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FUNDAÇÃO ESCOLA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA
PÓS-GRADUAÇÃO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS
José Antonio LIMA
O PROCESSO DE DEMOCRATIZAÇÃO DO ORIENTE MÉDIO:
OS CASOS DO EGITO E DO KUWAIT
São Paulo
2010
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José Antonio LIMA
O PROCESSO DE DEMOCRATIZAÇÃO DO ORIENTE MÉDIO:
OS CASOS DO EGITO E DO KUWAIT
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de
Relações Internacionais da Fundação Escola de Sociologia e
Política, como requisito para obtenção do título de especialista
em Relações Internacionais
Orientador: Prof: Flávio Rocha de Oliveira
São Paulo
2010
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FOLHA DE APROVAÇÃO
Autor:
Título:
Conceito:
Parecerista
Prof (a):________________________________________________________
Assinatura: _____________________________________________________
Data de aprovação:
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RESUMO
Este estudo discute a democratização nos países árabes e muçulmanos do Oriente
Médio, que tem ocorrido de maneira meramente cosmética naqueles países que sedispõe a realizar reformas. Este trabalho traz uma comparação entre os casos do Egito,
exemplo claro de governo autoritário, e do Kuwait, onde é possível constatar formas
embrionárias de divisão de poder.
Palavras-chave: democracia, Oriente Médio, árabe, muçulmano, Egito, Kuwait
ABSTRACT
This study discusses the democratization in the Arab and Muslim countries of the
Middle East, which has been merely cosmetic in those countries that are willing to
undertake reforms. This paper provides a comparison between the cases of Egypt, a
clear example of authoritarian rule, and Kuwait, where it is possible to see embryonic
forms of power sharing.
Keywords: democracy, Middle East, Arab, Muslim, Egypt, Kuwait
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INTRODUÇÃO
O tema desta monografia é a discussão a respeito do processo de democratização
de países árabes muçulmanos e a da possibilidade de estes conseguirem implantar
regimes democráticos duradouros, que permitam a seus cidadãos ampliar as liberdades
individuais e o acesso a direitos civis básicos, hoje inexistentes ou funcionando de
forma precária quase que na totalidade do Oriente Médio.
Nas Relações Internacionais, este tema ganhou força depois dos atentados
terroristas de 11 de Setembro de 2001, promovidos pela rede Al Qaeda, do saudita
Osama Bin Laden, contra alvos em Nova York e Washington, nos Estados Unidos. No
campo político, uma das reações do governo americano, então chefiado por George W.
Bush, foi promover um discurso segundo o qual a democratização do Oriente Médio
colocaria fim à ameaça terrorista.
Graças a essa retórica difundida pelo governo dos Estados Unidos e também por
outras grandes potências ocidentais, é possível observar atualmente no Oriente Médio
um processo de “democratização cosmética”, na qual as reformas são realizadas de cima
para baixo, enfrentam grandes resistências dentro dos partidos ou grupos hegemônicos
e, no fim das contas, não há divisão de poder. Os resultados mais nefastos desta
democratização de fachada são a ampliação da rejeição ao Ocidente desenvolvido – e da
democracia, intrinsecamente ligada a ele – e um fortalecimento do radicalismo islâmico,
que continua ocupando os espaços deixados por Estados fracos e inoperantes em áreas
estratégicas como saúde, educação, emprego e, em casos mais agudos, até a defesa. Essa
sequência de eventos tem feito com que cresça a percepção, no Ocidente, de que a
cultura árabe e a religião muçulmana são empecilhos intransponíveis para a democracia.
Ao mesmo tempo em que avança a democracia de fachada, há na região alguns
exemplos ainda embrionários de processos legitimamente democráticos. São exemplosque, se não podem ser encarados com a ingenuidade de quem prevê uma “primavera
árabe” para o curto prazo, mostram que a discussão sobre democracia no Oriente Médio
pode perpassar as questões étnicas e religiosas, mas deve ser aprofundada por meio de
uma análise histórica e geopolítica.
Para debater esta questão, a monografia traz uma comparação entre o que vem
ocorrendo no Egito – exemplo mais notório de uma democratização meramente estética
– e no Kuwait, onde movimentos tímidos, mas legitimamente plurais, têm sidoregistrados.
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1. CONCEITOS DE DEMOCRACIA
No estudo atual das Relações Internacionais, o debate a respeito da democracia é
recorrente. Com o fim da Guerra Fria, a década de 1990 foi marcada pelo aparecimento
de diversos regimes classificados como democráticos, a maioria seguindo os ditames
dos Estados Unidos, o grande vencedor daquele conflito. O receituário difundido a
partir de Washington se tornou uma panacéia para todos os problemas vividos em países
onde regimes autoritários ou totalitários prevaleciam. Depois dos atos terroristas de 11
de Setembro de 2001, a implantação da democracia a qualquer custo em países onde ela
previamente não existia se tornou também uma fórmula para resolver os problemas de
Estados não-democráticos. Desde então, a simples classificação de um regime como
democrático virou um salvo-conduto para muitos países participarem da chamada
comunidade internacional. Hoje em dia, alguns Estados despendem montantes vultosos
promovendo liberdades democráticas fora de suas fronteiras, analistas se digladiam
debatendo o nível de democracia no mundo, e a simples discussão, interna ou externa,
sobre a existência ou não de democracia em um determinado Estado pode causar
enorme instabilidade política. Antes de nos aprofundarmos neste, no entanto, é preciso
responder uma pergunta fundamental. O que é democracia?
Uma das primeiras respostas de relevo a esta questão foi dada pelo economista
Joseph Schumpeter em sua obra Capitalismo, Socialismo e Democracia. Schumpeter
faz uma dura crítica à filosofia da democracia do século XVIII que, segundo ele,
estipula que “o método democrático é o arranjo institucional para se chegar a certas
decisões políticas que realizam o bem comum, cabendo ao próprio povo decidir, através
da eleição de indivíduos que se reúnem para cumprir-lhe a vontade” (SCHUMPETER,
1961, p. 300). O autor rejeita esta premissa baseado, em primeiro lugar, no fato de que é
impossível conceber um “bem comum” que seja válido e aprovado por toda umapopulação. Isso não se deve, prossegue Schumpeter, ao desejo de algo ruim, mas sim
porque “para diferentes indivíduos e grupos, o bem comum provavelmente significará
coisas muito diversas” (SCHUMPETER, 1961, p. 301). Soma-se a isso a percepção de
que, ainda que em um determinado assunto haja concordância quanto ao que é um bem
comum, diferentes grupos e indivíduos vão defender soluções diferentes para o
problema.
Em sua obra, Schumpeter também ataca a noção clássica de que a democracia éo governo “pelo povo”. A tese clássica prevê que cada eleitor tenha vontade própria,
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mas Schumpeter alega que muitos indivíduos possuem apenas “um conjunto
indeterminado de impulsos vagos, circulando frouxamente em torno de slogans e
impressões errôneas” (SCHUMPETER, 1961, p. 303). Para ele, a vontade deveria ser
“complementada pela capacidade de observar e interpretar corretamente os fatos que
estão ao alcance de todos, e selecionar criticamente as informações sobre os que não
estão”, sem influência de “grupos e de propaganda” (SCHUMPETER, 1961, p. 304),
algo que, na realidade, não ocorre. Ainda que toda a população de um Estado fosse
capaz de tomar decisões independentes, com a “racionalidade e rapidez ideais”, é muito
provável, afirma Schumpeter, que o ato político produzido a partir deste processo não
representasse o que o povo deseja realmente. O autor cita a concordata assinada em
1801 por Napoleão Bonaparte com o papa Pio VII, que restabelecia a Igreja Católica na
França, ainda que sob controle do Estado. Na época, tantos eram os interesses
divergentes que a solução imposta pelo ditador foi um caminho mais produtivo que uma
solução “democrática”, que teria resultado em “impasse ou numa luta interminável”.
Schumpeter não cita exemplos de decisões tomadas por governo sem consultas à
população em regimes classificados como democráticos, mas é preciso reconhecer que
também há exemplos deste tipo. Um desses exemplos poderia ser o New Deal, uma
série de programas econômicos implementados nos Estados Unidos pelo presidente
Franklin Delano Roosevelt entre 1933 e 1937. O objetivo do plano era recuperar a
economia americana, duramente abalada pela crise econômica de 1929. E é aqui que
podemos falar sobre a definição de democracia elaborada por Schumpeter. Para ele, “o
método democrático é um sistema institucional, para a tomada de decisões políticas, no
qual o indivíduo adquire o poder de decidir mediante uma luta competitiva pelos votos
do eleitor” (SCHUMPETER, 1961, p. 321).
Ao propor esta definição, Schumpeter contesta também a noção clássica de que a
democracia é o “governo pelo povo”. Para ele, “o papel do povo é formar um governo,
ou corpo intermediário, que, por seu turno, formará o executivo nacional, ou governo”.
O autor defende que a escolha feita nas urnas não é natural, mas sim “criada
artificialmente”, porque os eleitores não escolhem com independência, entre a
população elegível, os membros do parlamento. “Em todos os casos, a iniciativa
depende do candidato que se apresenta à eleição e do apoio que possa despertar. Os
eleitores se limitam a aceitar essa candidatura de preferência a outras, ou a recusar-se a
sufragá-la” (SCHUMPETER, 1961, p. 323). Schumpeter conclui o raciocínio acerca doque é a democracia criticando também a noção clássica sobre qual o papel de um
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partido nesse sistema. “O partido não é, como nos queria convencer a doutrina clássica,
um grupo de homens que tenciona promover o bem-estar público baseado em algum
princípio comum”, mas sim “um grupo cujos membros resolvem agir de maneira
concertada na luta competitiva pelo poder político”. “Se não fosse assim, seria
impossível aos diversos partidos adotar exatamente, ou quase exatamente, os mesmos
programas” (SCHUMPETER, 1961, p. 337).
Aqui, cabe uma crítica à teoria de Schumpeter. Em sua obra, o autor tende a
simplificar o debate acerca da democracia, reduzindo o processo democrático
unicamente ao mecanismo de eleger ou rejeitar governos. Se por um lado essa
perspectiva critica acertadamente alguns idealismos que nublam o debate – como a ideia
de que o governante sempre atua em busca do bem comum – por outro lado ela cria pelo
menos uma generalização que não condiz com a realidade. Para Schumpeter, o cidadão
típico, ainda que tome boas decisões quando chamado a avaliar situações que ocorrem
próximas a ele, “desce para um nível inferior de rendimento mental logo que entra no
campo político (...) torna-se primitivo novamente. O seu pensamento assume o caráter
puramente associativo e afetivo” (SCHUMPETER, 1961, p. 313). Tal avaliação de
Schumpeter, além de generalizante, ignora completamente a possibilidade de a
sociedade civil se organizar para conseguir determinados objetivos. Um exemplo que
parece claro é o movimento de repúdio da população dos Estados Unidos à Guerra do
Vietnã nas décadas de 1960 e 70.
A teoria realista de Schumpeter a respeito da democracia serviu como uma das
bases para a teoria de Samuel Huntington, para quem “o procedimento central da
democracia é a seleção de líderes por meio de eleições competitivas pelas pessoas que
eles governam” (HUNTINGTON, 1991, p. 6). Huntington acrescenta ainda em sua
teoria a necessidade de que as eleições “justas, honestas e periódicas” contem com a
participação “de toda a população adulta em condições de votar” (HUNTINGTON,1991, p. 7). Ao fazer essa inclusão, Huntington acrescenta a variável “participação” ao
sistema de contestação definido por Schumpeter e contempla as duas dimensões da
teoria da democracia de Robert Dahl, que será vista de forma aprofundada mais à frente.
Em sua obra, Huntington define a democracia a partir de cinco pontos. O
primeiro é o mais básico, que retoma a tese schumpeteriana, segundo o qual a “eleição
livre é a definição mínima de democracia, é sua essência, é a condição sine qua non
para que a democracia exista” (HUNTINGTON, 1991, p. 9). Em sua visão, os governoseleitos “podem ser ineficientes, corruptos, sem visão, irresponsáveis, dominados por
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interesses especiais e incapazes de tomar decisões em favor do bem público, mas isso
não os faz não-democráticos” (HUNTINGTON, 1991, p. 10). Em segundo lugar, apesar
de admitir que governos podem ter determinados interesses obscuros, Huntington
afirma que, uma vez que o “tomador de decisão eleito” se torne uma simples “fachada
ao exercício do poder por parte de um grupo não eleito democraticamente, o regime não
é democrático” (HUNTINGTON, 1991, p. 10).
O autor prossegue fazendo uma diferenciação entre a natureza do regime
democrático e sua respectiva estabilidade. Segundo Huntington, dois regimes podem ser
classificados igualmente como democráticos, mas um pode ser superado, por um golpe
militar, por exemplo, enquanto o outro vai persistir. Assim, em sua visão um regime
pode ser considerado democrático ainda que dure muito pouco tempo. O quarto ponto
levantado é a discussão a respeito da democracia enquanto processo. Huntington afirma
que, ainda que muitos analistas avaliem a democracia como uma continuação, ou
mesmo uma evolução, da não-democracia, a visão dicotômica de que um regime
político é ou não democrático é mais útil, especialmente por estar baseada em um
critério único, relativamente claro e amplamente aceito. É importante dizer que o autor
abre a possibilidade de considerar a existência de semidemocracias, sendo que um dos
exemplos seria o período de 1915-1936 na Grécia, momento instável no qual a figura do
revolucionário Eleftherios Venizelos teve destaque. Por fim, Huntington levanta um
quinto ponto que é o inverso do inicial, mas que serve para classificar os regimes não-
democráticos. Para ele, “r egimes não-democráticos não têm competição eleitoral e
participação generalizada de eleitores” (HUNTINGTON, 1991, p. 13), e essa categoria
engloba desde monarquias absolutas até ditaduras militares, passando por aristocracias,
oligarquias e regimes fascistas ou comunistas.
