8/14/2019 Demografia, Democracia e Direitos Humanos
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Ministrio do Planejamento, Oramento e GestoInstituto Brasileiro de Geografia e Estatstica IBGE
Escola Nacional de Cincias Estatsticas
Textos para discussoEscola Nacional de Cincias Estatsticas
nmero 18
DEMOGRAFIA, DEMOCRACIA E
DIREITOS HUMANOS
JOS EUSTQUIO DINIZ ALVES
Rio de Janeiro
2005
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Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica - IBGE
Av. Franklin Roosevelt, 166 - Centro - 20021-120 - Rio de Janeiro, RJ - Brasil
Textos para discusso. Escola Nacional de Cincias Estatsticas, ISSN 1677-7093
Divulga estudos e outros trabalhos tcnicos desenvolvidos pelo IBGE ou em conjunto comoutras instituies, bem como resultantes de consultorias tcnicas e traduesconsideradas relevantes para disseminao pelo Instituto. A srie est subdividida porunidade organizacional e os textos so de responsabilidade de cada rea especfica.
ISBN 85-240-3805-5
IBGE. 2005
Impresso
Grfica Digital/Centro de Documentao e Disseminao de Informaes CDDI/IBGE, em 2005.
Capa
Gerncia de Criao/CDDI
Alves, Jos Eustquio DinizDemografia, democracia e direitos humanos / Jos Eustquio Diniz Alves. - Rio de Janeiro : Escola
Nacional de Cincias Estatsticas, 2005.33 p. - (Textos para discusso. Escola Nacional de Cincias Estatsticas, ISSN 1677-7093 ; n. 18)
Inclui bibliografia.ISBN 85-240-3805-51. Demografia. 2. Democracia. 3. Direitos humanos - Brasil. 4. Brasil - Populao. I. Escola Nacional
de Cincias Estatsticas (Brasil). II. Ttulo. III. Srie.
Gerncia de Biblioteca e Acervos Especiais CDU 314RJ/2005-05 DEM
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SUMRIO
1. Introduo___________________________________________________________ 7
2. Demografia: o debate sobre populao e cidadania______________________ 9
3. Democracia, Cidadania e Direitos Humanos____________________________ 15
4. Democracia, Cidadania e Direitos Humanos no Brasil ___________________ 20
5. Populao e Direitos Reprodutivos no Brasil____________________________ 25
6. Concluses_________________________________________________________ 29
7. Referncias Bibliogrficas____________________________________________ 32
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RESUMO
O objetivo desse Texto para Discusso abordar a relao entre demografia
especialmente a discusso sobre populao e desenvolvimento democracia e
direitos humanos no Brasil. Para tanto o Texto comea com uma reviso do debate
demogrfico, dando nfase para a polmica ocorrida no decorrer da Revoluo
Francesa e seus desdobramentos posteriores at a Conferncia Internacional sobre
Populao e Desenvolvimento (CIPD), realizada no Cairo, em 1994, que marcou
uma mudana de paradigma na questo populacional, ao priorizar a questo dos
direitos reprodutivos. Em seguida, o Texto aborda a evoluo do conceito e dasconquistas dos direitos humanos no mundo, principalmente os avanos ocorridos
depois da criaoda Organizao das Naes Unidas (ONU) e da proclamao da
Declarao Universal dos Direitos Humanos, de 1948. O fim da Guerra-Fria trouxe
a possibilidade da expanso do Estado de Direito e da democracia no mundo,
apesar de amplas parcelas da populao continuar vivendo na pobreza e sem
acesso cidadania plena. O Brasil, nas ultimas dcadas, em especial depois do
processo de redemocratizao de 1985, tambm passou por grandes mudanas na
legislao e na execuo relativa aos direitos humanos e reprodutivos. Assim, o
principal desafio da atualidade colocar em prtica os direitos humanos e
reprodutivos objetivando a melhoria das condies de vida do povo brasileiro e o
bem-estar de seus cidados e cidads.
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ABSTRACT
The objective of this working paper is to tackle on the relation between
demography, especially the discussion about population and development
democracy and human rights in Brazil. For this, the text begins with a revision of
the demographic debate, given emphasis to the polemic occurred throughout the
French Revolution and its later repercussions up to the International Conference on
Population and Development (ICPD), carried out in Cairo, in 1994, which has
marked a change in the paradigm of population issues by giving priority to issues
related to reproductive rights. Following, the paper goes on to approach the
evolution of the concept and the conquers on human rights worldwide, mainly, the
advances occurred after the creation of the United Nations (UN) and the
Declaration of the Universal Human Rights, in 1948. The end of the cold war
brought the possibility of the expansion of theState of Rights and the Democracy
in the world, although large parcels of the population still lives on poverty and
without complete access to citizenship. Brazil, in the last decades, especially after
the process of redemocratization in 1985, also has gone trough major changes in
the legislation and the execution of laws regarding human and reproductive rights.
Hence, the current main challenge is to put in practice the human and reproductive
rights with the purpose of improving life conditions of the Brazilian people and the
wellbeing of its citizenships, men and women.
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1. INTRODUO1
Cada cidado um membro da soberania e como tal no pode admitirsujeio pessoal, sua obedincia existe apenas em relao s leis
Thomas Paine (1737-1809)
A Assemblia Geral das Naes Unidas proclama a presente Declarao Universaldos Direitos do Homem como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as
naes, com o objetivo de que cada indivduo e cada rgo da sociedade, tendo sempre
em mente esta Declarao, se esforce, atravs do ensino e da educao, por promover orespeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoo de medidas progressivas de carternacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observncia
universais e efetivos
Declarao Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948)
A histria das conquistas dos direitos humanos preenche uma das pginas mais belas
do livro que conta a trajetria humana na Terra (Comparato, 2003). Os direitos de
cidadania da maioria da populao ainda esto, certamente, longe de serem
universalizados. Todavia, a conscincia moral da existncia de direitos inalienveis eindivisveis uma realidade que tem avanado bastante ao longo das ltimas dcadas,
apesar da efetivao desses direitos estar aqum do desejado. A Revoluo Francesa
de 1789, mesmo no se constituindo como nico evento fundamental, foi um marco
na transformao da populao, de um conjunto de indivduos com obrigaes
devidas a um Soberano, para um conjunto de cidados que possuem direitos e so a
fonte da Soberania Nacional. Portanto, representa uma virada na histria da espcie
humana. Porm, os direitos civis e polticos obtidos na aurora da Era moderna foram
apenas um primeiro passo na longa marcha da conquista de uma cidadania plena.
Direitos econmicos, sociais, culturais, reprodutivos e direitos coletivos e difusos
1
Professor Titular do Mestrado em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais da Escola Nacional deCincias Estatsticas (ENCE) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE)
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foram sendo adicionados ao longo do tempo. Todavia ter direitos no significa que a
populao conseguiu alta qualidade de vida e bem-estar.
O debate moderno sobre populao, cidadania e direitos humanos, no por
coincidncia, tem uma mesma origem histrica: a Revoluo Francesa. A partir do
final sculo XVIII, a relao entre populao e cidadania entrou na pauta da discusso
poltica e das preocupaes sociais. Os indivduos que eram contabilizados como
sditos de um monarca (soberania divina), passaram a ser tratados como cidados
possuidores de direitos inalienveis e, em ltima instncia, senhores da soberania
democrtica. Segundo Bobbio, com a Revoluo Francesa houve uma inverso
histrica, em que passou-se da prioridade dos deveres do sdito prioridade dos
direitos dos cidados (1992, p. 3). Todavia, a prevalncia dos direitos humanos na
orientao das polticas pblicas no aconteceu plenamente com o fim do Ancien
Rgime e nem teve uma trajetria linear e continuamente ascendente.
