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    DIREITOS HUMANOS

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    _______________________________________________________DIREITOS HUMANOSConceito e Evoluo Histrica

    1. A PESSOA HUMANA E SUA DIGNIDADE

    A dignidade humana, na linguagem filosfica, o princpio moral de que o serhumano deve ser tratado como um fim e nunca como um meio 1 . , portanto, um direitoessencial.

    longa a caminhada empreendida pela humanidade para o reconhecimento eestabelecimento da dignidade da pessoa humana. De acordo com o Prof. Fbio KonderComparato, todos os seres humanos, apesar das inmeras diferenas biolgicas eculturais que os distinguem entre si, merecem igual respeito, como nicos entes nomundo capazes de amar, descobrir a verdade e criar a beleza. Em razo dessereconhecimento universal, conclui: ningum nenhum indivduo, gnero, etnia, classesocial, grupo religioso ou nao pode afirmar-se superior aos demais2.

    Atualmente, no se discute, h o reconhecimento de que toda pessoa tem direitosfundamentais, decorrendo da a imprescindibilidade da sua proteo para preservaoda dignidade humana.

    O conceito de Direitos Humanos muito amplo. Para o Prof. Fernando Sorondo,ele pode ser considerado sob dois aspectos:

    constituindo um ideal comum para todos os povos e para todas as naes,seria ento um sistema de valores; e

    este sistema de valores, enquanto produto de ao da coletividade humana,acompanha e reflete sua constante evoluo e acolhe o clamor de justia dospovos. Por conseguinte, os Direitos Humanos possuem uma dimensohistrica3.

    A Declarao Universal dos Direitos Humanos, aprovada em resoluo da IIISeo Ordinria da Assemblia Geral das Naes Unidas proclama: A presenteDeclarao Universal dos Direitos Humanos como o ideal comum a ser atingido por

    todos os povos e todas as naes, com o objetivo de que cada indivduo e cada rgoda sociedade, tendo sempre em mente esta Declarao, se esforcem, atravs do ensinoe da educao, em promover o respeito a esses direitos e liberdades e, pela adoo demedidas progressivas de carter nacional e internacional, em assegurar o seureconhecimento e a sua observncia universais e efetivos, tanto entre os povos dosprprios Estados-membros quanto entre os povos dos territrios sob a sua jurisdio4.

    Esta Declarao avalia vrios aspectos dos relacionamentos humanos.

    O tema dos direitos humanos de crescente relevncia na caracterizao damentalidade jurdica do sculo XXI. Possui, ao mesmo tempo, um toque de passado e

    uma projeo de futuro. Mas o que so esses direitos? Quais seus fundamentos? Como1 DINIZ, Maria Helena. Dicionrio Jurdico. So Paulo: Saraiva, 1998. Vol. 2,2 COMPARATO, Fbio Konder.A Afirmao Histrica dos Direitos Humanos. 2. ed. So Paulo: Saraiva. p.13 SORONDO, Fernando. Os Direitos Humanos atravs da Histria.4 LIMONGI, Ruben (Coordenador). Enciclopdia Saraiva do Direito. Vol. 22. So Paulo: Saraiva, 1977. p.470

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    _______________________________________________________DIREITOS HUMANOSsurgiram? Para onde se dirigem? Perguntas como estas no so facilmenterespondidas, necessitam de uma ampla anlise histrico-filosfica, alm de um profundoconhecimento jurdico. A doutrina apresenta distintos posicionamentos e ideologias quedevem ser observados, visando ao mais completo entendimento da matria.

    Inicialmente, pergunta-se qual o fundamento desses direitos e qual a sua fontejustificativa? Os tericos se dividem em duas posies antagnicas, j muito trabalhadaspela Teoria Geral do Direito: o Positivismo e o Jusnaturalismo.

    A primeira, apresentada por Norberto Bobbio, afirma a inexistncia de um direitoabsoluto para esses direitos, j que a dogmtica jurdica se caracteriza pelahistoricidade, sendo o Direito passvel de constantes modificaes, advindas dasociedade, cultura, moral, economia, que se alteram dia aps dia. No se pode dar,assim, um fundamento eterno para algo que necessariamente sofrer modificaes.

    Um preceito s pode ser considerado jurdico quando nele estiver presente ocarter repressivo, que lhe concede eficcia, como bem ressaltava Hans Kelsen. Se aOrdem Jurdica nada pode fazer para assegurar o cumprimento desses preceitos, elesno podem ser denominados direito, pois so meras expectativas de conduta, merasexpresses de boas intenes que orientam a ao para um futuro indeterminado,incerto.

    Atualmente, porm, h uma tendncia positivao dos direitos humanos, deforma a inseri-los nas Constituies Estatais, atravs da criao de novos mecanismospara garanti-los, alm da difuso de sua regulao por meio de mecanismosinternacionais, como os Tratados e Convenes Internacionais de Direitos Humanos.

    Com isso, j se pode falar num conceito positivo de direitos humanos, que seriamos direitos fundamentais, assegurados ao indivduo atravs da regulamentao eaplicao desses direitos, tanto no campo estatal como no campo supra-estatal.

    O Jusnaturalismo, amparado por doutrinadores como Dalmo de Abreu Dallari eFbio Konder Comparato, ressalta a Pessoa Humana como o fundamento absoluto,atemporal e global desses direitos. A pessoa a mesma em todos os lugares e,considerando as diversidades culturais, deve ser tratada igualmente, de forma justa esolidria. Ressalta-se a dignidade inerente a todo e qualquer ser humano como a razomxima do Direito e da Sociedade, devendo ser resguardada e cultivada por estes.

    Os direitos humanos seriam, assim, o conjunto de condies, garantias ecomportamentos, capazes de assegurar a caracterstica essencial do homem, a suadignidade, de forma a conceder a todos, sempre, o cumprimento das necessidadesinseridas em sua condio de pessoa humana.

    Dessa forma, esses direitos no so criados pelos homens ou pelos Estados, elesso preexistentes ao Direito, restando a este apenas declar-lo, nunca constitu-los. Odireito no existe sem o homem e nele que se fundamenta todo e qualquer direito, napessoa humana que o Direito encontra o seu valor.

    H, pois, uma unio dessas duas teorias na caracterizao moderna dos direitoshumanos. Ressalta-se o artigo 1., inciso III, CF/88, que afirma ser fundamento daRepblica Federativa do Brasil a dignidade humana.

    Diz, em seu artigo 1., a Declarao Universal dos Direitos do Homem:

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    _______________________________________________________DIREITOS HUMANOSTodos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. So dotados de

    razo e conscincia e devem agir em relao uns aos outros com esprito defraternidade.

    A Declarao afirma que todos os homens nascem livres e iguais em dignidade(art. 1.) e garante a todos eles os mesmos direitos, sem distino de raa, cor, sexo,lngua, religio, opinio poltica ou de outra natureza, nascimento ou qualquer outracondio (art. 2., I)5 .

    A boa doutrina ressalta algumas caractersticas prprias desses direitos, sendo:

    Universalidade: todo e qualquer ser humano sujeito ativo desses direitos,independente de credo, raa, sexo, cor, nacionalidade, convices;

    Inviolabilidade: esses direitos no podem ser descumpridos por nenhumapessoa ou autoridade;

    Indisponibilidade: esses direitos no podem ser renunciados. No cabe aoparticular dispor dos direitos conforme a prpria vontade, devem ser sempreseguidos;

    Imprescribilidade: eles no sofrem alteraes com o decurso do tempo, poistm carter eterno;

    Complementaridade: os direitos humanos devem ser interpretados emconjunto, no havendo hierarquia entre eles.

    Diz o Prof. Sorondo: Os Direitos Humanos julgam a ordem vigente, so umformador de opinio pblica nos mais diversos confins do planeta, e pem a descobertoos condicionamentos econmicos, sociais e polticos que impedem sua completarealizao6.

    2. A EVOLUO DOS DIREITOS HUMANOS

    Apesar da falta de historicidade inerente a esses direitos, com a histria eseus grandes pensadores que se observa a evoluo da humanidade, no sentido deampliar o conhecimento da essncia humana, a fim de assegurar a cada pessoa seusdireitos fundamentais.

    Podemos destacar que a noo de direitos humanos foi cunhada ao longo dosltimos trs milnios da civilizao.

    O Prof. Fbio Konder Comparato, fazendo uma anlise histrica dessa evoluo,aponta que foi no perodo axial que os grandes princpios, os enunciados e as diretrizesfundamentais da vida, at hoje considerados em vigor, foram estabelecidos. Informa que

    nesse perodo, especialmente entre 600 e 480 a.C., coexistiram, sem se comunicarementre si, alguns dos maiores doutrinadores de todos os tempos (entre eles, Buda, nandia; Confcio, na China; Pitgoras, na Grcia e o profeta Isaas, em Israel) e, a partir

    5 LIMONGI, Ruben (Coordenador). op. cit. p.4726 SORONDO, Fernando. op. cit.

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    _______________________________________________________DIREITOS HUMANOSda, o curso da Histria passou a constituir o desdobramento das idias e princpiosestabelecidos nesse perodo.

    Inclusive, foi nesse perodo que surgiu a filosofia, tanto na sia como na Grcia,

    quando ento substituiu-se, pela primeira vez na Histria, o saber mitolgico da tradiopelo saber lgico da razo7 .

    Em resumo, assinala que foi nesse perodo que nasceu a idia de igualdade entreos seres humanos: a partir do perodo axial que o ser humano passa a serconsiderado, pela primeira vez na Histria, em sua igualdade essencial, como ser dotadode liberdade e razo, no obstante as mltiplas diferenas de sexo, raa, religio oucostumes sociais. Lanavam-se, assim, os fundamentos intelectuais para acompreenso da pessoa humana e para a afirmao de direitos universais, porque a elainerentes8.

    Na seqncia, podemos destacar o Cristianismo, que em muito contribuiu para oestabelecimento da igualdade entre os homens. O Cristianismo, sem dvida, no planodivino, pregava a igualdade de todos os seres humanos, considerando-os filhos de Deus,apesar de, na prtica, admitir desigualdades em contradio com a mensagemevanglica (admitiu a legitimidade da escravido, a inferioridade da mulher em relaoao homem)9.

    Na Idade Mdia havia a noo de que os homens estavam submetidos a umaordem superior, divina, e deviam obedincia s suas regras. Era incipiente, todavia, oreconhecimento da dualidade Estado-indivduo. Como disse Enrico EduardoLewandovski: ...na ordem poltica medieval, jamais se aceitou, de fato ou de direito, a

    idia de que o indivduo possusse uma esfera de atuao prpria, desvinculada da polis.Desconhecia-se completamente a noo de direitos subjetivos individuais oponveis aoEstado10.

    Aponta, contudo, que nesse perodo houve um avano, medida em que sepassou a reconhecer que o indivduo estava submetido a duas autoridades (secular eespiritual) e, com esse reconhecimento, o homem passou a ser considerado como umser moral, e no apenas como um ser social, derivando da que enquanto seres morais,ou seja, enquanto membros da civitas Dei, todos os homens eram iguais, sem embargodas distines de status circunstancialmente registradas na cidade terrena11.

