DIÁLOGOS SOBRE EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE: DESAFIOS PARA O
CURRÍCULO E PRÁTICA PEDAGÓGICA
As pesquisas que compõem o presente painel enfocam os desafios epistemológicos e
práticos para educar na perspectiva da diversidade por meio da implementação de
políticas públicas para a educação do campo e relações étnico-raciais. Analisa os limites
e as possibilidades de educar no sentido de visibilizar a pluralidade multiétnica e as
diferenças presentes no ambiente escolar e as tensões provocadas pelas mudanças
trazidas ao currículo e ao fazer pedagógico. As pesquisas foram realizadas em escolas
públicas do estado de Mato Grosso do Sul e tiveram como participantes docentes do
Ensino Fundamental. Optou-se pela abordagem qualitativa, análise documental, revisão
bibliográfica, questionários e entrevistas. As políticas públicas para a educação do
campo e a Lei 10.636/2003 surgiram das reivindicações dos movimentos sociais dos
povos do campo e dos movimentos sociais negros no Brasil. Os dados mostraram que a
implementação dessas normatizações ainda é incipiente no contexto escolar, além da
ausência de ações efetivas para a formação continuada para os professores, que atuam
nas escolas pesquisadas. Os dados mostraram que mesmo existindo políticas públicas
para a educação do campo, as mesmas ainda são pouco conhecidas pelo corpo docente
que atuam na escola pesquisada. Como resultante das reflexões sobre a Lei 10.636/2003
podemos afirmar que tem contribuído para a visibilização da cultura dos povos
africanos e afro-brasileiros e, ambivalentemente, observamos que há uma tensão
inerente às práticas pedagógicas como também muitos desafios epistemológicos para a
consolidação da educação das relações étnico-raciais. Os resultados apontaram as
dificuldades que as escolas e docentes possuem para atender esse preceito normativo e a
identificação do preconceito e da discriminação racial no cotidiano escolar.
Palavras-chave: Educação do Campo. Formação Docente. Relações Étnico-Raciais.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
10655ISSN 2177-336X
2
A DOCÊNCIA E A LEI 10.639/03: A DESCOLONIZAÇÃO CURRICULAR A
PARTIR DA PRÁTICA
Wilker Solidade da Silva
Universidade Federal da Grande Dourados
Maria Edinalva do Nascimento
Universidade Católica Dom Bosco
Resumo: O artigo expõe os resultados de pesquisa desenvolvida com algumas escolas
públicas estaduais do estado de Mato Grosso do Sul, versando sobre os desafios
epistemológicos e práticos para o combate às formas de preconceito racial presente no
ambiente escolar. Evidenciando os reflexos da intervenção legal para com as demandas
sociais, a pesquisa originária tem por objetivo principal identificar e debater as formas
de interpretação da implementação da Lei 10.639/2003 no currículo escolar sul-mato-
grossense e se utiliza como método para análise, o uso de questionários estruturados
sobre a temática aplicados à profissionais da educação, bem como a realização de
entrevista com alguns destes. Para interpretação das informações angariados a partir
disso, dialogamos com a definição de racismo e identidade étnica de D’Adesky (2009),
identidade e espaço escolar de Marques (2004) e Gomes (2008) e pensando no papel do
currículo, a interpretação de “Colonialidade” no viés decolonial de Quijano (2005) e
Walsh (2009). Os resultados apontaram as dificuldades que as escolas e docentes
possuem para atender esse preceito normativo e a identificação do preconceito e da
discriminação racial no cotidiano escolar. Demonstram ainda que não há uniformidade
no processo de implementação da referida Lei nos sistemas de ensino e nas escolas
públicas participantes, retratando um contexto ainda marcado por tensões, avanços e
limites que requer “paradigmas outros” para se pensar a diferença étnico-racial, e que
permita ao aluno uma compreensão de si como parte de uma sociedade plural, na qual a
diferença não deva apartar, e sim integrar indivíduos e saberes em prol ao
enriquecimento intelectual.
Palavras-chave: Currículo. Lei 10.639/03. Educação decolonial.
Introdução
Os últimos quinze anos marcam a concretização de arcabouços jurídicos que
podem ser considerados derivadas de uma política educacional voltada para a afirmação
da diversidade cultural e da materialização de uma Educação das Relações Étnico-
Raciais nas escolas brasileiras. A implementação da Lei 10.639/2003 que alterou os
artigos 26-A e 79-B da Lei 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
- LDB), a Resolução CNE/CP 01/2004 que define Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
10656ISSN 2177-336X
3
Afro-Brasileira e Africana, e o Parecer CNE/CP 03/2004, justificam todo o processo de
de lutas para a implementação das políticas de ações afirmativas na educação brasileira
nos seus diferentes níveis, etapas e modalidades educacionais. Estas conquistas são a
concretização de antigos anseios do Movimento Negro, bem como dos intelectuais,
educadores e diferentes organismos da sociedade civil que historicamente reivindicam
educação democrática, antirracista e a formulação de políticas públicas de promoção da
igualdade racial.
Partindo dessa premissa, e como parte das pesquisas desenvolvidas pelo Grupo
de Estudos e Pesquisas sobre Educação, Relações étnico-raciais e Formação de
professores (GEPRAFE/UFGD), a investigação a que este trabalho se insere tem por
objetivo principal identificar e debater as formas de interpretação da implementação da
Lei 10.639/2003 no currículo escolar sul-mato-grossense, em diálogo com as
percepções dos docentes envolvidos para com as formas de preconceito racial existente
no ambiente escolar. Para expor os passos da pesquisa e os resultados dela obtidos, o
texto está estruturado em dois momentos. Na primeira parte discorremos sobre a relação
entre a efetivação de uma legislação educacional envolvendo a temática étnico-racial e a
identidade social a ela relacionada e, em seguida, ponderamos sobre a realidade
observada nas escolas estaduais públicas do estado de Mato Grosso do Sul a partir de
análises pontuais no que se refere a legislação educacional.
Currículo e legislação escolar
A escola pela sua própria estrutura social reflete a organização da sociedade
pertencente, sendo ela permeada pela complexidade das relações entre os diferentes
sujeitos e grupos sociais. Este ambiente é um espaço onde os conflitos e as contradições
ocorrem frequentemente, resultado das diferentes inter-relações dos sujeitos que ali
transitam e se fazendo sentir as práticas das desigualdades sociais, econômicas, culturais
e raciais.
Almejando criar um espaço “comum” a todos, intervenções legislativas são
criadas e aplicadas de forma verticalizada sobre o seu cotidiano. Para Gomes (2008,
p.71) mais do que documentos oficiais, essas intervenções representadas pelas leis, os
planos, as diretrizes e as resoluções expressam não só resultados dos debates nacionais
em torno da questão educacional, mas os principais rumos, concepções ideológicas,
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
10657ISSN 2177-336X
4
tensões, divergências e acordos políticos que visam orientar a elaboração e
implementação das políticas públicas no país. Desse modo, e por compreendermos a
própria Lei 10.639/03 como uma resultante de ações político-sociais, propomos uma
reflexão sobre a interpretação da essência dessa lei no âmbito curricular.
A Lei 10.639/03, bem como outras com teor similar, aponta para a ampliação da
responsabilidade do Estado diante da complexidade e das múltiplas dimensões e tensões
em torno da questão racial, étnica e social. Sua aplicabilidade resultou do desenvolver
de planos de ação do Ministério da Educação, as secretarias de educação e as escolas na
efetivação de políticas e práticas que garantam o trato com as temáticas relacionadas à
saúde, trabalho, meio ambiente, terra, juventude, gênero, raça e etnia. A aplicabilidade
de sua tomada é justamente a atualização do currículo escolar para com a diversidade
cultural da nação brasileira, partindo da valorização da cultura africana e afro-brasileira,
bem como do reconhecimento de uma identidade multicultural de sua constituição
social.
Identificar quais grupos sociais são priorizados nos currículos e quais são
estereotipados é de suma importância para que se possa trabalhar a diversidade de forma
positiva e, consequentemente, superar concepções românticas acerca da diversidade,
que ainda residem nas atividades curriculares e metodológicas.
É passível de se esperar que o Estado desenvolva práticas e ações direcionadas
para a concretização e concatenação dos preceitos estipulados na Lei, em consonância
com as mudanças na estrutura curricular escolar. No caso específico das secretarias
estaduais e municipais de educação, através de revisão bibliográfica das produções da
área, mensuramos que várias delas pelo país têm explorado ações de formação voltadas
para a temática étnico-racial, tais como: cursos; seminários; organização de
coordenações ou equipes pedagógicas específicas para cuidar do processo de
implementação da Lei; elaboração junto aos Conselhos Estaduais e Municipais de
Educação de diretrizes curriculares estaduais e municipais para implementação da Lei
10.639/03, mas sempre através de ações isoladas (GOMES, 2008 p.13) em meio as
práticas cotidianas.
Para conhecermos como a legislação está sendo aplicada no estado de Mato
Grosso do Sul e quais os percalços que ainda embatem sobre sua execução, seguimos ao
próximo tópico com as fases da pesquisa envolvendo as escolas públicas estaduais.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
10658ISSN 2177-336X
5
Momentos da pesquisa
Com o intuito de obter um panorama sobre como os docentes recepcionam a Lei
10.639/03 e a aplicam em sua prática, a estrutura da pesquisa se dividiu em duas etapas.
Inicialmente formulamos um questionário semiestruturado que possibilitasse colher
informações sobre o envolvimento da escola e seus atores nas temáticas étnico-raciais.
O texto aqui impresso é uma reflexão de parte das questões que compunham os
formulários respondidos pelas escolas, e que permitiram manter uma interlocução com
as diretrizes orientadas pela legislação de referência para as questões raciais e étnicas no
ambiente escolar.