Ao contrrio, durante os ltimos 200 anos houve muitos retrocessos e a
populao foi vtima de polticas equivocadas. Muitas vezes a populao foi tratada
como vil e culpada por seus prprios problemas e no como detentora de direitos
civis, polticos, sociais, econmicos, culturais e reprodutivos. Este artigo apresenta
um breve histrico do debate sobre populao, cidadania e direitos humanos, tendo
como objetivo mostrar que a conquista dos direitos reprodutivos, que teve seu
momento culminante na Conferncia Internacional sobre Populao eDesenvolvimento (CIPD), realizada na cidade do Cairo, em 1994, representou uma
mudana de paradigma na longa trajetria das conquistas democrticas. A existncia
dos direitos reprodutivos uma condio sine qua non para a justia e o avano da
qualidade de vida dos cidados e o progresso das naes. No Brasil, a trajetria das
conquistas democrticas e cidads seguiu um caminho tortuoso, mas apresenta
grandes possibilidades de melhora nesse incio do sculo XXI.
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2. Demografia: o debate sobre populao e cidadania
A palavra demografia formada por dois vocbulos gregos dmos (Demo) -
povo, populao ou povoao, e grphein (grafia) - ao de escrever, descrio ouestudo. O objetivo da demografia , portanto, o estudo das populaes humanas. Ela
estuda o tamanho da populao, sua composio por sexo e idade e seu ritmo de
crescimento, tanto positivo, quanto negativo. Para o demgrafo francs Alfred Sauvy
a demografia pode ser entendida em sentido puro ou amplo. No primeiro caso,
representa uma contabilidade de homens. No segundo caso: estuda os homens em
suas atitudes, seu comportamento; preocupa-se com as causas dos fenmenos e com
suas conseqncias. Nesse sentido, ela desemboca em um campo imenso,
compreendendo numerosas disciplinas: economia, sociologia, etnografia, direito,
poltica, etc., e at mesmo a agronomia, a urbanologia, a biologia, a biometria, a
medicina, etc. Uma vez franqueados os limites que a anlise estabelece, no h mais
fronteiras (Sauvy, 1979, p. 16).
A demografia teve seu maior crescimento no bojo da discusso entre
populao e desenvolvimento, especialmente aps a Revoluo Francesa (1789).
Todavia, ao longo da histria, a demografia tem apresentado muitos avanos, mas
tambm tem sido utilizada de forma inapropriada, criando constrangimentos e recuos
por parte dos demgrafos. No debate sobre populao e desenvolvimento existem
autores que, no longo prazo, enxergam um equilbrio de foras que se auto-ajustam,
enquanto outros consideram que o desequilbrio uma constante. Alguns consideram
que a populao uma varivel independente e outros a consideram uma varivel
dependente do modo de produo econmico prevalecente na sociedade. Porm, em
qualquer contexto, preciso colocar a discusso demogrfica no campo da discusso
da cidadania. Essa discusso tem razes longnquas e conhecer as abordagens
histricas pode nos ajudar a compreender melhor a evoluo da disciplina e, de forma
prtica, nos ajudar a superar possveis impasses, assim como traar rumos para o
avano da disciplina.
Em suas origens clssicas, os estudos demogrficos surgiram, ainda que de
forma embrionria, no bojo da discusso entre populao e cidadania. No seria
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exagero dizer, portanto, que a demografia nasceu com a democracia. A palavra
democracia (demokratia) formada por dois vocbulos gregos dmos (Demo) povo
e kratos - poder. Democracia, portanto, o poder do povo ou o governo do povo.
Mas povo no poder pressupe a existncia de cidados, ao invs de sditos. Para os
gregos ser cidado era participar da plis (ter participao poltica) e tambm ser
habitante da cidade (no latim civitas, que deu origem palavra cidadania e cidado).
Assim, ser cidado ter direitos polticos. Contudo, na democracia grega a
participao poltica era um privilgio dos homens livres das cidades-estado, sendo
que as mulheres, os escravos e os metecos (imigrantes) que constituam a grande
maioria da populao - estavam privados da cidadania e no participavam da liberdade
existente napolis. A populao da Grcia antiga estava dividida em cidados e no-
cidados, no sendo, pois, o conceito de cidadania, uma idia que se aplicava ao
conjunto dos habitantes.
Alm dessa limitao de origem, as dificuldades da democracia de Atenas
(evidentes, por exemplo, na condenao de Scrates) fizeram com que o filsofo
Plato, em um de seus livros clssicos, imaginasse um Estado-ideal onde o controle
da cidade e da populao teria um papel central. Em a Repblica (Politia), Plato
teorizou sobre uma sociedade estratificada, com uma cidadania restringida, j que aos
trabalhadores caberia prover as necessidades materiais da coletividade, aos soldados
a segurana e aos filhos das Idias (os verdadeiros cidados) caberia governar
atravs do Filsofo-Rei. O fundador da Academia defendeu princpios eugnicos,
controle social sobre os filhos e sobre os casamentos (himeneu coletivo), limitao do
tamanho das cidades, etc. A repblica platnica rompeu com a representao grega
da plis e introduziu princpios autoritrios na administrao da populao que
voltariam a aparecer, sob novas formas, nos tempos modernos (Arendt, 2003).
O fim da democracia em Atenas (e tambm em Roma) arrefeceu o debate
sobre cidadania e populao, apesar de ter havido diversas manifestaes tericas
esparsas que foram registradas ao longo dos sculos. S na democracia moderna, a
demografia iria se firmar. Foi com a Revoluo Francesa que novos parmetros foram
estabelecidos e uma consistente formulao terica abriu caminho para os avanos da
cidadania. Um dos primeiros tericos a apresentar uma clara compreenso sobre a
relao entre populao e democracia foi o Marqus de Condorcet (1743-1794).
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Revolucionrio de primeira hora e inspirado nos princpios iluministas e nos ideais de
Liberdade, Igualdade e Fraternidade, escreveu o livro Esboo de um quadro histrico
dos progressos do esprito humano, em 1794, no qual defendia a idia de que o
homem um ser indefinidamente perfectvel, sendo que o avano da civilizao e da
cidadania seria uma vitria da razohumana sobre os preconceitos, os fatalismos e as
supersties. Condorcet considerava que a pobreza, a misria, as epidemias, as
guerras e a fome poderiam ser vencidas por meio das reformas sociais, da interveno
consciente do ser humano e da organizao democrtica das naes. Ele previu uma
grande reduo das taxas de mortalidade e natalidade e considerava que a populao
conquistaria, nos sculos seguintes, nveis elevados de cidadania e progresso material
e cultural (Condorcet, 1993).
Os primeiros anos da Revoluo Francesa foram saudados com entusiasmo
pela intelligentzia europia e significaram a materializao dos progressos da razo da
Idade das Luzes. Porm, a boa receptividade no durou muito e a defesa dos
princpios da democracia e da cidadania no foi observada e nem se difundiu pelo
mundo. As vitrias militares do exrcito de Napoleo e o Terror provocaram um recuo
geral e uma hostilidade, especialmente do outro lado do Canal da Mancha. Edmund
Burke (1729-1797) - aristocrata irlands e parlamentar britnico - foi uma das
primeiras vozes conservadoras a atacar os ideais da Revoluo Francesa, abrindo
caminho para novas crticas. Poucos anos depois, em 1798, o economista ingls e
sacerdote da Igreja Anglicana, Thomas Malthus (1766-1834) publicou o panfleto
intitulado Ensaio sobre o princpio de populao e seus efeitos sobre o
aperfeioamento futuro da sociedade, com observaes sobre as especulaes de Mr.
Godwin, Mr. Condorcet e outros autores2 em que no apenas repudiava os
acontecimentos franceses, mas colocava o crescimento desenfreado da populao
como a principal causa da pobreza, da misria, da fome e das guerras.