Em duas obras anteriores – A Ordem Política nas Sociedades em Mudança
(1968) e No Easy Choice: Political Participation in Developing Countries – ,Huntington debate a entrada das massas na arena política e o impacto que esse processo
gera em regimes democráticos. Segundo Limongi, diante do surgimento de regimes
autoritários em países cujo estágio de modernização estava atrasado (Terceiro Mundo),
Huntington defende que a democracia estaria ameaçada assim que as massas entrassem
na política, pois essas “seriam incapazes de apresentar comportamento moderado”. “Sob
a democracia, líderes atenderiam a essas demandas [das massas], comprometendo a
continuidade do processo de modernização, uma vez que a distribuição de renda se fariaà custa do investimento”. Huntington vai além e afirma que a própria modernização é
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um fator desestabilizador dos regimes democráticos, pois ela intensifica o conflito
social. Assim, na visão de Huntington, para o “Terceiro Mundo, o destino estaria
selado. Tanto a manutenção da ordem tradicional quanto a sua dissolução resultariam
em soluções necessariamente autoritárias”.
A teoria que parece avaliar da melhor e mais completa forma as nuances do
fenômeno da democracia nos dias atuais parece ser a de Robert Dahl. Em Poliarquia,
Dahl nem adota o idealismo da teoria clássica da democracia e muito menos adere ao
pensamento minimalista de Schumpeter. Dahl estabelece como característica-chave da
democracia a “contínua responsividade do governo às preferências de seus cidadãos,
considerados como politicamente iguais” (DAHL ,2005, p. 25). Dahl reserva o termo
democracia para um sistema hipotético no qual esta premissa seja “inteira ou quase
inteiramente” cumprida pelo governo, o que permite uma análise do processo de
democratização, cujo objetivo é tornar determinado Estado-nação uma poliarquia.
Em primeiro lugar, é preciso definir o conceito de poliarquia. Ao contrário de
Schumpeter, que centra sua teoria na figura do chefe de Estado e no poder das elites
políticas, Dahl estabelece o pluralismo da sociedade como uma característica básica do
sistema em que o governo responde às preferências de seus cidadãos. No sistema
poliárquico de Dahl, não há espaço para o domínio de um grupo sobre os demais, mas
sim uma disputa pelo poder entre diversos grupos cujo resultado é a manutenção da
liberdade política em uma determinada sociedade. Em poucas palavras, a poliarquia é
um sistema no qual muitos grupos governam.
Dahl distingue as sociedades conforme o grau de pluralismo presente em cada
uma delas. Quanto mais pluralista, mais poliárquica e próxima do ideal democrático
essa sociedade estará. Nesta concepção, para que a responsividade do governo aos
desejos da população (a característica-chave da democracia) seja mantida, é preciso que
oito garantias sejam consideradas: a liberdade de formar e aderir a organizações;liberdade de expressão, direito de voto; elegibilidade para cargos públicos; direito de
líderes políticos disputarem apoios (e votos); fontes alternativas de informação; eleições
livres e idôneas e instituições para fazer com que as políticas governamentais dependam
de eleições e de outras manifestações de preferência.
Na base da teoria de Dahl está a análise do movimento que as sociedades fazem
ao longo de dois eixos – o da contestação pública e o do direito de participação nas
eleições e na disputa por cargos públicos. Dentro deste sistema, há inúmeros caminhosteóricos a serem percorridos pelos Estados, sendo que o estudo de três deles simplifica a
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análise do processo de democratização. No primeiro caminho, os Estados se movem
apenas no eixo da contestação. Se um país controlado por uma hegemonia fechada sair
da base deste eixo e passar por um processo de liberalização política, aumentando as
oportunidades de contestação pública, ele se tornará uma oligarquia competitiva. A
ampliação da disputa provocaria, então, um aumento da inclusividade no processo
eleitoral e o regime, então, se tornaria uma poliarquia. Nas palavras de Dahl, este foi o
caminho usado pela Inglaterra e pela Suécia nos séculos XVII e XVIII. No segundo
percurso teórico, a hegemonia fechada se desloca ao longo do eixo inclusão, e o
primeiro passo é a transformação deste em uma hegemonia inclusiva, como ocorreu
“com a Alemanha do Império até Weimar”.
O terceiro caminho prevê uma passagem direta de um sistema hegemônico para
um sistema poliárquico. É a forma mais rápida, mas também a mais perigosa, pois
“encurta drasticamente o tempo para o aprendizado de habilidades e entendimentos
complexos e para se chegar ao que pode ser um sistema extremamente sutil de
segurança mútua” (DAHL, 2005, p. 54). Na revolução, são tantos os grupos sociais que
ganham força com a liberalização repentina que a instabilidade só é controlada por um
novo governo hegemônico. Esse foi o rumo, segundo exemplo do próprio Dahl,
percorrido pela França entre 1789 e 1792. Outro exemplo mais bem acabado poderia ser
o da Rússia, que em fevereiro de 1917 substituiu a autocracia czarista por um governo
republicano e democrático, cujo chefe era Alexander Kerensky, e que, em outubro do
mesmo ano, caiu sob controle dos bolcheviques.
Antes de analisar os dois primeiros caminhos rumo à poliarquia, é preciso
avaliar o que os governantes levam em conta na hora de percorrer qualquer um deles.
Segundo Dahl, é preciso criar um sistema de segurança mútua, pois quando regimes
hegemônicos e oligarquias competitivas se deslocam na direção de uma poliarquia, eles
“aumentam as oportunidades de efetiva participação e contestação e, portanto, o númerode indivíduos, grupos e interesses cujas preferências devem ser levadas em consideração
nas decisões políticas” (DAHL, 2005, p. 36). Quando esse processo ocorre, quem está
no governo passa a temer novas possibilidades de conflito com os grupos recém-
incorporados à disputa política e o mesmo se dá na direção oposta. Quanto mais
acirrado for o ambiente, mais difícil se faz a tolerância de cada um para com o outro e
maior é a probabilidade de o governo tentar suprimir as oposições. Neste momento,
prossegue Dahl, são levados em conta tanto os custos da tolerância quanto os custos da
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repressão à oposição, e quanto mais os custos da supressão excederem os custos da
tolerância, tanto maior a possibilidade de um regime competitivo surgir.
“Quanto mais baixos os custos da tolerância, maior a segurança do governo.
Quanto maiores os custos da supressão, maior a segurança da oposição.
Conclui-se daí que as condições proporcionam um alto grau de segurança
mútua para o governo e as oposições tenderiam a gerar e preservar
oportunidades mais amplas para as oposições contestarem a conduta do
governo” (DAHL, 2005, p. 37)
Tendo em vista o conceito da segurança mútua, é mais fácil compreender o
primeiro e o segundo percursos que as hegemonias fizeram, fazem ou farão rumo à
poliarquia.
O primeiro caminho (o regime se torna uma oligarquia competitiva e, depois,
uma poliarquia) é aquele percorrido por países que hoje se encontram em um alto grau
de desenvolvimento democrático, como Reino Unido e Suécia, já citados, e Dinamarca,
Holanda, Noruega e Suíça, por exemplo. Nesses Estados, “as práticas e a cultura da
política competitiva desenvolveram-se primeiramente entre uma pequena elite, e a
transição crítica da política não partidária para a competição partidária ocorreu
inicialmente dentro do grupo restrito” (DAHL, 2005, p. 54). Dahl lembra que essa
transição não foi rápida e nem tranquila, mas que as diferenças entre os vários grupos
eram “restringidas por laços de amizade, família, interesse, classe e ideologia” do
pequeno grupo restrito. Quando essas práticas competitivas se expandiram, afirma o
autor, as outras camadas sociais “foram mais facilmente socializadas”.
O primeiro caminho, nos dias atuais, parece superado. Não porque é demorado,
mas porque pouquíssimos países ainda não concederam o direito ao voto a grandes
contingentes de sua população. Mesmo no Oriente Médio, objeto de estudo destamonografia, boa parte dos países ampliou ou tende a ampliar o sufrágio, ainda que
democracias não estejam estabelecidas. Assim, a maior parte das hegemonias existentes
hoje em dia já é inclusiva. Esse fato deixa aberta a possibilidade de que a busca pela
poliarquia se dê por meio do segundo caminho, aquele pelo qual a hegemonia se torna
antes inclusiva e, depois, uma poliarquia. Se este percurso é mais seguro que a
revolução, ele, no entanto, é muito mais arriscado que o processo pelo qual passaram as
os regimes mais poliárquicos dos dias atuais.
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“Quando o sufrágio é ampliado antes das artes da política competitiva terem
sido assimiladas e aceitas como legítimas entre as elites, a busca de um
sistema de garantias mútuas provavelmente será complexa e consumirá
tempo. Durante a transição, quando surge um conflito, nenhum dos lados
pode estar inteiramente confiante de que é seguro tolerar o outro. Como asregras do jogo político são ambíguas e a legitimidade da política competitiva
é fraca, os custos da supressão podem não ser exageradamente altos”
(DAHL, 2005, p. 55)
Desta forma, o destino de um país que percorre o segundo caminho pode ser o
mesmo de um que trilha o percurso revolucionário – a suplantação hegemônica, por
parte de um grupo, do restante das forças que dividiam, ou que tentavam dividir, o
poder, o que encerraria o regime competitivo.Outra contribuição importante para o debate acerca do que é democracia foi
dada por Arend Lijphart, que detalha, em sua obra, dois tipos de democracia
encontrados no mundo atual – a majoritária e a consensual. Para diferenciar os dois
modelos, Lijphart traça dez características de cada forma de governo, divididas em duas
dimensões, a executivo-partidos e a federal-unitária. Na primeira dimensão, as cinco
principais características do modelo majoritário são a concentração do Executivo em
gabinetes monopartidários de maioria; uma relação entre o Executivo e o Legislativo naqual o primeiro é dominante; a existência de um sistema bipartidário; de um sistema
eleitoral majoritário e desproporcional; e de um sistema em que os grupos de interesse
sejam pluralistas, com livre concorrência entre eles. Na dimensão federal-unitária as
características do modelo majoritário são: governo unitário e centralizado; concentração
da legislatura em uma única câmara; Constituição flexível, que pode receber emendas
por simples maiorias; sistema em que o Legislativo dá a palavra final sobre a
constitucionalidade das leis; bancos centrais dependentes do Executivo. O sistemabritânico é o que mais se aproxima do sistema puro teorizado por Lijphart, segundo o
próprio autor (LIJPHART, 2003, p. 22).
A democracia consensual é definida por dez características que se contrapõe ao
modelo majoritário. Na dimensão executivo-partidos são elas: a distribuição do Poder
Executivo em amplas coalizões partidárias; equilíbrio nas relações entre o Executivo e o
Legislativo; a existência de um sistema bipartidário; representação proporcional; e a
adoção de um sistema corporativista que visa a concertação. Na dimensão, federal-
unitária as características são: governo federal e descentralizado; divisão bicameral do
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Legislativo; Constituição rígida, que só podem ser modificadas por maiorias
extraordinárias; revisão judicial das leis por uma corte; e bancos centrais independentes.
Aqui, o melhor exemplo é o da Suíça (LIJPHART, 2003, p. 53).
Cabe notar que os modelos detalhados por Lijphart são teóricos e mesmo nos
exemplos mais bem acabados das democracias majoritária e consensual – o Reino
Unido e a Suíça, respectivamente – há características desses sistemas que diferem do
modelo, bem como desvios ocasionais em determinados aspectos, que precisam ser
detalhados para que uma determinada característica seja apontada como pertencente ao
modelo majoritário ou consensual. Isto não é uma crítica, mas sim uma constatação,
notada até mesmo pelo próprio autor, que precisa ser feita para evitar que um país que
foge do modelo em um aspecto seja considerado não-democrático.
A teoria de Lijphart também serve como contraponto à noção de que uma forte
oposição é condição necessária para que um país seja considerado democrático. De
acordo com Lijphart, “existe na ciência política uma tendência surpreendentemente
forte e persistente de se associar democracia somente ao modelo majoritário, e de não
reconhecer a democracia de consenso como uma alternativa igualmente legítima”
(LIJPHART, 2003, p. 21). Segundo o autor, essa visão não leva em consideração que o
governo, em sistemas pluripartidários consensuais, “tende a ser de coalizão, e que uma
mudança de governo nesses sistemas normalmente significa apenas uma mudança
parcial na composição partidária no governo, em vez de a oposição ‘tornar -se’
governo”. Um dos que defende esta visão é Huntington. Segundo ele (2003, apud
LIJPHART, p. 22), a alternância de poder – e a entrega pacífica deste – são critério para
determinar se um regime é ou não democrático. Essa ponderação de Lijphart é trazida à
tona aqui não para diminuir a importância da oposição para uma democracia, mas para
evitar que critérios muito rígidos, como o proposto por Huntington, tornem ainda mais
crítica a definição do que é um país democrático.Outro ponto levantado por Lijphart e que também serve para rebater uma parte
da argumentação de Huntington, é que para um país ser considerado democrático, é
preciso que a análise seja feita com base em um período longo de tempo. Não basta que
um regime democrático seja criado ou imposto – por forças nacionais ou mesmo
internacionais – sem que ele consiga manter balanceado o sistema de segurança mútua
do qual fala Dahl. Nas palavras de Lijphart, “a razão mais substancial é que isso nos dá
a segurança de que as democracias analisadas não são entidades efêmeras, mas, sim,sistemas consolidados e razoavelmente estáveis de democracia” (LIJPHART, 2003, p.