Em posse dos dados, organizamos mapas discursivos que expressam o grau de
relação do trabalho com as questões étnico-raciais nas instituições participantes, o qual
assinala a implementação ou não da Lei 10.639/2003 no seu cenário. Utilizando a rede
mundial de computadores para envio dos questionários e preenchimento dos mesmo,
contamos com a participação de 47 diretoras/es, 80 coordenadoras/es pedagógicas/os e
437 professoras/es, totalizando 564 sujeitos distribuídas por 179 escolas públicas
estaduais sul-mato-grossense.
Como prévia, o trabalho revelou detalhes importantes para a reflexão sobre as
práticas, espaços, avanços e limites na implementação da obrigatoriedade do ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nas instituições pesquisadas. Elencaremos
algumas reflexões oriundas deste contato com as escolas, mas antes é necessário
pautarmos que, para cada um dos apontamentos citados, existem características que só
poderiam ser melhor esmiuçadas se trabalhadas individualmente, pretensão para
trabalhos futuros, e que no texto aqui expresso trabalharemos apenas uma parcela do
contexto que envolve a temática nestes espaços.
Apontamentos norteadores
Com os dados, identificamos um valor significativo de profissionais da educação
do estado de Mato Grosso do Sul que conhecem a Lei 10.639/03, as Diretrizes
curriculares e o Parecer 003/2004, bem como a temática relacionada as questões étnico-
raciais no ambiente escolar. Ao todo soma-se 59% dos participantes. Cabe salientar que
os profissionais que serviram de amostragem para a pesquisa são profissionais da
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
10659ISSN 2177-336X
6
educação básica do ensino público estadual, e que possuem nível superior, licenciados e
habilitados para o trabalho docente. Com ciência disso, levantamos um questionamento
a mais: será que existe uma falta de interesse pessoal para com a temática, ou são
apenas reflexos do sistema de educação os 33% que afirmaram desconhecer a
legislação?
Entendemos que esse desconhecimento das questões étnico-raciais nas escolas
não se restringe apenas a epistemologia do racismo, discriminação ou formas de
preconceito. Este desconhecimento é diretamente proporcional ao modo como os
educadores lidam com questões mais gerais de ordem política e pedagógica,
simbolizando o próprio descompromisso com o público, o que é resultante muitas vezes
do ainda persistente desestímulo à carreira e à condição do docente.
Nessa mesma ordem, 64,1% dos participantes afirmam já ter presenciado
alguma situação que envolvesse preconceito ou discriminação racial no ambiente
escolar. Identificamos a partir deste dado e diálogo com as outras questões levantadas
uma possibilidade de interpretação. Tal possibilidade diz respeito à definição de
“preconceito e discriminação racial” exposto no questionário, pois levantamos a
hipótese de que é possível que os sujeitos não tenham refletido sobre o real significado
de discriminação racial, ou se o tenha, não consiga estabelecer um limiar entre a
discriminação e suas diversas formas de representação, como moral, social, religiosa, de
gênero e racial. Podemos refletir aqui sobre o que se considera no espaço de convívio
social, profissional ou familiar, atitudes preconceituosas. Isso dito porquê, quando
refizemos a pergunta dentro do mesmo questionário, obtivemos que 66% afirmaram não
haver situações de discriminação racial na escola, seja para com alunos, professores ou
demais funcionários. Como isso é possível, se 64,1% destes mesmos sujeitos
responderam já ter presenciado atitudes preconceituosas no ambiente escolar?
Esse fato demostra que os conhecimentos dos próprios docentes sobre as
relações étnico-raciais ou até mesmo sobre a definição de racismo ou preconceito racial
são superficiais ou inexistentes, cheios de estereótipos e por vezes confusos. Não
porquê os olhos estão cerrados propositalmente para isso, mas porque a formação que o
docente obtém não é desvinculada de seu convívio social extra sala, tampouco permite
retirar os conceitos que este internalizou durante toda sua vida, cabendo a formação
docente a parcela de responsabilidade que se refere a conscientização e, acima de tudo,
o esclarecimento definido dos conceitos que envolve a heterogeneidade social humana.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
10660ISSN 2177-336X
7
Se o professor partilhar do conhecimento sobre essas definições e sobre a
ideologia que elas acarretam, perceberá a complexidade do tema, contribuindo para o
desencadeamento do processo de afirmação de identidades e da cidadania da parcela de
51% da população brasileira, e não mais contribuirá para um engessamento de ideias
preconceituosas.
Essa identidade citada está, para Jacques D’Adesky (2001), ligada ao sentimento
de pertencimento do indivíduo para com o espaço e que, por sua vez, é um fator de uma
identidade coletiva deste próprio indivíduo. A identidade coletiva é perceber o “mesmo”
nos “outros”. Neste sentido, “o grupo torna-se uma coletividade cuja estruturação e
unificação permitem um acesso a um nível mais seguro de existência. De agregado, o
grupo passa a um estado mais consciente de si próprio” (D’ADESKY, 2001 p.41),
proporcionando o pertencimento do indivíduo a ele e por consequência, a sua não
exclusão. A escola é o ambiente propício para isso.
Isso porque ela é interpretada como um “espaço sociocultural”
(DAYREL,1996), marcada pelo tempo, espaço e cultura em que se insere, refletindo
padrões de comportamento, conflitos e contradições que permeiam a sociedade. E
exatamente por isso também é potencialmente um espaço para sua reinvenção e
reinterpretação.
Ainda dos questionários obteve-se que 92% dos professores afirmam considerar
a questão étnico-racial necessária para o currículo escolar, incluindo o marco de 20 de
novembro como dia da Consciência Negra. Entretanto, apenas 68% informaram
trabalhar tal temática em suas disciplinas. O livro didático é apontado como um dos
principais responsáveis por esse número por desempenhar um papel importante para a
efetivação do preconizado pela lei, ao apresentar a temática em seu conteúdo base.
Contudo, esse mecanismo é suficiente para se ter uma educação voltada para as relações
étnico-raciais de qualidade? Não podemos aferir isto por esta pesquisa, mas lembramos
que ele também pode se traduzir como um mecanismo limitador para o trabalho docente
por trazer o conteúdo em moldes a ser seguido, e ligando este fato a característica
mencionada sobre o desinteresse profissional, expõe-se um outro problema: o manuseio
do livro didático.
Se 92% afirmam ser a temática importante para o currículo e apenas 68% a
utilizam em suas aulas, é possível que os limites estabelecidos pelo zelo conteudista da
atividade docente, ou até mesmo a falta de diálogo entre a disciplina, o conteúdo e o
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
10661ISSN 2177-336X
8
espaço social de sua função, tenham engessado qualquer possibilidade de discussão.
Essa falta de diálogo reflete como um aspecto legitimador de uma monocultura que
valoriza as mesmas caricaturas condicionantes da educação europeizada, convergindo
assim na percepção negativa das possibilidades intelectuais dos não brancos, herança do
currículo perpetuado pelo colonialismo.
Vale lembrar que o colonialismo na América Latina foi uma relação política e
econômica na qual a soberania de uma nação subjugava outra (QUIJANO 2007)
forjando em seu bojo a colonialidade que atuava sobre várias dimensões do colonizado.
Essa colonialidade seguiu na estrutura social mesmo após o término do colonialismo e,
como resquício, se instaurou nos currículos escolares. Autores como Quijano (2005),
Mignolo (2005) e Walsh (2007) apresentam essa colonialidade intrínseca a partir de
quatro eixos: colonialidade do poder, do saber, do ser e da mãe-natureza. Estes eixos
possuem sentidos sociais, culturais, epistêmicos, existenciais e políticos, e para Walsh
(2007), atuam de maneira a afirmar a hegemonia epistêmica europeia, ao passo que
silencia, nega e rejeita outras formas de racionalidade e história.
Essa colonialidade do currículo conserva a ideia de inexistência do racismo no
seu ambiente de trabalho, resultando no que pode ser entendido como violências
simbólicas transcritas em suas práticas, e que tem como efeito a permanência de
posicionamentos que propiciam a discriminação e subalternização de povos diversos.
A descolonização do currículo só é possível a partir de um olhar crítico para a
história e a formação social da nação brasileira. O trabalho desenvolvido pelas
secretarias de Educação no que tange ao evidenciamento das relações étnico-raciais,
somados à gestão da escola viabilizam os processos de formação de indivíduos aptos
para essa ação. No estímulo e na construção de condições de processos de formação
continuada, que se refletem na prática docente, o debate sobre o modelo engessado do
currículo se torna ferramenta para a construção de práticas pedagógicas condizentes
com a Lei 10.639/2003 e suas Diretrizes.
Essa participação estatal para o cumprimento da Lei se faz positiva quando
supomos que problemática do racismo e do preconceito em sala, e do não envolvimento
docente por meio de sua disciplina seja resultante de uma formação defasada dos
professores, ou até mesmo da formação indiferente a tal perspectiva por ter se efetivado
antes dos anos 2003, ano de promulgação da Lei que altera o currículo.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
10662ISSN 2177-336X
9
Contudo, a investigação indicou que 83% dos profissionais em educação não
participaram de formação continuada relacionada a temática étnico-racial. Deficiência
do poder público, da escola em não manter os professores conectados com essas
formações ou desinteresse dos mesmos quando este foi oferecido? Não conseguimos
definir isso neste ensaio.
O que podemos aferir é que um número muito pequeno de profissionais realiza
tais cursos, e isso não somente nas escolas do estado de Mato Grosso do Sul, pois
conforme autores da área existem ainda hoje uma cultura de atitudes celulares, no qual o
professor ou escola que se interessa pela discussão étnico-racial é que buscam
capacitação, individual ou coletiva, corroborando com outros fatores que contribuem
para o atraso e enfraquecimento do trabalho com a diversidade na escola.