No modelo malthusiano no havia espao para a cidadania, entendida como
conquistas polticas, sociais e econmicas. Malthus foi contra a lei dos pobres na
Inglaterra, contra a reduo da jornada de trabalho, e achava que qualquer aumento
de salrio alm do nvel de subsistncia incentivaria o cio e a bebedeira. A teoria
2 A primeira edio do Ensaio surgiu como publicao annima e a segunda edio, conhecida como oSegundo Ensaio, mais completa, foi assinada pelo autor e publicada em 1803.
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populacional de Malthus introduziu princpios conservadores e premissas religiosas
que continuam atuantes nos discursos contemporneos sobre populao e
desenvolvimento. Todavia, embora responsabilizando o alto crescimento populacional
(dos pobres) pelos males da misria, da fome e das guerras, Malthus opunha-se
regulao da fecundidade e era radicalmente contra o aborto, a utilizao de mtodos
contraceptivos pelos casais, o intercurso sexual antes do matrimnio e
relacionamentos sexuais fora do casamento, isto , Malthus era contra os direitos
reprodutivos (Alves, 2002).
Os partidrios da Revoluo Francesa e os pensadores socialistas do sculo
XIX reagiriam contra a ideologia malthusiana, pois consideravam que as causas da
misria, da pobreza e da fome no estavam no crescimento descontrolado da
populao, mas sim na falta de cidadania e de desenvolvimento econmico e social.
Karl Marx (1818-1883), por outro lado, acha que s uma nova revoluo, liderada
pelo proletariado, iria alm do reino das necessidades para criar o reino das liberdades.
No sculo XX, especialmente durante o conflito Leste versus Oeste, ficou muito
marcado a tendncia de a direita pregar o controle da natalidade e a esquerda
defender o desenvolvimentismo (Alves e Corra, 2003).
Enquanto os seguidores de Malthus e Marx polemizavam se o crescimento
demogrfico era ou no um empecilho melhoria da qualidade de vida da populao,
uma nova corrente de pensamento, inspirada em parte em Plato e Darwin, ganhou
corpo: a eugenia. Os eugenistas elaboraram formulaes cientficas destinadas a
demonstrar que a qualidade da populao era mais importante que a cidadania. Os
defensores da eugenia consideravam que o sucesso ou fracasso dos indivduos
dependia mais das caractersticas genticas e menos dos direitos inalienveis da
pessoa humana. Na primeira metade do sculo XX a eugenia, no
surpreendentemente, desaguou no racismo aberto do nazismo alemo e do fascismo
italiano e japons, provocando o maior desastre histrico dos direitos humanos.
Depois da Segunda Guerra Mundial, j num contexto de queda generalizada
das taxas de mortalidade em todo o mundo, a preocupao se voltou para a
manuteno das altas taxas de fecundidade. Os demgrafos neomalthusianos
passaram a chamar ateno para a exploso demogrfica, compartilhando a viso de
que o alto crescimento populacional inviabiliza o combate pobreza, mas divergindo
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de Malthus, ao proporem o controle da fecundidade dentro e fora do casamento.
Livres dos preconceitos religiosos conservadores, vrios idelogos neomalthusianos
advogavam a utilizao de mtodos contraceptivos eficientes, metas populacionais
restritivas e, formas coercitivas de reduo da natalidade, como forma de eliminar os
entraves demogrficos ao desenvolvimento econmico. A ideologia neomalthusiana
ganhou terreno na poltica nas dcadas de 1950 e 1960 e definiram os contedos das
Conferncias de Populao realizadas em Roma, em 1954, e Belgrado, em 1965,
ambas de carter mais acadmico. As metas de crescimento zero da populao
serviram para restringir e cassar os direitos reprodutivos de homens e mulheres.
O debate entre populao e cidadania voltou ao centro da poltica internacional
durante a Conferncia Mundial sobre Populao e Desenvolvimento de Bucareste,
promovida pela primeira vez pela ONU, em 1974, e que contou com a participao de
137 pases. A maioria dos paises foi contra o neomalthusianismo, afirmando O
desenvolvimento o melhor contraceptivo. Contudo, em 1984, quando foi realizada
na Cidade do Mxico a segunda Conferncia de Populao auspiciada pela ONU, a
maioria dos pases em desenvolvimento se mostrava muito mais aberta idia do
planejamento familiar, agora influenciada pelo ressurgimento do conservadorismo
moral no trato das questes populacionais. O governo Reagan nos Estados Unidos, a
Igreja Catlica e outros grupos religiosos envidariam esforos sistemticos para
restaurar a antiga ordem moral afetada pelos desregramentos familiares, sexuais e
reprodutivos decorrentes do progresso, em que se incluam as novas idias
referentes regulao da fecundidade. Na Conferncia do Mxico, em aliana aberta
com o Vaticano, os EUA bloquearam toda e qualquer meno ao aborto no
documento final e conseguiram incluir recomendaes favorveis promoo dos
meios anticoncepcionais ditos naturais (Corra e Sen, 1999).
Na Conferncia Internacional sobre Populao e Desenvolvimento (CIPD)
realizada na cidade do Cairo, em 1994, j no contexto do ps-Guerra Fria, a questo
da cidadania entrou para o centro da agenda internacional. Diferentemente das
conferncias realizadas anteriormente os debates do Cairo no foram prejudicados
pelo conflito Leste versus Oeste. Ao contrrio, a questo populacional foi tratada de
maneira ampla e no exclusivamente associada ao debate sobre crescimento
econmico, mas sim incorporando dimenses relacionadas ao desenvolvimento social,
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ao meio ambiente e, mais especialmente, perspectiva da cidadania e dos direitos
humanos. Circunstncias favorveis fizeram com que a CIPD mobilizasse uma forte
presena de organizaes no-governamentais (ONGs), incluindo-se os movimentos
de mulheres, grupos de ambientalistas e de defensores dos direitos humanos. Nessas
condies polticas excepcionais, a Plataforma do Cairo, aprovada por consenso de
179 pases, conseguiu colocar a questo da populao dentro dos marcos da
cidadania e avanou ao firmar como princpio universal a conquista dos direitos
reprodutivos (Caetano et al, 2004).
A definio de direitos reprodutivos estabelecidos na Conferncia do Cairo
rompeu com qualquer proposio autoritria anterior, ao estabelecer: Os direitos
reprodutivos abrangem certos direitos humanos j reconhecidos em leis nacionais, em
documentos internacionais sobre direitos humanos em outros documentos
consensuais. Esses direitos se ancoram no reconhecimento do direito bsico de todo
casal e de todo indivduo de decidir livre e responsavelmente sobre o nmero, o
espaamento e a oportunidade de ter filhos e de ter a informao e os meios de assim
o fazer, e o direito de gozar do mais elevado padro de sade sexual e reprodutiva.
Inclui tambm seu direito de tomar decises sobre a reproduo, livre de
discriminao, coero ou violncia (Plataforma da CIPD do Cairo, 7.3).
A definio do conceito de direitos reprodutivos no foi um ato isolado, mas
sim fruto de uma grande mobilizao da sociedade civil global que se mobilizou e se
fez presente na Conferncia do Cairo. Tambm, foi de fundamental importncia o
conjunto de Conferncias da ONU que reafirmaram a noo ampla de cidadania, tais
como: a Conferncia sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento no Rio de Janeiro,
1992; a Conferncia Mundial sobre Direitos Humanos de Viena, em 1993; a IV
Conferncia Mundial sobre a Mulher em Pequim, em 1995; a Cpula Mundial sobre o
Desenvolvimento Social em Copenhague, em 1995; a Conferncia Mundial sobre
Assentamentos Humanos em Istambul, em 1996 e a Cpula Mundial sobre Alimentos
em Roma, em 1996. Assim, os direitos reprodutivos surgiram como parte de uma
cidadania plena que inclui os direitos das mulheres, assim como os direitos
ambientais, habitacionais, de segurana alimentar e todos os direitos sociais. Em
sntese: a noo de que os direitos humanos so amplos, universais e indivisveis.
