texto25. Juntas, a semântica e a sintaxe
do nível fundamental formam a instância inicial do percurso gerativo do sentido e buscam a
explicação para os níveis mais abstratos da produção, do funcionamento e da interpretação do
discurso.
Já o nível narrativo – componente de qualquer texto – representa o segundo patamar
do percurso, e nele as oposições semânticas são assumidas como valores de um sujeito.
Segundo Fiorin (2006), nenhuma objeção quanto a esta etapa faz sentido, caso se tenha a
compreensão de que narratividade não corresponde à narração. Assim, a análise semiótica de
qualquer piada – mesmo as que não apresentam predominantemente o tipo textual narrativo –
pode ser realizada neste segundo patamar, uma vez que se trata de um componente da teoria
do discurso. A narratividade, para Fiorin, “é uma transformação situada entre dois estados
23 FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2006. p. 2124 FIORIN, José Luiz. Op. Cit. p. 2225 BARROS, Diana Luz Pessoa de. Op. Cit. p. 10
sucessivos e diferentes. Isso significa que ocorre uma narrativa mínima, quando se tem um
estado inicial, uma transformação e um estado final”. 26
A sintaxe narrativa organiza toda a complexa relação em que um sujeito se insere no
fazer sobre o mundo. Barros (2005) sustenta que o entendimento da organização narrativa de
um texto precisa estar atrelado à descrição do espetáculo que simula o fazer do homem.
Segundo a autora “é preciso determinar, em um texto, os participantes e papel que
representam na historiazinha simulada” 27.
Por outro lado, Greimas e Courtês (1979) consideraram a semântica narrativa como a
instância de atualização dos valores e o lugar das restrições impostas à combinatória, em que
é decidido em parte o tipo do discurso a ser produzido. Já Fiorin apresenta os seguintes
esclarecimentos:
A semântica do nível narrativo ocupa-se dos valores inscritos nos objetos [...] modais e objetos de valor. Os primeiros são o querer, o dever, o saber e o poder fazer, são aqueles elementos cuja aquisição é necessária para realizar a performance principal. Os segundos são os objetos com que se entra em conjunção ou disjunção na performance principal. 28
A terceira e última etapa do percurso gerativo do sentido é a discursivização, que
também apresenta um componente sintático e outro semântico. Aqui as formas abstratas do
nível narrativo são revestidas de termos que lhes dão concretude29. É uma etapa em que se
opõem enunciação e enunciado, verificam-se as escolhas do sujeito da enunciação e as
estruturas que regem a organização do discurso anteriormente à sua manifestação30.
A respeito das escolhas do sujeito da enunciação, Barros (2005) diz que ele faz uma
série de escolhas de pessoa, de tempo, de espaço, de figuras, e conta ou passa a narrativa
transformado-a em discurso. Neste sentido, discurso pode ser entendido como a narrativa
enriquecida por todas as opções desse sujeito, que marcam os diferentes modos pelos quais a
enunciação se relaciona com o discurso enunciado.
Para a distinção entre os componentes sintáticos e os semânticos da discursivização, é
preciso entender que “a sintaxe discursiva observa a relação entre a enunciação e o discurso,
revelando as unidades discursivas. A semântica discursiva estabelece percursos temáticos e
reveste figurativamente os conteúdos da semântica narrativa”. 31
26 FIORIN, José Luiz. Op. Cit. p. 2827 BARROS, Diana Luz Pessoa de. Op. Cit.28 FIORIN, José Luiz. Op. Cit. p. 3729 FIORIN, José Luiz. Op. Cit. p. 4130 GREIMAS, A. J. e COURTÈS, Joseph. Op. Cit. p. 12431 BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. São Paulo: Atual, 1988. p. 16
Assim, a divisão entre sintaxe discursiva e semântica discursiva dá-se mediante a
observância de procedimentos peculiares a cada instância. Na sintaxe discursiva, tem-se
actorialização, temporalização e espacialização, procedimentos que atestam as projeções da
enunciação. Além desses componentes sintáticos, estruturam-se os semânticos, que podem ser
detectados na configuração temática e figurativa do discurso32.
A actorialização corresponde ao revestimento dos sujeitos da narrativização. Os
actantes ganham concretude e o que era um simples sujeito semiótico passa a ser um apóstolo,
no caso de uma piada religiosa, por exemplo. Ou seja, ocorre uma concretização das
personagens enunciadas na narrativa, podendo haver até um sincretismo actancial, quando um
mesmo actante manifesta-se através de dois atores ou mais33.
Na temporalização, o sujeito enunciador deixa as marcas temporais que situam seu
discurso historicamente. Podem ser produzidos efeitos de realidade, através das mudanças em
tempos verbais e efeitos de distanciamento ou aproximação, com as projeções agora / então.
Segundo Greimas e Courtés (1979: 455), a temporalização transforma uma organização
narrativa em história, já que segmenta e organiza as sucessões temporais, valendo-se de
procedimentos de debreagem e embreagem.
Do mesmo modo, a espacialização produz efeitos de aproximação (aqui) ou de
distanciamento do sujeito enunciador (alhures). Essas coordenadas deixadas no texto pelo
sujeito enunciador dão-lhe o efeito de subjetividade ou objetividade, que a semiótica
greimasiana classifica como debreagem e embreagem respectivamente. Tais termos foram,
por Greimas, tomados de empréstimo de Jakobson, quando este tratou dos shifters
(embreantes)34. A respeito do mecanismo de debreagem, Fiorin (2006) faz uma divisão entre
debreagem enunciativa e debreagem enunciva e apresenta o seguinte esclarecimento:
A debreagem enunciativa projeta, pois, no enunciado o eu-aqui-agora da enunciação, ou seja, instala no interior do enunciado os actantes enunciativos, os espaços enunciativos e os tempos enunciativos [...] A debreagem enunciva constrói-se com o ele, o alhures e o então, o que significa que, nesse caso, ocultam-se os actantes, os espaços e os tempos da enunciação35.
Quanto aos mecanismos da semântica discursiva, Barros (2005) assinala que cabe ao
sujeito da enunciação disseminar os temas e figurativizá-los, para assegurar a coerência
semântica do discurso e criar, com a concretização figurativa do conteúdo, efeitos de sentido,
32 CORTINA, Arnaldo e MARCHEZAN, Renata C. Op. Cit. p. 40833 GREIMAS, A. J. Os Atuantes, os Atores e as Figuras. In CHABROL, Claude (Apres.) Semiótica narrativa e textual; Trad. Leyla Perrone Moisés et al. São Paulo: Cultrix, 1977.34 CORTINA, Arnaldo e MARCHEZAN, Renata C. Op. Cit. p. 41235 FIORIN, José Luiz. Op. Cit. p. 58-59
sobretudo de realidade36. Já Fiorin (2006) faz a seguinte apreciação a respeito de tais
mecanismos:
Podem-se revestir os esquemas narrativos abstratos com temas e produzir um discurso não figurativo ou podem-se, depois de recobrir os elementos narrativos com temas, concretizá-los ainda mais, revestindo-os com figuras37.
Na verdade, isto quer dizer que há textos com predominância temática e outros em que
predominam as figuras. Tematização e figurativização são níveis de concretização do sentido,
e sendo independentes, pode haver textos mais temáticos que figurativos, ou o contrário.
Entretanto, é comum que apareçam figuras nos textos em que domina a tematização, ou temas
no caso da predominância da figurativização. Para Fiorin (2006), figura é o termo que remete
a algo existente no mundo natural e tema consiste num investimento semântico, de natureza
conceptual, puramente, que não remete a esse mundo. Em outras palavras, figura é todo
conteúdo de qualquer língua natural ou de qualquer sistema de representação que tem um
correspondente perceptível no mundo natural; já temas são categorias que organizam,
categorizam e ordenam os elementos do mundo natural38.
Por fim, é importante ressaltar que o percurso gerativo do sentido não pode ser tomado
como um esquema a que os textos tenham que se adaptar. Antes de tudo, trata-se de um
dispositivo de interpretação inerente aos textos, visto que a significação dos mesmos constrói-
se, senão com todas as etapas, pelo menos com algumas delas. Ele não descreve a maneira
real de produzir um discurso, pois é, na verdade, um simulacro metodológico, que permite ler
um texto com mais eficácia39.
1.2 SEMIÓTICA E CULTURA
O projeto semiótico de A. J. Greimas visava à construção de uma teoria semântica que
transcendesse a observância da palavra sob o ponto de vista estrutural e puramente linguístico.
Ao discordar do posicionamento de que sobre o sentido nada poderia ser dito, Greimas (1975)
esclarece que a distinção entre semiótica e semiologia, por ele respectivamente entendidas
como ciência da natureza e ciência do homem, é uma questão de procedimento. Para ele:
36 BARROS, Diana Luz Pessoa de. Op. Cit. p. 6837 FIORIN, José Luiz. Op. Cit. p. 9038 FIORIN, José Luiz. Op. Cit. p. 9139 FIORIN, José Luiz. Op. Cit. p. 44
Interculturalidade
AlteridadeIdentidade
cultural
Especificidade Diversidade
[...] será preciso ressaltar que a distinção que se pode estabelecer entre as semióticas e as semiologias – entre as ciências da natureza e as ciências do homem – ao menos no nível dos modelos paradigmáticos escolhidos, não é uma distinção de estrutura, mas sim de procedimento40.
Nessa perspectiva, Greimas seguiu em direção a uma semiótica do mundo natural,
quando considerou passíveis de análise os signos naturais do mundo visível, estáticos ou em
movimento. Por outro lado, ele acenou para a possibilidade de se abordar, mediados pela
linguagem, tanto a natureza quanto o homem. A respeito dessa questão, Greimas diz que:
A natureza e o homem se manifestam para nós sob a forma de signos que podem, pela mediação linguística, ser reunidos em conjuntos, recortados e reinterpretados como sistemas de relações, tornando-se assim objetos científicos; na mesma medida, as transformações dos fenômenos da natureza e as mudanças resultantes da atividade humana podem ser igualmente transcodificadas e denominadas, convertendo-se assim em descrições baseadas em unidades linguísticas com caráter discursivo41.
Tais mudanças promovidas pelo homem correspondem a um fazer do mesmo sobre o
mundo, fazer este que também se apresenta como signo(s), em um mundo semioticamente
construído. É nesse sentido que Greimas aponta para uma semiótica da cultura, ao considerar
passível de descrição as ações do homem sobre o mundo, mediadas pelo uso da linguagem.
Segundo Pais (2006), o objeto da semiótica das culturas são as culturas humanas e sua
diversidade, sempre numa perspectiva intercultural ou multicultural, através de comparações
entre culturas. A busca pela caracterização de uma cultural prescinde da comparação com
outra, com o intuito de desvelar seus microssistemas de valores e as visões de mundo deles
decorrentes, estabelecendo uma tensão dialética entre a especificidade e a diversidade.
Especificidade implica não-diversidade, resultando na identidade cultural. Diversidade
implica não-especificidade, resultando na alteridade. Na tensão dialética entre especificidade
e diversidade está a interculturalidade. Seu oposto seria a inexistência semiótica resultante dos
termos contrários não-diversidade e não-especificidade. Pode-se visualizar melhor tal relação
no octógono seguinte, evolução do quadrado semiótico que Greimas (1975) apresenta ao
tratar do jogo das restrições42:
40 GREIMAS, Algirdas Julien. Sobre o sentido: ensaios semióticos. Petrópolis: Vozes, 1975. p. 3141 GREIMAS, Algirdas Julien. Op. Cit. p. 3242 No capítulo intitulado O jogo das restrições semióticas, Greimas apresenta a formatação do quadrado semiótico, que, com a evolução das pesquisas em semiótica das culturas e sociossemiótica, passa a ser apresentado em forma de octógono.
S2
S
‘S
‘S2
(PAIS, 2006: 02) 43
Uma das diferenças entre o octógono de Pais e o quadrado de Greimas está na relação
de implicação entre os termos contrários – que são denominados por Pais (2003b) de
metatermos simples – a qual apresenta um metatermo complexo, que resulta de tal
implicação. Nesse caso, alteridade reúne diversidade e não-especificidade; e/ou identidade
cultural reúne especificidade e não-diversidade. Assim, não só a significação S reúne S1 e S2,
sendo redefinido como sema complexo, mas também os contrários S1 e ‘S1, assim como S2 e
‘S2, tem como implicação um metatermo, embora isto não esteja ilustrado no diagrama
abaixo:
(GREIMAS, 1975: 127) 44
43 PAIS, Cidmar T. Da semiótica das culturas a uma ciência da interpretação: valores e saberes compartilhados. 58ª Reunião Anual da SBPC. Florianópolis, 2006. p. 1 – 5 44 GREIMAS, Algirdas Julien. Op. Cit. p. 127
‘S1
S1
Verdade
MentiraSegredo
Não-parecerNão-ser
Ser Parecer
Falsidade
Na verdade, o octógono já se delineava quando Greimas e Courtés discorriam sobre as
modalidades veridictórias. Naquele esquema, todo objeto semiótico é visto na tensão entre um
ser e um parecer, cujos contraditórios são respectivamente não-ser e não-parecer, como
ilustramos abaixo.
(GREIMAS e COURTÉS, s.d.: 488)45
Da implicação entre ser e não-parecer resulta o segredo; já da implicação entre
parecer e não-ser resulta a mentira. Na tensão dialética entre ser e parecer está a verdade,
ficando a falsidade para a implicação entre não-parecer e não-ser.
Por outro lado, Greimas buscou, nos procedimentos da semântica estrutural, o
caminho para uma semiótica da cultura, ao realizar comparações entre os mitos, mais
precisamente através das narrativas míticas escandinavas e indianas. Neste cerne, o autor
discute as concepções de bem e mal que perpassam tais narrativas e finaliza tal estudo
indicando que os mitos apresentam unidades constitutivas nos seus significados que
correspondem às sequências das narrativas míticas46.
Com a evolução das teorias semânticas – como a semântica cognitiva – a semiótica da
cultura passa a preocupar-se com os microssistemas de valores das culturas e com as visões de
45 GREIMAS, A. J. e COURTÈS, Joseph. Op. Cit. p. 48846 GREIMAS, A. J. Op. Cit. p. 114, 115
mundo deles decorrentes. São exemplos os trabalhos de Cidmar Pais, que comparam a cultura
caribenha com a latino-americana e as visões de mundo em Cuba e no Brasil; também o são
as comparações entre França, Brasil e Cuba, no que tange às visões sobre o acesso à
universidade pública47.
Nesse último caso, tem-se um bom exemplo a ser esclarecido a respeito das
considerações realizadas pela semiótica das culturas: a questão do privilégio. Numa sociedade
capitalista e excludente, como o Brasil, o privilégio de se alcançar uma universidade pública
cabe a poucos cidadãos. No caso, estes poucos representam as camadas mais favorecidas
financeiramente. Privilégio tem, pois, um valor eufórico, traz consigo traços de desigualdade
e discriminação, além de representar um querer, uma aspiração dos membros de nossa
sociedade48. Já na França, por exemplo, este mesmo privilégio é disfórico, já que existem
políticas que combatem a discriminação e buscam minimizar as desigualdades, inerentes a
ele.
Outro exemplo do que esclarece a semiótica das culturas é dado por Pais (2003b),
quando trata do discurso político eleitoral. Ele esclarece que a seguridade social constitui uma
aquisição definitiva na França, que direito à educação e à saúde estão garantidos em Cuba e,
sendo assim, candidato algum ousaria dizer o contrário, caso quisesse ser eleito. Por outro
lado, os programas e as promessas dos candidatos brasileiros falam de assegurar, se eleitos, o
acesso de todos à educação e à saúde. Isto demonstra que a igualdade dos cidadãos perante a
Lei ainda não foi assegurada a todos. Ou seja, enquanto as sociedades francesa e cubana têm
direitos garantidos e seus políticos não negam isso em seus discursos, a brasileira ouve a cada
eleição o mesmo discurso de que, caso eleito, um determinado candidato – e vários se
colocam nessa condição – fará com que os direitos do brasileiro sejam garantidos, já que
ainda não foram.
Sendo assim, as visões de mundo sobre privilégio e discurso político diferem na
cultura brasileira e na francesa, devido aos valores distintos aspirados por cada uma. Tais
considerações só puderam ser realizadas porque a semiótica das culturas põe lado a lado duas
– ou mais – culturas distintas a fim de compará-las e desvelar seus microssistemas de valores.
1.3 SEMIÓTICA E HUMOR
47 PAIS, Cidmar T. Op. Cit. p. 47 – 60.48 PAIS, Cidmar T. Op. Cit. p. 54
Os estudos semióticos há muito se tem voltado para a significação em diversos modos
de realização da linguagem. Não é à toa que se fala em semiótica verbal e sincrética, pois
tanto se pode analisar poemas quanto Histórias em Quadrinhos (HQs). Discini (2005) nos dá
um bom exemplo ao realizar uma análise que demonstra um diálogo entre esses dois gêneros.
Em meio às suas discussões, diz que:
[...] as HQs, como gênero, apresentam recorrentemente o sincretismo do verbal com o visual, isto é, a expressão verbal e a visual, longe de se manterem discretas, separadas, juntam-se; o verbal colabora com o visual, para que se construam efeitos de sentido; no caso das HQs, o visual não só complementa o verbal, como predomina sobre ele49.
Isto confirma a afirmação de Barros (2005) sobre o que a semiótica de hoje procura
determinar: o que o texto diz, como diz e para que o faz. Segundo esta autora, a semiótica
analisa
[...] os textos da história, da literatura, os discursos políticos e religiosos, os filmes e as operetas, os quadrinhos e as conversas de todos os dias, para construir-lhes os sentidos pelo exame acurado de seus procedimentos e recuperar, no jogo da intertextualidade, a trama ou o enredo da sociedade e da história50.
Nesse sentido, vemos que a análise de textos humorísticos, assim como a de religiosos,
já vem sendo procedida pelos semioticistas. No caso dos primeiros, a HQ que Discine analisa,
além de ser observada sob sua constituição sincrética (verbal e visual), é focada sob a relação
intertextual que mantém com um poema. O “exame acurado” da semiótica acena para um
diálogo entre textos. Segundo a autora, tal diálogo diz respeito à própria constituição do
sujeito da enunciação, que é dialógica por natureza51. Aponta também que a reconstrução de
um diálogo, como esse, se faz pela identificação de convergências e divergências de pontos de
vista, já que cada texto reproduz a visão de mundo de uma dada formação social.
Contudo, a HQ e o poema analisados pela autora não apresentam discursos marginais,
subterrâneos ou proibidos, como o fazem as piadas com passagens bíblicas, por exemplo.
Estas se constituem a partir de um texto anterior (o bíblico), reconhecido na História e na
“historinha simulada”, para, em seguida, promover o humor, propósito que as passagens a que
remetem as piadas não possui.
Por outro lado, concordamos com a autora quando esta acena para a reconstrução de
um diálogo entre textos através da verificação de convergências e divergências de formações
49 DISCINI, Norma. HQ e poema: diálogo entre textos. In: LOPES, Ivã Carlos e HERNANDES, Nilton (Orgs.) Semiótica – objetos e práticas. São Paulo: Contexto, 2005. p. 27750 BARROS, Diana Luz Pessoa de. Op. Cit. p. 8351 DISCINI, Norma. Op. Cit. p. 280
ideológicas. No caso da HQ e do poema analisados por Discini (2005), convergem as ironias
com relação às prescrições do que se deve, ou do que é preciso fazer.
Dessa forma, reconhecemos piadas que mantém relações intertextuais e
interdiscursivas com passagens bíblicas ora para negá-las, ora para confirmar seus discursos.
E aí entendemos o negar como uma divergência cuja apropriação da palavra do outro gera a
diminuição de seu valor – nesse caso, em prol do riso; já a confirmação vem por um efeito de
humor que não deprecia o discurso bíblico, não o põe de lado, mas o fortalece; logo, tem-se
uma convergência.
Além disso, a análise de piadas com passagens bíblicas difere daquela realizada entre
HQ e poema porque as piadas de que tratamos necessitam das passagens para significar. É o
diálogo que mantêm de alguma forma com o texto bíblico que as diferencia de outras piadas
ou de outros textos humorísticos.
Uma segunda abordagem semiótica sobre texto humorístico a se considerar é a
realizada por Farias (2005), quando analisa uma charge. Nesse caso, vemos um discurso
marginal em uma situação formal, que é uma Comissão Parlamentar de Inquérito (doravante,
CPI), mas não uma verdadeira. Para o enunciatário aceitá-la como um texto humorístico, deve
saber que ela é apenas um simulacro da CPI52. Nesse caso, entendemos que tanto enunciador
quanto enunciatário sabem que a função do humor é fazer rir, por isso a charge é aceita; além
disso, o segundo interpreta a mesma como uma mentira, mas ri diante das expectativas
quebradas, pois esta é uma situação inerente a todo texto humorístico.
Uma terceira questão relevante a considerar na análise semiótica da linguagem
humorística é a coerência semântica. Nessa perspectiva, vale salientar as palavras de Barros
(2005) sobre as piadas.
As piadas fornecem, em geral, bons exemplos de coerência semântica, pois, muitas vezes, a graça do chiste decorre da ruptura dessa coerência e da proposição de outra leitura. Essa segunda leitura, inesperada, constrói-se também a partir dos traços semânticos do discurso e liga-se frequentemente à primeira, previsível, por um elemento figurativo53.
Com tais assertivas, a autora acena para um diálogo com o que preceitua Raskin
(1987)54 a respeito do funcionamento das piadas. Para esse autor, uma das condições da a
existência da piada (ou do chiste) é a superposição de scripts contrários, compatíveis com um
mesmo texto. Assim, a outra leitura a que se refere Barros é a que decorre do acionamento do
52 FARIAS, Iara Rosa. Charge: humor e crítica. In: LOPES, Ivã Carlos e HERNANDES, Nilton (Orgs.). Semiótica – objetos e práticas. São Paulo: Contexto, 2005. p. 245 – 259.53 BARROS, Diana Luz Pessoa de. Op. Cit. p. 6954 RASKIN, Victor. Op. Cit.
gatilho linguístico, que promove uma quebra de expectativa. Daí, o termo “inesperada”,
utilizado pela autora; daí também a segunda leitura, ou seja, o script que se superpõe ao
outro.
Ainda sobre a questão da coerência semântica, Fiorin (2006: 117-118) indica que é a
reiteração, a redundância, a repetição a recorrência de traços semânticos ao longo do discurso;
ou seja, a isotopia que faz do texto uma unidade. Com isso, sua leitura passa a ser limitada às
suas virtualidades significativas; àquilo que está inscrito nele, não ao que o leitor queira
entender. É a leitura que deve ser feita, não a que se escolhe fazer, nem a que se consegue
fazer; mas a que o texto permite.
Com esse entendimento, o autor reconhece a importância da isotopia para a
interpretação e verificação dos mecanismos que compõem os textos humorísticos, quando
afirma que:
O conceito de isotopia é extremamente importante para a análise do discurso, pois permite determinar o (s) plano (s) de leitura dos textos, controlar a interpretação dos textos pluri-significativos e definir os mecanismos de construção de certos tipos de discurso, como, por exemplo, o humorístico55.
Assim, a semiótica, mais uma vez, apresenta-se como teoria que contribui para a
análise da linguagem do humor. E nesse cerne, dialoga com Possenti (2001), que defende a
idéia de que o texto é o fator mais relevante no processo de leitura. Para ele, a piada demanda
e limita a atividade do leitor, devido aos detalhes linguísticos com que o leitor precisa ser tão
atento56. Sendo o fator mais importante a se considerar no trabalho de interpretação, não o
único, o texto apresenta marcas que direcionam a leitura; por isso é que Fiorin considera
essencial a observação dos desencadeadores ou conectores de isotopia, gatilho linguístico para
Possenti. A análise semiótica de um texto humorístico prescinde, portanto, dessa observância,
para que nenhum plano de leitura seja desprezado.
55 FIORIN, José Luiz. Op. Cit. p. 11856 POSSENTI, Sírio. Op. Cit. p. 39
2. PREPARANDO O CORPUS
2.1 TEORIAS DO HUMOR VERBAL: O CASO DAS PIADAS
Com a afirmativa de que o humor é uma faculdade humana, Travaglia (1990) principia
sua Introdução aos estudos do humor pela linguística, acenando para a hipótese de que sua
função vai além de fazer rir. Segundo este autor, o humor serve para realizar denúncias,
manter equilíbrios sociais e psicológicos, revelar outras visões de mundo das realidades
naturais ou culturais que nos cercam, demonstrando, assim, falsos equilíbrios57.
Na verdade, seu trabalho é uma panorâmica sobre os estudos linguísticos do humor e
tem como fontes principais Raskin e Freud, antes de quem, conforme o primeiro, não se
poderia falar sobre pesquisa do humor. Neste sentido, Travaglia apresenta a seguinte assertiva
a respeito da visão freudiana do humor:
57 TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Uma introdução aos estudos do humor pela lingüística. In: Delta, 6 , 1990, p. 55 – 82
Para Freud o humor permite descobrir fontes de prazer reprimidas pela censura e o prazer vem pelo fato de se enganar o censor. Ao mesmo tempo ele reconhece o humor como um fenômeno social58.
Sem se apegar às funções sócio-psicológicas do humor, mas sim ao seu
funcionamento, ou mais precisamente, voltando-se para o que faz um texto ser humorístico,
Raskin (1987) procura discutir uma teoria linguística do humor verbal. Para Conde (2005), “o
objetivo de sua teoria é formular as condições necessárias e suficientes, em termos puramente
semânticos, para que um texto seja engraçado” 59. Por outro lado, Raskin reconhece o caráter
interdisciplinar do humor, ao entendê-lo como um fenômeno multifacetado complexo60.
É com base nessa afirmativa que Aragão (2005) realiza uma análise da Cartilha do
Lula, proposta pelo jornalista José Simão (Macaco Simão), assumindo pressupostos da
dialetologia e da sociolinguística. Para verificar aspectos fonético-lexicais e semânticos que
entram nas composições do referido jornalista, a autora demonstra como possibilidades
estruturais e combinatórias – que o sistema permite – podem fazer com que surjam novos
signos com conotações engraçadas e humorísticas61.
Por outro lado, outros autores têm buscado, no humor, verificar aspectos de seu
funcionamento sócio-cultural, sem, contudo, relegar a segundo plano os linguísticos. Isso
acontece ora porque veem neles a possibilidade de demonstrar as práticas sociais e realidades
que o discurso humorístico reflete, ora porque deles se valem para esboçar a constituição de
um dado gênero textual/discursivo.
Nesse sentido, Conde (2005) busca, além dos aspectos linguísticos, dar conta de vários
níveis de intelecção emaranhados numa piada. Para tanto, vale-se da análise do discurso, da
teoria semântica dos scripts formulada por Raskin e de considerações freudianas sobre os
chistes. Numa abordagem pragmática do discurso humorístico, o autor intenta dar corpo a
uma teoria discursiva do humor. Por outro lado, a fim de também confirmar que os estudos
humorísticos são empreendimentos interdisciplinares62, Muniz (2004) desenvolve um trabalho
que visa à caracterização do gênero piada, apoiando-se na Linguística textual, Análise do
discurso de linha francesa e Pragmática. A autora tem como objetivo fornecer elementos para
que a piada seja considerada um gênero inerentemente narrativo63.
58 TRAVAGLIA, Luis Carlos. Op. Cit. p. 6059 CONDE, Gustavo. Op. Cit. p. 3660 RASKIN, Victor. Op. Cit. p. 1161 ARAGÃO, Maria do Socorro Silva de. Cartilha do Lula – uma análise fono-léxico-semântica. Revista de Letras. Fortaleza, v. ½, n. 27, 2005. p. 90 - 95 62 RASKIN, Victor. Op. Cit. p. 1163 MUNIZ, Kassandra. Piada: conceituação, constituição e práticas – um estudo de um gênero. Campinas, 2004. Dissertação (Mestrado) – Unicamp.