    A partir do sculo XIV, as transformaes que ocorreram abalaram toda aestrutura concebida e que dava sustentao organizao social e poltica da poca,culminando, tais mudanas, com o Iluminismo (perodo entre a Revoluo Inglesa de1688 e a Revoluo Francesa de 1789). Foi durante o Iluminismo e o Jusnaturalismodesenvolvidos na Europa, entre os sculos XVII e XVIII, que a idia de direitos humanosse inscreveu, inclusive estendendo-se aos ordenamentos jurdicos dos pases.

    A constatao tica da imperiosa necessidade de se resguardar certos direitosadvm da fuso da doutrina Judaico-crist com o Contratualismo. Para a primeira, ohomem foi criado imagem e semelhana de Deus, sendo a igualdade e liberdadecaractersticas divinas presentes em toda as pessoas.

    7 COMPARATO, Fbio Konder. op. cit. p.88 Ib. op. cit. p.19 Ib. op. cit. p.17-1810 LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. Proteo dos Direitos Humanos na Ordem Interna e Internacional. So Paulo: Forense, 1984.p.811 LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. op. cit. p.8

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    _______________________________________________________DIREITOS HUMANOSNo Iluminismo, o princpio da igualdade essencial dos seres humanos foi

    estabelecido sob o prisma de que todo homem tem direitos resultantes de sua prprianatureza, ou seja, firmou-se a noo de que o homem possui certos direitos inalienveise imprescritveis, decorrentes da prpria natureza humana e existentes

    independentemente do Estado12

    .A concepo, que espalhou-se pelos ordenamentos de vrios pases, era a de

    que os direitos individuais eram preexistentes, portanto, no eram criaes do Estado e,assim sendo, deveriam ser respeitados, cabendo ao Estado zelar pela sua observncia.

    A evoluo da doutrina estica, que alegava a supremacia da natureza,culminou no Contratualismo, que teve como seus maiores representantes Hobbes, Lockee Rousseau.

    Hobbes cria que o homem em seu estado de natureza sofria com a guerra de

    todos contra todos, sendo imperiosa a necessidade de um rgo que lhes garantisse asegurana. Assim, eles alienaram sua liberdade ao estado, detentor de todo o poder.Esse poder s seria retirado do governante se ele no assegurasse aos cidados asegurana desejada.

    Locke afirmava a existncia de certos direitos fundamentais do homem, como avida, a liberdade e a propriedade. No estado natural, o homem era bom. A liberdadeindividual s foi transferida ao Estado para que este melhor garantisse os direitos doindivduo, podendo os cidados retirar o poder concedido ao governante, caso ele noatendesse aos anseios da comunidade, isto , eles tm o direito de retomar a liberdadeoriginria.

    Rousseau assevera que o homem natural seria instintivo.O Contrato Social foicriado, assim, como forma de garantir ao mesmo tempo a igualdade e a liberdadepormeio da soberania popular, pela qual os homens cediam parte de sua liberdade para arealizao do bem comum.

    Pode-se inserir no contexto, ainda, a posio de Montesquieu que apresentavasua teoria da tripartio do poder como forma de garantir o bom governo e controlar osarbtrios.

    Essa unio teolgica e racionalista originou o conceito de direito natural, queculminou com a doutrina de Kant, para quem o Estado era um instrumento fixador deleis, criadas pelos cidados, e a liberdade era um imperativo categrico fundamentalpara se conceber a figura humana.

    A contribuio de Kant foi muito valiosa para a construo do princpio dos direitosuniversais da pessoa humana. Kant observa que s o ser racional possui a faculdade deagir segundo a representao de leis ou princpios; s um ser racional tem vontade, que uma espcie de razo denominada razo prtica 13, tambm observa que as regrasjurdicas, s quais os homens passam a sujeitar-se, devem ser elaboradas pelosmembros da associao14. Sua viso, complementando, de que o ser humano noexiste como meio para uma finalidade, mas existe como um fim em si mesmo, ou seja,

    todo homem tem como fim natural a realizao de sua prpria felicidade, da resultandoque todo homem tem dignidade. Isso implica, na sua concepo, que no basta ao

    12 Ib. op. cit. p.2013 COMPARATO, Fbio Konder. op. cit. p.2014 LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. op. cit. p.41

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    _______________________________________________________DIREITOS HUMANOShomem o dever negativo de no prejudicar algum, mas, tambm, e essencialmente, odever positivo de trabalhar para a felicidade alheia.

    Essa concepo foi fundamental para o reconhecimento dos direitos necessrios

    formulao de polticas pblicas de contedo econmico e social

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    .Pode-se falar em trs pices da evoluo dos direitos humanos: o Iluminismo, a

    Revoluo Francesa e o trmino da Segunda Guerra Mundial.

    Com o primeiro foi ressaltada a razo, o esprito crtico e a f na cincia. Essemovimento procurou chegar s origens da humanidade, compreender a essncia dascoisas e das pessoas, observar o homem natural.

    A Revoluo Francesa deu origem aos ideais representativos dos direitoshumanos, a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Estes inspiraram os tericos etransformaram todo o modo de pensar ocidental. Os homens tinham plena liberdade(apesar de empecilhos de ordem econmica, destacados, posteriormente, peloSocialismo), eram iguais, ao menos em relao lei, e deveriam ser fraternos, auxiliandouns aos outros.

    Por fim, com a barbrie da Segunda Grande Guerra, os homens seconscientizaram da necessidade de no se permitir que aquelas monstruosidadesocorressem novamente, de se prevenir os arbtrios dos Estados. Isto culminou nacriao da Organizao das Naes Unidas e na declarao de inmeros TratadosInternacionais de Direitos Humanos, como A Declarao Universal dos Direitos doHomem, como ideal comum de todos os povos.

    Os documentos de proteo aos direitos humanos foram surgindoprogressivamente. O antecedente mais remoto pode ser a Magna Carta, que submetia ogovernante a um corpo escrito de normas, que ressaltava a inexistncia dearbitrariedades na cobrana de impostos. A execuo de uma multa ou umaprisionamento ficavam submetidos imperiosa necessidade de um julgamento justo.

    A Petition of Rights tentou incorporar novamente os direitos estabelecidos pelaMagna Carta, por meio da necessidade de consentimento do Parlamento para arealizao de inmeros atos.

    O Habeas Corpus Act instituiu um dos mais importantes instrumentos de garantiade direitos criados. Bastante utilizado at os nossos dias, destaca o direito liberdade delocomoo a todos os indivduos.

    A Bill of Rights veio para assegurar a supremacia do Parlamento sobre a vontadedo rei.

    A Declarao de Direitos do estado da Virgnia declara que todos os homens sopor natureza igualmente livres e independentes e tm certos direitos inatos de que,quando entram no estado de sociedade, no podem, por nenhuma forma, privar oudespojar de sua posteridade, nomeadamente o gozo da vida e da liberdade, com osmeios de adquirir e possuir propriedade e procurar e obter felicidade e segurana.Assegura, tambm, todo poder ao povo e o devido processo legal (julgamento justo paratodos).

    15 COMPARATO, Fbio Konder. op. cit. p.20-24

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    _______________________________________________________DIREITOS HUMANOSA Declarao de Independncia dos Estados Unidos da Amrica, assim como a

    Constituio Federal de 1787, consolidam barreiras contra o Estado, como tripartio dopoder e a alegao que todo poder vem do povo; asseguram, ainda, alguns direitosfundamentais, como a igualdade entre os homens, a vida, a liberdade, a propriedade. As

    dez Emendas Constitucionais americanas permanecem em vigor at hoje, demonstrandoo carter atemporal desses direitos fundamentais. Essas Emendas tm carter apenasexemplificativo, j que, constantemente, novos direitos fundamentais podem serdeclarados e incorporados Lei Fundamental Americana.

    Com a Revoluo Francesa, foi aprovada a Declarao dos Direitos do Homem edo Cidado, que garante os direitos referentes liberdade, propriedade, segurana eresistncia opresso. Destaca os princpio da legalidade e da igualdade de todosperante a lei, e da soberania popular. Aqui, o pressuposto o valor absoluto dadignidade humana, a elaborao do conceito depessoa abarcou a descoberta do mundodos valores, sob o prisma de que a pessoa d preferncia, em sua vida, a valores que

    elege, que passam a ser fundamentais, da porque os direitos humanos ho de seridentificados como os valores mais importantes eleitos pelos homens.

    A partir do sculo XX, a regulao dos direitos econmicos e sociais passaram aincorporar as Constituies Nacionais. A primeira Carta Magna, a revolucionar apositivao de tais direitos, foi a Constituio Mexicana de 1917, que versava, inclusive,sobre a funo social da propriedade.

    A Constituio de Weimar de 1919, pelo seu captulo sobre os direitoseconmicos e sociais, foi o grande modelo seguido pelas novas ConstituiesOcidentais.

    A partir da segunda metade do sculo XX, iniciou-se a real positivao dosdireitos humanos, que cresceram em importncia e em nmero, devido, principalmente,aos inmeros acordos internacionais. O pensamento formulado nesse perodo acentua ocarter nico e singular da personalidade de cada indivduo, derivando da que todohomem tem dignidade individual e, com isto, a Declarao Universal dos DireitosHumanos, em seu art. 6., afirma: Todo homem tem direito de ser, em todos os lugares,reconhecido como pessoa perante a lei.

    Atualmente no se pode discutir a existncia desses direitos, j que, alm deamplamente consagrados pela doutrina, esto presentes tambm na lei fundamental

    brasileira: A Constituio Federal.Mesmo os mais pessimistas, que alegam a falta de eficcia dos direitos

    fundamentais, no podem negar a rpida evoluo, tanto no sentido normativo, como nosentido executivo, desses direitos, que j adquiriram um papel essencial na doutrinajurdica, apesar de apenas serem realmente reconhecidos por meio da DeclaraoUniversal dos Direitos do Homem de 1948.

    Pode-se constatar, por estes apontamentos, que a evoluo dos direitoshumanos foi gradual; todavia, o pensamento moderno a convico generalizada deque o verdadeiro fundamento da validade do Direito em geral e dos direitos humanos

    em particular j no deve ser procurado na esfera sobrenatural da revelao religiosa,nem tampouco numa abstrao metafsica a natureza como essncia imutvel detodos os entes do mundo. Se o direito uma criao humana, o seu valor deriva,

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    _______________________________________________________DIREITOS HUMANOSjustamente, daquele que o criou. O que significa que esse fundamento no outro,seno o prprio homem, considerado em sua dignidade substancial de pessoa...16

    1. INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS DE PROTEO DOS DIREITOSHUMANOS

    1.1. Sistema Global

    A Prof. Flvia Piovesan declara que sempre se mostrou intensa a polmica sobreo fundamento e a natureza dos direitos humanos se so direitos naturais e inatos, oudireitos positivos e histricos ou, ainda, direitos que derivam de determinado sistemamoral.

