Salvador, 14 de novembro de 2015
Dia Mundial do Urbanismo: o que temos a comemorar afinal?
João Soares Pena1
Introdução
Anualmente no dia 08 de novembro é comemorado o Dia Mundial do
Urbanismo, data que além de celebração e difusão da importância desse
campo do conhecimento, pode também provocar uma reflexão acerca do
contexto urbano atual. Uma das principais motivações deste texto foi a recente
instituição do dia 8 de novembro como Dia Municipal do Urbanismo em
Salvador num momento em que não apenas esta cidade, mas tantas outras
têm trazido à luz importantes e inquietantes problemas.
Este ano além da celebração habitual, comemoramos os 20 anos de
existência do Curso de Bacharelado em Urbanismo da Universidade do Estado
da Bahia (UNEB), primeiro curso do Brasil a formar urbanistas em nível de
graduação.2 O curso tem se consolidado na formação profissional e na
contribuição para o pensamento urbanístico no país, especialmente na Bahia.
Mais recentemente foi criado o Curso de Bacharelado em Planejamento
Territorial na Universidade Federal do ABC (UFABC),3 ratificando a
necessidade de uma formação mais específica e aprofundada voltada aos
estudos urbanos. Além disso, é preciso assinalar os diversos cursos de pós-
graduação vinculados à Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa
em Planejamento Urbano e Regional (ANPUR), os quais têm contribuído
fundamentalmente para a construção do pensamento urbanístico crítico.4
Contudo, apesar da importância da data, será que as cidades têm o que
festejar? Nesse sentido, este texto aponta algumas questões urbanas atuais e
críticas a partir de uma prática urbanística hegemônica e tenta assinalar
algumas iniciativas que fazem oposição a projetos urbanos e ao modelo de
cidade vigente. Porém, antes contextualizamos e historicizamos a instituição da
data comemorativa do dia 8 de novembro num período de intensos debates e
críticas acerca de modo de produzir cidade em voga na época.
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A data comemorativa
Desde 1949 comemora-se em 08 de novembro o Dia Mundial do
Urbanismo. A iniciativa do Instituto Superior de Urbanismo da Cidade de
Buenos Aires contou com apoio da Organização das Nações Unidas (ONU)
que instituiu a data comemorativa.5 Além disso, o professor Carlos Maria della
Paolera, da Universidade de Buenos Aires, fundou a Organización
Internacional del dia Mundial del Urbanismo.6
O símbolo do urbanismo, também criado por Carlos Maria della Paolera,
já havia sido adotado no Congresso de Urbanismo de Besançon, França, em
1935, no 1º Congresso Argentino de Urbanismo, em Buenos Aires em 1935, e
no 1º Congresso de Urbanismo do Chile, em 1938. O símbolo representa três
elementos considerados essenciais à vida humana: o sol (em amarelo), a
vegetação (em verde) e o ar (em azul) (Figura 1).
Figura 1: Símbolo do urbanismo Fonte: Blog Construnea
7
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A combinação desses fatores pode denotar uma preocupação em
relação ao meio ambiente natural e ao urbanizado, este caracterizado pelas
grandes cidades, como evidencia Carlos Maria della Paolera:
La ciencia urbanística moderna ha puesto plenamente en evidencia que la utilización en la ciudad de los más maravillosos e inesperados recursos de la técnica no debe ni puede excluir el aprovechamiento intensivo de los elementos naturales. La ciudad como el árbol no puede desligarse de la tierra que la sustenta. 8
A iniciativa buscava promover maior discussão sobre o urbanismo e os
problemas urbanos que se apresentavam na época e aconteceu em um
período de muito debate sobre os preceitos do urbanismo moderno
funcionalista difundido em vários países por figuras como Le Corbusier. No
Brasil, nomes importantes ligados a essa corrente são os arquitetos Lúcio
Costa e Oscar Niemeyer, responsáveis pelo projeto urbanístico e arquitetônico
de Brasília, a então nova capital do Brasil, inaugurada em 1960 sob os
preceitos do urbanismo moderno.9
O dia do Urbanismo é celebrado em mais de 30 países e no Brasil a
data consta no calendário oficial do país desde 1985 quando foi instituído pelo
Decreto nº 91.900 o dia 8 de novembro como o Dia Nacional do Urbanismo.10
Nessa época a população urbana já constituía 67,59% da população brasileira,
taxa que continuou em ritmo crescente atingindo 84,36% no Censo de 2010.11
Esse crescimento provocou a complexificação da problemática urbana e trouxe
novos desafios às cidades, sobretudo às de grande porte com imensa
concentração populacional.