De fato, um dos pontos em comum apresentados pelos dois pesquisadores supracitados
são os pressupostos da teoria semântica do humor verbal na linha de Raskin. Além disso,
tomam piadas como corpus, a fim apontar novos rumos de análise para as mesmas. A base de
tal teoria semântica está alicerçada sob cinco pilares, através dos quais é possível considerar
um dado texto como humorístico, ou melhor, como uma piada. E Possenti (2001) apresenta-os
assim:
Segundo Raskin (1987: 17), uma caracterização do chiste, feita em termos semânticos, conteria os seguintes ingredientes: a) uma mudança de comunicação bona-fide para o modo não bona-fide de contar piadas; b) o texto considerado chistoso; c) dois scripts (parcialmente) superpostos compatíveis com o texto; d) uma relação de oposição entre os dois scripts; e) um gatilho, óbvio ou implícito, que permite passar de um script a outro64.
A questão central, conforme Possenti, é que, para a linguística, o que mais interessa é
a descrição dos gatilhos e a verificação da compatibilidade entre os dois scripts, ou seja,
identificação de razões (linguísticas) que fazem com que sejam compatíveis. No entanto,
aceitando os preceitos de Raskin, é preciso entender que as piadas não se constituem só de
elementos verbais. Em suas palavras,
All the five components of the joke, postulated by the script-based theory of humor, should be present between the text of the joke and its linguistic and extralinguistic context, or in other words, between the text and the situation in which it is uttered65.
Assim, entendemos que, segundo Raskin (1987), as piadas não dependem apenas do
aspecto linguístico, mas também do contexto extralinguístico, da situação de uso; logo, não só
dos elementos verbais que entram em jogo, mas das condições de produção. Além do mais,
todos os cinco pilares (ou ingredientes) precisam estar presentes entre texto e contexto, pois se
qualquer um faltar, não haverá piada.
Voltando aos pilares da teoria de Raskin (1987) apresentados por Possenti (2001),
alguns conceitos precisam ser aclarados, como a ideia de script e a da mudança de
comunicação bona-fide para não bona-fide. Conde (2005) diz que “o script é uma espécie de
roteiro de práticas sociais específicas” e que, por isso, “quando Raskin fala em scripts
sobrepostos, já fala em discurso, se se quiser” 66. Esta ideia advém da concepção que possui os
analistas de discurso sobre a estreita relação existente entre as práticas sociais e os discursos.
64 POSSENTI, Sírio. Op. Cit. p. 2265 RASKIN, Victor. Op. Cit. p. 18 “Todos os cinco componentes da piada, postulados pela teoria de humor com base em script, devem estar presentes entre o texto da piada e seu contexto linguístico e extralinguístico, ou em outras palavras, entre o texto e a situação em que ele é proferido.”66 CONDE, Gustavo. Op. Cit. p. 45
Já Raskin (1987) define os “scripts como entidades semânticas formais, que resultam da
análise semântica de um texto” 67. Como roteiro de práticas, os scripts são, pois, reconhecidos
(e conhecidos) tanto numa situação de comunicação oral quanto numa análise de um dado
texto escrito. É o reconhecimento de um novo script que se sobrepõe a um primeiro que
instaura a mudança de comunicação bona-fide para não bona-fide.
Esses modos de comunicação são explicitados por Garcia (2008), quando diz que
Raskin, ao distinguir tais modos de comunicação, elabora um princípio de cooperação
humorístico, nos moldes dos princípios de cooperação de Grice. Assim sendo, o autor aponta
que a maioria das formas de comunicar-se, desde que não se transgrida o princípio de
cooperação, é denominada comunicação bona-fide, ou fidedigna. Ao transgredir tal princípio,
portanto, os interlocutores situam-se no âmbito da mentira ou do chiste (humor), que seriam
usos desviados da linguagem68.
Ainda segundo Garcia (2008), se para Raskin o humor implica um desvio no uso da
linguagem, Curcó apresenta uma visão diferente, visto que, para ele, no humor, operam os
mecanismos de sempre. Ou seja, os mesmos mecanismos que operam no humor estão
presentes em outras situações de uso da linguagem. Neste sentido, há um diálogo com
Possenti, que não vê necessidade de uma linguística do humor, uma vez que
[...] não há uma linguística que se ocupe de decidir se os mecanismos explorados para a função humorística têm exclusivamente esta função ou se se trata do agenciamento circunstancial de um conjunto de fatores, cada um deles podendo ser responsável pela produção de outro tipo de efeito em outras circunstancias ou em outros gêneros textuais69.
No primeiro caso, o humor poderia ser pensado como uma técnica própria do ser
humano para alcançar, pela linguagem, determinados objetivos, seja fazer rir ou, como
apresenta Travaglia, denunciar, manter ou quebrar equilíbrios sociais e mesmo revelar novas
visões de mundo. No entanto, se no humor da palavra, como preceitua Possenti, existem
recursos ou mecanismos da linguagem que possam ser tão bem observados quanto em outras
situações de uso – ou até melhor –, é porque os mecanismos linguísticos que operam no
humor não possuem exclusivamente a função de produzi-lo.
Ele é, portanto, mais um campo de manifestação da linguagem, com gêneros diversos,
mas com características que acenam para uma estabilidade. Uma ordem à qual subjazem
vários gêneros textual-discursivos, que, pelo menos no que concerne ao gênero piada, parece
67 RASKIN, Victor. Op. Cit. p. 1668 GARCIA, Francisco Javier Sanchez. Teorias linguísticas del humor. www.proel.org/articulos/humor.htm acessado em 25/06/200869 POSSENTI, Sírio. Op. Cit. p. 21
estar bem definida. Segundo Conde (2006), com regras e personagens preferenciais,
componentes consagrados, como o simulacro, a estereotipia e a sobreposição de scripts, além
de possibilitar invariavelmente a descoberta de novos sentidos, as piadas apresentam-se como
um gênero de discurso70. Sendo gênero, é de se pensar que podem ser alocadas em grupos ou
ordens cujos gêneros integrantes apresentem funções sócio-discursivas e construções de
enunciados similares.
A esse respeito, Bakhtin (2003) atesta que os tipos relativamente estáveis de
enunciados são denominados gêneros do discurso e que estes, para que assim sejam
considerados, devem apresentar certa estabilidade no conteúdo temático, no estilo e
construção composicional. Por estilo de linguagem o autor entende a seleção de recursos
lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua71. É nesse sentido, portanto, que as piadas são
consideradas gêneros textual-discursivos, visto serem práticas discursivas ou formas de ação
no mundo que apresentam características de certo modo estáveis.
Independentemente da teoria (textual ou discursiva), as piadas não deixam de ser
veículo de um discurso proibido, subterrâneo, não oficial; ou seja, de discursos não
explicitados correntemente72. Dado interessante também nas piadas é que elas não possuem
autor definido, sendo a evidência de que existem discursos que se dizem – que são ditos por
todos – dadas certas condições73. Mas a ausência clara de um autor não implica
impossibilidade de se buscar, nas piadas, um suporte subjetivo, porque, independentemente de
sua condição de “encontrada” e não “feita”, seu aparecimento depende de um enunciador,
“alguém cuja face não nos é mostrada, uma instância sem ponto de vista, mas que articula e
antecipa todos os possíveis” 74. Assim sendo, tanto na abstração quanto na sua consequente
materialidade, as piadas operam com discursos que possuem um enunciador, alguém a quem
se pode atribuir uma condição de sujeito da enunciação; logo, responsável pelo discurso nela
veiculado. Este, certamente clivado por dois mundos sócio-culturais; ou melhor, pertencente a
um mundo cujos conhecimentos que compartilhe se entrecruzem em dois scripts, roteiros de
práticas discursivas que se opõem, usualmente, em um sentido especial, como sustenta Raskin
(1987).
Quanto à definição de script, na visão da linguística textual, pode-se entendê-lo como
um feixe estruturado e formalizado de informação semântica inter-relacionada75. Segundo
70 CONDE, Gustavo. Op. Cit. p. 6371 BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 26172 POSSENTI, Sírio. Op. Cit. p. 2673 POSSENTI, Sírio. Op. Cit. p. 3774 CONDE, Gustavo. Op. Cit. p. 6275 TRAVAGLIA, Luis Carlos. Op. Cit. p. 76
Travaglia (1990), é com base nesta noção que Raskin, aplicando-a ao humor, cria sua teoria,
cuja sustentação apresenta duas hipóteses principais: a) o texto é compatível, em seu todo ou
em parte, com dois scripts diferentes; b) os dois scripts com os quais o texto é compatível são
opostos em um sentido especial76.
Tais hipóteses são oriundas de uma questão-problema que Raskin considera central no
estudo do humor: “O que é engraçado?”. Para respondê-la, ele defende que o humor verbal
deve ser visto como um texto e em que se deve buscar descobrir um conjunto de propriedades
linguísticas tais que qualquer texto que as apresente será engraçado. Travaglia ainda
acrescenta a esta posição o fato de que o texto tenha que ser engraçado para alguém, mas não
necessariamente para todo mundo. Neste cerne, o texto que for percebido como engraçado por
alguém, terá tais propriedades77. Ou seja, é preciso que o texto apresente os cinco ingredientes
já mencionados acima, quando recorremos a Possenti, para que possamos considerá-lo uma
piada. Do contrário, pode até ser visto por alguém como um texto engraçado, mas não
necessariamente ele será considerado uma piada.
2.1.1 A heterogeneidade no discurso das piadas
Segundo Possenti (2001), as piadas parecem ter sido criadas a propósito, caso se
queira ilustrar a intertextualidade ou a heterogeneidade dos discursos. Para ele, qualquer texto
com mais de um sentido pode servir para este fim, mas há chistes que invocam explicitamente
a intertextualidade78. Por outro lado, como preceitua Barros (2005), é no jogo da
intertextualidade que se pode, através do exame acurado dos procedimentos da semiótica,
construir os sentidos de cada texto e recuperar a trama ou enredo da sociedade e da história79.
Assim ocorre com os quadrinhos, no âmbito do humor e, da mesma forma, com textos da
história, literatura, ou com discursos políticos ou religiosos, todos heterogêneos.
Sobre esta noção, Maingueneau (1997) entende que, quando se fala em
heterogeneidade do discurso, o que se pretende é tomar conhecimento de uma relação radical
existente entre seu “interior” e seu “exterior” 80. Tal autor distingue a heterogeneidade
mostrada da constitutiva com a seguinte explicação:
76 TRAVAGLIA, Luis Carlos. Op. Cit. p. 7777 TRAVAGLIA, Luis Carlos. Op. Cit. p. 6178 POSSENTI, Sírio. Op. Cit. 3879 BARROS, Diana Luz Pessoa de. Op. Cit. 8380 MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. Campinas: Pontes, 1997. p. 75
[...] a primeira incide sobre as manifestações explícitas, recuperáveis a partir de uma diversidade de fontes de enunciação, enquanto a segunda aborda uma heterogeneidade que não é marcada em superfície [...] 81
Neste sentido, os discursos têm formações que, se não apresentam duas dimensões,
possuem uma organização advinda da relação com o que se imagina ser exterior, mas que, na
verdade, faz parte de sua identidade82. É por isso que o autor, para tratar dessa questão, aponta
que é preciso considerá-la em dois planos diversos: um plano de superfície e outro de ordem
interdiscursiva.
Também diferenciando tais planos sob a denominação respectiva de intertexto e
interdiscurso, Orlandi (2003) aponta que, enquanto o primeiro restringe-se à relação de um
texto com outros textos, o segundo “é da ordem do saber discursivo, memória afetada pelo
esquecimento, ao longo do dizer” 83. Numa definição mais ampla, a autora sustenta,
inicialmente, que o interdiscurso é aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente.
E completa, dizendo:
[...] é o que chamamos memória discursiva: o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma de pré-construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada de palavra84.
Para Orlandi, portanto, o que é dito depende de um já-dito, estando todo dizer
diretamente ligado a um dito, e esquecido. É por isso que a autora conceitua o interdiscurso
como “conjunto de formulações feitas e já esquecidas que determinam o que dizemos” 85.
Nessa perspectiva, esquecimento é entendido como fator ideológico, pertencente à instância
do inconsciente, por termos a ilusão de que dizemos o original, quando, na verdade,
retomamos sentidos pré-existentes. E é por isso que Orlandi completa:
Para que minhas palavras tenham sentido, é preciso que elas já façam sentido. E isto é efeito de interdiscurso; é preciso que o que foi dito por um sujeito específico, em um momento particular, se apague na memória para que, passando para o “anonimato”, possa fazer sentido em minhas palavras86.
Com tais considerações a autora acena para um diálogo com o que preceitua Barros
(2003), que, ao tratar de conceitos bakhtinianos, como dialogismo, polifonia e
intertextualidade, diz ser este último a dimensão primeira de que o texto deriva. Ou seja, para
ela instaura-se um primado da intertextualidade (ou interdiscursividade, se se quiser separar),
81 MAINGUENEAU, Dominique. Op. Cit. 7582 MAINGUENEAU, Dominique. Op. Cit. 7583 ORLANDI, Eni Puccnelli. Análise de discurso – princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2003. p. 3484 ORLANDI, Eni Puccinelli. Op. Cit. p. 3185 ORLANDI, Eni Puccinelli. Op. Cit. p. 3486 ORLANDI, Eni Puccinelli. OP. Cit. p. 34
sobre a textualidade, quando se tem um diálogo entre as vozes internas de um dado texto 87,
que se constitui a partir dessa intertextualidade e não o contrário.
Também sobre a heterogeneidade dos discursos, Fiorin (2003) realiza uma
diferenciação relevante. Entendendo que o conceito de intertextualidade concerne ao processo
de construção, reprodução ou transformação do sentido88, o autor diz ser preciso diferenciar os
dois planos da heterogeneidade, caso se distinga a noção de discurso da noção de texto.
Sendo assim, conceitua o plano de superfície como processo de incorporação de um
texto em outro, seja para reproduzir ou transformar o sentido incorporado, podendo se
manifestar através de três processos: citação, alusão e estilização89. O primeiro pode confirmar
ou alterar o sentido do texto citado; no segundo, não se citam as palavras, mas se reproduzem
construções sintáticas em que certas figuras são substituídas por outras; já o terceiro processo
é a reprodução do conjunto dos procedimentos do estilo de outrem.
Por outro lado, a interdiscursividade é vista pelo autor como a incorporação dos
percursos temáticos e/ou figurativos de um discurso em outro. Os processos interdiscursivos
ocorrem de duas formas: através de citação, com a repetição de percursos temáticos e/ou
figurativos; e de alusão, ao se incorporarem temas e/ou figuras de um discurso que serve de
contexto para a compreensão do que foi incorporado90.
Desta forma, Fiorin (2003) afirma que a interdiscursividade não implica
intertextualidade, embora o contrário seja verdadeiro, uma vez que se referir a um texto
implica referir-se ao discurso nele manifestado, mas não obrigatoriamente se chega a um
mesmo texto quando se recorre a um mesmo discurso. Ou seja, segundo ele, a
intertextualidade não é um fenômeno necessário para a constituição de um texto, mas a
interdiscursividade o é para um discurso; ou seja, ela é inerente à sua constituição91.
Voltando, pois, ao que preceitua Possenti, sobre a heterogeneidade discursiva, vale
salientar o exemplo dado com o chiste “O futebol é o craque do povo”. Segundo o autor, há
neste pequeno texto uma alusão à conhecida frase, “a religião é o ópio do povo”, que foi
incorporada ao âmbito do futebol, passando a ser dita “o futebol é o ópio do povo”. Possenti
explica que, devido à troca da palavra ópio por craque, o leitor é levado à descoberta das
correlações entre craque do futebol, jogador de qualidades admiráveis e diferenciadas, e
87 BARROS, Diana Luz Pessoa de. Dialogismo, polifonia e enunciação. In: BARROS, Diana Luz Pessoa de e FIORIN, José Luiz (orgs.). Dialogismo, polifonia e intertextualidade. São Paulo: Edusp, 2003. p. 04 88 FIORIN, José Luiz. Polifonia textual e discursiva. In: BARROS, Diana Luz Pessoa de e FIORIN, José Luiz (orgs). Dialogismo, polifonia e intertextualidade. São Paulo: Edusp, 2003. p. 2989 FIORIN, José Luiz. Op. Cit. p. 3090 FIORIN, José Luiz. OP. Cit. p. 32, 3491 FIORIN, José Luiz. Op. Cit. p. 35
crack, droga considerada, na atualidade, entre as mais perigosas no que tange aos efeitos
nocivos ao usuário e à dependência a que este se submete. Além disso, esta frase certamente
evoca as anteriores (religião é o ópio do povo / futebol é o ópio do povo), residindo sua graça
também nesta descoberta.
Neste cerne, a imposição do texto sobre o leitor sustenta-se através dos dispositivos
de que o primeiro dispõe, para apresentar ao segundo diversas possibilidades de leitura, a fim
de que, em seguida, possa impedir-lhes algumas92. Dispositivos estes que fazem com que o
leitor volte-se para outros textos, caídos no esquecimento, e que são retomados, para que um
dado texto possa significar. Nesse jogo ambíguo da intertextualidade é que determinadas
piadas constroem o humor, decorrente da (re) descoberta do conhecido, porém, esquecido, e
que retorna sob outra “face”, pré-construída, com sentidos reproduzidos e/ou transformados.
Se entendermos, portanto, que através de relações intertextuais os textos impõem algo
a algum leitor; isto é, que pela relação com outros textos é que as piadas também podem
significar, quando impõem determinados sentidos aos leitores, é preciso aceitar o primado do
intertexto sobre o texto, pelo menos neste caso. É preciso que, assim como a
interdiscursividade, a intertextualidade seja entendida como constitutiva e necessária para os
sentidos; logo, para a significação dos discursos veiculados nas piadas.
2.2 O DISCURSO RELIGIOSO
Para tratar das formações discursivas que dispõem de artifícios persuasivos, Citelli
(1993) diz ser o discurso autoritário persuasivo por excelência, visto abrigar todas as
condições para que ocorra a dominação pela palavra. Sobre ele, ressalta o autor:
É um discurso exclusivista, que não permite mediações ou ponderações. O signo se fecha e irrompe a voz da ‘autoridade’ sobre o assunto, aquele que irá ditar verdades como num ritual entre a glória e a catequese. O discurso autoritário lembra um circunlóquio: como se alguém falasse para um auditório composto por ele mesmo. É na forma discursiva que o poder mais escancara suas forma de dominação93.
Visto por este ângulo, a persuasão está diretamente ligada à dominação, que neste caso
se dá pelos sentidos tomados como únicos; são verdades absolutas, sem possibilidade de
contestação. Nesta perspectiva, o autor acredita que o discurso religioso apresenta as
formações discursivas mais explicitamente persuasivas, cujo eu enunciador, além de não 92 POSSENTI, Sírio. Op. Cit. p. 6293 CITELLI, Adilson. Linguagem e persuasão. São Paulo: Ática, 1993. p. 39
poder ser visto ou analisado, possui voz que engloba todas as outras, inclusive a de quem fala
em seu nome. Assim, o autor o caracteriza como um discurso de autoria sabida, mas não
determinada, pelo fato de seu representante construir sua fala como verdade não sua, mas do
outro, “aquele que, por ser considerado determinação de todas as coisas, engloba todas as
falas do rebanho”94.
Já para Orlandi (1996), tem-se, no discurso autoritário, uma tendência à monossemia,
pois sua polissemia é contida. Para a autora, todo discurso é polissêmico por definição e o
autoritário, por consequência o religioso, tende a estancar a polissemia95, visto que os sentidos
não podem ser quaisquer sentidos, mas aqueles que a Igreja adota. É por isso que ela afirma
que a interpretação da palavra de Deus é regulada; e prossegue com as seguintes colocações
sobre o que regula a palavra divina:
No cristianismo, enquanto religião institucional, a interpretação própria é a da Igreja, o texto próprio é a Bíblia, que é a revelação da palavra de Deus, o lugar próprio para a palavra é determinado segundo diferentes cerimônias96.
Segundo a autora, como no discurso religioso fala a voz de Deus, existe um
desnivelamento fundamental na relação entre locutor e ouvinte – no caso da modalidade oral
– sendo o locutor do plano espiritual (Deus) e o ouvinte do temporal (homens). Daí se
constitui a assimetria que leva a não-reversibilidade de tais planos: os homens não podem
ocupar o lugar de locutor, pois este é o lugar de Deus. É esta a relação de interlocução que
constitui o discurso religioso, dada e fixada pela assimetria97.
O que existe, portanto, é um mecanismo de incorporação de vozes, no qual uma voz se
fala na outra da qual é representante. Para Orlandi, outros discursos dispõem deste
mecanismo, tais como o discurso político, em que a voz do povo se fala no político,
candidato; ou o pedagógico, no qual a do saber se fala na voz do professor. Desta forma, no
discurso religioso, a voz de Deus se fala na voz do padre – ou do pastor, se se pensar na
ideologia cristã sob suas duas vertentes mais difundidas. Outros discursos apresentam
diferentes graus de autonomia do representante em relação à voz que fala nele, mas no
religioso, segundo a autora, nenhuma autonomia se faz perceber, pois de forma alguma o
representante pode modificá-la98.
94 CITELLI, Adilson. Op. Cit. p. 4895 ORLANDI, Eni Puccinelli. O discurso religioso. In: A linguagem e seu funcionamento – as formas do discurso. Campinas: Pontes, 1996. p. 24096 ORLANDI, Eni Puccinelli. Op. Cit. 24697 ORLANDI, Eni Puccinelli. Op. Cit. 24398 ORLANDI, Eni Puccinelli. Op. Cit. 245
Após tais considerações, Orlandi sustenta que se mantém a distância entre o “dito de
Deus” e o “dizer do homem”, havendo uma separação – quiçá diferença – entre a significação
divina e a linguagem humana. É por isso que ela afirma manter-se obscura tal significação,
que, mesmo desejada, não pode ser acessada pelo homem, por este ser apenas, e tão somente,
porta-voz da palavra divina. Daí também a autora caracterizar o discurso religioso pela não-
reversibilidade dos planos (espiritual e temporal), criando o conceito de ilusão da
reversibilidade. Para ela, como não se pode interagir com Deus, o homem tem essa ilusão a
partir do momento em que seus representantes “falam” por ele. Contudo, ela não desconsidera
as diversas fórmulas que o ser humano cria para “alimentar”, tal ilusão, conferindo-lhes lugar
de destaque na caracterização do discurso religioso, quanto às marcas que o constituem. E
explica em que consiste a reversibilidade, sem confundi-la com a crença do cristão, que
acredita poder falar com Deus:
A reversibilidade não está em se poder falar também, ou se poder falar diretamente. O eu-cristão pode falar diretamente com Deus, mas isto não modifica o seu poder de dizer, o locutor de onde fala. O que, em análise de linguagem, significa que não se altera o estatuto jurídico do locutor99.
Ou seja, fala-se com Deus, mas não em seu lugar. Mesmo com espontaneidade,
contrariando as fórmulas prontas (Ó meu Deus! Senhor, faça com que...) não se reverte tal
estatuto. Mantém-se, pois, a dissimetria, porque se mantém a relação: de um lado a
onipotência divina; de outro, a submissão humana100.
Sobre a questão da fé, Orlandi afirma que esta é mais um constituinte que confirma o
estatuto da interlocução no discurso religioso, já que a fé é uma graça divina, dada por Deus
aos homens. Ela não emana deles; logo, é mais um fator que comprova a não-reversibilidade
entre os dois planos. Além disso, distingue os fiéis dos não-fiéis, os convictos dos não-
convictos; pela fé, o discurso religioso é uma promessa, mas, para os que não creem, é uma
ameaça101.
Outro “ingrediente” do discurso religioso para confirmar a principal propriedade em
questão – isto é, a ilusão da reversibilidade – é o milagre. Para Orlandi, à interferência divina
une-se a inexplicabilidade da ciência dos homens, para a constituição do milagre. Neste
sentido, os homens não operam milagres, mas sim Deus. As palavras que proferirem em
qualquer ato dito milagroso são, portanto, decorrentes da concessão divina, dita pelos homens,
mas o efeito é resultado da intercessão de Deus.
99 ORLANDI, Eni Puccinelli. Op. Cit. 247100 ORLANDI, Eni Puccinelli. Op. Cit. 247101 ORLANDI, Eni Puccinelli. Op. Cit. p. 250
No entanto, a ilusão da reversibilidade, sendo propriedade constituinte do discurso
religioso, implica uma consequência ainda mais relevante para quem se propõe estudar esse
gênero de discurso (tipo, no dizer de Orlandi): trata-se da relação do homem com o poder.
Assim a autora sustenta que a ilusão da reversibilidade toma apoio na vontade de poder que
têm os homens. Sobre isso ela acrescenta:
Essa vontade aponta para a ultrapassagem das determinações (basicamente de tempo e espaço): ir além do visível, do determinado, daquilo que é aprisionamento, limite. Ter poder é ultrapassar. E ter poder divino é ultrapassar tudo, é não ter limite nenhum, é ser completo102.
É desta vontade de poder que derivam as transgressões do discurso religioso, visto que
quem o transgride busca assumir o lugar do poder absoluto; ou seja, tomar o lugar de Deus e
ter poder sobre tudo, inclusive com a possibilidade de dizer em seu lugar aquilo que lhe for
conveniente. Caracterizada como blasfêmia, no entanto, a transgressão consiste numa quebra
das regras do jogo; é uma apropriação do inapropriável cujo traço principal é a gratuidade:
não muda nada, não traz nada, não prejudica nenhum ser humano; é um exercício de liberdade
que se faz por pura malícia103. Ultrajando a palavra de Deus, o blasfemo busca tomar seu
lugar, burlando a dissimetria dos planos, na perspectiva de reverter sua condição. Para
Orlandi, a blasfêmia nasce da contradição no interior de uma só e mesma palavra, a qual
decorre do maniqueísmo que concebe o mundo de forma dual.
2.2.1 Discurso religioso, mídia e intertextualidade
Segundo Orlandi (1996), o sentimento religioso não está presente apenas no espaço
dos templos ou nas formas institucionais da religião. Espalha-se pelo cotidiano, ao adquirir
múltiplas formas e acompanhar o homem em seu dia-a-dia. Neste caso, a ilusão da
reversibilidade encontra-se em qualquer fragmento de linguagem, não só nos dizeres
proferidos no espaço institucional (a Igreja) através dos representantes da palavra divina ou
nos comentários de quem dela faz uso para ratificá-la, como o faz o teólogo.
Sendo assim, a autora nos dá um bom exemplo de como o homem, com a mídia
escrita, pode apropriar-se do prestígio da palavra divina. Ao tratar do Golpe de 64 e suas
implicações, um jornalista, para eximir de culpa os pichadores do muro de um museu, diz que
“eles não sabem o que fazem.” 104 Nessa perspectiva, vemos que relações intertextuais não só
102 ORLANDI, Eni Puccinelli. Op. Cit. p. 253103 ORLANDI, Eni Puccinelli. Op. Cit. p. 254104 ORLANDI, Eni Puccinelli. Op. Cit. p. 256
estão presentes no discurso teológico, como característica forte que lhe é atribuída, mas
também em outros discursos que se apropriam (ou se beneficiam) da palavra divina.
No caso do exemplo da mídia jornalística citado anteriormente, é preciso que haja uma
remissão ao texto bíblico (LUCAS, 23: 33 – 34)105, para que aquele signifique, o que
caracteriza a intertextualidade. Já com o discurso teológico, tal relação se dá como um
comentário ao texto de origem. Na verdade, Orlandi prefere não fazer uma distinção estanque
entre discurso religioso e teológico. Diz apenas que o primeiro caracteriza-se pela
espontaneidade, enquanto o segundo, pela formalidade. Em suma, no teológico tem-se um
comentário do teólogo sobre a palavra divina, já no religioso existe a tomada da palavra pelo
representante, ou mesmo pelo fiel, de maneira espontânea, sem que ela seja modificada.
O fato é que, tanto o teológico quanto o religioso, se se quiser distinguir, são discursos
cuja autonomia do representante, ou teólogo, em relação a voz de Deus, praticamente inexiste,
o que lhes confere um caráter fechado. É por isso que a autora diz haver um discurso obscuro,
um dizer sempre-já-dito, que se fala para os homens106. E isto é um princípio da
intertextualidade, que se define, segundo a própria autora, pela remissão de um texto a outro
para que o primeiro signifique.