    Para Norberto Bobbio, o problema no que tange aos direitos humanos no maiso de fundament-los, e sim o de proteg-los.

    Com o fim da Segunda Guerra Mundial comearam os grandes questionamentossobre o Direito Humanitrio, foi a primeira expresso de que, no plano internacional, hlimites liberdade e autonomia dos Estados, ainda que na hiptese de conflitoarmado. Reforando este ponto de vista, foi criada a Liga das Naes, que apontava anecessidade de relativizao da soberania dos Estados. A seguir, foi introduzida aOrganizao Internacional do Trabalho que colaborou, profundamente, a fim de tornarinternacional os direitos humanos17.

    Quer em conjunto, quer em separado, esses institutos foram a base para ainternacionalizao dos direitos humanos.

    O sistema internacional de proteo dos direitos humanos formado pordocumentos internacionais voltados garantia dos direitos humanos, tanto no mbitoglobalquanto no mbito regional.

    O sistema global de proteo composto de instrumentos de alcance geral(pactos) e instrumentos de alcance especial (convenes especficas), e suaincidncia no se limita a uma determinada regio, podendo alcanar qualquer

    Estado integrante da ordem internacional. Os Estados se aderem aos documentosinternacionais no exerccio de sua soberania. Eles tm total liberdade para aceitarou no o documento, mas se aderirem ao regramento internacional, ficamobrigados a cumprir o seu contedo, o que equivaleria dizer terem aberto mo departe de sua soberania.

    H, no entanto, a real consolidao do Direito Internacional dos Direitos Humanosaps a Segunda Guerra Mundial. Diz o Prof. Buergenthal: O moderno DireitoInternacional dos Direitos Humanos um fenmeno do ps-guerra. Seudesenvolvimento pode ser atribudo s monstruosas violaes de direitos humanos daera Hitler e crena de que parte destas violaes poderiam ser prevenidas se um

    efetivo sistema de proteo internacional de direitos humanos existisse.

    16 COMPARATO, Fbio Konder. Cultura dos Direitos Humanos. So Paulo: Ed. LTR. p.6017 PIOVESAN, Flvia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 3. ed. Ed. Max Lemonad, 1997.

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    _______________________________________________________DIREITOS HUMANOSAcrescenta a Prof. Flvia Piovesan: A necessidade de uma ao internacional

    mais eficaz para a proteo dos direitos humanos impulsionou o processo deinternacionalizao desses direitos, culminando na criao da sistemtica normativa deproteo internacional, que faz possvel a responsabilizao do Estado no domnio

    internacional, quando as instituies nacionais se mostram falhas ou omissas na tarefade proteo dos direitos humanos18.

    As teses de que os Estados deveriam ter uma soberania absoluta e sem limites ecederam lugar a que os doutrinadores afirmassem que a soberania estatal no umprincpio absoluto, mas deve estar sujeita a certas limitaes em prol dos direitoshumanos. Os direitos humanos tornam-se uma legtima preocupao internacional com ofim da Segunda Guerra Mundial, com a criao das Naes Unidas, com a adoo daDeclarao Universal dos Direitos Humanos pela Assemblia Geral da ONU, em 1948 e,como conseqncia, passam a ocupar um espao central na agenda das instituiesinternacionais. No perodo do ps-guerra, os indivduos tornam-se foco de ateno

    internacional. A estrutura do contemporneo Direito Internacional dos Direitos Humanoscomea a se consolidar. No mais poder-se-ia afirmar, no fim do sculo XX, que oEstado pode tratar de seus cidados da forma que quiser, no sofrendo qualquerresponsabilizao na arena internacional. No mais poder-se-ia afirmar no planointernacional that king can do no wrong19.

    E, sem dvida, como declara a Prof. Flvia Piovesan: Neste contexto, o Tribunalde Nuremberg, em 1945-1946, significou um poderoso impulso ao movimento deinternacionalizao dos direitos humanos. Ao final da Segunda Guerra e aps intensosdebates sobre o modo pelo qual poder-se-ia responsabilizar os alemes pela guerra epelos brbaros excessos do perodo, os aliados chegaram a um consenso, com o

    Acordo de Londres de 1945, pelo qual ficava convocado um Tribunal Militar Internacionalpara julgar os criminosos de guerra.

    O Tribunal de Nuremberg aplicou fundamentalmente o costume internacionalpara a condenao criminal de indivduos envolvidos na prtica de crime contra a paz,crime de guerra e crime contra a humanidade, previstos pelo Acordo de Londres20.

    Ao lado do sistema global, surge o sistema regional de proteo, que buscainternacionalizar os direitos humanos no plano regional, particularmente na Europa,Amrica e frica, e tambm formado por instrumentos de alcance geral e de alcanceespecial.

    Compem o sistema global de proteo os seguintes documentos internacionais,ratificados pelo Brasil:

    1. Carta das Naes Unidas, adotada e aberta assinatura pela Confernciade So Francisco em 26.6.1945 e assinada pelo Brasil em 21.9.1945;

    2. Declarao Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pelaResoluo n. 217 A (III) da Assemblia Geral das Naes Unidas em 10.12.1948 eassinada pelo Brasil nesta mesma data;

    18 PIOVESAN, Flvia. op. cit.19 PIOVESAN, Flvia. op. cit.20 Ib. op. cit.

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    _______________________________________________________DIREITOS HUMANOS3. Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticos, adotado pela Resoluo

    n. 2.200 A (XXI) da Assemblia Geral das Naes Unidas em 16.12.1966, assinada peloBrasil em 24.1.1992;

    4. Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais, adotadopela Resoluo n. 2.200-A (XXI) da Assemblia Geral das Naes Unidas em16.12.1966, assinada pelo Brasil em 24.1.1992;

    5. Conveno contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruis,Desumanos ou Degradantes, adotada pela Resoluo n. 39/46, da Assemblia Geraldas Naes Unidas em 10.12.1984, assinada pelo Brasil em 28.9.1989;

    6. Conveno sobre a Eliminao de Todas as Formas de DiscriminaoContra a Mulher, adotada pela Resoluo n. 34/180 da Assemblia Geral das NaesUnidas em 18.12.1979, assinada pelo Brasil em 1.2.1984;

    7. Conveno sobre a Eliminao de Todas as Formas de DiscriminaoRacial, adotada pela Resoluo n. 2.106 A (XX) da Assemblia Geral das NaesUnidas em 21.12.1965, assinada pelo Brasil em 27.3.1968;

    8. Conveno sobre ao Direitos da Criana, adotada pela Resoluo L.44(XLIV) da Assemblia Geral das Naes Unidas em 20.11.1989, assinada pelo Brasil em24.9.1990.

    Compem o sistema regional interamericano:

    1. Conveno Americana de Direitos Humanos, adotada e aberta assinaturana Conferncia Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, em San Jos daCosta Rica, em 22.11.1969, assinada pelo Brasil em 25.9.1992;

    2. Conveno Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, adotada pelaAssemblia Geral da Organizao dos Estados Americanos, em 9.12.1985, assinadapelo Brasil em 20.7.1989;

    3. Conveno Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violnciacontra a Mulher.

    Com todas estas disposies legais internacionais testemunha-se uma mudanasignificativa nas relaes interestatais, o que vem a sinalizar transformaes nacompreenso dos Direitos Humanos que, a partir da, no mais poderiam ficarconfinados exclusiva jurisdio domstica. So lanados, assim, os mais decisivospassos para a internacionalizao dos direitos humanos21.

    2. PRECEITOS DA CARTA DAS NAES UNIDAS (1945)

    21 PIOVESAN, Flvia. op. cit.

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    _______________________________________________________DIREITOS HUMANOSO Prof. Fabio K. Comparato declara que: A Guerra Mundial de 1939 a 1945

    costuma ser apresentada como a conseqncia da falta de soluo, na ConfernciaInternacional de Versalhes, s questes suscitadas pela Primeira Guerra Mundial e,portanto, de certa forma, como as retomadas das hostilidades, interrompidas em 1918.

    Essa interpretao plausvel, mas deixa na sombra o fato de que o conflito blicodeflagrado na madrugada de 1. de setembro de 1939, com a invaso da Polnia pelasforas armadas da Alemanha nazista, diferiu profundamente da guerra de 1914 a 1918.

    Diferiu no tanto pelo maior nmero de pases envolvidos e a durao maisprolongada do conflito seis anos, a partir das primeiras declaraes oficiais de guerra,sem contar, portanto, a ocupao da Manchria pelo Japo, em 1932, e a da Etipiapela Itlia, em 1935 , quanto pela descomunal cifra de vtimas. Calcula-se que 60milhes de pessoas foram mortas durante a Segunda Guerra Mundial, a maior partedelas civis, ou seja, seis vezes mais do que no conflito do comeo do sculo, em que asvtimas, em sua quase totalidade, eram militares. Alm disso, enquanto a guerra do incio

    do sculo provocou o surgimento de cerca de 4 milhes de refugiados, com a cessaodas hostilidades na Europa, em maio de 1945, contavam-se mais de 40 milhes depessoas deslocadas, de modo forado ou voluntrio, dos pases onde viviam em meadosde 1939.

    Continua: Mas, sobretudo, a qualidade ou ndole das duas guerras mundiais foibem distinta. A de 1914-1918 desenrolou-se, apesar da maior capacidade de destruiodos meios empregados (sobretudo com a introduo dos tanques e avies de combate),na linha clssica das conflagraes anteriores, pelas quais os Estados procuravamalcanar conquistas territoriais, sem escravizar ou aniquilar os povos inimigos. ASegunda Guerra Mundial, diferentemente, foi deflagrada com base em proclamados

    projetos de subjugao de povos considerados inferiores, lembrando os episdios deconquista das Amricas a partir dos descobrimentos. Ademais, o ato final da tragdia olanamento da bomba atmica em Hiroshima e Nagasaki, em 6 e 9 de agosto de 1945,respectivamente soou como um prenncio de apocalipse: o homem acabara deadquirir o poder de destruir toda a vida na face da Terra.

    Conclui dizendo: As conscincias se abriram, enfim, para o fato de que asobrevivncia da humanidade exigia a colaborao de todos os povos na reorganizaodas relaes internacionais, com base no respeito incondicional dignidade humana22.

    A proteo dos direitos humanos surgiu como decorrncia do processo de

    internacionalizao e universalizao desses direitos, e teve como principaisprecedentes o Direito Humanitrio, a Liga das Naes e a Organizao Internacional doTrabalho.

    Estes institutos rompem, assim, o conceito tradicional que concebia o DireitoInternacional apenas como a lei da comunidade internacional dos Estados e quesustentava ser o Estado o nico sujeito de Direito Internacional. Rompem ainda com anoo de soberania nacional absoluta, na medida em que admitem intervenes noplano nacional, em prol da proteo dos direitos humanos.