Recentemente o município de Salvador através da Lei nº 8.924, de 15
de outubro de 2015, instituiu o Dia do Urbanismo12 a nível municipal,
evidenciando e reconhecendo a importância dessa área e seus profissionais
para o desenvolvimento da nossa sociedade, sobretudo ajudando a dar
visibilidade aos inúmeros problemas urbanos atuais. A instituição de uma data
comemorativa não pode ser vista de modo acrítico, é preciso inseri-la em seu
contexto, de modo que consideramos importante comentar algumas questões
recentes em algumas cidades, sobretudo em Salvador.
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Algumas questões atuais
Uma série de fatos recentes demonstram importantes avanços em
relação a algumas questões jurídico-institucionais que se referem às cidades e
ao urbano. Podemos rapidamente mencionar a luta pela Reforma Urbana
protagonizada pela sociedade civil organizada que culminou no Capítulo da
Política Urbana (Arts. 182 e 183) na Constituição de 1988, a aprovação em
2001 da Lei nº 10.257 que instituiu o Estatuto da Cidade, criação do Ministério
das Cidades e do Conselho Nacional das Cidades em 2003, leis específicas
que disciplinam sobre questões setoriais, tais como habitação social,
saneamento, resíduos sólidos, mobilidade, participação social etc.
Entretanto, apesar desses e outros tantos avanços no campo
institucional, nossas cidades continuam apresentando uma série de problemas,
muitos dos quais são agravados pelas ações públicas e privadas na
(re)produção da cidade de maneira segregada, desigual e fragmentada. O
direito à cidade, embora seja uma das bases do Estatuto da Cidade, ainda não
é uma realidade quando se observam as intervenções que são realizadas
pretensamente para melhorar a condição urbana.
Desde 2009, o Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV) – criado
pela Lei nº 11.977, de julho de 200913 – tem contribuído significativamente para
a expansão urbana em municípios de características variadas. Se por um lado
o PMCMV cria mecanismos de incentivo à produção e aquisição de habitação
para parcelas da população, o programa também é um grande estimulador da
indústria da construção civil (o que sugerimos que tenha sido seu principal
objetivo, tendo em vista o contexto de crise internacional da época de sua
criação). Contudo, a localização dos conjuntos habitacionais em áreas urbanas
periféricas (de modo geral) têm acentuado problemas como a distância entre
residência e centro da cidade e postos de trabalho, oferta de equipamentos
urbanos e infraestrutura etc., além da continuação de uma realidade urbana já
bastante excludente.
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Na mesma época o país começou a se preparar para a realização de
dois importantes megaeventos: Copa do Mundo (de Futebol) e Olimpíadas, os
quais têm lugar em algumas capitais, as “cidades-sede”.14 As intervenções
realizadas no intuito de preparar as cidades para os jogos provocaram um sem-
número de remoções daqueles que estavam “atrapalhando” ou “impedindo” as
mudanças ditas necessárias. Segundo informações da Secretaria Geral da
Presidência da República divulgadas em 2014, o número de remoções
forçadas decorrentes das intervenções foi de 13.558 famílias,15 porém estes
dados não parecem reais, de acordo com a arquiteta e urbanista Raquel
Rolnik:
Se por um lado é positivo que, finalmente, tenhamos números oficiais sobre o que aconteceu nos últimos anos, por outro, é preciso dizer que se o próprio governo teve enorme dificuldade de “descobrir” quantos foram os removidos por obras relacionadas à Copa, isso demonstra a forma como são tratadas as remoções relacionadas a obras públicas no Brasil: um assunto irrelevante, não “contabilizado”, atravessado por obscuridades e violência. [...]
Além disso, não é difícil constatar que os dados não estão nada completos: em Belo Horizonte e Cuiabá, por exemplo, o quadro apresentado não fornece nenhuma informação sobre se as pessoas foram indenizadas ou reassentadas e onde isso aconteceu; no caso do Rio de Janeiro, apenas as famílias afetadas pelas obras da Transcarioca estão listadas, quando várias outras obras removeram centenas de pessoas – como na favela do metrô mangueira, no entorno do Maracanã.16
Além do desrespeito à população, situações como essa deixam bem
claro o que realmente interessa e, infelizmente, não é a vida dessas pessoas.