Sobre a relação mídia e religião na atualidade, Burity (2005) diz que o vínculo entre
essas duas instâncias do exercício linguístico aparece de duas formas: com a ocupação do
discurso religioso, em seu próprio nome, nos diversos espaços de que a mídia dispõe para
difusão (rádio, tevê, internet e outros); ou por meio do discurso comentado, através de
documentários, entrevistas, cobertura de notícias, entre tantas outras formas de se falar do
outro, de que a mídia faz uso. Além disso, o autor aponta que a presença da religião na mídia
se estende dos produtos oferecidos, nos espaços de que ela dispõe, à propriedade de veículos e
recursos de produção107. Em suma, Burity condensa essa relação da seguinte maneira:
[...] de um lado, a mídia exibe a religião como notícia, como polêmica, como produto para um certo público consumidor dos rituais e manifestações massivas da religião [...] De outro lado, a religião investe na mídia, certa de que a tecnologia da comunicação pode fazer muito para propagar seu discurso muito além de sua capacidade de difusão pelos meios clássicos da pregação ou da interação face-a-face108.
105 “Quando chegaram ao lugar do chamado Calvário, ali o crucificaram, bem como aos malfeitores, um à direita, outro à esquerda. Contudo Jesus dizia: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem.”106 ORLANDI, Eni Puccinelli. Op. Cit. p. 260107 BURITY, Joanildo A. Mídia e religião: os espectros continuam a rondar... Disponível em: www.comciencia.br/reportagens/2005/05/14_impr.shtml acessado em 10/07/2008108 BURITY, Joanildo A. Op. Cit. p. 02
De qualquer forma, mantém-se o primado da intertextualidade como nos ensinou
Orlandi, com o exemplo do jornalista. Mesmo que as ocorrências se deem na face teológica
do discurso religioso, é preciso que seu dizer institucional, ou seja, o texto bíblico seja alvo de
retomadas para que as reportagens, entrevistas ou discursos gravados (ou ao vivo) façam
sentido. Contudo, tais retomadas da palavra divina nos moldes em que preceitua Burity não
conferem ao discurso religioso nenhum efeito de ressignificação, ambiguidade ou malícia,
como no caso das blasfêmias de que trata Orlandi. São mais uma forma de reafirmar a palavra
de Deus ou comentá-la, expondo os pontos fortes e os obscuros.
3. ANÁLISE SEMIÓTICA DE PIADAS INTERTEXTUAIS
3.1 A PRIMEIRA PEDRA
Maria Madalena estava no meio da praça, prestes a ser apedrejada, quando Jesus
interviu109 a seu favor:
- Quem aqui nunca errou que atire a primeira pedra...
Todos que estavam ali recuaram e jogaram as pedras no chão, menos um português,
que se abaixou, pegou um tijolo do chão e jogou bem no meio da testa da coitada...
Então Jesus ficou inconformado e foi conversar com ele:
- Manoel, meu filho... Por acaso você nunca errou?
- Olha, senhor... Eu posso até ter errado, mas dessa distância não...
No que tange ao funcionamento dos mecanismos linguísticos para a geração dos
efeitos de humor, podemos dizer que esta é uma piada intertextual, porque ela se constitui a
partir da relação entre um texto e outro para significar. Envolve dois universos de discurso
109 Optamos por manter a conjugação verbal conforme a versão original, coletada no site www.aspiadas.com, ainda que tenhamos percebido desacordo com a norma padrão, que prescreve a conjugação interveio, visto apontar o verbo INTERVIR como derivado do verbo VIR, seguindo, pois, seus paradigmas de conjugação. Nossa intenção é manter a fidelidade aos corpórea que encontramos, consoante a variedade linguística do (s) internauta (s) que enviou (aram) a (s) piada (s).
distintos, os quais acionam simultaneamente temas e figuras que lhes são peculiares. Nesse
sentido, faz de início uma alusão à passagem bíblica João 8: 1-11110, em que Jesus é posto à
prova pelos escribas e fariseus, os quais lhe apresentam uma mulher adúltera a fim de que
diga se devem ou não apedrejá-la. Entretanto, o texto aciona em seguida um script
humorístico cujo personagem central é um típico português, estereotipado como burro. O
gatilho que proporciona tal mudança de script é o verbo “errar”, que entra em lugar de pecar e
permite que Manoel interprete a indagação de Jesus como errar um arremesso de uma pedra.
Percurso temático
Partindo da segmentação do texto, delineamos os momentos que nos permitirão traçar
os percursos narrativos de dois sujeitos semióticos (S) em A primeira pedra. São eles Jesus
(S1) e o português Manoel (S2). Eis, portanto, a segmentação da narrativa:
1. A EXPECTATIVA DO APEDREJAMENTO
2. A INTERVENÇÃO DE JESUS
3. O RECUO DOS AGRESSORES
4. A AÇÃO DO PORTUGUÊS
5. A INTERPELAÇÃO DE JESUS A MANOEL
6. A RESPOSTA DE MANOEL
3.1.1 Narrativização
Modalizado por um querer, o sujeito semiótico 1 (doravante S1) procura intervir na
ação daqueles que se propunham apedrejar Madalena, sua adjuvante, de quem ele se serve
para exemplificar e persuadir “todos”, por meio de um discurso de sedução. Com este, tenta
fazer-crer que “todos” não são diferentes de Madalena, porque também pecam; ou melhor,
erram. Logo, não devem apedrejá-la, se não quiserem apedrejar a si mesmos.
Seu objeto de valor (OV) principal é a fé das pessoas; para atingi-lo, traça um percurso
que vai da manutenção da integridade física de Madalena (OV1) ao convencimento de seu
oponente (Manoel) (OV3). Este, quando surge na narrativa, assim como “todos”, obstaculiza
o alcance do objeto de valor do S1.
110 Para realizar a mudança de script, a piada altera o versículo 7, que diz: “Como insistissem na pergunta, Jesus se levantou e lhes disse: Aquele que dentre vós estiver sem pecado, seja o primeiro que lhe atire pedra”.
S1
OV2
OV3S1
Já o S2, também modalizado por um querer-fazer, além de um poder-fazer, é
destinado por um querer coletivo de um grupo em que se insere: os agressores que pretendiam
apedrejar a Madalena. Tem Jesus como seu adjuvante (Adj.), o qual, em suas palavras, acena
para a possibilidade de alguém atingir a mulher; ou seja, lança o desafio àquele que nunca
“errou”. É impulsionado por este desafio que o S2 busca entrar em conjunção com seu objeto
de valor inicial (responder a Jesus).
Por outro lado, Jesus também figura como oponente do S2 no decorrer do percurso
narrativo, visto que vem a interpelá-lo na perspectiva de obstaculizar sua conjunção com o
terceiro objeto de valor: a ratificação de sua pontaria. O S2 busca, então, fazer-crer que possui
boa pontaria, ao afirmar que, àquela distância jamais errara, denotando ter capacidade para
fazê-lo. Logo, instaura-se também por um poder.
É possível dizer que, na busca de seus objetos de valor, existe uma diferença entre os
dois sujeitos semióticos da narrativa. O S1 principia disjunto de seu OV principal e, nas
palavras finais e atitudes do português, vê-se ainda disjunto, embora tenha ocorrido uma
conjunção momentânea, quando os outros agressores largam as pedras e recuam. Por outro
lado, o S2, que de início encontra-se disjunto com seu OV, termina por entrar em estado de
conjunção, porque acerta a pedra “bem no meio da testa da coitada”. Assim, consegue sua
auto-afirmação, como pretendido.
Apresentamos, em seguida, os percursos narrativos dos dois sujeitos semióticos em
questão. Primeiro, o percurso do sujeito semiótico 1 (S1):
Onde:
S1 = Jesus
OV1= Manter a integridade física de Madalena.
OV2= Convencer todos a admitirem seus erros.
OV3= Convencer Manoel.
OV1
S2OV2
OV3S2
Agora, o percurso narrativo do sujeito semiótico 2 (S2):
Onde:
S2 = Manoel
OV1 = Responder a Jesus
OV2 = Atingir Madalena
OV3 = Ratificar sua pontaria
3.1.2 Discursivização
“A primeira pedra” apresenta os seguintes atores, do ponto de vista das estruturas de
superfície: Jesus e Manoel, que figuram como sujeitos enunciadores nos diálogos presentes na
narrativa, concebida por um sujeito enunciativo. A Maria Madalena, que, na passagem
bíblica, apresenta-se no papel temático da mulher adúltera, permanece em tal papel. Todos
remete aos personagens bíblicos que pretendiam apedrejar Madalena (os escribas e os
fariseus) até ouvirem Jesus, que lhes convence a não mais apedrejá-la, tal como na Bíblia.
Verificamos um sincretismo actancial no ator Manoel: ora figura como o português, ora é
Manoel.
Quanto à categoria de espaço, vemos que é representado pelas expressões no meio da
praça, aqui e ali; já o tempo, com relação ao sujeito enunciador da piada, é marcado pela
própria referência a Jesus, o que demonstra um distanciamento desse sujeito. Fora isso, não
existem outros marcadores temporais que situem o sujeito enunciador, que denunciem seu
tempo, com relação à narrativa. A história não é do sujeito da enunciação, ele está de fora
dela, distante no tempo e no espaço.
Como o efeito de sentido é em 3ª pessoa, quando se tem a narração, e em 1ª, quando se
está diante da enunciação das personagens, pode-se dizer que existe distanciamento do ponto
OV1
de vista do sujeito enunciador, ao se tratar daquele que narra a piada, pois dela ele não
participa. Contudo, ao se analisar cada enunciação dos atores, pode-se observar, por exemplo,
uma projeção do eu-aqui-agora, como no enunciado “Eu posso até ter errado, mas dessa
distância não...” Nesse caso, tem-se o eu como o Manoel, “dessa distância” como marca de
lugar “aqui”, relativamente próximo a Madalena, e nas reticências a pressuposição de “não
erro” como agora, pela conjugação verbal no presente. Na verdade, o que existe é uma
concessão que o sujeito da enunciação faz: concede voz ora ao narrador, ora aos atores.
No que tange às figuras acionadas, tem-se Jesus no papel do líder religioso
benevolente, misericordioso. Com relação à passagem bíblica, está praticamente intacto,
exceto pelo fato de ser inserido num contexto situacional diferente do apresentado na
passagem, quando o português arremessa a pedra. Ainda assim, Jesus mostra-se
misericordioso, porque não condena, mas sim busca compreender o porquê de Manoel atingir
a mulher, o qual assume a figura do português, estereotipado como burro, por não entender a
mensagem de Jesus. Daí advém o efeito de humor: de uma reação inesperada e incomum ao
script religioso. O errar, para Manoel, é não acertar a pedra na mulher, mas daquela distância
em que se encontrava, ele afirma não ter como errar, por isso a atinge.
Nesse momento, o sujeito da enunciação busca dar mais dramaticidade à narrativa, ao
referir-se a Madalena como uma coitada e apontar Jesus num estado de inconformismo, mas
que vai conversar e dirigir-se ao português pelo termo “meu filho”. Um tratamento respeitoso
e carinhoso, que é retribuído com um “senhor”.
Do ponto de vista dos valores aos quais remete a piada, percebe-se que ela introduz
uma observação autocrítica que a passagem bíblica original promove, quando Jesus se dirige
àqueles que iam apedrejar Madalena. No entanto, os temas do perdão, da redenção, do amor
ao próximo e da auto-avaliação, evocados pelo texto bíblico, são postos de lado em favor do
riso com a trapalhada do português. Através de uma pequena modificação do verbo pecar
para errar, cria-se um gatilho que torna o signo interpretável ora como pecar, ora como errar
o arremesso da pedra.
A discursivização nessa piada reserva um ponto de discussão ainda mais intrigante: a
dos universos discursivos acionados. A significação da piada ocorre também através do
reconhecimento dos discursos que pertencem a universos discursivos distintos; ou seja, o
religioso e o humorístico. É na relação intertextual que se processa o acionamento desses
universos discursivos, pois o texto começa como uma paráfrase da passagem bíblica,
conservando termos, incrementando outros, mas sem transgredi-la totalmente. Quando o
gatilho é acionado, a piada traz o português e começa a transgressão, porque não havia
Tensão dialética
Perdoar Condenar
nenhum Manoel que não reconhecera a mensagem de Jesus, segundo a Bíblia, a ponto de
jogar uma pedra em Maria Madalena; ou seja, houve um acréscimo determinante de um
personagem não-bíblico ao texto. O discurso de que todo português é burro logo é
reconhecido e a mensagem que vale de reflexão em um texto sacro serve de motivo ao riso,
porque há quem a interprete totalmente contrária.
Apedrejar uma mulher em campo aberto faz parte do relato bíblico, assim como o faz
todo o enunciado que atire a primeira pedra. Do mesmo modo, uma atitude equivocada,
atrapalhada, faz parte do universo discursivo do humor, no que tange a atitudes de um
português. O que está em jogo aqui é a ideia preconceituosa de que os portugueses são burros
e esse estereótipo, por ser pertencente ao universo discursivo do humor, ao mundo das piadas,
já muda o rumo do texto que analisamos, porque já se pressupõe, antes mesmo de seu
desfecho, que algo inusitado vá ocorrer.
Na verdade, a piada faz sentido porque existem saberes compartilhados entre o
enunciador (aquele que escreveu a piada) e o enunciatário (aquele que lê). O fazer de
persuasão por parte do primeiro implica um fazer interpretativo do segundo, que, conhecedor
dos dois scripts, vê-se diante de uma cena inusitada: um português com interpretações
errôneas, o qual modifica os rumos de uma história até então religiosa, ou pelo menos bem
parecida com uma. Os saberes compartilhados a respeito da cultura religiosa a que pertence a
passagem e da ideia preconceituosa sobre a ignorância dos portugueses, a qual é veiculada nas
piadas, portanto, são os constituintes fundamentais à percepção intertextual que corroboram
para a geração do humor em “A primeira pedra”.
3.1.3 Estrutura Fundamental
Do ponto de vista das oposições semânticas que configuram o octógono, evolução do
quadrado semiótico desenvolvido por Greimas, considerando o script bíblico, perdoar é
eufórico e condenar disfórico. Nesse sentido, perdoar implica não-condenar e entre esses dois
termos tem-se seguir a Jesus, que quer dizer, nesse contexto, não atirar a pedra em
Madalena. Acertar é, pois, refletir e entender que, por também já ter errado/pecado, largar a
pedra. Condenar implica não perdoar, e entre esses termos está o pecar/errar. Eis a ilustração
representativa desse conflito:
Tensão dialética
Não atirar a pedraAtirar a pedra
Não-perdoarNão-condenar
Condenar Perdoar
Outro octógono ainda pôde ser formulado, segundo o script bíblico, mas do ponto de
vista dos agressores da Madalena, Assim, o eufórico é condenar e o disfórico é perdoar.
Condenar implica não perdoar, já perdoar implica não condenar. Entre a relação de
implicação eufórica, tem-se atirar a pedra (acertar) e entre a disfórica encontra-se não atirar
a pedra (errá-la), conforme observamos abaixo:
T. D.
Passagem bíblicaPiada
Não-parecerNão-ser
Ser Parecer
Por outro lado, no script humorístico os termos também se invertem quanto à euforia e
à disforia, mas nas relações de implicação uma mudança se processa: entre condenar e não
perdoar está o acertar (a pedra); já entre perdoar e não condenar encontra-se o errar (a
pedra). Dessa forma, a significação de errar, para o português, é disfórica e acertar/atirar é
eufórica, diferente de Jesus, para quem atirar é disfórico.
Um outro octógono ainda pode ser construído a partir da relação entre os dois scripts
superpostos: o humorístico e o religioso. Nesse caso, tem-se o jogo do ser e do parecer,
conforme Greimas (1975: 92), para quem “todo objeto semiótico, ou qualquer um de seus
elementos (...) existe no modo do ser e no modo do parecer ao mesmo tempo”. A partir dessa
assertiva, ainda podemos configurar a piada sob mais um diagrama, que nos permite, do ponto
de vista do script humorístico, concluir que o ser é eufórico e implica não parecer; já o
parecer é disfórico e implica não ser. Dessas implicações tem-se que o texto humorístico está
entre ser e o não-parecer, já a passagem bíblica está entre o parecer e o não ser. Assim
sendo, entendemos que o texto A primeira pedra parece passagem bíblica, mas é piada. E
mais: existe no modo do ser e do parecer ao mesmo tempo como uma piada com passagem
bíblica, conforme apresentamos na tensão dialética do esquema seguinte.
3.2 QUEM EU SOU?
Jesus estava entre seus seguidores e disse:
- Alguém dentre vós sabe verdadeiramente quem eu sou?
Um deles respondeu:
- O senhor é a manifestação escatológica das profundezas do nosso ser; a fundação
ontológica do contexto do nosso íntimo revelado.
E Jesus disse:
- Ooo queee?
Esta piada funciona por meio de uma relação intertextual com uma passagem bíblica,
na qual Jesus interroga seus discípulos e tem de Pedro a resposta: “Tu és o Cristo, o Filho do
Deus vivo” (MATEUS, 16:15–16). Na verdade, o efeito de humor é provocado pela presença
da variedade padrão em sua expressão mais exagerada, porque a resposta de Pedro conforme a
Bíblia é simples, e Jesus a entende como uma inspiração divina. Mas na piada ocorre o
contrário, ou seja, Ele não a entende; logo, o gatilho está na própria pergunta de Jesus, que
recebe uma resposta além do esperado; é o intertexto com a passagem bíblica que gera a
expectativa de uma resposta nos moldes do discurso religioso, expectativa esta que é quebrada
com uma falácia, exacerbação filosófica para a questão do ser.
Percurso temático
Assim como na piada anterior, a segmentação desta apresenta uma configuração
actancial que nos remete a dois sujeitos semióticos: Jesus (S1) e o seguidor (S2). Tal
segmentação pode ser expressa na seguinte organização temática:
1. A INTERPELAÇÃO DE JESUS
2. A RESPOSTA DO SEGUIDOR
3. SURPRESA SENTIDA POR JESUS
3.2.1 Narrativização
Modalizado por um querer, o S1 busca fazer com que seus seguidores creiam na
relevância de sua existência, persuadindo-lhes, por intermédio de um questionamento direto,
de que eles ainda não a concebem verdadeiramente. Seu objeto de valor principal (OV1) é,
pois, a fé de tais seguidores, a crença em seu poder, em seu nome e em sua relevância. Para
atingi-lo, o percurso que traça vai da expectativa de resposta gerada por sua interpelação
inicial à resposta que pretendia receber de um de seus discípulos. No entanto, a resposta que
recebe não condiz com as expectativas do S1, que fica disjunto de seu objeto de valor. Assim,
este seguidor passa de adjuvante potencial a oponente do S1, prejudicando a obtenção do
valor que ele busca.
Por sua vez, o seguidor é o sujeito semiótico 2 (S2), que tem como objeto de valor
(OV2) a ser alcançado a atenção de todos, visto dar uma resposta que passa a ser o foco das
interpelações e acarreta a surpresa sentida por Jesus; são dizeres que tomam a atenção do
questionamento inicial, pois nem mesmo Jesus os compreende. Neste sentido, o S2 está
modalizado por um poder-fazer, ao levar seu líder a surpreender-se e se questionar sobre tal
resposta.
Nesta perspectiva, pode-se dizer que o seguidor que responde a interpelação de Jesus é
seu oponente, do ponto de vista do programa narrativo do S1, mas sob a ótica do programa
narrativo do S2, Jesus é adjuvante desse seguidor. Com isso, o S2 fica conjunto com seu
objeto de valor, porque prende a atenção de todos, inclusive a de Jesus, ao proferir uma
resposta sem sentido. Vejamos agora os programas narrativos de cada sujeito semiótica da
narrativa em questão:
Dario.
S1
Dario.
S2
3.2.2 Discursivização
Quanto às estruturas discursivas, a piada em questão apresenta Jesus e seu seguidor
como atores. O primeiro assume o papel temático que lhe é comum às narrativas bíblicas
Dor.
OV1A fé dos homens
Opo. = seguidor
Dor.
OV2 atenção de todos
Adj. Jesus
(líder religioso, Salvador, Senhor); já o segundo, assume o papel temático de discípulo
questionador, aquele que interpela o líder, adianta-se ao mesmo, ou busca superá-lo pela
palavra. É como um aluno prodígio, que interage com o mestre, ou rouba-lhe a atenção com
colocações intrigantes e/ou espetaculares.
Figurativizado como líder religioso, Jesus interroga seus seguidores a respeito do
verdadeiro conhecimento que têm sobre ele. Nessa enunciação existe a projeção “eu-aqui-
agora”, que reconhecemos a partir do questionamento direto (dentre vós = aqui) e da
conjugação verbal em tempo presente (sabe = agora). Já o seguidor, que na passagem bíblica
está figurativizado pelo discípulo Simão Pedro, tem sua enunciação, nesta piada, marcada
pelo efeito de subjetividade, visto que instaura, no diálogo com o “tu” (Senhor), o “eu” que se
manifesta sob um “nós” (nosso ser... nosso íntimo).
Quanto à espacialização, nada consta na piada que aponte um espaço aberto ou
fechado, a não ser a própria referência que faz a passagem bíblica. Nela Jesus está a caminho
de um lugar, Cesaréia de Filipe, e é justo neste caminho que interroga seus discípulos, como
está descrito no Evangelho de Marcos 8: 27-29111, assim como em Mateus 16: 15-16. É, pois,
com base no script religioso que o enunciatário passa a construir a noção de espaço. Se
compartilhar o mesmo conhecimento do enunciador, no que tange à narrativa bíblica,
embasar-se-á nela para ter a noção do espaço em que se desenrola o enredo.
No que tange à apreciação do sujeito enunciativo que concebe tal piada, o efeito
parece ser de distanciamento, pois ele empresta sua voz aos atores de tal maneira que aparenta
apenas contar a história, como um narrador onisciente, mas sem emitir juízos de valor. Como
em piadas a definição de autoria é praticamente nula, pode-se apenas dizer que o sujeito da
enunciação confere ao ator seguidor de Jesus o papel de enunciar uma resposta vazia,
incoerente o bastante para passar a ser centro das atenções. E já que seus dizeres não “têm
sentido”, nem mesmo para o ator Jesus, surge o efeito de humor, com a quebra de expectativa
diante de uma resposta com exacerbado intelectualismo.
O humor advém, portanto, do uso exagerado, redundante e incoerente do padrão culto
formal. “Escatológico” remete ao “fim dos tempos”, mas se Jesus salva, o que ele tem a ver
com a manifestação escatológica das profundezas de nosso ser? Já fundação ontológica
refere-se à compreensão do “ser” como ser de natureza comum e inerente a todo ser vivo.
Portanto, se a pergunta “(...) quem eu sou?” gerou tal resposta, talvez nem mesmo Heidegger,
que dedicou grande parte de sua obra à questão do Ser, poderia prevê-la. Segundo Giles
111 “Então Jesus e os seus discípulos partiram para as aldeias de Cesaréia de Filipe; e, no caminho, perguntou-lhes: Quem dizem os homens que eu sou?”
Tensão dialética
Passagem bíblicaPiada
Ser Parecer
(1989), sua filosofia buscou sustentar que o homem é a única criatura a quem foi confiado o
pensamento e a guarda do Ser 112.
Contudo, na segunda fala do ator Jesus tem-se uma implicação relevante do ponto de
vista da apropriação do discurso religioso pela piada: a ressignificação de Jesus como um
homem comum, não sábio ou ser divino. Isto se evidencia na sua falta de compreensão sobre
o que foi proferido, pois a resposta dada por um de seus seguidores, ainda que vaga ou
incoerente, além de remeter ao padrão culto da língua, prescinde de conhecimento filosófico.
Para um mero carpinteiro, entender o ser pelo viés da ontologia ou compreender sua
existência pela escatologia não parecem uma tarefa corriqueira.
Assim, a quebra de expectativa ocorre justamente pelo uso indevido da variedade
padrão e sua presença é que pode ser considerada motivo de riso. Ou seja, o uso da “norma
culta” é tão passível de incoerência quanto o de qualquer variedade lingüística; depende do
contexto em que tal uso ocorre. No caso dessa piada, o exagero é tanto que ela, através da
resposta do discípulo, faz crer que nem mesmo Jesus consegue compreender tal definição,
dita naquelas palavras, com aquela variedade lingüística.
Desta forma, reiteramos o que ocorre em A Primeira pedra: o saber compartilhado
sobre a passagem bíblica é constituinte para a percepção intertextual e contribui para a
geração do humor. Além do mais, com e desvio de atenção que provoca a exacerbada resposta
do seguidor, o foco sai de Jesus e recai sobre a busca inútil de entendimento sobre os dizeres
proferidos por seu seguidor. Mais uma vez, os valores cristãos são relegados a segundo plano
em prol do riso. Esta parece ser a constante das piadas intertextuais com passagens bíblicas:
gerar expectativa a partir de uma narrativa similar à bíblica e quebrá-la, com uma ênfase em
outro aspecto, que se impõe ao primeiro, gerando o efeito de humor.
3.2.3 Estrutura Fundamental
Também no nível profundo, as piadas analisadas até aqui apresentam pontos de
convergência. O principal está na oposição ser x parecer, que se repete entre “A primeira
pedra” e “Quem eu sou?”.
112 GILES, Thomas Ransom. História do existencialismo e da fenomenologia. São Paulo: EPU, 1989. p.
Tensão dialética
Resposta dadaResposta pretendida
Não-ocultaçãoNão-revelação
Revelação Ocultação
Nesse sentido, vemos que a piada em questão oscila entre o parecer passagem bíblica,
mas é piada, visto que principia sua história com uma narração que remete ao relato bíblico,
porém seu desfecho é humorístico.
Outro esquema pode ser montado, se considerarmos como eufórico a revelação de
quem é Jesus. Sob essa ótica, tem-se uma tensão dialética entre revelação x ocultação. Com a
inclusão dos termos contraditórios não-ocultação e não-revelação, as implicações passam a
ser as seguintes: revelação implica não-ocultação, resultando na resposta pretendida; já
ocultação implica não-revelação, das quais resulta a resposta dada. No octógono, os termos
podem ser organizados da seguinte maneira:
Tensão dialética
DesconhecimentoConhecimento
Não-ignorânciaNão-sabedoria
Sabedoria Ignorância
Outros octógonos ainda podem ser montados, caso se leve em consideração a mudança
de foco que a piada propicia entre o universo de discurso religioso e o humorístico. Teríamos
tensões entre o Ser divino e o Ser mundano – do mundo, mortal, não sabedor de todas as
coisas, inclusive de escatologia ou ontologia – no que se refere à noção de quem é Jesus; ou
entre o Ser religioso e o Ser como entidade passível de explicação filosófica.
No entanto, optamos por destacar, em especial, uma outra oposição, ao considerarmos
o uso exacerbado da variedade padrão como ingrediente para geração do efeito de humor.
Como a quebra de expectativa se dá com a pergunta “quem eu sou?”, ser é o gatilho que
aciona a mudança do script religioso – em que Jesus obtém uma resposta positiva a seu
respeito – para o humorístico – no qual um discípulo surpreende o mestre. Nessa perspectiva,
tem-se uma tensão dialética entre sabedoria x ignorância, em que sabedoria implica não-
ignorância e ignorância implica não-sabedoria. Da primeira implicação resulta o
conhecimento; da segunda, o desconhecimento.
Contudo, tanto sabedoria quanto ignorância aqui podem ser consideradas sob dois
pontos de vista: saber sobre o mundo, conhecimento de mundo; ou conhecimento lingüístico,
domínio de uma dada variedade lingüística, que neste caso é a variedade de prestígio. Como
não há saber compartilhado no que se refere à “manifestação escatológica” ou “fundação
ontológica”, nem mesmo ao “nosso íntimo revelado”, o diálogo é nulo e resulta numa dúvida,
não apenas para o enunciatário participante da piada (Jesus ou os demais seguidores), mas
também para todo leitor que se deparar com esse texto e não estiver familiarizado com a
“linguagem filosófica” nele empregada.
Para ilustrar tais relações, construímos o octógono que apresentamos abaixo:
3.3 ABRAÃO E ISAAC
Contam as sagradas escrituras que o Senhor ordenou a Abraão matar seu filho Isaac
e, no momento em que o obediente Abraão estava com a faca levantada, prestes a matar o
próprio filho, ordenou: “Pare, Abraão, você já provou que me é leal, não sacrifique seu
filho”.