    Prenunciava-se o fim da era em que a forma pela qual o Estado tratava seus

    nacionais era concebida como um problema de jurisdio domstica, restrito ao domnioreservado do Estado, decorrncia de sua soberania, autonomia e liberdade. Aos poucos,emerge a idia de que o indivduo no apenas objeto, mas tambm sujeito de direitointernacional. A partir desta perspectiva, comea a se consolidar a capacidade22 COMPARATO, Fbio Konder.A Afirmao Histrica dos Direitos Humanos. So Paulo: Saraiva, 1999.

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    _______________________________________________________DIREITOS HUMANOSprocessual internacional dos indivduos, bem como a concepo de que os direitoshumanos no mais se limitam exclusiva jurisdio domstica, mas constitueminteresse internacional23.

    Pouco a pouco, compreendeu-se que a proteo dos Direitos Humanos no seencerra na atuao do Estado, nem questo meramente nacional.

    Diante desse panorama, aps a Segunda Guerra Mundial, as conscincias seabriram para o fato de que a sobrevivncia da humanidade exigia a colaborao detodos os Estados na reorganizao das relaes internacionais.

    Desse modo, as naes se aperceberam que era urgente a criao de um rgointernacional para a conteno das guerras. Na realidade, pode-se tomar como termoinicial efetivo da manifestao dessa vocao a Primeira Guerra Mundial, ocorrida entre1914 e 1918. Com a derrota da Alemanha e de seus aliados, as naes vencedoras

    houveram por bem criar uma organizao internacional, que se denominou Liga dasNaes, que no prosperou e dissolveu-se em 1946, com a criao das Naes Unidas ONU.

    A ecloso da Segunda Guerra Mundial trouxe tona a necessidade de criao deum rgo internacional de controle efetivo da paz mundial. Ento, representantes de 50pases, entre os dias 25.4 e 26.6.1945, na cidade de So Francisco, Califrnia, redigirama Carta das Naes Unidas e, aos 24.10.1945, a Organizao das Naes Unidas(ONU) estava oficialmente criada.

    A ONU difere da Liga das Naes, na mesma medida em que a Segunda GuerraMundial se distingue da Primeira Enquanto em 1919 a preocupao nica era a criaode uma instncia de arbitragem e regulao dos conflitos blicos, em 1945 objetivou-secolocar a guerra definitivamente fora da lei. Por outro lado, o horror engendrado pelosurgimento dos Estados totalitrios, verdadeiras mquinas de destruio de povosinteiros, suscitou em toda parte a conscincia de que, sem o respeito aos direitoshumanos, a convivncia pacfica das naes tornava-se impossvel.

    Por isso, enquanto a Liga das Naes no passava de um clube de Estados, comliberdade de ingresso e retirada conforme suas convenincias prprias, as NaesUnidas nasceram com a vocao de se tornarem a organizao da sociedade polticamundial, qual deveriam pertencer, portanto, necessariamente, todas as naes do

    globo empenhadas na defesa da dignidade humana24

    .Os objetivos principais da ONU so:

    a manuteno da paz e segurana internacionais;

    incremento de relaes amistosas entre naes;

    cooperao internacional para a soluo de problemas mundiais de ordemsocial, econmica e cultural, incentivando o respeito pelos direitos e liberdadesindividuais.

    23 COMPARATO, Fbio Konder. op. cit.24 COMPARATO, Fbio Konder. op. cit.

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    _______________________________________________________DIREITOS HUMANOSA ONU se compe de seis rgos especiais, que so (Carta das Naes

    Unidas, art. 7.):

    Assemblia Geral;

    Conselho de Segurana;

    Conselho Econmico e Social;

    Conselho de Tutela;

    Corte Internacional de Justia;

    Secretaria.

    Ao lado da preocupao de evitar a guerra e manter a paz e a seguranainternacional, a agenda internacional passa a conjugar novas e emergentespreocupaes. A coexistncia pacfica entre os Estados, combinada com a busca deinditas formas de cooperao econmica e social, caracterizam a nova configuraoda agenda da comunidade internacional.

    A Carta das Naes Unidas de 1945 consolida o movimento deinternacionalizao dos direitos humanos, a partir do consenso de Estados que elevam apromoo desses direitos ao propsito e finalidade das Naes Unidas. Definitivamente,a relao de um Estado com seus nacionais passa a ser uma problemtica internacional,

    objeto de instituies internacionais e do Direito Internacional, bastando, para tanto,examinar os arts. 1. (3), 13, 55, 56, 62 (2 e 3) da Carta das Naes Unidas.

    Nos termos do art.1. (3), fica estabelecido que um dos propsitos das NaesUnidas alcanar a cooperao internacional para a soluo de problemas econmicos,sociais, culturais ou de carter humanitrio e encorajar o respeito aos direitos humanos eliberdades fundamentais para todos, sem distino de raa, sexo, lngua ou religio.

    Neste sentido, cabe Assemblia Geral iniciar estudos e fazer recomendaes,com o propsito de promover a cooperao internacional para a soluo de problemaseconmicos, sociais, culturais ou de carter humanitrio e encorajar o respeito aos

    direitos humanos e s liberdades fundamentais para todos, sem distino de raa, sexo,lngua ou religio, em conformidade com o art. 13 da Carta. Tambm ao ConselhoEconmico e Social cabe fazer recomendaes, com o propsito de promover o respeitoe a observncia dos Direitos Humanos e das liberdades fundamentais, bem comopreparar projetos de Convenes Internacionais para este fim, nos termos do art. 62 daCarta da ONU.

    O art. 55 refora o objetivo de promoo dos Direitos Humanos, quandodetermina: Com vistas criao de condies de estabilidade e bem estar, necessriaspara a pacfica e amistosa relao entre as Naes, e baseada nos princpios daigualdade dos direitos e da autodeterminao dos povos, as Naes Unidas promovero

    o respeito universal e a observncia dos Direitos Humanos e liberdades fundamentaispara todos, sem distino de raa, sexo, lngua ou religio. O art. 56 reafirma o dever detodos os membros das Naes Unidas em exercer aes conjugadas ou separadas, emcooperao com a prpria organizao, para o alcance dos propsitos lanados no art.55.

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    _______________________________________________________DIREITOS HUMANOSO Prof. Comparato diz que: No texto da Carta, como se v, da leitura dos

    artigos 13 e 55, os direitos humanos foram concebidos como sendo, unicamente, asliberdades individuais. verdade que o tratado instituidor da ONU atribui s NaesUnidas a incumbncia de favorecer entre os povos nveis mais altos de vida, trabalho

    efetivo e condies de progresso e desenvolvimento econmico e social. Mas oefetivo direito ao desenvolvimento s veio a ser reconhecido mais tarde.

    Em contrapartida, a Carta das Naes Unidas afirma, inequivocamente, aexistncia de um direito de autodeterminao dos povos.

    O Texto

    (Excertos)

    NS, OS POVOS DAS NAES UNIDAS, RESOLVIDOS a preservar asgeraes vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espao de nossa vida,trouxe sofrimentos indizveis humanidade, e a reafirmar a f nos direitos fundamentaisdo homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direitos dos homense das mulheres, assim como das naes grandes e pequenas, e a estabelecercondies sob as quais a justia e o respeito s obrigaes decorrentes de tratados e deoutras fontes do direito internacional possam ser mantidos, e a promover o progressosocial e melhores condies de vida dentro de uma liberdade mais ampla,

    E PARA TAIS FINS, praticar a tolerncia e viver em paz, uns com outros, comobons vizinhos, e unir nossas foras para manter a paz e a segurana internacionais, e agarantir, apela aceitao de princpios e a instituio de mtodos, que a fora armadano ser usada a no ser no interesse comum, a empregar um mecanismo internacionalpara promover o progresso econmico e social de todos os povos,

    RESOLVEMOS CONJUGAR NOSSOS ESFOROS PARA A CONSECUODESSES OBJETIVOS.

    Em vista disso, nossos respectivos Governos, por intermdio de representantesreunidos na cidade de So Francisco, depois de exibirem seus plenos poderes, queforam achados em boa e devida forma, concordaram com a presente Carta das NaesUnidas e estabelecem, por meio dela, uma organizao internacional que serconhecida pelo nome de Naes Unidas.

    Embora a Carta das Naes Unidas seja enftica em determinar a importncia dese defender, promover e respeitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais como demonstram os dispositivos destacados ela no define o contedo dessasexpresses, deixando-as em aberto. Da o desafio em se desvendar o alcance esignificado da expresso direitos humanos e liberdades fundamentais, no definidapela Carta. Trs anos aps o advento da Carta das Naes Unidas, a DeclaraoUniversal dos Direitos Humanos, em 1948, veio a definir com preciso o elenco dosdireitos humanos e liberdades fundamentais a que fazia meno os arts. 1. (3), 13, 55,56 e 62 da Carta25.

    Instrumentos Internacionais de Proteo dos Direitos Humanos

    25 PIOVESAN, Flvia. op. cit.

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    _______________________________________________________DIREITOS HUMANOS

    Profs. Vitor Frederico Kmpel e Luiz Antnio de Souza

    1. OS DIREITOS HUMANOS COMO TEMA GLOBAL

    Como se sabe, existe uma polmica muito grande sobre o fundamento e anatureza dos direitos humanos, alguns reconhecendo-os como direitos naturais, portantoinatos, outros entendendo-os como direitos positivos, alguns ainda os vendo comodireitos histricos. Certo que os direitos humanos, hoje, so universais, cabendo, antesde mais nada, efetiv-los e proteg-los.

    A universalidade dos direitos humanos uma realidade. Como diz J. A. LindgrenAlves, (...) todas as Constituies nacionais redigidas aps a adoo da Declaraopela Assemblia Geral da ONU nela se inspiram ao tratar dos direitos e liberdadesfundamentais, pondo em evidncia, assim, o carter hoje universal de seus valores26.

    A consolidao dos direitos humanos, porm, ocorreu a partir de 1945, com o finalda II Guerra Mundial. Nesse perodo do ps-guerra, quando comeou a tarefa dereconstruo da dignidade humana, extremamente violada e aviltada num dos perodosmais negros da Histria, os direitos humanos passaram a ser considerados numa ticamundial, da derivando a sua internacionalizao.

    2. A DECLARAO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS (1948)

    A Declarao Universal dos Direitos Humanos foi adotada em 10.12.1948. O seuprembulo d conta do sentimento que dominava aquele momento histrico na medidaem que reconhece a dignidade inerente a todas as pessoas, titulares de direitos iguais einalienveis.

    Assim, o resgate da dignidade humana o sentido maior dessa Declarao, umavez que assinala que basta ser pessoa humana para ter dignidade e ser titular dosdireitos que enumera.

    Essa Declarao, portanto, uma reao, uma manifestao histrica contra asatrocidades cometidas na II Guerra Mundial, apontando o devido e necessrio respeitoaos direitos humanos, entendidos como universais.