Segue nesse sentido o projeto Porto Maravilha,17 na zona portuária do Rio de
Janeiro, com o objetivo de reestruturar a área na modalidade de Operação
Urbana Consorciada,18 instrumento muito estimado pelo setor imobiliário pela
valorização urbana provocada pelos investimentos numa dada área. De acordo
com o Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro não houve
participação e transparência nas decisões relacionadas ao projeto, além de não
haver medidas efetivas para construção de habitação social e regularização
fundiária na área do projeto.19 A gentrificação, ou seja, a expulsão dos
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residentes de baixa renda com sua substituição por uma população de rendas
altas, é uma das consequências desse projeto, como afirma Christopher
Gaffney:
A área portuária está vivendo uma gentrificação promovida pelo Estado. A privatização da paisagem portuária financiada com recursos públicos resultará em novas formas de governança urbana que irão, se o projeto for executado, gerir uma população diferente, mais ampla e de maior poder aquisitivo.20
Projetos como esse deixam evidente a oferta da cidade aos interesses
do capital privado em detrimento dos interesses e necessidades da população.
21 Exemplo semelhante desse processo pode ser encontrado em Salvador, no
bairro 2 de julho, no Centro da cidade, que foi alvo do Projeto de Renovação do
Bairro Santa Tereza, lançado pela Prefeitura de Salvador em 2012. Na
verdade, esse novo bairro proposto compreende parte significativa do bairro 2
de julho e curiosamente a poligonal desse projeto coincide com a área do
Cluster Santa Tereza, que é um projeto da iniciativa privada que compreende
empreendimentos residenciais de alto padrão e um resort, além de fazerem
uso dos aspecto patrimonial e cultural da área (como o Museu de Arte Sacra e
a vista para a Baía de Todos os Santos) de grande valor simbólico para a
população. Segundo Mourad, Figueiredo e Baltrusis (2014, p. 442), “esses
elementos, diferenciados do conjunto da cidade, oferecem condições para que
se desenvolva um projeto de renovação voltado para a lógica da
gentrificação”.22
Como afirmam os autores, esse fato deixa claro que o poder público
estaria propondo uma intervenção urbana claramente vinculada a interesses
privados com alarmantes consequências sociais para o bairro 2 de Julho.
Contudo, moradores, coletivos, movimentos sociais, etc. assumiram a linha de
frente contra a investida do capital imobiliário com a constituição do
“Movimento Nosso Bairro é 2 de julho!”.23 Esse movimento tem sido bastante
combativo e tem resistido ao processo de especulação imobiliária nesse bairro,
bem como contribuído no debate e enfrentamento de questões importantes da
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cidade. As atividades do movimento incluem debates, reuniões, exibição de
filmes, atividades artísticas, manifestações políticas de rua, criação de um
fórum virtual de debate no site do Movimento, entre outros.
Outros movimentos da sociedade em diferentes cidades civil têm se
levantado contra investidas do capital imobiliário em áreas importantes da
cidade ou reivindicado o uso público e coletivo de áreas públicas. Nesse
sentido, podemos citar o Movimento Ocupe Estelita, em Recife, organizado em
oposição ao Projeto Novo Recife que se trata da destinação de uma área de 10
ha no centro da cidade para um empreendimento imobiliário de R$ 800 milhões
com torres que chegam a 40 andares na área que engloba o Cais José Estelita,
O movimento é composto por pessoas de distintas formações e lutam para que
a cidadania ocupe o cais, que a legislação seja respeitada, do respeito ao meio
ambiente e da participação popular na definição do futuro da área do centro-
sul. Como defende um dos integrantes do movimento:
Nosso discurso do direito à cidade é do direito de fruir, de aproveitar tudo o que ela tem para oferecer, de ser feliz nela. A cidade é para isso: para ocuparmos seus espaços públicos dando-lhes uma destinação social, cultural e popular. 24
Em Salvador podemos citar o Movimento Desocupa que surgiu em 2012
a partir da ocupação da Praça de Ondina pelo Camarote Salvador para o
carnaval daquele ano. Apesar do lucro de cerca de R$ 66 milhões, a empresa
só pagaria à prefeitura anualmente a quantia de R$ 250 mil e uma reforma no
local. A articulação do movimento ocorreu nas redes sociais decorrendo em
manifestações em espaços públicos no sentido de reivindicar o uso público da
praça e repudiar as ações de privatização da cidade de Salvador. Além dessa
questão, a pauta do movimento inclui discussões sobre temas de interesse da
cidade, o combate à segregação social tão marcante em Salvador, entre
outros.25 O movimento continua atuante na luta pela conquista de uma
Salvador mais justa e equitativa, já que muitos problemas ainda perduram.