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3. Democracia, cidadania e direitos humanos
Para Aristteles existiam trs formas de governo: Monarquia, que o governo
de um s, Oligarquia, quando apenas alguns cidados esto no governo e Democracia
que representaria o governo de todos. Assim, a Democracia, desde a sua concepo
grega, o regime construdo a partir da soberania popular (Todo poder emana do
povo). Em tese, ademocracia poltica o regime em que cada indivduo (adulto) tem
a possibilidade de participar livremente das decises polticas que afetam a sua vida
pessoal e coletiva. O cidado o sujeito que tem liberdade e autonomia para legislar
para a coletividade e, em ltima instncia, para si mesmo. Em tese, cada cidado,
como membro da soberania popular, livre para legislar ou para escolher seus
representantes legislativos e s deve obedincia s leis (votadas
democraticamente).3 A democracia poltica representativa exige: liberdade e soberania
do ato eleitoral, obedincia vontade expressa da maioria, divisodos poderes (para
evitar o autoritarismo e os abusos) e respeito aos direitos das minorias. Nessas
condies, ser cidado ter direito vida, liberdade, livre iniciativa, propriedade,
segurana, privacidade, justia, igualdade perante a lei (direitos civis); ,
tambm, participar no destino da sociedade, votar, ser votado, ter liberdade de
expresso, manifestao e associao (direitos polticos). A democracia poltica d
mais nfase ao quesito liberdade e, em geral, requer controle popular sobre os
poderes constitudos e a no interveno estatal na liberdade individual e social.
A democracia social aquela que d nfase aos fatores que propiciam a maior
igualdade social, buscando garantir a participao proporcional do indivduo na riqueza
coletiva. Nessas condies, ser cidado ter o direito educao, habitao, ao
trabalho, ao salrio justo, sade e ao atendimento mdico, segurana alimentar,
previdncia, ao lazer, em suma, ter direito a uma vida digna, satisfatria e feliz. Ao
contrrio da democracia poltica, a democracia social d mais nfase igualdade, o
que, em geral, requer maior interveno estatal para se atender as demandas sociais,
3
Na definio de Rousseau os legisladores devem fazer prevalecer a vontade geral. Porm, na democraciarepresentativa nem sempre os legisladores representam verdadeiramente seus eleitores e nem sempreconseguem (ou desejam) conciliar o interesse particular e o interesse coletivo. Nas democracias modernasexiste uma longa distncia entre o ideal terico de representao e a prtica real. Mas essa discusso foge aoescopo do Texto.
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assim como para regular as distores causadas pela atuao dos diversos agentes
econmicos a partir da lgica do mercado.4
A democracia poltica no incompatvel com a democracia social, mas nem
sempre elas andam juntas. Ter cidadania plena, isto , ter direitos civis, polticos,
econmicos, sociais, culturais e reprodutivos ser cidado de uma democracia queconsiga combinar a maior liberdade possvel com a maior igualdade desejvel,
especialmente a mais completa igualdade de oportunidades. De fato, a democracia e a
cidadania no so uma realidade estanque, mas sim um processo histrico, o que
significa que variam no tempo e no espao. Nesse processo histrico, teve papel
fundamental a concepo moderna dos direitos humanos baseada no princpio de que
Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos.
No caminho clssico, a cidadania civil e poltica precedeu a social. O professor
emrito da Universidade de Londres, T. H. Marshall, em Conferncia realizada em
Cambridge, em 1949, fez questo de reafirmar a crena do famoso economista ingls
Alfred Marshall, at ento posta em dvida, da possibilidade de que, mais cedo ou
mais tarde, todo homem ser um cidado. Ele foi o primeiro terico a apresentar a
evoluo dos direitos humanos em trs partes, ou geraes: civil, poltica e social. O
direito civil composto dos direitos necessrios liberdade individual liberdade de ir
e vir, liberdade de imprensa e de concluir contratos vlidos e o direito justia. O
componente poltico entendido como o direito de participar no exerccio do poder
poltico, como um membro de um organismo investido da autoridade poltica ou como
eleitor dos membros de tal organismo (Legislativo e Executivo). O componente social
se refere a tudo o que vai desde o direito a um mnimo de bem-estar econmico e
segurana ao direito de participar, por completo, na herana social e levar a vida de
um ser civilizado de acordo com os padres que prevalecem na sociedade. As
instituies mais intimamente ligadas com ele so o sistema educacional e os servios
sociais.
O objetivo de T. H. Marshall no foi teorizar sobre a divisibilidade dos direitos
humanos ou traar um modelo de evoluo da cidadania. Ele apenas apontou, de
4
O termo mercado utilizado para designar a existncia de um processo de compra e venda de bens,servios, trabalho, dinheiro, etc., que segue a lgica da racionalidade econmica na busca da melhoralocao dos fatores de produo e venda de mercadorias e servios.
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maneira resumida, o desenvolvimento da cidadania na Inglaterra, relacionando os
direitos civis (Habeas Corpus, abolio da censura imprensa, direito consuetudinrio,
etc.) ao sculo XVIII, os direitos polticos (direito ao voto de grupos e que foi se
tornando universal, direito de associao, etc.) ao sculo XIX e os direitos sociais
(trabalho, educao, sade, previdncia, etc.) ao sculo XX. Com seu estudo
histrico, ele mostrou que o enriquecimento do status da cidadania foi uma forma
de reduzir as desigualdades sociais (Marshall, 1967).
Sem dvida, os direitos civis na Inglaterra tiveram um grande impulso aps a
chamada Revoluo Gloriosa, de 1688 e apresentaram uma evoluo nos sculos
seguintes. Tambm a Declarao de Independncia dos Estados Unidos da Amrica,
de 1776, foi um momento maior da afirmao dos direitos humanos. Mas foi com a
Revoluo Francesa, quando a Assemblia Nacional aprovou, no dia 26 de agosto de
1789, a Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado que a sociedade humana
assistiu sua revoluo copernicana. Contudo, na maior parte do sculo XIX e
durante as duas grandes Guerras Mundiais do sculo XX, os direitos humanos tiveram
uma aplicao limitada a parcelas minoritrias da populao de poucas naes do
mundo.
O grande salto da universalizao dos direitos humanos ocorreu na segunda
metade do sculo XX. O momento axial aconteceu com a criao da Organizao das
Naes Unidas (ONU), quando os Estados integrantes da ordem internacional do Ps-Guerra lanavam-se ao desafio de construir um cdigo universal de direitos humanos,
estabelecendo na Carta da ONU o propsito de promover e encorajar o respeito aos
direitos humanos. Para esse fim foi criada a Comisso dos Direitos Humanos (CDH)
que recebeu a incumbncia de elaborar uma Carta Internacional de Direitos. No dia 10
de dezembro de 1948 foi aprovada sem reservas e sem votos contrrios, por 48
naes, a Declarao Universal dos Direitos Humanos, consagrando um consenso
sobre valores de cunho universal a serem seguidos pelos Estados. A Declarao de
1948 introduz a concepo contempornea de direitos humanos marcada pela
universalidade e indivisibilidade destes direitos. A universalidade dos direitos humanos
resgata a idia de que a condio de pessoa o atributo nico e exclusivo para a
titularidade de direitos e enfatiza o valor da dignidade inerente ao indivduo, sendo
proibida qualquer discriminao que tenha por base a raa, a etnia, a nacionalidade, o
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gnero, a idade e demais critrios. Alm do alcance global dos direitos humanos, a
Declarao Universal tambm inova ao consagrar direitos civis e polticos edireitos
econmicos, sociais e culturais. A Declarao ineditamente combina o discurso liberal
e o discurso social da cidadania, conjugando o valor da liberdade ao valor da
igualdade (Piovesan, 1998).