    A princpio, interessante destacar, a Declarao revive os princpios daRevoluo Francesa, uma vez que, no seu artigo I, destaca que todas as pessoasnascem livres e iguais em dignidade e direitos. So dotadas de razo e conscincia e

    devem agir em relao umas s outras com esprito de fraternidade.Esse dispositivo, pois, coloca em relevo os ideais da Revoluo Francesa

    (igualdade, liberdade e fraternidade), reconhecendo-os como valores universais de toda

    26 ALVES, J. A. Lindgren. Os Direitos Humanos como tema global. Perspectiva, 1994. p. 4.

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    _______________________________________________________DIREITOS HUMANOSpessoa humana.

    Ainda interessante notar que, colocando esses ideais como valores supremos,universais, indissociveis, enfim, de igual valia para todas as pessoas, a Declarao

    instaura uma tica singular dos direitos.Com efeito, a Declarao relaciona em seu texto direitos civis e polticos (que so

    os chamados direitos de primeira gerao, que traduzem o valor da liberdade), osdireitos sociais, econmicos e culturais (que so denominados direitos de segundagerao, que traduzem o valor da igualdade), e contempla, ainda, a fraternidade comovalor universal (contempla, pois, os chamados direitos de terceira gerao, quecompreendem o direito paz, ao meio ambiente, ao desenvolvimento, comunicaoetc.).

    Como ressalta Flvia Piovesan, ao conjugar o valor da liberdade com o valor da

    igualdade, a Declarao demarca a concepo contempornea de direitos humanos,pela qual esses direitos passam a ser concebidos como uma unidade interdependente eindivisvel27.

    A idia partilhada pela Declarao, pois, a idia de unio, cumulao e interaodos direitos humanos, e no como ocorria anteriormente, de dicotomia entre os direitosrepresentativos da igualdade e os direitos representativos da liberdade.

    Flvia Piovesan lembra que essa diretriz refletiu na Resoluo n. 32/130 daAssemblia Geral da Organizao das Naes Unidas, na qual encontramos que todosos direitos humanos, qualquer que seja o tipo a que pertencem, se inter-relacionamnecessariamente entre si, e so indivisveis e interdependentes. Tambm refletiu naDeclarao de Direitos Humanos de Viena, de 1993, especificamente no artigo 5.:Todos os direitos humanos so universais, indivisveis, interdependentes e inter-relacionados (...).

    Alguma discusso h sobre a natureza jurdica da Declarao, assim como sobreseu valor jurdico.

    Carlos Weis, escrevendo a respeito, afirma que da Declarao no decorre osurgimento de direitos subjetivos aos cidados, nem obrigaes internacionais aosEstados, uma vez tratar-se de recomendao. Assinala, todavia, sua contribuio, pelofato de ter influenciado vrios textos constitucionais, sustentando que refletiu e deuorigem a vrios tratados internacionais, os quais, sim, com fora vinculante28.

    Flvia Piovesan, sobre o tema, diz que a Declarao Universal no um tratado.Foi adotada pela Assemblia Geral das Naes Unidas sob a forma de resoluo, que,por sua vez, no apresenta fora de lei29.

    Fbio Konder Comparato, por seu turno, professa que tecnicamente, aDeclarao Universal do Homem uma recomendao, que a Assemblia Geral dasNaes Unidas faz aos seus membros (Carta das Naes Unidas), artigo 1030.

    Embora a Declarao Universal de 1948 no configure um tratado internacional,Flvia Piovesan e Fbio Konder Comparato, entre outros, entendem que a Declarao27 PIOVESAN, Flvia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. Max Limonad, 2000. p. 146.28 WEIS, Carlos. Direitos Humanos comtemporneos. So Paulo: Malheiros, 1999. p. 69.29 PIOVESAN, Flvia. op. cit. p. 48.30 COMPARATO, Fbio Konder.A afirmao histrica dos Direitos Humanos. So Paulo: Saraiva, 2001. p. 226-227

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    _______________________________________________________DIREITOS HUMANOStem fora jurdica obrigatria e vinculante, pelo qual os Estados, luz desse documento,tm o compromisso de assegurar tais direitos s pessoas. Assim, entendem que aDeclarao integra o Direito Internacional, que, a par dos tratados e convenes,tambm recebe o influxo dos costumes e princpios gerais de direito.

    Arrematando o tema, J. A. Lindgren Alves elucida que as declaraes, emcontraposio aos tratados, convenes, pactos e acordos, no tm fora jurdicacompulsria. Assinala, todavia, o carter especial e peculiar da Declarao Universal.

    Nesse sentido, e tendo em conta que a Declarao Universal encarada comouma interpretao autorizada da Carta das Naes Unidas, a Declarao teria, paraalguns intrpretes, os efeitos legais de um tratado internacional. Para outros, porm, afora da Declarao Universal dos Direitos Humanos, como a de qualquer outrodocumento congnere, advm de sua converso gradativa em norma consuetudinria31.

    Embora os dois posicionamentos, o valor desse documento (DeclaraoUniversal) inegvel, irrefutvel, residindo no fato de que, de forma definitiva, aDeclarao resgatou, declarou e estabeleceu a universalidade dos direitos humanos,alm de transformar-se em fonte vinculante para todos os Estados, tanto que tais direitosvm sendo incorporados s Constituies das naes. Nesse sentido, J. A. LindgrenAlves: independentemente da doutrina esposada, o que se verifica na prtica ainvocao generalizada da Declarao Universal como regra dotada de jus cogens,invocao que no tem sido contestada sequer pelos Estados mais acusados deviolao de seus dispositivos32.

    Apreciando o contedo da Declarao Universal, Carlos Weis ilustra que esse

    documento inovou ao introduzir elementos humanos, como a universalidade, aindivisibilidade e a interdependncia33.

    Dalmo de Abreu Dallari acentua esse contedo, referindo que a DeclaraoUniversal exibe caractersticas muito prprias: o exame dos artigos da Declaraorevela que ela consagrou trs objetivos fundamentais: a certeza dos direitos, exigindoque haja uma fixao prvia e clara dos direitos e deveres, para que os indivduospossam gozar dos direitos ou sofrer imposies; a segurana dos direitos, impondo umasrie de normas tendentes a garantir que, em qualquer circunstncia, os direitosfundamentais sero respeitados; a possibilidade dos direitos, exigindo que se procureassegurar a todos os indivduos os meios necessrios fruio dos direitos, no se

    permanecendo no formalismo cnico e mentiroso da afirmao de igualdade de direitosonde grande parte do povo vive em condies subumanas34.

    A Declarao, j enfatizamos, proclama no artigo I, os ideais cunhados naRevoluo Francesa (a liberdade, a igualdade e a fraternidade), afirmando, tanto nesseartigo quanto no seguinte (artigo II), a universalidade dos direitos humanos(considerando que os direitos humanos so inerentes a toda pessoa humana). Naseqncia, entre os artigos III e XXI, declara os direitos liberais clssicos, tambmchamados liberdades pblicas, ou seja, enumera os direitos civis e polticos.

    Antonio Cassesse, citado por Flvia Piovesan, traz os ensinamentos de Ren

    Cassin, que examinou de forma aprofundada o contedo da Declarao Universal dos31 ALVES, J. A. Lindgren. op. cit. p.48.32 Idem. loc. cit.33 WEISS, Carlos. op. cit. p. 69.34 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 16. ed. So Paulo: Saraiva, 1991. p. 179.

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    _______________________________________________________DIREITOS HUMANOSDireitos do Homem.

    Ren Cassin assinala que a Declarao:

    relacionou os direitos pessoais (direitos igualdade, vida, liberdade e segurana, entre outros) nos artigos III a XI;

    disps, nos artigos XII a XVII, os direitos que dizem respeito ao indivduo emsua relao com os grupos sociais dos quais participa (direitos privacidadeda vida familiar e o direito ao casamento; o direito liberdade de movimentono mbito nacional ou fora dele; o direito nacionalidade; o direito ao asilo, nahiptese de perseguio; direitos de propriedade e de praticar a religio);

    estabeleceu, nos artigos XVIII a XXI, as liberdades civis e os direitos polticos(liberdade de conscincia, pensamento e expresso; liberdade de associaoe assemblia; direito de votar e ser eleito; direito ao acesso ao governo e administrao pblica);

    finalmente estabeleceu, nos artigos XXII a XXVII, os direitos exercidos noscampos econmico e social (direitos nas esferas de trabalho e relaes deproduo; direito educao; direito ao trabalho, assistncia social e livreescolha de emprego; direito a justas condies de trabalho e ao igualpagamento para igual trabalho; direito de fundar sindicatos e participar; direitoao descanso e ao lazer; direito sade, educao e o direito de participarlivremente na vida cultural da comunidade)35.

    Evidencia J. A. Lindgren Alves, todavia, que a melhor classificao feita por JackDonnelly. Diz Donnelly que os direitos foram definidos na Declarao Universal em setecategorias:

    direitos pessoais: incluindo os direitos vida, nacionalidade, aoreconhecimento perante a lei, proteo contra tratamentos ou puniescruis, degradantes ou desumanas, e proteo contra a discriminao racial,tnica, sexual ou religiosa (artigos II a VII e XV);

    direitos judiciais: incluindo o acesso a remdios por violaes dos direitosbsicos, a presuno de inocncia, a garantia de processo pblico justo eimparcial, a irretroatividade das leis penais, a proteo contra priso, detenoou exlio arbitrrios, e contra a interferncia na famlia, no lar e na reputao(artigos VIII a XII);

    liberdades civis: especialmente as liberdades de pensamento, conscincia ereligio, de opinio e expresso, de movimento e residncia, e de reunio e deassociao pacfica (artigos XIII e XVIII a XX);

    direitos de subsistncia: particularmente os direitos alimentao e a umpadro de vida adequado, sade e ao bem-estar prprio e da famlia (artigoXXV);

    35 CASSESSE, Antonio. Human Rights in a changing world. Philadelphia: Temple University, 1990. p.38-39 (cit. por Flvia Piovesan,op. cit. p. 145 rodap).

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    _______________________________________________________DIREITOS HUMANOS direitos econmicos: incluindo principalmente os direitos ao trabalho, ao

    repouso e ao lazer, e segurana social (artigos XXII a XXVI proposital ouacidentalmente, Donnely omite o artigo XVII, sobre o direito propriedade, queacabaria excludo dos Pactos Internacionais de Direitos Humanos, conforme

    se ver adiante); direitos sociais e culturais: especialmente os direitos instruo e

    participao na vida cultural da comunidade (artigos XXVI e XXVIII);

    direitos polticos: principalmente os direitos a tomar parte no governo e aeleies legtimas com sufrgio universal e igual (artigo XXI), mais os aspectospolticos de muitas liberdades civis36.

    Interessante destacar, afinal, as consideraes de Fbio Konder Comparato, quevislumbra, na Declarao, um trao de suma importncia, qual seja, a afirmao dademocracia como nico regime poltico compatvel com o pleno respeito aos direitoshumanos (artigos XXI e XXIX, alnea 2), com o que considera que o regimedemocrtico j no , pois, uma opo poltica entre muitas outras, mas a nica soluolegtima para a organizao do Estado37.