Ana Lúcia Valente (2005), enfatiza que para enfrentar estes desafios se faz
necessário a superação da dicotomia entre uma suposta questão social desvencilhada da
questão racial no país, pois em sua opinião a questão social brasileira só pode ser
compreendida a luz do contexto racial, pois se trata de articular valores universais com
as especificidades étnico-culturais (VALENTE, 2005, p.48). Como uma crítica as
formações continuadas neste contexto, a autora defende que a formação docente para o
enfrentamento da questão racial na educação não se resolve com capacitações de “final
de semana”, pois esta precisa repensar as políticas sobre a “capilaridade” nas relações
pedagógicas e uma mudança de olhar sobre o racismo nos espaços escolares. É
necessário então pensar essa formação no contexto da problemática da formação em
geral, superar o dualismo entre prática e teoria e politizar o debate, já que tal questão
envolve relações de poder e conflitos históricos nas relações sociais brasileiras.
Traduzimos a partir desse discurso que tais análises para a escola, a prática
pedagógica e sua relação com a temática racial, se transformam numa perspectiva de
dúvida e incapacidade teórica/prática de enfrentar os conflitos iminentes nas discussões
étnico-raciais e educação, sendo importante a partir daí salientar a necessidade de uma
proposta pedagógica e didática que entoe um debate permanente entre os docentes,
gestores e sociedade, num viés educativo conflitual, bem como numa formulação de
políticas educacionais de formação inicial e continuada que possam dar vazão a
interpretação da história com uma abordagem de construção de saberes, e não de
reprodução.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
10663ISSN 2177-336X
10
Dos entrevistados, 78% dos respondentes afirmaram que a escola trata
adequadamente as questões étnico-raciais, dispondo de biblioteca e matérias didático-
pedagógicos para trabalharem o preconizado pela legislação. Informação essa
confrontada com os 22% que definiram não ser real esse apoio da escola e não existir
cobertura física e didático-pedagógica para esta discussão. Como é possível que o
professor consiga ter a execução desse papel se a escola não oferece uma base sólida
para tanto? 78% é um valor importante, principalmente se pensarmos nos 68% que
afirmaram trabalhar a temática em suas disciplinas. Contudo, onde estão os 10% de
diferença entre os que desempenham sua função para com a relações étnico-raciais e os
que têm a possibilidade e não a executa?
Este questionar expõe outra deficiência que a legislação em si não consegue
sanar: a da sua efetivação frente à vontade individual. É real no Brasil a ineficácia de
leis que existem no papel, mas não se executam no país. Na educação não é diferente,
isso por dependerem da aplicabilidade viabilizada pelo gestor responsável pela
instituição, este que pode obedecer a interesses pessoais, políticos ou da própria
instituição, que por vezes pode não contemplar temas tópicos, como as relações raciais
ou de gênero.
A escola sozinha não faz a diferença, até mesmo porque esta é subordinada a
uma extensa relação organizacional, mas é passível dizer que aliadas a elaboração de
políticas públicas eficazes, faz-se necessário que as escolas, os seus profissionais
promovam um amplo movimento, tendo como horizonte a discussão e
redimensionamento dos currículos, dos materiais pedagógicos com relação às etnias, a
comunidade negra, incluindo ainda nas manifestações escolares, nas discussões as
diversidades culturais e, principalmente, as questões referentes aos mesmos deveres e
direitos garantidos pela Constituição Federal de 1988.
Como síntese, elucidamos agora alguns apontamentos conclusivos sobre as
questões que elencamos: ainda é muito superficial o conhecimento teórico e prático das
dinâmicas estabelecidas pela construção de uma legislação, representada pela Lei
10.639/03 nas escolas públicas estaduais sul-mato-grossenses. Os professores conhecem
a Lei (59%), seja por contato direto ou indireto, mas isso não significa que os mesmo a
compreendem.
No que se refere as relações do profissional entrevistado com o preconizado pela
legislação no exercício de sua função, seu interesse pelas abordagens que ela sugere e
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
10664ISSN 2177-336X
11
sua opinião sobre a temática defendida em pauta, aferimos que muitos educadores estão
trabalhando a questão étnico-racial em sala de aula, mas nos colocamos a pensar sobre
como isto está sendo feito. Alarmante foi a quantidade de professores que disseram não
desejarem realizar formação continuada no viés das relações étnico-raciais, pois isso
expõe uma posição conservadora para com as atitudes de preconceitos. Conservadora no
sentido de que, desejar permanecer no mesmo paradigma pode contribuir para que a
quebra deste seja impossibilitada, ou até mesmo, realizada de forma deturpada. Isso no
entendimento de que o espaço escolar é um lugar em que vários atores se posicionam, e
esse posicionamento reflete na formação social de indivíduos. Estes indivíduos, que de
forma receptiva se embebedam das opiniões por eles recebidas, transmitem e
consolidam tais opiniões.
Podemos observar, de maneira geral, que a maioria dos entrevistados não dão
conta da complexidade posta pela diferença étnico-racial e esporadicamente contempla
a diversidade étnico-racial no seu trabalho docente. Os resultados apontam para os
desafios epistemológicos e práticos posto a formação docente, pois essas legislações
requerem paradigmas outros para se pensar a diferença étnica, ou continuará reforçando
os processos coloniais e relações de poder e saber vigentes na prática docente.
Existe, no entanto, um empecilho a ser enfrentado ao se pensar no currículo, a
questão da diversidade cultural: fazer com que não se torne uma ameaça à preservação
da própria identidade seja da cultura europeia/colonizadora ou dos povos colonizados,
neste caso, indígenas e africanos. Logo, a hibridização de saberes das diversas culturas
deve levar em consideração os aspectos culturais, sociais e econômicas de cada
sociedade.
Dessa forma, se um professor não deseja realizar um curso de formação na
temática da Lei 10.639/03, só pode significar que ele não identifica a presença da
diferença étnico-racial, tampouco a necessidade de repensar sobre as características
dessa diferença na formação social. E como consequência de sua ação, pode contribuir
para a construção de outros indivíduos que irão carregar essa mesma posição, tornando
assim mais difícil a luta pela igualdade e equidade étnico-racial e a educação
democrática e antirracista.
Por fim, é papel da gestão escolar o trato com a exigência legislativa, pois se
entendemos a escola enquanto facilitadora/agilizadora da ação docente, ela pode
também se traduzir como uma barreira para o bom desempenho dessa ação, pois quando
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
10665ISSN 2177-336X
12
ela não disponibiliza ferramentas necessárias para o desenvolver de sua função básica,
ela está impondo limites para a potencialidade, não do professor, mas também do aluno,
que não irá render em toda sua potencialidade devido à ausência de elo entre o mundo
do conhecimento científico de qualidade e o seu.
Especificamente no caso da gestão, é importante ressaltar que a implementação
da Lei 10.639/2003 nas escolas públicas relaciona-se à democratização da gestão
escolar, ou seja, da instituição de canais democráticos que garantam a efetiva
participação, de aprendizado do jogo democrático e do repensar das estruturas de poder
autoritário, que permeiam as relações sociais e as práticas educativas (DOURADO,
2003).
Considerações
A democratização da gestão escolar, se efetivada de forma integral, permite que
a escola se faça uma extensão da sociedade que permita se moldar às necessidades da
própria sociedade, não ao modelo desejado a ela. Gestores, professores, pais e alunos
necessitam caminhar neste rumo, e o ensino sul-mato-grossense ainda precisa de alguns
ajustes para se fixar neste trilho.
Expomos neste ensaio uma pequena parcela da pesquisa que o Grupo
GEPRAFE/UFGD desenvolve com as escolas estaduais do estado de Mato Grosso do
Sul. Este recorte já nos revelou o grande desafio que ainda espreita o ensino no que se
refere a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. De
forma geral, é possível dizer que mesmo as mudanças almejadas para as práticas
docentes, o currículo e o cenário escolar ainda não se aproxima do esperado pela
promulgação da Lei, muita coisa mudou desde então. Há um movimento crescente no
espaço acadêmico e, consequentemente, da educação básica que propicia mudanças
vindouras, e respaldados nessa perspectiva é que continuamos nossa investigação a fim
de indicar pontos a serem trabalhados com mais detalhamento para que potencialize o
preconizado pelas Leis 10.639/03 e 11.645/08.
Os resultados apontaram as dificuldades que as escolas e docentes possuem para
atender esse preceito normativo e a identificação do preconceito e da discriminação
racial no cotidiano escolar. Demonstram ainda que não há uniformidade no processo de
implementação da referida Lei nos sistemas de ensino e nas escolas públicas
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
10666ISSN 2177-336X
13
participantes, retratando um contexto ainda marcado por tensões, avanços e limites que
requer “paradigmas outros” para se pensar a diferença étnico-racial, e que permita ao
aluno uma compreensão de si como parte de uma sociedade plural, na qual a diferença
não deva apartar, e sim integrar indivíduos e saberes em prol ao enriquecimento
intelectual
Referências
BRASIL. Lei nº. 10.639 de 09 de janeiro de 2003. Inclui a obrigatoriedade da temática
“História e Cultrura Afro-Brasileira” no currículo oficial da rede de ensino. Diário
Oficial da União, Brasília, 2003.
CAVALLEIRO, E. Discriminação racial e pluralismo em escolas da cidade de São
Paulo. In: Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal n.10.639/2003.
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. – Brasília: Ministério
da Educação, 2005.
DAYREL, J. (org). Múltiplos olhares sobre a educação e cultura. Belo Horizonte:
UFMG, 1996.
D’ADESKY, Jacques. Pluralismo étnico e multiculturalismo: racismos e anti-racismos
no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2001.
DOURADO, L. F. (Org.) Gestão democrática: a perspectiva dos dirigentes escolares
da rede municipal de Ensino de Goiânia-GO. Goiânia: Alternativa, 2003.
GOMES, Nilma Lino. (Org). Um olhar além das fronteiras: educação e relações
raciais. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
MIGNOLO, Walter. A colonialidade de cabo a rabo: o hemisfério ocidental no
horizonte conceitual da modernidade. In: LANDER, E. (Org.). A colonialidade do
saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires:
Clacso, 2005.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder y clasificación social. In: CASTRO-
GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL, R. (Orgs.). El giro decolonial. Reflexiones para una
diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Universidad Javeriana-
Instituto Pensar, Universidad Central-IESCO, Siglo del Hombre Editores, 2007.