A universalidade dos direitos humanos implica tambm no processo de
internacionalizao destes direitos, passando da esfera nacional para a esfera mundial
e, ambas, se reforando mutuamente. Exatamente por isso, assumiram importncia
primordial as Conferncias da ONU na difuso dos direitos de cidadania. Partindo-se
do critrio metodolgico que classifica os direitos humanos em geraes, a
Declarao Universal adotou o entendimento de que uma gerao de direitos no
substitui a outra, mas se interagem no ciclo intergeracional. Assim, a idia da
sucesso progressiva de direitos acolhe a idia da expanso, cumulao e
fortalecimento dos direitos humanos consagrados, todos essencialmente
complementares e em constante dinmica de interao. Os direitos definidos na
Declarao costumam ser relacionados em duas categorias: os civis e polticos,
correspondendo aos Artigos 3 seguintes at o 21 e os econmicos, sociais e
culturais, do Artigo 22 ao 28.
A idia de que a noo de Direitos Humanos uma construo ideolgica
desenvolvida pelo capitalismo desenvolvido no aplicvel ao resto do mundo umerro. Como mostrou o embaixador brasileiro Lindgren Alves, as afirmaes de que a
Declarao Universal um documento de interesse apenas ocidental so falsas e
perniciosas: Falsas porque todas as Constituies nacionais redigidas aps a adoo
da Declarao pela Assemblia Geral da ONU nela se inspiram ao tratar dos direitos e
liberdades fundamentais, pondo em evidncia, assim, o carter hoje universal de seus
valores. Perniciosas porque abrem possibilidades invocao do relativismo cultural
como justificativa para violaes concretas de direitos j internacionalmente
reconhecidos (Alves, 2003)
Adotada a Declarao Universal, a CDH comeou a preparar uma Conveno
ou Pacto destinado a regular a aplicao dos direitos recm reconhecidos
internacionalmente. Contudo, alguns pases se opuseram a uma nica Conveno,
alegando de que os direitos correspondiam a espcies distintas: os civis e polticos
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seriam de aplicao imediata, enquanto os econmicos, sociais e culturais seriam de
aplicao progressiva. No contexto da Guerra Fria foi difcil chegar a um acordo.
Depois de um longo processo de debates e controvrsias, a Assemblia Geral da
ONU, por unanimidade, aprovou em 10 de dezembro de 1966 o Pacto Internacional
de Direitos Civis e Polticos e o Pacto Internacional de Direitos Econmicos, Sociais eCulturais.
Desde a proclamao da Declarao Universal, de 1948, as Naes Unidas
adotaram mais de sessenta declaraes ou convenes, dentre as mais importantes,
se destacam:
Conveno Internacional para a Eliminao de Todas as Formas de
Discriminao Racial (1965);
Conveno para a Eliminao de Todas as Formas de Discriminao contra
a Mulher (1979);
Conveno contra a Tortura e outros Tratamentos e Punies Cruis,
Desumanos e Degradantes (1984);
Conveno sobre os Direitos da Criana (1989).
Houve tambm duas importantes Conferncias internacionais. A primeira
Conferncia Mundial de Direitos Humanos - Teer, 1968 - representou, de certo
modo, a gradual passagem da fase legislativa, de elaborao dos primeiros
instrumentos internacionais de direitos humanos (a exemplo dos dois Pactos de
1966), fase de implementao de tais instrumentos. A segunda Conferncia
Mundial de Direitos Humanos - Viena, 1993 - procedeu a uma reavaliao global da
aplicao de tais instrumentos e das perspectivas para o novo sculo, abrindo campo
ao exame do processo de consolidao e aperfeioamento dos mecanismos de
proteo internacional dos direitos humanos. A Conferncia de Viena, ocorrida no
contexto ps-Guerra Fria, avanou no propsito de assegurar a indivisibilidade detodos os direitos civis, polticos, econmicos, sociais e culturais com ateno
especial aos mais necessitados de proteo.
Todos os avanos tericos e prticos, que permitiram a implantao dos
princpios dos direitos humanos no mundo na segunda metade do sculo XX,
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propiciaram a criao de um campo frtil para a elaborao dos direitos reprodutivos,
aprovados na Conferncia Internacional de Populao e Desenvolvimento, ocorrida na
cidade do Cairo, apenas um ano depois da Conferncia de Viena. O impacto de todo
esse processo sobre o Brasil e a luta pela cidadania no pas foi muito grande. A
interao entre as conquistas internacionaise nacionais possibilitou que populao,
cidadania e direitos humanos no Brasil passassem a ser tratadas de maneira conjunta,
abrindo espao para a superao das velhas crenas neomalthusianas.
4. Democracia, cidadania e direitos humanos no Brasil
Os conceitos de cidadania e direitos humanos no Brasil foram recebendo os
aportes internacionais e se desenvolvendo, internamente, a partir de conflitos e de
lutas econmicas, sociais e culturais. Mas a trajetria da cidadania brasileira foi muito
tumultuada e sofreu inmeros revezes, antes de se tornar tema corrente e recorrente
a partir do processo de redemocratizao de meados da dcada de 1980 e da
Constituio Cidad, de 1988. Ao contrrio da histria inglesa, os avanos da
cidadania brasileira no seguiram a seqncia das geraes dos direitos civis, polticos
e sociais, cada um correspondendo a um dos trs ltimos sculos. A democracia
brasileira e a construo cidad no pas tiveram uma histria mais acidentada e, de
certa forma, mais complexa, apesar de mais limitada (Carvalho, 2003).
O Brasil herdou, em 1822, quando da Proclamao da Independncia, uma
tradio cvica pouco encorajadora. Os portugueses deixaram um territrio e uma
cultura relativamente unidos, mas tambm uma populao analfabeta, uma sociedade
baseada no trabalho escravo, uma economia monocultora e latifundiria e um Estadoabsolutista. No havia cidados brasileiros. E o pior, a independncia no introduziu
mudanas radicais nesse panorama. Mesmo durante o Imprio (1822-1889) os
direitos civis beneficiavam a poucos, os direitos polticos a pouqussimos e nem se
falava em direitos sociais. O fim da escravido em 1888 foi um avano, sem dvida,
mas a introduo do trabalho livre no significou que a populao negra tenha
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conquistado a cidadania. A obteno de alguns direitos formais no implicou na
conquista de direitos reais. Nas palavras do presidente Washington Lus,
representando o pensamento reinante na Repblica Velha (1989-1930), a questo
social uma questo de polcia.
A questo social s passaria a ser tratada como uma questo de poltica apsa Revoluo que terminou com a Republica do Caf com Leite. O presidente Getlio
Vargas chegou ao poder atravs de uma insurreio em 1930, foi eleito de forma
indireta em 1934 e deu o golpe de 1937, cancelando as eleies programadas e
instalando a ditadura do Estado Novo. Com a Revoluo de 30 o pas abandonou o
modelo primrio-exportador e iniciou um processo de industrializao, com base no
mercado interno, via substituio de importaes. O ano de 1930 foi um divisor de
guas, tambm, no que diz respeito histria da cidadania. Os principais avanos se
deram no plano da poltica social especialmente com a legislao trabalhista e
previdenciria e no no plano dos direitos polticos5. No primeiro governo Vargas
teve incio o processo de Modernizao Conservadora, que pressupe uma analogia,
do caso brasileiro, "revoluo passiva" ou via prussiana de passagem sociedade
do tipo industrial. Na chamada "revoluo passiva brasileira" no existe uma
cidadania plena, mas sim uma cidadania que vem sendo qualificada pelos diferentes
autores como: "deficitria", "incompleta", "regulada", "inacabada", "imperfeita",
"virtual", dentre outras (Viana, 1996).