    A essncia mxima da Declarao, aquela que a pedra de toque dessedocumento, reside em seu prembulo e no artigo I, portanto, no seu prtico, que aafirmao solene de que todas as pessoas humanas tm dignidade e que essadignidade acarreta, para todos, direitos universais, indivisveis, interdependentes,

    inalienveis, imprescritveis, ou seja, direitos que permitam ao gnero humano a suaplena realizao.

    3. O PACTO INTERNACIONAL DOS DIREITOS CIVIS E POLTICOS

    3.1. Histrico

    Enquanto a Declarao Universal foi preparada e adotada em menos de dois

    anos, a elaborao e a aprovao dos pactos internacionais, que a complementariam,levaram vinte anos, e mais dez transcorreram para sua entrada em vigor. Assinala J. A.Lindgren Alves que a razo de tal demora se encontra fundamentalmente em seucarter obrigatrio para os Estados-partes. E todos os tipos de controvrsias se fizerampresentes, primeiro no sentido Leste-Oeste, depois no sentido Norte-Sul38.

    Com efeito, a formulao do Pacto Internacional dos Direitos Civis ePolticos, bem assim o Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais,foi cercada de intenso debate. A discusso se prendia questo da convenincia deserem editados dois pactos ou um nico, contemplando todos esses direitos.

    Consoante expe Fbio Konder Comparato, as potncias ocidentais36 DONNELLY, Jack. International Human Rights: a regime analysis. MIT, Summer, 1986. (cit. por J. A. Lindgren Alves. op. cit. p.46-47).37 COMPARATO, Fbio Konder. op. cit. p. 234.38 ALVES, J. A. Lindgren. op. cit. p. 49.

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    _______________________________________________________DIREITOS HUMANOSinsistiam no reconhecimento, to-s, das liberdades individuais clssicas, protetoras dapessoa humana contra os abusos e interferncias dos rgos estatais na vida privada.J os pases do bloco comunista e os jovens pases africanos preferiam pr emdestaque os direitos sociais e econmicos, que tm por objeto polticas pblicas de apoio

    aos grupos ou classes desfavorecidas, deixando na sombra as liberdades individuais39

    .Os pases ocidentais, sobre o tema, defendiam a adoo de dois pactos

    distintos, sustentando tal posicionamento no fato de que enquanto os direitos civis epolticos eram auto-aplicveis e passveis de cobrana imediata, os direitos sociais,econmicos e culturais eram programticos e demandavam realizao progressiva. Acontraposio dos pases socialistas era no sentido de que no era em todos os pasesque os direitos civis e polticos faziam-se auto-aplicveis e os direitos sociais,econmicos e culturais no auto-aplicveis. A depender do regime, os direitos civis epolticos poderiam ser programticos e os direitos sociais, econmicos e culturais auto-aplicveis40.

    Os pases ocidentais, que se opunham a uma formulao nica, viamnessa situao uma ameaa noo individualista dos direitos humanos, para o quearrolavam trs argumentos substanciais, relacionados por J. A. Lindgren Alves: Oprimeiro era o de que os direitos correspondiam a espcies distintas: os civis e polticosseriam jurisdicionados, passveis de cobrana, o que no se aplicaria aos direitoseconmicos e sociais. O segundo era o de que os direitos civis e polticos seriam deaplicao imediata, enquanto os econmicos, sociais e culturais somente poderiam terrealizao progressiva. O terceiro dizia respeito ao acompanhamento: para os direitoscivis e polticos o melhor mecanismo seria um comit que atendesse peties e queixasatravs de investigaes e bons-ofcios, instrumento inadequado para os direitos

    econmicos e sociais.

    Para aqueles que defendiam uma formulao nica, a preocupao era nosentido de que a separao poderia significar uma diminuio da importncia relativados chamados direitos de segunda gerao41.

    Predominou, nessa discusso, a orientao no sentido da edio de doispactos internacionais, que desenvolveram o contedo da Declarao Universal dosDireitos do Homem de 1948, todavia essa diviso foi artificial, pelo fato de que osdocumentos contemplam direitos humanos indissociveis, indivisveis, que formam umtodo harmnico.

    Em relao, especificamente, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis ePolticos, objeto de nosso estudo, este reconheceu, em relao Declarao Universal,um elenco muito maior de direitos civis e polticos. Esse tratado internacional, expeCarlos Weis, cuida dos direitos humanos relacionados liberdade individual, proteoda pessoa contra a ingerncia estatal em sua rbita privada, bem como participaopopular na gesto da sociedade, ou seja, cuida dos denominados direitos humanosliberais ou liberdades pblicas42.

    Verificando esse Pacto, podemos assinalar seis partes, compreendendodispositivos que dizem respeito:

    39 COMPARATO, Fbio Konder. op. cit. p. 278.40 PIOVESAN, Flvia. op. cit. p. 162-163.41 ALVES, J. A. Lindgren. op. cit. p. 4942 WEIS, Carlos. op. cit. p. 76.

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    _______________________________________________________DIREITOS HUMANOSa) autodeterminao dos povos e livre disposio de seus recursos naturaise riquezas (artigo 1.);

    b) ao compromisso dos Estados de garantir os direitos previstos e as hipteses

    de derrogao de certos direitos (artigos 2. ao 5.);c) aos direitos efetivamente reconhecidos (artigos 6. ao 27);

    d) aos mecanismos de superviso e controle desses direitos (artigos 35 ao 39);

    e) integrao e interao com a Organizao das Naes Unidas (artigos 35ao 39);

    f) ratificao e entrada em vigor (artigos 40 ao 47).

    O Pacto, no artigo 1., assinala o direito autodeterminao dos povos,reconhecendo que os Estados tm o direito de determinar livremente seu estatutopoltico e estabelecer livremente seu desenvolvimento econmico, social e cultural.Assegura, ainda, que os Estados podem dispor livremente de suas riquezas e recursosnaturais, em nenhum caso podendo os povos serem privados de seus meios desubsistncia.

    Nos artigos 2. e 3., na seqncia, o Pacto acentua o princpio daigualdade essencial de todos os seres humanos, e que todas as pessoas tm direito aosdireitos nele reconhecidos, proclamando que dever dos Estados-partes assegurar a

    homens e mulheres igualdade no gozo dos direitos civis e polticos enunciados. Essedever, assinale-se, inclui a obrigao de os Estados-partes garantirem, a todas aspessoas, cujos direitos forem violados, recursos efetivos e oponveis contra as violaesde direitos civis e polticos, portanto, o estabelecimento de um sistema legal que possaenfrent-las.

    No artigo 4., o Pacto disps sobre a possibilidade de suspensotemporria do exerccio dos direitos humanos, mas to-somente diante de situaes queameacem a existncia da nao e sejam proclamadas oficialmente. Convm destacar,todavia, que esse dispositivo determina que a suspenso temporria no poder atingiros direitos previstos nos artigos 6., 7., 8. ( 1. e 2.), 11, 15, 16 e 18, isso por

    entender que tais direitos so intangveis, no podendo ser afastados por seremfundamentais para o atendimento da dignidade de toda pessoa humana.

    Na seqncia, o Pacto enuncia os direitos e liberdades que contempla, eque so os seguintes:

    direito vida;

    direito de no ser submetido tortura ou a tratamentos cruis, desumanos oudegradantes;

    direito de no ser escravizado, nem submetido servido;

    direitos liberdade e segurana pessoal e de no ser sujeito priso oudeteno arbitrrias;

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    _______________________________________________________DIREITOS HUMANOS direito a julgamento justo;

    direito igualdade perante a lei;

    direito proteo contra interferncia arbitrria na vida privada;

    direito liberdade de movimento;

    direito a uma nacionalidade;

    direito de casar e de formar famlia;

    direito s liberdades de pensamento, conscincia e religio;

    direito s liberdades de opinio e de expresso;

    direito reunio pacfica;

    direito liberdade de associao e direito de aderir a sindicatos;

    direito de votar e de tomar parte no Governo43.

    importante destacar que o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticosreitera e pormenoriza direitos encontrveis na Declarao Universal, todavia avana emcertos pontos, inclusive abrigando novos direitos e garantias no previstos na

    Declarao.

    Flvia Piovesan escreve nesse sentido: Constata-se que o Pacto abriga novosdireitos e garantias no includos na Declarao Universal, tais como o direito de no serpreso em razo de descumprimento de obrigao contratual (artigo 11); o direito dacriana ao nome e nacionalidade (artigo 24); a proteo dos direitos de minorias identidade cultural, religiosa e lingstica (artigo 27); a proibio da propaganda deguerra ou de incitamento a intolerncia tnica ou racial (artigo 20); o direito autodeterminao (artigo 1.), dentre outros. Esta gama de direitos, insiste-se, no se vincluda na Declarao Universal44.

    Dois direitos, todavia, previstos na Declarao, no tiveram previso no Pacto: odireito de propriedade e o direito de procurar ou gozar asilo em outros pases em razode perseguio.

    Em relao ao direito de propriedade, que, previsto no artigo XVII da Declarao,no teve qualquer referncia no Pacto. J. A. Lindgren Alves assinala que os EstadosUnidos propuseram a sua incluso, todavia cederam, pois o texto proposto remetia aregulamentao do direito legislao de cada pas e, tendo em conta o receio de queisso pudesse legitimar expropriaes sem compensao financeira, a delegao norte-americana concordou com a supresso daquele direito do texto final45.

    43 ALVES, J. A. Lindgren. op. cit. p. 52.44 PIOVESAN, Flvia. op. cit. p. 167.45 Nesse sentido: ALVES, J. A. Lindgren. op. cit. p. 49-50; WEIS, Carlos. op. cit. p. 77-78.

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    _______________________________________________________DIREITOS HUMANOSQuanto ao direito de procurar ou gozar asilo em outros pases, em razo de

    perseguio, direito esse reproduzido no artigo XIV da Declarao Universal, ele noconstou, de forma especfica, no Pacto.

    A ltima questo que merece ateno, ao analisarmos o Pacto, a que dizrespeito ao mecanismo de sua implementao. O Pacto, para tal, instituiu um Comit deDireitos Humanos, composto por dezoito membros eleitos a ttulo pessoal, e os Estados-partes se obriga a apresentar relatrios sobre as medidas adotadas para dar efeito aosdireitos reconhecidos e sobre os progressos realizados no gozo desses direitos(previso no artigo 40, 1.), sendo que esses relatrios, encaminhados ao Secretrio-Geral da Organizao das Naes Unidas, so depois encaminhados a esse Comit,que os analisa e se reporta aos Estados-partes.

    O artigo 41 autoriza que, na seqncia, um Estado-parte informe ao Comit sobreo no cumprimento, por outro Estado-parte, das disposies do Pacto, desde que o

    Estado denunciante reconhea expressamente tal direito em relao a ele prprio.Finalmente, vale lembrar, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticos

    acompanhado de um Protocolo Facultativo, por meio do qual os Estados-partes, que oratificam, reconhecem a competncia desse Comit dos Direitos Humanos para recebere considerar comunicaes individuais quanto aos descumprimentos do Pacto.