No final dos anos 2000 o governo Federal passou a usar mais um
artifício para alavancar a economia, mas neste caso foi a partir da indústria
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automobilística com a redução do Imposto sobre Produtos Industrializados
(IPI), possibilitando facilidades na venda de carros no mercado brasileiro.26
Entretanto, esta medida vai de encontro com as diretrizes da Política Nacional
de Mobilidade Urbana (Lei 12.587/2012) que visa a priorização do transporte
público e de meios não motorizados em detrimento do automóvel individual.27 A
facilitação da aquisição do automóvel fez o número de carros crescer
significativamente nas ruas das cidades, e, por outro lado, os investimentos no
transporte público não acompanharam a mesma dinâmica. Isto levou a
problemas de congestionamentos, deseconomias, além de investimentos
equivocados na ampliação da malha viária.
Em Salvador, a Prefeitura anunciou em 2012 a construção da Linha
Viva: polêmico projeto que propõe a construção de uma via expressa
pedagiada conectando o Acesso Norte (Rótula do Abacaxi) ao Aeroporto com
extensão de 17,70 km exclusiva para carros.28 Além de ser questionável por
sua ultrapassada concepção, ao favorecimento do mercado imobiliário com a
abertura de um corredor “exclusivo” às classes altas, sua implantação
provocaria a remoção de uma população significativa em áreas como
Saramandaia e Pernambués, além de atravessar um resquício de Mata
Atlântica na área do 19º Batalhão de Caçadores do Exército Brasileiro. O
projeto tem sido questionado pelo Ministério Público e fortemente combatido
por acadêmicos e movimentos sociais.29
Além disso, a Prefeitura de Salvador tem tomado outras atitudes
também questionáveis que não se justificam como reais necessidades da
cidade e sua população. É o caso da lei nº 8.655/2014,30 que autorizou a
desafetação de 59 terrenos públicos do município sem nenhum estudo técnico
que respaldasse tal ação, ou seja, essas áreas públicas poderão ser alienadas
(vendidas), quando poderiam servir para a construção de equipamentos
urbanos públicos, construção de praças ou mesmo compor um estoque de
terrenos públicos para posterior utilização em prol da coletividade.
Da mesma maneira o Projeto de Lei nº 201/14 enviado pela Prefeitura
de Salvador à Câmara Municipal propõe a modificação do cálculo da outorga
onerosa do direito de construir,31 instrumento estabelecido pelo Estatuto da
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Cidade através do qual o município pode arrecadar recursos que podem ser
investidos para atender às demandas da cidade. Esta lei modifica o Plano
Diretor vigente, de modo que deveria acontecer com a devida participação
popular, conforme determina a lei do Estatuto da cidade. Além disso, a
Prefeitura já anunciava a elaboração do Plano Salvador 500, o qual inclui a
revisão do Plano Diretor. Nesse sentido, tanto a desafetação das áreas
públicas quanto a mudança no cálculo da outorga são ações arbitrárias que
contrariam os dispositivos legais vigentes no país (como o Estatuto da Cidade
e resoluções do Conselho Nacional das Cidades), além de se adiantarem (por
quê?) à discussão da política urbana municipal que se anunciava.
Uma iniciativa bastante recente merece atenção, pois decorre da
inquietação de jovens estudantes universitários de Salvador a cerca do
processo de revisão do Plano Diretor. Insatisfeitos com o pouco debate
promovido pela Prefeitura com a juventude sobre o plano, os estudantes
iniciaram em julho de 2015 o “Ciclo de Oficinas PDDU e eu com isso?” como
um espaço de discussão sobre a cidade com a realização de oficinas com
estudantes do ensino médio do Instituto Federal da Bahia (IFBA) e minicursos
sobre participação social e educação.