Abraão deixou a faca de lado e, aliviado, olhou para seu filho, que se levantou do
chão e saiu correndo. Abraão o chamou:
- Volte, meu filho, o Senhor não quer que eu te sacrifique! Ele te ama!
- Ama uma ova! – respondeu Isaac – Ainda bem que eu sou ventríloquo!
Esta terceira piada intertextual tem a peculiaridade de estabelecer um diálogo com a
passagem bíblica Gênesis 22: 12113, na qual Abraão, após atender à solicitação do Senhor de
encaminhar seu filho Isaac ao sacrifício, ouve Dele, por intermédio de um anjo, a informação
de que deve deixar Isaac viver. Mas é na intervenção que cessa a ação do sacrifício que se
encontra o gatilho, no dizer do suposto Deus. A negativa é na verdade uma farsa, por causa da
única maneira que Isaac encontra para não ser morto, passando-se por Deus e falando por Ele,
por se dizer ventríloquo.
Percurso temático
Do ponto de vista da configuração temática, essa piada pode ser seguimentada da
seguinte forma, considerando seus três sujeitos semióticos:
1. A ORDEM
2. A TENTATIVA DE CUMPRI-LA
113 “O Anjo disse: ‘Não estendas a mão contra o menino! Não lhe faças nenhum mal! Agora sei que temes a Deus: tu não me recusaste teu filho, teu único filho.’” In: A BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 1985. p. 60
3. A NOVA ORDEM
4. O ALÍVIO
5. A FUGA
6. O CHAMADO
7. A REVELAÇÃO
3.3.1 Narrativização
Modalizado por um “querer-fazer”, o sujeito semiótico 1 (S1) busca obedecer a Deus,
seu destinador, e tem essa ação como seu objeto de valor inicial (OV1). Nesse sentido, o S1
tenta chegar à conjunção com o OV1, ao tentar promover o sacrifício, atitude que se configura
no segundo objeto de valor (OV2). Contudo, o destinador interrompe tal ato, ao anunciar que
não será mais necessário realizá-lo. Logo, o S1, na busca da conjunção com seu objeto de
valor principal – obedecer a Deus – cessa o sacrifício (OV3), a fim de ter seu filho consigo
(OV4). Mas este o deixa, e o S1 fica disjunto de seu objeto de valor final.
O sujeito semiótico 2 (S2), por sua vez está modalizado por um “poder-fazer-crer”,
pois possui a competência para passar-se por Deus e burlar o sacrifício, o qual seria realizado
pelo S1, agora seu oponente. Tem como objeto de valor inicial (OV1), portanto, passar-se por
Deus, através da fala, para enganar Abraão e poder fugir, atitude que se configura no OV2.
Em suma, o S2 tem a vida como valor principal e último (OV3) no percurso narrativo; e para
entrar em conjunção com ele, engana e foge.
Já o S3, na verdade, apresenta-se como um sujeito semiótico cuja voz é suplantada
pela atitude do S2, seu oponente; pois, ao passar-se por Deus, o S2 não permite que sua
vontade prevaleça. Ele está modalizado pelo querer e pelo poder-fazer-crer que é o Senhor e
através de um discurso de persuasão, ordena que Abraão sacrifique seu próprio filho, a fim de
que lhe prove fidelidade. Seu objeto de valor inicial (OV1) é testá-lo, e é para tanto que pede
o sacrifício. Além disso, o S3 busca impor sua vontade (OV2) sobre Abraão, seu adjuvante,
que age na perspectiva de realizá-la. Mas seu principal objeto é a fidelidade de Abraão. Por
outro lado, tem-se aqui um sincretismo actancial, pois o S3 ora figura como Senhor, ora como
Isaac, que se passa por Deus, ao dispensar o sacrifício.
Do ponto de vista do S1, Isaac é seu oponente, visto que foge e não permite, com a
fala que se passa pela de Deus, a conjunção do S1 com seu objeto de valor principal: ficar
com seu filho. Já do ponto de vista do S2, Deus e Abraão são seus oponentes, pois ambos, um
mandando e o outro agindo, tentam contra sua vida. Por fim, o S3 tem Abraão como
adjuvante e Isaac como oponente: o primeiro porque busca cumprir a sua vontade, o segundo
porque tenta contra a mesma.
Vejamos agora os esquemas dos percursos narrativos para cada sujeito semiótico.
Comecemos pelo S1:
Onde:
S1 = Abraão;
OV1 = obedecer a Deus;
OV2 = sacrificar Isaac;
OV3 = cessar o sacrifício;
OV4 = ter o filho de volta;
Em seguida, o percurso do S2:
Onde:
S2 = Isaac;
OV1 = passar-se por Deus;
OV2 = fugir de seu pai;
OV3 = manter-se vivo;
OV1
OV2
OV3
OV4
S1
S1
S1
OV1
OV2
OV3
S2
S2
S1
S2
Por sua vez, o S3 apresenta o seguinte esquema para representação de seu percurso
narrativo:
Onde:
S3 = Senhor (Deus);
OV1 = testar Abraão;
OV2 = impor sua vontade;
OV3 = manter Abraão fiel;
3.3.2 Discursivização
Figurativizado como um seguidor de Deus, crente e temente a Ele, o ator Abraão
busca provar sua fidelidade com o sacrifício de seu filho, Isaac. Nesse sentido, o sujeito da
enunciação, aquele que concebe tal narrativa, põe em cena os temas da lealdade, da
obediência, da fé, do amor; contudo, este último só vem à tona quando Abraão revela ao seu
filho que Deus dispensou o sacrifício por amá-lo. Assim, a morte de Isaac implicaria a falta de
amor de Deus por ele, segundo o discurso de Abraão. O tema da morte está posto desde o
princípio, mas sob a face do sacrifício a ser realizado como prova de lealdade.
Com a revelação de Isaac, surge o tema da ventriloquia, habilidade dos ventríloquos,
que usam a voz como arte. Um ventríloquo pode “emprestar” sua voz a um mamulengo, um
animal, uma rocha, uma sombra ou qualquer outro objeto do mundo natural que ele possa
fazer passar por falante, como se a voz que falasse saísse de outra fonte, não dele. No caso de
Isaac, surge também o tema da mentira, pois ele se vale dessa arte para burlar a vontade
divina e enganar seu pai. A voz que manda cessar o sacrifício é uma farsa; não é Deus que
dispensa tal ato. Assim, a piada em questão põe de lado os temas da lealdade, da fé, do amor,
da obediência, da verdade divina, focalizando seus opostos.
OV1
OV2
OV3
S3
S3
S3
O humor que advém da revelação de Isaac faz vir à tona também a figura do esperto e
o tema da enganação, visto que foi preciso ele passar-se por Deus para poder salvar sua vida.
Nesse caso, a piada muda o sentido da passagem bíblica do livro de Gênesis, na qual está
posto que seja Deus quem libera Abraão de sacrificar seu filho. Contrapõe-se ao discurso
religioso e manifesta-se como um discurso subterrâneo, como se fosse o outro lado,
obscurecido, da história, ao pôr em cena a farsa de Isaac. Nessa perspectiva, tem-se uma farsa
que revela uma outra farsa suposta, porquanto tenha ocorrido uma disseminação da história de
Abraão e Isaac, na bíblia, com a presença da intervenção divina; mas para o sujeito
enunciador da piada não: Deus em nada interveio no sacrifício, sendo Isaac o único
responsável por sua salvação. O discurso religioso é, portanto, negado e transformado em
discurso humorístico, cuja implicação é o esquecimento momentâneo dos valores apregoados
pela passagem bíblica: fé, lealdade, obediência ao divino, amor a Deus sobre todas as coisas –
inclusive os filhos.
No que tange às projeções da enunciação, as falas dos atores Isaac e Abraão
caracterizam-se ambas por uma debreagem enunciativa, ao projetarem um eu-aqui-agora. Ou
seja, no discurso de Isaac, o eu está em “Ainda bem que eu sou ventríloquo”; o agora na
conjugação de presente do verbo ser; e o aqui, caracterizado no próprio ato da fuga, que
revela Abraão, ao dizer “Volte, meu filho...”, denunciando o diálogo entre os dois. Já no
discurso de Abraão, o eu revela-se nos pronomes meu e eu, ao enunciar ao seu filho que “O
Senhor não quer que eu te sacrifique...”; a conjugação do verbo sacrificar, no presente, indica
o aqui e o agora, porquanto estejam no momento e no lugar onde deveria ocorrer o sacrifício.
Mas é a expressão “no momento em que” que melhor denuncia o tempo do discurso, na
enunciação do narrador da história. Esse não é o tempo dele, nem é o tempo do enunciatário,
leitor da piada; é o tempo das ações dos atores no lugar onde se narra que estão. No entanto,
este lugar não está bem caracterizado, exceto pela figura do chão, que a narrativa aponta
como lugar de onde Isaac levantou-se e saiu correndo. Assim, só com a remissão à passagem
bíblica é que fica caracterizado o lugar, não enunciado na piada, mas rememorado com a
leitura de Gênesis (22: 02)114, passagem em que Deus revela o lugar onde Abraão deve
oferecer seu filho em holocausto.
Além disso, o tempo da piada – assim como ocorre no lugar –, remete ao tempo
bíblico, pois não é o mesmo do sujeito da enunciação, que não conta sua história, mas de
outrem. Em “Contam as sagradas escrituras que o Senhor ordenou...”, está denunciado que
114 “Deus disse: ‘Toma teu filho, teu único filho, que amas, Isaac, e vai à terra de Moriá, e lá oferecerás em holocausto sobre uma montanha que eu te indicarei.’” In: A BÍBLIA de Jerusalém. Op. Cit. p. 59.
Tensão dialética
Ser Parecer
as ações decorrem no passado, pela conjugação do verbo “ordenar”; e também que o sujeito
dessa enunciação não participa da história, pois atribui às sagradas escrituras, ou seja, À
Bíblia, os dizeres que enuncia como verdades. Dessa forma, o enunciador busca respaldar-se
na credibilidade da “palavra de Deus” para se fazer ouvir, mas, em seguida, muda-lhe o
sentido, ao acrescentar figuras e temas que caracterizam a dispensa do sacrifício como fruto
de uma farsa.
A configuração atorial da narrativa reserva uma discussão ainda mais complexa e
reforça o caráter farsesco da piada. É que o ator que enuncia a dispensa do sacrifício é o
Senhor, o mesmo que a narrativa aponta de início, segundo as sagradas escrituras; quem
ordena a Abraão matar seu próprio filho; mas essa ordem não é evidenciada na piada, só o
relato da mesma. Já o enunciado que preserva a vida de Isaac é posto em cena pelo suposto
Senhor: o próprio Isaac, que na condição de ventríloquo, convence Abraão de que não mais
precisa tirar a vida de seu filho. É a descoberta dessa farsa que nos leva a identificar, no
enunciado “Ainda bem que eu sou ventríloquo”, a mudança de script, visto não ser possível,
até essa revelação, reconhecer os temas da mentira, da enganação, ou a figura do esperto. Só
com ela é que fazem sentido, para os dois scripts, religioso e humorístico respectivamente, a
idéia de que Deus dispensou Abraão de sacrificar seu filho e a de que Isaac passou-se pelo
Senhor para manter-se vivo e falar a seu pai como um deus.
3.3.3 Estrutura fundamental
Diferente das piadas intertextuais anteriores, esta não se apresenta, no nível profundo,
sob a tensão dialética do ser x parecer no que se refere a ser uma piada, mas parecer uma
passagem bíblica. Isto porque o sujeito da narrativa, aquele que conta a história, assume a
condição de narrador de uma história baseada nas Sagradas Escrituras. Ou seja, ele conta sua
interpretação, mas não o que diz a Bíblia, como as outras duas piadas anteriores buscam fazer-
crer que os seus narradores fazem. Em “A primeira pedra” e “Quem eu sou?”, conta-se como
se fosse a própria narrativa bíblica, mas, em “Abraão e Isaac”, narra-se uma história que
supostamente toma por base a Bíblia.
Contudo, esta mesma tensão verifica-se no enunciado do ator Isaac, antes revestido de
um parecer-ser o Senhor, posto que engana Abraão na perspectiva de salvar sua vida.
Estruturamos o seguinte diagrama para ilustrá-la, do ponto de vista do ator Isaac:
Tensão dialética
FugaSacrifício
Não-vidaNão-morte
Morte Vida
Nesta perspectiva, o enunciado parece provir da enunciação do Senhor, mas é de
Isaac; sendo assim, é eufórico para ele, que consegue fingir a ordem de interrupção do
sacrifício. Mas é disfórico para Abraão, já que este não cumpre a sua tarefa inicial devido a
uma “fraude”.
Uma outra tensão é a que ilustramos entre morte x vida, na qual se insere o fazer de
Isaac. Ele opta pela vida ao não aceitar o sacrifício imposto pelo Senhor a Abraão, que vê
nesta ação sua prova de lealdade. Nesse sentido, fugir é eufórico para Isaac, posto que vida
implique o não-morte, e dessa relação resulte a fuga; já a morte implica a não-vida, e é daí
que advém o sacrifício. Sendo assim, para Isaac, o sacrifício é disfórico e a fuga eufórica,
conforme o diagrama abaixo:
Tensão dialética
Deixar viverSacrificar
Não-liberdadeNão-lealdade
Lealdade Liberdade
Além dessas tensões, optamos por mais uma a ser relevada, que é a existente entre
lealdade x liberdade. Tal tensão verifica-se a partir da angústia que se pressupõe do alívio de
Abraão, após a dispensa do sacrifício de seu filho. Liberdade implica não-lealdade, e dessa
relação resulta o vontade de deixar viver, subentendida no discurso do sujeito enunciador, que
concebeu a piada com um alívio de Abraão, por este não precisar matar seu filho. Já lealdade
implica não-liberdade, e daí resulta o sacrifício solicitado pelo Senhor, mas não
necessariamente bem quisto por Abraão. Nesta perspectiva, lealdade é disfórico para ele,
visto que seja necessário matar seu próprio filho para alcançá-la, o que condiz com o alívio
que o pai sente, quando descobre que não mais precisará realizar o sacrifício; por outro lado,
liberdade permite decidir não sacrificar Isaac, e deixá-lo viver seria não ser leal ao Senhor. A
euforia dessa tensão estaria, pois, no poder-fazer um ato contrário à vontade divina, e nisto
consiste a liberdade preterida por Abraão em prol da lealdade ao seu deus. Assim, no
diagrama que segue está representada essa tensão.
3.4 LÁZARO
A multidão se aproxima e vê Jesus que está a chamar Lázaro.
― Lázaro! Levanta-te, Lázaro.
E Lázaro, nem ta aí. Fica lá.
― Lázaro! Levanta-te, Lázaro – repete Jesus.
E nada de Lázaro se levantar.
― Lázaro! Levanta-te, Lázaro. A turma tá toda aqui te esperando.
E nada.
Então Jesus se vira para a multidão que a tudo observa com ansiedade e,
decepcionado, fala:
― Desculpa aí, pessoal. Desta vez ele morreu mesmo.
Esta piada dialoga com a passagem bíblica João (11: 43), em que Jesus ressuscita
Lázaro diante de uma plateia de amigos, parentes e curiosos. Nela, assim como na passagem,
Jesus o convida a erguer-se, mesmo estando morto aos olhos de todos. O desfecho dessa cena,
na passagem, é a ressurreição; mas aqui ocorre diferente: o inusitado está na última fala de
Jesus, quando revela aos observadores que “desta vez” Lázaro morreu de fato. Sendo assim,
tal expressão consiste no gatilho da piada, que permite a passagem do script religioso para o
humorístico.
Percurso temático
Para melhor esclarecer a geração de sentido sob seus três níveis, apresentamos de
início a segmentação do texto, conforme sua configuração temática.
1. A APROXIMAÇÃO DA MULTIDÃO
2. O CHAMADO DE JESUS
3. A REPETIÇÃO DO CHAMADO
4. O NOVO CHAMADO
5. A REVELAÇÃO DE JESUS
3.4.1 Narrativização
Modalizado por um querer-fazer, o sujeito semiótico 1 (S1) busca fazer-crer que tem
capacidade para ressuscitar os mortos, ao convidar Lázaro a levantar-se perante uma
multidão. Tem como objeto de valor, portanto, a ressurreição aparente daquele homem, mas
finda a narrativa disjunto de tal objeto, visto que Lázaro não se levanta de onde está mesmo
após três solicitações. Nesta perspectiva, o percurso narrativo do S1 (Jesus) apresenta como
objeto de valor inicial (OV1) chamar Lázaro para fora, diante da multidão que se aproxima;
em seguida, o S1 busca mais uma vez chamar Lázaro frente a todos que o observam (OV2);
esse mesmo objeto de valor é almejado pelo S1 outra vez (OV3), diante da multidão já
ansiosa; por fim, o S1 busca manifestar sua decepção (OV4), por não conseguir fazer com
que Lázaro apareça vivo diante de todos.
Vejamos, pois, o percurso narrativo do S1:
Onde:
S1 = Jesus;
OV1 = chamar Lázaro;
OV2 = chamar Lázaro mais uma vez;
OV3 = chamar Lázaro outra vez;
OV4 = manifestar sua decepção;
O S2, por sua vez, é um sujeito coletivo que busca saber do que Jesus é capaz. É
destinado pela curiosidade; logo, um querer auto-destinativo. Tem como objeto de valor
inicial presenciar a ressurreição de Lázaro, seu oponente, visto que, por não levantar-se,
contribui para que ele não atinja seu valor principal: a satisfação de presenciar o incrível
OV1
OV2
OV3
OV4
S1
S1
S1
S1
ocorrer; e por “ficar lá” é que Lázaro pode ser considerado também oponente do S1. O
percurso narrativo do S2 varia pouco no que se refere aos valores almejados, posto que a
constância de seu querer auto-destinativo o conduz sempre ao mesmo objeto de valor:
presenciar a ressurreição de Lázaro. Eis, portanto, o percurso do S2:
Onde:
S2 = multidão (observadores que assistiam ao diálogo de Jesus com o morto, Lázaro);
OV1 = aproximar-se de Jesus (para presenciar a ressurreição de Lázaro);
OV2 = esperar Lázaro sair (para presenciar...);
OV3 = observar tudo ansiosa (para presenciar...);
3.4.2 Discursivização
Do ponto de vista das estruturas discursivas, a piada em questão apresenta a seguinte
configuração atorial: Jesus, figurativizado como o filho de Deus, capaz de ressuscitar os
mortos; multidão, sujeito coletivo que almeja presenciar tal feito; e Lázaro, que mesmo sem
nada enunciar, figura como um morto dotado de vontade suficiente para não dar atenção ao
ator Jesus. O sujeito enunciador que narra a piada concebe um cinismo, uma ironia ao ator
Lázaro de tal modo que chega a revelar que ele “não está nem aí” para Jesus e a multidão; ou
seja, não lhes dá nenhuma importância. Mas sendo morto, como pode relevar as palavras de
Jesus, ou a ansiedade da multidão? Esta, por sua vez, manifesta-se como um conglomerado de
curiosos, que a tudo observam, atentos, a fim de verem algo extraordinário ocorrer, como em
uma apresentação circense. E é nesse script que a piada se insere; ou melhor, é esse o segundo
script que a compõe, além do religioso, por meio do qual dialoga com a passagem bíblica.115
Entretanto, aqui Jesus, após convidar Lázaro a levantar-se três vezes, diferentemente
do que diz a Bíblia, revela que Lázaro, “desta vez”, morreu de fato, aparentemente. Nessa
115 O capítulo 11, do livro de João, compõe-se de 46 versículos, e todo ele trata da ressurreição de Lázaro. Contudo, é no versículo 43 que Jesus diz “Lázaro, vem para fora”.
OV1
OV2
OV3
S2
S2
S2
perspectiva, pressupõe-se que em outras vezes ele não estava morto “mesmo”, como se essa
ação de Jesus com Lázaro não fosse a única. Assim sendo, surge o tema do charlatanismo,
visto que esse Jesus é, na verdade, um enganador, que finge ressuscitar pessoas, operar
milagres, e Lázaro faz parte de seu show, sendo cúmplice em vários outros espetáculos
encenados anteriormente. Mas “desta vez” Lázaro “morreu mesmo”, porque não atendeu aos
chamados de seu comparsa, ainda que este o lembre de que a “turma toda” o espera. Essa
“turma” remete não só àquela multidão curiosa, mas às outras que já o viram erguer-se do
mundo dos mortos, de maneira milagrosa. É mais um grupo dentre tantos outros que
comumente presenciam o espetáculo da ressurreição.
Por outro lado, subentende-se também que “desta vez” remete a um momento singular
da narrativa bíblica tantas vezes contada e tantas vezes repetida com a ressurreição de Lázaro.
Neste caso, Jesus não é um charlatão, mas um ser falho, cujo poder de operar milagres é
passível de ausentar-se, por algum motivo. Nas outras vezes em que se relatou tal passagem, o
milagre ocorrera e fora possível realizá-lo, mas desta vez a morte ocorreu mesmo, sem volta,
como acontece com todos os seres humanos que não sofrem nenhuma interferência divina no
curso de suas vidas. Sendo assim, na interpretação anterior, Lázaro não se levanta porque não
pode; nesta, é Jesus quem não consegue fazer com que ele se levante, porque lhe faltou este
poder.
De uma forma ou de outra, não estamos apenas diante do script religioso, mas também
do humorístico, quer seja com um Jesus charlatão, quer seja com Ele passível de falhas. O
inusitado está posto de qualquer maneira, pois do ponto de vista religioso, Jesus é o filho de
Deus, capaz de curar cegueiras, aleijões, expulsar demônios, perdoar mulher adúltera,
entender além do que entende um simples ser humano, entre outras qualidades superiores.
Contudo, do ponto de vista humorístico, em que se manifestam discursos proibidos, pode-se
dizer que Jesus aqui é um “enrolão”, um farsante; ou, então, um ser imperfeito, cuja
capacidade de operar milagres não é interminável, ou inexiste.
Sob o aspecto temático, as duas interpretações humorísticas conduzem aos temas do
charlatanismo ou da imperfeição. A segunda interpretação ainda leva a crer que Jesus é
incapaz, dentro de uma configuração temática da oposição entre o divino X o terreno. No
entanto, Ele seria mais terreno que divino, visto não ter o poder de ressuscitar Lázaro, pelo
menos “desta vez”. Outros temas ainda podem ser notados, como o milagre e a fé, do ponto
de vista religioso, sendo o início da piada o ponto que desencadeia tais temas.
Quanto às configurações de tempo e espaço, “Lázaro” prescinde da passagem bíblica a
que remete para significar, visto que o sujeito da enunciação, que a concebeu, não demarca o
T. D.: Lázaro
AcertoFalha
Não-morte
Morte Vida
tempo em expressões, nem o espaço. A narrativa apóia-se justamente no conhecimento
partilhado que o enunciatário tem com o enunciador, que narra a história. Nessa perspectiva,
fica subentendido que Lázaro está no túmulo de onde Jesus pede que saia; aqui, que se
levante.
Uma observação mais atenta dos enunciados do ator Jesus, no entanto, nos conduzem
a marcas espaço-temporais da enunciação. Ao enunciar que “a turma toda tá aqui te
esperando”, Jesus acena para um espaço externo, diferente do que se encontra Lázaro, que
“fica lá”, como aponta o narrador. Daí o diálogo com a passagem bíblica, que indica uma
gruta na qual Lázaro jaz até a chegada de Jesus. Sua enunciação também revela que é o
momento de Lázaro levantar-se, pois todos já o esperam. Mas é o “dessa vez” que mais
apresenta implicações do ponto de vista temporal na enunciação de Jesus. É que tal expressão,
como uma locução de frequência, acena para a possibilidade de que Lázaro tenha sido
submetido ao (suposto) milagre de Jesus outras vezes, antes desta. E é aí que se encontra a
grande ambigüidade de seu discurso: ou Jesus é um charlatão e “dessa vez” Lázaro morreu de
fato, ou é um ser falho, incapaz de ressuscitar alguém, pelo menos dessa vez.
3.4.3 Estrutura fundamental
Sob as oposições semânticas que constituem esta piada, destacamos que o ser x
parecer, que marca as piadas intertextuais, mais uma vez está presente. Sustentamos,
portanto, a posição de que “Lázaro” parece passagem bíblica, mas é piada. Quanto às outras
oposições, relevamos a que se configura entre morte x vida, em que vida implica não-morte, e
desta relação surge o acerto, visto ser eufórico para a encenação de Lázaro e Jesus que o
primeiro esteja vivo. Já da relação de implicação entre morte e não-vida advém a falha,
disfórica, pois o que se almeja é que todos acreditem no poder de Jesus – seja real ou não –, e
um ato falho compromete essa crença.
T. D.
HomemDeus
Não-mentiraNão-milagre
Milagre Mentira
T. D.
Ser divinoSer humano
Imperfeição Perfeição
Outra tensão a ser relevada, decorrente dessa, é a que se verifica entre milagre X
mentira. Essa é uma tensão em cujo centro se encontra Jesus, visto que entre o milagre e a
não-mentira está Deus; e entre a mentira e o não-milagre está o homem, como ilustramos em
seguida:
Por fim, uma outra tensão se configura, decorrente dessa: imperfeição X perfeição. Da
relação de implicação entre imperfeição e não-perfeição tem-se o ser humano; já perfeição
implica não-perfeição e daí é que surge o ser divino.
Assim sendo, acertar e ser perfeito são competências cujos valores são eufóricos, para
um Jesus que se decepciona; já falhar e ser imperfeito é disfórico, por isso a decepção.
3.5 JESUS E AS CRIANCINHAS
Jesus pregava na Galileia ao lado dos seus discípulos. Enquanto falava, uns moleques
não paravam de jogar pedras nele.
Jesus não moveu um só músculo e falou:
― Venham a mim as criancinhas.
Um dos discípulos não se conteve e disse:
― Jesus, o senhor é tão bom! A molecada não pára de atirar pedras e o senhor ainda
diz “venham a mim as criancinhas”...
― É isso mesmo! Deixa eu pegar uma para ver a porrada que ela vai levar...
Ao estabelecer um diálogo intertextual com a passagem bíblica Mateus 19: 13-14, esta
piada gera a expectativa de um Jesus benevolente, que compreende os atos irrequietos das
crianças. Mas ao convidar para junto de si as criancinhas que o apedrejavam, este Jesus tem
outras pretensões. É a revelação que faz a um de seus discípulos que quebra a expectativa
gerada pela interpelação que lhe é direcionada. E o gatilho é seu primeiro enunciado, quando
convida as criancinhas para junto de si.
Percurso temático
1. A PREGAÇÃO DE JESUS
2. A AGRESSÃO DOS MOLEQUES
3. O CHAMADO DE JESUS
4. A INTERPELAÇÃO DO DISCÍPULO
5. A RESPOSTA DE JESUS
3.5.1 Narrativização
Modalizado por um querer, o S1 tem como objeto de valor inicial (O.V.1) pregar.
Com a interrupção das crianças, o S1 busca a atenção delas (O.V.2), quando as chama para
junto do si, assim como fez com os outros ouvintes, seus adjuvantes. As crianças, no entanto,
são oponentes do S1, pois tentam interromper a conjunção deste com seu objeto de valor
inicial. Na seqüência de seu percurso narrativo, o S1 ainda tem como objeto de valor revelar
ao seu discípulo sua real intenção (O.V.3) para com as criancinhas que o agrediam.
Vejamos o percurso narrativo do S1:
Onde:
S1 = Jesus
O.V.1 = pregar
O.V.2 = a atenção das crianças
O.V.3 = revelar sua real intenção para com as crianças
Já o sujeito semiótico 2 (S2) é destinado pela admiração a Jesus e modalizado por um
querer-saber, visto que apresenta como valor principal entender o gesto de Jesus, que chama
para junto de si seus agressores. Em seu percurso narrativo, o S2 tem como objeto de valor
inicial (O.V.1) ouvir Jesus e em seguida interpelá-lo (O.V.2). Assim sendo, as criancinhas são
também oponentes do S2, porquanto busquem prejudicar a sua conjunção com o objeto de
valor inicial.
