MEMÓRIA E ESQUECIMENTO NO GRANDE SERTÃO: VEREDAS,
DE JOÃO GUIMARÃES ROSA:
Travessia e Melancolia
Patricia da Silva Carmello
Rio de Janeiro, março de 2011.
UFRJ – Faculdade de Letras
MEMÓRIA E ESQUECIMENTO NO GRANDE SERTÃO: VEREDAS,
DE JOÃO GUIMARÃES ROSA:
Travessia e Melancolia
Patricia da Silva Carmello
Tese de Doutorado apresentada ao programa de pós-graduação em Ciência da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura (Teoria Literária). Orientador: Professora Dra. Vera Lins.
Rio de Janeiro, março de 2011.
UFRJ – Faculdade de Letras
MEMÓRIA E ESQUECIMENTO NO GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA – Travessia e Melancolia
Patricia da Silva Carmello
Orientadora: Professora Doutora Vera Lúcia de Oliveira Lins
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutora em Ciência da Literatura (Teoria Literária). Aprovada por: ________________________________________________________ Presidente, Profª. Doutora Vera Lúcia de Oliveira Lins ________________________________________________________ Profa. Doutora Ana Luiza Martins Costa – Pesquisadora independente ________________________________________________________ Profa. Doutora Marília Rothier Cardoso – PUCRio ________________________________________________________ Prof. Doutor João Camillo Penna – UFRJ ________________________________________________________ Profa. Doutora Flávia Trôcoli – UFRJ ________________________________________________________ Prof. Doutor Eduardo Guerreiro Brito Losso – UFRRJ (suplente) _________________________________________________________ Profa. Doutora Martha Alkimin de Araújo Vieira – UFRJ (suplente)
Rio de Janeiro Março de 2011
MEMÓRIA E ESQUECIMENTO NO GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA – Travessia e Melancolia
Patricia da Silva Carmello
Orientadora: Profª Doutora Vera Lúcia de Oliveira Lins
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutora em Ciência da Literatura (Teoria Literária).
A presente tese tem por objetivo pesquisar as noções de memória e
esquecimento no romance Grande Sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, tomando
como principal orientação a fala de Riobaldo, seu narrador. Partindo das articulações
entre a memória coletiva, a memória individual e a narrativa, encontra-se uma
concepção de memória, no romance, como uma terceira instância, estabelecida sempre
como negatividade, pautada nas concepções de inconsciente e real, de Freud e Lacan; e
na concepção de um tempo-de-agora, ou tempo entrecruzado de Walter Benjamin. A
tensão entre a travessia e a melancolia insere-se tanto nos aspectos históricos e coletivos
da rememoração – no testemunho do narrador sobre a cidade que vem acabar com o
sertão – como nos entraves para atravessar o trauma relacionado a Diadorim. O
processo de rememoração de Riobaldo é concebido como composto de temporalidades
que se sobrepõem, como uma montagem não-linear e não-objetiva, constituída a partir
dos erros e fracassos da memória, que apontam para sua dimensão de fantasma, de
ficção e de esquecimento.
Palavras-chave: memória, esquecimento, negatividade, inconsciente.
Rio de Janeiro Março de 2011
RESUMÉ
La présente thèse a pour but d’examiner les représentations de la mémoire et de
l’oubli dans le roman Diadorim (Grande Sertão: veredas, en portugais), de João
Guimarães Rosa, axées sur le discours de Riobaldo, son narrateur. L’analyse des
articulations entre la mémoire collective, la mémoire individuelle et le récit, appuyée
par les concepts de Freud et Lacan sur l’inconscient et le réel et par celui de Walter
Benjamin sur le “temps de maintenant” (jetztzeit), nous a permis de dégager du texte
une conception de mémoire comme une troisième instance, toujours établie comme
négativité. La tension entre la traversée et la mélancolie s’insère soit dans les aspects
historiques et collectifs de l’acte de se souvenir – le témoignage du narrateur sur la ville
qui vient mettre fin à la campagne semi-aride du Brésil (sertão) –, soit dans les
obstacles pour traverser le trauma lié à Diadorim. Nous envisageons le processus de
remémoration chez Riobaldo comme des temporalités qui se superposent de façon non-
linéaire et non-objective. Celles-ci se constituent à partir des erreurs et de l’échec du
souvenir, évocant ainsi sa dimension du fantôme, fictionnel et rattachée à l’oubli.
Mots-clés: mémoire, oubli, négativité, inconscient.
Rio de Janeiro Março de 2011
Carmello, Patricia da Silva. Memória e Esquecimento no Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa: Travessia e Melancolia/ Patricia da Silva Carmello. - Rio de Janeiro: UFRJ/ FL, 2011. xi, 232f Orientadora: Vera Lúcia de Oliveira Lins Tese (doutorado) – UFRJ/ Faculdade de Letras Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, 2011. Referências Bibliográficas: f. 220-232 1. João Guimarães Rosa. 2. Grande Sertão: Veredas. 3. Memória e esquecimento. 4. Inconsciente 5. Montagem. I. Lins, Vera Lúcia de Oliveira. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Ciência da Literatura. III. Memória e Esquecimento no Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa – travessia e melancolia.
SUMÁRIO
Introdução........................................................................................................................15
I. MEMÓRIA E NARRATIVA: PRIMEIRAS, SEGUNDAS MEMÓRIAS.................20 - Duas formas de memória e um mundo misturado................................................20 -Tempos modernos, recordação e romance............................................................27 -Um sujeito com pouco caroço..............................................................................35 -O contador de estórias...........................................................................................43 - O senhor sabe: um narrador em extinção............................................................49 - Memória coletiva, uma memória “feliz”?............................................................59
II. DESENHO E DESGRAÇA: SERTÃO EM RUÍNAS................................................69 - Sertão, paisagem subjetiva..................................................................................70 - Retrato negativo..................................................................................................84 - Raízes e resíduos do Brasil.................................................................................88 - Das lembranças de guerra: esses tontos movimentos..........................................95 - Mundo misturado, mundo à revelia....................................................................99 - Dessa volta não lhe dou desenho: o narrador-testemunha................................109 - Catrumanos, muçulmanos: ecos de outro sertão?.............................................115 - Um outro cortejo...............................................................................................120
III. TRAVESSIA, MELANCOLIA E ESQUECIMENTO...........................................127
- Vida inquieta, inquietante estranheza.................................................................127 - A selvagem desgraça, ainda...............................................................................132 - Dor em Aberto....................................................................................................137 - Travessia de minha vida.....................................................................................143 - Dos fracassos da memória ao esquecimento.....................................................151 - Depois após: divisão do tempo e do sujeito.......................................................155 - Eu senhor de certeza nenhuma: o sujeito descentrado.......................................160 - Destituição e esquecimento: os vários riobaldos e o rio....................................164
IV. OFICINA ABERTA: PALAVRA, IMAGEM E ESQUECIMENTO.......................174
- Os Nomes da Memória.......................................................................................174 - As terceiras memórias ou Uma História do Coração........................................184 - Imagens do esquecimento..................................................................................197 - Montagem, jogo, dansa......................................................................................202
CONCLUSÃO: RESTOS – DO SERTÃO – A CONCLUIR.......................................214
BIBLIOGRAFIA...........................................................................................................220
INTRODUÇÃO
Sertão é, de fato, palavra gasta em nossos estudos literários atuais; faz lembrar a
célebre conferência-ensaio de Paul Valéry “Poesia e Pensamento Abstrato” 1, onde o
poeta e ensaísta compara as palavras ao dinheiro, esse papel sujo, passado de mão em
mão, essa palavra que passou por tantos olhos, “tantas bocas e tantas frases, tantos usos
e abusos...” 2 – É o que parece apontar o imenso volume de teses, dissertações e
publicações sobre Grande Sertão: veredas3 (1956), de João Guimarães Rosa, numa
intensa produção que persiste, apesar de passados mais de 50 anos de sua publicação,
em incontáveis abordagens, desde estudos baseados na botânica, até a filosofia oriental,
passando pela psicanálise e a filosofia do direito4.
Pois, ao circular assim, na mão de tantos, o sertão arrisca-se, tal como este
papel, dinheiro gasto pelo valor de troca, a provocar o esquecimento de sua dimensão
poética, aquela que nos faz recordar, aquela que provoca simultaneamente o sonho e o
despertar, que nos faz retomar as origens da palavra e buscar renovados sentidos da
linguagem em nossa própria experiência, reinscrevendo assim a própria experiência no
passado, no presente e no futuro.
E, no entanto, como afirma Valéry em relação a qualquer palavra, bastou o gesto
de deter-me sobre ela, como na imagem do poeta; bastou uma pausa, um
questionamento da própria repetição dos sentidos consensuais, no início mesmo deste
processo de escrita, para que o abismo se apresentasse e colocasse em xeque os
significados estabelecidos. Bastou uma espera, uma respiração, para que o silêncio se
apresentasse – e foi o que ocorreu com esta pesquisa sobre o sertão, que acabou se
1 VALÉRY, P. (1999) p.195. 2 Idem. 3 ROSA, J.G. (2001). A partir de agora, será citado com as iniciais ou como Grande Sertão, a fim de evitar excesso de notas. 4 Cf. SCRIPTA (1998).
tornando uma viagem em busca de sentidos, senão novos, talvez menos pensados e
comunicados, tal como uma procura pelos restos desta palavra e de todas as outras que a
contornam junto ao tema da memória e do esquecimento, segundo a minha imagem,
para me apropriar de uma expressão usada pelo próprio Rosa em entrevista5.
A travessia, de saída, parece árdua, trazendo a seguinte questão: como trabalhar
com uma linguagem tão plástica, onde as imagens e as palavras se (re)combinam tão
livremente? É como nos versos de Octavio Paz, “Tudo é porta / tudo é ponte”6; seria
preciso “traduzi-la” em matéria acadêmica? O risco de aplicar uma teoria ao texto era
imediato, era colocar-me entre o escritor e sua amante, a língua, de acordo com a
citação já tornada referência, da mesma entrevista de Rosa ao tradutor alemão7. Por isso,
a primeira imagem que me ocorreu, ao pensar a relação entre teoria e texto literário, foi
a da caixa de ferramentas de Michel Foucault. Sim, “é preciso que sirva, é preciso que
funcione”8; mas, servir para quê? Logo percebo que, tratando-se da relação com o texto
literário, não poderia ser uma ferramenta muito rude.
Assim, uma segunda imagem, atribuída por Foucault a Proust, na qual o filósofo
diz ter-se inspirado – ao fazer alusão ao texto como lentes voltadas para fora, – me faz
pensar numa terceira, que consiste na idéia da teoria como chave de leitura; uma
imagem banal, mas que pode produzir um movimento interessante, não de encaixe com
o texto, mas de abrir portas, passagens entre o dentro e o fora, desde o ponto de partida
seja o “teste” das chaves da teoria no texto, e não o oposto, tentando perceber até onde é
possível entrar com cada uma, e de antemão sabendo que nenhuma é capaz de nem de
5 LORENZ. G. (1983). 6 PAZ, O. (1997). 7 Idem. 8 “Uma teoria é como uma caixa de ferramentas. Nada tem a ver com o significante... É preciso que sirva, é preciso que funcione. E não para si mesma. Se não há pessoas para utilizá-la, a começar pelo próprio teórico que deixa então de ser teórico, é que ela não vale nada ou que o momento ainda não chegou. (...) É curioso que seja um autor que é considerado um puro intelectual, Proust, que o tenha dito tão claramente: tratem meus livros como óculos dirigidos para fora e se eles não lhes servem, consigam outros, encontrem vocês mesmos seu instrumento...” Cf. FOUCAULT, M. (1979) p.71.
abrir, decifrar definitivamente, tampouco de fechar, de trancar o texto dentro, ou atrás,
de si.
Metáfora que faz da crítica um trabalho de mediação, de abrir passagens,
articulações não apenas no interior do texto, mas entre os diferentes campos de saber,
com a(s) história(s) de fora. E, por que não afirmar, ao invés de um lugar de puro ciúme
(ou inveja) da relação amorosa entre autor e língua; produzir ou assumir o lugar da
crítica como amante do texto literário (a gente só critica aquilo que ama, diria Freud),
um lugar em que a crítica seja capaz de buscar relações fecundas entre o texto e a teoria:
gerar pensamento, apontar novas e pouco pensadas relações, outras histórias e palavras,
já que a sua leitura nos deixa “fecundados por esta fala e suas sementes”9, como quer
Márcio Seligmann-Silva, num dos estudos mais recentes sobre o Grande Sertão.
Mas, ao percorrer assim estas imagens, já nos inserimos nos temas da memória e
do esquecimento, realizando um movimento de alternância, de ir e vir, entre a teoria e o
texto, que trazem, por sua vez, outras imagens para ilustrar as relações entre texto e
teoria, este trabalho crítico, como a do pêndulo de Valéry e o carretel freudiano...
Deixemos um pouco estas duas últimas metáforas – sem dúvida melhores que a da
chave – em suspenso, para iniciar este percurso apenas com a perspectiva de encontrar
uma paisagem fértil, pois como o próprio autor quis: “A língua e eu somos um casal de
amantes que juntos procriam apaixonadamente”10.
Considerando a idéia das lentes voltadas para fora, o sertão que me interessa
pesquisar não é qualquer um, mas a paisagem feita de memória e esquecimento no
Grande Sertão, através de seu narrador-personagem Riobaldo – testemunha
estrategicamente situada em um momento de choque entre o avanço da cidade sobre o
sertão, entre a lei da bala e a lei do governo. Testemunho que traz, ainda, a melancolia e
9 SELIGMANN - SILVA, M. (2009) p.145. 10 LORENZ, G. (1983) p.83.
o lamento relacionado a outro choque, de um amor perdido no passado, que parece não
passar; e que constitui o texto como trabalho de luto, travessia. Desta forma, o objetivo
mais amplo desta tese consiste em seguir a rememoração, através da fala do narrador
Riobaldo, a fim de pensar como são elaboradas no texto as noções de memória e
esquecimento; buscando através de diferentes concepções da filosofia, da psicanálise e
da teoria da arte, instrumentos de análise desta questão na obra.
Uma primeira abordagem do tema se situa na discussão entre uma concepção
de memória individual, ligada à forma do romance moderno; e a memória coletiva
ligada à narrativa épica. Ou seja: como analisar, no GSV, o duplo aspecto de uma
memória construída a partir da tradição oral, da figura do narrador benjaminiano; e,
simultaneamente, a memória da vida de Riobaldo, sua travessia particular ao lembrar e
esquecer Diadorim? A partir da crítica de Davi Arrigucci, da articulação de Walter
Benjamin entre a memória e as formas narrativas, bem como da noção de memória
coletiva de Maurice Halbwachs; tento pensar, portanto, em que medida suas
contribuições são interessantes, e quais os impasses que se colocam nesta formulação de
uma duplicidade da memória.
A concepção de uma memória constituída também pelo coletivo, pela tradição
transmitida de geração em geração, pelos casos de caipira; traz como desdobramento a
questão dos referentes históricos, da presença de uma memória do sertão e do país, mas,
fundamentalmente, de uma paisagem (noção elaborada por Michel Collot) construída
através da memória do narrador. Paisagem subjetiva, que se abre, por sua vez, ao
horizonte como inconsciente, linha limite do não-saber, do deslembrado; e também à
concepção de Benjamin da história como ruína, expressa no olhar do escritor sobre os
vencidos da história.