SILVA, Thomaz Tadeu da (Org.). Alienígenas na sala de aula: uma introdução aos
estudos culturais em educação. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1995.
VALENTE, Ana Lúcia. Ação afirmativa, relações raciais e educação básica. Rev.
Bras. Educ. [online]. 2005, n.28, pp. 62-76. ISSN 1413-2478.
WALSH, Catherine. Interculturalidad Crítica/Pedagogia decolonial. In: Memórias del
Seminário Internacional "Diversidad, Interculturalidad y Construcción de Ciudad".
Bogotá: Universidad Pedagógica Nacional 17-19 de abril de 20
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
10667ISSN 2177-336X
14
EDUCAÇÃO DO CAMPO: POLÍTICAS PÚBLICAS E FORMAÇÃO DOCENTE
Gisele Morilha Alves
Universidade Católica Dom Bosco
Hildete Pereira da Silva Bolson
Universidade Católica Dom Bosco
das Políticas Públicas para a Educação do Campo e de autores/as e
pesquisadores/as que produzem sobre a Educação do Campo.
Posteriormente, pesquisamos sobre a formação docente tanto nas políticas
públicas quanto nos autores/as e pesquisadores/as que defendem uma formação crítica e
emancipatória.
Num terceiro momento, aplicamos os questionários, no qual optamos por
perguntas abertas relacionadas às políticas públicas para a educação do campo e sobre a
formação docente, pessoalmente, em data, horário e local pré-agendados, por telefone,
com as três professoras que aceitaram participar da pesquisa. As três professoras
receberam neste artigo nomes fictícios, atuam nos anos iniciais do Ensino Fundamental,
em uma escola municipal de Campo Grande, situada na zona rural do estado de Mato
Grosso do Sul. Os encontros aconteceram em dezembro de 2015 e em janeiro de 2016.
Políticas públicas para a educação do campo
Segundo aponta Molina (2012, p. 585):
Na história da EDUCAÇÃO DO CAMPO, o debate e a compreensão
sobre o tema das políticas públicas torna-se relevante porque, desde o
seu surgimento, a Educação do Campo se configura como demanda
relativa à garantia do direito à educação para os trabalhadores rurais:
inicialmente com a luta dos Sem Terra para garantir o direito à
educação nas áreas de Reforma Agrária, com as exigências para a
criação do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária
(PRONERA), e, na sequência, com a ampliação das lutas pela garantia
do direito à educação para todos os povos do campo, organizadas e
desencadeadas coletivamente a partir da I Conferência Nacional de
Educação Básica do Campo, em 1998. (Destaque da autora).
As políticas públicas para a educação do campo surgem em oposição à classe
latifundiária, em oposição à educação rural que buscava subalternizar e explorar os
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
10668ISSN 2177-336X
15
povos do campo. Assim, os povos do campo, organizaram duas conferências nacionais
por uma educação do campo, ambas em Luziânia/GO.
A I Conferência Nacional Por uma Educação Básica do Campo, ocorrida de 27 a
31 de julho de 1998, definiu algumas proposições, dentre elas que a educação do campo
precisa: resgatar os valores que se contrapõem ao individualismo, ao consumismo e
demais contravalores que degradam a sociedade; prestar atenção às raízes da mulher e
do homem do campo, que se expressam em culturas distintas, percebendo os processos
de interação e de transformação; resgatar o direito dos povos do campo à educação
básica, pública, ampla e de qualidade; partir das linguagens que esses povos dominam e
combinar a leitura do mundo com a leitura da palavra; e, a partir de práticas e de estudos
científicos, aprofundar uma pedagogia que respeite a cultura e a identidade dos povos
do campo. Durante a I Conferência (1998), foi proposto ainda “[...] garantir o acesso à
cultura tecnológica contemporânea desde que apropriada” (ARROYO, 2009, p. 166).
A II Conferência Nacional Por uma Educação do Campo, que aconteceu em
2004, propôs cinco frentes de discussão: ampliar as reflexões que estavam centradas na
educação básica e dar ênfase à educação superior e pós-graduação para os povos do
campo; inserir a educação do campo na agenda política e normativa, por meio das
manifestações sociais, cartas e declarações elaboradas no final das reuniões e encontros;
consolidar arranjos governamentais construídos por meio das parcerias com as
universidades e movimentos sociais; ampliar a produção acadêmico-científica de
natureza coletiva, que teve início nos anos de 1990 com produções do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); e ampliar os embates judiciais contraditórios,
desde que fortaleçam a efetivação dos direitos sociais, pois há os que são favoráveis às
políticas afirmativas e aqueles que, em nome da igualdade formal, as condenam
(SOUZA, 2012).
Nesse contexto de reivindicações dos povos do campo é que surgem as políticas
públicas, dentre elas, citarei algumas que são importantes para o movimento dos povos
do campo e que constaram no questionário:
– A criação do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária
(PRONERA) em 1998, é uma política pública de educação envolvendo
trabalhadores(as) das áreas da reforma agrária. Tem como objetivo fortalecer a
educação nas áreas da reforma agrária propondo projetos educacionais e utilizando
metodologias voltadas para a especificidade do campo, tendo em vista contribuir para a
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
10669ISSN 2177-336X
16
promoção do desenvolvimento sustentável. Apresentam como princípios político-
pedagógicos a relação indissociável da educação e do desenvolvimento territorial como
condição essencial para a qualificação pautada em quatro princípios básicos: inclusão,
participação, interação e multiplicação (BRASIL, 2004).
Na região rural em que a escola pesquisada se situa não há acampados e
assentados do Movimento dos Sem Terra (MST). É uma região onde há muitos sítios,
chácaras e pequenas propriedades rurais.
– O PROJOVEM CAMPO – SABERES DA TERRA - criado em 2005 tem
como objetivo desenvolver políticas públicas de educação do campo e de juventude que
oportunizem a jovens agricultores(as) familiares, com idade entre 18 a 29 anos,
excluídos do sistema formal de ensino, a elevação de escolaridade em Ensino
Fundamental com qualificação profissional inicial respeitando as características,
necessidades e pluralidade de gênero, étnico-racial, cultural, geracional, política,
econômica e produtiva dos povos do campo (BRASIL, 2016a).
Volto a ressaltar que a escola do campo pesquisada não oferece salas de
Educação Infantil e de Educação de Jovens e Adultos (EJA). A escola oferece práticas
agrícolas e zootécnicas do 6º ano de Ensino Fundamental ao 3º ano do Ensino Técnico
Agrícola.
– As Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo
(2002) que “estabelece diretrizes complementares, normas e princípios para o
desenvolvimento de políticas públicas de atendimento da Educação Básica do Campo”,
foi complementada pela Resolução no. 2, de 28 de abril de 2008.
As professoras quando questionadas se já leram, estudaram ou discutiram as
Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo (2002)
responderam:
Não. (Professora Francielle).
Sim. Em reuniões de elaboração do Projeto Político Pedagógico da
escola. (Professora Sofia).
Estudei as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas
Escolas do Campo na pós-graduação em Educação do Campo
(UFMS/EaD). Elas enfatizam a importância de se manter a identidade
dos povos do campo, por meio de uma educação escolar de qualidade
direcionados ao mundo do trabalho e desenvolvimento social.
(Professora Janete).
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
10670ISSN 2177-336X
17
As respostas das professoras acima citadas nos mostram o quanto é importante
que o corpo docente da escola do campo conheça as Diretrizes Operacionais para a
Educação Básica nas Escolas do Campo (2002) para entender e respeitar a identidade
dos povos do campo, sua cultura, suas especificidades e seus saberes.
Questionei as docentes se há diferença em trabalhar em uma escola urbana e
trabalhar em uma escola do campo e obtive as respostas.
Sim. A maioria dos pais não são alfabetizados e não ajudam seus
filhos nas tarefas escolares. (Professora Francielle).
Sim. O contexto é outro, as relações que fazemos entre a vivência que
eles carregam com o que colocamos em sala de aula é totalmente
diferente de uma escola urbana. (Professora Sofia).
Sim. A diferença é que a escola do campo tem suas especificidades e
devem ser valorizadas oportunizando aos alunos aprenderem por meio
de seus conhecimentos prévios. (Professora Janete).
As professoras percebem que há diferenças entre uma escola do campo e uma
escola urbana. Uma elas enfatiza o analfabetismo dos pais e falta de participação dos
mesmos nas atividades escolares, as outras duas percebem as especificidades dos povos
do campo e o quanto é importante trabalhar contextualizando essas questões. São alunos
e alunas que já possuem conhecimentos agropecuários aprendidos com seus pais em
suas casas.
Contudo, a escola não oferece um calendário que respeite essas especificidades,
conforme as três professoras informaram no questionário, fato que acaba gerando faltas
aos alunos e alunas em alguns períodos do ano letivo, porque as crianças estão ajudando
aos pais no plantio/colheita ou porque estão viajando com seus pais para acompanhá-los
nas exposições agropecuárias.
Questionadas sobre se há materiais e livros didáticos específicos para a
Educação do Campo, as professoras responderam:
Não são materiais específicos para o campo. O material é o mesmo
das escolas urbanas do município, os professores adaptam para que se
aproxime um pouco da realidade dos alunos. A Secretaria de
Educação está com um olhar diferente para esta modalidade da
educação e para um futuro próximo pode ser que tenha material
específico. ( Professora Janete)
Não existem livros didáticos diferenciados, o que existe é a
metodologia que se aplica que a torna diferente. Os projetos que são
desenvolvidos fora de salas de aula tornam alguns momentos de
aprendizagem bem diferentes de uma escola urbana. Como andar a
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
10671ISSN 2177-336X
18
cavalo, cuidar da horta, entender a rotina do aviário, da suinocultura,
da piscicultura, enfim. São nesses momentos com professores
específicos do campo que esses alunos provam de uma metodologia
contextualizada em sua vivência. (Professora Sofia).
Não. Existem aulas técnicas agropecuárias. (Professora Francielle).