O projeto buscou promover a discussão com os estudantes, os quais
coletivamente elaboraram propostas para a cidade a partir da realidade de
distintas áreas da cidade. Essas proposições foram sistematizadas e entregues
à coordenação do Plano Salvador 500 como contribuições à revisão do plano
diretor. Além disso, foi realizado em outubro um seminário público a fim de
publicizar o material produzido e discutir juntamente com a Prefeitura a revisão
do plano diretor e as contribuições do projeto.
Mobilização e resistência – caminho possível
Apontamos acima algumas questões importantes, embora haja tantas
outras a serem discutidas, que indicam caminhos que as cidades têm trilhado.
Quando falamos cidade, é preciso pontuar que estamos falando de um
conjunto de fatores, atores sociais e processos urbanos e não de um elemento
uniforme e homogêneo. Por trás das ações e medidas levadas a cabo há
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intencionalidades, podendo elas estarem mais vinculadas aos interesses da
coletividade ou mais direcionadas a interesses de setores específicos.
De modo geral as cidades têm sido geridas e pensadas à luz do
entendimento que elas seriam mercadoria num voraz mercado global de
cidades. O planejamento da cidade segundo essa lógica leva a fatos como os
que discorremos anteriormente, quando os interesses privados e de poucos se
sobressaem aos da sociedade como um todo. Contudo, essa lógica tem sido
combatida pela ação de movimentos sociais, coletivos, artistas, ativistas e
militantes do direito à cidade etc. que se articulam e promovem atividades,
manifestações, ocupações, protestos diversos na rua ou especificamente em
áreas que são foco dessas investidas.
Em 2013 eclodiram manifestações em diversas cidades do país,
desencadeadas pelo aumento da tarifa de transporte público de São Paulo.
Logo as Jornadas de junho 2013 tomaram as ruas em cidades em diferentes
partes do país, agregando em suas pautas muitas outras questões para além
do preço da tarifa do transporte coletivo. Esses protestos aconteceram na
mesma época em que ocorria a Copa das Confederações da FIFA no Brasil,
competição que antecede a Copa do Mundo. Muitas críticas foram feitas à
realização das intervenções que preparariam as cidades-sede para os eventos
e suas consequências sociais e urbanas numa sociedade já bastante desigual.
Portanto, não se tratava apenas dos R$ 0,20 centavos acrescidos à tarifa do
transporte público de São Paulo, o que estava em jogo, na verdade, era a
questão urbana e o direito à cidade.32
Esses movimentos foram articulados pelas redes sociais, assim como
outros como o Movimento Ocupe Estelita, em Recife. Em Salvador tem havido
movimentos de resistência a ações e projetos que claramente não se
coadunam com os interesses da população nem se justificam em argumentos
plausíveis, além do visível interesse do capital imobiliário nessas intervenções.
É o caso da demolição de 31 casarões no Centro de Salvador após
deslizamentos de terra provocados pelas chuvas em maio de 2015.33
Sabemos, contudo, que essa situação se dá menos pelas chuvas e mais pela
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falta de investimentos em medidas não-estruturais e também pela falta das
intervenções estruturais necessárias à proteção do ambiente edificado.
Além disso, houve uma tentativa de remoção dos artífices da Ladeira da
Conceição, também no Centro Antigo de Salvador, cujo trabalho perdura
gerações. Mais uma vez, movimentos que constituem a Articulação do Centro
Antigo de Salvador se mobilizaram no sentido de frear a tomada de uma área
importante para a cidade por e para um projeto de gentrificação, qual seja a
“revitalização” dos arcos da Ladeira da Conceição pelo Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional e Prefeitura de Salvador. Atos organizados nas
redes sociais foram realizados no local no sentido de defender a população do
Centro Histórico, neste caso mais especificamente os artífices da ladeira.34
Com as novas mídias e as redes sociais, a população têm tido mais
condições de expor questões e contar com o apoio de outras pessoas
interessadas e sensibilizadas por determinadas questões. As possibilidades de
organização pela internet de movimentos políticos, porém apartidários, tem
sido muito importante na luta pelo direito à cidade e a gestão democrática. É
possível, nesse sentido, produzir organizar protestos, realizar fóruns de
discussão, etc., além da produção de vídeos que denunciam ações arbitrárias e
truculentas contra a população. Uma vez publicado na internet nas redes
sociais a notícia pode ser compartilhada e muitas pessoas tomam
conhecimento da situação, já que geralmente esses movimentos de resistência
não tem espaço na mídia tradicional e hegemônica.