Vejamos, portanto, seu percurso narrativo:
OV1
OV2
OV3
S1
S1
S1
Onde:
S2 = o discípulo
O.V.1 = ouvir a pregação de Jesus
O.V.2 = interpelar Jesus
Como a narrativa deixa em aberto seu desfecho, não fica claro se o S1 finda conjunto
ou disjunto de seu objeto de valor final (O.V.), que seria a porrada a ser dada nas criancinhas
que dele se aproximassem. Por outro lado, o S2 tem na resposta de Jesus a conjunção com o
que busca, que é entender o porquê de Jesus convidar seus oponentes para junto de si.
3.5.2 Discursivização
Do ponto de vista atorial, tem-se o ator Jesus figurativizado como o mestre, que prega
junto a seus discípulos. Nessa pregação, ele sofre agressões oriundas de crianças que figuram
como moleques de rua, as quais são convidadas a se aproximarem junto aos outros ouvintes. É
no enunciado “Venham a mim as criancinhas” que se encontra o diálogo com a passagem
bíblica Mateus (19: 13 – 14)116. Contudo, na Bíblia, as crianças são conduzidas a Jesus, e não
há relato algum de que elas a agrediam; já na piada, é Jesus quem as convida, ao ser agredido
com pedras por elas arremessadas. Assim, o chamado de Jesus é, na verdade, uma forma de
ludibriar as crianças, a fim de descontar as agressões sofridas. Sob esse ponto de vista,
portanto, Jesus figura como um pecador qualquer, que busca vingar-se de seus agressores.
O outro ator que se faz presente na piada é um de seus discípulos, cujo nome não é
revelado. Ele está, de fato, figurativizado como discípulo do mestre, o qual questiona o
chamado de Jesus às crianças; e, assim como ocorre na narrativa bíblica, discorda da presença
delas. Além disso, na passagem bíblica, os discípulos buscam repreendê-las, mas aqui é Jesus
quem o quer fazer; e é para este fim que as convida. Por não conhecer o objetivo de Jesus é
116 “13Naquele momento, foram-lhe trazidas crianças para que lhes impusesse as mãos e fizesse uma oração. Os discípulos, porém, as repreendiam. 14Jesus, todavia, disse: Deixai as crianças e não as impeçais de virem a mim, pois delas é o Reino dos Céus.”
S2
S2
OV1
OV2
que o discípulo o interpela, buscando compreender por que Ele, agredido, ainda chama para
junto de si seus agressores.
Quanto às projeções da enunciação, podemos dizer que o ator Jesus projeta um eu-
aqui-agora no enunciado “Venham a mim as criancinhas”, sendo o mim representativo do eu
e o aqui e o agora estando presente na conjugação do verbo vir (venham): no modo
imperativo, acenando para o tempo presente (agora) e apontando para o lugar (aqui),
porquanto quem venha não esteja presente, mas sim quem diz para que o outro venha. Em sua
segunda fala, Jesus mantém o eu manifesto, ao revelar intenção de “pegar uma” e lhe dar
uma “uma porrada”. Por sua vez, o ator discípulo tem seu discurso caracterizado por um
efeito de objetividade, devido à ausência de marcas enunciativas que imprimam o eu. Ou seja,
ele não manifesta sua opinião, seu juízo pessoal de modo subjetivo; não imprime marcas de
primeira pessoa (pronome ou conjugação verbal equivalente), embora exclame sua admiração
por Jesus diante de sua atitude.
Com relação às marcas temporais, verificamos que o tempo da piada é marcado pela
história de Jesus; ou melhor, o tempo bíblico. Nesse sentido, o sujeito enunciador imprime um
efeito de realidade ao acenar para as pregações de Jesus na Galileia, fundamentando seu relato
com pressupostos bíblicos. Portanto, o tempo da enunciação dos atores difere do tempo da
enunciação do sujeito enunciador, que narra a piada. Este apenas conta uma história que não é
sua, e que se passa, supostamente, em um momento do passado, no tempo de Jesus, segundo a
religião cristã.
Já quanto ao espaço, vemos a pressuposição de que Jesus pregava na rua, uma vez que
os moleques o apedrejavam, o que era comum ocorrer em espaços abertos como ruas e praças.
Por outro lado, tendo em vista que a piada dialoga com a passagem bíblica Mateus (19: 13 –
14), ressaltamos que o conhecimento compartilhado entre enunciador (narrador da piada) e
enunciatário (leitor), a respeito da versão bíblica, situa a história entre outras que se conta
sobre as andanças de Jesus. É no caminho por onde passa que Ele opera milagres, realiza
pregações e abençoa as pessoas, como, segundo a Bíblia, fez com as crianças.
No entanto, algumas controvérsias são bastante relevantes quando se trata do espaço
em piadas com passagens bíblicas. A princípio, a piada Jesus e as criancinhas diz que “Jesus
pregava na Galileia (...)”; contudo, a Bíblia diz, logo no início do capítulo 19, no livro de
Mateus, que Ele deixou a Galileia e foi além do Jordão, no território da Judéia117. Nesta
117 “E aconteceu que, concluindo Jesus estas palavras, deixou a Galileia e foi para o território da Judéia, além do Jordão. Seguiram-no muitas multidões, e curou-as ali”. (MATEUS, 19: 1 – 2)
T. D.
AgressãoPerdão
Não-falsidadeNão-sinceridade
Sinceridade Falsidade
perspectiva, entendemos que o sujeito enunciador, ao conceber a piada, busca validá-la,
situando a história na Galileia, mas entra em desacordo com o discurso bíblico.
Sob os aspectos temáticos, destacamos os temas do respeito e seu contrário, para os
quais apontam os atos do discípulo e das crianças, respectivamente; da admiração, que o
discípulo manifesta por seu mestre; da bondade, suposta na atitude de Jesus, e da vingança,
sua intenção real. Além desses, destacamos também o tema da dissimulação, com a qual Jesus
busca enganar as crianças, a fim de agredi-las. Ele age com destreza, ao se manter inerte às
agressões sofridas, e, como relata o narrador, não mexe um só músculo. Com isso, Jesus
figura como O todo poderoso, mas quer, na verdade, enganar seus agressores, fingindo não se
incomodar com as pedradas. É, portanto, um Jesus impiedoso, vingativo e “malvado”.
Por outro lado, vemos que o enunciador da piada busca promover o humor não só com
a dessacralização da imagem de Cristo, mas principalmente com a intolerância às crianças. A
“porrada” é o castigo dado à “molecada” mal comportada; é a ideologia autoritária e tirana
quem impera aqui. Assim, o discurso dessa piada é o de que nem Jesus, que perdoa, tem
paciência com as crianças mal comportadas, e o humor advém justamente de sua atitude
inesperada, após a pergunta do discípulo.
3.5.3 Estrutura fundamental
Assim como as piadas anteriores que compuseram a categoria intertextual, esta
mantém a tensão ser x parecer, sob a característica de parecer passagem bíblica, mas ser
piada. Por outro lado, outras tensões serão aqui destacadas no octógono semiótico, como a
que diz respeito às oposições entre falsidade x sinceridade.
T. D.
Ser divinoSer humano
Não-perfeição Não-imperfeição
Imperfeição Perfeição
T. D.
Ser divinoSer humano
Não-perfeiçãoNão-imperfeição
Imperfeição Perfeição
Nesta perspectiva, ser falso é eufórico para Jesus, que quer revidar a agressão sofrida
pelas crianças; já ser sincero implica, de fato, convidá-las para junto de si e tratá-las como os
outros ouvintes, o que é disfórico. Sinceridade implica não-falsidade, e dessa relação advém o
perdão. No entanto, da implicação entre falsidade e não-sinceridade surge a agressão.
Outra tensão dialética que pudemos perceber aqui é a que diz respeito a Imperfeição x
perfeição. Neste sentido, imperfeição implica não-perfeição, resultando na capacidade do ser
humano; já perfeição implica não-imperfeição, de que resulta a capacidade do ser divino. O
octógono seguinte demonstra, na verdade, aquilo que Jesus quer que as crianças acreditem,
quando não mexe um só músculo.
4. ANÁLISE SEMIÓTICA DE PIADAS INTERDISCURSIVAS
4.1 FÉ DEMAIS NÃO CHEIRA BEM
A filha apresenta ao pai seu futuro marido, um rapaz crente.
- Em que área você trabalha? – pergunta o pai.
- Eu não trabalho. – responde o rapaz, sorrindo placidamente.
- E como pretende sustentar minha filha? – indigna-se o pai.
- Deus nos dará tudo o que precisamos. – responde o rapaz, erguendo os braços aos
céus.
- E onde pretendem morar? – o pai prossegue indignado.
- Não temos onde morar – responde o rapaz, sempre com o mesmo sorriso – mas Deus
providenciará para nós!
Nervoso, o pai pede licença e sai da sala para refrescar a cabeça. A filha corre até ele
e pergunta ansiosa:
- O que o senhor está achando do meu noivo, pai?
- Eu prefiro não falar o que estou achando dele... Mas com certeza ele está me
achando um Deus!
As piadas interdiscursivas que aqui analisamos são assim consideradas porque
mantém um diálogo com passagens bíblicas sob o ponto de vista do discurso, mas não
necessariamente da manifestação textual. Mais que as palavras utilizadas, interessa-nos
observar a preservação da ideologia religiosa com o intuito de promover o humor. No caso
desta primeira piada interdiscursiva, observamos que ela opera com um diálogo e quebras de
expectativa seqüenciadas. É um pai que interroga seu futuro genro e deste recebe respostas
inesperadas, das quais discorda; o ápice dá-se quando a filha questiona o que o pai “achou” do
noivo e tem como resposta mais uma informação inesperada. São mudanças de script
sucessivas que visam provocar o riso com inserções do discurso religioso e, neste caso, é um
discurso que remete a passagens como as de Filipenses 4: 19 e Mateus 6: 33, que sustentam a
idéia de que Deus proverá tudo aquilo de que o homem precisar.
Percurso temático
1. A APRESENTAÇÃO DO NOIVO
2. OS QUESTIONAMENTOS DO PAI
3. AS RESPOSTAS DO NOIVO
4. A SAÍDA DO PAI
5. A PERGUNTA DA FILHA
6. A RESPOSTA DO PAI
4.1.1 Narrativização
Modalizado por um querer-saber, o sujeito semiótico 1 busca, como objeto de valor
principal, avaliar e julgar o rapaz crente que pleiteia casar-se com sua filha. Na figura do pai
exigente, o S1 passa a interrogar seu futuro genro e intenta, de início, saber em que ele
trabalha (O.V.1); por conseguinte, procura entender como sustentará sua filha (O.V.2), uma
vez que o rapaz, seu oponente, diz não ter emprego; adiante, o S1 busca saber onde o casal irá
morar (O.V.3), e conforme a resposta inesperada que recebe, ausenta-se da sala, a fim de
acalmar-se (O.V.4); por fim, o S1 busca revelar parte de seu julgamento, sem, contudo, dizer
explicitamente o que pensa do futuro genro.
Neste sentido, vejamos o esquema do percurso narrativo do S1:
S1
S1
S1
OV1
OV2
OV3
Onde:
S1 = pai
O.V.1 = saber o emprego do futuro genro
O.V.2 = entender como sustentará sua filha
O.V.3 = saber onde irão morar
O.V.4 = ausentar-se para se acalmar
O.V.5 = revelar à filha sua opinião sobre o noivo
Por sua vez, o S2, que é modalizado por um querer-poder-fazer o futuro sogro
consentir o casamento e destinado pela fé em Deus para atingir tal objeto de valor, busca
responder às perguntas do pai da noiva, seu oponente. Este intenta prejudicar a conjunção do
S2 com seu objeto de valor por não confiar nele para casar-se com sua filha. Assim sendo, o
objeto de valor principal do S2 é o consentimento para casar-se, e para alcançá-lo, tenta
convencer o sogro de que a ajuda de Deus é tudo que precisa para levar uma boa vida com a
esposa.
Em seu percurso narrativo, portanto, o S2 tem como objeto de valor inicial (O.V.1)
responder ao sogro calmamente sobre sua ocupação; em seguida, busca esclarecer como a
esposa será sustentada (O.V.2); por fim, procura reforçar o que irá suprir suas necessidade
(O.V.3). Diante das discordâncias de seu oponente, podemos concluir que o S2 busca entrar
em estado de conjunção com seu O.V., mas finda a narrativa sem consegui-lo; ou seja, ele
principia a narrativa disjunto do O.V. e assim permanece no seu término.
Vejamos agora o esquema do percurso narrativo do S2:
Onde:
S2 = noivo
S1
S1
OV4
OV5
OV1
OV2
OV3
S2
S2
S2
O.V.1 = responder ao sogro
O.V.2 = esclarecer como a esposa será sustentada
O.V.3 = revelar o que irá suprir suas necessidades
A narrativa ainda apresenta um sujeito semiótico 3 (S3), que é modalizado por um
querer-saber se terá consentimento para casar, seu objeto de valor principal. Na figura da
filha ansiosa, o S3 busca inicialmente apresentar seu noivo ao pai (O.V.1), a fim de que este
seja avaliado; em seguida, após perceber que o pai se ausenta de onde interroga seu
pretendente, O S3 procura saber qual é a opinião do pai a respeito do seu noivo (O.V.2).
Como não recebe resposta direta e literal, o S3 finda a narrativa disjunto de seu objeto de
valor, pois o consentimento para casar-se não lhe é dado, e o julgamento do pai não é
explicitado com clareza. Logo, seu percurso narrativo é simples e pode ser representado da
seguinte maneira:
Onde:
S3 = filha
O.V.1 = apresentar o noivo ao pai
O.V.2 = saber a opinião do pai sobre o noivo
4.1.2 Discursivização
Figurativizado como um chefe de família patriarcal, o ator pai da noiva promove uma
verdadeira sabatina com o seu futuro genro, um rapaz crente, sob a “caricatura” (figura) do
evangélico acomodado e conformado, que deposita todas as suas esperanças em uma
divindade (Deus, que tudo pode). A filha, por sua vez, figura como uma mulher ansiosa para
ser desposada, e que busca o consentimento do pai para realizar sua vontade. É a filha
submissa, que, para se casar, espera a aprovação da família, representada pelo pai. Isto reflete
o tema do machismo e do autoritarismo paterno, uma vez que a mãe não tem voz, nem é ao
menos mencionada na história. A opinião do pai é fator determinante na construção do efeito
de humor; seu julgamento é quem valida ou não a relação. Já o noivo, em seu discurso, evoca
OV1
OV2
S3
S3
os temas da devoção, da fé em Deus acima de todas as coisas, da confiança em dias melhores
conforme a vontade divina.
Nesse sentido, o diálogo entre sogro e genro acena para um choque ideológico, no
qual o primeiro enunciador busca inquirir o segundo na perspectiva de desvelar questões
materiais e mundanas (sustento financeiro, moradia); por seu turno, o genro acena para a
abstração da fé, da esperança, da crença. Os valores almejados pelos dois atores são distintos,
contrariam-se e se refletem em seus discursos, o que se traduz numa oposição temática –
semântica, quando se tratar de estrutura profunda – marcada por posições ideológicas
divergentes.
O espaço é marcado pela expressão sai da sala, o que remete a uma casa. Não,
poderíamos dizer que se trata de um outro ambiente, pois a piada segue as regras morais e
ideológicas que movem uma família patriarcal e autoritária: é preciso que o noivo seja
apresentado ao futuro sogro com este em seus domínios, e é na sala que ocorre uma conversa
dessa natureza. Quanto ao tempo, percebemos que suas marcas restringem-se aos efeitos de
subjetividade nas projeções eu-aqui-agora. Como exemplo, no discurso do noivo (Eu não
trabalho) e do pai (Eu prefiro não falar o que estou achando dele...), ambos com conjugação
em tempo presente, ora denotando o momento atual, no que tange à ocupação, ora
manifestando opinião presente. Além dessas marcas enunciativas, não há nenhuma outra
deixada pelo sujeito da enunciação que concebeu a piada, a fim de marcar o tempo no enredo.
Por outro lado, as controvérsias existentes entre as piadas intertextuais e as passagens
bíblicas dão lugar à observância do discurso religioso na construção do humor. Não se muda o
texto bíblico do ponto de vista ideológico, usa-se o mesmo discurso como fator constituinte da
oposição entre os scripts superpostos, característica peculiar aos textos humorísticos. Para
cada piada interdiscursiva, a apropriação do discurso religioso revela estratégias diversas. No
caso da presente piada, a estratégia é seguinte: em oposição aos questionamentos de valor
material, o rapaz crente oferece respostas de valor espiritual; ou seja, em vez de responder que
emprego tem, por exemplo, diz não ter emprego algum, por confiar que tudo lhe será dado por
Deus. A quebra de expectativa, portanto, ocorre diante de tais respostas, que para o pai não
condizem com a situação.
Na verdade, o ator pai segue o script da apresentação de um pretendente a marido de
sua filha, no qual ocorrem diálogos que fornecem informações a respeito da procedência do
aspirante, de sua ocupação. Tudo isso porque o pai concebe sua filha como um bem, que
muda de dono, mas que não pode passar a ser de um novo dono qualquer, mas daquele que
tiver sua aprovação. Entretanto, o rapaz crente aciona o script religioso sempre que
questionado, justificando-se com o discurso de que Deus proverá tudo de que ele precisar.
Neste cerne, ele dialoga com passagens bíblicas diversas, das quais destacamos duas:
Filipenses 4: 19 e Mateus 6: 33. Na primeira118, o apóstolo Paulo demonstra sua gratidão para
com os filipenses, que tanto lhe ajudaram, e lhes diz que Deus deverá suprir as necessidades
deles, como retribuição. É o discurso de que Deus não deixa faltar nada a quem tem fé. Já na
segunda119, esse discurso é ainda mais incisivo e se faz presente desde o versículo 25 até o 34,
nos quais Cristo prega aos homens, ensinando-lhes que não devem ter ânsia pela vida; ânsia
de vestir, de comer ou beber. É também um discurso contrário ao imediatismo e ao
materialismo humanos, pois sustenta a idéia de que se deve primeiro buscar a Deus. Ele
acrescentará tudo aquilo que for justo, sem que o homem precise preocupar-se com o dia de
amanhã. Contudo, esse discurso é rebatido por outro, que se opõe pelo viés da estereotipação.
O enunciador que concebe tal piada busca disseminar a idéia generalizadora de que os crentes
(evangélicos) são pessoas descansadas, preguiçosas e alienadas; de que utilizam a religião, a
fé para justificar sua (suposta) ociosidade, sua acomodação é validada pela espera em Deus.
Isso se contrapõe ao que acredita o pai da noiva, pois para ele, se o rapaz não tem emprego
nem onde morar, restará a ele mesmo sustentar não só a filha, mas também o genro. É por isso
que ele diz no final acreditar que o rapaz acha que ele é um Deus; logo, alguém que lhe
proverá de tudo.
Diante desse diálogo entre o discurso religioso e o humorístico, percebemos que não
se trata de relegar a segundo plano alguns valores em prol de outros, não se deixa de lado os
ensinamentos bíblicos, mas se põe em evidência. Os temas, os conceitos e os saberes sobre o
discurso religioso são relevados para se contraporem aos outros a que a piada remete e fazer a
ressignificação. Ri-se, portanto, quando se está diante do mundo, da vida mundana, dos
valores relevantes para o cotidiano do ponto de vista material, e o texto traz à baila os valores
religiosos, quebrando a expectativa com um discurso óbvio do ponto de vista religioso, mas
momentaneamente esquecido do ponto de vista anterior.
Assim, o gatilho lingüístico que aciona a mudança final de script é Deus, que figura
como o ser onipotente, do qual se pode conseguir tudo através da fé. Quando a filha quer
saber do pai o que este “está achando” do noivo dela, o preconceito fica implícito, mas
pressuposto, ao dizer que o genro o está achando um deus, que possa tudo, inclusive
conseguir dinheiro e moradia.
118 “E o meu Deus, segundo a sua riqueza em glória, há de suprir em Cristo Jesus, cada uma de vossas necessidades.”119 “Buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça, e todas essas coisas vos serão acrescentadas.”
T. D.
ReprovaçãoAprovação
Não-espiritualismo Não-materialismo
Materialismo Espiritualismo
T. D.
Preocupação financeiraConformismo
Fé Razão
4.1.3 Estrutura fundamental
As oposições semânticas fundamentais que constituem esta piada giram basicamente
em torno do conflito entre os valores materiais e os espirituais. Neste cerne, a oposição que
primeiro demonstramos é a existente entre materialismo x espiritualismo. No octógono que a
representa abaixo, materialismo implica não-espiritualismo e espiritualismo implica não-
materialismo. Da primeira relação de implicação tem-se a aprovação; e da segunda, a
reprovação. Nesse sentido, é preciso considerar que, para o noivo, os valores espirituais são
eufóricos, mas para o pai da noiva não, pois este valoriza o inverso, ou seja, o material.
Logo, outra tensão pode ser estruturada: fé x razão, onde fé implica não-razão e razão
implica não-fé. Da primeira implicação advém o conformismo e da segunda a preocupação
financeira, conforme está ilustrado no octógono abaixo:
T. D.
AceitaçãoPreconceito
Não-identidadeNão-alteridade
Alteridade Identidade
Por fim, merece destaque nesta análise da semântica fundamental a tensão existente
entre identidade x alteridade. Ela difere das ilustradas anteriormente porque não diz respeito
às questões que opõem os valores do mundo material aos do espiritual. Na verdade, ela abarca
as diferenças culturais que há entre o noivo e seu futuro sogro. Identidade implica não-
alteridade, e dessa implicação advém a aceitação; já alteridade implica não-identidade, e
essa implicação conduz ao preconceito. Do ponto de vista dessa piada, portanto, o crer ou agir
diferente do outro é disfórico, porque acarreta preconceito. Já o crer ou agir como o outro é
eufórico e gera a aceitação. Vejamos, pois, a ilustração dessa tensão no octógono seguinte:
4.2 PROBLEMAS NA TERRA
Jesus chama os seus discípulos e apóstolos para uma reunião de emergência, devido
ao alto consumo de drogas na Terra.
Depois de muito pensar e discutir, chegaram à conclusão de que a melhor maneira de
combater a situação era provar a droga eles mesmos.
Então, organizam uma comissão de apóstolos para buscarem as drogas na Terra. A
operação é feita e, dois dias depois começam a retornar os apóstolos.
Jesus espera à porta do céu, quando chega o primeiro servo:
— Quem é?
— Sou Paulo.
Jesus abre a porta.
— E o que trazes Paulo?
— Trago pó da Colômbia.
— Muito bem, filho. Entre.
Então chega o segundo apóstolo:
— Quem é?
— Sou Pedro.
Jesus abre a porta.
— E o que trazes, Pedro?
— Trago maconha do Brasil.
— Muito bem, filho. Entre.
E foi assim sucessivamente até chegar o último apóstolo:
— Quem é?
— Sou Judas.
— Jesus abre a porta.
— E tu, o que trazes Judas?
— Polícia Federal! Todo mundo na parede! Mão na cabeça, cabeludo! A casa caiu!
Esta piada, diferente da anterior, não apresenta quebras de expectativa sucessivas. Na
verdade, ela é verdadeiramente o tipo que contempla os ingredientes postulados por Raskin
(1987) para ser piada: dispõe de temas controversos, dois scripts sobrepostos, um gatilho
lingüístico, que é o próprio Judas. A história versa sobre a preocupação de Jesus com os
problemas atuais da Terra, em especial o consumo de drogas. Jesus decide, junto com seus
seguidores, enviar uma comissão de apóstolos à Terra, os quais devem retornar ao céu,
posteriormente, trazendo diversas drogas para serem experimentadas. Este foi o melhor modo
por eles encontrado para combater o problema, mas após sucessivos retornos, chega o último
apóstolo, Judas. Mantém-se o discurso de que Judas traiu Jesus, segundo a Bíblia, o que
confere a esta piada o caráter interdiscursivo.
Percurso temático
1. A REUNIÃO DE JESUS COM SEUS SEGUIDORES
2. A DECISÃO DO QUE FAZER SOBRE AS DROGAS
3. A PARTIDA DA COMISSÃO DE APÓSTOLOS
4. A CHEGADA DE PAULO
5. O DIÁLOGO COM JESUS
6. A PERMISSÃO PARA ENTRAR NO CÉU
7. A CHEGADA DE PEDRO
8. OUTRO DIÁLOGO COM JESUS
9. NOVA PERMISSÃO
10. NOVAS CHEGADAS E PERMISSÕES CONCEDIDAS
11. A CHEGADA DO ÚLTIMO APÓSTOLO
12. O DIÁLOGO COM JESUS
13. A ABERTURA DA PORTA
14. A TRAIÇÃO DE JUDAS
4.2.1 Narrativização
Modalizado por um querer-saber, o S1 reúne seus seguidores na perspectiva de
encontrar uma solução para o problema das drogas na Terra, seu objeto de valor principal.
Tais seguidores são seus adjuvantes, porquanto busquem lhe auxiliar na tomada de decisão do
que fazer. Feito o acerto, o S1 passa a esperá-los na porta do céu, com o intuito de saber o que
trazem da Terra. Quando chega o primeiro e é questionado pelo S1, responde de imediato e
obtém permissão para entrar. Com o segundo, ocorre o mesmo e a nova permissão é
concedida. No entanto, a chegada do terceiro rompe a trajetória do S1 na busca de seu objeto
de valor, uma vez que Judas é na verdade seu oponente e não adjuvante. Ele prejudica o S1 ao
lhe trazer a Polícia Federal e não uma droga para ser experimentado, conforme havia sido
acordado na reunião com todos os seguidores. Assim, o S1 finda a narrativa em estado de
disjunção com seu objeto de valor principal, tendo sido traído por Judas, seu oponente, que
traz a Polícia para lhe prender. Eis o esquema do percurso narrativo do S1:
Onde:
S1 = Jesus
O.V.1 = reunir os seguidores
O.V.2 = encontrar solução para as drogas
O.V.3 = aguardar os seguidores na porta do céu
O.V.4 = saber o que Paulo trouxe
O.V.5 = permitir sua entrada
O.V.6 = saber o que Pedro trouxe
O.V.7 = permitir sua entrada
O.V.8 = saber o que Judas trouxe
O S2, por sua vez, é modalizado por um querer-fazer com que Jesus saiba o que lhe
trouxe, dando-lhe a resposta devida. Seu objeto de valor principal é retornar ao céu, conforme
OV1
OV2
OV3
OV4
OV5
OV6
OV7
OV8
S1
S1
S1
S1
S1
S1
S1
S1
o acordo firmado na reunião. Jesus é seu adjuvante, uma vez que lhe auxilia com o diálogo;
mas é antes de tudo seu destinador, porque é quem lhe concede a permissão para entrar no
céu. Assim também ocorre com o S3, que percorre as mesmas etapas para atingir seu objeto
de valor. Vejamos, pois, os percursos do S2 e do S3:
Onde:
S2 = Paulo
O.V.1 = responder a Jesus
O.V.2 = entrar no céu
Onde:
S3 = Pedro
O.V.1 = responder a Jesus
O.V.2 = entrar no céu
Já o S4 é modalizado por um querer-fazer e busca como objeto de valor principal trair
Jesus. Ele responde a Jesus quem é, quando perguntado; mas, diante da porta aberta, consuma
a traição, pois traz consigo a Polícia Federal, seu adjuvante. Assim, o S4 finda a narrativa
conjunto com seu objeto de valor. Eis o esquema de seu percurso:
Onde:
S3
S3
S2
S2
OV2
OV1
OV2
OV1
S4
S4
OV1
OV2
S4 = Judas
O.V.1 = responder a Jesus
O.V.2 = entregá-lo à Polícia
Por fim, a narrativa ainda apresenta o S5, que é um sujeito coletivo figurativizado pela
Polícia Federal. Tem como objeto de valor principal o cumprimento da lei, seu destinador.
Com o auxílio de Judas, seu adjuvante, o S5 chega até a porta do céu e consegue entrar para
prender Jesus e seus seguidores. Isso o deixa conjunto com seu objeto de valor.
Seu percurso pode ser representado pelo seguinte esquema.