As professoras relatam que na escola do campo não há materiais e livros
didáticos específicos para a realidade do campo, mas que a partir do 6º ano do Ensino
Fundamental até o 3º ano do Ensino Técnico Agrícola há aulas práticas de agricultura,
bovinocultura, suinocultura, avicultura e piscicultura. Podemos inferir que do 1º ano do
ao 5º ano do Ensino Fundamental se assemelha às escolas urbanas por não haver aulas
práticas.
– A criação da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade
(SECAD), em 2004, também é considerada uma conquista, pois há programas voltados
à Educação do Campo. Na Secretaria Municipal de Educação de Campo Grande, há a
Coordenadoria da Diversidade e dentro dela o Núcleo de Educação do Campo.
– A criação do Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em
Educação do Campo (PROCAMPO), em 2010, apoia a implementação de cursos
regulares de licenciatura em educação do campo nas instituições públicas de ensino
superior de todo o país, voltados especificamente para a formação de educadores para a
docência nos anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio nas escolas rurais
(BRASIL, 2016b).
As três professoras pesquisadas são graduadas em Pedagogia. As professoras
Janete e Sofia fizeram pós-graduação lato sensu pelo Programa de Pós-graduação em
Educação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, na modalidade EaD. As
práticas educativas das professoras Janete e Sofia se diferenciam das práticas de seus
colegas porque procuram contextualizar suas aulas à realidade campesina.
– A Escola Ativa (2010) tem como objetivos: apoiar os sistemas estaduais e
municipais de ensino na melhoria da educação nas escolas do campo com classes
multisseriadas, fornecendo diversos recursos pedagógicos e de gestão; fortalecer o
desenvolvimento de propostas pedagógicas e metodologias adequadas a classes
multisseriadas; realizar formação continuada para os educadores envolvidos no
programa em propostas pedagógicas e princípios políticos pedagógicos voltados às
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
10672ISSN 2177-336X
19
especificidades do campo e fornecer e publicar materiais pedagógicos que sejam
apropriados para o desenvolvimento da proposta pedagógica (BRASIL, 2016c).
A escola pesquisada não oferece classes multisseriadas, as turmas são regulares
do 1º ano do Ensino Fundamental ao 3º ano do Ensino Técnico Agrícola, mas no Estado
de Mato Grosso do Sul há escolas do campo que oferecem classes multisseriadas.
Os dados mostraram que as professoras Janete e Sofia conhecem as Diretrizes
Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo (2002), mas não conhecem
as demais políticas e programas aqui citados. O desconhecimento implica na não
implantação/implementação das mesmas.
Neste sentido, defendemos ser necessário o conhecimento, o estudo, as
reflexões, a implantação/implementação, pelos/as educadores/as que trabalham nas
escolas do campo, das Políticas Públicas e Programas para a Educação do Campo, pois,
se elas existem é porque foram reivindicadas pelos povos do campo e se foram
reivindicadas é porque são necessárias.
Formação docente para a educação do campo: uma discussão importante
Nossa pesquisa nos mostrou que há políticas públicas e programas que
incentivam a formação do/a docente para atuar em escolas do campo.
O/a docente, ao sair do curso de formação e ingressar em uma escola, insere-se
em um espaço que já tem uma história, que já possui rotinas, que segue regulamentos e
que lhe apresenta certas condições de trabalho.
Entendemos, com Contreras (2012), que a autonomia do/a professor/a está
ligada ao processo político, ao processo de emancipação e de autonomia social, porque
ele/a precisa buscar a transformação do ensino para torná-lo mais justo e educativo, e
somente conseguirá isso em conjunto com os movimentos sociais, buscando justiça e
igualdade, partindo do compromisso de respeitar as diferenças presentes na escola.
Perguntamos às professoras em quais momentos a comunidade de pais, as
famílias das crianças são chamadas a participar de atividades na escola e as mesmas
responderam:
Somente nas apresentações culturais e reuniões de pais. (Professora
Sofia).
A comunidade e família das crianças participam das reuniões
bimestrais e, eventualmente, em algum evento nas datas
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
10673ISSN 2177-336X
20
comemorativas ou culminância de projetos realizados na escola.
(Professora Janete).
Estão presentes nas datas comemorativas: Dias dos Pais, Dia das
Mães, Festa Julina e Formaturas. (Professora Francielle).
Os dados mostraram que não há presença dos pais e da comunidade escolar na
elaboração do Projeto Político-Pedagógico da escola. Essa é uma questão pontuada nas
Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo (2002) como
importante. A participação da comunidade local, a participação dos pais nas atividades
escolares, na elaboração do Projeto Político-Pedagógico é uma forma de conhecer as
especificidades da população campesina, conhecer seus interesses, seus saberes, sua
cultura entre outros, é fazer da escola um espaço democrático e participativo.
Pavan (2005, p. 172) pontua em sua tese que “ser educador(a) não é nem
vocação nem destino”. A compreensão dessa dimensão da formação docente
problematiza a questão do comprometimento com a profissão escolhida e com suas
implicações.
Nesse sentido defendemos que o/a educador/a que atua nas escolas do campo
precisa ter esse comprometimento com os povos do campo, de ouvir e dialogar com
seus saberes. É preciso comprometimento com as questões campesinas. Buscar
conhecer suas reivindicações, seus direitos para apoiá-los nessa luta.
Com Pavan e Lopes (2007, p. 31), compreendemos que promover uma formação
crítico-reflexiva é “[...] fazer com que todos os participantes desse processo passem a se
sentir responsáveis também pelas práticas sociais, políticas, econômicas, identificando e
denunciando incoerências e sugerindo mudanças quando necessárias”.
Na perspectiva da formação de professores para atuar nas escolas do campo,
Arroyo (2012, p. 359) pontua que “o primeiro significado a extrair dessa história é a
superação da formação de um protótipo único, genérico de docente-educador para a
formação básica”. O autor afirma que, sem a superação dessa formação, os cursos de
formação docente continuarão privilegiando a transferência para as escolas do campo de
professores da cidade, sem vínculos com a cultura e os saberes dos povos do campo.
Arroyo pontua que uma estratégia dos movimentos sociais do campo é defender
cursos como política afirmativa.
Na proposta do Plano Nacional de Formação de Profissionais da
Educação do Campo, o plano é justificado como ação afirmativa para
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
10674ISSN 2177-336X
21
correção da histórica desigualdade sofrida pelas populações do campo
em relaçãoao seu acesso à educação básica e à situação das escolas do
campo e de seus profissionais. (ARROYO, 2012, p. 362).
Os dados mostraram que os/as professores/as que não dialogam com os saberes
campesinos, que não procuraram fazer uma formação específica em educação do campo
(inicial ou continuada), que não procuraram realizar leituras (autoformação) sobre a
educação do campo ignoram esses saberes e especificidades em suas práticas educativas
em sala de aula.
Algumas considerações possíveis ...
A pesquisa realizada nos possibilita realizar algumas considerações a partir dos
dados produzidos. A primeira delas é a de que os povos do campo quando mobilizados
questionam as condições atuais da educação rural imposta e reivindicam a educação do
campo que respeite os seus direitos e que dialogue com seus saberes, com sua cultura,
com seu jeito de ser, ver e estar no mundo.
As políticas públicas reivindicadas pelos povos do campo existem, mas ainda
precisam ser implantadas e implementadas nas escolas do campo. Todas as pessoas que
trabalham nas escolas do campo precisam conhecê-las, estudá-las, discuti-las no âmbito
da escola para que os direitos já conquistados possam ser respeitados, como o direito a
um calendário específico, materiais didáticos que contemplem também os saberes do
campo, participação da comunidade na construção do Projeto Político-Pedagógico da
escola, entre outros.
Outra questão importante é assegurar que o corpo docente possa realizar
momentos de leituras, estudos e debates sobre as especificidades da educação do campo
in loco, ou seja, momento para a formação continuada do professor e da professora
dentro da própria escola com seus pares. Essa formação é importante para que possam
conhecer as políticas públicas para a educação do campo e para que possam ter acesso
às pesquisas e artigos sobre a temática.
Defendemos uma formação específica para os professores/as das escolas do
campo, uma formação que os ajudem a questionar e denunciar as injustiças históricas,
políticas, culturais, econômicas e sociais construídas ao longo do tempo.
Neste artigo, não temos a intenção de finalizar a discussão até porque os dados
nos trouxeram outras questões. Também não culpabilizamos a escola, os docentes, a
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
10675ISSN 2177-336X
22
coordenação pedagógica, e tão pouco, a gestão porque entendemos que precisamos
questionar as Instituições de Educação Superior e sua grade curricular. Nos cursos de
licenciatura são oferecidas disciplinas que discutem a educação do campo?
Referências
ARROYO, Miguel Gonzales. A educação básica e o movimento social do campo. In:
ARROYO, Miguel Gonzales; CALDART, Roseli Salete; MOLINA, Mônica Castagna
(Orgs.). Por uma educação do campo. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2009. p. 65-86.
______. Formação de Educadores do Campo. In: CALDART, Roseli Salete et al.
(Orgs.). Dicionário da educação do campo. Rio de Janeiro; São Paulo: Escola
Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio; Expressão Popular, 2012. p. 359-365.
BOGDAN, Robert; BIKLEN, Sari Knopp. Investigação qualitativa em educação:
uma introdução à teoria e aos métodos. Tradução Maria João Alvarez, Sara Bahia dos
Santos e Telmo Mourinho Baptista. Portugal: Porto Editora; LDA, 1994.
BRASIL. Ministério da Educação. Resolução CNE/CEB nº 1, de 3 de abril de 2002.
Institui diretrizes operacionais para a educação básica nas escolas do campo. Disponível
em: <http:// www.red-ler.org/directrizes-educacao-campo.pdf>. Acesso em: 24 fev.
2012.
______. Ministério da Educação. Resolução n° 2, de 28 de abril de 2008. Estabelece
as diretrizes complementares, normas e princípios para o desenvolvimento de políticas
de atendimento da Educação Básica do Campo. Disponível em: <http://portal.mec.gov.
br/arquivos/pdf/resolucao_2.pdf>. Acesso em: 8 fev. 2016.