No conflito entre o avanço do progresso, o projeto modernizador dos anos 50, e
o universo rural trazido pelos personagens de Rosa, os esquecidos pela história oficial;
cabe pensar o narrador como testemunha desta tensão entre as memórias do sertão e o
esquecimento trazido pela cidade, num processo que avança, impondo-se, não apenas
com violência, mas como violência recalcada, na forma do apagamento dos rastros do
próprio embate. Trata-se, enfim, de procurar respostas para uma afirmação colocada por
Ettore Finazzi-Agrò – a travessia não apaga a melancolia11 – deixada por Riobaldo,
quando afirma e ao mesmo tempo indaga: “cidade acaba com o sertão. Acaba?”12
Mas, a rememoração de Riobaldo é também centrada no trauma da revelação
ligada ao sexo e à morte de Diadorim; acontecimento que, situado no final do texto,
ressignifica o início da história a partir do fim, levando-me a pesquisar as noções de
tempo, de um tempo entrecruzado ou tempo-de-agora em Benjamin, e a noção de a
posteriori (nachträglichkeit) em Freud e Lacan. E, junto ao só-depois da significação,
cabe pesquisar como se articula, no texto de Rosa, a questão do nome e da nomeação,
como algo que faz referência a uma dimensão não-instrumental da linguagem; e como
esta dimensão nomeadora, vista principalmente através da teoria benjaminiana sobre a
linguagem, se articula com o tempo e a memória.
Até que ponto é possível ir com a rememoração? Riobaldo indaga sobre um
limite que pode ser pensado como ponto de origem enigmático, também apontado nos
diversos fundos, ocos e ermos do sertão: “Será que tem um ponto certo, dele a gente
não podendo mais voltar pra trás?”13 Por outro lado, até onde é possível esquecer o
trauma? Dupla questão que se repete, a seu modo, em cada processo de análise, em cada
travessia discursiva. Questão, ainda, política, central nos debates em torno das
memórias históricas, surgidos a partir das catástrofes do século XX, das diferentes
11 FINAZZI-AGRÒ, E., 2001, p.142. 12 Idem, p.183. 13 ROSA, J.G. (2001) p.305.
guerras entre memórias em diferentes partes do mundo; pois a discussão sobre o
esquecimento – seja como reação, recalque contrário ao retirar do esquecimento um
passado vencido; seja como resultado de um processo de elaboração das memórias já
apaziguadas, que colocam em xeque o lema: para que não se esqueça jamais – o tema
do esquecimento ressurge, invariavelmente, quando realmente se insere o debate sobre
as memórias oprimidas.
E, finalmente, questão de arte, formulada na dupla vertente: a partir da
psicanálise, em que medida as teorias escolhidas sobre o tempo e a memória podem
lançar luzes ao texto literário – mas, também, num sentido inverso – seguindo o
pensamento do historiador da arte Didi-Huberman, até onde a obra de arte pode dizer
sobre a memória e o esquecimento, o que tem a nos ensinar ou, em que medida, as
imagens artísticas podem ser comparadas às imagens da memória?
O foco dado à palavra de Riobaldo se justifica na medida em que a rememoração
de Riobaldo, sua descrição da paisagem do sertão, seus questionamentos, seu
testemunho do sertão constituem o texto do princípio ao fim; como afirma Rosenfield:
“Na percepção de Riobaldo (da qual o texto nunca se distancia)...”14.
Em relação à crítica específica de Guimarães Rosa, creio seguir uma trilha de
estudos nos quais as contribuições teóricas não surgem de antemão, como pressupostos
a que o romance viria se aplicar ou sobrepor. Ao contrário, nestes ensaios, a teoria –
incluindo a psicanálise, a filosofia ou a teoria literária – é utilizada a partir de uma
proximidade com o texto. O que os caracterizaria seria precisamente a construção de um
saber articulado à forma do texto, a partir de um aspecto ainda pouco pensado da obra
literária.
14 ROSENFIELD, K. (1993) p.84.
Além da crítica escolhida ser plural, ou seja, proceder de vários campos de
estudos distintos; os principais teóricos escolhidos se situam todos “no cruzamento de
todos os caminhos”15, como apontou Michel Löwy sobre Walter Benjamin, numa
referência justamente à noção de caráter destrutivo no segundo. Tanto Benjamin, como
Freud, Lacan, e Rosa não se recusaram a pensar a memória pela via do esquecimento,
da negatividade. Todos pulam e dançam sobre as pranchas, para evocar novamente a
imagem de Valéry – mergulham nesse abismo, e suas palavras resistem, de algum
modo, ao tempo e aos usos.
Uma última observação, sobre a redação deste trabalho, é que utilizo a primeira
pessoa alternando-a entre o singular e o plural, inspirada na justificativa de Paul
Ricoeur16 em seu livro. Ou seja, quando acredito afirmar algo já desenvolvido por outro
autor, utilizo o plural, e quando suponho formular algo não explicitado em outro autor
ou texto, uso o singular ou a forma impessoal.
15 Cf. LÖWY, M. (1989). Segundo Benjamin: “O caráter destrutivo não vê nada de duradouro. Mas eis precisamente por que vê caminhos por toda a parte. (...) Já que vê caminhos por toda parte, está sempre na encruzilhada.” Cf.BENJAMIN, B. (1989) p.237. 16 RICOEUR, P. (2007).
I. MEMÓRIA E NARRATIVA: PRIMEIRAS, SEGUNDAS MEMÓRIAS...
São tantas horas de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo miúdo recruzado.
JOÃO GUIMARÃES ROSA
Duas formas de memória e um mundo misturado
No denso tecido de memórias do Grande Sertão: veredas17, em meio a
diferentes camadas do tempo, diversas formas da memória e do esquecimento, um
primeiro fio de análise se dá no eixo entre o que, a princípio, se pode situar entre uma
memória individual e uma memória coletiva. A primeira seria formada, sobretudo, pelas
recordações de Riobaldo sobre os tempos de jagunço e seu amor por Diadorim,
contadas enquanto experiência singularizada. Mas, além disso, há um conjunto
composto por uma infinidade de pequenos casos ou estórias sobre a vida no sertão que,
entrelaçados, formariam uma rede ou trama de sabedoria relacionada a um passado
tradicional, e que pode ser considerado como uma memória coletiva. O texto do Grande
Sertão é constituído do início ao fim pelo relato das memórias de Riobaldo – narrador-
personagem, ex-jagunço, e agora fazendeiro, a um visitante de fora – ali têm lugar,
dentre outras, estas duas faces da memória.
Se, por um lado, estas definições se encontram plausíveis no texto; por outro,
não servem para serem lidas como verdades estabelecidas e estáticas, mas oferecem
tentativas de compreensão de como estas noções se movem e percorrem a obra rosiana.
Pois, como se verá mais adiante, na poética de Rosa: “Tudo é e não é”18, fórmula
17 ROSA, J.G. (2001). 18 Idem, ibidem, p.27.
síntese de uma escritura que ao concentrar ao máximo a contradição19, desloca as
imagens paralisadas colocando tudo em movimento constante.
A noção de uma memória individual no romance pode ser entendida como o
relato do percurso da vida de Riobaldo: os acontecimentos de sua jornada particular,
bem como seus questionamentos subjetivos sobre a vida, a morte, a justiça, a verdade, a
existência do Demo ou não; mostrando-se distinta de um saber ligado à coletividade,
nos moldes de uma tradição oral e arcaica, que, por sua vez, surge em diferentes e
pequenas histórias sobre muitos personagens do sertão. Entretanto, como procurei
mostrar em estudo anterior20, a escrita de Rosa possui pouca afinidade com a concepção
de indivíduo, apresentando uma subjetividade freqüentemente fragmentada, descentrada
e atravessada por uma voz coletiva que participa efetivamente em sua configuração. E,
como se verá no GSV, mesmo quando se trata de uma memória de si, Riobaldo não é
único nem idêntico a si próprio, desdobrando-se em diversos outros personagens: o
menino, o professor, o jagunço Tatarana, o chefe Urutú-Branco, o fazendeiro na
velhice...
Da mesma forma, os estudos do sociólogo francês Halbwachs21 – o primeiro a
tratar do termo memória coletiva, nos anos 2022 – poderão adquirir um sentido bem
específico neste estudo, e mesmo no atual debate sobre a memória, que seria o de
possibilitar um contraponto à concepção de uma memória individual fechada, trazendo à
cena o questionamento sempre político sobre o papel das memórias coletivas nas
sociedades de ontem e hoje; em que pesem as ponderações de que a memória coletiva
parte ainda de quadros de pensamento um tanto estáticos, que nos levariam a reproduzir
19 Refiro-me à noção de imagem na acepção dada por Walter Benjamin, de uma imagem como colagem dos restos da história, que contém em si em grau máximo a contradição entre os opostos, capaz de liberar o movimento, e que pode, por sua vez comparar-se com a noção de imagem poética em Octávio Paz. Cf. capítulo 4 desta tese; PAZ, O. (1972). 20 Cf. CARMELLO, P. (2004).
21 HALBWACHS, M. (1990). 22 Cf. WEINRICH, H. (2001), p.168.
antigas oposições entre coletivo e individual, real e ficção, interior e exterior, imagem e
lembrança, etc. Sob este aspecto, o conceito pouco acrescentaria aos estudos literários;
porém, conforme veremos, através de várias formulações que a envolvem, a memória
coletiva pode representar uma contribuição bastante interessante aos estudos sobre
memória e literatura.
A distinção entre as duas formas de memória será pensada, pois, principalmente
a partir da análise do Grande Sertão feita por Arrigucci23, que diz respeito a uma
mescla de formas narrativas associada à existência de um mundo misturado no romance.
O autor não usa o termo memória, mas está abordando o tema quando propõe que uma
mistura entre as formas narrativas épica, ligada à coletividade, e a forma individualizada
do romance, no plano formal, acompanharia a questão do mundo misturado,
considerado pelo crítico como um tema central dentro também da esfera semântica do
texto.
Walter Benjamin é quem estabelece uma correlação mais explícita entre as
formas narrativas e as diferentes “modalidades” da recordação. Segundo ele,
Mnemosyne, a deusa grega da reminiscência, seria a musa da poesia épica. A
reminiscência seria a responsável pela transmissão da tradição de geração para geração,
formando um campo de “indiferenciação criadora”24 entre as várias formas épicas.
Este campo épico indiferenciado, na forma mais antiga da epopéia, consistiria na origem
tanto do romance como da narrativa épica.
De acordo com Benjamin, a partir do surgimento, no cerne da epopéia, de uma
diferenciação entre o romance e a narrativa épica, a reminiscência daria lugar, de um
lado, à rememoração, como musa do romance; e, do outro, à memória enquanto musa
da narrativa épica. Sobre a diferença entre rememoração e memória, ele afirma: “A
23 ARRIGUCCI JR., D. (1994) p.7-29.
24 Idem p.211.
primeira é consagrada a ‘um’ herói, ‘uma’ peregrinação, ‘um’ combate; a segunda, a
‘muitos’ fatos difusos.”25 Portanto, enquanto a rememoração ganha contornos do
individual, a memória adquire o relevo coletivo. Esta contraposição será utilizada,
porém, apenas como um caminho para pensar como esta duplicidade da memória se
apresenta no texto de Rosa; pois, conforme veremos mais adiante, outros autores farão
outras distinções entre os termos memória e rememoração, com diferentes sentidos, que
servirão muito mais para pensar o tema do que estabelecer definições rígidas.
Quanto ao mundo misturado, esta seria uma noção central no GSV, e estaria
relacionada simultaneamente às indagações subjetivas do narrador Riobaldo, e a
questões coletivas a respeito de determinadas contradições e particularidades históricas
presentes na formação da cultura brasileira, às quais o texto faz referência, embora seja
uma construção que não se estabelece de maneira nenhuma sob a forma de registro ou
retrato da realidade:
...Essa mistura do mundo que o livro exemplifica sobejamente, em variadíssimos aspectos e planos, coloca também uma questão decisiva, que é a mistura das formas narrativas utilizada para representar a realidade de que nos fala. (ARRIGUCCI JR., 1994, p.10).
Mas o que seria, antes de tudo, este mundo misturado? E como esta idéia se
articula com a questão da memória no texto? A citação aparece na fala de Riobaldo
como uma constatação e uma queixa. Riobaldo, ex-jagunço, fazendeiro, conta sua(s)
história(s) a um visitante e, num primeiro momento, parece esperar que a narração (ou o
ouvinte) ordene uma complexidade que não compreende, que consiste principalmente
na presença de um Mal que perpassa tudo o que há, e que impede a distinção em relação
a um agir ético:
25 Idem, ibidem.
...Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe: eu careço de que o bom seja bom e o rúim ruím, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero os todos pastos demarcados... Como é que posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtaz a esperança mesmo no meio do fel do desespero. Ao que, este mundo é muito misturado... (ROSA, J.G., 2001, p.237).
O que é importante frisar, aqui, é que tal mistura consiste numa percepção e
numa angústia de um jagunço que é também instruído nas letras – os outros
companheiros do bando, por exemplo, não compartilham dela. Logo, é um sujeito
dividido que percebe a contradição do mundo, numa superposição de contradições que
amplia a complexidade da questão e antecipa as relações com outras contradições
ligadas às raízes da cultura brasileira, apontadas pelo autor no mesmo ensaio.
Pois, se este mundo misturado foi efetivamente dividido, no sentido de uma
interdição que possibilite uma construção ou elaboração simbólica – ou permanece uma
sucessão de contradições repetitivas, uma miscelânea paralisada no tempo, sem aceder a
um registro que permita a comunicação, a troca, o movimento entre os contrários – será
justamente outra indagação a ser considerada. Antes disso, será preciso situar melhor a
noção de mistura no texto, pois dela partem muitas considerações relevantes sobre a
obra rosiana.
Em primeiro lugar, a mistura do mundo dita por Riobaldo se manifesta, no plano
formal, numa linguagem misturada, uma profusão de línguas utilizadas por Guimarães
Rosa, na qual se encontram:
O falar regional do Norte de Minas, certamente muito estilizado, de combinação com latinismos; arcaísmos tomados ao português medieval – esse “magnífico idioma já quase esquecido: o antigo português dos sábios e poetas daquela época dos escolásticos da Idade Média, tal como se falava, por exemplo, em Coimbra”, indianismos; neologismos; termos aproveitados e adaptados de múltiplos idiomas (do inglês, do alemão, do francês, do árabe etc.); vocábulos cultos e raros, bebidos nos clássicos portugueses; elementos da linguagem das ciências, e sabe-se lá de que fontes mais. (ARRIGUCCI JR, D., 1994, p.13).
Desta mescla se constitui a linguagem em Guimarães Rosa, uma mistura de
tempos e nacionalidades, falas populares e cultas, arcaicas e modernas; num incrível
trabalho de reinvenção realizado pelo escritor, que teria entre seus principais efeitos
uma densidade, uma opacidade que se opõe aos significados mais usuais da palavra,
levando o leitor a participar da busca por novos e inusitados sentidos, num processo de
reescrita da língua que integra diferentes formações da cultura brasileira. O inovador na
tese de Arrigucci é que esta linguagem misturada acompanharia, no plano formal,
outras misturas a que se refere o romance, entre as quais uma mescla própria da cultura,
com a qual de algum modo se relaciona o universo de Rosa, um universo rural, arcaico,
que testemunha o choque com o projeto de modernização do país próprio dos anos 50,
contexto vigente no período de elaboração do livro, publicado em 1956.