Onde:
S5 = Polícia Federal
O.V.1 = abordar a todos
O.V.2 = prender Jesus
4.2.2 Discursivização
Do ponto de vista atorial, o ator Jesus figura como o mestre, que dispõe de discípulos
e/ou apóstolos, ou como senhor, que possui seus servos. É ele quem organiza a reunião na
qual é decidido o que fazer para solucionar o problema da droga na Terra. É o Cristo vivo,
que vela pelo homem no céu e age para ajudá-lo, quando preciso for. Com isso, o sujeito
enunciador veicula o discurso de que Jesus (Deus) pode intervir na humanidade, quando
julgar necessário. Mas não decide fazê-lo sozinho, posto que envie os apóstolos à Terra para
cumprirem uma missão: trazer drogas para serem experimentadas por eles mesmos e, assim,
descobrirem como combatê-las melhor.
Jesus enuncia, com objetividade, perguntas curtas, que servem ao propósito do diálogo
com os apóstolos, quando estes retornam ao céu. Saber quem são e o que trazem é a condição
para que seja permitida a entrada; diz-se o nome e Ele abre a porta, diz-se o que traz e Ele
S5
S5
OV1
OV2
deixa entrar. Salvo o tratamento filho, que mantém com Paulo e Pedro, nada altera tal
objetividade. Por sua vez, esse tratamento gera um efeito de aproximação, porque denuncia
seu apreço com seus discípulos, diferente dos questionamentos “quem é?” e “o que trazes?”.
Os apóstolos, por sua vez, enunciam com a subjetividade peculiar à situação, dizendo
o nome e a droga que trouxeram. O efeito de aproximação ocorre ao enunciar o eu implícito
em sou Paulo, ou sou Pedro. Eles são figurativizados como apóstolos fiéis a Jesus, porque
cumprem as ordens delegadas na reunião e respondem a Jesus coerentemente. Mas não é o
mesmo com Judas, que só diz quem é, e o que traz apresenta-se por si só: o sujeito coletivo
Polícia Federal, a instituição na figura dos policiais que a representam e dão ordem de prisão a
Jesus. Assim, Judas mantém-se no papel temático do traidor, o que confere à piada o caráter
interdiscursivo e estabelece o humor.
Efeito similar ao do discurso de Jesus ocorre com a Polícia, que, objetivamente,
anuncia-se e ordena que todos se voltem para a parede. Mas em um típico enunciado de voz
de prisão, o enunciador acena para uma aproximação, ao tratar Jesus como cabeludo e
exclamar que a casa caiu, evidenciando o juízo que a Polícia fez: Jesus é um criminoso
qualquer; por isso, é tratado como tal, inclusive com vulgo; conclui-se que Judas o denunciou
como traficante, levando a Polícia a externar sua satisfação em prendê-lo, no enunciado a
casa caiu, que equivale a farra acabou, ou chega de festinha.
O tempo da enunciação é basicamente marcado por três expressões, sendo a primeira
todo o enunciado que aponta o alto consumo de drogas. Isto conduz à atualidade, visto que a
massificação e a divulgação desse problema na mídia estão atreladas à modernidade.
Contudo, o consumo de drogas não é problema novo, mas o alto consumo sim, se se pensar
numa sociedade ocidental que o concebe como problema, discrimina-o e o considera uma
atividade parceira da criminalidade, por contribuir para o tráfico. Para outras sociedades em
que alguma droga é legal ou aceitável culturalmente, de certo, o efeito de humor desse tipo de
piada não teria o mesmo sentido. Para alguns povos indígenas, por exemplo, o uso de
alucinógenos em rituais não é discriminado, nem transgride leis; na Europa há países em que
maconha é legalizada. Em suma, trata-se de um discurso marcado por uma idéia de uma
determinada cultura ocidental que concebe drogas como uma praga da modernidade; é aí que
o texto se situa no tempo.
Outra expressão que marca o tempo é dois dias depois, que aponta um intervalo na
narrativa. É o tempo dos atores, ou seja, o tempo que dura sua ação de ir à Terra em busca de
drogas; o intervalo que o sujeito enunciador concebe entre a busca e o retorno ao céu. Além
dele, a narrativa apresenta mais um intervalo, existente entre a chegada dois primeiros
apóstolos e o último. Durante esse período, outros apóstolos foram chegando sucessivamente,
até a chegada de Judas; mas o sujeito enunciador não os enfatiza, não lhes dá voz, não os situa
no espaço, nem os figurativiza, apenas indica que o processo continua até Judas, ao enunciar
que foi assim sucessivamente. Nessa expressão, está implícita uma continuidade, que poderia
ser “... que ocorreu a chegada dos demais apóstolos”.
Já o espaço caracteriza-se pela oposição céu x terra, a qual os apóstolos se submetem.
Jesus os reúne no céu para discutir como solucionar o problema das drogas, e a Terra é uma
ponto de parada apenas para recolhê-la, não enfatizado. Mas o espaço que mais caracteriza a
narrativa é a porta do céu, na qual Jesus os aguarda e onde também se depara com a Polícia
Federal, após falar com Judas. Do outro lado dessa porta, pressupõe-se que haja um espaço
fechado, visto que a ordem da polícia é que todos fiquem na parede; ou seja, é o local onde os
apóstolos provavelmente experimentariam as drogas, ou, no mínimo, aguardavam a chegada
do último apóstolo, cada qual com a droga que trouxe da Terra. Daí a ordem de que todo
mundo se voltasse para a parede, comum às situações de revista e/ou prisão em massa.
A respeito da configuração temática, vemos que esta piada, de início, acena para temas
como drogas, corrupção humana, traição, criminalidade, mas também remete aos temas da
intervenção divina, união cristã, lealdade. A piada também veicula o aspecto legal que
envolve o trabalho policial, ao nos remeter ao tema das leis e suas infrações. Nesse aspecto, é
importante destacar que, se Jesus e seus apóstolos são presos, é porque infringiram a lei, que
não considera consumo de drogas crime, mas o tráfico; é pela quantidade de drogas que
entrou no céu que a polícia pode pressupor que não era uma questão de consumo. Mas o que
realmente assegura isso é que, segundo o discurso religioso, Judas é o traidor, que delatou
Jesus; logo, a denúncia de tráfico partiu dele, pois a polícia já veio certa de que havia
ilegalidade.
Um aspecto relevante, do ponto de vista da estratégia para promover o humor, é que o
enunciado da Polícia promove a quebra de expectativa desencadeada pela chegada de Judas.
Ele não traz a droga solicitada por Jesus, como os outros apóstolos o fizeram. Ele traz a
polícia, e, obviamente, trai Jesus. Isso é o que faz rir, porque é obvio que Judas trairia Jesus.
Mas o primeiro script acionado pela piada conduz o leitor a esperar que ele faça o mesmo que
Paulo e Pedro, apresentando-se e dizendo que droga trouxe. No entanto, ele faz exatamente o
mesmo que faz na Bíblia, e que, diante da trama da piada, cai no esquecimento, voltando
rapidamente por efeito de interdiscurso, e é desse efeito que advém o humor dessa piada.
Esse jogo é tão bem construído que os valores religiosos não chegam a ficar em
segundo plano. Pelo contrário, emergem em primeiro plano inesperadamente, provocando o
T. D.
liberdadeRepressão
Não-divinoNão-humano
Ser humano Ser divino
riso. Por outro lado, os valores concernentes ao consumo de drogas, tráfico, criminalidade, em
suma, o universo de discurso da legalidade (e ilegalidade) cai no esquecimento. Assim, essa
piada aciona o script religioso para promover o humor, não o contrário; ela traz à tona os
valores religiosos para relegar a segundo plano os aspectos que são relevantes de início, como
o alto consumo de drogas, por exemplo.
Na verdade, o sujeito enunciador busca persuadir os enunciatários (leitores) de que os
problemas na Terra são os mesmos de sempre, tanto na época de Jesus quanto ma atualidade:
infidelidade, deslealdade, traição, preconceito. Mas o objetivo da piada não é discuti-los. Ela
busca veicular e disseminar o discurso de que quem trai uma vez, sempre trairá; de que o
tempo passa, mas tudo continua do mesmo jeito; de que uma vez pecador, assim permanecerá;
e de que se Judas traiu séculos atrás, trairia hoje do mesmo modo. Ou seja, mudam as
formações discursivas, mas o ideológico permanece, e o ideológico da piada é de que um erro
do passado retorna no futuro, inevitavelmente.
4.2.3 Estrutura fundamental
As oposições semânticas em que essa piada se situa não apresentam grandes
diferenças quanto às piadas intertextuais. Um exemplo é a tensão do humano x divino, na qual
Jesus se constitui. Ser divino é eufórico para Jesus, que reúne seus apóstolos no céu e os envia
à Terra. Mas para a Polícia é disfórico, porque almeja prendê-lo como qualquer criminoso.
Nesse cerne, surge a implicação entre divino e não-humano, resultando na liberdade para
transportar e experimentar drogas no céu. Já da implicação entre humano e não-divino advém
a repressão, conforme ilustramos no seguinte octógono:
T. D.
DesobediênciaObediência
Não-infidelidadeNão-lealdade
Lealdade Infidelidade
T. D.
Sinceridade Falsidade
Os próximos octógonos que ilustramos centram-se na ação de Judas e dos demais
apóstolos. No primeiro, temos a tensão entre lealdade x infidelidade. Decorre da implicação
entre lealdade e não-infidelidade a obediência às regras; já da implicação entre infidelidade e
não-lealdade surge a desobediência.
A outra tensão é a existente entre sinceridade x falsidade, sendo que ser falso é
eufórico para Judas e disfórico para os demais apóstolos; já ser sincero é eufórico para os
apóstolos e disfórico para Judas. Sinceridade implica não-falsidade e dessa relação advém o
ato de seguir a Jesus; por sua vez, falsidade implica não-sinceridade e dessa implicação surge
a traição. O octógono seguinte pode ser lido tanto na posição sinceridade x falsidade quanto
falsidade x sinceridade, considerando-se a primeira leitura para o conceber de Judas e a
segunda para os apóstolos.
4.3 PROFESSORA ATEIA
Um dia, na sala de aula, a professora estava explicando a teoria da evolução aos
alunos e tentando provar que Deus não existe. Ela perguntou a um dos estudantes:
― Tomas, vês a árvore lá fora?
― Sim – respondeu o menino.
A professora voltou a perguntar:
― Vês a grama?
E o menino respondeu prontamente:
― Sim.
Então, a professora mandou Tomas sair da sala e lhe disse para olhar pra cima e ver
se ele enxergava o céu. Tomas entrou e disse:
― Sim, professora. Eu vi o céu.
― Vistes a Deus? – perguntou a professora.
O menino respondeu que não. A professora, olhando para os demais alunos da sala,
disse:
― É disso que eu estou falando! Tomas não pode ver a Deus, porque Deus não está
ali! Podemos concluir então que Deus não existe.
Nesse momento Pedrinho se levantou e pediu permissão à professora para fazer mais
algumas perguntas a Tomas.
― Tomas, vês a grama lá fora?
― Sim.
― Vês as árvores?
― Siiiiiiiimmmmm.
― Vês o céu?
― Sim!
― Vês o cérebro da professora?
― Não – disse Tomas.
Pedrinho então, dirigindo-se aos seus companheiros, disse:
― Colegas, de acordo com o que aprendemos hoje, concluímos que a professora não
tem cérebro!
Esta piada tem a particularidade de dialogar com a passagem bíblica João 20: 24-29,
na qual Jesus aparece aos discípulos e precisa convencer Tomé, que se revela descrente com
tal aparição, por não o ter visto antes. Jesus enuncia que é bem-aventurado aquele que crê
nele, mesmo sem o ver, pregando o discurso de que a fé se sobrepõe aos sentidos visuais. É
neste sentido que há interdiscursividade entre a passagem bíblica e essa piada, mas na
contramão desse discurso, uma professora tenta fazer seus alunos acreditarem na inexistência
de Deus, por eles não conseguirem vê-lo. No entanto, um de seus alunos intervém, ao usar a
mesma estratégia argumentativa da professora e concluir que seu cérebro também não existe,
já que ninguém o vê. Essa é a quebra de expectativa que desencadeia o riso, visto que o fato
de a professora não ter cérebro possui também o sentido de que ela é burra. Além disso, seria
óbvio acreditar na inexistência de seu cérebro, ao se levar em conta sua linha de raciocínio.
Percurso temático
1. A EXPLICAÇÃO DA PROFESSORA
2. AS PERGUNTAS A TOMAS SOBRE AS COISAS VISÍVEIS
3. AS RESPOSTAS DE TOMAS A PROFESSORA
4. O QUESTIONAMENTO SOBRE O CÉU
5. A AFIRMATIVA DE TOMAS
6. O QUESTIONAMENTO SOBRE DEUS
7. A NEGATIVA DE TOMAS
8. A CONCLUSÃO DA PROFESSORA
9. A INTERVENÇÃO DE PEDRINHO
10. AS PERGUNTAS DE PEDRINHO SOBRE AS COISAS VISÍVEIS
11. NOVAS RESPOSTAS DE TOMAS
12. OUTRO QUESTIONAMENTO SOBRE O CÉU
13. OUTRA AFIRMATIVA DE TOMAS
14. A PERGUNTA SOBRE O CÉREBRO DA PROFESSORA
15. A NEGATIVA DE TOMAS
16. A CONCLUSÃO DE PEDRINHO
4.3.1 Narrativização
Modalizado pelo querer-fazer-crer, o S1 busca persuadir seus alunos da inexistência
de Deus. Para isso, tem Tomas como adjuvante, por lhe fazer perguntas cujas respostas
induzam os demais colegas a aderirem a seu credo. Destinado, pois, pelo conhecimento
científico, o S1 interpela Tomas sobre o que ele vê fora da sala, na perspectiva de fazê-lo crer
apenas naquilo que pode ver. Então, o S1 começa perguntando sobre a árvore, a grama e, por
poder-fazer Tomas sair da sala e olhar para cima, pergunta sobre o céu. Em seguida,
manifesta aos demais sua conclusão, após perguntar se Tomas viu a Deus e obter resposta
negativa. Neste sentido, portanto, o S1 está caminhando para o estado de conjunção com seu
objeto de valor principal: a adesão pelos alunos à sua ideia.
Eis o percurso narrativo do S1:
Onde:
S1 = a professora
O.V.1 = provar que Deus não existe
O.V.2 = interpelar Tomas sobre as coisas visíveis
O.V.3 = fazê-lo crer apenas naquilo que pode ver
O.V.4 = manifestar a turma sua conclusão
S1
S1
OV1
OV2
OV3
OV4S1
S1
Por sua vez, o S2, figurativizado pelo aluno Tomas e modalizado pelo dever-fazer,
busca cumprir a tarefa que lhe é destinada, a fim de alcançar o sossego, instaurando-se
também por um querer livrar-se dos questionamentos a ele direcionados. Destinado pela
disciplina, responde às perguntas da professora e às de Pedrinho, seu oponente, porquanto
tenha interrompido a conjunção com seu objeto de valor, após as perguntas da professora (sua
oponente). Porém, assim que Pedrinho conclui suas perguntas, o S2 passa ao estado de
conjunção com seu objeto de valor principal (o sossego), visto que esse outro oponente volta-
se para toda turma, liberando-o de novos questionamentos. Seu percurso narrativo pode ser,
pois, representado pelo seguinte esquema:
Onde:
S2 = Tomas
O.V.1 = conseguir sossego
O.V.2 = responder à professora
O.V.3 = responder a Pedrinho
Por fim, o S3 procura persuadir os colegas de que a professora está errada, sendo
modalizado pelo querer-fazer-crer que Deus existe, independente de que se possa vê-lo ou
não. Ou seja, o S3 busca inicialmente intervir na aula da professora, para conseguir a adesão
dos colegas (seu objeto de valor principal). Em seguida, passa a questionar Tomas sobre o que
ele não vê, assim como o fez a professora. Nesse sentido, ele é modalizado pelo poder-fazer,
pois adquiriu de sua adjuvante (a professora) a autorização para também interpelar o colega.
O S3 finda a narrativa conjunto com seu objeto de valor, o qual seja manifestar sua
discordância com professora. Mas o valor principal que ele busca é também a adesão dos
alunos às suas idéias, ao seu credo religioso; contrário ao credo da professora. Assim, o S3
Pedrinho, no programa narrativo do S1, é seu anti-sujeito e vice versa, porque o S1 professora
também é anti-sujeito no programa narrativo do S3. Seu percurso narrativo pode ser
representado da seguinte forma:
S2
S2
S2
OV1
OV2
OV3
S3OV1
Onde:
S3 = Pedrinho
O.V.1 = intervir na aula da professora
O.V.2 = interpelar Tomas sobre as coisas visíveis
O.V.3 = manifestar a turma suas conclusões
Por fim, a piada acena para um conflito de interesses, responsável pela disjunção de
ambos, sujeitos semióticos 1 e 3, com seus objetos de valor principais. Os dois buscam
conseguir o mesmo (a adesão às suas idéias pelos alunos) e aqueles aos quais os sujeitos
procuram convencer, com discursos de sedução e manipulação, não manifestam que partido
tomam, ambos findam a narrativa disjunto de seu valor almejado – ambos buscam fazer os
colegas crerem em suas idéias e podem fazer Tomas responder a suas perguntas, mas não fica
claro se há sanção ou não.
4.3.2 Discursivização
Quanto aos aspectos discursivos, no que tange à actorialização, a piada apresenta a
professora, no papel temático da docente que monta uma estratégia de argumentação, para
transmitir seus conhecimentos aos alunos. Dispõe também do ator Tomas, que figura como
um aluno obediente, disciplinado e que procura cumprir as tarefas a ele destinadas. O terceiro
ator dessa piada é Pedrinho, figurativizado como um aluno que se rebela contra o que diz a
professora; é um autônomo, o suficiente para questionar seu próprio colega, seguindo a
mesma estratégia argumentativa da professora, a fim de rebater sua conclusão.
Neste sentido, vem à tona temas ligados à educação, como relação professor-aluno e
metodologia de ensino. Além desses, surgem outros temas, como teorias científicas, fé, razão
e natureza, estando esse último ligado às figuras da árvore, da grama e do céu, objetos do
mundo natural que a professora e Pedrinho pedem para Tomas ver. Por outro lado, figuras
como sala de aula e estudantes remetem diretamente ao tema educação escolar.
S3
S3
OV2
OV3
Sobre a temporalização, podemos perceber que essa piada situa a história no tempo
através do indicativo de modernidade, pela referência à teoria da evolução, que remonta à
teoria de Charles Darwin, para quem as espécies evoluem. Nesse sentido, o tempo da história
contada na piada se situa entre o momento contemporâneo e, no mínimo, a segunda metade do
século XIX, quando o evolucionismo ganhou força. Por outro lado, o tempo dentro da própria
piada apresenta algumas marcas que delineiam os momentos da história narrada, tais como
um dia, então, nesse momento, hoje. No entanto, o sujeito enunciador demarca o tempo dos
fatos na piada como não seus, por não narrar sua história, não manifestando qualquer
expressão que demarque seu tempo, o tempo de sua enunciação, a não ser o indicativo de
modernidade.
Já com relação ao espaço, o indicativo é de um ambiente escolar, a própria sala de
aula de uma escola indefinida. Nessa perspectiva, trata-se de um espaço fechado, no qual os
atores dialogam e de lá avistam objetos fora dela. Existe, pois, um espaço aberto, que se
visualiza por uma janela ou porta, e que se pode contemplar, saindo da sala. É um lugar com
gramas, árvore e de onde se pode olhar para cima e ver o céu: um jardim, um pátio interno ou
mesmo externo à escola.
Quanto às projeções da enunciação, vemos que o sujeito enunciador cede boa parte do
texto aos atores, concedendo-lhes as vozes que enunciam por ele. Nesse sentido, os três atores
emplacam um efeito de subjetividade, como em “É disso que eu estou falando!” (professora),
“Sim, professora. Eu vi o céu.” (Tomas) e “Colegas, de acordo com o que aprendemos
hoje...” (Pedrinho). No discurso da professora, o eu-aqui-agora se manifesta pelo próprio
pronome de primeira pessoa (eu) e pela conjugação composta de presente do indicativo e
gerúndio estou falando (aqui-agora). Além disso, os diálogos em que a professora e Pedrinho
interpelam também denotam a concomitância, própria do aqui, em cada questionamento
imperativo, porquanto peçam uma resposta imediata daquilo que se vê no momento. No
entanto, sempre que o enunciador, narrador da piada, tem o turno de voz, projeta um efeito de
distanciamento. Mas confere ao seu texto um efeito de realidade, caracterizado pelos
discursos diretos que embalam os interlocutores numa debreagem interna.
Do ponto de vista ideológico, verificamos que esta piada busca relevar o discurso
religioso de que Deus existe, independente de que possa ser visto pelos seres humanos.
Dialoga, pois, com a passagem bíblica João 20: 29, na qual Jesus enuncia: “Porque me viste,
creste. Bem-aventurados os que não viram e creram”. Nesse sentido, o valor religioso se sobre
põe ao racional, científico e materialista que subjaz ao discurso da professora. O efeito de
humor provém da sua estratégia de argumentação, que num silogismo falso, busca persuadir
T. D.
Fé Razão
os alunos de que Deus não existe, porque não pode ser visto. Ora, se tudo que não puder ser
visto momentaneamente aos olhos humanos não existir, é lógico que a o cérebro da professora
também não, pois os alunos não podem vê-lo dentro da cabeça da professora. Essa é a
estratégia de Pedrinho, rebater a professora desqualificando seu dizer. Logo, a ambiguidade
do seu dizer (... concluímos que a professora não tem cérebro) está na dupla possibilidade de
sentido para não tem cérebro: pode significar que seu órgão não existe, por não poder ser
visto, mas também significa que a professora usou de pouca inteligência, ao formular tal
argumentação. Em suma, ou lhe falta algo, ou ela é burra mesmo, e é esse jogo dual que
propicia o riso, porquanto imponha o último sentido, sem esgotar a possibilidade do primeiro.
Dar-se conta de que existe outra leitura, óbvia, é característica de uma leitura humorística.
Por outro lado, mais uma vez, o humor não ofusca os valores religiosos, mas os
reforça, porque minimiza o fundamento científico do discurso da professora em prol da
conclusão a que chega Pedrinho. Na verdade, se a professora é “burra”, por não ter cérebro, é
porque é descrente ou não sabe que Deus existe independente de que Tomas pudesse vê-lo ou
não no céu. Seu argumento, por outro lado, é caracterizado como falso logicamente porque
não é a visão ou não de Deus no céu, naquele momento, que invalidaria sua existência. Tomas
poderia tentar vê-lo em outro momento, porque Deus poderia estar lá outra hora. Nesse
sentido, sua existência estaria condicionada à visão de um ser, como Tomé, que só acreditou
em Cristo depois de vê-lo e tocá-lo. Aliás, Tomas e Tomé são nomes bem parecidos! O
diálogo interdiscursivo se instaura também sob essa ótica, mas é a professora que está mais
para Tomé do que o pobre Tomas, que responde impacientemente sobre o que vê
(Siiiimmmmmm).
4.3.3 Estrutura fundamental
Quanto às oposições semânticas que estão na base da geração de sentido dessa piada,
destacamos as tensões fé x razão e aceitação x rejeição. Na primeira, fé implica não-razão e
dessa relação advém o conhecimento religioso. Já razão implica não-fé e é dessa implicação
que surge o conhecimento científico. Se considerarmos os valores relevados pelos atores
Pedrinho e professora, na discursivização, concordaremos que fé é eufórico para o primeiro,
mas disfórico para a segunda, assim como para a professora é eufórica a razão, mas disfórica
para Pedrinho. Vejamos no octógono abaixo:
T. D.
Credo autônomoCredo imposto
Não-rejeiçãoNão-aceitação
Aceitação Rejeição
Em seguida, apresentamos o octógono representativo da tensão dialética aceitação x
rejeição. Nela aceitação implica não-rejeição, e dessa relação surge o credo imposto, seja
pela educação escolar, pautada pela ciência da razão, seja pela educação religiosa, a qual se
baseia na tradição, na cultura. Já rejeição implica não-aceitação, relação da qual advém o
credo autônomo, que se fundamenta na capacidade humana de questionar, refletir e construir
argumentos capazes de rebater coerções sócio-culturais.
5. ANÁLISE SEMIÓTICA DE PIADAS TRANSGRESSIVAS
5.1 CONVITE IMPRÓPRIO
Os apóstolos iam jogar uma partida de futebol contra o time dos centuriões do
Império Romano e resolveram cortar caminho pelo Gólgota. Quando chegaram no alto do
morro, avistaram Jesus sendo erguido na cruz. Ficaram muito sem graça, até que um deles se
dirigiu ao mestre:
― Rabi, vamos bater uma bolinha?
Jesus olhou aqueles pobres e rudes homens com profunda misericórdia e respondeu:
― Hoje não dá, tô pregado!
Concebemos a categoria de piadas transgressivas para enquadrar os textos
humorísticos que remetem a determinadas passagens bíblicas, mas descrevem situações bem
destoantes daquelas mencionadas na Bíblia. De certa forma, existe um efeito de intertexto que
remete as piadas dessa categoria a passagens bíblicas específicas, mas essa constituição
dialogal “pulveriza” qualquer valor religioso, visto que ocorre uma substituição temática e
figurativa bastante incisiva e evidente. Não se quer fazer parecer passagem bíblica, ou relevar
o discurso religioso; antes de tudo, essas piadas o transgridem, pois narram situações bastante
destoantes das bíblicas. São verdadeiras invenções, sob a ótica religiosa.
É o caso desta piada, que se refere à crucificação de Jesus, no mesmo lugar citado pelo
livro sagrado, mas com um fato novo: o encontro dos apóstolos com Cristo, em meio à
caminhada que faziam em direção a um suposto campo de futebol. A piada já começa com
esse propósito transgressivo e traz o fato da crucificação para quebrar a expectativa do leitor,
promovendo o humor com as palavras de Jesus, que se diz pregado. Esse é o gatilho
linguístico que promove a mudança de um script a outro na piada. É esse dizer que gera a
ambigüidade de seu discurso.
Percurso temático
1. A CAMINHADA DOS APÓSTOLOS
2. A CHEGADA AO GÓLGOTA
3. O ENCONTRO COM JESUS
4. O CONVITE DO APÓSTOLO
5. A RESPOSTA DE JESUS
5.1.1 Narrativização
Modalizado por um querer-poder-fazer, o S1, busca chegar ao local onde pretende
jogar uma partida de futebol. Destinado pela ansiedade, encurta o caminho a fim de acelerar
sua chegada, mas se encontra com o mestre, que está pregado na cruz. Na verdade, o S1 é um
sujeito coletivo, figurativizado pelos apóstolos, dotados de um querer comum. Seu percurso é
marcado por uma interrupção, uma vez que o encontro com seu mestre o incita a parar.
Nesse sentido, Jesus se apresenta inicialmente como oponente do S1, porquanto sua
presença no caminho, diante da situação em que se encontra, acarrete a parada dos apóstolos.
O S1 permanece disjunto de seu objeto de valor: jogar a partida de futebol. Mas com as
palavras de Jesus, tem a possibilidade de retomar seu caminho em direção ao seu objeto de
valor. Assim, o S1 passa a ter Jesus também como seu adjuvante, pois suas palavras
minimizam sua situação, liberando o S1 para seguir adiante (OV4). Assim, seu percurso
narrativo pode ser representado no seguinte esquema:
S1
S1
OV1
OV2
OV3S1
OV4
Onde:
S1 = grupo de apóstolos
O.V.1 = jogar futebol
O.V.2 = encurtar caminho
O.V.3 = parar diante de Jesus
O.V.4 = seguir adiante
Já o S2 é modalizado pelo querer-saber, na figura do apóstolo que se dirige a Jesus
para convidá-lo a jogar futebol com ele. Seu objeto de valor inicial é, pois, aproximar-se do
mestre para saber se o terá na partida de futebol. Nessa perspectiva, Jesus é seu adjuvante,
porquanto lhe dê a resposta que precisa para alcançar o saber. Mas se o S2 convida Jesus e
dele obtém uma resposta negativa, podemos dizer que ele fica disjunto de seu objeto de valor
principal: a presença de Jesus na partida de futebol. Seu percurso é, pois, representado da
seguinte maneira:
Onde:
S2 = um dos apóstolos
O.V.1 = aproximar-se de Jesus
O.V.2 = convidá-lo para o jogo
Por sua vez, o S3 busca acalentar seus apóstolos (O.V.1), que ficam “sem graça” ao
vê-lo crucificado e interrompem a caminhada, rumo à partida de futebol, por terem cortado o
caminho e o avistarem crucificado. Em seguida, o S3, modalizado pelo poder-fazer-crer que
está tudo bem, dispensa a partida para a qual é convidado por um de seus apóstolos. Neste
sentido, Jesus busca minimizar sua situação (O.V.2), a fim de que se sintam mais à vontade e
possam seguir satisfatoriamente sua caminhada rumo à partida, ainda que sem sua presença. O
apóstolo que lhe interpela torna-se seu adjuvante, pois é por meio da resposta a sua pergunta
que Jesus assume o poder-fazer os demais acreditarem que ele não pode seguir. O S3 finda a
S1
S1
OV1
OV2
narrativa conjunto com seu objeto de valor principal, o qual seja dar uma satisfação aos
apóstolos, que não disporão de sua presença na partida de futebol.