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73). A existência de um sistema democrático que sucumbe ao primeiro percalço é sinal
de instabilidade política, o que pode significar até mais dificuldades para a população
submetida a esse cenário do que a vida em um sistema menos democrático, porém mais
estável.
Em sua obra, Lijphart faz uma extensa comparação entre os dois modelos e
conclui que a democracia consensual é um sistema superior à democracia majoritária
por ter um desempenho ligeiramente melhor no que diz respeito à administração
macroeconômica e ao controle da violência e claramente melhor “quanto à qualidade e
representatividade democráticas, como também quanto [ao que o autor chama de]
generosidade e benevolência na orientação das políticas públicas (LIJPHART, 2003, p.
339). A partir desta conclusão, Lijphart afirma que “a opção consensual é a mais
atraente para os países que estão elaborando as suas primeiras constituições
democráticas ou que aspiram a uma ref orma democrática” e salienta que essa
recomendação é “pertinente, e até urgente, para as sociedades que apresentam profundas
divisões étnicas e culturais, mas é também relevante para os países mais homogêneos”
(LIJPHART, 2003, p. 339).
Em conjunto com essa conclusão, Lijphart nota que “a democracia de consenso
pode ser incapaz de criar raízes e brotar, a menos que apoiada por uma cultura política
consensual (...) que muitas vezes fornece a base e as conexões entre as instituições da
democracia de consenso” (LIJPHART, 2003, p. 343). Tal preocupação, prossegue o
autor, não significa que o modelo consensual não tem chances de vingar em países de
democracia recente ou em vias de democratização. E para isso Lijphart cita dois
importantes contra-argumentos. No primeiro, o autor retoma as ideias de Gabriel A.
Almond e Sidney Verba em The Civic Culture e diz que “embora uma cultura
consensual possa levar à adoção de instituições consensuais, essas instituições também
têm o potencial de tornar uma cultura inicialmente antagonista menos antagonista emais consensual” (LIJPHART, 2003, p. 344).
Democracias consensuais, como a da Suíça e a da Áustria, podem ter
culturas consensuais hoje, porém nem sempre foram tão consensuais assim:
o povo suíço passou por cinco guerras civis, desde o século XVI até meados
do XIX, e os austríacos tiveram uma breve – porém sangrenta – guerra civil,
ainda em 1934. No final dos anos 90 [momento em que o autor escreve],
Bélgica, Índia e Israel possuem instituições consensuais – e claramente
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necessitam delas – porém as suas culturas não são consensuais (LIJPHART,
2003, p. 345).
No segundo contra-argumento, Lijphart contesta a ideia de Huntington exposta
acima de que o destino autoritário dos países não-ocidentais e pertencentes ao que se
convencionou chamar de Terceiro Mundo estaria selado, pois neles a democracia não
seria mais viável a partir da entrada das massas no processo político. Lijphart cita os
trabalhos de autores como Rupert Emerson, Arthur Lewis e Raul S. Manglapaus e
destaca que todos citam o forte componente consensual existente em países não-
ocidentais e que, muitas vezes, passa despercebido no ocidente. Nesta argumentação,
Lijphart retoma a importância excessiva dada à existência de uma forte oposição para a
classificação de um país como democrático e cita as palavras de Adebayo Adedeji, quefoi secretário-executivo da Comissão das Nações Unidas para a África e sub-secretário-
geral da ONU, segundo quem os africanos são “antigos mestres em consulta, consenso e
acordo. Em consequência disso, não existe a oposição sancionada e institucionalizada
em nosso sistema tradicional de governo. Tradicionalmente, política para nós jamais
constituiu um jogo de soma zero” (ADEDEJI, 1994 apud LIJPHART, 2003, p. 346).
Lijphart conclui afirmando que:
“Muitas vezes essas declarações costumam ser suspeitas, porque foram
exploradas por alguns líderes políticos não-ocidentais para justificarem
certos desvios da democracia. Mas o fato de já terem sido usadas com
propósitos ilegítimos não as torna menos válidas. Todos os autores que citei
são tanto democratas sinceros quanto sensíveis observadores, sem quaisquer
outras motivações ocultas. Assim, as culturas políticas de orientação
consensual do mundo não-ocidental podem ser consideradas como uma
sólida força opondo-se ao ser conservadorismo institucional majoritário, e
podem ser bem capazes de fornecer o terreno fértil para a democracia
consensual” (LIJPHART, 2003, p. 346).
Diante de todo o exposto acima, cabe definir aqui a noção de democracia que
será levada em conta neste texto. Em primeiro lugar, é preciso ter como ponto de partida
a definição de Schumpeter de que a democracia é o sistema no qual um indivíduo
adquire o poder por meio de uma luta competitiva pelos votos do eleitor, a eleição. Tal
definição é verdadeira, e servirá aqui como embrião de uma visão mais ampla. Na buscapor uma definição mais abrangente, é imprescindível trazer à discussão uma segunda
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característica, o sufrágio universal, definido cruamente por Huntington como a
participação nas eleições de “toda a população adulta em condições de votar”. Como foi
visto, tal condição hoje já é um fato na maioria dos países – incluindo a muitos dos não-
democráticos – mas nem por isso a participação generalizada em eleições deixa de ser
importante. Em terceiro lugar, é preciso tratar como democrático um sistema que, como
definiu Lijphart, seja duradouro e capaz de oferecer à população estabilidade para que
os benefícios deste tipo de governo sejam aplicados. Com os conceitos de Schumpeter
(governo eleito), Huntington (por sufrágio universal) e Lijphart (em um sistema
duradouro) como base, chegamos à definição de democracia que será mais útil para este
trabalho, a de Dahl. Para ele, a democracia é um modelo ideal e, para analisar os
regimes em vias de democratização é necessário levar em conta o grau de pluralismo
que eles permitem, levando em conta que, quanto mais plural o regime, mais
poliárquico ele será e mais perto do ideal democrático estará.
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2. O EGITO E A QUESTÃO DA POLIARQUIA
Uma das regiões do mundo onde a democracia enfrenta mais barreiras para ser
implantada é o grande Oriente Médio. Valores liberais ocidentais – nos quais estão
embutidas as noções de democracia e também de constitucionalismo e individualismo –
se espalharam por partes da África e da Ásia, pela América do Sul e a Oceania, mas a
imensa maioria dos países que estão localizados entre o noroeste da África e o ocidente
asiático é considerada não democrática ou não-livre1. Para tentar entender esta situação,
é preciso começar analisando o relacionamento entre o Ocidente e o Oriente Médio
Há no Oriente Médio uma rejeição ao Ocidente que pode ser traçada de volta à
transição do século XVIII para o século XIX, um período em que as invasões ocidentais
na região se acentuaram, aproveitando o atraso acumulado pelas sociedades
muçulmanas ao longo dos séculos anteriores (DEMANT, 2008, p. 80). Quando o século
XX teve início, a balança pendeu de forma ainda mais decisiva para o lado ocidental,
como conta Peter Demant:
“Na virada do século XX, a maior parte do mundo muçulmano estaria sob
controle europeu, direto ou indireto. O Império Otomano sofrera derrotas
dos russos e povos cristãos nos Bálcãs que, um a um, chegaram àindependência. Mercadores franceses, italianos e belgas controlavam o
comércio do Egito e do Império Otomano, enquanto os ingleses exerciam o
poder político e guardavam o Canal de Suez, de importância vital por
assegurar o caminho para a Índia. Os otomanos, persas, egípcios, tunisianos
e marroquinos se endividaram com financiadores ocidentais: suas alfândegas
foram sequestradas como garantia. Em vários casos, isso foi apenas uma
etapa frente à imposição de um protetorado europeu. Missionários católicos
e protestantes propagavam sua fé com o uso de escolas, hospitais e
universidades. Soldados britânicos e franceses reprimiam revoltas e
mantinham a ordem e a segurança pública; funcionários públicos europeus
supervisionavam a construção de ferrovias, instalações portuárias, canais e
obras de irrigação. Financiados por investimentos vindos de Londres, Paris e
Berlim e de outras metrópoles do Ocidente, os colonos europeus se
assentavam na Argélia, na Palestina, nas Índias Orientais Holandesas e
outros lugares” (DEMANT, 2008, p. 80)
1 Definição do relatório de 2010 do think tank americano Freedom House, disponível em:
http://www.freedomhouse.org/template.cfm?page=363&year=2010
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Essa “ocupação” não teve efeitos apenas negativos. Uma melhora na
infraestrutura dessas regiões, e nos níveis de educação e padrão de vida das populações
foram benefícios importantes e duradouros, mas maiores foram os efeitos negativos.
Tanto franceses quanto britânicos, as principais potências colonizadoras da época
naquela região, usaram a chamada política de “dividir para governar” para manter a
ordem e “desarmaram a maioria (sunita), e a discriminaram em favor das minorias.
Assim, armênios, judeus, xiitas, druzos e outros se associaram, na percepção da maioria,
aos colonizadores, e se tornaram objeto do ódio da maioria” (DEMANT, 2008, P. 92).
O resultado de todo esse processo foi uma reação, que se delineou sob “três ideologias
dominantes desde o entre-guerras” (DEMANT, 2008, P. 98), sendo duas delas seculares
– o pan-arabismo e o patriotismo territorial – e uma terceira religiosa, que dá ao Islã um
papel central.
As duas primeiras ideologias foram dominantes no período que vai de 1945 a
1967, quando a maior parte dos países árabes chegou à independência política. Nesta
época, foram forjados dois dos tipos de regimes de governo que marcam o Oriente
Médio até hoje – as monarquias conservadoras e as ditaduras monopartidárias
populistas. Diversas delas, inclusive, tiveram e têm apoio das grandes potências
europeias e dos Estados Unidos. A terceira ideologia, a religiosa, que se fortaleceu mais
tarde, deu origem aos regimes islamistas. Ainda que no campo político os três tipos de
governo sigam existindo, no campo ideológico as duas primeiras vertentes parecem
derrotadas, enquanto a ideologia religiosa só faz crescer.
Essa preponderância do terceiro caminho se deu ao longo dos últimos sessenta
anos, período que representa para o Oriente Médio muçulmano “a história do fracasso
do desenvolvimento”, pois “a descolonização, meramente formal, nunca se desdobrou
em emancipação política, social, econômica e cultural das populações” (DEMANT,2008, p. 98). Este período de sessenta anos foi marcado por dois fenômenos. Em
primeiro lugar, teve “grandes rupturas”, mas “pontuadas por derrotas” (DEMANT,
2008, p. 100) importantes dos países árabes e muçulmanos. Seja no campo militar ou no
simbólico, episódios como a Guerra dos Seis Dias (1967), a Guerra do Yom Kipur
(1973), a Guerra Civil Libanesa (1975 – 1991), a Guerra Irã-Iraque (1980-1988), a
Guerra do Golfo (1991) e a Guerra do Iraque (2003 - ) deixaram clara a impotência
dessas nações diante de forças ocidentais. O segundo fenômeno é a influência da
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política externa agressiva dos Estados Unidos, país que substituiu as nações europeias
como grande potência mundial depois da Segunda Guerra Mundial.
As monarquias conservadoras e as ditaduras monopartidárias árabes não são e
não estão perto de ser democracias. São, sim, governos autoritários, que ao mesmo
tempo em que impedem manifestações contestatórias legítimas por parte de seus
cidadãos, mantêm sistemas de bem-estar social precários, incapazes de suprir as
necessidades mais básicas das populações, uma combinação que torna o clima no
Oriente Médio altamente volátil. Como afirma Demant, nos últimos 25 anos a região
mergulhou num “redemoinho de empobrecimento, crises políticas e sociais, influências
externas, violência entre Estados e guerras civis que constituem o contexto de uma
‘guerra de culturas’, entre o modelo liberal-pluralista-ocidental e um modelo alternativo
islamista” (DEMANT, 2008, P. 158). Em uma tentativa de evitar que um estado de
convulsão social colocasse em risco suas próprias existências, muitos governos
procuraram estabelecer uma rede de serviços básicos em áreas como saúde, educação,
segurança e previdência social, mas os resultados foram apenas paliativos.
“O desenvolvimento, mesmo quando ocorria na realidade e não somente nos
discursos oficiais e nas propagandas, ficou atrás do crescimento
populacional, estimulado pelos avanços na saúde pública. Com a exceção – parcial e temporária – dos Estados exportadores de petróleo, a renda estatal
tem diminuído e, com isso, reduz a possibilidade de providenciar benefícios
para uma população cada vez mais numerosa. A liberalização abriu cada vez
mais Estados a importações de produtos industriais baratos, ameaçando
produtores locais. A privatização tirou mais empregos do que gerou. A
burocracia, a instabilidade política, as guerras e a insegurança impediram
investimentos estrangeiros. No entanto continua, cada ano mais intensa, a
crise socioeconômica. Com a incapacidade do Estado de enfrentá-la, o
Oriente Médio vive o fracasso da modernização neoliberal” (DEMANT,
2008, P. 260)
No vácuo deixado pelo Estado, atuam os movimentos islamistas. O caso mais
emblemático é o do Hizbullah, o grupo xiita que atua no sul do Líbano como “grande
provedor de serviços sociais, operando escolas, hospitais e serviços agropecuários para
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milhares de xiitas li baneses”2. Um exemplo muito claro desta relação entre o Hizbullah
e a população do sul do Líbano foi explicitada em uma emblemática reportagem da rede
de TV americana CNN feita em 2006, logo após um conflito entre o grupo armado e
Israel. “Enquanto as bombas israelenses destruíram muito da zona sul de Beirute, que é
a capital do Estado de facto do Hizbullah dentro de um Estado [o Líbano], a habilidade
do Hizbullah de proporcionar [serviços] a seus constituintes permaneceu intacta”
(SCHUSTER, 2006). A reportagem mostra como integrantes do Hizbullah foram os
primeiros a acudir a população civil, fornecendo desde recursos básicos, como água e o
pagamento da mensalidade escolar, até reformas das casas e comércios dos libaneses,
por meio de grupos que usavam camisas com a inscrição “Companhia de Construção
Jihad”. A estrutura do Hizbullah, paralela à oficial, não para por aí e chega até a
formação de grupos de mídia ligados ao movimento, como é o caso da emissora Al-
Manar . A influência do grupo é tanta que, na política, as duas estruturas – a oficial e a
paralela, passaram a se confundir, e hoje o partido político Hizbullah tem legisladores
eleitos e integra o governo libanês. Grupos como o Hizbullah – e outros muito menos
organizados que o libanês – são uma verdadeira ameaça aos regimes atuais no Oriente
Médio que, “amedrontados com a perspectiva de uma revolução, que nas condições
atuais só poderia ser uma revolução islamista, não ousam abrir espaço para uma
autêntica democratização” (DEMANT, 2008, P. 120).