______. Ministério da Educação. Projovem Campo – Saberes da Terra. Disponível
em: <http://portal.mec.gov.br/projovem-campo--saberes-da-terra>. Acesso em: 8 fev.
2016a.
______. Ministério da Educação. Programa de Apoio à Formação Superior em
Licenciatura em Educação do Campo (Procampo) 2010. Disponível em: <http://
portal.mec.gov.br/tv-mec>. Acesso em: 8 fev. 2016b.
______. Ministério da Educação. Escola Ativa 2010. Disponível em: <http://portal.
mec.gov.br/escola-ativa>. Acesso em: 8 fev. 2016c.
______. Ministério do Desenvolvimento Agrário. Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária. Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária –
PRONERA - Manual de Operações. 2004. Disponível em: <http://www.incra.gov.br/
sites/default/files/programa_nac_educacao_reforma_agraria.pdf>. Acesso em: 8 fev.
2016.
CONTRERAS, José. Autonomia de professores. Tradução Sandra Trabucco
Valenzuela. São Paulo: Cortez, 2012.
GIL, Antonia Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4.ed. São Paulo: Atlas,
2007.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
10676ISSN 2177-336X
23
MOLINA, Mônica Castagna. Políticas Públicas. In: CALDART, Roseli Salete et al.
(Orgs.). Dicionário da educação do campo. Rio de Janeiro, São Paulo: Escola
Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Expressão Popular, 2012. p 585-594.
PAVAN, Ruth. Os/as professores/as e a sua reflexão sobre a exclusão social. Tese
(Doutorado em Educação) - Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS,
2005. Versão impressa.
______; LOPES, Maria Cristina Lima Paniago. Formação docente: reflexões sobre
diferentes dimensões. Série Estudos - Periódico do Programa de Mestrado e Doutorado
em Educação da UCDB, Campo Grande/MS, n. 24, p. 27-33, jul./dez., 2007. Disponível
em: <http://www.serie-estudos.ucdb.br/index.php/serie-estudos/article/view/233/100>.
Acesso em: 30 jun. 2014.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
10677ISSN 2177-336X
24
HISTÓRIA E CULTURA AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA: TENSÕES E
POSSIBILIDADES NAS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS
MARQUES, Eugenia P. de S1
Universidade Federal da Grande Dourados
CALDERONI, Valéria. A. M. O2
Universidade Católica Dom Bosco
Resumo: Este artigo apresenta algumas reflexões sobre como os professores tem lidado
com a inclusão da História e Cultura Afro-Brasileira em suas práticas pedagógicas.
Ancora-se para essa interpretação nas perspectivas teóricas pós-coloniais e nas
mudanças trazidas pelas leis n. º 10.639/2003, bem como nas pesquisas realizadas sobre
como as reivindicações dos movimentos sociais negros contribuíram para a
implementação de políticas educacionais voltadas para a superação do racismo, da
desigualdade racial, da potencialização da pedagogia da diferença e da subversão
epistêmica da formação docente. Tendo presente este cenário, e problematizando a
relação entre os efeitos de uma estrutura legislativa e o currículo, este artigo tem por
objetivo analisar as tensões e as possibilidades de educar para as relações étnico-raciais
no sentido de visibilizar a pluralidade multiétnica e as diferenças presentes no ambiente
escolar. As construções teóricas deste texto se embasam em Marques e Calderoni
(2014), Walsh (2009), Gomes (2012), Munanga (2012), entre outros. Como
procedimento técnico-metodológico, a pesquisa contou com a revisão bibliográfica dos
trabalhos da área e o uso de entrevistas temáticas, demonstrando as inquietações dos
professores dos anos finais da educação básica do município de Campo Grande/MS.
Como resultante das reflexões entre outras pesquisas e pontos de vista diversos oriundo
do diálogo entre atores do processo educacional, podemos afirmar que a legislação nº
10.636/2003 tem contribuído para a visibilização da cultura dos povos africanos e afro-
brasileiros e, ambivalentemente, observamos que há uma tensão inerente às práticas
pedagógicas como também muitos desafios epistemológicos para a consolidação da
educação das relações étnico-raciais.
Palavras-chave: Relações Étnico-raciais. Práticas Pedagógicas. Formação Docente.
Introdução
Serão os interesses da teoria “ocidental” necessariamente coniventes com o
papel hegemônico do Ocidente como bloco de poder? Não passará a
linguagem da teoria de mais um estratagema da elite ocidental culturalmente
privilegiada para produzir um discurso do Outro que reforça sua própria
equação conhecimento-poder? (BHABHA, 2003, p. 45).
Num tempo que coloca as identidades e as diferenças em jogo e evidências,
remetendo também à escola a obrigatoriedade do estudo da História e Cultura Africana
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
10678ISSN 2177-336X
25
e Afro-brasileira por meio da Lei nº10639/2003, torna-se importante problematizar
como os professores, em seu fazer pedagógico aborda a legislação que alterou a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDBEN 9394/1996), em seus artigos 26 - A
e 79- B, posteriormente modificada pela Lei nº 11.645/2008.3
O tema deste trabalho está diretamente relacionado as nossas investigações sobre
o ensino da cultura e história do povo africano, como também a nossa experiência com
professores na educação básica e a partir de uma aproximação ao pensamento pós-
colonial que potencializa o debate e a construção de uma relação democrática e plural
que permita o diálogo entre culturas diferentes como também potencializa os universos
culturais e plurais existentes na escola.
Na história da produção de saberes escolares da educação brasileira, na produção
historiográfica e nas políticas curriculares que orientam a formação dos alunos no que
diz respeito a constituição do povo brasileiro nos contextos históricos coloniais e pós-
coloniais, bem como as publicações didáticas e paradidáticas pode-se afirmar que há um
predomínio de saberes ocidentais, colocados como universais. Entretanto, os autores
pós-colonialistas afirmam que esses saberes discursados como universais são na
verdade de um lugar geopolítico bem definido, a Europa, tendo esse entendimento,
podemos afirmar que se trata de saberes eurocêntricos, que precisam ser revisionados
(BHABHA, 2003).
Na América, a ideia de raça e a construção de novas identidades, possivelmente
se tenha originado nas relações entre colonizadores e colonizados, as diferenças entre
povos tão diferente sejam elas sociais ou culturais causavam tanta estranheza entre esses
grupos, que acabaram de alguma forma classificando-os, segregando-os, colocando-os
as margens. As relações de poder, ser e saber foram encontrando formas e instrumentos
para instituir a ideia de raça e identidade racial. A formação de relações sociais
fundadas nessa ideia, produziram na América identidades sociais historicamente
novas: índios, negros e mestiços, e redefiniu outras” (QUIJANO, 2005).
Na perspectiva pós-colonial que assumimos nesta pesquisa temos o pensamento
de Homi Bhabha (2003) sobre o conceito de diversidade. Para Bhabha (2003),
diversidade refere-se à cultura como um objeto do conhecimento empírico,
reconhecendo conteúdos e costumes culturais pré-dados.
Em contraposição a esta perspectiva essencialista e simplista de cultura via a
compreensão de diversidade, a diferença cultural se constitui, para Bhabha (2003),
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
10679ISSN 2177-336X
26
como o processo de enunciação da cultura. Segundo o autor trata-se de "[...] um
processo de significação através do qual afirmações da cultura e sobre a cultura
diferenciam, discriminam e autorizam a produção de campos de força, referência,
aplicabilidade e capacidade" (2003, p. 63).
Nessa vertente pós-colonialistas, a diversidade deve ser assumida dentro de
uma política de crítica, questionadora da subalternização e silenciamento a que os
povos colonizados foram impostos. Este pensamento leva-nos a questionar e
superar os mecanismos que forjam as desigualdades e produzem estereótipos e
representações. Seus pensadores potencializam e problematizam categorias como
identidade e diferença, as entendem como construções discursivas que se deslocam
e se conflitam, “reinscrevendo” novos signos em sua composição (HALL, 2009;
SILVA, 2000). Ou seja, nessa perspectiva, a “[...] diferença é sempre um processo
relacional” (MACEDO, 2006, p. 348) que dependendo das relações de poder, ser e
saber posicionam saberes e consequentemente povos no sistema social.
Para Mignolo (2003, p.10), “[...] a diferença colonial é, finalmente, o local ao
mesmo tempo físico e imaginário onde atua a colonialidade do poder, no confronto de
duas espécies históricas locais visíveis em diferentes espaços e tempos do planeta”.
Rever categorias como a diferença colonial, universalização do saber,
colonialidade do saber entre outras impostas nos processos coloniais são relevantes
pelos seguintes motivos: aprendemos com a colonização a não levarmos em
consideração o lugar de onde fala o sujeito para a sua compreensão do mundo e,
acabamos tendo como referência, os conhecimentos de um lugar geográfico específico:
a Europa. E, se fizermos a crítica à colonização e à subalternização dos conhecimentos
dos povos colonizados poderemos descolonizar o pensamento hegemônico ocidental.
Esta critica aponta como possibilidade para se pensar pedagogicamente um
movimento de reversão da historicidade social e cultural, poderiam também tornar-se
um lócus de enunciação de conhecimentos outros.
Assim, identificamos que a colonialidade impõe e legitima uma única lógica
cristalizada no currículo monocultural, no material didático ucêntrico/homogêneo e nas
relações interpessoais hostis, que sutilmente ignoram e inferiorizam as diferenças
presentes no espaço escolar. As ocorrências de tratamentos diferenciados, podem
conduzir direta ou indiretamente, à exclusão das crianças da escola, ou ainda, para
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
10680ISSN 2177-336X
27
aqueles que permanecem, a construção de um sentimento de inadequação ao sistema
escolar e inferiorização racial.
Neste trabalho investigativo, centramos nossa atenção “[...] na descrição e
análise da artificialidade da produção de saberes na educação (conhecimentos, verdades,
discursos) ”, como argumenta Paraíso (2004).