As plataformas online tem sido, portanto, uma ferramenta importante
para mobilizações sociais de resistência contra projetos urbanos
segregacionistas, gentrificadores e voltados ao mercado. A disseminação dos
problemas na rede contribui para democratizar o acesso aos fatos que
acontecem e não são noticiados pelas grandes mídias e para a mobilização da
população e tem sido importante no contexto em que vivemos.
Os fatos mencionados ao longo do texto mostram, por um lado, uma
prática urbanística hegemônica liderada pelo poder público e iniciativa privada
que não se baseia no interesse social, na gestão democrática e no direito à
cidade, muito pelo contrário, são claros os benefícios à especulação imobiliária
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e ao capital imobiliário privado. Por outro lado, os movimentos de resistência
têm sido bastante combativos e criativos na luta contra esses projetos de
cidade para poucos. Portanto, muito mais que uma data comemorativa, o Dia
do Urbanismo deve ser lembrando pelo constante campo de disputa por
cidades mais socialmente justas e equitativas, pela gestão democrática de fato
e pelo direito à terra urbanizada com todos os benefícios que ela pode
oferecer.
1 Urbanista graduado pela UNEB, doutorando em Arquitetura e Urbanismo pela UFBA,
professor na Faculdade de Arquitetura da UFBA e diretor da Sociedade Brasileira de Urbanismo.
2 Cf. Site do curso de Urbanismo da UNEB. Disponível em:
http://www.uneb.br/salvador/dcet/urbanismo/
3 Site do Bacharelado em Planejamento Territorial da UFABC. Disponívele m:
http://cecs.ufabc.edu.br/index.php/cursos-de-graduacao/42-bacharelado-em-planejamento-territorial.html
4 Cf. Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional.
Disponível em: http://www.anpur.org.br/
5Cf. Portal Peruano del Día del Urbanismo. Disponível em:
http://www.urbanistasperu.org/diadelurbanismo/diamundial.htm
6 Cf. Sociedade Brasileira de Urbanismo. Disponível em:
https://sburbanismo.wordpress.com/dia-mundial-do-urbanismo/
7 Cf. Construnea. Disponível em: http://construnea.blogspot.com.br/2008/11/hoy-es-el-da-
mundial-del-urbanismo.html
8 Cf. Manifesto do Símbolo do Urbanismo, 1934. Disponível em: http://surp-
aqp.blogspot.com.br/2013/11/el-simbolo-del-urbanismo.html
9 Cf. Inauguração de Brasília. Disponível em:
http://www.cronologiadourbanismo.ufba.br/apresentacao.php?idVerbete=1257
10 Cf. Decreto nº 91.900, de 8 de novembro de 1985. Disponível em:
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1980-1987/decreto-91900-8-novembro-1985-442112-publicacaooriginal-1-pe.html
11 Cf. Stamm, Cristiano et al. A população urbana e a difusão das cidades de porte médio no
Brasil. Interações, Campo Grande, v. 14, n. 2, p. 251-265, jul./dez. 2013. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/inter/v14n2/a11v14n2.pdf
12 Cf. Diário Oficial Do Município. Salvador-Bahia, sexta-feira, 16 de outubro de 2015, ano XXIX
| N º 6.443. Disponível em: http://www.dom.salvador.ba.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=694
13 Cf. Lei nº 11.977, de julho de 2009. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/L11977compilado.htm
14 Apesar de o Rio de Janeiro ser a cidade-sede das Olimpíadas, jogos de futebol acontecerão
também em outras capitais: São Paulo, Belo horizonte, Salvador, Brasília e Manaus. No caso da Copa do Mundo, não apenas as cidades-sedes foram impactadas, já que municípios no entorno também receberam o evento, como no caso de são Lourenço da Mata, na Região Metropolitana de Recife, onde está a Arena Pernambuco. Cf. http://www.copa2014.gov.br/pt-
Salvador, 14 de novembro de 2015 br/sedes/recife/arena e http://www.rio2016.com/os-jogos/locais-de-competicao/mapa-cidades-do-futebol.