O que se tem visto é um processo de acomodação de determinadas exigências
das populações e dos islamistas por meio de uma democratização limitada, que provoca
um paradoxo. “Onde houve democratização, houve crescimento e legitimação da
tendência fundamentalista. Oposições liberais, progressistas e secularistas continuam
existindo, mas a principal contestação hoje vem da direita religiosa” (DEMANT, 2008,
P. 253). Assim, conclui Demant:
“Aberturas democráticas, portanto, não levam necessariamente a uma
democratização pluralista da sociedade – a panaceia ocidentalizadora
proposta desde os anos 50 pelos teóricos da escola da modernização – , mas a
uma islamização rastejante, cuja tendência política é antidemocrática ou pelo
menos antiliberal. Quanto mais uma sociedade se islamiza, mais seu
governo não-islâmico fica esvaziado da justificativa ideológica, e seu único
2 Definição do Council of Foreign Relations em Hezbollah (a.k.a. Hizbollah, Hizbu'llah), disponível em:
http://www.cfr.org/publication/9155/hezbollah_aka_hizbollah_hizbullah.html
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recurso é a violência: assim acaba por perder legitimidade, tornando-se
vulnerável a golpes futuros. Por outro lado, nos países onde a elite política
não ousa apostar na tática da democratização controlada, predomina a
repressão militar-policial, e as tensões reprimidas aumentam sob a
superfície: aqui também o islamismo é a principal oposição” (DEMANT,2008, P. 254).
O melhor exemplo de um Estado árabe no qual esse processo de democratização
tem dado errado é justamente o mais importante deles, o Egito, objeto de estudo deste
capítulo.
Formalmente independente do Reino Unido em 1922, o Egito seguiu sob
controle britânico por pelo menos mais três décadas, quando o então rei Farouk, um
fantoche nas mãos de Londres, foi forçado a abdicar diante de uma revolta popular que
incluía os Oficiais Livres, militares liderados por Gamal Abdel Nasser, e a Irmandade
Muçulmana, grupo radical que pretendia islamizar a sociedade egípcia e cujo ideólogo
era, neste momento, Sayyid Qutb, aquele que talvez seja o mais importante nome por
trás da formação do pensamento do radicalismo islâmico.
Aqui, cabe um breve histórico sobre as origens da Irmandade Muçulmana. O
grupo foi criado em 1928 por Hassan Al-Banna, com o nome de Sociedade dos Irmãos
Muçulmanos, e tinha como objetivo inicial educar os fiéis muçulmanos. A partir de
1945, a Irmandade se transformou e passou a desenvolver programas sociais, nos
moldes do que o libanês Hizbullah faz hoje em dia. Esses programas incluíam escolas
regulares e para trabalhadores, movimentos de escoteiros, mesquitas, hospitais, clínicas,
sindicatos e até empresas próprias em áreas como as indústrias gráfica, têxtil e de
engenharia (METZGER, 2008, p. 78). Paralelamente às atividades sociais exercidas
pela Irmandade Muçulmana, um “aparato secreto” ligado ao grupo surgiu e passou a
adotar a violência como método, o que era uma tendência no turbulento Egito do finaldos anos 1940 e início da década de 1950 mesmo entre grupos não religiosos, como os
Camisas Verdes, ligados ao palácio real, e os Camisas Azuis, ligados ao Wafd
(ARMSTRONG, 2001, 255), o partido liberal nacionalista que tinha papel de destaque
na política egípcia daquele período. A participação de Banna e seu conhecimento sobre
as atividades do aparato secreto da Irmandade Muçulmana não são objeto de consenso.
Lawrence Wright (2007, p. 38) afirma que o fundador do grupo aprovou o surgimento
da facção violenta. Já Karen Armstrong (2001, 255) diz que “não se sabe ao certo” qual
a real participação de Banna no aparato secreto, mas nota que ele criticava, com a
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mesma veemência, tanto as atividades do grupo quanto as ações do governo. Foi em um
desses episódios que Banna acabou morto, baleado nas ruas do Cairo. Depois que um
membro da Irmandade Muçulmana matou o primeiro-ministro Mahmoud an-Nukrashi
Pasha, que havia colocado o grupo oficialmente na ilegalidade, Banna criticou o
atentado terrorista. Dois meses depois de Pasha, o próprio Banna foi assassinado,
provavelmente pela polícia secreta de Nasser. Seja como for, fosse o fundador da
Irmandade ligado ou não às atividades terroristas do grupo, o fato concreto e aqui
relevante é que sua morte abriu espaço para seu rival intelectual Sayyid Qutb se tornar
um Irmão Muçulmano.
Durante a luta dos egípcios para se livrar da monarquia e da influência britânica,
a Irmandade encontrou nos Oficiais livres um grupo simpático à mesma causa. A união
entre militares e islâmicos não iria longe uma vez que o rei estivesse deposto. Nasser
pretendia impor ao Egito um “socialismo pan-árabe, moderno, igualitário, secular e
industrializado, com as vidas individuais dominadas pela presença esmagadora do
Estado de bem-estar social” (WRIGHT, 2007, p. 40). Em contrapartida, a Irmandade
Muçulmana previa um sistema de governo regido pela sharia – a lei islâmica. “Os
islâmicos queriam reformular por completo a sociedade, de cima para baixo, impondo
valores islâmicos a todos os aspectos da vida, de modo que todo muçulmano pudesse
atingir sua expressão espiritual mais pura” (WRIGHT, 2007, p. 40). À semelhança de
outras revoluções, a Revolução Egípcia teve, em seguida à queda do regime, um período
de disputa de poder entre os grupos envolvidos nos protestos. Neste caso, quem
sobressaiu foram os Oficiais Livres, os donos das armas. Uma vez empossado como
novo chefe da nação egípcia, Nasser ofereceu cargos de pouca importância para Qutb,
que foram prontamente rejeitados. Aos poucos, a Irmandade Muçulmana passou a se
tornar oposição ao novo governo – como já fazia durante o domínio britânico – e foi
novamente trilhando o caminho da ilegalidade. Irmãos Muçulmanos chegaram a ensaiarum novo golpe ao lado dos comunistas egípcios e, em 1954, realizaram um atentado
mal-sucedido contra Nasser.
“A guerra ideológica em torno do futuro do Egito atingiu o clímax na noite
de 26 de outubro de 1954. Nasser discursava para uma multidão enorme em
uma praça de Alexandria. O país inteiro ouvia o discurso pelo rádio, quando
um membro da Sociedade dos Irmãos Muçulmanos avançou e disparou oito
tiros contra o presidente egípcio, ferindo um guarda, mas não conseguindo
atingir Nasser. Foi o momento crucial do seu governo. Ignorando o caos da
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multidão em pânico, Nasser continuou falando, em pleno tiroteio. ‘Podem
matar Nasser! Nasser é apenas um dentre muitos!, ele bradou. ‘Estou vivo e,
mesmo que eu morra, todos vocês são Gamal Abdel Nasser’. Se o atirador
acertasse, poderia ser aclamado como um herói, mas o erro dotou Nasser de
uma popularidade que até então ele nunca desfrutara. Ele imediatamente seaproveitou dela para mandar enforcar seis conspiradores e enviar milhares
de outros aos campos de concentração. Qutb foi acusado de ser membro do
aparato secreto da Sociedade dos Irmãos Muçulmanos, responsável pela
tentativa de assassinato. Nasser achou que tinha esmagado a irmandade de
uma vez por todas”. (WRIGHT, 2007, p. 41)
Este episódio serviu como catalisador na perseguição aos Irmãos Muçulmanos.
A multidão que ouvia o discurso de Nasser teve que ser contida pela polícia para não
matar Mahmoud Abdul Latif, de 32 anos, o homem enviado para o atentado. Nos dias
que se seguiram, diversas manifestações populares contra a Irmandade foram realizadas,
o partido foi dissolvido e sua sede foi destruída (WITTE, 2004, p. 40). Qutb foi enviado
para a prisão, onde acabou torturado, como muitos de seus colegas. Neste processo de
repressão, não foram perseguidos apenas os radicais da Irmandade Muçulmana, mas sim
o próprio Islamismo, que passou a ser visto como culpado pelos males das nações
árabes. Nas palavras de Armstrong, “a religião era responsável pela ‘falsa consciência’
que retardava os árabes [em comparação com o ocidente], portanto, tinha de ser
eliminada, assim como todos os outros empecilhos ao progresso racional e científico”
(ARMSTRONG, 2001, p. 268). O aparato secreto da Irmandade seguiu funcionando
neste ambiente – financiado pela Arábia Saudita, que temia o perfil revolucionário do
nasserismo – , mas de forma precária. Qutb, o ideólogo, foi solto em 1964 após uma
intervenção do então presidente do Iraque, Abdul Salam Aref, mas em 1966 foi julgado
por uma nova acusação de conspiração e condenado à forca.
A Irmandade Muçulmana e outros movimentos religiosos radicais só
conseguiram se reorganizar no Egito com a morte de Nasser e a subsequente posse de
Anwar al-Sadat, em 1971. Ao fim da Guerra do Yom Kippur (1973), Sadat iniciou uma
política de abertura da economia egípcia para investidores estrangeiros que ficou
conhecida como infitah. Esse processo foi acompanhado de uma redefinição dos
espaços políticos, por meio do qual Sadat deu mais força aos movimentos religiosos
para contrabalançar o poder de nasseristas e esquerdistas (METZGER, 2008, P. 85). Em
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sua percepção, os religiosos seriam menos ameaçadores que os outros grupos
(GOLDSCHMIDT, 2008, p. 208).
Ao anunciar a infitah, Sadat tentou manter o socialismo e o pan-arabismo do
período em que Nasser governou, mas afirmou que o regime precisava de mudanças
para se adaptar aos novos tempos (GOLDSCHMIDT, 2008, p. 197). Assim, Sadat
procurou, ao mesmo tempo em que preservava o socialismo, desconstruir parte da
herança de Nasser, particularmente a aliança com a União Soviética e a quase que
completa eliminação do papel da religião na sociedade. No campo econômico, Sadat
tinha como objetivo atrair investimentos americanos, europeus, japoneses (o que não se
concretizou), do Irã e de países árabes ricos em petróleo (o que foi realizado). Em um
primeiro momento, Sadat desfrutou de grande popularidade. Os Estados árabes
passaram a emprestar dinheiro ao Egito, bancos internacionais voltaram a operar no
país, as classes favorecidas conseguiram realizar os sonhos de ter um carro importado e
um apartamento de luxo, Cairo e Alexandria se tornaram canteiros de obras a céu aberto
e cidades destruídas nas guerras anteriores, como Port Said, Ismailia e Suez – todas na
região do canal – foram inteiramente reconstruídas (GOLDSCHMIDT, 2008, p. 197). O
que seria um problema para Sadat era o perfil das mudanças conseguidas com a
implantação da infitah. Basicamente, os únicos beneficiados foram os membros da elite
egípcia.
“A governadoria do Cairo gastou muito para construir pontes e avenidas
para beneficiar a minoria de sua população que podia ter carro ou pagar por
um táxi, enquanto negligenciou a necessidade da maioria, um transporte
público melhor, especialmente nos bairros mais pobres. Para os camponeses,
a infitah significou o fim da reforma agrária, a deterioração dos serviços das
cooperativas agrícolas e dos centros de saúde e o declínio dos termos de
pagamento pela colheita. Apesar de o Egito ter exportado grãos e cereaisdurante quase toda a sua história, sob Nasser e Sadat ele se tornou um
importador. Na verdade, a nova política de Sadat transformou o Egito em
exportador de sua própria população: camponeses, engenheiros, médicos,
professores, encanadores e eletricistas foram para outras terras árabes para
ganhar salários maiores. (...) No longo prazo, isso separou famílias,
provocou novas desigualdades salariais e falta de trabalhadores
especializados nas zonas urbana e rural. Os empregados de firmas privadas
ganharam mais com a infitah do que os das companhias estatais, que
estavam perdendo dinheiro. Enquanto o governo prometia contratar todos os
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recém-formados das universidades, a inflação superou os salários de
funcionários de escritório, professores nas escolas e universidades,
bibliotecários, e médicos e enfermeiros em clínicas e hospitais públicos
(GOLDSCHMIDT, 2008, p. 198 e 199).