Eis o esquema narrativo do S3:
Onde:
S3 = Jesus
O.V.1 = acalentar os apóstolos
O.V.2 = minimizar sua situação
O.V.3 = permitir que sigam rumo à partida
5.1.2 Discursivização
A piada apresenta dois atores aos quais o sujeito enunciador concede a palavra no
intervalo de sua enunciação: um apóstolo e Jesus. O primeiro pertence a um grupo que se
desloca em direção a um lugar indefinido, no qual será disputada uma partida de futebol
contra os centuriões do Império Romano. Seu discurso é marcado pelo efeito de proximidade
da enunciação, visto que assume, no vamos, o convite a Jesus, caracterizando-se como um eu
que se dirige a um tu. Do mesmo modo, o ator Jesus caracteriza-se como um enunciador
debreado enuncivamente, porquanto assuma um eu implícito (mas pressuposto) no tô pregado
e projete o aqui e agora no lugar e tempo do enunciado que profere.
Neste sentido, a temporalização acena para uma “presentificação”, do ponto de vista
dos enunciados dos atores supracitados, porque operam com conjugações verbais do presente.
Da mesma maneira ocorre com a espacialização com a qual o sujeito enunciador concebe suas
personagens: em campo aberto, no monte Gólgota, conforme assegura a Palavra Sagrada. São
lá que os diálogos ocorrem e é lá que o enredo se dá, no espaço dos atores, não do
enunciador. Assim, tanto o tempo quanto o espaço não são os mesmos para enunciador e
atores, tendo o primeiro projetado um ele-então-alhures na concepção de seu discurso.
S1
S1
S1
OV1
OV2
OV3
Do ponto de vista das figuras e dos temas a que remetem essa piada, dois papéis
temáticos se sobressaem: o do mestre e o dos discípulos. Ambos remetem aos temas da
sabedoria, da lealdade, da obediência, da devoção, da fidelidade e do respeito, este presente na
figura dos apóstolos, mas que contrasta com a do peladeiro, desinibido, que convida Jesus
para bater uma bolinha, em oposição aos envergonhados (sem graça) companheiros. Além
disso, o ator Jesus ainda se figurativiza como o Senhor, piedoso, misericordioso, o que remete
aos temas correspondentes a tais qualidades. Mas tudo isso está no script religioso, porque, no
esportivo, outros temas são acionados. Nesse sentido, todos os apóstolos estão figurativizados
como “peladeiros”, praticantes do futebol por prazer, mas que não dispensam a disputa, a
competição, temas inerentes às praticas esportivas profissionais e por entretenimento. E a
disputa aqui subentende até uma rivalidade, porquanto ocorra entre os algozes de Jesus
(centuriões) e seus apóstolos.
Na verdade, Convite impróprio principia com a remissão aos temas esportivos, embora
seus atores, inerentes ao universo de discurso bíblico, sejam de pronto mencionados. Mas seus
valores ideológicos são predominantemente pertencentes ao mundo do entretenimento
esportivo. Existe a disputa que ocorre entre atores do universo de discurso religioso: apóstolos
e centuriões. O lugar também é bíblico, o Gólgota, monte no alto do qual Cristo foi
crucificado; contudo, seu encontro com os apóstolos é acidental, visto que a intenção deles era
apenas cortar caminho para chegar mais rápido ao local da partida. Para-se diante de Jesus
crucificado, mas se dirige a ele com intenções de divertimento. Em suma, o foco nessa piada é
o entretenimento esportivo, os valores inerentes a ele: prazer, disputa, competição, diversão,
entre outros.
Nessa perspectiva, entendemos que o enunciador não pretende contar a passagem
bíblica de outra maneira, mas inventar uma situação diferente daquelas que os textos bíblicos
citam. As controvérsias entre o discurso religioso e o humorístico não estão em se dizer
diferente, mas em se dizer o novo. Ou seja, não se trata de evocar o velho e retrabalhá-lo, não
é um intertexto; nem se trata de, no dizer novo, manter o ideológico, como no interdiscurso.
Aqui o que vale é apropriar-se do discurso religioso, do saber sobre ele para inventar uma
situação que lhe é alheia, e inusitada: os apóstolos jogando bola com os centuriões do Império
Romano. Isso é inconcebível historicamente, pois não há registro de que esse tipo de prática
esportiva fosse realizada na época de Jesus, pelo menos não entre seus discípulos. Também
não se concebe dizer, no universo de discurso religioso, que os apóstolos estivessem
procurando diversão no dia da crucificação de Cristo. Daí surgirem implicações relevantes,
visto que o discurso do enunciador busca persuadir o enunciatário de que Jesus, pela
T. D.
Repreensão
Ser divino Ser humano
misericórdia, permitiria que seus apóstolos fossem jogar sem ele, sem ao menos questionar a
lealdade. É no mínimo vergonhoso, na cultura cristã ocidental, ir divertir-se enquanto o
mestre está à beira da morte. Os valores almejados por esses apóstolos são completamente
destoantes dos apregoados no discurso religioso.
Então, o humor advém justamente dessa quebra de expectativa que ocorre, quando, em
vez de reprimir ou questionar, Jesus diz que “Hoje não dá. Tô pregado!”. Mais que isso,
pregado se insere no universo de discurso das práticas esportivas como situação de cansaço,
estresse ou esgotamento físico. No entanto, no script religioso, significa preso por pregos a
uma cruz de madeira, como cita a Bíblia. Logo, pregado significa literalmente estar preso – à
cruz – por pregos, conforme o discurso religioso, mas na piada pode apresentar outra
interpretação: estar extremamente cansado. É o primeiro entendimento que gera o efeito de
humor, porquanto a pergunta tenha sido realizada no sentido da prática esportiva: “Rabi,
vamos bater uma bolinha”; mas recebe uma resposta ambígua, com dois sentidos: um para
cada script. Portanto, o humor surge da percepção por parte do enunciatário de que,
obviamente, Jesus não poderia jogar bola com os apóstolos por ter sido crucificado – por isso
o pregado.
5.1.3 Estrutura fundamental
Os investimentos semânticos dos quais se vale essa piada para a geração de sentido
conduzem-nos a tensões dialéticas variadas, mas aqui nos deteremos em três: ser divino x ser
humano, tristeza x alegria e diversão x devoção. A primeira está presente também em outras
piadas já analisadas e acena para oposição existente entre o discurso religioso e o humorístico,
a qual constitui as piadas com passagens bíblicas. Nessa tensão, ser humano é eufórico para
os apóstolos, que almejam a presença de Jesus numa partida de futebol; já ser divino não, pois
pressupõe uma repreensão do mestre aos seus discípulos. Assim, ser humano implica não-ser
divino e dessa relação advém a permissividade desejada pelos apóstolos e praticada por Jesus.
Já ser divino implica não-ser humano, originando a repreensão cabível àqueles que se
apresentam ao mestre com propósitos diferentes dos religiosos. Vejamos no octógono:
T. D.
DespudorVergonha
Não-alegriaNão-tristeza
Tristeza Alegria
A segunda tensão que passamos a ilustrar é a existente entre tristeza x alegria, na qual
se concebe a situação em que se encontram os apóstolos. Diante do mestre crucificado, os
discípulos interrompem o estado emocional em que eles se encontravam anteriormente, o que
os conduz ao estado oriundo da implicação entre tristeza e não-alegria, a vergonha. Por sua
vez, da relação de implicação entre alegria e não-tristeza surge a despudor com que um dos
apóstolos se dirige a Jesus para convidá-lo. Na verdade, toda a piada gira em torno dessa
tensão, porquanto trate, desde seu início, de uma situação de entretenimento, mas com
personagens conhecidos pela seriedade (apóstolos, centuriões do império romano e Jesus),
pelo menos no universo de discurso religioso e no histórico. Assim, representamos tal tensão
no seguinte octógono:
T. D.
LealdadeInfidelidade
Não-devoçãoNão-diversão
Diversão Devoção
A última tensão sobre a qual discorremos é a existente entre diversão x devoção. Ela é
geradora de sentido da piada segundo as atitudes dos apóstolos. Nesse caso, diversão implica
não-devoção e devoção implica não-diversão. Da relação de implicação entre diversão e não-
devoção surge a infidelidade, posto que os apóstolos tenham preferido a partida de futebol a
acompanhar os passos de Jesus até a crucificação a ponto de nem saberem onde ele estaria: o
encontro acidental. Já da implicação entre devoção e não-diversão surge a lealdade com que
os apóstolos deveriam ter tratado o mestre.
Na seqüência, apresentamos o octógono que ilustra tal tensão dialética:
5.2 AS BODAS
Foi uma bela festa de casamento naquela cidade da Galileia. Vinho não faltou: foi
servido o melhor da safra. No dia seguinte, José acordou com muita dor de cabeça, uma puta
de uma ressaca, a boca ressequida. Nem pôde se levantar da cama. Chamou a mulher e
pediu:
- Maria! Me traz um copo d’água, ó Maria!
- Ó filho, leva essa água ali pro teu pai – disse Maria.
- Pel’amor-de-meu-Pai, não deixa o menino tocar nessa água, Maria – implorou José.
Seguindo o padrão da piada anterior, esta se caracteriza por uma remissão ao texto
bíblico para transgredi-lo, ao relatar situações destoantes das apresentadas na Bíblia. Nesse
sentido, não há um intertexto ou um interdiscurso, exceto pela referência da transformação de
água em vinho. A narrativa relata uma suposta ressaca que conduz José a pedir água, na
tentativa de curá-la ou aliviá-la; contudo, sua esposa delega seu filho para entregar o pedido, o
que leva José a implorar a mulher para não deixar o “menino” tocar na água. É o
conhecimento partilhado de que Jesus, filho de José e Maria, transforma água em vinho, numa
festa de casamento, que faz essa piada ter sentido como texto humorístico.
Percurso temático
1. A FESTA DE CASAMENTO
2. A RESSACA DO DIA SEGUINTE
3. O CHAMADO DE JOSÉ
4. A ORDEM DE MARIA
5. O PEDIDO DE JOSÉ
5.2.1 Narrativização
O S1 busca curar sua ressaca com água através da ingestão, a qual quer-fazer com
auxílio da esposa. Ele, nesse sentido, está modalizado por um querer e um poder-fazer-fazer,
pois pode-fazer a mulher fazer a água chegar até ele. Fazer o pedido de água a mulher é o seu
objeto de valor inicial, e ela é seu adjuvante, porquanto delegue o filho para levar a água até o
marido. Mas este, por fazer-crer que pode-fazer água transformar-se em vinho, torna-se
oponente do S1, pois ele acredita que, em vez de água, vai terminar bebendo vinho. Assim, o
S1 tem como objeto de valor posterior (O.V.2) afastar o filho da água, através do pedido que
faz a esposa. Isto porque ele quer evitar o vinho (O.V.3), que lhe causou o incômodo da
ressaca. Seu percurso narrativo é representado pelo seguinte esquema:
OV1S1
Onde:
S1 = José
O.V.1 = fazer o pedido a mulher
O.V.2 = afastar a água do menino
O.V.3 = evitar o vinho
O S2, na figura da esposa Maria, busca somente a satisfação do marido, agindo de
modo a atender seu pedido (OV1) através da recorrência ao filho para cumprir a ordem de
levar a água almejada. Nesse sentido, o menino é adjuvante da mãe, que não se detém no
suposto poder do filho, ao delegar-lhe tal função. Ela quer apenas ordenar que o menino leve
a água, seu objeto de valor final (OV2). Seu percurso narrativo é, portanto, representado no
seguinte diagrama:
Onde:
S2 = Maria
O.V.1 = atender o marido
O.V.2 = ordenar o filho
O menino, embora não seja um sujeito semiótico, pois não demonstra nenhum querer
ou poder senão os subentendidos pelo S1, é um actante relevante para o desfecho da narrativa.
Do ponto de vista do S1, ele é seu oponente, porque em vez de água lhe traria vinho; contudo,
do ponto de vista S2 ele seria igualmente adjuvante, pois, ao levar a água, cumpriria a ordem
da mãe, que almeja atender ao marido, e auxiliaria o S1 a alcançar seu objeto de valor
principal: a água. Como o S1 crê que não ocorreria dessa forma, finda a narrativa disjunto de
seu objeto de valor.
OV2
OV3
S1
S1
S1 OV1
OV2
S1
5.2.2 Discursivização
Do ponto de vista atorial, As bodas apresenta os atores Maria e José respectivamente
nos papéis temáticos de mãe e pai de família. Eles executam um diálogo no qual está
projetada uma debreagem enunciativa, posto que instaurem um eu-aqui-agora em seus
discursos. Nas conjugações de imperativo e nos vocativos (Maria! Me traz... e Ó filho, leva...
por exemplo) estão as marcas de diálogo presencial, no aqui e agora das trocas enunciativas.
No entanto, os aspectos temporais que compõem a piada conduzem a uma distinção
entre o tempo do enunciador e dos atores. Como a história não é sua e as formas verbais
remontam a um passado alheio (Foi numa bela festa...; No dia seguinte, José acordou...), há
um efeito de distanciamento por parte do enunciador: ele se situa em um tempo à frente dos
atores e narra a história deles. Além disso, o tempo da piada é marcado por um intervalo, que
se faz perceber pela expressão “No dia seguinte”, enunciada para dividir a narrativa em dois
momentos: o da festa e o da ressaca.
Já o espaço está explicitado no termo cidade da Galileia e na pressuposição de uma
casa na qual esteja a família, no dia seguinte, visto que o enunciador menciona uma cama, de
onde José mal consegue se levantar. A própria festa de casamento já subentende um espaço
fechado, posto que remete a um lugar onde se servia vinho a convidados. Como a piada
remonta à passagem bíblica do Evangelho de João (2: 1-10)120, a idéia de uma festa em uma
casa faz sentido.
Quanto à tematização, temos os temas da embriaguez e da bebedeira, atrelados à
figura do marido que bebe e ocupa mulher no dia seguinte, com os problemas que passa a
sofrer. Nesse sentido, surgem também os temas da doença, do descuidado com a saúde, da
ressaca e do incômodo causado pelos males da bebida: tontura, dor de cabeça e boca
ressequida, por exemplo. Mas esses são evocados pelo script humorístico, porque no religioso
outros temas são trazidos à tona, como o do milagre promovido por Jesus, ao transformar
água em vinho. Esse tema é evocado no final da piada, com a passagem para o script
religioso. É o seu reconhecimento que promove o riso, visto que água nas mãos de quem a
transforma em vinho, pode resultar em mais vinho. Assim, para quem está fugindo dessa
bebida, a última coisa que pode querer é que lhe seja trazida a água pelas mãos de um filho
120 1(...) houve um casamento em Caná da Galileia, achando-se ali a mãe de Jesus. 2Jesus também foi convidado, com os seus discípulos, para o casamento. 3Tendo acabado o vinho, a mãe de Jesus lhe disse: Eles não tem mais vinho. (...) 7Jesus lhes disse: Enchei d’água as talhas. E eles as encheram totalmente. 8Então lhes determinou: Tirai agora e levai ao mestre-sala. Eles o fizeram. 9Tendo o mestre-sala provado a água transformada em vinho, não sabendo donde viera, se bem que o sabiam os serventes que haviam tirado a água, chamou o noivo.
que a transforma em vinho. Eis a quebra de expectativa que desencadeia o riso, a qual é
propriedade do humor.
Uma discussão ainda mais intrigante é a que se pode fazer sobre as controvérsias entre
a piada e a passagem a que remete. Se, na passagem bíblica, Jesus compareceu à referida festa
com seus discípulos, isto é sinal de que o mesmo já estava na fase adulta. Mas na piada, o
tratamento que José tem com seu filho, quando se refere ao mesmo pelo termo menino,
conduz o enunciatário à interpretação de que José lidava, no mínimo, com um jovem. Mas
Jesus já era homem feito quando opera a transformação da água em vinho; inclusive, já
possuía seguidores. Nesse sentido, o sujeito enunciador busca persuadir os enunciatários
(leitores) de que essa transformação era comum e que José tinha pleno conhecimento de sua
realização costumeira. Tanto que pede a Maria para afastar a água do menino, para que não
tocasse nela e, certamente, fizesse surgir mais vinho.
Outra questão controversa é a presença de José numa festa onde se bebia vinho da
melhor qualidade. Inevitavelmente, o saber partilhado entre enunciador e enunciatário a
respeito dessa passagem bíblica conduz à mesma festa de casamento em que Jesus esteve
presente. Nela a transformação de água em vinho foi realizada com tanta perfeição que o
noivo recebeu o elogio de ter servido o melhor vinho (o melhor da melhor safra) no fim da
festa, diferente de outros anfitriões. Contudo, nada há na Bíblia nada que indique a presença
de José numa festa de casamento, para, no dia seguinte, acordar de ressaca, tema que sequer é
mencionada nos escritos bíblicos.
Sendo assim, ou o sujeito enunciador concebe essa piada como uma transgressão ao
discurso bíblico, no sentido de enunciar que não só Maria estava presente na festa, mas
também José, que bebeu exageradamente do vinho que o filho fizera surgir da água; ou,
igualmente transgressivo, dissemina-se nessa piada o discurso de que Jesus costumava
realizar a referida transformação sem nenhum motivo especial. Qualquer uma das duas
conclusões acena para uma invenção, uma transgressão ao discurso religioso, porque lhe
acrescenta valores distintos e opostos aos veiculados na passagem bíblica. Por exemplo, a
reflexão a respeito do poder de Jesus cuja notícia começaria a se espalhar dali se contrapõe a
evidente ojeriza à bebida sentida por quem amanhece doentio, por causa dos efeitos negativos
provocados pelo excesso de ingestão no dia anterior. Mais que isso, fugir da bebida, para
quem está com “uma puta de uma ressaca”, é preferível, mesmo que essa bebida seja fruto de
uma transformação milagrosa. E isto é motivo de riso, caso venha a ocorrer diante.
Em suma, o sujeito enunciador vale-se do conhecimento partilhado com o enunciatário
para quebrar sua expectativa e promover o efeito de humor. A idéia de que Jesus faz vinho a
T. D.
AlcoolismoMilagre
Não-profanidadeNão-religiosidade
Religiosidade Profanidade
T. D.
Divindade Humanidade
partir de água é posta para desencadear o riso, após o relato dos males da bebida, que são
intensificados pelo “puta de uma ressaca”, expressão que remonta a subjetividade do
enunciador: ele já sentiu ressaca assim ou a conhece de perto o suficiente para xingá-la.
5.2.3 Estrutura fundamental
Dentre as oposições semânticas nas quais essa piada se funda, três serão ilustradas e
discutidas: religiosidade x profanidade, divindade x humanidade e saúde x doença.
Começando pela que diz respeito aos aspectos religiosos e profanos do texto humorístico,
destacamos que religiosidade implica não-profanidade e dessa relação advém a relevância
dada ao milagre praticado com a transformação de água em vinho. Já profanidade implica
não-religiosidade, relação da qual advém a ênfase em práticas alcoólatras.
Na outra tensão, divindade implica não-humanidade e dessa implicação surge a
especialidade com que se trata o ato de transformar vinho em água. Por sua vez, humanidade
implica não-divindade e dessa relação advém a banalidade. Vejamos, assim, o octógono que
representa essa segunda tensão dialética:
T. D.
PioraMelhora
Não-doençaNão-saúde
Saúde Doença
Assim, beber o vinho oriundo da prática religiosa é eufórico para os cristãos, mas
disfórico, caso se beba em demasia, resultando em ressaca, porquanto seja considerada uma
prática alcoólatra, profana e, portanto, banal. Nesse sentido, a piada se funda na tensão entre o
ato especial e o banal: especial por significar um milagre e banal por ser uma transformação
corriqueira, passível de rejeição.
Na última tensão, destacamos o dilema por que passa quem se submete à bebida. José
está entre saúde e doença, termos opostos que geram o sentido dos valores por ele almejados.
Nesse cerne, saúde implica o contraditório não-doença e dessa relação de implicação advém a
melhora, almejada com a ingestão de água. Por outro lado, doença implica não-saúde e dessa
implicação surge a piora, conforme ilustramos abaixo:
Nesse sentido, vemos que, para José, beber água é eufórico, mesmo que isso ocorra
diante de uma iminente transformação dela em vinho, o que consistiria num ato comum, não
especial, milagroso. Já a ingestão de vinho é disfórica, visto que lhe acarretaria uma piora no
estado de ressaca em que se encontrava. É preferível, portanto, não aceitar a intervenção de
Jesus, rejeitando um ato concebido como milagroso no script religioso, mas que aqui se
concebe como uma ação comum, corriqueira, passível de rejeição.
5.3 O CAMINHO DAS PEDRAS
Vendo Jesus e Pedro caminharem sobre as águas e entrarem no barco, gritou um
circunstante:
― Pedro, o que preciso fazer pra andar também sobre as águas?
São Pedro respondeu:
― Fé, meu filho, muita fé.
O camarada tentou entrar na água e começou a afundar, enquanto São Pedro gritava:
― Mais fé, rapaz, mais fé...
Jesus vira pra Pedro e diz:
― Pedro, não faz isto com o pobre, ensina o caminho das pedras...
Estabelecendo um diálogo com a passagem bíblica do evangelho de João 6: 16-21,
esta piada remete ao momento que Jesus anda sobre as águas e encontra seus discípulos. Mas
aqui Ele não está sozinho. O caminho das pedras é mais que uma transgressão daquilo que é
dito na Bíblia; é uma invenção baseada no relato bíblico. Mantém, a princípio, o discurso de
que Jesus tem a capacidade de andar sobre as águas, mantendo uma relação interdiscursiva
com a passagem supracitada. Contudo, vai além dessa perspectiva, pois conta a história de um
circunstante que vê Jesus e seu discípulo andarem sobre as águas e busca fazer o mesmo sob a
orientação de Pedro. Porém, este não está disposto a dividir com tal circunstante o verdadeiro
segredo para realizar tal proeza. O humor advém justamente da revelação que Jesus faz, ao
cobrar de Pedro que não minta para o circunstante e lhe mostre o caminho das pedras. É o fato
de que eles não faziam nada especial ou sobrenatural que quebra a expectativa do leitor, que
está envolvido na narrativa, rememorando o milagre protagonizado por Jesus, mas se depara
com uma invenção.
Percurso temático
1. A VISÃO DO CIRCUNSTANTE
2. A PERGUNTA DO CIRCUSNTANTE
3. A RESPOSTA DE SÃO PEDRO
4. A ENTRADA NA ÁGUA
5. O INCENTIVO DE SÃO PEDRO
6. O CONSELHO DE JESUS
5.3.1 Narrativização
Figurativizado como um circunstante que observa Pedro e Jesus caminharem sobre as
águas, o S1 é modalizado por um querer-saber-fazer o mesmo que seus observados. Tem
como objeto de valor principal andar sobre as águas e para atingi-lo interroga São Pedro, a
fim de descobrir o que fazer para agir igual a ele e Jesus. Assim, o S1 está também
modalizado por um querer-ser igual. No entanto, o apóstolo é seu oponente, pois o conduz ao
afogamento, com informações falsas sobre o procedimento adequado para andar sobre as
águas. Já Jesus é seu adjuvante, posto que aconselhe São Pedro a dizer a verdade. Assim o
estado de conjunção do S1 com seu objeto de valor é uma possibilidade, mas não um fato,
porque a narrativa deixa em aberto se Pedro vai ensinar ou não o caminho das pedras. Certo
mesmo é que ele principia a narrativa em estado de disjunção e, até a intervenção de Jesus,
assim permanece. Vejamos seu esquema narrativo:
Onde:
S1 = o circunstante
O.V.1 = saber de Pedro
O.V.2 = andar sobre as águas
S1
S1
OV1
OV1
O S2, por sua vez, é modalizado pelo poder-fazer o circunstante crer que pode andar
sobre as águas. Opera, pois, com um discurso de sedução, na busca de seu objeto de valor:
enganar o circunstante. De início, o S2 quer-fazê-lo-crer que a fé é o pressuposto único para
realizar tal caminhada, mas ele passa a afundar, levando o S2 a insistir na mesma tese. Assim,
este sujeito semiótico fica conjunto com seu objeto de valor, que é despistar o circunstante e
manter o segredo a respeito da caminhada sobre as águas. Eis o esquema narrativo do S2:
Onde:
S2 = São Pedro
O.V.1 = despistar o circunstante
O.V.2 = manter o segredo
Por fim, a narrativa apresenta um terceiro sujeito semiótico, figurativizado por Jesus e
modalizado por um querer-fazer o circunstante não se afogar. Nesse sentido, ele tem como
objeto de valor principal a salvação desse postulante a discípulo e para alcançá-lo, quer fazer
São Pedro contar a verdade, ensinando o caminho das pedras. Como a narrativa termina sem o
indicativo claro de que, destinado por Jesus, São Pedro irá revelar o segredo, o S2 fica
disjunto de seu objeto de valor. Seu esquema narrativo pode ser representado pelo seguinte
diagrama:
Onde:
S3 = Jesus
O.V.1 = revelar o segredo
O.V.2 = evitar o afogamento
S2
S2
OV1
OV2
S3
S3
OV1
OV2
5.3.2 Discursivização
No que tange à actorialização, temos os atores São Pedro, na figura do discípulo de
Jesus, que também se apresenta como ator, na figura do mestre e senhor misericordioso. Além
deles, o sujeito enunciador, que concebeu tal narrativa, ainda acrescenta um circunstante, que
fica admirado com a visão dos primeiros andando sobre as águas e solicita de Pedro
informações para fazer o mesmo. Nesse sentido, o ator Pedro se vale de um discurso de
sedução e de manipulação para despistar o circunstante, incentivando a entrar na água e fazer
o mesmo que ele e seu mestre, contanto que tenha fé. Assim, o enunciador busca construir a
idéia de que São Pedro pretende esconder o real modo de andar sobre as águas, numa típica
atitude de picaretagem.
Nesse caso, Jesus é antes de tudo um simples homem, que anda sobre pedras nas
águas, mas não faz questão de enganar as pessoas, caso estas queiram se aventurar a fazer o
mesmo que ele. Neste sentido, o ator Jesus figura como misericordioso, pois não quer permitir
que o homem se afogue. A piada, portanto, mantém o discurso de que Jesus salva, mas nega
sua capacidade extraordinária para fazê-lo, conforme assegura a Bíblia.
Quanto às projeções da enunciação, vemos que o ator circunstante projeta o eu-aqui-
agora na pergunta que direciona a Pedro. Ele enuncia sob a marca do eu, manifestada no
verbo preciso; projeta o aqui nas águas diante das quais está ao ver Pedro e Jesus sobre elas; e
denota o agora no tempo presente com que conjuga a seqüência (...) preciso fazer pra andar
também (...). Ou seja, o discurso desse ator é marcado pela debreagem enunciativa.
De modo um pouco diferente ocorre com Pedro, que imprime em seu discurso um
efeito de subjetividade apenas a partir do vocativo meu filho, com o qual se dirige ao
circunstante. Por sua vez, Jesus enuncia sob um efeito de objetividade, por omitir o eu, mas
sua subjetividade está apenas camuflada, não ausente. É que, se por um lado o sujeito
enunciador concebeu o discurso do ator Jesus sem marca expressa de primeira pessoa (eu
expresso em pronome ou implícito em desinência verbal), por outro acenou para uma
benevolência que lhe é peculiar, como senhor misericordioso, ao tratar o circunstante como
pobre. Esse dizer confere a seu enunciado uma subjetividade camuflada, tendo em vista a
piedade para com o coitado, o sofredor, o pobre que se afunda diante da mentira de Pedro.