Ao fim do governo Vargas, iniciou-se um processo de democratizao, sendo
que a Constituio de 1946 manteve as conquistas sociais do perodo anterior e
garantiu os tradicionais direitos civis e polticos. Porm, o Brasil continuava um pas
majoritariamente rural com forte influncia das elites oligrquicas. Durante os 19 anos
da Repblica Populista (1945-1964) menos de 20% da populao brasileira estava
apta a votar e a cidadania social estava restrita a algumas categorias de trabalhadores
que estavam cobertos pela assinatura da Carteira de Trabalho, era a chamada
cidadania regulada (Santos, 1979). Em 1950, 54% dos homens e 61 das mulheres
eram analfabetas. O censo demogrfico de 1960 mostra que as condies
5
Uma grande conquista poltica aconteceu em 1932, atravs da legislao que introduziu o voto feminino,acabando com a excluso poltica da metade da populao brasileira. Mas as mulheres s comearam autilizar de fato esse direito, ainda que de maneira limitada, aps o processo de redemocratizao de 1945.
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habitacionais eram extremamente precrias: somente 21% tinham acesso rede geral
de gua, 13% estavam ligados rede de esgoto, 38,5% tinham luz eltrica, 4,5%
tinham televiso e 11% tinham geladeira (Alves, 2004).
O golpe de maro de 64 instituiu a Ditadura Militar (1964-1985) que
restringiu significativamente os direitos polticos. Os Atos Institucionais (AI), 1 e 2implantaram a represso poltica visando reforar o Poder Executivo e restringir a
atuao dos sindicatos, partidos e associaes. Com o AI-5, de dezembro de 1968,
iniciou-se a fase mais repressora da ditadura, com perseguio, tortura e morte de
opositores polticos, cassao de mandatos de deputados, expurgo de funcionrios
pblicos e professores universitrios, etc. Contudo, no plano das polticas pblicas,
houve at ampliao dos direitos sociais6, a despeito da ampliao simultnea da
desigualdade social (Fausto, 1995).
No final dos anos 70 o Brasil assistiu um ressurgimento do movimento de
massas, atravs da luta contra a carestia, pela anistia, por melhores condies de
trabalho e salrio, pelas liberdades democrticas, etc. A campanha pelas Diretas J,
de 1984 se constituiu na maior mobilizao popular do perodo e antecipou o
processo de democratizao que teria efeito aps 1985 e culminaria na Assemblia
Constituinte. A Constituio Cidad, de 1988, foi um marco do estabelecimento dos
direitos civis e polticos e no tratamento dos direitos humanos na concepo
universalista e indivisvel, com prevalncia da dignidade da pessoa humana.
Com a chamada Nova Repblica, que teve incio com a eleio indireta de
Tancredo Neves em 1985, o Brasil iniciou um novo ciclo histrico. Pela primeira vez
os direitos econmicos, sociais, culturais e reprodutivos passaram a ser enfrentados
em um quadro que prevalece o Estado de Direito (direitos civis e polticos) amplo,
geral e irrestrito. De fato, os dados da tabela 1 mostram que o eleitorado de 1933
representava apenas 3,7% da populao brasileira. Durante os 19 anos da Repblica
Populista o eleitorado atingiu no mximo 22% da populao. Durante a maior parte daditadura militar o eleitorado cresceu, mas no existia eleies para governadores e
presidente da Repblica. O grande salto do eleitorado aconteceu depois da
6
Durante a ditadura militar houve ampliao especialmente da previdncia (com a criao do INPS) e dossistemas educacionais e de sade.
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Constituio de 1988, que permitiu o voto dos analfabetos e possibilitou o voto
facultativo para os jovens entre 16 e 18 anos.
Os dados da tabela 1 tambm mostram que a grande ampliao da democracia
brasileira se deveu ao crescente alistamento eleitoral das mulheres. No se tem dados
precisos sobre o eleitorado feminino at 1974, mas sabe-se que comeou em umabase muito pequena e foi crescendo aos poucos. Nas dcadas de 30 e 40 as
mulheres eram maioria analfabetas e no podiam votar. O crescente nvel de
educao e participao poltica das mulheres fez com que o sexo feminino se
tornasse maioria do eleitorado nas eleies do ano 2000. O nmero de mulheres
eleitas para o parlamento tem aumentado progressivamente, mas ainda est muito
aqum de uma situao com maior equidade de gnero. Para aumentar a participao
feminina no Parlamento, o Congresso brasileiro instituiu uma poltica instituindo 30%
no mnimo e 70% no mximo das candidaturas para cada sexo (Alves, 2003).
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Tabela 1
Populao, eleitorado total e feminino no Brasil: 1933-2004
Ano Populao Eleitorado Total% eleitorado
sobre apopulao
Eleitoradofeminino
% doeleitoradofeminino
1933 39.939 1.466 3,7
1945 46.177 7.459 16,2
1950 51.944 11.455 22,1
1960 70.191 15.543 22,1
1970 91.139 28.966 31,8
1974 100.000 34.000 34,0 12.000 35,3
1980 119.900 49.079 40,9 22.089 45,0
1990 144.500 83.817 58,0 41.082 49,0
1998 165.000 106.101 64,3 52.795 49,8
2000 170.000 109.826 64,6 55.437 50,5
2002 175.000 115.254 65,9 58.605 50,8
2004 179.000 118.493 66,2 60.668 51,2
Fonte: Nicolau, 2002, IBGE, 2004 e TSE
O quadro partidrio tambm se alterou muito no Brasil nos ltimos 75 anos. Os
partidos da Repblica Velha (1889-1930) no tinham um carter nacional. Os
partidos Republicanos Mineiro e Paulista os famosos PRM e PRP eram peasessenciais das mquinas da poltica dos governadores estaduais. ou dos Estados. O
Partido Comunista Brasileiro PCB foi criado em 1922, fez uma tentativa
equivocada e fracassada de chegada ao poder em 1935 e s se consolidou como uma
promessa de alternativa de esquerda depois de 1945. Contudo, o PCB foi posto na
ilegalidade em 1947. Trs partidosdominaram a cena poltica brasileira entre 1945 e
1964: o Partido Social Democrtico (PSD), o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e a
Unio Democrtica Nacional (UDN). O regime militar mudou totalmente o quadro
permitindo o funcionamento de apenas duas agremiaes partidrias: a ARENA -
Aliana Renovadora Nacional e o MDB - Movimento Democrtico Brasileiro. A ampla
liberdade partidria no Brasil s viria a acontecer depois de 1985 (Schmitt, 2000).
Em 1989 o Brasil retomou o processo de eleies diretas para Presidente da
Repblica. Em 2002, pela primeira vez, foi eleito um presidente de origem operria -
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migrante nordestino que se tornou lder sindical em So Paulo. As primeiras eleies
presidenciais do sculo XXI marcaram uma efetiva alternncia de poder, tanto em
termos de partido quanto em termos de representao de classe. As eleies
municipais de 2004 consolidaram o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e o
Partido dos Trabalhadores (PT) como as duas maiores agremiaes partidrias do pas,
dentre as 27 siglas existentes. A normalidade democrtica tem se consolidado no
Brasil. Mesmo que ainda imperfeita, jamais na histria da democracia brasileira se
atingiu um grau, quantitativo e qualitativo, de participao popular. Desta forma,
espera-se que a conquista dos direitos civis e polticos possam criar o cenrio propcio
para que a populao, em um regime democrtico, tenha condies de se movimentar
com liberdade para conquistar os demais direitos de cidadania, permitindo que cada
pessoa se transforme em uma cidad plena, participando da gerao e da repartio
da riqueza nacional.