Este retrato do Egito escancara a destruição do serviço público e a deterioração
do Estado de bem-estar social, que já era precário mesmo antes da infitah. Em paralelo a
este processo econômico, Sadat colocou em prática um expediente comum das elites
egípcias – a estratégia de capitalizar os movimentos ideológicos da sociedade a seu
favor (METZGER, 2008, p. 63). O novo líder do Egito era mesmo um homem religioso,
e fez questão de tentar explorar este traço de sua personalidade, por exemplo, ao
alardear sua presença nas orações da sexta-feira (o dia sagrado no Islã). Sadat,entretanto, não conseguiu convencer a população. Os religiosos muçulmanos, ao mesmo
tempo em que expandiam sua rede de caridade – aproveitando o vácuo deixado pelo
Estado – expandiam a rede de mesquitas privadas – que foram de 20 mil para 40 mil na
década de 1970 – o que ampliou o espaço para a pregação de islamistas contra o
governo (METZGER, 2008, 87). Assim, todas as condições para a radicalização da
sociedade estavam postas.
A deterioração do aparato estatal e a ampliação da rede de caridade muçulmana
deixaram as camadas mais pobres egípcias à mercê da guinada religiosa. Entre os jovens
profissionais e militares de classes mais altas, a impossibilidade de obter bons
empregos, os salários baixos e a inflação se provaram pré-condições essenciais para a
radicalização. Seguindo o exemplo dos líderes religiosos mais velhos – agora libertados
por Sadat – eles encontraram nos grupos islâmicos a única forma de protestar contra o
governo, já que todas as facções marxistas e nasseristas haviam sido colocadas na
ilegalidade. Este processo foi favorecido pela proximidade que as ideias religiosas
tinham dos egípcios. Nas palavras de Goldschmidt (2008, p. 208), para uma maioria
criada como muçulmana, “era mais fácil aceitar um movimento que defende suas
próprias normas culturais, do que introduzir ideias alienígenas”. Somam-se a esses
aspectos, dois outros fatores – o ódio à elite e a política externa de Sadat. Os egípcios
não beneficiados pela infitah de Sadat rejeitavam as classes favorecidas pela abertura,
que vinham adotando hábitos “ocidentais”, a maior parte deles inspirada na sociedade
americana, sem dúvida a maior influência cultural e política da época (e dos dias atuais).
Além disso, ao perseguir uma aproximação com os Estados Unidos – que “exportava”
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os hábitos para as elites muçulmanas – e buscar a paz com Israel, que causava dor a
outros povos árabes, Sadat aprofundou as diferenças entre suas visões e a da maioria da
população. O apoio ao opressor xá Mohammad Reza Pahlavi durante a Revolução
Iraniana (1979) não ajudou a imagem de Sadat, mas serviu para radicalizar ainda mais
os movimentos islamistas, que se inspiraram nos colegas persas. Sadat havia isolado o
Egito dos outros Estados árabes e a si próprio dentro do Egito. Em 5 de setembro de
1981, em uma tentativa de se manter no controle do país, anunciou a prisão de 1,5 mil
opositores, entre intelectuais, políticos e religiosos. De nada adiantou trazer de volta o
clima de repressão que marcara a monarquia e o governo de Nasser. Em 6 de novembro
do mesmo ano, Sadat foi assassinado durante uma parada militar em Nasr City, em uma
conspiração realizada em parceria pela Al-Gama'a al-Islamiyya (Grupo Islâmico) e pela
Jihad Islâmica (SMITH, 2010, 96).
O substituto de Sadat na presidência do Egito foi outro militar, Hosni Mubarak,
que quando chegou ao poder era um desconhecido da imensa maioria da população
local. No momento em que este texto foi escrito, Mubarak havia acabado de completar
29 anos no poder – mais tempo que Nasser e Sadat juntos – um período no qual o Egito
se transformou no principal exemplo do processo que Demant chama de “acomodação
de determinadas exigências das populações e dos islamistas por meio de uma
democratização limitada”, que provoca o crescimento e legitimação da tendência
fundamentalista e uma “islamização rastejante da sociedade, cuja tendência política é
antidemocrática ou pelo menos antiliberal”.
Mubarak fez isso ao implantar uma política diferente daquela de Sadat na
medida que, em vez de usar os islamistas para contrabalançar a força política de outros
grupos, ele permitiu que os grupos religiosos mantivessem seu discurso, seja na
imprensa, em instituições de ensino, ou outros lugares, mas sempre em formas e
conteúdo delimitados por seu governo (METZGER, 2008, p. 101). Ganharam obenefício da palavra os islamistas cujos atos são considerados moderados, ainda que o
discurso seja inflamado. Dos outros – aqueles que ameaçavam diretamente o Estado e o
próprio presidente – Mubarak cuida com a Lei de Emergência, que vem sendo aprovada
sistematicamente pelo parlamento egípcio e que dá ao governo poderes extraordinários
para prender cidadãos, impedir reuniões e governar por decreto. A presença dos
islamistas na vida política do Egito – principalmente os da Irmandade Muçulmana –
obrigou Mubarak a fazer concessões a esses grupos, como a aprovação de leisreligiosas, a proibição do homossexualismo, as restrições aos direitos da mulher e a
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permissão da veiculação de propaganda anti-semita (METZGER, 2008, p. 102). Todas
essas transformações reduziram muito o caráter secular do Estado e fazem com que seja
impossível considerar o Egito um país democrático, ou mesmo em um processo
incipiente de democratização, sob qualquer prisma que se analise, como por exemplo o
das oito garantias estabelecidas por Dahl como condições básicas para a existência de
uma democracia. Aqui, vamos a uma breve análise da situação de cada uma delas no
Egito.
Fontes alternativas de informação e Liberdade de Expressão – As liberdades da
imprensa e de expressão no Egito podem ser consideradas precárias. No ranking anual
da organização de origem francesa Repórteres sem Fronteiras, que mede a liberdade de
imprensa no mundo de acordo com as informações coletadas pela própria ONG, o Egito
ficou, em 2009, na 143ª posição entre os 175 países estudados. Um dos grandes
problemas da mídia no Egito é o tamanho do aparato estatal que atua no setor. São
diversos meios de comunicação controlados pelo governo, como os jornais Al-
Jumhuriyah e Al-Ahram, este o mais antigo do mundo árabe, e o sistema de rádio e
televisão Egypt Radio Television Union (ERTU). Os jornalistas que atuam nos meios do
governo têm seu trabalho observado de perto pelo Ministério das Comunicações e
Informação. Um caso banal ocorreu com Alaa Sadeq, um ex-jogador de futebol que atua
como comentarista do canal esportivo Nile Sport . Após episódios violentos em uma
partida entre o Al Ahly, do Egito, e o Espérance Tunis, da Tunísia, pela Liga dos
Campeões da Ásia, Sadeq criticou a “incapacidade” do ministro do Interior3 “de manter
a ordem e a segurança durante um jogo de futebol” e foi suspenso do canal.
Deter veículos de mídia não é a única forma de o Estado egípcio controlar a
circulação de informação no país. Segundo o relatório de 2009 da ONG Repórteres sem
Fronteiras, há 32 artigos em diversas leis egípcias que punem a imprensa por suaatuação e que proíbem o acesso a informações oficiais. Em abril de 2009, a revista
Ibdaa (Criatividade) perdeu sua licença para circular por publicar um poema
“blasfemo”, que tinha expressões que “insultavam a Deus”4. Em outubro de 2010, 12
emissoras de televisão via satélite foram tiradas do ar por promover “violência, ódio,
3 Authorities tighten control over news media six weeks ahead of elections. Reporters Without Borders,21 out. 2010. Disponível em: http://en.rsf.org/egypt-authorities-tighten-control-over-21-10-
2010,38638.html4 Egypt bans 'blasphemous' magazine. BBC, 8 abr. 2009. Disponível em:http://news.bbc.co.uk/2/hi/7989016.stm
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charlatanismo e superstições”, e outros 20 canais receberam alertas pelas mesmas
práticas5. Outro expediente usado pelo Egito para controlar a imprensa é a criação de
barreiras técnicas para a atuação dos jornalistas. Também em outubro de 2010, nove
canais via satélite recém-inaugurados foram informados de que teriam de obter uma
licença junto à ERTU para começar a transmitir. Ao procurar a rede estatal, ficaram
sabendo que precisariam manter seus links via satélite em lugares fixos e os escritórios
permanentemente instalados em um complexo jornalístico nas cercanias do Cairo 6,
requisitos que reduzem a independência dos canais de televisão.
Toda a estratégia governamental é ajudada pelo medo que muitos jornalistas
egípcios sentem. Khaled Diab, colunista egípcio baseado na Bélgica, escreveu em 2009
que “ainda que os egípcios estejam lentamente superando seu arraigado medo da
autoridade, hábitos antigos demoram a desaparecer e ainda há um número mais que
suficiente de jornalistas assustados demais para exigir as mudanças que a população
quer” (DIAB, 2009). No mesmo artigo, Diab fala do surgimento de veículos
independentes, que escancaram casos de corrupção no governo, mas durante todo o ano
de 2010, com a aproximação das eleições legislativas (marcadas para novembro) e da
eleição presidencial (marcadas para setembro de 2011), diversos episódios mostraram o
porquê de o Egito ser considerado um país tão ruim para a imprensa trabalhar. Em 5 de
outubro de 2010, Ibrahim Eissa, que durante os cinco anos em que editou o jornal
independente Al-Dostour transformou a publicação em uma das poucas vozes contrárias
ao governo, foi demitido. Ironicamente, a demissão não contou com a participação
direta do Estado. Em entrevista à revista Foreign Policy, Eissa afirmou que sua
demissão estava programada desde que Sayyid Badawi, um homem de negócios e chefe
do partido Wafd, iniciou as negociações para comprar o Al Dostour por US$ 4 milhões.
Segundo a reportagem, aparentemente Badawi buscou silenciar o jornal em uma
tentativa de agradar ao governo Mubarak e, assim, conseguir um número maior decadeiras na eleição legislativa do Egito (KENNER, 2010).
Eleições livres e idôneas, Direito de voto, Direito de líderes políticos disputarem
apoios (e votos), Elegibilidade para cargos públicos, Instituições para garantir as
eleições e Liberdade de formar e aderir a organizações – A primeira vez em toda a
5 Authorities tighten control over news media six weeks ahead of elections. Reporters Without Borders,
21 out. 2010. Disponível em: http://en.rsf.org/egypt-authorities-tighten-control-over-21-10-2010,38638.html6 Ibid.
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sua história em que o Egito realizou eleições multipartidárias se deu em 2005. Naquele
período, o governo dos Estados Unidos, então chefiado por George W. Bush, vinha
exercendo pressão sob os Estados árabes para que buscassem a democratização – a
panacéia ocidental para conter o extremismo religioso. Maior aliado dos EUA na região,
o Egito de Mubarak entrou na onda da democratização, permitiu que diversos partidos
registrassem candidatos e realizou a eleição. Nas palavras de Lee Smith, o que o
governo de Mubarak fez “foi uma campanha de mídia de estilo americano para
consumo americano, porque Washington estava observando de perto” (SMITH, 2010, p.
107). Na realidade, a eleição de 2005 não passou de uma demonstração de autoritarismo
de Mubarak, na qual a busca pela democracia era um engodo divulgado pelo governo
com um alto grau de desfaçatez.
Nas eleições de 2005, os problemas começaram na busca pela permissão para se
candidatar. O próprio governo – por meio da comissão eleitoral, formada por juízes
escolhidos por Mubarak – selecionou os participantes da disputa. Além de Mubarak, do
Partido Nacional Democrático (PND), mais 28 candidatos se apresentaram. A comissão
eleitoral autorizou nove deles a concorrer, mas excluiu outros 19 sem dar justificativas
(SLACKMAN, 2005). Entre os concorrentes estava Ayman Nour, um parlamentar que
começou a despertar preocupação no governo tendo em vista as importantes
manifestações de apoio de recebeu. Não demorou, e Nour se tornou alvo de Mubarak. O
parlamentar foi preso pela primeira vez em janeiro de 2005, acusado de fraudar cerca de
mil assinaturas no documento que pedia o registro de seu partido, o Al-Ghad (Amanhã).
Libertado sob fiança em março, Nour prestou depoimento em uma tensa sessão judicial
realizada em 28 de junho de 2005 e alegou inocência (MACFARQUHAR, 2005). Para
seus simpatizantes, todo o processo era uma tentativa do governo de manchar a imagem
de Nour. Curiosamente, entre as assinaturas supostamente falsificadas por Nour
estavam a de sua mulher e de seu pai, as quais ele não teria nenhum motivo aparentepara forjar. As acusações contra o parlamentar eram tão frágeis que a então secretária de
Estado dos Estados Unidos, Condoleezza Rice, adiou uma visita que faria ao Egito em
janeiro, quando Nour foi preso pela primeira vez.
Diante dessa polêmica, o governo Mubarak e o PND se cercaram de cuidados
para evitar uma derrota nas urnas. Assim, a votação foi vergonhosa. As denúncias de
fraudes e irregularidades se acumularam, e o jornal inglês The Independent trouxe o
relato mais completo. Em reportagem publicada no dia seguinte à eleição, o jornal contaque muitas seções eleitorais estavam “evidentemente orientadas a garantir que os votos
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fossem para Mubarak e não para Nour” (PHILLIPS, 2005). Algumas seções estavam
decoradas com fotografias gigantes de Mubarak, outras tinham mulheres do PND
cantando músicas exortando o presidente e, em alguns casos, membros do PND
circulavam entre os eleitores, “pegando suas cédulas das mãos dos mesários e
entregando aos eleitores, pedindo que cumprissem sua obrigação” com Mubarak. A
comissão eleitoral só autorizou o monitoramento das eleições por integrantes da
sociedade civil horas antes de a votação começar, graças à pressão internacional. A
permissão, entretanto, não foi o suficiente para garantir o trabalho dos observadores.