O processo revisionário de nossa colonização
Estamos vivendo um tempo histórico, posterior aos processos de descolonização
do “Terceiro Mundo”, pois a descolonização ocorreu enquanto regime político somente,
a era colonial, mas epistemicamente o colonialismo, ou melhor dizendo a colonialidade
ainda se faz presente em nossas relações cotidianas e precisam ser repensadas
pedagogicamente. Esta colonialidade se manifesta nas metanarrativas que legitimaram o
sistema de ideias do processo de colonização, levando às relações de preconceito a
partir do entendimento errôneo das diferenças raciais, que insistem em hierarquizar,
apresentando-nos como sendo um “processo civilizatório”. Esta vem para justificar
discursivamente a dominação, a perda de identidade, a diáspora, o preconceito racial, a
subalternização, enfim, toda a forma de manter a dominação política, social e
epistêmica.
Costa (1999, p.65), nos afirma que a “[...] cultura ocidental eurocêntrica que se
autodeclara instituidora de padrões em todas as dimensões da vida humana, governa os
desejos e os sonhos e ainda invoca para si as credenciais de magnanimidade”. O que fez
com que criasse uma hierarquia social nos países da América Latina com bem observa
Quijano (2003).
Segundo Figueiredo, Grosfoguel (2009, p.225):
Esse paradoxo se refere ao fato de que a luta pela independência dos
brancos crioulos (poderíamos dizer mestiços claros) nunca
descolonizou a hierarquia étnico-racial do poder político, econômico e
social construído durante o colonialismo europeu nas Américas.
Tendo este entendimento, podemos perceber que estamos inscritos numa
sociedade onde os padrões tidos como normais, universais foram traduzidos pelo viés
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
10681ISSN 2177-336X
28
ocidental e pensar sobre as relações “neocoloniais”, ou pós-coloniais é um ato político-
pedagógico para esse tempo histórico a ser construído.
No Brasil o processo de abolição foi um processo que Figueiredo e Grosfoguel
(2009) chama de “independência sem descolonização”, pois, os povos que foram
subalternizados, colocados as margens, ainda seguem nesta posição política, ou seja, a
colonialidade4 do poder segue excluindo, segregando em todas as instancias e
instituições sociais, políticas e culturais, tendo como parâmetro a lógica ocidental. Em
países como o nosso a riqueza de sua diversidade é resultado de um processo histórico,
social e cultural no qual contribuíram de forma significativa inúmeras experiências
humanas específicas.
Concordamos com Hall quando este argumenta que a descolonização foi um
processo longo, epistêmico e diferenciado, e que a colonialidade (WAHLS, 2009), ou
seja, as relações coloniais, internalizadas na própria sociedade colonizada, vai dar
surgimento a uma forma difusa de hegemonia colonial, que através de novos arranjos
(poder sempre se rearranja), dá seguimento aos processos de poder e dominação entre os
povos. As reflexões dos autores pós-colonialistas como Hall (1997), Wahls (2009) nos
provocam a pensar e analisar os efeitos de poder, ser e saber nas relações estabelecidas
desde os tempos coloniais à contemporaneidade, permitindo analisar como elas seguem
nas práticas pedagógicas das escolas.
Ao analisar essas práticas com a perspectiva apontada por Bhabha (2003), esse
processo revisionário permite revemos a diferença não mais a partir de um referencial
coloniazador, não mais considerando ou partindo de uma classificação hierarquizada,
construída pelo único modelo cultural, o ocidental.
Segundo Bhabha (2003, p.21- 22):
As diferenças sociais não são simplesmente dadas à experiência
através de uma tradição já autenticada; elas são os signos da
emergência da comunidade concebida como projeto - ao mesmo
tempo uma visão e uma construção - que leva alguém para “além” de
si para poder retornar, com um espírito de revisão e reconstrução, às
condições políticas do presente.
Um deslocamento importante para o processo revisionário (BHABHA, 2003) de
nossa colonização aconteça esta ancorada nas bases legais, fruto do protagonismo das
minorias existentes no pais.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
10682ISSN 2177-336X
29
A Constituição Federal/1988 trouxe amparo legal que confere “às minorias” o
direito à diversidade cultural em nosso país. Compõe um dos objetivos fundamentais
dessa nova formulação contida na Constituição de 1988, com relação às minorias,
“promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade, e
quaisquer outras formas de discriminação” (BRASIL, 1988, p. 3).
A LDBEN- Lei nº 9.394/1996 - Lei de Diretrizes e Bases da Educação ratifica a
importância das ações transdisciplinares no tocante à importância da cultura popular e à
valorização da pluralidade cultural. Normatizada, regulamentada pelo Parecer 03/2004
do Conselho Nacional de Educação - CNE, que institui as Diretrizes Nacionais para a
Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-
brasileira e Africana.
A regulamentação do currículo representou um avanço no âmbito da legislação
educacional e correspondeu aos anseios de diversos setores da sociedade e do
movimento negro brasileiro, pois tensionam a necessidade de reflexão acerca da
construção de uma pedagogia antirracista. Para Oliveira e Candau (2010, p. 32),
[...] entre os objetivos, estão a garantia do igual direito às histórias e
culturas que compõem a nação brasileira e a afirmação de que os
conteúdos propostos devem conduzir à reeducação das relações
étnico-raciais por meio da valorização da história e da cultura dos
afro-brasileiros e dos africanos.
As pressões legítimas e antirracistas dos movimentos negros em vários
municípios e estados brasileiros foram determinantes para que essa alteração curricular
da legislação nacional se efetivasse e romperam com o silêncio em torno do currículo
monocultural, dando “vez e voz” às diferenças étnico-raciais. Tais iniciativas
enfrentaram e enfrentam limitações para a efetivação nas práticas pedagógicas. Dentre
essas dificuldades, podemos destacar a ausência de formação específica dos professores
educarem para as relações étnico-raciais, sem promoverem a hierarquização de
conhecimentos, culturas, crenças e etnias. Apesar das situações de preconceito e
discriminação ainda presentes no ambiente escolar, muitas vezes estas são ignoradas e
comprometem, desse modo, a construção da identidade negra, conforme os estudos
realizados por CAVALHEIRO (2000), MUNANGA (2012), GOMES, (2012), DIAS
(2012).
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
10683ISSN 2177-336X
30
Tensões e possibilidades nas práticas pedagógicas
Nesta seção analisaremos com as falas dos professores de escolas públicas de
Campo Grande – MS, os conhecimentos e as dificuldades que impedem as discussões
sobre as diferenças étnicas-raciais e as implicações para as práticas pedagógicas,
articuladas às referências e teorias epistemológicas escolhidas para esse caminho
investigativo. Elegemos a análise das seguintes questões: a) - Em sua disciplina você
trabalha com conteúdo sobre a História e Cultura Africana e Afro-brasileira? Quais? b)
- De que forma você insere a temática na sua disciplina? c) - Você possui dificuldades
para atender os objetivos da lei? d) - Quais as dificuldades você percebe que os
professores em geral possuem?
Os participantes da pesquisa responderam as questões da seguinte forma:
Tenho trabalhado com todas as turmas em forma de debate, om a sala
em círculo. Os trabalhos relacionados à cultura e história social
africana. Não sinto dificuldade, pois em Artes, o conteúdo abrange
várias áreas do conhecimento, oferecendo aos alunos oportunidades de
criar, fazer e responder. Na escola não percebo dificuldades em meus
colegas, pois trabalhamos a interdisciplinariedade (Professora A –
Componente Curricular - Artes).
Trabalho durante o ano letivo, com temas sempre relacionados às
questões históricas-culturais; procurando sempre definições para:
estereótipo, discriminação, preconceito e racismo. Tema principal a
ultimamente a "cotas", desmistificando e demonstrando que é um
direito. Quanto a História da África, sempre procuro trabalhar com
pesquisas, tendo como base clássicos sobre a História da África, o que
culmina como uma apresentação anteriormente em novembro e
atualmente em outubro (Projeto Diversidade Étnico Racial e Cultural).
Com os alunos nenhuma dificuldade, apenas uma rejeição inicial
devido a um conhecimento prévio que vem de seu cotidiano, que logo,
ao argumentar com bases científicas aderem sistematicamente ao
projeto. Muita dificuldade com a Direção, Coordenação e Professores,
que ainda hoje se demonstram preconceituosos e com falta de vontade
em capacitar e fazer leituras em relação ao tema. Quanto ao material,
há hoje uma quantidade expressiva a disposição na internet, na
literatura escrita, é só ter boa vontade. Muitos possuem dificuldades
pela falta de capacitação, outros a falta de vontade em capacitar-se.
Alguns por ter uma guerra no seu "eu", com os preconceitos de sua
própria formação e aceitação até mesmo de sua própria identidade
negra em alguns casos. Outra situação, a falta de Capacitação da
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
10684ISSN 2177-336X
31
própria direção e coordenação da escola e o descaso da SED-MS (Professor B – Componente Curricular - História).
O professor C, nos diz:
Procuro cumprir a base curricular atual que prevê estes importantes
conteúdos. O próprio material didático da Rede Pública de Ensino
(municipal e estadual) contempla estes conteúdos, aos quais procuro
sempre agregar conteúdo extra, traçando paralelos com a realidade
social, cultural e econômica encontrada. Particularmente não tenho
dificuldades, mas percebo que muitos professores acabam por evitar o
tema, movidos, por incrível que pareça, não só pelo despreparo
pedagógico, mas principalmente por preconceitos religiosos, quando
estes, misturam suas crenças religiosas preconceituosas, tachando
representações religiosas de matriz africana de maneira
pejorativa. (Professor C – Componente Curricular – História)
Segundo o professor D, que ministra o Componente Curricular - Arte:
Fui professor universitário de arte e educação numa faculdade privada
no ES. Nessa experiência, procurava mostrar aos alunos exemplos de
arte africana, brasileira e indígena em suportes diversos (tecidos,
esculturas, trançados, cerâmica etc.) obtidos em publicações
especializadas, pois os materiais didáticos existentes costumam não
contemplar essas expressões artísticas, privilegiando a arte dita
ocidental. Nesse tempo, coordenava também uma oficina de
modelagem em argila numa clínica psiquiátrica, assim costumava
levar os trabalhos desses alunos/pacientes para as aulas na faculdade.