5. Populao e Direitos Reprodutivos no Brasil
Como a trajetria dos direitos civis e polticos foi tortuosa e como o alcance
dos direitos econmicos, sociais e culturais so restritos, no de se estranhar que a
populao brasileira no tenha conseguido, at hoje, ter acesso integral aos direitos
reprodutivos. Nessa rea, inclusive, os cidados e cidads enfrentam as ideologias do
Estado e das igrejas. Desta forma, as parcelas mais carentes da populao brasileira
alm de terem dificuldades de acesso sade bsica, tambm tm dificuldades
especiais de acesso sade sexual e reprodutiva. As mulheres brasileiras e os casais
tm que enfrentar o descaso do Estado com a sade e a resistncia do
conservadorismo moral e do fundamentalismo religioso em relao aos direitosreprodutivos.
Tanto o Brasil, quanto os demais pases latino-americanos, adotaram, ao longo
dos sculos, desde a colonizao, uma poltica populacional expansionista visando
ocupao territorial e consolidao das suas fronteiras. Alm disso, o tipo de
atividade econmica prevalecente at meados do sculo XX, que tinha como base a
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economia de subsistncia, o colonato e as parcerias agrcolas, favorecia um padro de
casamento precoce e a adoo de famlias numerosas, devido ao baixo custo das
crianas e aos altos benefcios dos filhos para com as geraes mais velhas. O Estado
e a Igreja legitimavam uma alta natalidade, especialmente diante das altas taxas de
mortalidade comuns em todo o continente. Nos anos de 1940 foi implantada uma
legislao explicitamente anticontrolista no Brasil que favorecia a famlia numerosa,
proibia o aborto e tratava como contraveno a divulgao de mtodos
anticonceptivos e desestimulava a prtica de preveno da gravidez. Esta legislao
restritiva permaneceu em vigor durante todo o perodo democrtico seguinte e foi
radicalizada na primeira fase do regime militar.
Segundo Wood e Carvalho: At recentemente, a poltica governamental
relativa populao era francamente pr-natalista. A segurana nacional e o desejo
de povoar regies de fronteira figuravam entre os fatores que explicam a relutncia
oficial em endossar qualquer poltica que se vislumbrasse como ameaa ao
crescimento populacional. A posio pr-natalista mostrava-se compatvel com as
doutrinas da Igreja Catlica, cujos ensinamentos permeavam pronunciamentos
pblicos. Em 1967, o presidente Costa e Silva comentava, da seguinte maneira, a
Encclica Humanae Vitae do Papa Paulo VI em um pronunciamento que demonstra a
notvel fuso entre religio e poltica: como chefe de uma nao que se esfora em
ocupar mais da metade do seu territrio e que est, ainda, exposta aos riscos de umadensidade demogrfica incompatvel com as necessidades globais de seu
desenvolvimento e segurana, no nos atemos nossa inabalvel f nos
mandamentos do Cristianismo para aplaudir esse notvel documento (1994, p. 183).
A preocupao expansionista mostra que as elites brasileiras, at o incio da
dcada de 1970, estavam mais preocupadas com a ocupao populacional dos
espaos vazios do territrio nacional do que com o atendimento dos direitos
reprodutivos e de cidadania. A queda das taxas de mortalidade em geral e, em
especial, da mortalidade infantil, desde os anos 40, fizeram aumentar o nmero de
filhos sobreviventes, enquanto as mudanas estruturais e institucionais ocorridas no
perodo, diminuram a demanda por filhos. O desejo de reduzir o tamanho da prole fez
crescer a demanda por mtodos contraceptivos eficazes. A regulao da fecundidade
deixou de ser uma pauta imposta pelo neomalthusianismo, para se tornar uma
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demanda legtima do direito autodeterminao reprodutiva. A partir dos anos 80,
principalmente aps o processo de democratizao do pas, a discusso sobre o
tamanho e o ritmo de crescimento da populao, no plano macro, cedeu espao para
o debate sobre as condies de vida dos brasileiros, sobre as desigualdades sociais e
regionais e sobre a degradao do meio ambiente. Por outro lado, cresceu a
discusso, no plano micro, sobre a regulao da fecundidade e o planejamento
familiar, no no sentido de definir o volume da populao, mas como um meio de as
pessoas estabelecerem o tamanho desejado de famlia.
Devido interveno dos defensores dos direitos humanos e, principalmente,
em decorrncia da participao ativa do movimento feminista, a questo da regulao
da fecundidade passou a fazer parte das demandas sociais. A primeira iniciativa
governamental no sentido de oferecer servios na rea da reproduo se deu por meio
do Ministrio da Sade que lanou, em 1977, o Programa de Sade Materno-Infantil,
contemplando a preveno da gestao de alto risco. Mas com a crescente presena
feministas no cenrio poltico nacional, a questo do planejamento familiar passou a
ser defendida dentro do contexto da sade integral da mulher. O resultado foi o
lanamento do Programa de Assistncia Integral Sade da Mulher (PAISM), que se
propunha a atender a sade da mulher durante seu ciclo vital, no apenas durante a
gravidez e lactao, dando ateno a todos os aspectos de sua sade, incluindo
preveno de cncer, atenoginecolgica, planejamento familiar e tratamento parainfertilidade, ateno pr-natal, no parto e ps-parto, diagnstico e tratamento de
Doenas Sexualmente Transmissveis - DSTs, assim como de doenas ocupacionais e
mentais.
O PAISM representou um grande avano em relao a toda discusso
anterior, pois assumiu uma postura de neutralidade diante dos objetivos natalistas ou
controlistas das polticas sociais do pas e colocou a questo da regulao da
fecundidade nas delimitaes dos parmetros dos direitos humanos. Tendo como
base os princpios do PAISM e o quadro mais geral dos direitos humanos, foi que se
travou um grande debate para normatizar, de forma democrtica, a questo da
regulao da fecundidade na Constituio de 1988. Ouvidos os principais atores
polticos e sociais envolvidos com a questo da reproduo, A Assemblia
Constituinte redigiu e aprovou o 7, do artigo 226 da Constituio brasileira de
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1988, da seguinte forma: Fundado nos princpios da dignidade da pessoa humana e
da paternidade responsvel, o planejamento familiar livre deciso do casal,
competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e cientficos para o exerccio
desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituies oficiais ou
privadas (Constituio Federal, 1988).
Na Constituinte houve uma certa soluo de compromisso quanto questo do
aborto e o assunto no fez parte do texto constitucional, j que as feministas
propugnavam a importncia da legalizao do aborto, por razes teraputicas e como
um problema de sade pblica, enquanto as Igrejas Catlicas e Evanglicas defendiam
o direito vida desde o momento da concepo, o que eliminaria a possibilidade de
se permitir o aborto voluntrio nos casos previstos pela legislao vigente. A questo
da esterilizao tambm no fez parte do texto constitucional. A ligao tubria e a
esterilizao masculina eram vetadas pela legislao brasileira que considerava crime
qualquer leso corporal de natureza grave, resultando em debilidade permanente de
membro, sentido ou funo do corpo. Todavia, a alta prevalncia da esterilizao no
Brasil motivou a instaurao de uma Comisso Parlamentar de Inqurito (CPI), em
1991, para investigar as causas da esterilizao em massa das mulheres brasileiras
e se existia maior probabilidade de esterilizao das mulheres negras. Os trabalhos da
CPI mostraram que no existia discriminao racial j que as mulheres brancas
tinham maior probabilidade de estarem esterilizadas mas apontou para a
necessidade da regulamentao da prtica de esterilizao feminina e masculina
(Cavenaghi, 1997).