Quatro monitores do centro Ibn Khaldoun foram espancados em Assut, no norte do
Egito, e oito foram presos em Alexandria, Sohag e Kar Kalf El Sheikh. Houve ainda
relatos de eleitores de Mubarak serem levados de ônibus para votar, de eleitores que, ao
chegar nas seções, descobriram que alguém já havia votado em seus lugares e de falta
da tinta fosforescente que marcaria os dedos dos eleitores após a votação para prevenir
fraudes. O resultado oficial apontou vitória de Mubarak com 88,6% dos votos.
Dois meses depois da eleição presidencial, foram realizadas as eleições
legislativas. Os integrantes da Irmandade Muçulmana – que continua ilegal desde 1954
– concorreram como independentes na eleição, disputada em três fases devido ao
monitoramento por parte do Judiciário, aplicado pela primeira vez na história do país. A
Irmandade recebeu uma votação muito grande na primeira fase, colocando o governo
em alerta. Na segunda e na terceira fases, a polícia prendeu mais de 800 integrantes da
Irmandade Muçulmana e fechou diversas seções eleitorais, impedindo a votação (The
Economist, 2010). Isso não impediu que a Irmandade Muçulmana deixasse as eleições
com 88 das 454 cadeiras da câmara baixa do Egito.
Depois da eleição presidencial e da votação legislativa, o governo fez questão de
mostrar que os opositores não teriam vida fácil. A primeira vítima foi Ayman Nour,
preso pela segunda vez em novembro de 2005. Em 24 de dezembro do mesmo ano,Nour foi levado a julgamento. Em uma corte que tinha a presença de diplomatas dos
Estados Unidos, da França, da Noruega e da União Europeia, e que estava repleta de
policiais, que impediam a entrada dos simpatizantes de Nour, o ex-candidato ouviu a
sentença dentro de uma jaula – o texto lido pelo juiz Adel Abdel Salam Gomaa previa
uma prisão de cinco anos com trabalhos forçados (SLACKMAN, 2005). Em fevereiro
de 2009, Nour foi solto, segundo o judiciário egípcio, por “motivos de saúde”.
Depois de ver sua posição ameaçada por um candidato secular – Nour – e aIrmandade Muçulmana crescer de forma exponencial no parlamento, Mubarak tomou
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medidas para evitar que a situação se repetisse. Emendas constitucionais aprovadas em
2007 proibiram a formação de partidos baseados em religião e criaram obstáculos
praticamente intransponíveis para que os Irmãos Muçulmanos continuem disputando as
eleições como independentes. Para conseguir isso, um candidato precisará ter seu nome
referendado por 200 políticos eleitos7, sendo 65 da Assembleia do Povo (a câmara
baixa), 25 do Conselho Shura (a câmara alta), e dez de conselhos populares locais de
pelo menos 14 governadorias (como é chamada a jurisdição estadual ou provincial no
Egito). Ao impor essas barreiras, o governo impede, na prática, o crescimento contínuo
da presença de Irmãos Muçulmanos no parlamento e fere diretamente o direito de
elegibilidade de uma parcela da população, pois todos os órgãos legislativos são
dominados por integrantes do PND, que não endossarão, sob nenhuma hipótese,
integrantes da Irmandade Muçulmana.
Outra mudança realizada por Mubarak foi acabar com a supervisão judicial da
eleição, como ocorreu na votação legislativa em que a Irmandade colheu grande apoio.
Agora, as regras determinam que comitês independentes nomeados pelos chefes dos
partidos façam a supervisão (The Economist, 2010). Vale notar que muitos integrantes
do Judiciário são vistos com preocupação pelo governo Mubarak por sua clara tendência
crítica às ações do governo. Por isso, muitos dos magistrados mais independentes
acabaram perdendo seus cargos. Outro setor controlado pelo governo é o dos sindicatos.
Para ascender na hierarquia sindical, o trabalhador egípcio precisa do beneplácito da
Itihad, o secretariado da Federação Geral dos Sindicatos Egípcios. Reportagem do
jornal Daily News Egypt , ligado à International Herald Tribune (a edição global do The
New York Times), mostrou em novembro de 2006 que esse braço da burocracia
trabalhista é controlado pelo PND e só dá o consentimento às candidaturas de pessoas
leais ao partido nas eleições internas dos trabalhadores (STACK, 2006). Nas palavras de
um integrante do think tank egípcio Al-Ahram entrevistado pela reportagem: “o sistema
sindical é dominado pelo Estado autoritário estabelecido em 1952”.
Práticas democráticas também não se solidificaram na disputa presidencial. Aos
82 anos, Mubarak é visto cada vez mais como um presidente em seus últimos momentos
no cargo. Uma cirurgia realizada na Alemanha em março de 2010 ampliou as
7 Relatório da Freedom House – Countries at the Crossroads 2007 - Country Report – Egypt -Accountability and Public Voice. Disponível em:
http://www.freedomhouse.org/template.cfm?page=140&edition=8&ccrcountry=154§ion=83&ccrpage=37
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especulações sobre seu estado de saúde e as apostas sobre quem vai sucedê-lo. Apesar
das negativas do presidente sobre uma “presidência hereditária”, o mais bem cotado é
Gamal Mubarak, seu filho e alto dirigente do PND. Analistas e políticos dentro e fora
do Egito apostam em uma sucessão conturbada e um dos nomes que surgiu como um
possível sucessor é Mohamed El Baradei, ex-diretor geral da Agência Internacional e
Energia Atômica (Aiea), que venceu o prêmio Nobel da Paz de 2005 por seu trabalho à
frente da entidade, ligada à Organização das Nações Unidas. Em novembro de 2009,
Baradei expressou a vontade de concorrer à presidência do Egito apenas em caso de
uma completa mudança constitucional que garantisse supervisão independente das
eleições e um pleito aberto, livre e justo. Apesar de esta perspectiva não existir a curto
prazo, Baradei recebeu apoio, principalmente da juventude egípcia. Em fevereiro,
quando chegou ao aeroporto do Cairo, foi recebido por uma multidão (The Economist,
2010) que exigia uma reforma política. Baradei se reuniu com dirigentes de diversos
partidos e grupos – incluindo a Irmandade Muçulmana – e ajudou a criar a Associação
Nacional para Mudança, uma instituição sem caráter partidário, mas que pretende tirar o
PND de Mubarak do poder. Bastaram essas demonstrações de poder para colocar o
aparato estatal de prontidão. Em entrevista à revista inglesa The Economist em julho de
2010, Baradei disse “estar sufocado”. Afirmou que as ações do governo impedem que
seu grupo tenha uma sede, angarie doações e organize eventos públicos. “Tudo o que
podemos fazer é visitar alguns lugares, e depois que vamos embora eles prendem
algumas pessoas”, disse (The Economist, 2010). Ao mesmo tempo, articulistas da
imprensa estatal acusaram Baradei de ser um homem sem ligações com o Egito, tendo
em vista o tempo que atuou em organizações internacionais. E figuras importantes da
sociedade egípcia que inicialmente apoiaram o ex-diretor da Aiea perderam o
entusiasmo nos últimos meses, tendo em vista a pressão governamental e as poucas
chances de Baradei obter sucesso. Soma-se a isso a impossibilidade prática de Baradeifundar um novo partido e se candidatar a presidente. A Constituição do Egito determina
que, para lançar um nome ao pleito nacional, o partido precisa estar ativo há pelo menos
cinco anos e precisa ter ao menos 3% dos assentos nas câmaras baixa e alta do
parlamento8. Nas eleições de 2005, graças à pressão internacional sobre o Egito,
exceções foram abertas. Para as eleições de 2011, as regras são impedimentos claros
para o surgimento de novos concorrentes a Mubarak.
8 Ibid.
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3. OUTRO EXEMPLO DE DEMOCRATIZAÇÃO NA REGIÃO: O KUWAIT
Ainda que o Egito seja o responsável pelo exemplo mais claro de
democratização de fachada, tornando o país o caso mais notório das reformas
contraproducentes que vêm ocorrendo no Oriente Médio, quase todas as nações da
região embarcaram em processos semelhantes nos últimos anos. Em um artigo
publicado em 2007 pelo Carnegie Endowment for International Peace, uma instituição
baseada nos Estados Unidos, Marina Ottaway e Michele Dunne dividem em três linhas
gerais o processo de democratização cosmética do Oriente Médio (2007, P. 5).
O primeiro é o conhecido como “modelo do Bahrein”, que consiste em reformar
as instituições políticas fazendo com que o país projete uma imagem de mudança, mas
não realize uma significativa redistribuição de poder. Este modelo se aplica ao Egito,
como mostrou a descrição do cenário atual do país feita no capítulo dois. O segundo
modelo envolve reformas relacionadas a temas sociais, como direitos individuais e de
status pessoal das populações. O Marrocos seria o exemplo mais bem acabado, mas as
autoras citam Emirados Árabes Unidos e Tunísia, países cujas variáveis de
democratização envolvem uma agressiva política de reforma econômica e alguma
reforma administrativa. No terceiro e último modelo, os exemplos seriam o Iêmen e a
Argélia, países onde os governos passaram a aceitar e até a legitimar as oposições, ainda
que ao mesmo tempo tenham tentado reduzir o papel dos rivais políticos.
Como se vê, o cenário da democratização no Oriente Médio, não permite
otimismo. No entanto, a definição de democracia adotada neste trabalho toma por base
o trabalho de Robert Dahl e procura fazer uma análise do aumento do grau de
pluralismo dentro das sociedades. Afinal, este foi o caminho feito pelas sociedades mais
poliárquicas da atualidade e, se os países do Oriente Médio também tomarão esse rumo,
será por meio do aumento da pluralidade que se tornarão mais democráticos. A seguir,vamos então analisar algumas situações que mostram a ampliação da participação de
diferentes setores no Kuwait, que se encaixa no terceiro modelo de Ottaway e Dunne.
O Kuwait é um pequeno país localizado no noroeste do Golfo Pérsico, com
fronteiras com a Arábia Saudita e o Iraque e população de 2,7 milhões de habitantes
(85% deles muçulmanos), sendo 1,3 milhão estrangeiros. Dono da quinta maior reserva
de petróleo do mundo9, o Kuwait fez parte do Império Otomano, mas como estava
9 Informação do CIA Factbook - Oil / Proved reserves. Disponível em:https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/rankorder/2178rank.html
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muito distante dos centros de controle deste, tinha uma autonomia relativa. Desta forma,
Sabah bin Jaber se tornou, em 1752, o primeiro xeique (hoje chefe do Executivo) do
Kuwait, estabelecendo uma dinastia que controla os rumos do país até hoje. Em 1899,
temendo o avanço do Império Otomano, a família real entrou em um acordo com o
Reino Unido, tornando o Kuwait, na prática, um protetorado de Londres, que temia a
expansão da influência alemã, e sua aliança com os otomanos, na região. Era um
sistema semelhante ao que o Reino Unido havia desenvolvido no que são hoje os
Emirados Árabes Unidos e o Bahrein. A independência completa só foi conseguida em
1961. Hoje em dia, o Kuwait não pode ser considerado uma democracia. O país tem um
parlamento previsto em sua Constituição – o primeiro dos países árabes do Golfo – mas
o poder emana, de forma praticamente exclusiva, da casa de Sabah. Só podem chegar ao
cargo de xeique, ou emir, aqueles que têm sangue real. O nome do príncipe-herdeiro
deve ser aprovado pela Assembleia Nacional, mas ele é indicado pelo emir. Em caso de
rejeição, outros nomes da família real devem ser apresentados. Os ministros,
principalmente aqueles de pastas estratégicas, como Exterior, Finanças, Petróleo e
Defesa, também são da família real.
Ainda que seja impossível classificar o Kuwait como uma democracia,
analisando eventos recentes ocorridos no país, é possível concluir que, em alguns
aspectos, o Kuwait tem se tornado mais poliárquico. A dificuldade é classificar o
caminho que esta nação vem tomando de acordo com os padrões estabelecidos por
Robert Dahl. O que parece estamos vendo é um modelo híbrido, com características do
primeiro caminho rumo à poliarquia – ampliação das oportunidades de contestação do
regime dentro de um pequeno grupo, antes da inclusão de diferentes atores políticos no
processo decisório – e do segundo caminho, aquele no qual a hegemonia se torna
inclusiva antes de se transformar em uma poliarquia.
Um bom exemplo de contestação ampliada no Kuwait é seu parlamento. Comoescrito acima, o poder emana quase que de forma exclusiva da família real, mas esta
“aponta com inveja para Dubai, cujo crescimento econômico, eles alegam, não é
atrapalhado pelos atrasos e pela ineficiência causada pelos debates parlamentares e
compromissos assumidos entre as facções políticas” (OTTAWAY e DUNNE, 2007, p.
4). Essa inveja do autoritarismo dos Emirados Árabes Unidos se dá porque o
parlamento kuwaitiano possui uma grande importância no que diz respeito à formação
da legislação do país e pode influenciar o Executivo, principalmente por dois meios. Oprimeiro é a possibilidade de convocar o voto de confiança, por meio do qual os
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ministros podem ser chamados a responder diante dos deputados. Uma outra forma de
enfrentar o governo é a Assembleia Nacional se declarar incompetente para trabalhar ao
lado do gabinete, forçando o emir a dissolver o parlamento e convocar novas eleições
ou demitindo o próprio gabinete (BROWN, 2007, p.5). A Constituição do Kuwait
determina que o emir tem 60 dias para convocar novas eleições para a Assembleia
Nacional, mas em duas oportunidades – em 1976 e 1986 – a opção tomada pelo chefe
foi extraconstitucional, e por períodos de cinco e seis anos, respectivamente, o Kuwait
foi um país completamente autoritário. Desde o fim da ocupação iraquiana, encerrada
pela Operação Tempestade no Deserto – a Primeira Guerra do Golfo (1991) – esse
expediente não voltou a ser usado, apesar dos momentos políticos bastante turbulentos
pelo qual o Kuwait passou.