Nessa perspectiva, as configurações temáticas a que remete a piada são inúmeras. De
pronto, temos o extraordinário, o milagre, o poder santo de andar sobre as águas que relata a
Bíblia. Mas em João 6: 16-21, este é um privilégio de Jesus, não de seus discípulos, o que já
confere a piada o caráter transgressivo logo no início. Além disso, o sujeito enunciador busca
T. D.
Ato pensado, racional.Ato emotivo
Não-RazãoNão-fé
Fé Razão
desacreditar o enunciatário da possibilidade ato sobrenatural na caminhada de Jesus, pois
coloca Pedro na condição de um enganador. Ambos andam sobre pedras submersas o
suficiente para confundir o olhar de um circunstante e fazê-lo crer que se pode andar sobre as
águas do mar. É ávido por este poder extraordinário que ele solicita a “fórmula” a Pedro, que
lhe garante ser a fé. Daí a piada evoca os temas da “enrolação”, do charlatanismo, mas
também remete a fé, misericórdia, solidariedade e até do sadismo, visto que quem conhece o
caminho seguro não deve ensinar do afogamento senão pelo prazer de assistir ao sofrimento
alheio. São temas controversos a que recorre o enunciador, porque também são igualmente
controversos os valores aos quais remete esta piada.
5.3.3 Estrutura fundamental
Do ponto de vista das oposições semânticas que estão na base de sentido dessa
piada, merece destaque a tensão dialética fé x razão, pois reflete o conflito porque passam
enunciador e enunciatário diante da interlocução que se realiza no ato de leitura. Nesta
perspectiva, fé implica não-razão e dessa relação surge o ato emotivo. Já razão implica não-
fé, relação de implicação da qual advém o ato pensado, racional.
Vejamos no octógono abaixo:
T. D.
Ato comum, corriqueiro.Ato especial, sobrenatural
Não-humanidadeNão-divindade
Divindade Humanidade
Nessa perspectiva, razão é eufórica para o enunciador da piada, visto que quer fazer-
crer aos enunciatários que não há nada de especial em andar o sobre as águas. Do mesmo
modo, ocorre com São Pedro, que incentiva o circunstante a entrar na água pela fé, mesmo
sabendo que se afogaria. Por outro lado, fé é eufórica para o circunstante, posto que se valha
dela para realizar seu desejo: andar sobre as águas como Pedro e Jesus.
Uma outra tensão dialética que podemos ilustrar é a que põe em oposição divindade
versos humanidade. Nela divindade implica não-humanidade e dessa relação advém o ato
especial, sobrenatural. Por sua vez, humanidade implica não-divindade e daí surge o ato
comum, corriqueiro. Nesse sentido, divindade é eufórica para o circunstante, pois é daqueles
que considera divino que recebe o ensinamento para andar sobre as águas. Já humanidade é
disfórica, porque esse ensinamento pode levá-lo ao afogamento por ele não almejado.
Vejamos, pois, a ilustração seguinte:
Contudo, a tensão mais significativa do ponto de vista do discurso veiculado pelos
atores desta piada é a que remete às modalidades veridictórias, que Greimas explica quando
apresenta o quadrado semiótico em Du sens. É a tensão do ser x parecer, que se caracteriza
Verdade
Mentira (fé)Segredo (as pedras)
Não-parecerNão-ser
Ser Parecer
Falsidade
pelo fazer persuasivo do enunciador e pelo fazer interpretativo do enunciatário, combinados
na formação de um contrato de veridicção. Nesse sentido, ser implica não-parecer e dessa
relação de implicação surge o segredo; já parecer implica não-ser e daí advém a mentira.
Assim, na piada em questão, é eufórico para o enunciador Pedro que pareça verdade seu
enunciado (Fé, rapaz, fé). Mas diante do que enuncia Jesus, percebemos que Pedro mente,
omitindo o segredo para andar sobre as águas: o caminho das pedras.
Abaixo o octógono que representa o jogo de verdade que se instaura diante dos
enunciados dos atores da piada:
5.4 NOÉ PERDEU. CABRAL DESCOBRIU
Depois de construir a arca e já no terceiro dia após o dilúvio, Noé percebeu que tinha
esquecido de fazer um banheiro em sua arca.
Como a cada dia que se passava, o cheiro ficava cada vez mais insuportável, Noé fez
uma prece e prometeu que, se Deus levasse toda aquela bosta embora, depois que acabasse o
dilúvio, ele iria encontrá-la e limparia tudo.
Deus atendeu o seu pedido e, quando o dilúvio acabou, Noé passava todos os dias
procurando pela montanha de bosta. Nunca a encontrou.
Cabral a descobriu em 1500!
A última piada transgressiva que analisamos não faz exatamente uma remissão a uma
passagem bíblica, mas à história do dilúvio, enfrentado por Noé, que é contada no livro de
Gênesis entre os capítulos 6 e 8. No entanto, nada há nesta piada que lembre o discurso
religioso, senão os acordos que Deus faz com Noé. E neste caso, o acordo é para limpar a
arca, projetada sem estrutura para se desfazer dos dejetos expelidos por seus ocupantes. Sem
ter o que fazer e sem suportar o acúmulo que lhe causa grande incômodo olfativo, Noé recorre
a Deus para limpar tudo, com a promessa de que encontrará a montanha de dejetos retirada de
sua arca, após o término do dilúvio. O efeito de humor já se instala nesses dizeres, pois não se
espera da história de Noé uma aliança com Deus para tal finalidade. Mas a quebra de
expectativa maior está no fim do texto, quando é dito que Cabral descobriu, em 1500, aquilo
que Noé todos os dias procurou após o dilúvio, sem sucesso.
Percurso temático
1. A PERCEPÇÃO DA AUSÊNCIA DE BANHEIRO
2. O AUMENTO DO INCÔMODO COM O MAU CHEIRO
3. A PRECE DE NOÉ A DEUS
4. A RETIRADA DOS DEJETOS DA ARCA
5. A PROCURA PELA MONTANHA DE DEJETOS
6. A DESCOBERTA DE CABRAL
5.4.1 Narrativização
O S1, Noé, modalizado pelo querer-fazer o incômodo com o mau cheiro em sua arca
acabar, busca, como objeto de valor, livra-se dos dejetos acumulados, por causa da ausência
de banheiro (O.V.1). Destinado pela fé, procura conseguir a ajuda de Deus, através de uma
prece (O.V.2), prometendo-lhe encontrar tudo que for jogado fora (O.V.3) e limpar, após o
dilúvio (O.V.4). nessa perspectiva, Deus é seu adjuvante, visto que limpa sua arca, pondo-o
em estado de conjunção com este objeto de valor. Todavia, como Noé não consegue mais
encontrar a montanha de dejetos jogada fora por Deus, finda a narrativa disjunto de seu objeto
de valor final, pois não consegue cumprir a promessa feita a seu adjuvante.
Por outro lado, Cabral é quem encontra tal montanha, já em 1500, instaurando-se
como anti-sujeito de Noé, visto que alcança o objeto de valor por ele almeja, ainda que não o
dispute. Nesse sentido, ambos são modalizados por um quer-saber, pois intentam realizar uma
descoberta. Vejamos, a seguir, o esquema narrativo do S1:
Onde:
S1 = Noé
O.V.1 = livrar-se dos dejetos
O.V.2 = a ajuda de Deus
O.V.3 = a retirada dos dejetos de sua arca
O.V.4 = encontrar a montanha de dejetos
5.4.2 Discursivização
Diferente das demais piadas analisadas até aqui, esta última tem a particularidade da
ausência de diálogo entre os atores; ou seja, o sujeito enunciador não lhes confere voz. O
narrador conta a história de outrem, mas não concede a palavra a tais participantes da história.
O enunciador concebe o texto, portanto, sob um efeito de distanciamento, visto que instaura
no texto a debreagem enunciva.
Para alcançar tal efeito, ele utiliza verbos conjugados no passado (pretérito perfeito ou
imperfeito), advérbios que remontam a um tempo distinto de sua enunciação e o discurso
indireto para referir-se aos enunciados dos atores. Nesse sentido, a temporalização se
OV1
OV2
OV3
OV4
S1
S1
S1
S1
manifesta por meio das ações enunciadas pelo narrador, a respeito do atores. Mas também é
marcada por expressões adverbiais, como depois, já no terceiro dia após, a cada dia, todos os
dias, nunca e em 1500. Todas elas tanto marcam o tempo da narrativa, indicando não ser o
mesmo tempo do enunciador, quanto demarcam o tempo na narrativa, apontando para a
ocorrência de fatos em momentos diferentes. Assim, a percepção da ausência de banheiro se
dá após três dias; o cheiro foi ficando cada vez mais insuportável a cada dia, sendo a prece
de Noé realizada depois dos três dias; o dilúvio acabou depois que Deus atendeu às preces de
Noé, mas o enunciador não precisa o tempo, e após acabar é que Noé passa a procurar a
montanha, todos os dias; contudo, nunca a encontrou; já Cabral conseguiu em 1500. Portanto,
o enunciador refere-se a pelo menos 5 momentos distintos.
Quanto à espacialização, temos a arca e o dilúvio, que dependem do conhecimento
partilhado entre enunciador e enunciatário (leitor da piada) a respeito da história bíblica.
Nessa perspectiva, a arca é um espaço fechado e isolado do mundo, por estar navegando em
um mar de águas derramados por um dilúvio enviado por Deus para destruir a Terra.
Valendo-se desse saber, o sujeito enunciador concebe Noé realizando sua prece para livrar-se
da enorme quantidade de excrementos, cujo odor vai tornando-se insuportável a cada dia
dentro da arca. Fora dela há um espaço desconhecido para o ator Noé, de dimensões
incalculáveis, tanto que sua montanha (de bosta) fica perdida com o fim do dilúvio.
Na tematização, o enunciador evoca, primeiramente, os temas da saúde e higiene, ao
tratar da ausência de banheiro na arca. Mas quando cita o cheiro insuportável, traz à tona as
figuras das fezes acumuladas (ou espalhadas) por três dias e aumentando mais a cada dia que
dura o dilúvel. Nessa perspectiva, confere à sua narrativa um tom grotesco e banaliza o tema
da fé, com a promessa que Noé faz a Deus: em troca da retirada dos dejetos por Deus, ele os
encontraria e limparia tudo após o término do dilúvio.
Com o uso de uma linguagem forte e agressiva, o enunciador também deixa
transparecer ao enunciatário sua repugnância e reprovação, na palavra bosta, intensificando a
questão da higiene e transcendo-a para uma crítica ao Brasil, a montanha de “bosta” que
Pedro Álvares Cabral descobriu em 1500. Vale-se, portanto, da História para fazer seu texto
significar e do conhecimento partilhado com o enunciatário a respeito dessa história do
descobrimento. Nessa perspectiva, a crítica é generalizada, porquanto conceba todo o país
como um lugar desprezível, indesejado, nojento, grotesco; enfim, com todas as características
que a “bosta” (não as fezes) tem. Mudando o foco do tema da saúde, ou da higiene, para
sócio-político, pretende persuadir o enunciatário de que o Brasil não presta. É, pois, um
T. D.
Ato pensado, racional.Ato emotivo
Fé Razão
discurso pessimista, veiculado num texto de humor, que camufla sua força, mas não deixa de
disseminar sua ideologia, seus valores.
Quanto aos valores religiosos, vale salientar que as remissões aos temas da fé e da
promessa situam o texto parcialmente no universo de discurso religioso, mas sem a
preocupação de relevar sua importância, e sim de torná-los coadjuvantes da geração do
sentido. A própria história de Noé aqui lembrada está transformada, pois a piada releva
aspectos não mencionados na Bíblia, mas passível de preocupação do ponto de vista material,
ou racional. É o caso da falta de higiene em se passar dias navegando com animais de diversas
espécies. Nesse sentido, a piada é um protesto de um enunciador descrente, que discorda da
versão oficial (bíblica) da história de Noé e cria outra, mais racional, cuja preocupação de
saúde e higiene sobrepõe-se aos valores religiosos, tais como obediência, lealdade e
submissão às vontades de Deus.
Além disso, o enunciador que fazer crer ao enunciatário que, se ordem para navegar
em tais condições de higiene partiu de Deus, então Ele mesmo teria de dar cabo da saúde das
pessoas que precisaram dividir uma embarcação com todos os animais ali presentes. Seja por
milagre, força sobrenatural, poder divino ou por consciência de que corriam risco de doença,
Deus deveria ajudá-los. Então a piada resgata este sentido e põe em primeiro plano os valores
esquecidos pela narrativa bíblica.
5.4.3 Estrutura fundamental
Nesta piada, a oposição semântica fé x razão também e determinante para a construção
do sentido, assim como em O caminho das pedras. No entanto, aqui essa oposição se reveste
dos valores próprios desta piada e, consoante sua figurativização em discurso, pudemos notar
as diferenças. Assim, fé implica não-razão e dessa relação advém a despreocupação com a
saúde, que levou Noé a esquecer de construir um banheiro na arca. Já razão implica não-fé,
relação da qual surge a preocupação higiênica, o incômodo com o mau cheiro. Vejamos, pois,
o octôgono que a representa:
T. D.
Descobrimento do Brasil.Aliança
Não-históriaNão-religião
Religião História
No entanto, outro octógono merece destaque na ilustração das oposições semânticas. É
o que se refere à tensão dialética religião x história, na qual as relações de implicação fazem
surgir o fato histórico do descobrimento do Brasil, por história implicar não-religião; e o fato
bíblico da aliança entre Deus e Noé, por religião implicar não-história. Vejamos, portanto, a
configuração desse octógono:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As piadas com passagens bíblicas possuem características similares a toda e qualquer
piada, como sobreposição de scripts contrários, temas controversos, gatilhos linguísticos e
discursos subterrâneos. Contudo, existe um elemento que lhes confere um diferencial: é sua
constituição intertextual ou interdiscursiva, que se revelou uma propriedade significativa,
porque contribui de forma determinante para a significação dos discursos veiculados. Nessa
perspectiva, a compreensão do ponto de vista ideológico dessas piadas necessita do
conhecimento partilhado entre enunciador e enunciatário (analista ou leitor) a respeito do
discurso religioso. Assim, o efeito de humor está diretamente ligado à percepção da mudança
de um script para outro, num diálogo entre o texto bíblico e o humorístico.
No entanto, estas piadas foram encontradas em um número bem inferior às mais de
quinhentas existentes sob a categoria religiosa ou de religião que os sites pesquisados
apresentam. As doze que analisamos fazem parte de um pequeno grupo de 47 piadas que
possuem características similares, sem contar com algumas variantes encontradas entre um
site e outro. Elas se diferenciam das centenas veiculadas nos sites de humor por sua
significação depender da constituição dialogal com uma determinada passagem bíblica, seja
um versículo ou um pequeno conjunto de versículos da Bíblia. As religiosas, muitas vezes não
se referem a passagem bíblica alguma; até promovem remissões a alguma passagem, mas seu
efeito de humor independe de tais remissões.
O que mais nos chamou atenção nas piadas que analisamos é que – assim como as 35
restantes – denotam um conhecimento notável do enunciador sobre os textos bíblicos. Isso
nos leva a crer que os sujeitos enunciadores que as conceberam, indefinidos, possuem um
contato significativo com práticas que recorram ao universo de discurso religioso com
bastante propriedade e, quiçá, frequência, o que as diferencia de outras que apenas põem
padres e freiras em situações inusitadas, por exemplo. O enunciador que concebe uma piada
com passagem bíblica intertextual conhece a Bíblia o suficiente para escolher o momento
certo de promover a mudança de script e torná-la significativa o bastante para que as duas
leituras sejam possíveis. Já com as piadas interdiscursivas, esse não é o foco, pois elas não
precisam parecer o texto bíblico, mas relevar seu discurso. As transgressivas por sua vez, de
fato, promovem uma transformação do discurso bastante evidente, pois o atualizam,
revestindo-os de outros temas e outras figuras completamente destoantes das empregadas no
discurso religioso. Nessa perspectiva, uma de nossas hipóteses está confirmada, pois o
discurso religioso, antes sacrossanto, sofre uma transformação, e alguns de seus elementos
passam a fazer parte do universo de discurso humorístico, ao serem ressignificados.
Nessa perspectiva, o percurso gerativo de sentido dessas doze piadas revelou cada qual
um conjunto de dados que nos possibilitou traçar algumas considerações relevantes sobre os
três níveis. Na narrativização, a maioria das piadas intertextuais apresentou um objeto de
valor comum almejado por seus sujeitos semióticos: a fé do outro. Em A primeira pedra,
Jesus busca a fé daqueles que apedrejam Madalena; em Lázaro e em Jesus e as criancinhas
esse também é o que busca os sujeitos semióticos que se figurativizam como Jesus. Mas
nessas últimas ele não assume o papel temático do Senhor, benevolente, piedoso e perfeito. É
antes de tudo um homem, um charlatão (Lázaro) ou um malvado, sem paciência com
crianças.
Sob os aspectos discursivos, as piadas intertextuais apresentam uma estratégia comum,
exceto em Abraão e Isaac. Nas demais, o enunciador conta a história como se fosse o próprio
relato bíblico, conferindo a sua narrativa um efeito de realidade. Diferente, na piada
supracitada, o enunciador recorre a um efeito de referente e de distanciamento, através do
qual busca validar suas palavras, respaldando seu discurso na credibilidade da Bíblia.
Quanto aos aspectos semânticos fundamentais, essas piadas têm em comum a tensão
dialética do ser x parecer. E com exceção de Abraão e Isaac, as demais se definem por serem
piadas, mas parecerem passagens bíblicas. Já a referida apresenta essa tensão no nível da
enunciação de um de seus atores. No entanto, outras tensões ainda se fazem perceber em mais
de uma piada, como ser humano x ser divino e perfeição x imperfeição.
Por sua vez, as piadas interdiscursivas têm a particularidade de, na narrativização,
apresentar sujeitos semióticos destinados pela fé. É o que ocorre com os sujeitos semióticos
figurativizados pelos apóstolos (Problemas na Terra), Pedrinho (Professora atéia) e o rapaz
crente (Fé demais não cheira bem). No entanto, verificamos que, na discursivização, o sujeito
enunciador dessa última piada busca, antes de tudo, pôr em evidência o discurso religioso,
para em seguida negá-lo, através de um ator preconceituoso (o pai da noiva). Por outro lado,
as três piadas interdiscursivas analisadas demonstram um movimento contrário ao das
intertextuais: essas últimas partem do (suposto) discurso religioso para o mundano, e a
mudança de um script para outro segue essa ordem; já as interdiscursivas partem das coisas do
mundo para o discurso religioso, realizando a mudança de um script a outro sob essa regra.
Quanto às oposições semânticas identificamos que as tensões dialéticas fé x razão e
ser humano x ser divino se revezam nas piadas. Além delas, outras tensões foram detectadas,
como materialismo x espiritualismo, alteridade x identidade, sinceridade x falsidade e
aceitação x rejeição.
Por fim, as piadas transgressivas, sob a ótica da narrativização, apresentam bastante
diversidade nos resultados que obtivemos com as análises. Elas realizam remissões a
determinadas passagens bíblicas, para negar seu discurso, inventando situações destoantes das
relatadas nos textos bíblicos. Nesse sentido, os sujeitos semióticos buscam objetos de valor,
em sua maioria, diferentes dos almejados nas passagens bíblicas a que remetem. Por exemplo,
os apóstolos buscam encontrar um campo para disputar uma partida de futebol (Convite
impróprio); José procura afastar seu filho – Jesus – da água que pretende beber com receio de
terminar bebendo vinho (As bodas); o apóstolo Pedro quer despistar um circunstante,
omitindo a forma adequada de realizar uma travessia sobre as águas (O caminho das pedras);
e Noé procura a Deus em oração, para livrar-se de uma montanha de dejetos acumulados em
sua arca. Assim, são, em sua maioria, valores mundanos, almejados por atores do discurso
religioso na Bíblia.
Na discursivização também verificamos diversidade, através das variadas figuras e
temas a que as piadas remetem, uma vez que o sujeito enunciador não busca fazer seu
discurso parecer passagem bíblica. O conhecimento partilhado entre enunciador e
enunciatário remete o segundo ao texto bíblico, pela referência que o primeiro faz aos atores,
ao lugar e ao tempo. Logo, é o reconhecimento dos fatos bíblicos que promovem o efeito de
humor, aos quais são acrescidas situações inusitadas, que promovem a quebra de expectativa
no enunciatário. Assim, Jesus, na cruz, depara-se com discípulos “peladeiros”; José fica de
ressaca e busca afastar seu filho da água, porque este pode transformar água em vinho; Pedro
faz um circunstante quase se afogar, mesmo sabendo que não se caminha sobre as águas
apenas com intermédio da fé; e Noé constrói arca sem banheiro, passando a sofrer
conseqüências por isso.
Por outro lado, temas esportivos e de saúde, por exemplo, são constituintes dessas
piadas, mas nada tem a ver com as passagens bíblicas a que remetem. Os enunciados dos
atores em quase nada se assemelham aos enunciados da Bíblia, como ocorre quando um
discípulo faz um convite a Jesus (Rabi, vamos bater uma bolinha) ou quando José implora a
Maria (Pel`amor-de-meu-pai...); além disso, é inconcebível, no universo de discurso religioso,
uma oração de Noé pedindo a Deus para limpar a “bosta” de sua arca. Portanto, são aspectos
como esses que diferenciam as piadas transgressivas das demais analisadas neste trabalho. E é
por isso que, de fato, existe um discurso transformado nessas piadas.
Do ponto de vista da semântica fundamental, verificamos que a tensão dialética fé x
razão está presente em mais de uma das piadas analisadas, assim como a tensão ser humano x
ser divino. As tensões divindade x humanidade, ser x parecer, tristeza x alegria, sinceridade x
falsidade e religiosidade x profanidade também estão presentes nas piadas transgressivas,
seja por fundamentar a geração de sentido das piadas como um todo ou por estarem na base
de sentido do discurso determinados atores.
A análise de cada patamar do percurso gerativo de sentido das três categorias de
piadas com passagens bíblicas também nos possibilitou concluir que nem sempre os valores
religiosos são relegados a segundo plano. Dependendo do tipo de piada, relevá-los pode ser o
objetivo do enunciador, seja para negá-los ou negar discursos que a eles se opõem. Como
dissemos no início dessas considerações, são só piadas como quaisquer outras, mas possuem
uma particularidade que está em sua constituição dialogal para poder significar. Propomos,
portanto, que piadas que se valham de outros discursos para promover o efeito de humor, seja
por meio de intertexto ou interdiscurso, possam ser classificadas não só pelos dispositivos
lingüísticos e se enquadrem entre as de inferência, as dêiticas, as fonológicas ou lexicais, por
exemplo. Aceitamos essas definições quando esses recursos são determinantes, mas quando a
significação depender de operações intertextuais ou interdiscursivas, é assim que devem ser
classificadas. O que lhes garantirá a categoria é a sua organização para gerar sentidos, os
recursos de que se valham para se constituir dialogicamente, as estratégias do enunciador para
concebê-las.
Esperamos que este trabalho acene para novos horizontes e que a ele se juntem outros,
preocupados com diálogos entre universos de discurso aparentemente tão controversos, mas
bastante salutares. Cremos, por fim, que outros estudos semióticos da linguagem humorística
possam ser realizados e continuem a comprovar a validade dos os ensinamentos de Greimas.
Aqui, buscamos neles um apoio para apresentar uma visão mais ampla dos discursos
veiculados em piadas e como resultado obtivemos a desmitificação do uso do discurso
religioso fora de seu universo próprio. Dependendo da estratégia do enunciador e do gênero
empregado, seus valores nem sempre são relegados ao esquecimento; mais que isso, podem
ser ressignificados e terem sua força perpetuada.
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6. 1990 (1) p. 55 - 82
ANEXOS
ANEXO I
QUADRO SINÓPTICO
SITES PESQUISADOS PERÍODO DO ACESSO E
COLETA
PIADAS
RELIGIOSAS
ENCONTRADAS
PIADAS COM
PASSAGENS
BÍBLICAS
PIADAS
ANALISADAS
www.humortadela.uol.com.br
www.piada.com
www.aspiadas.com
www.quatrocantos.com
www.piadasonline.com.br
www.altamiranet.com.br
www.mundodaspiadas.com
06.05.07 – 20.05.07
26.05.07 – 27.05.07
20.05.07
20.05.07
25.05.07
20.05.07
26.05.07
152
312
20
02
55
02
03
26
17
01
02
-
01
-
05
04
01
02
-
-
-
TOTAL 07 sites 22 dias 544 piadas 47 piadas 12 piadas
ANEXO II
FICHAS DOS SITES SELECIONADOS
SITES RECURSOS PIADAS ANALISADASWWW.humortadela.uol.com.br Animações; quadrinhos; jogos online; foto-
montagens; entre outros.Disposição em guias de acesso (menus).Piadas categorizadas: mais de 3000 piadas.Propagandas diversas de sites parceiros e patrocinadores.No ar desde1995.
Jesus e as criancinhasProblemas na Terra
Fé demais não cheira bemConvite impróprio
Abraão e Isaac
WWW.piada.com Vídeos; imagens; arquivos de vídeos e piadas; enquetes sobre preferências de piadas; Links para sites parceiros;Serviço de cadastro para recebimento de piadas por e-mail. No ar desde 1999.
Quem eu sou?Professora atéia
O caminho das pedrasNoé perdeu. Cabral descobriu...
WWW.aspiadas.com Menus para acesso aos recursos: gráficas (charges e fotos engraçadas); deformatudo (imagens de artistas para alterar); belos/belas (fotos de modelos).Propagandas; enquetes; testes de memória; questionários “imbecis” (como o próprio site intitula)Serviço de busca de piadas por categoriasNo ar desde 2001.
A primeira pedra
WWW.quatrocantos.com.br Site de diversidade: imagens geográficas; propagandas de jóias; arquitetura; fotos de eventos; humor.Na seção (menu) humor: quadro de categorias de piadas (português, loiras, religiosas, político, sexo, entre outras).No ar desde 1999.
As bodasLázaro
ANEXO III
CONTATOS COM WEBMASTER DO HUMORTADELA
Adrianete (Humor Tadela) <[email protected]>
26 de julho de 2007 13:59
Para: [email protected] Responder | Responder a todos | Encaminhar | Imprimir | Excluir | Mostrar original Olá Robson
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Se continuar sem receber o boletim, avise-nos.Nos envie também os números das edições que você não recebeupara que possamos lhe reenviar. Obrigado pela compreensão e desculpe-nospelo transtorno.
Agradecemos pelos elogios! Você nem imagina como eles são importantespara nós! Agora em relação as piadas, selecionamos as melhores piadasque os internautas enviam pelo email. Boa sorte no seu mestrado!!!! otema é interessante.
Tá vendo? Há momentos em que tratamos os leitores com muitaseriedade... Mas não vá se acostumar!
Um grande abraço!Adrianete
============================================================AdrianeteAtendimento ao PentelhoHumor TadelaO Maior Site de Humor da América Latinahttp://[email protected]============================================================
Adrianete (Humor Tadela) <[email protected]>
31 de julho de 2007 14:10
Para: [email protected] Responder | Responder a todos | Encaminhar | Imprimir | Excluir | Mostrar original Olá Robson
Tudo bem? Desculpa pela demora na hora de responder, he, he...
Então... O Ranking das piadas é feito de acordo com três coisas: onúmero de acessos de cada piada, o número de envio e a nota que cadainternauta da para as piadas.
Um grande abraço!Adrianete============================================================AdrianeteAtendimento ao PentelhoHumor TadelaO Maior Site de Humor da América Latinahttp://[email protected]============================================================
Adrianete (Humor Tadela) <[email protected]>
3 de agosto de
2007 13:25 Para: robsonsantiago <[email protected]> Responder | Responder a todos | Encaminhar | Imprimir | Excluir | Mostrar original Olá Robson
Nós que agradecemos pela sua preferência.Depois conte para nós, como foi a sua experiência em fazer o mestradosobre as piadas.. Boa Sorte- Mostrar texto das mensagens anteriores -
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