A partir das concluses da CPI, o Parlamento brasileiro comeou a discutir uma
lei sobre o assunto. Somente em 1996 o Congresso Nacional aprovou a Lei n. 9.263
de 1996, que regulamenta o pargrafo 7 do art. 226 da Constituio Federal, que
trata do planejamento familiar no Brasil. Contudo, o artigo 10 da referida lei, que
tratava da questo da esterilizao foi vetado pelo Presidente da Repblica e, depois
de muito debate, foi finalmente aprovado e sancionado no final de 1997. A
concepo que permeia o contedo da referida Lei tributria do conceito dos direitos
reprodutivos, conforme estabelecido na CIPD do Cairo de 1994. Desta forma, pode-se
perceber que nas dcadas de 1980 e 1990 o Brasil conseguiu implantar uma
legislao regulando a prtica dos direitos reprodutivos no pas.
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Porm, apesar da legislao brasileira respeitar, em tese, os direitos humanos
na rea reprodutiva, a disponibilidade e a variedade de mtodos contraceptivos na
rede pblica de sade continuam baixas devido crise fiscal do Estado brasileiro. O
fato que as famlias mais pobres no podem exercer de maneira plena os seus
direitos autodeterminao reprodutiva. Como mostrou Faria (1989), existe um
efeito perverso no processo de transio demogrfica no Brasil, pois as camadas
sociais mais pobres da populao aquelas que possuem menos acesso aos direitos
de educao, emprego formal e sade no possuem recursos para obter os meios
de regular a fecundidade e so obrigadas a conviver com a gravidez indesejada7.
Desta forma, so exatamente as parcelas da populao mais excludas da cidadania
social que encontram, tambm, mais dificuldades para ter acesso aos direitos
reprodutivos.
Na verdade, o Brasil do comeo do sculo XXI j tem os instrumentos legais e
institucionais para atender a demanda por regulao da fecundidade. O PAISM, o
Sistema nico de Sade (SUS), o pargrafo 7 do Artigo 226 da Constituio Federal
e a Lei n 9.263 de 1996 foram concebidos de acordos com as recomendaes
emanadas da Declarao Universal dos Direitos Humanos e das Conferncias
Mundiais de Teer e de Viena, alm, obviamente, de estar em consonncia com a
Plataforma do Cairo. Portanto, basta colocar em prtica o que est na legislao
nacional e mundial para que o pas respeite os direitos reprodutivos e as concepes
demogrficas aprovadas nos Fruns Internacionais.
6. Concluses
O filsofo alemo Immanuel Kant (1724-1804) dizia que, juntamente com o
cu estrelado, a conscincia moral das pessoas era uma das duas coisas que o
deixavam maravilhado. Ele encarava a Revoluo Francesa como um marco da
disposio do homem a progredir e um smbolo da perfectibilidade humana.
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Muitas mulheres que ficam grvidas por falta de acesso aos mtodos contraceptivos acabam recorrendo aoaborto inseguro e, freqentemente, acabam engrossando as estatsticas de mortalidade materna.
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Inspirado nas idias de Kant, Bobbio defende a seguinte tese: O atual debate sobre
os direitos do homem cada vez mais, amplo, cada vez mais intenso, to amplo que
agora envolveu todos os povos da Terra, to intenso quefoi posto na ordem do dia
pelas mais autorizadas assemblias internacionais pode ser interpretado como um
sinal premonitrio (signum prognosticum) do progresso moral da humanidade
(Bobbio, 1992, p. 52).
Os direitos reprodutivos aprovados na CIPD do Cairo so o filho caula da
Declarao Universal dos Direitos Humanos, de 1948. No por acaso, o direito vida
tem destaque especial na Declarao. J o direito de planejar a vida, regulando a
fecundidade, no poderia ficar de fora do arcabouo geral dos direitos humanos.
Exatamente por isso, o Consenso do Cairo de 1994, reafirmado na IV Conferncia
Mundial da Mulher, de Pequim, em 1995, vieram coroar todo o esforo para se criar
um cdigo universal de direitos humanos, incluindo os direitos reprodutivos. Essa
nova concepo de direito ainda mais importante quando consideramos que, na sua
origem, a cidadania exclua as mulheres. Portanto, criou-se um consenso que no
haver direitos humanos se no se alcanar os plenos direitos das mulheres.
Na virada do milnio existe o reconhecimento de que apesar de todos os
avanos polticos e tericos alcanados, a efetivao dos direitos humanos ainda est
longe de ser uma realidade no mundo. Por isso, os pases das Naes Unidas,
reunidos na Cpula do Milnio, em 2000, lanaram as Metas do Milnio com o
objetivo de criar uma mobilizao internacional em torno de 8 metas visando tornar a
cidadania o centro dos esforos da comunidade mundial para uma melhoria
mensurvel e significante, mesmo que ainda parcial, das condies de vida dos povos:
1) Erradicar a pobreza extrema e a fome; 2) Atingir o ensino bsico universal; 3)
Promover igualdade de gnero e autonomia das mulheres; 4) Reduo da mortalidade
infantil; 5) Melhorar a sade materna; 6) Combater HIV/aids, malria, e outras
doenas; 7) Garantir a sustentabilidade ambiental; 8) Estabelecer uma Parceria
Mundial para o Desenvolvimento. Porm, as Metas do Milnio podem serconsideradas um mnimo denominador comum do que se tem discutido no mundo em
termos de direitos humanos, pois a agenda das diversas Conferncias Internacionais
muito mais ampla.
No Brasil, foram feitos muitos esforos, aps 1930, para construir e ampliar a
cidadania. Todavia, chegamos no sculo XXI com a sensao desconfortvel de uma
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transio incompleta. Parcelas significativas da populao encontram-se abaixo da
linha de pobreza, sem acesso educao, sade, ao saneamento bsico, aos meios
de regulao dafecundidade, etc. De acordo com vila (2002, p.125): Nas ltimas
duas dcadas, no Brasil e na Amrica Latina, a cidadania ganhou importncia como
referncia para os projetos de transformao social. possvel afirmar que a luta por
democracia no Brasil se desenvolve em torno da luta por uma cidadania real. Por outro
lado, onde no existe cidadania e sua correlata, a democracia, j est dado que os
direitos humanos no so respeitados.
Segundo Carvalho, (2003, p. 220) a conquista dos direitos humanos, na
seqncia inglesa, seguiu uma lgica que reforava a convico democrtica: As
liberdades civis vieram primeiro, garantidas por um Judicirio cada vez mais
independente do Executivo. Com base no exerccio das liberdades, expandiram-se os
direitos polticos consolidados pelos partidos e pelo Legislativo. Finalmente, pela ao
dos partidos e do Congresso, voaram-se os direitos sociais, postos em prtica pelo
Executivo. A base de tudo era as liberdades civis. Contudo, o exemplo ingls no o
nico caminho, j que existem pases bem sucedidos que tambm passaram por
grandes turbulncias.
De certo, a histria da democracia brasileira no sculo XX no seguiu a
seqncia relatada por Marshall, mas o sculo XXI comeou com as maiores eleies
gerais do pas (com cerca de 66% dos brasileiros aptos a votar) e com o
fortalecimento do Estado de Direito. O Brasil demorou a criar uma democracia civil e
poltica, mas antes tarde do que nunca. Temos que recuperar o tempo perdido e j
contamos com importantes aportes internacionais. No h dvidas de que vivemos
uma cidadania incompleta no Brasil. Porm, a conquista de uma cidadania plena que
permita elevar os padres de vida da populao e garantir direitos do nascimento ao
tmulo s ser obtida se, colocando em prtica as recomendaes internacionais e a
legislao nacional, respeitarmos o carter universal e indivisvel dos direitos
humanos. As condies tericas j esto dadas, s preciso colocar em prtica.
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