Em 2006, época na qual o governo americano pressionava os países do Oriente
Médio a realizar reformas democráticas, o processo de democratização no Kuwait viveu
um episódio simbólico. Até então, a eleição dos parlamentares se dava dentro dos 25
distritos no qual o Kuwait fora dividido. Esse sistema, no qual eram eleitos apenas dois
deputados por distrito, favorecia os aliados do governo. Repassando favores estatais aos
moradores de seus distritos, os candidatos simpáticos à casa de Sabah tinham mais
facilidade para conseguir uma cadeira no parlamento. Os deputados oposicionistas
conseguiram um raro tema para uní-los e, apoiados por um surpreendente movimento
popular estudantil, conseguiram levar a reforma a cabo, reduzindo o número de distritos
de 25 para cinco. Dessa forma, dez deputados seriam eleitos por distrito, o que abriria as
portas para uma campanha mais programática e ideológica.
“A coalizão de islamistas, outros reformados e estudantes pegou o governo
desprevenido, fazendo os líderes da família real calcularem muito mal a
situação. O próprio gabinete pareceu dividido a respeito do tema e usou
alguns métodos desajeitados (como tentar remendar a reforma e encaminhar
o projeto para a corte constitucional), que acabaram levando o bloco
parlamentar reformador à confrontação total com o governo. Quando alguns
deputados ameaçaram interpelar o primeiro-ministro – um passo sem
precedentes na política kuwaitiana (e virtualmente impensável em tempos
anteriores, quando os primeiros-ministros também eram os príncipes-
herdeiros) – o emir dissolveu o parlamento. Como a coalizão pró-reforma
reuniu uma maioria em apoio à sua posição, o emir pode ter pensado que
tinha derrotado a oposição ao forçar uma nova eleição de acordo com asregras antigas. Mas o emir calculou mal. As forças apoiando a reforma
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eleitoral ganharam a maioria no novo parlamento (...), que imediatamente
aprovou a lei criando os cinco distritos eleitorais” (BROWN, 2007, p.9)
Ainda em 2006, depois de impor esta derrota ao governo, a Assembleia Nacional
voltou a mostrar força. Em 17 de dezembro, um dia antes de ser entrevistadoformalmente pelo parlamento, o então ministro da Informação, Mohammed Al-
San’ousi, acusado de perseguir os veículos de imprensa que davam espaço aos
oposicionistas, renunciou. Em março de 2007, o governo inteiro deixou o cargo para
evitar que Shaykh Ahmad Abdullah Al-Ahmad, então ministro da Saúde, fosse
reprovado em um voto de não-confiança. Em junho, o ministro do Petróleo caiu e, em
março de 2008, o emir voltou a dissolver o parlamento, o que repetiria exatamente um
ano depois, sempre por conta do domínio que os oposicionistas tinham no parlamento.Essa instabilidade deriva de um fenômeno que Nathan J. Brown classifica como “antiga
divisão na política kuwaitiana sobre a natureza da ordem constitucional”.
“A família real considera a Constituição e o parlamento como seus presentes
para o povo do Kuwait; os governantes concordaram em consultar a
população sobre os principais questões, mas mantêm a autoridade final em
suas mãos. Em duas ocasiões, eles pegaram de volta o presente por vários
anos. Para grande parte da oposição do Kuwait, a Constituição é vista comoum contrato entre a família governante e a população – a população
concorda em dar à família real um papel de liderança, contanto que ela opere
dentro dos limites da ordem constitucional. Em sua visão, tal contrato não
pode ser rescindido unilateralmente por qualquer das partes” (BROWN,
2007, p.18)
Tal divisão provoca um longo atraso nas decisões que darão rumo ao país, mas
este “problema” é típico da democracia, e não de governos autoritários, o que deixaclaro um grau considerável de divisão de poder dentro do regime político kuwaitiano.
Um exemplo de ampliação da inclusão de novos atores no processo de tomada
de decisões vem se dando nas eleições. O governo hegemônico está abrindo as portas
para novos eleitores – em busca de um formato de sufrágio mais aceitável e palatável
para as potências ocidentais – sem abrir mão de seu poder inconteste. Neste processo,
um dos grupos que está sendo beneficiado é o das mulheres, tradicionalmente subjugado
no mundo árabe. A Arábia Saudita é o grande exemplo deste sexismo. No país da
dinastia Saud há um firme controle sobre as ações da mulher, que não pode realizar
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sozinha nem tarefas corriqueiras como dirigir, alugar um apartamento ou mesmo
reservar um quarto de hotel. Enquanto isso, pequenos emirados do Golfo Pérsico têm
concedido direito a voto às mulheres. Permitiram a adesão das mulheres ao processo
eleitoral o Catar (1999), Bahrein (2002) e Omã (2003). O caso do Kuwait é
emblemático, pois mostra como se dá a democratização no Oriente Médio – de cima
para baixo, e com a resistência de setores conservadores.
Em 1999, Jaber Al-Ahmad Al-Jaber Al-Sabah, então xeique do Kuwait, emitiu
um decreto dando direitos políticos às mulheres. A lei ficou aguardando regulamentação
e aprovação pelo parlamento por longos seis anos. Neste período, congressistas
islamitas ou ligados a tribos tradicionais do Kuwait barraram a mudança na legislação
até que, em 2005, o xeique fez uma enorme pressão para que a lei entrasse em vigor.
Uma vez aprovada em uma apertada votação, a lei permitiu que as mulheres votassem e
se candidatassem pela primeira vez nas eleições para o conselho municipal do distrito
de Salmiya, ao sul da Cidade do Kuwait, a capital do país. Duas semanas depois, o
parlamento aprovou uma emenda dando às mulheres direitos políticos também nas
eleições legislativas nacionais. De imediato, o efeito foi sentido, e, como afirmou uma
eleitora entrevistada em junho de 2006 pelo jornal The New York Times, os políticos que
antes “votavam contra as mulheres” foram obrigados a “cortejar” os votos delas para
serem eleitos (FATTAH, 2006). Isso se deu porque o número de eleitoras é cerca de
30% maior que o de eleitores, por razões como o impedimento dos militares de votar e o
fato de as mulheres terem sido registradas para votar de forma automática, enquanto os
homens são obrigados a fazê-lo de forma individual. Em 2009, na terceira eleição
realizada no país na qual as mulheres puderam concorrer, dos 210 candidatos ao
parlamento, 16 eram mulheres, e quatro – Aseel al-Awadhi, Rula Dashti, Salwa al-
Jassar, Massouma al-Mubarak (TRAN, 2009) – foram eleitas. Elas eram as primeiras
mulheres da história do país a conquistar um assento no parlamento.Após o estudo destes dois exemplos, cabe uma breve análise sobre as condições
atuais, no Kuwait, das oito garantias estabelecidas por Dahl como condições básicas
para a existência de uma democracia.
Eleições livres e idôneas, Direito de voto, Direito de líderes políticos disputarem
apoios (e votos), Elegibilidade para cargos públicos, Instituições para garantir as
eleições e Liberdade de formar e aderir a organizações – Nas três primeirascondições a serem analisadas aqui, pode-se dizer que elas devem ser vistas sob um
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prisma positivo no Kuwait atual. As eleições são consideras livres e justas, o direito ao
voto vem se expandindo e os líderes políticos podem disputar apoios e votos. O grande
impedimento para que o Kuwait seja considerado uma democracia é o fato de o emir,
bem como o príncipe-herdeiro, o primeiro-ministro e a maioria dos ministros terem
todos o mesmo sangue – o sangue da família Sabah, que comanda o país há mais de
dois séculos. Essa situação faz com que o sistema político do Kuwait tenham distorções
como a ocorrida em 2006, na eleição que antecedeu o redimensionamento dos distritos
eleitorais do Kuwait. Naquela ocasião, o bloco oposicionista tinha a maioria do
parlamento, uma condição que, em qualquer outra democracia parlamentar genuína
daria a esse bloco a prerrogativa de tentar formar o governo.
Outro entrave para o processo de democratização no Kuwait é a falta de
independência do Poder Judiciário. Ainda que as eleições venham sendo realizadas há
tempos com certa calma e frequência, as instituições que as garantem são totalmente
atreladas à família real. É o emir que nomeia todos os juízes, e fica sob cargo do
Executivo a aprovação das promoções10. Também depõe contra o Kuwait
impossibilidade de que partidos políticos sejam formados no país. Na legislação do
Kuwait simplesmente não há um mecanismo que preveja a criação de uma organização
política que dispute os votos dos eleitores. Tal impedimento enfraquece a oposição, mas
não impede que seja possível observar de forma clara quais deputados representam
quais setores, incluídos aí os islâmicos sunitas (70% dos muçulmanos do Kuwait), xiitas
(30% da população), esquerdistas, liberais e chefes tribais.
Fontes alternativas de informação e Liberdade de Expressão – A imprensa no
Kuwait é considerada uma das mais livres entre os países do Oriente Médio. Segundo a
organização internacional Repórteres Sem Fronteiras11, os país tem diversos canais de
televisão e jornais privados em árabe. A imprensa escrita é tradicionalmente umaplataforma de debate político aberto, refletindo a diversidade de opiniões dentro da
sociedade kuwaitiana. Os confrontos entre os deputados e os ministros ocorridos no
último ano foram vastamente divulgados, inclusive pela imprensa estrangeira, que
também desfruta de condições de trabalho melhores do que em outros países da região.
10 Informação do relatório de 2010 do think tank americano Freedom House, disponível em:
http://www.freedomhouse.org/template.cfm?page=22&year=2010&country=785511 Relatório de 2009. Disponível em http://en.rsf.org/report-kuwait,156.html
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Em 2006, reformas em série liberalizaram o setor de telecomunicações, aumentando o
número de canais de televisão, e tornaram obrigatória a existência de uma ordem
judicial para que um jornal seja fechado.
Os jornalistas do Kuwait, no entanto, sofrem com as legislações criminais do
país, que autorizam prisões e multas pesadas por “difamação” e “ataques à religião”, o
que faz com que as críticas a membros da família real sejam encaradas como um tabu.
Em 2009 e 2010, o jornalista e escritor Mohammed Abdel Qader Al-Jassem quebrou
esta barreira e vem sofrendo as duras consequências. Ele foi preso pela primeira vez no
fim de 2009, para ser interrogado a respeito de um artigo publicado em agosto de 2009
no jornal Alam Al-Youm, no qual acusava o primeiro-ministro do Kuwait de fomentar
tensões religiosas para se manter no cargo. Em maio de 2010, Al-Jassem ficou preso por
quase 50 dias por publicar artigos críticos ao governo em seu blog (www.aljasem.org)
que configuraram, segundo a Justiça do país, “ataques à segurança nacional”. Ao todo,
Al-Jassem respondeu e responde a 15 processos na Justiça do Kuwait, sendo o mais
grave deles a acusação de que o serviço de inteligência do Irã usa um empresário
próximo ao primeiro-ministro, Nasser Mohammad Al-Ahmed Al-Sabah, para tentar
influenciar as decisões do governo do Kuwait. Por conta dessa acusação, Al-Jassem foi
condenado, em 23 de novembro, a um ano de prisão12.
12 Repórteres Sem Fronteiras - “Well-known blogger arrested after getting one-year sentence fordefamation”. Disponível em: http://en.rsf.org/kuwait-well-known-blogger-arrested-after-23-11-2010,38874.html
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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Aparentemente, as teses de que o arabismo ou o Islã são os culpados pela
ausência de democracia no Oriente Médio se manifestam a partir da decepção com a
lentidão de alguns países da região na busca pela democracia e com a total incapacidade
de outras nações de agirem de forma minimamente democrática. Na base desse
pensamento está a constatação de que, com o fim da Guerra Fria, países da América do
Sul, do Leste Europeu, da África e da Ásia tomaram o rumo da democracia – em
diferentes intensidades e velocidades – mas o Oriente Médio ficou paralisado com suas
monarquias e autocracias hereditárias e praticamente absolutas. Essa paralisia seria
inconcebível, pois, de acordo com essa análise, estabelecer uma democracia seria algo
simples, fácil e rápido. É fato que a democracia no Oriente Médio não tem boas
perspectivas, mas atribuir à etnia ou à religião tal problema é relegar ao segundo plano a
própria história da democracia ocidental, e também a história do Oriente Médio, que
ajuda a explicar o flagrante atraso institucional da região.