    Flvia Piovesan diz que a importncia do Protocolo est em habilitar o Comit deDireitos Humanos a receber e examinar peties encaminhadas por indivduos, quealeguem serem vtimas de violao de direitos enunciados pelo Pacto dos Direitos Civise Polticos. Acrescenta que essa denncia individual s pode ser admitida se o Estado

    denunciado tiver ratificado o Pacto e o Protocolo, e que o Comit de Direitos Humanosrecentemente concluiu que as comunicaes podem ser encaminhadas pororganizaes ou terceiras pessoas, que representem o indivduo que sofreu aviolao46.

    Importante considerar que, aps o procedimento previsto, essa comunicaomerece uma deciso por parte do Comit, pelo voto da maioria dos membrospresentes, e, por essa deciso, o Comit de Direitos Humanos, alm de declarar aviolao de direitos, poder determinar que o Estado-parte repare a violao,adotando as providncias necessrias para impedi-la.

    Diz Flvia Piovesan que no h sano prevista para o no atendimento a essa

    deciso, que no tem fora obrigatria, vinculante, porm esse no atendimento acarretaao Estado violador conseqncias no plano poltico, redundando em constrangimentopoltico e moral a ele47.

    J. A. Lindgren Alves, finalizando suas consideraes sobre o tema, diz que oPacto e o Protocolo Facultativo respeitam as soberanias nacionais, mas o fato de suaaprovao pela Assemblia Geral da Organizao das Naes Unidas e o fato de osEstados-partes aderirem a seus termos, portanto, admitirem que violaes sejamtrazidas ao conhecimento do Comit de Direitos Humanos, traduzem a primeiraafirmao, por foro que se prope universal, de que assuntos qualificados como decompetncia interna podem ser objeto de acompanhamento internacional48.

    46 PIOVESAN, Flvia. op. cit. p. 169-171.47 PIOVESAN, Flvia. op. cit. p. 172-173.48 ALVES, J. A. Lindgren. op. cit. p. 53.

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    _______________________________________________________DIREITOS HUMANOSInstrumentos Internacionais de Proteo dos Direitos Humanos

    Profs. Vitor Frederico Kmpel e Luiz Antnio de Souza

    1. SISTEMA GLOBAL

    Os instrumentos internacionais dos direitos humanos comearam a ser aplicadosaps a II Guerra Mundial. O conceito de direitos humanos foi introduzido a partir daDeclarao Universal de Direitos Humanos de 1948.

    Na realidade, o Direito Internacional surge como conseqncia das violaes dosdireitos humanos, da era Hitler, e, tambm, para evitar que essas violaes viessemnovamente a ocorrer no futuro. Declara Richard B. Bilder: O Direito Internacional dosDireitos Humanos consiste em um sistema de normas internacionais, procedimentos einstituies desenvolvidas para implementar esta concepo e promover o respeito dosdireitos humanos em todos os pases, no mbito mundial. Embora a idia de que osseres humanos tm direitos e liberdades fundamentais que lhe so inerentes tenha hmuito tempo surgido no pensamento humano, a concepo de que os direitos humanosso objeto prprio de uma regulao internacional, por sua vez, bastante recente (...).Muitos dos direitos que hoje constam do Direito Internacional dos Direitos Humanossurgiram apenas em 1945, quando, com as implicaes do holocausto e de outras

    violaes dos direitos humanos cometidas pelo nazismo, as naes decidiram que apromoo de direitos humanos e liberdades fundamentais deve ser um dos principaispropsitos da Organizao das Naes Unidas.

    Entende-se, portanto, que a proteo dos direitos humanos no deve ficar adstritaao Estado, no deve se restringir competncia nacional exclusiva ou jurisdiodomstica exclusiva, porque revela tema de legtimo interesse internacional. Por suavez, esta concepo inovadora aponta para duas importantes conseqncias:

    a reviso da noo tradicional de soberania absoluta do Estado, que passa asofrer um processo de relativizao, na medida em que so admitidas

    intervenes no plano nacional em prol dos direitos humanos, isto ,permitem-se formas de monitoramento e responsabilizao internacional,quando os direitos humanos forem violados;

    a cristalizao da idia de que o indivduo deve ter direitos protegidos naesfera internacional na condio de sujeito de Direito.

    Alm do carter universal dos direitos humanos, a Declarao de 1948 estabelece

    o conceito contemporneo desses direitos, declarando que eles compem uma unidade

    indivisvel, interdependente e inter-relacionada.

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    _______________________________________________________DIREITOS HUMANOSDiz a Prof. Flvia Piovesan: Ao consagrar direitos civis e polticos e direitos

    econmicos, sociais e culturais, a Declarao ineditamente combina o discurso liberal eo discurso social da cidadania, conjugando o valor da liberdade ao valor da igualdade.

    A Declarao Universal de Direitos Humanos se distingue das tradicionais Cartas

    de Direitos Humanos que constam de diversas normas fundamentais e constitucionaisdos sculos XVIII e XIX e comeo do sculo XX, na medida em que ela consagra noapenas direitos civis e polticos, mas tambm direitos econmicos, sociais e culturais,como o direito ao trabalho e educao.

    Sem o acesso aos direitos econmicos, sociais e culturais, os direitos civis teroum aspecto meramente formal e, sem a aplicabilidade dos direitos civis e polticos, osdireitos econmicos e sociais perdero seu significado. No h mais como cogitar daliberdade divorciada da justia social, como tambm infrutfero pensar na justia socialdivorciada da liberdade. Em suma, todos os direitos humanos constituem um complexointegral, nico e indivisvel, em que os diferentes direitos esto necessariamente inter-

    relacionados e interdependentes entre si.

    Como estabeleceu a Resoluo n. 21/130 da Assemblia Geral da Organizaodas Naes Unidas: Todos os direitos humanos, qualquer que seja o tipo a quepertencem, se inter-relacionam necessariamente entre si, e so indivisveis einterdependentes. Essa concepo foi reiterada na Declarao de Viena, de 1993, queafirma, em seu 5., que os direitos humanos so universais, indivisveis,interdependentes e inter-relacionados.

    Essa Declarao serve de fundamento para a atuao de todos os Estados quecompem a comunidade internacional, determinando uma s forma de atuao

    internacional na aplicao desses direitos. A partir da aprovao da DeclaraoUniversal de 1948 e da concepo contempornea de direitos humanos por elaintroduzida, comea a desenvolver-se o Direito Internacional dos Direitos Humanos,mediante a adoo de inmeros tratados internacionais voltados proteo de direitosfundamentais.

    Forma-se o sistema normativo global de proteo dos direitos humanos, nombito das Naes Unidas. Esse sistema normativo, por sua vez, integrado porinstrumentos de alcance geral (como os Pactos Internacionais de Direitos Civis ePolticos e de Direitos Econmicos, Sociais e Culturais de 1966) e por instrumentos dealcance especfico, como as Convenes Internacionais.

    Temos, ento, o sistema geral e o sistema especial dos direitos humanos, que seinterligam. O sistema especial de proteo apoia-se no sujeito de direito que estudadoem sua individualidade e particularidade, como no caso de proteo criana, smulheres etc. J o sistema geral de proteo (Pactos da Organizao das NaesUnidas de 1996) tem como objeto a pessoa, genrica e abstratamente considerada.

    Conforme declara a Profa. Flvia Piovesan, ... ao lado do sistema normativoglobal, surge o sistema normativo regional de proteo, que busca internacionalizar osdireitos humanos no plano regional, particularmente na Europa, Amrica e frica.Consolida-se, assim, a convivncia do sistema global integrado pelos instrumentos dasNaes Unidas, como a Declarao Universal de Direitos Humanos, o PactoInternacional dos Direitos Civis e Polticos, o Pacto Internacional dos DireitosEconmicos, Sociais, Culturais e as demais Convenes Internacionais com

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    _______________________________________________________DIREITOS HUMANOSinstrumentos do sistema americano, europeu e africano de proteo aos direitoshumanos.

    Os sistemas global e regional no so dicotmicos, mas complementares. (...) Em

    face desse complexo universo de instrumentos internacionais, cabe ao indivduo quesofreu violao de direito a escolha do aparato mais favorvel, tendo em vista que,eventualmente, direitos idnticos so tutelados por dois ou mais instrumentos de alcanceglobal ou regional, ou ainda, de alcance geral ou especial. Nesta tica, os diversossistemas de proteo de direitos humanos interagem em benefcio dos indivduosprotegidos.

    Qual a posio brasileira em face da aplicao das normas concernentes aosdireitos humanos?

    A Constituio Federal de 1988, nos termos do artigo 1., inciso III, impe o valor

    da dignidade humana. A dignidade humana e os direitos fundamentais vm a constituiros princpios constitucionais que incorporam as exigncias de justia e dos valoresticos, conferindo suporte axiolgico a todo o sistema jurdico brasileiro. Na ordem de1988, esses valores passam a ser dotados de uma especial fora expansiva, projetando-se por todo universo constitucional e servindo como critrio interpretativo de todas asnormas do ordenamento jurdico nacional.

    O artigo 5. da Constituio Federal de 1988 afirma que os direitos e garantiasnela expressos no excluem outros decorrentes do regime e dos princpios por elaadotados, ou dos tratados internacionais em que a Repblica Federativa do Brasil sejaparte. Incluiu, pois, entre os direitos protegidos pela Constituio Federal, os direitos

    determinados nos tratados internacionais dos quais o Brasil seja signatrio. De acordocom a Prof. Flvia Piovesan, ao efetuar tal incorporao, a Carta est a atribuir aosdireitos internacionais uma hierarquia especial e diferenciada, qual seja, a de normaconstitucional. Esse tratamento jurdico se justifica, na medida em que os tratadosinternacionais de direitos humanos apresentam um carter especial, distinguindo-se dostratados internacionais comuns.

    Ao considerarem-se, portanto, os tratados internacionais, ratificados pelo Estadobrasileiro, podemos listar inmeros direitos neles enunciados, que passam a fazer partedo Direito brasileiro. Esses direitos so declinados no de maneira taxativa, mas deforma exemplificativa. Logo, o Direito Internacional dos Direitos Humanos torna

    abrangente o universo dos direitos constitucionais assegurados.Conclui-se, pois, que os tratados internacionais de direitos humanos garantem sua

    imperatividade jurdica, ora adicionando novos direitos, ora suspendendo preceitos quesejam menos favorveis proteo dos direitos humanos. Em todas essas hipteses, osdireitos internacionais constantes dos tratados de direitos humanos apenas vm aaprimorar e fortalecer, nunca restringir ou debilitar, o grau de proteo dos direitosconsagrados no plano normativo constitucional.

    2. PACTO INTERNACIONAL DOS DIREITOS ECONMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS(1966)

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    _______________________________________________________DIREITOS HUMANOSA Carta da Organizao das Naes Unidas de 1945, em seu artigo 55, declara:

    Com o fim de criar condies de estabilidade e bem-estar, necessrias s relaespacficas e amistosas entre as Naes, baseadas no respeito ao princpio da igualdadede direitos e da autodeterminao dos povos, as Naes Unidas favorecero:

    a) nveis mais altos de vida, trabalho efetivo e condies de progresso edesenvolvimento econmico e social;

    b) a soluo dos problemas internacionais econmicos, sociais, sanitrios econexos; a cooperao internacional, de carter cultural e educacional; e

    c) o respeito universal e efetivo dos direitos humanos e das liberdadesfundamentais para todos, sem distino de raa, sexo, lngua ou religio.