Acredito que a arte contemporânea; por estimular a coexistência de
estilos diversos, técnicas de toda sorte e suportes materiais ou não
materiais; permite também que, transversalmente, se possa trabalhar
História e Cultura africana e afro-brasileira. Eu não tenho muita
dificuldade, pois amparo meu trabalho com pesquisas próprias nos
referenciais multimídias e em trabalhos de campo. Poderia
exemplificar com atividades didáticas que pudessem ser
desenvolvidas numa aldeia indígena, território quilombola, terreiros
de candomblé ou umbanda, onde as pesquisas sobre tal etnia ou tal
grupo, feitas anteriormente por intermédio da literatura ou outros
meios, pudessem ser observadas no cotidiano desses espaços. Uma
outra forma é trabalhar com cinema (vídeo), aproveitando a temática
do filme para suscitar questões de história e cultura indígena, africana
e afrodescendente. Creio que seja a dificuldade de acesso material
didático específico e também nos estabelecimentos de recortes que
deem conta de passar alguns conteúdos sobre a História e Cultura
africana e afro-brasileira em transversalidade com outras áreas de
conhecimento (Professor D – Componente Curricular - Arte).
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
10685ISSN 2177-336X
32
Nos diz a professora E:
Sempre trabalho algum (pouco) conteúdo sobre o assunto, pois a
Língua Portuguesa permite (e até exige) que assuntos de relevância
social e históricas sejam abordados. Percebo dificuldades no
planejamento que envolve os demais professores no sentido de haver
parceria e planejamento de projetos, fica tudo muito restrito ao
individual. Nesses dois últimos anos, em função das greves, o
planejamento coletivo foi prejudicado. Sinto que a coletividade
prioriza eventos específicos como a Feira Cultural ou o Dia da
Consciência Negra. Acho que isso é pouco significativo. Fica como
"uma mera obrigação no calendário"; penso que deveria ser
sistemático e abranger outras questões (não só meio ambiente ou
água). Acho que a maior dificuldade é mesmo o planejamento, pelo
menos não percebo, na unidade onde atuo, nenhum outro motivo que
impeça a implementação de atividades referentes ao tema (Professora
E – Componente Curricular de Língua Portuguesa).
Indicações conclusivas
“[...] a diferença colonial é, finalmente, o local ao mesmo tempo
físico e imaginário onde atua a colonialidade do poder, no confronto
de duas espécies históricas locais visíveis em diferentes espaços e
tempos do planeta” (MIGNOLO, 2003 p.10).
Podemos afirmar que há deslocamentos epistêmicos significativos nas práticas
pedagógicas vigentes dos professores investigados após entrar em vigor a lei nº
10.639/2003, entretanto, a ausência de um projeto pedagógico nas escolas orquestrado
coletivamente e coordenado pela gestão escolar se configura como um dos empecilhos
para que as políticas pedagógicas referentes ao trato à diversidade e a diferença cultural
se efetive plenamente, no sentido de que educar para as relações étnico-raciais significa
garantir que o currículo e as práticas pedagógicas possibilitem que as crianças
indígenas, brancas e negras compreendam e respeitem as diferenças culturais, a
corporeidade, a estética e presença no mundo. O estudo sobre as diferenças culturais de
cada povo e cada etnia para dar sentido e tornar possível a discussão da diferença no
cotidiano escolar é o desafio a ser enfrentado.
As microrrelações de poder existentes no cotidiano das escolas trazem as
tensões próprias das relações pedagógicas, principalmente as que buscam construir um
conhecimento fronteiriço. Pensar a educação na perspectiva das fronteiras para
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
10686ISSN 2177-336X
33
aproximar as diferentes culturas presentes no cotidiano escolar é vislumbrar um diálogo
intercultural e antirracista (OLIVEIRA; CANDAU, 2010), no qual os saberes das
crianças negras e indígenas possam ser legitimados e, desse modo, possam romper com
a visão homogeneizadora, hegemônica e eurocêntrica do currículo colonizado.
A análise das falas dos professores investigados indica que estes vivenciam uma
tensão constante, pois encontram-se numa tentativa de ressignificação cultural em um
processo revisionário dos saberes até então legitimados na escola.
A descontinuidade de acompanhamento por parte das Secretarias de Educação
que inviabilizam a formação continuada para professores também é um indicador que
interfere negativamente na proposição de uma educação antirracista e democrática.
Referências bibliográficas
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal,
1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em 11 de
julho 2013.
BRASIL. Lei n. 9394, de 20 de novembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 23 dez. 1996. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em: 15 ago. de 2015.
______. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 259/1999. Dispõe sobre a
obrigatoriedade da inclusão, no currículo oficial da Rede de Ensino, da temática
“História e Cultura Afro-Brasileira” e dá outras providências. Diário da Câmara dos
Deputados, Brasília, DF, 20 de março de 1999.
______. Lei nº 11.645, de 10 março de 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro
de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as
diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de
ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.
Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 março, 2008.
______. Lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei n. 9.394, de 20 de
dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para
incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e
Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília,
DF, 10 jan. 2003a, p. 01. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 12
out. 2013.
______. Parecer 03/2004 do Conselho Pleno do Conselho Nacional de educação.
Brasília: MEC, 2004.
______. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-
Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília:
MEC, 2004.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
10687ISSN 2177-336X
34
BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
CAVALLEIRO, Eliane. Do silencio do lar ao silencio escolar: racismo, preconceito e
discriminação na educação infantil. São Paulo: Contexto, 2000.
COSTA, Marisa. V. Currículo e política cultural. In: COSTA, Marisa. V. (org.) O
currículo nos limiares do contemporâneo. Rio de Janeiro: DP7A, 1999. P. 37-68.
FIGUEIREDO, Angela; GROSFOGUEL, Ramón. Racismo à brasileira ou racismo
sem racistas: colonialidade do poder e a negação do racismo no espaço universitário.
Soc. e Cult., Goiânia, v. 12, n. 2, p. 223-234, jul./dez. 2009.
GOMES, Nilma Lino (Org). Práticas pedagógicas de trabalho com relações étnico-
raciais na escola na perspectiva da Lei 10.639/2003. Brasília: MEC; UNESCO, 2012.
HALL, Stuart. “Quando foi o pós-colonial? Pensando no limite”. In: _____. (Org.). Liv
Sovik. Da diáspora. Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora
UFMG, pp.95-120.
_______. Quem precisa da identidade. In: SILVA, T.T.; HALL, Stuart;
WOODWARD, Kathryn. Org. Identidade e diferença. A perspectiva dos Estudos
Culturais. 6º ed. Petrópolis: Vozes, 2003.
MACEDO, Elizabeth. Por uma política da diferença. Cadernos de Pesquisa, v.36,
n.128, p.327-356, maio/ago.2006.
MIGNOLO, Walter. Histórias Locais - Projetos Globais Colonialidade, saberes
subalternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2003. 505 p.
MUNANGA, Kabengele. Negritude e identidade negra ou afrodescendente: um
racismo ao avesso? Revista da ABPN • v. 4, n. 8 • jul. - out. 2012 • p. 06-14.
LANDER, Edgardo. (Org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais.
Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: 2005, p.71-103.
OLIVEIRA, Luiz Fernandes de; CANDAU, Vera Maria Ferrão. Pedagogia Decolonial
e Educação Antirracista e intercultural no Brasil. Educação em Revista, Belo
Horizonte, v. 26, n. 1, p.15-40, abr., 2010.
PARAÍSO, Marlucy Alves. Pesquisas pós-críticas em educação no Brasil: esboço de
um mapa. Cadernos de. Pesquisa.vol.34 no.122. São Paulo. May/Aug. 2004.
QUIJANO, Anibal. Coloinalidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In:
LANDER, Edgardo. Org. La colonialidad del saber eurocentrismo y ciências sociales.
Perspectivas Latinoamericanas. Buenos Aires: Clacso, 2005.p.201-246.
SILVA, Tomaz Tadeu. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA,
Tomaz Tadeu. (Org.). Teoria cultural e educação. Um vocabulário crítico. 6º ed. Belo
Horizonte: Editora Contemporânea, 2000.
WALSH, Catherine. Interculturalidade Crítica e Pedagogia Decolonial: in-surgir, re-
existir e re-viver. In: CANDAU, Vera Maria. (Org.). Educação Intercultural na
América Latina: entre concepções, tensões e propostas. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2009.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
10688ISSN 2177-336X
35
1 Doutora em Educação pela Universidade Federal de São Carlos. Chefe do Núcleo de Estudos
AfroBrasileiros da Universidade Federal da Grande Dourados –NEAB/UFGD. Professora adjunta do
curso de Pedagogia da UFGD. Líder do Grupo de pesquisa Estudos e Pesquisas sobre Educação, Relações
étnicoraciais e Formação de professores – GEPRAFE. 2
2 Doutora em Educação pela Educação da Universidade Católica Dom Bosco - UCDB, graduada em
Educação Artística e pedagogia. Pesquisadora do Projeto Observatório de Educação Escolar
Indígena/MEC/CAPES, pesquisadora no Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação, Relações étnico-
raciais e Formação de professores - GEPRAFE, do (a) Universidade Federal da Grande Dourados,
também membro do grupo de pesquisa Interculturalidade e Educação (UCDB).
3 Posteriormente a Lei nº 11645/2008 altera o artigo 26 - A ao disciplinar que nos estabelecimentos de
ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e
cultura afro-brasileira e indígena.
4 Introduzido por Anibal Quijano em Colonialidade Del poder, eurocentrismo y América Latina (2005),
onde o autor apresenta as implicações dessa colonialidade do poder a respeito da história da América
Latina.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
10689ISSN 2177-336X
Top Related