Em relação às formas narrativas, o crítico afirma que a mistura do mundo se
expressa entre uma narrativa épica e o romance; a primeira sendo ligada ao mundo
mítico e heróico das batalhas e das histórias dos chefes dos bandos de jagunços,
composta por muitas estórias breves, um mar de estórias difusas sobre diversos
personagens, que se juntam num todo relativo ao sertão e ao coletivo:
O fundo arcaico – de cujo oco mais profundo no sertão, reino de uma mitologia ctônica, parece ter saído o Hermógenes, é também o da cercania do mito. Dali brota a aventura dos heróis romanescos, dos grandes chefes jagunços: narrativa propriamente épica, que acaba por se definir como história de uma busca de vingança, incitada pela paixão amorosa: amor e morte em estreita liga numa demanda aventurosa puxada pelo fio (...) de Diadorim. (ARRIGUCCI JR., 1994, p. 17).
A este mundo épico – chamado por Arrigucci de romanesco por referir-se aos
romances medievais de cavalaria – se acrescenta a história mais longa e supostamente
única da vida de Riobaldo, formada pelas recordações de sua trajetória particular, de
professor a chefe do bando de jagunços, seu amor por Diadorim, suas reflexões e
indagações sobre a vida e a morte; e que consistiria na forma do romance moderno
propriamente dito:
...Mas sobre essa estória romanesca, em que age o jagunço Riobaldo – o cerzidor, o Tatarana, o Urutú-Branco – Riobaldo-Narrador constrói a tentativa de esclarecimento do sentido de sua vida, o relato de sua experiência individual, singularizada a partir de um encontro único e enigmático com o Menino, que será Diadorim – marco de sua travessia pessoal e ponto de interrogação que lhe coloca questões que não pode responder. (ARRIGUCCI JR., D., 1994, p. 17).
O que importa ser pensado a respeito desta dialética entre a forma épica e o
romance seria: “Como o romance – forma da épica moderna – se desenrola da mistura
das formas épicas tradicionais, com as quais aparentemente nada tem a ver”26, pois a
noção central do artigo é justamente a de que o romance ou a história individual se
constitui ou se desenreda, diria Rosa, a partir da vertente épica, ou das estórias menores
e coletivas, bem como as conseqüências desta constatação27.
Willi Bolle segue por conceituação semelhante quando situa os “casos de
caipira”28, ou seja, as diferentes histórias menores do cotidiano do sertão, do lado da
micro-história e das pequenas veredas; em contraste com os grandes feitos da história
oficial, o Grande Sertão: “As ‘veredas’ ou ‘passagens’ do Grande Sertão configuram
uma história do cotidiano, uma micro-história do dia-a-dia, em contraposição aos
feitos da historiografia monumental...”29 Embasada em abordagem mais histórica, o
que interessa nesta proposição, por ora, é a constatação de uma duplicidade narrativa
26 ARRIGUCCI JR., D. (1994) p.20.
27 Sem dúvida, esta discussão relaciona-se com a noção de épica negativa conceituada por Adorno, segundo a qual haveria um retorno nos romances modernos, da subjetividade, em direção às formas pré-individuais que refletiriam, entre outros aspectos, um contexto de tensão entre a impossibilidade e a exigência de narrar, em meio à barbárie: “De fato, os romances que hoje contam, aqueles em que a subjetividade liberada é levada por sua própria força de gravidade a converter-se em seu contrário, assemelham-se a epopéias negativas. São testemunhas de uma condição na qual o indivíduo liquida a si mesmo, convergindo com a situação pré-individual no modo como esta um dia pareceu endossar o mundo pleno de sentido.” Cf. ADORNO, T. (2003) p.62. 28 Cf. ROSA, J.G.(1985) p.93.
29 BOLLE, W. (1994-1995) p.84.
entre uma história maior, atravessada por outras menores, exatamente como na imagem
proposta pelo crítico, a de um sertão entrecortado ou interceptado por pequenos “cursos
d’água” 30 que participam na sua formação.
Visto assim, como imagem dialética, o Grande Sertão: veredas31 faz pensar se,
no que concerne ao tema da memória, o mesmo estaria em jogo, quer dizer: de que
forma se conjugam a dimensão de memória mais ampla, ligada a uma vida coletiva do
sertão, e a rememoração individualizada de Riobaldo? Em que medida as lembranças
coletivas podem ser pensadas como contrapontos críticos da recordação individual? Até
que ponto elas seriam responsáveis por rupturas no contar seguido do narrador? Estas
seriam algumas indagações sobre esta encruzilhada de tempos e memórias que é o texto
rosiano, sem perder de vista o contexto histórico desta escrita.
Apenas uma observação se faz necessária, a fim de não estabelecer um desvio
em relação ao norte apontado pela ficção, pois se trata de algo incontornável que se
evidencia em comum nos comentários de Arrigucci mencionados nas páginas
anteriores. O que aparece nos dois trechos como motivação – tanto para a recordação ou
narração individual como para a coletiva – é a presença enigmática de Diadorim. Figura
igualmente misturada, desde sua aparência em relação ao sexo, ambíguo entre homem e
mulher; até seu desejo, dividido entre o amor por Riobaldo ou a vingança da guerra, o
personagem de Diadorim surge como enigma da busca ao passado realizada por
Riobaldo ou como marco inicial de sua trajetória. Por ora, é o que precisa ser
remarcado, pois será retomado com maior cuidado no decorrer desta análise.
Ainda sobre a duplicidade de memórias em jogo, é preciso considerar
atentamente esta mistura em relação à figura do narrador, igualmente desdobrada entre
o narrador do romance e o contador de estórias, num texto composto integralmente pela
30 Idem, p.85.
31 ROSA, J.G. (2001). Afim de evitar excesso de citações da mesma obra, utilizarei as siglas GSV, ou simplesmente Grande Sertão para me referir ao
romance de Rosa.
narrativa de memórias deste narrador, “um texto escrito que encena uma situação de
fala”32, constituindo-se numa “fala escrita”33, como bem apontou Susana Lages, no
qual a questão do esquecimento também deve ser levada em consideração.
Tempos modernos, recordação e romance
La nature n’est q’un dictionaire (...) Tout l’univers visible n’est qu’un magasin d’images et signes.
CHARLES BAUDELAIRE
Sem dúvida, Riobaldo representa bem o herói problemático definido por
Lukács34 como o elemento divisor de águas entre o romance moderno europeu e as
formas narrativas épicas que o antecederam. Esta noção só pode ser compreendida,
contudo, se situada em relação em relação à importância adquirida pela memória para o
sujeito na Modernidade, e às diferentes maneiras de conceber o tempo nas sociedades
modernas e nas sociedades consideradas tradicionais. E, embora não se possa
estabelecer uma correlação cronológica exata entre uma Modernidade científica ou
histórica e a Modernidade literária, o advento de uma literatura ou de um romance
moderno europeu é associado por diversos autores35 ao contexto – mais ou menos –
concomitante de transformações sociais e históricas trazidas com os tempos modernos.
Um primeiro aspecto que a passagem de um narrador tradicional ao sujeito
problemático do romance evidencia é o de que a imagem ou maneira de perceber o
tempo não é universal e a-histórica, mas relaciona-se, embora de maneira não linear ou
causal, ao contexto histórico que envolve as diferentes sociedades, assim como as
diversas subjetividades nelas constituídas. De acordo com o poeta e ensaísta Octávio
Paz36, enquanto para os povos antigos a marca do tempo é a regularidade da repetição,
32 LAGES, S. (2002) p.74. 33 Idem, ibidem. 34 LUKÁCS, G. (n/c) p.87-93. 35 Conferir, por exemplo, FOUCAULT, M. (1975), BENJAMIN, W. (1986), e PAZ, O. (1984). 36 PAZ, O. (1984) p.27.
perpetuada através do ritual e repassada de geração a geração; para a Modernidade, o
traço que se impõe é a busca pela ruptura e pela novidade de um futuro distinto do que
passou.
De acordo com Paz, para os antigos, o modelo tanto do presente como do futuro
seria um passado referido ao mito, e a própria vida se constituiria no encontro com este
passado arquetípico, através de rituais que presentificam o passado através da tradição.
A temporalidade anterior à Modernidade encerraria um curioso paradoxo, já que:
“embora seja tempo, é também a negação do tempo”37, pois permanece como princípio
imemorial, original, de um tempo reconciliado consigo mesmo, reatualizado sempre
através dos ritos coletivos. Trata-se de uma visão do tempo imóvel ou cíclica, análoga
ao curso das estações da natureza e ao modo de produção rural e artesanal, pois tanto o
passado deve retornar, como o futuro pode ser entrevisto no presente por meio de
profecias ou da própria noção de ritual, que reapresenta o futuro. O que importa é que o
futuro não é facilmente alterado pelo homem; e ele se relaciona com este porvir como
algo pré-estabelecido a ser presentificado; porém, um futuro extremamente interligado
ao passado e ao presente.
Se a Modernidade é relacionada historicamente por Paz a uma série de
transformações ocorridas em sua maioria por volta do século XVIII, como o surgimento
do Renascimento, a Reforma, a colonização das Américas, a emergência do capitalismo
e da burguesia; enquanto conceito, destaca-se os ideais do progresso, ciência, liberdade,
democracia etc.38 Mas, sobretudo, a idéia de crítica ou de ruptura: “o tempo moderno é
o tempo da cisão e da negação de si mesmo, o tempo da crítica.”39 Ruptura do elo
circular que permitia a perpetuação do tempo, estabelecendo-se em seu lugar, duas
37 PAZ, O. (1984) p.26. 38 Idem, (1993) p.34-35. 39 Idem, (1974) p.189.
imagens complementares do tempo, uma concepção linear e uma idéia de
transformação.
Para os modernos, o tempo será o portador da mudança, e o futuro, o tempo que
trará a novidade, estabelecendo-se numa seqüência cronológica na qual se distinguem
presente, passado e futuro. Tal imagem do tempo está intimamente relacionada ao
contexto europeu do ritmo acelerado das cidades, da vida burguesa e do modo de
produção industrial do capitalismo emergente, traços característicos da era moderna,
onde têm lugar as idéias de progresso, evolução e prosperidade.
Entretanto, as mesmas transformações, sustentadas por um pensamento lógico e
pela razão ocidental, que parecem fornecer esta coesão linear ao tempo, a partir da
Modernidade serão responsáveis pela falta de uma unidade de sentido do tempo,
unidade anteriormente assegurada, como aponta Foucault, por um outro sistema de
pensamento, chamado analógico ou uma ordem da mímesis, que fazia coincidir as
palavras e as coisas:
... Mas, assim como os sinais naturais estão ligados ao que indicam pela profunda relação de semelhança, assim também o discurso dos antigos é feito à imagem do que ele enuncia; se tem para nós o valor de um signo precioso, é porque, do fundo de seu ser, e pela luz que não cessou de atravessá-lo desde seu nascimento, está ajustado às próprias coisas, forma seu espelho e sua emulação; ele é, para a verdade eterna, o que os sinais são para os segredos da natureza (desta palavra, ele é o sinal a decifrar); tem, com as coisas que desvela, uma afinidade sem idade. (FOUCAULT, M., 1999, p.50).
Separado desta antiga rede, o sujeito moderno recorrerá à memória, como
outrora a um oráculo, capaz de lhe dizer quem ele foi, quem ele é e como deve proceder.
Com a Modernidade, o sujeito passa a tentar apropriar-se de seu passado, visando
construir a partir dele a sua história individual e seus projetos de vida particulares.
Levado a crer na importância da vida individual e, sobretudo, na capacidade individual
de construir projetos futuros, o sujeito moderno é mesmo um sujeito em busca do tempo
perdido40, como no título da série de Proust, neste sentido, bastante representativa de
seu tempo.
É somente com a era moderna que se introduz de maneira efetiva a idéia –
embora sempre malograda – de liberdade de escolha do sujeito diante de seu futuro,
quando tanto o futuro quanto o passado adquirem estatuto de conquistas individuais.
Somente para o sujeito moderno o tempo faz diferença, pois está relacionado à noção de
um sujeito capaz de construir projetos futuros, à idéia de que o futuro não é mais uma
reprodução do passado ou das gerações passadas. Em suma, a noção de um sujeito
desgarrado da antiga trama de semelhanças e da tradição, capaz de inventar a si mesmo,
é uma novidade trazida pelos tempos modernos:
As noções de liberdade, autonomia, interioridade, etc., que compõem o perfil deste personagem moderno, são moldadas no contexto de uma determinada forma de vivenciar o tempo e de um modo muito peculiar de rememorar e valorizar as lembranças e reminiscências. (BEZERRA JÚNIOR, B., 1982, p.115).
Assim, a memória individual adquire importância em detrimento da memória
coletiva, outrora constituída pelo conjunto de crenças e tradições sociais das sociedades
tradicionais, e passa a consistir num “arquivo da individualidade”41, no sentido de uma
reserva de verdade que encerra a promessa de unidade e sentido à experiência do
sujeito. A noção de arquivo não será entendida aqui, portanto, como registro objetivo de
lembranças, correlato de uma realidade objetiva; mas, sim, na vertente em que a
rememoração é um lugar de construção de uma verdade subjetiva.
Como veremos, a teoria freudiana da memória desenvolve-se bem mais na
direção de um afastamento da idéia clássica de arquivo do que a sua ratificação,
propondo algo radicalmente distinto em seu lugar. E, se em Benjamin e, finalmente, em
Rosa, pode-se pensar num trabalho de recordação subjetivo ou de recriação através da
40 PROUST, M. (2002). 41 BEZERRA JÚNIOR, B. (1982) p.115.
arte, este trabalho seria a antítese da noção de arquivo, pois difere da noção tradicional
de documento (a não ser que se pense o documento como rascunho, esboço, ensaio que
encerra a idéia de criação), construindo-se a partir dos restos da experiência que é
transmitida de uma geração a outra, através de uma subjetivação desta experiência, dos
erros, falhas, lacunas e lapsos, enfim do esquecimento. A memória possui entre as
características comuns, na obra destes autores, a falta de um elo entre uma recordação e
outra, a insuficiência ou excesso inerente a toda rememoração e associação, o que faz
com que o sentido da recordação se pulverize e escape sempre, bem como a concepção
de que o próprio registro se desloca no tempo, sendo desde o princípio formado a partir
de resíduos, ruínas, restos do real, o que aproxima também a memória da ficção, da
narrativa, ou ainda do sonho.
Desde o advento da Modernidade, portanto, o sujeito será marcado pela angústia
permanente em relação ao tempo que passa e o coloca diante do sem-sentido da
existência. A partir desta promessa de construção de sua história particular, o sujeito se
identifica(ria) como portador de uma história singular e pode(ria) traçar planos futuros:
na Modernidade, em certo sentido, a memória passa a ser a grande responsável pela
forma como o sujeito concebe o seu estar no mundo. Neste contexto, é que Lukács
define como traço característico do romance moderno o sujeito desadaptado a seu
tempo, num mundo contingente:
O processo assim explicitado como forma interior do romance é a marcha para si do indivíduo problemático, o movimento progressivo que – a partir de uma obscura sujeição à realidade heterogênea puramente existente e privada de significação para o indivíduo – o leva a um claro conhecimento de si. Uma vez conquistado este conhecimento de si, parece-lhe que o ideal assim descoberto se insere como sentido da vida na imanência desta... (LUKÁCS, G., n/c, p.90).