15 Cf. Quadro síntese das desapropriações na Copa FIFA 2014. Disponível em:
http://www.secretariageral.gov.br/noticias/2014/julho/gilberto-carvalho-faz-coletiva-sobre-democracia-e-grandes-eventos/copa_2014_desapropriacoes-final-1.pdf
16 Cf. Os legados da Copa. Disponível em: https://raquelrolnik.wordpress.com/2014/07/17/os-
legados-da-copa/
17 Cf. Site do Porto Maravilha. Disponível em: http://www.portomaravilha.com.br/
18 A Operação Urbana Consorciada é um dos instrumentos de política urbana previstos pelo
Estatuto da Cidade.
19 Cf. Megaeventos e Violações dos Direitos Humanos no Rio de Janeiro. Dossiê do Comitê
Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro. Junho de 2014. Disponível em: https://comitepopulario.files.wordpress.com/2014/06/dossiecomiterio2014_web.pdf
20 Cf. Gaffney, Christopher. Forjando os anéis a paisagem imobiliária pré-Olímpica no Rio de
Janeiro. In: e-metropolis, nº 15, ano 4, dezembro de 2013. Disponível em: http://www.emetropolis.net/download/edicoes/emetropolis_n15.pdf
21 Cf. Carlos, Claudio Antonio S. Lima. Una mirada crítica a la zona portuaria de Río de Janeiro.
In: Bitácora Urbano Territorial, vol. 2, nº17, 2010, p. 23-54. Disponível em: http://www.revistas.unal.edu.co/index.php/bitacora/article/view/18892/19783
22 Cf. Mourad, Laila. N. ; Figueiredo, Glória Cecília dos S ; Baltrusis, Nelson. Gentrificação no
Bairro 2 de Julho, em Salvador: modos, formas e conteúdos. In: Cadernos Metrópole (PUCSP), v. 16, 2014, p. 437-460. Disponível em: http://www.cadernosmetropole.net/download/cm_artigos/cm32_300.pdf
23 Cf. Site do Movimento Nosso Bairro é 2 de Julho. Disponível em:
https://nossobairro2dejulho.wordpress.com/
24 Cf. Ocupe Estelita: movimento social e cultural defende marco histórico de Recife. Disponível
em: http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?pid=S0009-67252014000400003&script=sci_arttext
25 Para saber mais sobre o Movimento Desocupa ver:
https://movimentodesocupa.wordpress.com
26 Cf. Governo mantém IPI reduzido para carros, após pressão de montadoras. Disponível em:
http://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2014/06/30/governo-mantem-ipi-reduzido-para-carros-sob-pressao-de-montadoras.htm
27 Cf. Política Nacional de Mobilidade Urbana. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12587.htm
28 Cf. Linha Viva. Disponível em: http://www.linhaviva.salvador.ba.gov.br/index.php/evento
29 Cf. Via Expressa Linha Viva: ausência de deliberação democrática em Salvador/Bahia
disponível em: https://sites.google.com/site/plbsaramandaia/linha-viva
30 Cf. Terrenos desafetados começam a ser leiloados; recursos deveriam ir para o FUNDURBS.
Disponível em: http://participasalvador.com.br/2014/12/12/terrenos-desafetados-comecam-a-ser-leiloados-recursos-deveriam-ir-para-o-fundurbs
31 Cf. Novo projeto de lei do prefeito quer mudança do cálculo da outorga onerosa e extinção
do FUNDURBS. Disponível em: http://participasalvador.com.br/2014/10/14/novo-projeto-de-lei-do-prefeito-quer-mudanca-do-calculo-da-outorga-onerosa-e-extincao-do-fundurbs/ 32
Cf. Maricato, Erminia et al. Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo ; Carta Maior, 2013.
Salvador, 14 de novembro de 2015 33
Cf. Arquitetos recorrem à Unesco para evitar novas demolições em Salvador. Disponível em: http://m.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/07/1653564-braco-da-onu-e-acionado-por-demolicoes-no-centro-de-salvador.shtml 34
Cf. “Várias queixas” no Centro Antigo de Salvador. Disponível em: http://www.passapalavra.info/2015/06/104621