    Em 1948, a Declarao Universal define e fixa os direitos e liberdadesfundamentais a serem garantidos.

    Para a Profa. Flvia Piovesan, ... sob um enfoque estritamente legalista (nocompartilhado por este trabalho) a Declarao Universal, em si mesma, no apresentafora jurdica obrigatria e vinculante. Nessa viso, assumindo a forma de declarao (eno de tratado), vem a atestar o conhecimento universal de direitos humanosfundamentais, consagrando um cdigo comum a ser seguido por todos os Estados.

    luz desse raciocnio e considerando a ausncia de fora jurdica vinculante daDeclarao, aps a sua adoo em 1948, instaurou-se uma larga discusso sobre qual

    seria a maneira mais eficaz de assegurar o reconhecimento e a observncia universaldos direitos nela previstos. Prevaleceu, ento, o entendimento de que a Declaraodeveria ser juridicizada sob a forma de tratado internacional, que fosse juridicamenteobrigatrio e vinculante no mbito do Direito Internacional.

    Esse processo de juridicizao da Declarao comeou em 1949 e foi concludoem 1966 com a elaborao de dois tratados internacionais distintos o PactoInternacional dos Direitos Civis e Polticos e o Pacto Internacional dos DireitosEconmicos, Sociais e Culturais , que passavam a incorporar os direitos constantes daDeclarao Universal. Ao transformar os dispositivos da Declarao em previsesjuridicamente vinculantes e obrigatrias, esses dois Pactos Internacionais constituemreferncias necessrias para o exame do regime normativo de proteo internacionaldos direitos humanos.

    A partir da elaborao desses Pactos forma-se a Carta Internacional dos DireitosHumanos (International Bill of Rights), integrada pela Declarao Universal de 1948 epelos dois Pactos Internacionais de 1966.

    Ambos os Pactos criaram um sistema prprio para a implementao dos direitoshumanos neles contidos.

    O Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais foi criado para

    dar fora jurdica aos preceitos relacionados aos Direitos Econmicos, Culturais eSociais estabelecidos na Declarao da Organizao das Naes Unidas de 1948, queno passava de uma mera recomendao, e foi adotado pela Organizao das NaesUnidas , em 1966, com o objetivo maior de incorporar os dispositivos da DeclaraoUniversal de Direitos Humanos de 1948 sob a forma de preceitos juridicamente

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    _______________________________________________________DIREITOS HUMANOSobrigatrios e vinculantes. Assim, para proteger tais direitos, foram estabelecidasobrigaes aos Estados-partes, cuja violao importa em responsabilidade internacional.

    Esse Pacto expandiu o rol dos direitos econmicos, sociais e culturais

    determinados pela Declarao Universal de 1948. A finalidade desse Pacto foi a deadotar uma linguagem de direitos que implicasse obrigaes no plano internacional.Criou, assim, obrigaes legais para os Estados-partes, permitindo a suaresponsabilizao internacional em caso de violao dos direitos ali enunciados.

    Segundo bem afirma Carlos Weis49, o Pacto se divide em cinco partes, quaissejam, (1) a autodeterminao dos povos e a livre disposio de recursos naturais eriquezas; (2) o compromisso dos Estados de implementarem os direitos previstos; (3) osdireitos propriamente ditos; (4) o exerccio de superviso por meio de apresentao derelatrios ao ECOSOC; (5) as normas referentes sua ratificao e entrada em vigor.

    Quanto aos direitos protegidos, esse Pacto visa a proteo das condies sociais,econmicas e culturais, destacando-se: o direito ao trabalho, o direito a condies justase favorveis de trabalho; o direito a formar sindicatos e participar deles; o direito degreve, exercido em conformidade com as leis de cada pas; o direito segurana social,inclusive aos seguros sociais; o direito proteo e assistncia familiar, especialmentes mes e s crianas; o direito educao e o direito a participar da vida cultural e dosbenefcios da cincia50.

    A distino mais importante entre os direitos econmicos, sociais e culturais e osdireitos civis e polticos est na sua aplicabilidade. Para se compreender melhor essadistino necessria a caracterizao das normas quanto eficcia e aplicabilidade.De acordo com esses parmetros, elas so divididas, segundo Jos Afonso da Silva 51,em:

    normas de eficcia plena e aplicabilidade direta, imediata, integral;

    normas de eficcia contida e aplicabilidade direta e imediata, masprovavelmente no integral;

    normas de eficcia limitada:

    - declaratrias de princpios institutivos ou organizativos;

    - declaratrias de princpio programtico.

    Assim, enquanto os direitos polticos individuais se caracterizam pelo exerccioimediato e a efetividade de instrumentos que assegurem a sua plena realizao, osdireitos sociais, econmicos e culturais se caracterizam pela no auto-aplicabilidade,enquadrando-se nas normas de eficcia limitada, declaratrias, de princpioprogramtico. Sendo assim, para se tornarem efetivos, dependem de uma ao

    progressiva, no sendo exigveis de imediato. Esto condicionados atuao do Estado,49 O Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais. In Direitos Humanos: Construo da Liberdade e Igualdade.Srie Estudos, n. 11. Out. 1998.50 LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. Proteo dos Direitos Humanos na Ordem Interna e Internacional. So Paulo: Forense, 1984.51Aplicabilidade das Normas Constitucionais. Ttulo II, Captulo 1,

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    _______________________________________________________DIREITOS HUMANOS... que deve adotar medidas econmicas e tcnicas, isoladamente ou atravs deassistncia e cooperao internacional, at o mximo de seus recursos disponveis, comvista a alcanar progressivamente a completa realizao dos direitos previstos pelopacto (artigo 12, 1., do Pacto).

    Nesse sentido, importante a observao feita por Thomas Buergental: Aoratificar este Pacto, os Estados no se comprometeram a atribuir efeitos imediatos aosdireitos nele enumerados. Os Estados se obrigam meramente a adotar medidas, at omximo dos recursos disponveis, a fim de alcanar progressivamente a plena realizaodestes direitos52.

    Para monitorar e implementar tais direitos, o tratado prev o mecanismo derelatrios a serem encaminhados pelo Estado-parte. Nestes, estaro medidas utilizadaspara a concretizao de tais dispositivos. Alm disso, devem constar os obstculosencontrados para isso. Tais relatrios sero analisados pelo Conselho Econmico e

    Social. Cabe ressaltar que, se a implementao de tais direitos um processoprogressivo, a edio de trs medidas nesse sentido deve ser feita em um curto espaode tempo, o que demonstra o empenho em cumprir aquilo que foi acordado.

    Da ausncia de eficcia plena decorre a discusso doutrinria a respeito dacaracterizao desses direitos como direitos positivos reais ou apenas como sugestespolticas. Para a Teoria Clssica do Direito, encabeada por Hans Kelsen, o direito sexiste quando h uma sano referente ao seu no cumprimento, no existindo direitopositivo sem esse mecanismo garantidor do seu mnimo de eficcia. Assim, faltaria aesses direitos sociais caractersticas mnimas de todo e qualquer direito, como apraticabilidade, a punibilidade, a clareza.

    Norberto Bobbio ressalta: As exigncias que se concretizam na demanda de umainterveno pblica e de uma prestao de servios sociais por parte do Estado spodem ser satisfeitas num determinado nvel de desenvolvimento econmico etecnolgico; e que, com relao prpria teoria, so precisamente certastransformaes sociais e certas inovaes tcnicas que fazem surgir novas exigncias,imprevisveis e inexeqveis, antes que essas transformaes e inovaes tivessemocorrido. Isso nos traz uma ulterior confirmao da sociabilidade e da no naturalidadedesses direitos53.

    Contra essa teoria se opem inmeros tericos, que afirmam a obrigatoriedade e

    naturalidade desses direitos que, apesar da necessidade de apoio estatal, tm suaeficcia garantida pela democracia social e pela prpria estruturao de muitos Estados,como o Estado brasileiro, que se prope na Constituio Federal a erradicar a pobrezae a marginalizao e reduzir as desigualdades sociais e regionais (artigo 3., inciso III).

    Vrios autores, ao constatarem a falta de eficcia e aplicabilidade imediata dessesdireitos, preferem utilizar-se do termo normas programticas, que seriam programas aserem realizados no futuro. Assim, caracterizariam-se como ideais a seremconcretizados pelos Estados, a depender das condies scio-polticas.

    Essa posio no pode gerar uma posio de indolncia do Estado e de ausncia

    de proteo s pessoas humanas. Esses direitos, considerados como um ideal, acabampor enquadrar-se mais no campo da poltica do que no campo do Direito. E, nessesentido, necessitariam de uma reforma, tendo em vista uma ao concreta do Estado

    52 PIOVESAN, Flvia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. So Paulo: Max Limonad, 1996).53A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campos, 1992.

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    _______________________________________________________DIREITOS HUMANOSvisando ampliao das formas de exigncia, pelos particulares, desses direitos. Assim,vm sendo criados mecanismos de cidadania como a ao civil pblica, a iniciativapopular e o mandado de injuno.

    Segundo David M. Trubek, os direitos sociais invocam o que mais bsico euniversal acerca dessa dimenso do Direito Internacional. Por trs dos direitosespecficos consagrados nos documentos internacionais e acolhidos pela comunidadeinternacional, repousa uma viso social do bem-estar individual. Isto , a idia deproteo a esses direitos envolve a crena de que o bem-estar individual resulta, emparte, de condies econmicas, sociais e culturais, nas quais todos ns vivemos, bemcomo envolve a viso de que o governo tem a obrigao de garantir adequadamente taiscondies para todos os indivduos54.

    Analisando o que ocorre na prtica, a comunidade internacional ainda toleraviolaes de tais direitos, o que no ocorre com os direitos civis e polticos,

    demonstrando que, ainda hoje, estes so considerados mais importantes que oseconmicos, sociais e culturais.

    Os direitos econmicos e sociais possuem apenas um sistema de relatrios, umavez que sua implementao somente poder ser apreciada se forem observados o graude desenvolvimento especfico de cada Estado e a atuao da Organizao das NaesUnidas por meio de suas agncias especializadas. Embora o Pacto dos DireitosEconmicos e Sociais tenha influenciado algumas Convenes Internacionais, como aCarta Social Europia, este ainda se apresenta com alto grau de dificuldade paraimplementao, uma vez que suas prescries so tomadas como standards noobrigatrios, ficando sob gide das autoridades nacionais o poder de transform-las

    em deveres coercitivos a serem respeitados pelo prprio Estado, pela sociedade oupelos indivduos em relao a outros indivduos.

    Enquanto o Pacto dos Direitos Civis e Polticos estabelece os direitos dosindivduos,