Cisão do sentido que provoca uma luta contra o tempo, outrora reconciliado
consigo mesmo, na narrativa épica: “a totalidade da acção do romance não passa de
um combate contra as forças do tempo”42 E faz com que o sentido da vida seja inserido
no tempo de uma vida individual, o tempo do romance, e buscado na recordação, por
isso a memória adquire este valor, ao mesmo tempo ampliado ao infinito, e desde
sempre fracassado, pois o esquecimento também se dará a perceber, seja através do
caráter inapreensível do tempo que passa, seja através da precariedade de tradução da
recordação num valor de verdade que explique ou apreenda a vida como um todo.
A inclusão do sentido da vida na memória particular do sujeito estaria no cerne
da idéia de uma reminiscência criadora, exposta na Teoria do Romance43 de Lukács, e
associada justamente à densidade adquirida pela memória no romance, em contraste
com o drama e a epopéia:
...Que o drama ignora a noção do tempo, que qualquer drama está submetido à regra bem entendida das três unidades, significando a unidade do tempo uma libertação do fluxo temporal (...) Sem dúvida, a epopeia parece conhecer a duração; pensemos nos dez anos da “Ilíada” e nos dez anos da “Odisséia”, mas não mais do que no drama, esse tempo não tem verdadeira realidade, efectiva duração; não toca nem os homens nem os destinos; não possui nenhuma mobilidade própria e a sua única função é exprimir de maneira chocante a grandeza de uma empresa ou de uma tensão... (LUKÁCS, G., s/d, p.141).
Pois o romance expressaria esta ruptura com o tempo imóvel do drama e da
epopéia, e inauguraria uma nova relação com o tempo vinculada à concepção de
transformação, mudança, novidade:
...No romance, sentido e vida separam-se e, com eles, essência e temporalidade; poder-se-ia quase dizer que no que ela tem de mais íntimo, a totalidade da acção não passa de um combate contra as forças do tempo... (LUKÁCS, G., s/d, p.143).
42 LUKÁCS, G. (n/c) p.143. 43 Idem, p.149.
É no romance, ainda, segundo Lukács44, que o sujeito ganha estatuto de
intérprete do mundo, pois, com a separação entre o sujeito e o mundo, característica do
sujeito problemático, é o mundo que passa a existir somente na medida em que
configura um mundo subjetivo para alguém. É então que o passado toma vulto de algo a
ser buscado e interpretado, e que a reminiscência adquire seu valor de criação:
Eis o que confere à memória o seu caráter essencialmente épico. No drama – e na epopeia – o passado não existe ou é inteiramente actual. Visto que esses dois gêneros ignoram o escoamento do tempo, não existe para eles nenhuma diferença qualitativa entre a experiência vivida do passado e a do presente; o tempo não possui nenhum poder de metamorfose; não há nada com que ele possa reforçar ou enfraquecer a significação. (LUKÁCS, G., n/c, p.148).
Walter Benjamin refere-se a este texto de Lukács, dando-lhe nova luz quando
estabelece correlações mais explícitas entre a narrativa épica, o romance, a memória e a
subjetividade moderna. Para Benjamin, a reminiscência criadora surge justamente
como sinal de uma articulação entre os tempos, pois diz respeito a um espaço de criação
possível ao sujeito na Modernidade a partir da memória, ou ao valor atribuído então à
memória. Primeiramente, a reminiscência é definida como o fundo comum do qual se
separaram a memória, ligada à narrativa épica, e a rememoração advinda com o
romance:
...Em outras palavras, a rememoração, musa do romance, surge ao lado da memória, musa da narrativa, depois que a desagregação da poesia épica apagou a unidade de sua origem comum na reminiscência. (BENJAMIN, W., 1986d, p. 211).
No entanto, a noção de uma reminiscência criadora é apresentada também como
advinda a partir do romance, fornecendo à rememoração individual um potencial criador
que interliga passado, presente, e futuro – pois se articula com a apreensão do sentido da
vida, embora inalcançável – que é então recolocado na história privada do sujeito do
44 Idem, p.77-93.
romance. No que diz respeito à subjetividade, a reminiscência se estabelece como um
terceiro termo entre a exterioridade e o interior do sujeito, numa perspectiva que busca
preservar um caráter místico e enigmático da memória, ao designar uma dimensão
transcendente e inexprimível, se instaurando a partir da luta contra o tempo:
... Desse combate,... emergem as experiências temporais autenticamente épicas: a esperança e a reminiscência... Somente no romance... ocorre uma reminiscência criadora, que atinge seu objeto e o transforma... O sujeito só pode ultrapassar o dualismo da interioridade e da exterioridade quando percebe a unidade de toda a sua vida... na corrente vital do seu passado, resumida na reminiscência... A visão capaz de perceber essa unidade é a apreensão divinatória e intuitiva do sentido da vida, inatingido e, portanto, inexprimível. (LUKÁCS, G. apud BENJAMIN, W., 1986d, p.212).
Tanto o original de Lukács quanto o texto de Benjamin parecem ressaltar o
potencial criativo da rememoração a partir do romance, seja a partir de uma luta
decorrente da inadaptação do indivíduo ao mundo moderno como um todo, ou em seu
caráter mais místico, da constatação da inapreensibilidade do sentido da vida. O que
importaria na reminiscência criadora seria o valor de verdade para o sujeito que é
depositado na rememoração; que substitui a moral da história, própria da narrativa
épica, pela questão do sentido da vida45, e faz com que cada narrador de romance, desde
o seu surgimento, empreenda, à sua maneira, uma viagem em busca do tempo perdido.
Um sujeito com pouco caroço
A partir do exposto, pode-se dizer que o narrador do GSV representa, sem
dúvida também o indivíduo problemático lukacsiano, este ser deslocado em seu meio,
professor que se torna jagunço, inadaptado à realidade que o cerca: “O senhor saiba: eu
toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo.
45 Cf. BENJAMIN, W. 1986 p. 212.
Divêrjo de todo o mundo... Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita
coisa.”46 Diferente dos demais, liberto para filosofar sobre uma vida sem sentido
aparente, ou desgarrado da tradição expressa na crença dos outros jagunços das quais
desconfia, desprovido de quase todo recurso, Riobaldo é este sujeito com pouco caroço,
que procura na recordação um sentido que justifique ao mesmo tempo o passado e o
presente:
... O senhor sabe?: não acerto no contar porque estou remexendo o vivido longe alto, com pouco caroço, querendo esquentar, demear, de feito, meu coração, naquelas lembranças. Ou quero enfiar a idéia, achar o rumozinho forte das coisas, caminho do que houve e do que não houve. Às vezes não é fácil... (ROSA, J.G., 2001, p. 192).
Através da busca ao passado, Riobaldo espera encontrar um sentido oculto, o
rumozinho forte das coisas, ou a “lei, escondida vivível, mas não achável”47 que ordene
o mundo misturado e demarque os pastos, isto é, separe o bem e o mal; pois, como ele
mesmo afirma, precisa que “o bom seja bom e o rúim ruim”48: “Mas esse norteado,
tem. Tem que ter. Se não, a vida de todos ficava sendo sempre o confuso dessa doidera
que é.”49 Encontrar uma norma transcendente que explique o sentido da vida e aponte
“o caminho certo da gente”50, seria, assim, um primeiro sentido para a rememoração do
personagem. Para a psicanálise, coincide com o seu sentido manifesto, aquele que o
sujeito pode enunciar desde o início, e é anterior a outros sentidos revelados por um
trabalho de interpretação ou análise51; e que, aqui, podem ser pensados através da
46 ROSA, J.G. (2001) p. 31. 47 ROSA, J.G. (2001) p.500.
48 Idem, p.237. 49 Idem, p.500. 50 Idem, p. 110. 51 O par conteúdo manifesto - conteúdo latente não será tomado aqui no sentido de um desvelamento de conteúdo Inconsciente que estaria por trás do discurso aparente, mas antes na acepção de algo que não foi ainda objeto de análise, quer pelo próprio narrador, quer por uma leitura mais atenta, e é comunicado num primeiro momento, ao qual se sucedem outros significados, ditos somente a partir do trabalho de rememoração ou de interpretação. Cf. Freud, S. (1987a), p. 170 e 336-337.
narrativa de Riobaldo, a partir de seu próprio trabalho de rememoração, de elaboração
junto a este senhor que o escuta.
A recordação de sua vida Riobaldo conta para o único personagem que não
possui um nome, um desconhecido que se hospeda de passagem em sua fazenda, a
quem o ex-jagunço se dirige como o senhor, e com quem insiste durante toda a
narrativa para que, além de escutá-lo, ora concorde com ele, ora lhe explique a “norma
do caminho certo”52, lhe forneça as respostas às suas inúmeras interrogações: “E,
mesmo, quem de si de ser jagunço se entrete, já é por alguma competência entrante do
demônio. Será não? Será?”53 Ou então: “Somenos, não ache que religião afraca.
Senhor ache o contrário.”54
A escrita da história transforma, assim, a recordação em narração, ou a imagem
em palavra, pois o texto de suas memórias contadas é o texto do romance. Aqui, é
importante destacar que esta rememoração da vida do personagem, que surge desde o
início misturada e atravessada por memórias coletivas, ao se constituir como trajetória
subjetiva, assume a forma de um questionamento que se desloca, no qual a
rememoração deságua - para retomar uma metáfora presente no texto rosiano em
inúmeras expressões relacionadas ao rio, referentes a uma travessia, – numa indagação
maior, sobre a “a matéria vertente”:
... Eu sei que isso que estou dizendo é dificultoso, muito entrançado. Mas o senhor vai adiante. Invejo é a instrução que o senhor tem. Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente. (ROSA, J.G. 2001 p. 116).
A rememoração de Riobaldo adquire, desta forma, uma dimensão transcendente,
o que talvez leve a crítica de Rosa, Kathrin Rosenfield, numa definição muito próxima à
52 ROSA, J.G. (2001) p. 500. 53 ROSA, J.G. (2001) p. 26. 54 Idem, p. 39.
já exposta distinção entre memória e rememoração de Benjamin55, possivelmente
inspirada na fala de Riobaldo acima, afirmar que a fala do narrador rosiano trataria de
memória, e não de uma rememoração individual:
... ele não visa rememorar sua vida como sendo delimitada pelas determinações geográficas (do sertanejo) e sociais (do jagunço). O que está em jogo é a memória – busca de uma verdade universalmente válida que transcenda os fatos particulares da vivência singular. (ROSENFIELD, K., 1993, p.12).
Porém, se retornamos às formulações lukácsianas e benjaminianas sobre a
reminiscência criadora e o romance, veremos que a própria noção de reminiscência
criadora contempla este alcance universal e transcendente ao indivíduo; daí a opção por,
ao invés de uma fixar os termos em questão, dar preferência à idéia que eles produzem
no e sobre o texto. Em outras palavras, mesmo na Modernidade, seria ilusório imaginar
que a criação de sentido para a existência possa ocorrer apenas no plano individual, ou
de um indivíduo autônomo, pois dela participa, de algum modo, a cultura e a
coletividade. Segundo Kehl: “É uma tarefa simbólica, que se dá por meio da produção
de discursos sobre ‘o que a vida é’ ou ‘o que a vida deve ser’.”56 Independente do
termo utilizado, portanto, o que importa demonstrar é que o narrador rosiano recusa-se a
permanecer no terreno da vivência puramente individual, e tampouco no das
determinações coletivas, pois aspira efetivamente encontrar na recordação, e na
narração, algo de outra ordem, além do visível, do objetivo ou do factual.
A aspiração por uma verdade do passado – tal como manifesta o personagem –
entretanto, mostra-se mal-sucedida: esta relação será marcada por diversos impasses e
fracassos, se comparada à relação com tempo mítico para as sociedades arcaicas. Seja
55 Cf. p.22 deste trabalho. 56 KEHL, M.R. (2002) p.10.
porque o passado lhe escapa: “Tempos foram!”57, exclama Riobaldo, numa idéia
bastante afim à concepção das teses benjaminianas sobre a história: “a verdadeira
imagem do passado nos escapa veloz”58. Seja porque esta busca se sujeita a falhas,
erros, ao desejo do que lembrar e como lembrar, bem como à impossibilidade, ou limite
da rememoração, o esquecimento, evocando as idéias de ruína, de Inconsciente, de
pulsão de morte e de real presentes em Freud e Lacan. Em todas elas, está presente a
marca Modernidade através da ruptura, separação entre sujeito e tempo, palavra e coisa,
memória e história, que também se impõem ao narrador-personagem Riobaldo.
É preciso destacar ainda outro traço do romance moderno de Lukács presente no
texto rosiano: a recordação do narrador, que coincide com o texto, “apóia-se numa
única corrente de vida”59, o que se aqui se traduz por tomar o tempo de uma vida.
Desde a origem – “órfão de conhecença”60 de pai, às boas lembranças de sua mãe, na
Vila Alegres, entre a Serra das Maravilhas e a Serra dos Alegres – até a juventude,
quando dois acontecimentos se mostram bem marcados na memória: o primeiro
encontro com Diadorim, na travessia do São Francisco; e a morte de sua mãe, a Bigrí,
que ele diz ter mudado a sua vida “para uma segunda parte”61.
Da fazenda de Selorico Mendes, seu padrinho, ao Curralinho, onde aprende a ler
e tem suas primeiras namoradas “por nomes de flores”62, Rosa’uarda, e Miosótis, à
fuga, ao ouvir dizer ser o padrinho, seu pai, quando se torna professor e conhece Zé
Bebelo, que o leva para os “tempos loucos”63 de jagunço. Do abandono dos planos de
Zé Bebelo à outra fuga para o grupo de Joca Ramiro, onde se dá o reencontro com
Diadorim. E, de jagunço, chefe do bando, até a velhice como fazendeiro, herdeiro das
57 ROSA, J.G. Op. Cit., p.41. 58 BENJAMIN, W. (1986e) p. 224. 59 LUKÁCS, Op. Cit., p.146. 60 ROSA, J.G. Op. Cit. p.57. 61 Idem, p.127. 62 Idem, p.130. 63 ROSA, J.G. (2001) p.36.
terras de Selorico Mendes e marido de Otalícia: em poucas palavras, o tempo da
narração é o intervalo que compreende a vida de Riobaldo, ele narra o que viu ou viveu,
embora, como veremos adiante, tampouco a vida não encerra completamente a narrativa
numa identidade única ou numa seqüência linear.
O fim da vida coincide com o início do romance, é na velhice que o narrador
recebe a visita de um forasteiro para quem conta suas histórias. Mais uma vez, há aqui a
concepção de que o sentido da vida – e do romance – estaria encerrado nesta trajetória,
que mesmo atravessada por muitas outras histórias, consiste num espaço bem
delimitado, o que o diferencia de uma “A Odisséia”, de Homero, mencionada também
por Lukács como exemplo mais conhecido de narrativa épica64, onde, como se disse,
trata-se prioritariamente de muitos fatos e personagens difusos...