Cabe lembrar, em primeiro lugar, que a democratização é um processo tortuoso,
marcado por avanços e retrocessos, e muito longo, necessitando, em alguns casos, de
séculos para que um regime verdadeiramente poliárquico se estabeleça. A Espanha,
neste início de século XXI uma democracia inquestionável, passou quase a metade do
século XX sob uma ditadura (1936-1977). Antes disso, o país viveu 130 anos altamente
conturbados, nos quais esteve envolvido em uma guerra continental (Guerras
Napoleônicas) e no qual foi vítima de invasões estrangeiras e guerras civis. Uma
história problemática como essa não é exclusividade da Espanha, mas sim lugar comum
quando se olha para o passado das nações atualmente desenvolvidas, justamente aquelas
onde a democracia é unanimemente classificada como a de melhor qualidade. Na obra
Chutando a Escada (2003), Ha-Joon Chang faz uma análise histórica de um dosaspectos fundamentais da democracia, o sufrágio universal, e mostra como sua adoção
foi tardia nos países atualmente desenvolvidos. O direito ao voto para todas as pessoas,
incluindo as mulheres e as minorias étnicas e políticas, só foi adotado pela maioria dos
19 países analisados13 no livro em 1946. Alguns, só o fizeram mais tarde, como
Austrália (1962), Estados Unidos (1965), Canadá (1970) e Suíça (1971). Esses dados
permitem uma conclusão simples, mas fundamental neste trabalho. Os regimes mais
13 Alemanha, Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Dinamarca, Espanha, Estados Unidos, Finlândia,França, Holanda, Itália, Japão, Noruega, Nova Zelândia, Portugal, Reino Unido, Suécia e Suíça.
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poliárquicos da atualidade só deram direito ao voto a seus cidadãos há algumas décadas,
depois de séculos desenvolvendo a democracia. É certo que os países árabes e
muçulmanos não precisariam do mesmo tempo para chegar ao mesmo ponto, afinal,
poderiam “aprender” com as lições dos países ocidentais desenvolvidos. Mas é aqui que
entram os fatores históricos específicos do Oriente Médio.
É necessário ter em conta que o atraso institucional do Oriente Médio hoje em
dia se deve, em grande parte, ao papel que exerceram na região as grandes potências do
século XX. Em sua perspectiva histórica, Chang mostra que no período inicial do pós-
guerra, o grupo que ele chama de EIPD (Establishment Internacional da Política de
Desenvolvimento), que inclui algumas instituições multilaterais e as democracias mais
desenvolvidas, avaliava que “os países em desenvolvimento não podiam se dar ao luxo
de sustentar as caríssimas instituições democráticas” (CHANG, 2003, p. 127). No
Oriente Médio, também, mas não exclusivamente, o efeito desta percepção foi o
incentivo a regimes nada democráticos. Desde o início do século XX, as potências
ocidentais apoiaram o estabelecimento de muitos dos regimes que existem até hoje no
Oriente Médio. Em um caso emblemático, o governo dos Estados Unidos, por meio de
sua principal agência de Inteligência, a CIA, interferiu diretamente na derrubada de
Mohammed Mossadegh, primeiro-ministro eleito democraticamente no Irã, que foi
vítima de um golpe em 1953, quando tentou nacionalizar a produção de petróleo do
país.
Nos dias de hoje, a ortodoxia corrente no EIPD é aquela que determina que a
democracia é uma condição prévia do desenvolvimento (CHANG, 2003, p. 128).
Assim, a implementação da democracia passou a ser uma das bandeiras das potências
ocidentais quando essas falavam sobre o que os países em desenvolvimento deveriam
fazer para ir ao encontro do desenvolvimento econômico. O discurso pela
democratização passou a ser adotado também do ponto de vista político graças àchamada “Guerra ao Terror”. Depois dos atentados de 11 de Setembro de 2001, nos
Estados Unidos, uma das reações do governo americano, então chefiado por George W.
Bush, foi promover o discurso segundo o qual a democratização do Oriente Médio
colocaria fim ao terrorismo e, mais especificamente, à exportação do terror para o
Ocidente. Em 2005, em um famoso discurso realizado no Cairo, a então secretária de
Estado dos Estados Unidos, Condoleezza Rice, fez um mea-culpa em nome de seu país.
Disse que, nos últimos 60 anos, os Estados Unidos privilegiaram a estabilidade emdetrimento da democracia no Oriente Médio e que, neste período, não conseguiram nem
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uma coisa, nem outra. Assim, a partir daquele momento, os Estados Unidos iriam
“tomar um rumo diferente, apoiando as aspirações democráticas de todas as pessoas”
(BBC News, 2005).
Não é o intuito deste trabalho discutir se a democracia leva ou não ao
desenvolvimento econômico e se sua aplicação reduz ou não a ameaça terrorista. Mas é
preciso analisar que consequências teve para o Oriente Médio a pregação do ideal
democrático. A impressão que se tem é que uma vez que o Ocidente desenvolvido
decidiu que é bom o país em desenvolvimento adotar a democracia, um relógio
imaginário começou a funcionar, cronometrando quanto tempo os países do Oriente
Médio vão demorar para se tornar democráticos. Analistas, pesquisadores, acadêmicos e
jornalistas adeptos da ortodoxia segundo a qual a implantação democracia vai resolver
todos os problemas – a panacéia ocidentalizadora da qual fala Peter Demant – passam
então a avaliar de forma crítica o Oriente Médio sem se dar conta que os formadores de
políticas das potências ocidentais, aqueles que criaram essa mesma ortodoxia, pouco
fazem para que reformas genuinamente democráticas ocorram no Oriente Médio.
O fato é que, apesar deste discurso pró-democracia que direcionam ao Oriente
Médio, os países desenvolvidos e democráticos dos dias atuais, em especial os Estados
Unidos, exercem uma pressão inconsistente sob os regimes do Oriente Médio e falham
em dar suporte aos setores reformadores dessas sociedades. O resultado do discurso
pró-democracia do Ocidente desenvolvido, e sua falta de ressonância nas ações
concretas desses mesmos países, é a democratização cosmética que tem ocorrido no
Oriente Médio, e da qual o Egito é o exemplo mais notório. Nas palavras de Ottaway e
Dunne, esse é um comportamento que manda sinais contraditórios aos países árabes:
Os Estados Unidos e os países europeus também colocam pressão nos regimes
árabes para introduzir reformas. Exercida inconsistentemente e de uma formaum tanto fragmentada, essa pressão foi tanto uma benção quanto uma maldição
aos reformistas dos partidos que estão no poder. Os jovens monarcas de
Bahrein, Jordânia, Marrocos e Catar, por exemplo, se tornaram queridos da
administração americana depois de 2001 em parte porque tinham credenciais
reformistas, e se beneficiaram de acordos de livre-comércio, pacotes de
assistência e cooperação militar reforçada. (...) Os elogios às vezes exagerados
com as quais as reformas foram recebidas, no entanto, mandaram um sinal aos
reformadores dentro do regime que as expectativas externas não eram muito
altas. Elogiar uma reforma constitucional no Bahrein que criou um parlamento
construído de tal forma que o regime sempre vai dominá-lo, ou elogiar a
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reforma marroquina no código de status pessoal enquanto ignora a implicação
não-democrática da nova lei de eleição, manda um sinal de que atores externos
seriam facilmente apaziguados (OTTAWAY e DUNNE, 2007, P. 19).
Como já visto, um dos resultados desta democratização cosmética é aislamização rastejante das sociedades árabes e muçulmanas, o que acaba fortalecendo o
fundamentalismo religioso e alimentando a percepção, no ocidente, de que a democracia
e o Oriente Médio não combinam. Por trás desta percepção de incompatibilidade
também está a ideia de que espalhar a democracia em nações de maioria árabe e
muçulmana poderia gerar resultados nefastos, pois quem venceria as eleições seriam os
partidos fundamentalistas. Essa percepção foi reforçada por vitórias de partidos
religiosos nas urnas nos últimos anos, como na Turquia, no Egito (caso da IrmandadeMuçulmana, analisado no capítulo dois) e, principalmente, do Hamas na Palestina. Uma
análise profunda das eleições em países muçulmanos, entretanto, mostra que esse
pânico do islã radical nas sociedades ocidentais é baseado na parte e não no todo, pois
os triunfos dos partidos religiosos são exceções, e não a regra. Um levantamento feito
por pesquisadores da Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill (KURZMAN e
NAQVI, 2010) com dados da União Interparlamentar – uma instituição criada em 1889
e cujo objetivo é fomentar o diálogo entre os parlamentos do mundo – mostrou que nosúltimos 40 anos, 86 eleições parlamentares em 20 países muçulmanos incluíram um ou
mais partidos islâmicos. Desses partidos, 80% tiveram menos de 20% dos votos e a
maioria teve menos de 10%. Em uma análise qualitativa das eleições, ficou claro que
quanto mais democrático o país, pior é a votação desses partidos. Segundo os
pesquisadores, em eleições “relativamente livres” a porcentagem de cadeiras no
parlamento dos partidos islâmicos é dez pontos porcentuais mais baixa do que em
eleições sem liberdade. Nas eleições mais livres, os partidos islâmicos também falam
menos na sharia (a lei islâmica) ou na jihad armada e costumam defender a democracia
e os direitos das mulheres. Outros números servem para contrapor a percepção de
incompatibilidade entre o Islã e a democracia. Em outubro de 2009, o Pew Forum on
Religion & Public Life, outra organização americana, publicou aquele que é
considerado o maior e mais confiável levantamento sobre a população muçulmana
mundial e mostrou que há 1,57 bilhão de muçulmanos no mundo, sendo que apenas
20% deles estão no Oriente Médio. Entre os 80% restantes, milhões vivem em países
seculares e considerados democráticos, como a Indonésia (203 milhões de
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muçulmanos), Índia (161 milhões), Máli (12 milhões), Alemanha, França e Gana (4
milhões), entre muitos outros.
Todos esses fatores históricos e geopolíticos são importantes, mas são apenas
uma parte da resposta para a pergunta: a democracia é viável no Oriente Médio? A
segunda parte da resposta ainda está sendo escrita pelas sociedades árabes e
muçulmanas, e é seu andamento que vai revelar qual é a viabilidade deste regime ser
adotado. É fato notório que a maior parte dos países do Oriente Médio possui governos
autoritários e, como definiu Maquiavel, o objetivo deste tipo de governo é
primordialmente se perpetuar no poder. Tal comportamento é comum tanto ao Egito,
tratado neste estudo como exemplo de uma democratização meramente cosmética,
quanto ao Kuwait, onde a família real usa diversos mecanismos para manter seu poder
intocado, ainda que as aberturas conseguidas pelas forças de oposição ao longo dos anos
tenham deixado o regime muito mais suscetível às vontades de seus rivais políticos.
Diante deste quadro de autoritarismo generalizado e hereditário, as sociedades árabes e
muçulmanas do Oriente Médio foram incapazes de criar uma via legítima e eficaz para
manifestar seu descontentamento, tornando a violência um recurso muito utilizado.
Ainda que seja possível atribuir parte da culpa pela falta de democracia na região à
influência estrangeira, é de dentro das sociedades árabes e muçulmanas que a pressão
por reformas democráticas deve surgir, como ocorreu no Ocidente.
Neste processo, essas sociedades precisarão travar um debate basilar a respeito
do papel que o Islã terá, de preferência um debate no qual os religiosos sejam recrutados
para o diálogo, e não banidos. Com a Cristandade, à medida que a importância da
História e da Ciência cresceu, a religião perdeu espaço, ou melhor, procurou espaços
diferentes para manter sua importância. Uma vez que seja travado um debate crítico
dentro do Islã, a tendência é que o mesmo ocorra, e o fundamentalismo perca espaço.
Como escreveu Peter Demant, “uma leitura histórica crítica [dos textos sagrados do
Islã] permitiria contextualizar e relativizar os princípios mais ferrenhos que parecem
gravados em perpetuidade nos textos” (DEMANT, 2008, p. 357), como o status
subalterno das mulheres e o antagonismo diante de sociedades não-muçulmanas. Antes
que a democracia se estabeleça, o debate interno do Islã também precisará abordar as
questões das divisões étnicas, um fator explosivo nos conflitos da região. Esta questão
envolve principalmente os sunitas e os xiitas que, na análise de Lee Smith – um cético
quanto à possibilidade de uma democracia triunfar no Oriente Médio – travam uma batalha entre um grupo que “governou pela violência, repressão e coerção por 1,4 mil
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anos” e um “bloco de força que nunca conheceu a transigência, mas que tenta forçar
todos os outros a se submeterem a sua visão de mundo” (SMITH, 2010, p. 8).
Como fica claro, a democratização no Oriente Médio é um processo tão recente
quanto conturbado, capaz de gerar resultados bastante diferentes. Deve-se registrar com
ênfase que o que podemos observar no Kuwait são apenas formas embrionárias,
manifestações incipientes de um caminho rumo à poliarquia, que precisa de muitos
aperfeiçoamentos. Ainda assim, não se deve olhar com preconceito ou desdém para
esses acontecimentos. Os dois fatos analisados – a ampliação do sufrágio e a voz ativa
do parlamento – mostram que é desprovida de base concreta a ideia de que a etnia ou a
cultura árabes são impedimentos para a democracia. Teses parecidas foram observadas
no passado, com alemães, japoneses, eslavos e outros povos como alvos, e nunca se
provaram verdadeiras, mas apenas preconceituosas. Quanto à religião, devemos ter
claro que, sem reformas e uma contextualização histórica, a versão fundamentalista do
Islã – aquela que sobrou vitoriosa com a derrocada do nacionalismo árabe e do pan-
arabismo – continuará sendo um obstáculo para a democracia. É importante notar que a
democratização de fachada, como a que se dá no Egito e que, direta ou indiretamente é
incentivada pelo Ocidente, acaba contribuindo para a ampliação dos discursos religiosos
radicais. A democracia é, sim, viável no Oriente Médio, como foi na Europa ocidental,
no Japão, nos Estados Unidos, no Brasil, na África do Sul, mas a região tem
especificidades que não podem ser deixadas de lado. Só um processo de democratização
legítimo, que atinja o coração do poder, inclua um debate interno profundo acerca do
Islã e das divisões étnicas da região e uma pressão genuína por parte do Ocidente, será
capaz de promover o surgimento de uma democracia no Oriente Médio.
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