Constatação da irreversibilidade do tempo, angústia diante da ausência de
sentido da vida para um sujeito diante da morte, sujeito inadaptado a um mundo
contingente, e ainda a reflexividade, isto é, a capacidade de se colocar questões a partir
do que vê e vivencia, e filosofar sobre tais questões; recriação do mundo através da
rememoração: as marcas da conceituação lukacsiana para o romance moderno estão
todas presentes nas páginas do GSV. Entretanto, como já foi dito, a figura do narrador
enreda, além desta, outras estórias, que fazem com que o livro não se encaixe
completamente nesta definição. Pois, trata-se de uma rememoração atravessada,
constituída, do início ao fim, por uma narrativa de estórias do sertão e fragmentos de
saberes que, juntos, podem, neste contexto, ser considerados como memória coletiva, e
cuja função merece ser melhor apreciada.
A ênfase em apontar no texto cada aspecto do romance lukácsiano se fez
necessária, no entanto, para nos situarmos em relação a uma certa divisão da crítica
64 Cf. LUKÁCS, G. Op. cit., p.141.
atual de Rosa, entre, de um lado, os adeptos de uma leitura mítica, arcaica; e, do outro,
os que vêem no texto de Rosa apenas uma evocação do mito, do oral, do arcaico, da
memória coletiva, no qual a oralidade compareceria apenas como efeito do trabalho
com a escrita, no qual a recordação individual sobrepujaria todos os aspectos
coletivos65. Se concordamos, por um lado, com Susana Lages, quando afirma que o
autor está efetivamente inserido na Modernidade, pois não se trata de uma fala pura,
mas de um texto escrito que “mimetiza um discurso oral”66, uma situação de fala, e que
o regresso a um tempo mítico ou “a oralidade é uma marca do texto, não sua causa,
nele se inscreve, não o prescreve nem o determina”67.
Concordamos ainda mais, quando, ao invés de destacar somente uma primazia
do moderno sobre o passado, afirma o caráter de “tensão fundamental”68 entre estes
elementos nos textos de Rosa, cujo interesse maior, neste momento, seria o eixo entre a
memória coletiva e arcaica dos múltiplos casos sertanejos e a memória da vida de
Riobaldo.
O crítico Finazzi-Agrò parece redimensionar a mesma temática, fornecendo-lhe
outro alcance, quando propõe para o GSV o termo Obra-Mundo, uma definição de
Franco Moretti para certos textos que não se enquadram muito bem em qualquer
categorização literária – ou ainda, o termo épica-moderna, cujo paradoxo dos próprios
termos faz com que o conceito contenha uma “definição que não define”69, mas indica,
expõe, deixa em aberto, e mais do que isto, ressalta o conflito inerente à própria obra.
De qualquer modo, não se pode negar que os traços de uma memória coletiva e um
passado arcaico estão lá, no texto, fulgurando, como diria Foucault70, e que a narração
65 LAGES, S. (2002) p.73-79. 66 Idem, p.73. 67 Idem, ibidem. 68 Idem, ibidem, p.74. 69 FINAZZI-AGRÒ, E. (2001) p.32. 70 FOUCAULT, M. (1999).
ou recordação que o texto encerra envolve os dois aspectos misturados, que de alguma
forma se vincularão ao mundo misturado, como propõe Arrigucci:
...Riobaldo formula questões que vão muito além do saber que caracteriza o homem de bom conselho que é o narrador tradicional, cuja sabedoria prática se funda em larga medida na experiência comunitária. Na verdade, as interrogações que formula sobre o sentido de sua experiência configuram pelo sentido da vida típica do romance burguês, voltado para os significados da experiência individual no espaço moderno e do trabalho e da cidade. (ARRIGUCCI JR., 1994, p.19).
Cabe a ressalva de que os termos coletivo e individual revelam-se pouco
apropriados, se retirados do contexto em que foram utilizados, no ensaio de Arrigucci,
para descreverem a memória no GSV, porque, justamente, só produzem esta reflexão
quando articulados, enquanto categorias indissociáveis. É também provável que as
teorias da memória benjaminianas e psicanalíticas ofereçam outras alternativas para esta
oposição ou, ao menos, recoloquem o problema em outros termos. Antes, porém, é
preciso tentar pensar, nisso que vai se desenhando como um “giro da memória”71,
como é que a história do sujeito problemático, urbano e moderno, se desenreda, então,
do contador de causos, caipira; e que outros narradores podem ser considerados ali, o
que teriam a lembrar, ou a esquecer?
O contador de estórias
O sertão me produz, depois me engoliu, depois me cuspiu do quente da boca... JOÃO GUIMARÃES ROSA
Voltemos ao início. Na primeira página do romance, quando Riobaldo começa a
falar ao visitante, nesta fala que toma o livro todo; o que primeiro ele conta é a estória
do bezerro com feições humanas e demoníacas ao mesmo tempo, cuja forma híbrida já
antecipa a dúvida subseqüente:
71 ROSA, J.G. (2001), p. 138.
˗ Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvore, no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser – se viu –; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram – era o demo. Povo prascóvio. Mataram. Dono dele não sei quem for. Vieram emprestar minhas armas, cedi... (ROSA, J.G., 2001, p.23).
Nas páginas seguintes, o que se lê é uma série de causos, pequenas estórias
sobre o sertão, que evocam uma sabedoria e uma memória coletiva e fazem alusão às
narrativas de tradição oral; mas, sobretudo, cujo conteúdo diz respeito à presença de um
Mal aparentemente sem limites, gratuito, que escapa à lógica da razão72. Iniciam-se com
dois casos bem menores, do Aristides, que escutava a voz do “capiroto”73, e do Jisé
Simpilício, “que tem um capeta em casa”74, aos quais se seguem as estórias de
“endemoninhamento”75 contadas por um seminarista, e uma sucessão de nomes do
diabo, que Riobaldo lamenta não poder esquecer76; enumeração que termina com a
primeira menção a si mesmo no texto, quando o ex-jagunço associa o seu próprio
“gosto de especular idéia”77 com a rememoração, a velhice e o ócio para, logo em
seguida, colocar a pergunta que é sustentada até o final: “o Diabo existe e não
existe?”78
Inúmeros outros exemplos, como o da mandioca mansa, que “pode de repente
virar azangada”79, e esta por sua vez, pode-se reverter na boa, ou a definição da
natureza do ser jagunço, “entrante do demônio”80, ou ainda a presença do demo na
natureza, em animais como a cobra, o porco, o gavião e o corvo, e até na forma de
72 Cf. ROSENFIELD, K. (1993) e (2006). Ver também cap. 4 deste trabalho. 73 ROSA, J.G. (2001), p.24. 74 Idem, ibidem. 75 ROSA, J.G. (2001) p.25. 76 Idem, p.26. 77 Idem, ibidem. 78 Idem, ibidem. 79 Idem, p.27. 80 Idem, p.26.
determinadas pedras81, apontam a existência do demo “misturado em tudo”82, numa
onipresença da qual nem Deus escapa, já que, “por mais auxiliar, Deus espalha, no
meio, um pingado de pimenta...”83 O Mal é associado, portanto, a uma ambigüidade na
origem dos seres – “a gente viemos do inferno – nós todos” – e da linguagem, a um
fundo inominável, gerador de confusão, ao “um sem fim”84, “o raso”85. A negatividade
de algo do qual só se conhecem os efeitos é sintetizada numa das descrições para o
demo:
O senhor não vê? O que não é Deus é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver – a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo. O inferno é um sem-fim que nem não se pode ver. (ROSA, J.G., 2001, p.76).
A dúvida sobre a existência ou não do demo perpassa o livro todo, e é
freqüentemente formulada pelo personagem da seguinte forma: se há diabo sozinho ou
“vige dentro do homem, os crespos do homem.”86 Em outras palavras, Riobaldo se
pergunta se o Mal consiste em algo objetivo que causaria confusão, ou se o Mal é
apenas a própria dificuldade humana em discerní-lo do bem. Questão tida como
essencial, pois dela decorre saber se o pacto foi real ou imaginário e, de acordo com o
jagunço, disso dependeria sua salvação ou culpa. E questão subjetiva, pois Riobaldo se
apropria dela, tornando-a coisa sua: “Este caso” (o da consistência do demo), diz ele,
“é de minha certa importância.”87 O Mal introduz, por assim dizer, as memórias do
narrador, através de primeiras memórias que são basicamente coletivas. O que começa
81 Idem, p.27. 82 Idem, ibidem. 83 Idem, p.33. 84 Idem, p.76. 85 Idem, p.50. 86 Idem, p. 26. 87 Idem, ibidem.
compondo as “horas de todos”88, vai se revelando ao longo do texto como “as horas da
gente”89, como aquilo que, para o narrador, merece – ou precisa – ser lembrado.
Outras estórias têm lugar neste mesmo início do livro, um pouco maiores,
apontando a mesma lógica de uma pura reversibilidade dos estados benignos e
malignos: o causo do Aleixo, “o homem de maiores ruindades calmas que já se viu”90
que, após matar alguém, “só por graça rústica”91, teve os filhos cegos, e tornou-se
bom; mas Riobaldo se pergunta a razão de tamanho castigo divino se voltar sobre as
crianças. E o do Pedro Pindó e seu filho Valtêi, “gostoso de ruim de dentro do fundo
das espécies de sua natureza”92 – onde cabe perguntar, antes de tudo, quem, além de
Rosa, poderia descrever com tanta precisão e ironia o gozo sádico?
No caso do menino Valtêi, onde os pais parecem aprender com o filho a
maldade, pois passam a castigá-lo cruel e regularmente, há uma maldade gratuita e
contagiante, comenta Rosenfield, que subverte a lógica do arrependimento cristão
apresentada no exemplo do Aleixo 93 – embora naquele, também o Mal reste irredutível
e incompreensível na forma do castigo. Curiosamente, a infeliz estória do menino evoca
a primeira lembrança de Riobaldo sobre sua própria vida (não a que depois mencionará
como sendo a sua mais antiga recordação, sobre o ódio a um homem, na fazenda onde
vivia com sua mãe), mas a que primeiro surge no texto, e esta é surpreendentemente
uma das poucas a que ele se refere como saudosa e boa; e remonta a seus estudos,
durante a juventude:
...Soletrei, anos e meio, meante cartilha, memória e palmatória. Tive mestre, Mestre Lucas, no Curralinho, decorei gramática, as operações, regra-de-três, até geografia e estudo pátrio (...). Ah, não é por falar: mas, desde o começo, me achavam sofismado de ladino. E que eu
88 Idem, p.154. 89 Idem, ibidem. 90 Idem, p.28. 91 Idem, ibidem. 92 Idem, p.29. 93 ROSENFIELD, K. (2006) p.221.
merecia de ir para cursar latim, em Aula Régia – que também diziam. Tempo saudoso! (ROSA, J.G., 2001, p. 30).
Nas páginas iniciais do livro, pode-se afirmar, então, que este conjunto de
estórias coletivas prevalece, embora funcione como introdução para o questionamento
filosófico e subjetivo do narrador. Pois, como foi dito, a questão do demo e do pacto só
faz sentido se vinculada à sua história de guerra e de amor por Diadorim, e ao
sentimento de culpa que o atormenta. Até então, o personagem só menciona a si mesmo
em passagens bem reduzidas e fragmentadas sobre a velhice, e sobre suas crenças e
opiniões sobre os casos ou, como na lembrança dos tempos escolares, o de uma
memória de si que é evocada a partir de uma memória mais coletiva.
A passagem dos casos à recordação efetiva da vida de Riobaldo vem a ser
iniciada, desenredada igualmente a partir de outro causo, o último desta série inicial, o
do arrependimento do jagunço Joé Cazuzo, do qual o narrador dá testemunho, pois o
mesmo fazia parte de seu próprio bando quando desistiu da guerra:
De jagunço comportado ativo para se arrepender no meio de
suas jagunçagens, só deponho de um: chamado Joé Cazuzo – foi em arraso de tirotêi’, p’ra cima do lugar Serra Nova, distrito de Rio-Pardo, no ribeirão Traçadal. A gente fazia má minoria pequena, e fechavam para riba de nós o pessoal dum Coronel Adalvino, forte político, com muitos soldados fardados (...). Agüentamos hora mais hora, e já dávamos quase de cercados. Aí, de bote, aquele Joé Cazuzo – homem muito valente – se ajoelhou giro no chão do cerrado, levantava os braços que nem esgalho de jatobá seco, e só gritava, urro claro e urro surdo: − “Eu vi a Virgem Nossa (...).” Ele almou? Nós desigualamos. Trape por meu cavalo – que achei – pulei em mal assento, nem sei em que rompe-tempo desatei o cabresto, de amarrado em pé de pau. Voei, vindo. Bala vinha. O cerrado estrondava.(...) Eu não cabia de estar mais bem encolhido (...). E outra, de fuzil, em ricochete decerto, esquentou minha côxa, sem me ferir, o senhor veja: bala faz o que quer – se enfiou imprensada entre em mim e a aba da jereba! Tempos loucos... (ROSA, J.G., 2001, p.35-36).
Durante o tiroteio, Riobaldo se vê escondido e com medo da morte. É quando
surge a primeira menção a Diadorim: “Conforme pensei em Diadorim”.94 A partir desta
94 Idem, p.37.
passagem, pode-se falar numa entrada na recordação da vida do narrador, realizada
numa sucessão desordenada de fatos de sua trajetória, que começa com uma descrição
da paisagem do sertão que lhe foi mostrada por Diadorim, segue pela tentativa frustrada
de travessia do Liso do Sussuarão, pela escolha da vida jagunça, etc. História que vai
sendo sucessivamente entrecortada ao longo de todo o romance por outras lembranças
coletivas, menores, de hábitos, nomes de lugares, provérbios, casos, etc.
Como o caso Maria Mutema, no qual se nota a ordem inversa do caso do menino
Valtêi, pois é a estória menor que surge da narrativa predominante; que, aqui, quase na
metade do livro, já é a da vida de Riobaldo. Trata-se da passagem em que os bandos de
Joca Ramiro e do Hermógenes estão aliados contra o de Zé Bebelo, engajado em seu
projeto de acabar com a jagunçagem no sertão. Riobaldo se vê no lado oposto ao antigo
amigo e, aturdido com a morte de dois jagunços a quem tinha escolhido para lutar na
linha de frente, indaga a si próprio sobre sua possível culpa. Tatarana, apelido que
recebera neste bando, espera um possível ataque do bando dos bebelos e, no meio da
noite, acordado com o Jõe Bexiguento, examina a “vagância de pecados”95 da vida
jagunça e relembra o que pergunta ao companheiro:
...Jagunço – criatura paga para crimes, impondo o sofrer no quieto arruado dos outros, matando e roupilhando. Que podia? Esmo disso, queri, por pura toleima; que sensata resposta podia me assentar o Jõe, broeiro peludo do Riachão do Jequitinhonha? Que podia? A gente, nós, assim jagunços, se estava em permissão de fé para esperar de Deus perdão de proteção? Perguntei, quente. (ROSA, J.G., 2001, p. 236-237).
É então que Jõe conta o caso de Maria Mutema, a mulher que, tendo confessado,
arrependida, assassinar o marido “sem motivo nenhum, sem malfeito dele nenhum,
causa nenhuma”96, e matar igualmente o padre por desgosto, no confessionário, ao
atribuir-lhe a responsabilidade pelo falso amor, é presa e, não só perdoada pelo povo do
95 Idem, p.236. 96 ROSA, J.G. (2001) p. 241.
lugarejo, mas adquire fama de santa, divulgada pela mesma população que a perdoou.
Maria Mutema configura mais uma versão do Mal; mas, diferentemente dos casos das
primeiras páginas, coloca em questão a possibilidade de esquecimento do passado
através da noção de perdão, um esquecimento através do qual pode se dar a construção
de uma nova história97.
Desta forma, vê-se como a questão do Mal se inicia nas memórias coletivas,
adentra a recordação da vida do narrador e retorna sempre, como uma lacuna, espaço
vazio, entre o coletivo e o individual. Desde o princípio, a lembrança mais antiga que o
narrador afirma possuir, é uma lembrança de ódio: “a coisa mais alonjada de minha
primeira meninice, que eu acho na memória, foi o ódio, que eu tive de um homem
chamado Gramacêdo...”98 E, durante toda a recordação de sua vida, a questão do Mal
retorna sob a forma da dúvida sobre o pacto e outras estórias, que vão se interpondo (e
compondo) à principal, configurando uma recordação que não cessa de ser evocada, e se
mantém não respondida até a última página, na última referência ao diabo: “O diabo
não há! É o que eu digo, se for... (grifo nosso) Existe é homem humano. Travessia.”99
O senhor sabe: um narrador em extinção
97 A noção de perdão inclusa nesta pequena história não se confunde com a questão jurídica da imputabilidade criminal, o texto não menciona a absolvição da personagem. O filósofo Paul Ricoeur fala em “perdão difícil: nem fácil, nem impossível”, afirmando que o perdão se situa “na margem de instituições encarregadas da punição”, não se colocando de maneira nenhuma como substituto à lei, ao contrário, só se apresentando como horizonte diante daquilo que pode ser também julgado. No entanto, numa referência a Jacques Derrida, Ricoeur afirma que “o perdão dirige-se ao imperdoável ou não é”, consistindo num desafio lógico que não pode estar a serviço de nenhuma finalidade. A questão se torna controversa e relevante sobretudo quando se trata dos chamados crimes contra a humanidade e genocídios do último século que, por sua vez, colocam uma outra desproporção, entre a culpa e a punição. Cf. RICOEUR, P.(2007) p.465-466; 474. 98 Idem, p.58. 99 Idem, p.624.
Em “O Narrador”100, Benjamin opõe uma narrativa proveniente da cultura oral e
do meio artesão e coletivo ao romance do indivíduo inadaptado, relacionado à
linguagem informacional, jornalística, proveniente dos novos tempos. De acordo com o
filósofo, a narrativa épica se diferencia em tudo do romance moderno; pois, com a
invenção da imprensa e a substituição da produção artesanal pela industrial, passamos a
viver privados de experiência e sobrecarregados de informação, por isso, a linguagem
atual perdeu a densidade narrativa, tornando-se meramente informacional. Ao leitor do
romance tudo seria fornecido, não restando nenhum trabalho para a imaginação,
justamente o que está presente e dá amplitude à narrativa arcaica.
Novamente, é preciso ponderar que, ao falar neste narrador épico, arcaico, tal
como o descreveu Walter Benjamin; estamos nos referindo, como o próprio filósofo
chamou a atenção, a traços de uma figura “que não está de fato presente entre nós, em
sua atualidade viva”101. Assim, este narrador rosiano se assemelha àquele que transmite
uma experiência advinda de outras pessoas e outras gerações; seja através de uma
linguagem que mimetiza a linguagem oral dos velhos contadores de estórias, seja pelo
tom conciso, exemplar, pouco explicativo, de uma narrativa que “não se entrega (...)
conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de desenvolver-se”102. Esta
é a forma assumida pela linguagem nos incontáveis casos, estórias ou provérbios do ex-
jagunço: “Couro ruim é que chama ferrão de ponta. (...) O senhor sabe: o perigo que é
viver...”103
Estas memórias coletivas são comumente introduzidas no texto através da
expressão: “o senhor sabe”, repetida ao longo do livro inteiro, e freqüentemente
acompanhada de uma referência ao sertão, ou de uma forma de provérbio ou aforismo,
100 Idem, p.197-221.
101 BENJAMIN, W. (1986d) p.197.
102 BENJAMIN, W. (1986) p. 204.
103 ROSA, J.G. (2001) p. 35.
e que justamente por pertencer a uma memória coletiva e arcaica, é assinalada como
uma história já sabida e contada que, ao ser recontada pelo narrador, busca despertar
uma recordação no interlocutor-leitor: “O senhor sabe: sertão é onde manda quem é
forte, com as astúcias.”104 Ou então: “Confiança – o senhor sabe – não se tira das
coisas feitas ou perfeitas: ela rodeia é o quente da pessoa.”105
Outro vestígio do narrador benjaminiano no GSV seria o tédio, definido na tese
benjaminiana como condição para a desejada distensão da escuta daquele que possui o
dom de ouvir, e desenvolve o dom de narrar através desta experiência: “o tédio é o
pássaro de ouro que choca os ovos da experiência.”106 A transmissão desta experiência
para o ouvinte é também vinculada por Benjamin ao modo de produção artesanal, ao
tecer de uma rede:
Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, ele escuta as histórias de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narrá-las. Assim, se teceu a rede em que está guardado o dom narrativo. E assim essa rede se desfaz hoje por todos os lados, depois de ter sido tecida, há milênios, em torno das mais antigas formas de trabalho manual. (BENJAMIN, W. 1986d, p. 205.)
O tédio é assumido pelo próprio Riobaldo, quando, já aposentado, decide contar
suas estórias ao forasteiro, e, no sertão, junto com o tédio encontra-se a imagem de outra
rede, a indígena, mas igualmente associada ao devaneio que permite a rememoração;
fazendo com que, desde o princípio do texto, a memória seja vinculada à imaginação e à
fantasia. Mesma rede onde se deita um tempo estendido, contraposto ao áspero tempo
cronológico, o tempo da ação e da produção (onde moemos todos):
De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. (...) Vivi puxando difícil de difícel, peixe vivo no moquém: quem mói no asp’ro, não fantasêia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range rede. E me inventei neste gosto de especular idéia. (ROSA, J.G., 2001, p.26).
104 Idem, p.35. 105 Idem, p.72. 106 BENJAMIN, W. (1986) p. 204.
Quanto ao caráter de ensinamento ou conselho prático próprio da narrativa
épica, o que se lê no GSV seria muito mais a forma da sabedoria do que o conteúdo,
pois os provérbios e causos são em sua maior parte contraditórios ou vagos, indefinidos
demais para configurar algo da ordem de um conselho, o que também leva a pensar na
definição de Benjamin para o provérbio, segundo ele, composto de resquícios ou
“ruínas de antigas narrativas, nas quais a moral da história abraça um
acontecimento”107. É o que ocorre com o demo, que primeiro surge na forma da
ambígua interrogação: “existe e não existe?”108, e depois não existe por si, mas “vige
dentro do homem, os crespos do homem”109, restando sempre como indagação em
aberto, como um passado ainda presente, mas nem um pouco reconciliado como o
tempo das memórias ou narrativas mais tradicionais. Que conselho ou moral se pode
extrair de uma pergunta que é, em si, um paradoxo?
Trata-se de imagens contraditórias, que subvertem o senso comum e levam o
pensamento lógico à exaustão, designando uma experiência inefável, semelhante à
noção de Erfahrung, a Experiência; conceito fundamental que perpassa toda a obra
benjaminiana, e surge justamente relacionado à memória: “a estrutura da memória é
decisiva para a estrutura filosófica da experiência”110. A Erfahrung se diferencia da
Erlebnis111, a vivência imediata, individual e assistida pela consciência, que seria a
vivência possível após a entrada na Modernidade. A vinculação à tradição é assim
pontuada por Benjamin, juntamente com a referência ao Inconsciente de Freud, pois
esta experiência não se encontra disponível, afluindo, antes, à consciência:
107 BENJAMIN, W. (1986) p.221.
108 ROSA, J.G. (2001) p. 26.
109 Idem, ibidem. 110 BENJAMIN, W. (1989) p.105.
111 Idem, p.46.
...a experiência é matéria da tradição, tanto na vida privada quanto na coletiva. Forma-se menos com dados isolados e rigorosamente fixados na memória, do que com dados acumulados, e com freqüência inconscientes, que afluem à memória. (BENJAMIN, W., 1989, p.105).
A Erfahrung é igualmente ligada à narrativa épica e às formas subjetivas das
sociedades tradicionais, tornando-se, após a Modernidade, sobretudo após a guerra de
trincheiras, uma experiência perdida ou incomunicável. A Erfahrung é, ainda, colocada
também, como uma Experiência de caráter alternativo à experiência de choque, outra
noção inspirada no trauma freudiano. Porém, o choque benjaminiano surge numa
dimensão histórica, referido à reação do sujeito à ruína e à catástrofe inerentes ao
progresso científico e à Modernidade112.
Deste modo, para a noção de experiência fazer sentido na atualidade, deveria ver
contemplada a relação que estabelece com o passado e com o futuro, através de uma
determinada referência ao passado arcaico ou tradicional que, entretanto, não se
realizará como uma simples transmissão. Segundo a concepção benjaminiana, o passado
“traz consigo um índice misterioso”113, compondo-se de nebulosas de sentido opacas à
compreensão imediata. A noção de memória se distingue, portanto, da simples
rememoração ou sucessão fixa de fatos passados no tempo. De acordo com o filósofo, o
passado não está disponível, mas nos escapa a todo instante, só se deixando apreender
num “lampejo”, quando nos apropriamos de uma reminiscência para construir, no
passado, uma nova relação com o presente e com o futuro; nas palavras de Benjamin,
“fazer do passado uma experiência única” 114.
Este vislumbre ou encontro secreto com o passado, para Benjamin, seria a
relação que o presente estabelece com as gerações passadas, sendo a Experiência
112 Cf. BENJAMIN, W. (1989) p.109. 113 BENJAMIN, W. (1987) p. 222.
114 Idem, p.222-224.
(Erfahrung)115 formada por uma fusão entre uma memória individual e outra forma
mais arcaica e coletiva, ligada ao ritual:
...Onde há experiência no sentido estrito do termo, entram em conjunção, na memória, certos conteúdos do passado individual com o coletivo. Os cultos, com seus cerimoniais, suas festas (que, em parte alguma da obra de Proust foram mencionados), produziam reiteradamente a fusão desses dois elementos da memória. Provocavam a rememoração em determinados momentos e davam-lhe pretexto de se reproduzir durante toda a vida. As recordações voluntárias e involuntárias perdem, assim, sua exclusividade múltipla. (BENJAMIN, W., 1989, p. 107).
É importante assinalar, aqui, este caráter de uma conjunção entre a memória
coletiva e a individual, entre as recordações conscientes e inconscientes, que resulta
numa concepção diferenciada de memória, numa construção bem próxima da busca
efetuada pelo narrador de Guimarães Rosa. Pois, em primeiro lugar, em boa parte dos
enunciados a respeito de um saber coletivo, o narrador rosiano fala do irrepresentável e
do que não se pode comunicar... De fato, a escrita de Rosa não parece pretender
recuperar esta figura do narrador, ausente da sociedade moderna, mas faz alusão a ela,
a insere no texto enquanto figura em extinção.
O que Riobaldo afirma buscar no passado parece situar-se, na esfera, sim, de
uma experiência incomunicável e, talvez por isto ele se revele tantas vezes incapaz de
narrar: “e eu não sou capaz de dar narração”116. Do mesmo caráter irrecuperável,
perdido, do passado, viriam as várias expressões que se referem a uma falsa ou mal
contada narrativa, ou o mentir e desmentir que se insere na busca pelo passado: “Ah,
mas falo falso. O senhor sente? Desmente? Eu desminto. Contar é muito dificultoso.”117
“Ou Conto mal? Reconto.”118
115 BENJAMIN, B. (1989) p. 146, (vide nota do revisor técnico).
116 Idem, p.221. 117 Idem, p. 200. 118 Idem, p.77.
Outro aspecto a ressaltar é que, embora sejam apresentadas como parte de uma
memória coletiva, de tradição oral, nem sempre as pequenas estórias de Riobaldo são
contadas no tempo passado. Dos casos iniciais, quase todos, à exceção do Aleixo “que
era o homem de ruindades calmas”119, e do delegado Jazevedão e seu capanga, “que
tanto um era ruim, como o outro ruim era”120, são narrados no tempo presente do
verbo: “Ainda o senhor estude. Agora mesmo, nestes dias, tem (grifo nosso) gente
profanando que o próprio Diabo parou, de passagem, no Andrequicé.”121
E a predominância do tempo presente fornece tanto a idéia da atualidade de um
passado sempre presente do tempo mítico, o passado que não passa do poeta Octávio
Paz, citado no início deste capítulo, como a da articulação histórica e materialista do
passado benjaminiano; além de uma terceira via de compreensão, a do passado
traumático freudiano, que não passa por não ter sido esquecido. Num outro sentido, o
tempo presente da narração reforçaria o caráter testemunhal122 almejado pelo narrador
para convencer seu interlocutor (ou, pelo escritor em relação ao leitor), como no caso do
Aristides, que escuta a voz do diabo lhe chamando: “Do demo? Não gloso. Senhor
pergunte aos moradores. (...) Sentença num Aristides – o que existe (grifo nosso) no
buritizal primeiro desta minha mão direita.”123
O personagem que mais se assemelha à figura benjaminiana do sábio portador
destas memórias coletivas, no GSV, foi, até o momento, pouco comentado pela crítica:
trata-se do compadre Quelemém, a quem Riobaldo recorre após a morte de Diadorim,
tendo sido indicado pelo amigo Zé Bebelo, como alguém “diverso de todo o mundo”124,
capaz de acolher sua dor: “Compadre meu Quelemén me hospedou, deixou meu contar
119 Idem, p.28. 120 Idem, p.34. 121 Idem, p.24. 122 Cf. capítulo 2 desta tese. 123 ROSA, J.G. Op. Cit., p. 24. 124 Idem, p.623.
minha história inteira. Como vi que ele me olhava com aquela enorme paciência –
calma que minha dôr passasse; e que podia esperar muito longo tempo.”125
Quelemém encarna a ordem tradicional reproduzida socialmente sem nenhuma
crítica; ele reprova, por exemplo, as incertezas de Riobaldo no caso do Aleixo, quando
este questiona a justiça no fato das crianças terem-se tornado cegas: “Que, por certo,
noutra vida revirada, os meninos também tinham sido os mais malvados”126. A figura é
mencionada, desde o início, como o homem mais experiente, cuja opinião tradicional
sobre os casos é tratada por Riobaldo como algo de muita relevância, mas
simultaneamente, com fina ironia, uma crença insuficiente, como no exemplo do
exorcismo:
...Compadre meu Quelemém descreve que o que revela efeito são os baixos espíritos descarnados, de terceira, fuzuando nas piores trevas e com ânsias de se travarem com os viventes – dão encosto. Compadre meu Quelemém é quem muito me consola – Quelemém de Góis. (ROSA, J.G., 2001, p. 25).
Riobaldo reconhece esta sabedoria, mas não a aceita de todo: “Compadre meu
Quelemém nunca fala vazio, não substrata. Só que isto a ele não vou expor. A gente
nunca deve aceitar inteiro o alheio”127 Apelo e recusa à tradição dos quais novamente
temos notícia através das teses sobre a história de Benjamin128, onde se encontra
contradição semelhante na relação estabelecida com o passado. Pois, ao mesmo tempo
em que o índice secreto do passado traz um chamado ao qual é preciso saber escutar, a
idéia de um desencontro com a tradição é colocada não somente nas noções já descritas
de um passado que escapa e só se deixa entrever num lampejo, mas na urgência de
“arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela”129. Isto porque
125 Idem, ibidem. 126 Idem, p.29. 127 Idem, p.39. 128 BENJAMIN, W. (1986e). 129 BENJAMIN, W. (1986) p. 224.
Benjamin enxerga na história oficial, à qual se vincula a tradição, sempre a história dos
vencedores:
...O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento.(...) O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer. (BENJAMIN, W., 1986e, p.224-225).
A idéia de um conflito com a tradição ao qual somos chamados a reinventar, a
reescrever, passa, portanto, pela tarefa de despertar no passado as centelhas da
esperança e buscar uma história dos vencidos, ou uma história esquecida, à qual ainda
retornaremos para abordar as noções de ruína, resíduo e trauma no GSV, indissociáveis
desta formulação. Por ora, o que é preciso assinalar nas obras de Benjamin e Rosa é a
difícil relação com este passado tradicional, e a idéia do esforço necessário empreendido
na busca e reconstrução desta história. É como se Riobaldo trouxesse esta memória, mas
não desejasse nem recordá-la inteira, nem perpetuá-la, mas reescrevê-la em outras
bases. Riobaldo relembra130, eis uma leitura possível para a freqüência com que o
prefixo re aparece no texto ligado à memória e seus sinônimos: “Relembro
Diadorim.”131 “Me revejo de tudo.”132 “Reconto”133.
A figura de Quelemém sustenta, entretanto, dois aspectos contraditórios da
memória arcaica: o de um sistema fechado, um conjunto de crenças referidas às
sociedades denominadas fechadas ou tradicionais que se pretendem reproduzir ou
atualizar, como já visto e, por outro lado, o de um fundo ou memória relacionada a um
tempo perdido, irrecuperável, e ao Inconsciente da Erfahrung, ao esquecimento. É o que
Riobaldo afirma, quando ao atribui ao personagem a dimensão da outra coisa, no
130 Idem, p.56. 131 Idem, p.56. 132 Idem, p.77. 133 Idem.
sentido de uma outra memória ou outra verdade sobre o passado, que vem se interpor à
trajetória mais individual do narrador, fazendo-o narrar desemendado, contar falso:
Essas coisas todas se passaram tempos depois. Talhei de avanço, em minha história. O senhor tolere minhas más devassas no contar. É ignorância. Eu não converso com ninguém de fora, quase. Não sei contar direito. Aprendi um pouco foi com o compadre meu Quelemém; mas ele quer saber tudo diverso: quer não é o caso inteirado em si, mas a sobre-coisa, a outra coisa. (ROSA, J.G., 2001, p. 214).
Logo após avançar, o narrador retorna para o dito, ao que se situa no registro das
palavras, da narração, do discurso, da linguagem: “Agora, neste dia nosso, com o
senhor mesmo – me escutando com devoção assim – é que aos poucos vou indo
aprendendo a contar corrigido. E para o dito volto.”134 Entretanto, o que vai sendo
narrado aponta gradualmente para a necessidade deste dito constituir-se como um saber
próprio, a partir do saber dos outros. Mas, fundamentalmente, a narrativa inclui a
dimensão de não-saber, a dimensão da outra-coisa, consistindo numa rememoração que
procura aproximar o que é possível nomear deste saber Inconsciente, que se associa ao
esforço de nomear, rememorar (e elaborar) algo que, para o narrador, se impõe como
necessário: “Agora: o tudo que eu conto, é porque acho que é sério preciso.”135
Percebe-se, portanto, o quanto a escrita de Rosa não elimina a tensão entre estas
diferentes faces da memória; elas estão todas ali, expressas no texto. Entretanto, como
afirmo no início deste capítulo, o texto coloca todas estas contradições em movimento,
num ir e vir entre diferentes recordações e distintas concepções de memória,
sobrepondo tempos, e, sobretudo, intercalando memória e esquecimento, ao falar
igualmente de uma memória relacionada a este fundo inominável de onde brota o
sentido de todas as coisas, ao que se coloca na ordem do irrepresentável...
134 Idem, p.214. 135 Idem, p.189.
A respeito da memória coletiva, cabe ainda indagar, com maior detalhe, o que
estaria em jogo na origem deste conceito, e qual a sua pertinência atual nos estudos
sobre a memória?
Memória coletiva, uma memória “feliz”?
São tantas as minhas lembranças, e lembranças de lembranças de lembranças, que já não sei em qual camada da memória eu estava agora.
CHICO BUARQUE, LEITE DERRAMADO
A ênfase de Benjamin sobre a tese de que da memória coletiva só conhecemos
os vestígios, embora não tão marcada no texto de Halbwachs, está presente sob o item
“Sobrevivência dos grupos desaparecidos”136, que talvez constitua o maior ponto de
contato entre os dois autores. Pois, enquanto Benjamin parece procurar um termo
transcendente, além da memória coletiva e a individual; para o sociólogo francês, é a
memória individual que se alimenta de “correntes de pensamentos coletivos
convergentes”137, constituindo-se no cruzamento entre as ligações que o sujeito
estabelece com os diferentes grupos.
Para Halbwachs, o sujeito é único no ponto de seu enredamento da trama social,
daí advém a impressão de que suas lembranças são puramente pessoais, mas elas se
devem sempre a algum grupo; o que faz com que, quanto maior a complexidade social,
maior a sensação de parecerem desvinculadas de qualquer coletivo e portanto supostas
como individuais:
... É uma mudança de lugar, de profissão, de família, que não rompe ainda inteiramente os liames que nos amarram a nossos antigos grupos. Ora, acontece que em caso semelhante as influências sociais se fazem mais complexas, porque mais numerosas, mais entrecruzadas. (...) Essas lembranças nos parecem puramente pessoais, e tais como nós sozinhos as reconhecemos e somos capazes de reencontrá-las, distinguem-se das outras pela maior complexidade das
136 HALBWACHS, H. (1990) p.126. 137 Idem, p.46.
condições necessárias para que sejam lembradas; mas isto é apenas uma diferença de grau. (HALBWACHS, M., 1990, p.48).
A artista e pesquisadora Leila Danziger138 mapeou bem a discussão atual em
torno da memória coletiva, seus detratores e admiradores, apontando como principal
crítica ao conceito, a alegação de Huyssen, em seu livro, Seduzidos pela Memória:
arquitetura, monumentos, mídia, sobre uma inadequação da noção, apesar de assinalar
uma preocupação crescente com a memória nos cenários políticos e culturais, nos
últimos trinta anos139, em torno de uma cultura da memória do holocausto disseminada
por todo o mundo.
A inadequação, para Huyssen, dever-se-ia ao fato das memórias coletivas
estarem expostas à constante fragmentação num mundo em permanente mudança, onde
a aceleração do tempo e a fugacidade das relações com os grupos sociais fazem com
que a própria idéia de pertencimento a um grupo seja colocada em xeque140. E, como
argumento a favor, destaca a afirmação do pensador alemão Weinrich de que a memória
coletiva “tornou-se o centro da atual pesquisa sobre a memória”141. A pertinência da
memória coletiva na esfera dos estudos literários é destacada por Danziger; mas, quanto
à assertiva de Weinrich, esta validade também pode estar referida ao debate sobre uma
política das memórias coletivas, no cerne da qual se encontra a discussão sobre os
genocídios do século XX, bem como as noções de catástrofe e testemunho.
Ao formular sua teoria, Halbwachs não está tratando, ele mesmo afirma, da
evocação da recordação142. Apoiado na sociologia de Durkheim, seus conceitos não
138 DANZIGER, L. (2004). 139 Cf. HUYSSEN, A. (2000) p.9. Cabe notar ainda, sobre este estudo que, apesar de enfatizar o que chama uma obssessão pela memória, por tudo lembrar, contida na idéia de uma cultura da memória, o autor destaca a importância das lutas políticas em defesa das memórias ligadas às ditaduras da América Latina, contrárias às políticas do esquecimento, e ao possível apagamento das memórias locais trazido pela globalização; e destaca a importância de trabalhos que comparem os traumas históricos à recuperação das memórias nacionais. 140 Idem, p.19. 141 WEINRICH, H. (2001) p.168. 142 Cf. HALBWACHS, M. (1990) p.37.
abarcam o desejo ou a fantasia na construção da memória, a não ser enquanto falhas a
serem corrigidas. A mudança no tempo é admitida, mas desde que se mantenha uma
relação com algum grupo, não restando muito espaço para a criação subjetiva, pois
todas as memórias seriam memórias de algum grupo. Sob este aspecto, sua teoria torna-
se, em certa medida, tributária da noção clássica de arquivo já mencionada (sua versão
coletiva?), em suas palavras “o aparelho registrador”143 da consciência, que vê na
memória uma pura positividade, e tem como preocupação central “a memória feliz”144,
expressão de Ricoeur para se referir a uma tradição que remonta às teorias platônicas
sobre o tema145, formuladas sobretudo para responder à indagação do como a memória
funciona, ou seja, de como a lembrança pode ser bem-sucedida.
Pergunta na qual o esquecimento não se coloca enquanto tema a ser
problematizado; o que tampouco anula a complexidade ou a pertinência de sua teoria,
como já foi dito. Pois a definição de memória coletiva apresenta várias aproximações
com as concepções de Benjamin, principalmente quando se refere a um descentramento
do sujeito, contido na síntese de que nossas lembranças “nos são lembradas pelos
outros”146, e a noções como a de uma “história viva”147 que se reconstrói no presente
(embora se trate de uma reconstrução apoiada em outras reconstruções coletivas,
presentes e passadas), bem como a uma multiplicidade das memórias coletivas148,
oriundas de tempos distintos, de traços de diferentes camadas do tempo que se assentam
lado a lado numa lembrança149, fazendo da imagem mnemônica sempre uma “imagem
143 Idem, p.51. 144 RICOEUR, P. (2007) p.46. 145 RICOUER, P. (2007). 146 HALBWACHS, M. Op. Cit., p.26 147 Idem, p.67. 148 Idem, p.86. 149 Idem, p.127.
da imagem”150. Traços e imagens nos quais, sem dúvida, o autor se aproxima bastante
das concepções de memória desenvolvidas na ficção de Guimarães Rosa.
A fim de conceber melhor seu alcance, a teoria de Halbwachs deve ser lida tendo
em vista o contexto em que nasce, no qual, o próprio autor, assim como Benjamin,
experimentava o múltiplo pertencimento a várias culturas, num mundo ainda totalmente
demarcado pela idéia de Estado-Nação, e a ameaça de desaparecimento das tradições,
não apenas pelo progresso, mas pela tentativa concreta de extermínio da cultura judaica;
que tem como desfecho o fato de que Halbwachs, de forma semelhante à morte de
Benjamin, vem a sucumbir, morto num dos campos nazistas em 1945151. E, apesar das
críticas, e da própria afirmação de que “não há na memória vazio absoluto”152, seu
texto contém momentos interessantes de aproximação entre o sujeito e o esquecimento,
como um ponto de pura negatividade:
...Por mais estranho e paradoxal que isso possa parecer, as lembranças que nos são mais difíceis de evocar são aquelas que não concernem a não ser a nós mesmos, que constituem nosso bem mais exclusivo, como se elas não pudessem escapar aos outros senão na condição de escapar também a nós próprios. (HALBWACHS, M., 1990, p. 49).
Há também uma associação entre o subjetivo, aquilo que não pertence a nenhum
grupo, mas se situa entre um e outro, e o resíduo das recordações153. As lembranças
mais “individuais” se encontram, portanto, menos disponíveis, pois estariam situadas
nestas passagens ou lacunas entre um grupo e outro, entre as diferentes relações
estabelecidas entre um e outro:
...ainda que possamos passar de um a outro, as relações são tão reduzidas, tão pouco visíveis, que não temos nem a ocasião nem a idéia de seguir os apagados caminhos pelos quais se comunicam. Ora,
150 Embora separe os domínios da imagem e da lembrança em territórios distintos, creio que o autor, neste trecho, não está enfatizando esta distinção, tratando das imagens mnêmicas que compõem a lembrança. Cf. HALBWACHS, M. (1990) p.73. 151 Cf. DANZIGER, L. (2004) p.14. 152 HALBWACHS, M. Op. Cit., p.77. 153 HALBWACHS, M. Op. Cit., p.45.
é sobre tais caminhos, sobre tais sendas ocultas (grifo nosso), que reencontramos as lembranças que nos dizem respeito... (HALBWACHS, M., 1990, p.50).
Todavia, nota-se a ausência de uma leitura que inclua o desejo ou a
subjetividade como determinante na escolhas dos grupos com os quais o sujeito se
identifica, num texto que a observação acurada de Ricouer aponta ser narrado em boa
parte na primeira pessoa154; o que, por sua vez, nos leva a questionar se o subjetivo não
seria de todo negado ali, mas apenas não seria o foco de seu questionamento. Cabe,
ainda, assinalar que o texto é elaborado nos anos 20, sendo mais ou menos
contemporâneo da filosofia de Benjamin, mas publicado somente nos anos 50, levando
a pensar também, que, guardadas as distâncias efetivas do contexto entre-guerras
europeu para os anos dourados no Brasil, tanto Halbwachs como Benjamin assinalam
com suas obras teóricas, algo que Guimarães Rosa parece realizar na ficção. Pois
Riobaldo representa, sem dúvida, um narrador-testemunha155 de um mundo em
extinção, alguém que tenta narrar em meio a um cenário de choque entre um conjunto
de saberes ligados à cultura tradicional e ao controverso processo de modernização
brasileiro.
Assim, embora enquanto conceito as memórias coletivas não expliquem a
escolha do sujeito em relação à sua inserção nos grupos, não respondam à pergunta
(deixada em aberto) que Riobaldo se coloca a si mesmo e aos outros companheiros
sobre a motivação para terem entrado para o bando de jagunços – “eu não tinha nascido
para aquilo, de ser sempre jagunço não gostava. Como é, então, que um se repinta e se
sarrafa?”156 – elas se encontram no texto. Riobaldo evoca memórias coletivas
atribuíveis aos diferentes coletivos com os quais o personagem se relaciona: as
memórias dos jagunços a respeito dos grandes chefes de bandos do sertão, como a
154 RICOEUR, P. (2007) p.406. 155 Cf. Cap. 2 desta tese. 156 ROSA, J.G. (2001) p.83.
história da vida de Medeiro Vaz, ex-dono de terras, que largou tudo o que possuía para
entrar na guerra, desde que a violência e os desmandos tornaram “impossível qualquer
sossego” 157 na região. Ou a fama de coragem de Joãozinho Bem-Bem: “Esse que já
tinha morrido, que ele falava, era Joãozinho Bem-Bem, das Aroeiras, de redondeante
fama”158.
Além dos já mencionados casos sobre o Mal, as lembranças dos nomes de
lugares, de plantas, de animais, por exemplo, transmitidos pela linguagem oral, e todo o
conjunto de hábitos antigos consistiriam em memórias coletivas dos sertanejos em
geral. O discurso político sobre o coronelismo, o progresso, o governo e os políticos,
com o qual Riobaldo tem contato através do projeto de Zé Bebelo de guerra contra a
jagunçagem: “nesse nosso norte não vai se mais ter um qualquer chefe encomendar
para as eleições as turmas de sacripantes, desentrando da justiça, só para tudo
destruírem, do civilizado e legal!”159 E o discurso ligado à reflexão dos homens letrados
das classes médias das cidades, que leva o Professor a tomar gosto pelas altas
idéias”160, todos estes seriam apenas alguns exemplos de grupos sociais em jogo no
texto, que alimentariam a memória e o discurso de Riobaldo, situado no cruzamento de
todos as coletividades nas quais teve alguma inserção.
Desta forma, se estas outras estórias, numa primeira leitura, poderiam ser
associadas somente às memórias coletivas que se contrapõem à individual, no decorrer
do texto vão se incorporando a um sentido mais profundo: pois, ao confrontarem esta
memória individual, apontam para um vazio – a mesma lacuna, por pouco, não de todo
banida da obra de Halbwachs e de todas as leituras mais positivas da memória? – que no
157 Idem, p.60. 158 Idem, p.146. 159 Idem, ibidem. 160 Idem, p.30.
GSV retorna sempre, como o demo, do qual Riobaldo não glosa161, ou o fundo
originário infernal, misturado em tudo e com seus vários nomes: “ocos”162, “fundos
fundos”163, “ermos”164, etc.
Na medida em que a narração e o trabalho de memória avançam, o que Riobaldo
faz questão de reafirmar é a sua não-adequação a todos aqueles grupos sociais: “Sempre
fui assim: descabido, desamarrado”165. O seu interesse no passado tampouco se coloca
numa individualidade estrita, que ele recusa: “De tudo não falo. Não tenciono relatar
ao senhor minha vida em dobrados passos; servia para que?”166, e menos ainda se
refere à ordem coletiva das determinações sociais objetivas, factuais. O que o texto
revela sobre este desejo de recontar o passado é que, na proporção em que a lembrança
escapa, esse obscuro objeto da recordação vai sendo deslocado – ora é a matéria
vertente, ora são as coisas importantes que se situam em outro lugar – e redefinido num
plano de ausência e negatividade, que não suprime o esquecimento, mas ao contrário,
faz dele um mote, num movimento que se alterna entre a multiplicidade e a recriação de
sentidos da rememoração, ao vazio do esquecimento e a interrogação do enigma.
Através do narrador Riobaldo, que parece proceder com a memória da mesma
forma que busca conhecer o mundo, pelo seu avesso, pelas suas entranhas, o escritor
contradiz as suposições de base da maior parte das teorias tradicionais sobre a memória,
que afirmam que esta só existe a partir da narração, assim como a história necessita de
uma escrita da história, e a imagem, da palavra para se fazer linguagem. Por todo o
romance, a tentativa de recontar o passado se acrescenta ao esforço de recompô-lo
segundo a “natureza” desordenada, fragmentada das lembranças, segundo a ordem
161 Entre outros sinônimos para o termo glosar, Houaiss lista: criticar, suprimir, eliminar, rejeitar, mas também “desenvolver (um mote) em versos”. Cf. HOUAISS, A. (2009). 162 ROSA, J.G. Op. Cit., p. 400. 163 Idem, p. 398. 164 Idem, p.50. 165 Idem, p.163. 166 Idem, p.232.
muito peculiar do rememorar, o que coloca em jogo não uma relação de simples
subordinação, mas uma tensão entre a narrativa e a memória. É o que se nota justamente
numa passagem que fala também da importância dos velhos, e por extensão, da
memória para um país:
Sei que estou contando errado, pelos altos. Desemendo. Mas não é por disfarçar, não pense. De grave, na lei do comum, disse ao senhor quase tudo. Não crio receio. (...) E meus feitos já revogaram, prescrição dita. Tenho meu respeito firmado. Agora, sou anta empoçada, ninguém me caça. Da vida pouco me resta – só o deo-gratias; e o troco. Bobéia. Na feira de São João Branco, um homem andava falando: – “A pátria não pode nada contra a velhice...” Discordo. A pátria é dos velhos, mais. (...) Não. Eu estou contando assim porque é o meu jeito de contar. (...) O que vale, são outras coisas. A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento... (ROSA, J.G., 2001, p.114-115).
Mais uma vez, há aqui a associação entre uma memória do sujeito, do jeito
próprio de cada um contar, e a herança dos velhos, que define então a memória
subjetiva como indissociável das memórias coletivas de outras gerações. No que tange à
relação entre narrativa e memória, a tentativa de unir a palavra (narrativa) à imagem
(lembrança) aproxima o autor da outra lógica da poesia, a mesma que Foucault afirma
ter sido inaugurada com a entrada na Modernidade e todas as transformações que a
acompanharam, quando, diante da cisão entre a ordem das palavras e a das coisas,
diante do fracasso da representação e da ausência de sentido do mundo, o homem é
colocado na posição de intérprete, a decifrar seus signos167.
Para demarcar a ruptura que teve lugar no pensamento ocidental a partir da
Modernidade, Foucault compara os dois personagens desviantes emergentes desta
separação, que serão o louco e o poeta: ambos tratarão a palavra na sua opacidade de
coisa. Porém, enquanto o louco, “para quem todos os signos se assemelham e todas as
167 Cf. FOUCAULT, M. (1999).
semelhanças valem como signos”168 se verá enredado e perdido numa trama de
linguagem “cuja semelhança não para de proliferar”169 – o poeta,“sob a linguagem
dos signos e sob o jogo de suas distinções bem determinadas, põe-se à escuta de “outra
linguagem”(...) da semelhança.”170 Situado na extremidade oposta de uma mesma
posição marginal, o poeta será chamado a recriar o mundo segundo uma nova ordem
que, no entanto, como se vê no que concerne às concepções de memória em jogo no
Grande Sertão, constitui uma escritura poética que – ao mesmo tempo – assinala e
contraria esta fissura.
168 FOUCAULT, M. Op. Cit., p.65. 169 Idem, p.66. 170 Idem, ibidem.
II. DESENHO, DESGRAÇA: SERTÃO EM RUÍNAS
A memória é uma vasta ferida. CHICO BUARQUE, LEITE DERRAMADO
No primeiro capítulo, tentei demonstrar que o estranho método de procura pelo
passado efetuado pelo narrador Riobaldo parece consistir em definir o passado e a
rememoração pelo seu negativo. Ou seja, através de determinado conteúdo que não
interessa ser recordado, se recusa uma determinada concepção de memória. De acordo
com a busca de Riobaldo, as lembranças ansiadas pelo narrador negam, sucessivamente,
alguns determinantes quando estes são tomados como exclusivos no processo do
rememorar: não são consideradas como realmente importantes as lembranças
pertencentes ao passado individual linear e ordenado (o individual), a das horas de
todos (o coletivo), e a da vida de sertanejo (o social).
Outras vezes, é o conteúdo da recordação que, por um motivo ou outro171, é
descrito como não merecedor de lembrança, como se dá com a violência excessiva
presente nas lembranças de guerra do ex-jagunço: “Que isso merece que se conte?(...)
Vida, e guerra, é o que é: esses tontos movimentos, só o contrário do que assim não
seja.”172 Ou, ainda, por serem coisas sem nome, demasiado fragmentadas: “Daí, os
pensamentos que tive foram os que nem merecem, e eu não sou capaz de dar
narração”173. Ou, por fim, as recordações são recusadas simplesmente porque Riobaldo
nega o desejo de contar: “Dessa volta, não lhe dou desenho – tudo igual, igual”174.
Contudo, da mesma forma que as memórias coletivas, recusadas pelo narrador
quando associadas somente às horas de todos – mas legíveis no texto desde que
171 As questões a respeito da violência e do que pode ser nomeado ou não no processo de rememoração serão discutidas respectivamente mais adiante e no último capítulo desta tese. Por ora, é importante apenas frisar que as lembranças de guerra não são somente evitadas por ligarem-se ao recalcado e ao traumático para o personagem, mas também menosprezadas em favor de uma certa ética ou política da narração e da memória. 172 ROSA, J.G. (2001) p. 245. 173 Idem, p.221. 174 Idem, p.125.
caracterizadas como herdadas de outras gerações, como memórias vivas, reconstruídas
pelo sujeito – várias referências diretas e indiretas a elementos da geografia, da cultura e
da história do Brasil podem ser identificadas na obra do escritor, cujo principal efeito
não será de um realismo ou de um regionalismo strictu senso, mas o de promover um
(re)pensar das relações entre ficção e memória, memória e história, e ficção e realidade.
É interessante ver como isto se dá no texto, em que tipo de referência se pode falar e
que relações elas colocam em questão, a começar pela paisagem, este sertão
exaustivamente divulgado pelo autor e pela crítica.
Sertão, paisagem subjetiva
Abro a paisagem.
...o sertão aceita todos os nomes...
JOÃO GUIMARÃES ROSA A palavra sertão é, de fato, repetida incontáveis vezes por todo o texto, e assume
uma infinidade de sentidos e leituras, daí as múltiplas propostas de interpretações a
respeito do significado deste sertão de Rosa. Algumas tentativas, inclusive, são mais
contundentes no intuito de definir (na acepção literal do termo, definitivamente) o que
seria o sertão. Sobre a árdua tarefa da crítica, o pensador italiano Giorgio Agamben tem
algo a acrescentar quando a situa entre a razão e a poesia, entre o “gozo do que não
pode ser possuído e a possessão do que não pode gozar”175, afirmando que sua
tentativa deve ser procurar não reencontrar seu objeto, mas “assegurar as condições de
sua inacessibilidade”176, preservar a negatividade, a inapreensibilidade do objeto como
seu bem mais precioso. Torna-se fundamental, portanto, resguardar que o sertão assume
175 “(...la critique oppose) la jouissance de ce qui ne peut être possédé et la possession de ce dont on ne peut jouir.” Tradução minha, todas as traduções não mencionadas são de minha autoria. Cf. AGAMBEN, G. (1994) p.11. 176 “...assurer les conditions de son inaccessibilité.” Idem, p.9.
inúmeros sentidos, distintos e inacabados, em diferentes passagens do texto. A dúvida
se abre desde a primeira menção à palavra, situada nas páginas iniciais do romance:
...Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente – depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucúia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos (...). O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda a parte. (ROSA, J.G., 2001, p.23-24).
Se, no mapa brasileiro, a mais recente definição da Região Semi-Árida do
Nordeste corresponde a uma área que se estende do norte de Minas Gerais ao Piauí177;
no dicionário, que revela seu uso mais corrente, os sinônimos para o termo sertão,
“região agreste”, “terreno coberto de mato, afastado do litoral”, “toda região pouco
povoada do interior” e “zona mais seca que a caatinga”178, não fornecem uma
localização espacial precisa. E – embora o texto do GSV faça várias alusões a lugares
geográficos existentes no mapa brasileiro na região em torno do norte de Minas Gerais,
como o rio São Francisco, a cidades como Januária, e aos estados de Minas Gerais, à
fronteira com Goiás e Bahia – o sertão de Rosa está muito além de um espaço objetivo,
pois ele se insere no diálogo onde Riobaldo tenta, ao mesmo tempo, compreender e
transmitir o que é o sertão para o senhor que escuta. Diz respeito, portanto, a uma
experiência do narrador, a uma memória subjetiva. Memória sujeita a falhas e afetos
daquele que narra, à qual Willi Bolle chamou de mapa mental, ou geografia ficcional
para distinguir de uma geografia física ou objetiva:
O narrador retira pedaços do sertão real e os recompõe livremente – de maneira análoga aos mapas mentais, que nascem da memória afetiva,
177 A última definição data de 2005. Cf. IBGE, página eletrônica da internet (s/d). 178 HOUAISS, A. (2009).
e lembranças encobridoras, de pedaços de sonhos e fantasias, medos e desejos. (BOLLE, W., 2004, p.71).
Este mapa, constituído não somente de locais geográficos, mas de “‘passagens’
da vida”179, seria o registro não apenas de um caminho linear, mas do errar e perder-se
pelo sertão, de acordo ainda com a indagação de Willi Bolle (em clara alusão às
palavras de abertura de Walter Benjamin em “Infância em Berlim por volta de 1900”180,
um texto onde Benjamin fala basicamente sobre a memória): “qual é o mapa geográfico
capaz de representar não a origem, mas o perder-se no sertão?”181 Perder-se inclui
suportar o vazio e o esquecimento. Diversas vezes, o bando se perde, e o leitor é levado
pela sensação de que os lugares, assim como os nomes, se movem no texto.
Às descrições de lugares objetivos são interpostos, assim, outros locais sem
registro no mapa oficial, como o Liso do Sussuarão, que é comparado a um inferno, “o
miôlo mal do sertão”182, uma das imagens do Mal e de um centro insondável no
romance, situado além da própria representação. Neste sentido, a indefinição ou
imprecisão da paisagem segue a mesma lógica da narração e do processo de
rememoração: uma lógica fragmentada, desordenada, na qual distintas camadas do
tempo e do espaço se sobrepõem.
Cabe notar como a escrita vai além da subjetividade do narrador e faz um apelo
à participação do leitor, ao utilizar-se de expressões indeterminadas como: “pão ou
pães, é questão de opiniães...”183; abre lacunas e negações de sentido no texto, como
propõe Wolfgang Iser184, e insere vazios de significação, aos quais o leitor é chamado –
ou não – a preencher com a sua subjetividade, a atribuir-lhes um sentido particular, a
179 BOLLE, W. (1994-95) p.88.
180 “Saber orientar-se numa cidade não significa muito. Entretanto, perder-se numa cidade, como alguém se perde numa floresta, requer instrução.” Cf. BENJAMIN, W. (2009) p.73. 181 BOLLE, W. (1994-95) p.88. 182 ROSA, J.G. (2001) p. 65. 183 ROSA, J.G. (2001) p. 24.
184 Iser propõe diferentes níveis de negatividade no texto, desde o nível mais formal das lacunas, a uma negatividade que se relaciona com o inominável, e se coloca como um núcleo irredutível à significação. Cf. ISER, W. (1999), p.28-33; SCHUAB, G. (1999).
partir de um horizonte maior já dado pelo autor... Desta forma, o texto de Rosa convoca
e provoca o leitor, negando qualquer consenso, sequer a respeito da localização do
sertão visto que, desde a primeira referência, menciona a polêmica em torno da
geografia do local: “Uns querem que não seja”185.
Instaurada a dúvida, inúmeras variações de sentido surgem ao longo da história,
sendo o mais freqüente o uso do sertão no lugar de um saber que pode ser extraído a
partir da memória coletiva, como por exemplo: “sertão é onde manda quem é forte,
com as astúcias”186. Sentido que pode, ainda, atrelar-se mais ao modo de ser ou à
“forma de pensamento”187, como quer Willi Bolle, do que à localização física, abolida
com a interiorização desse espaço: “Sertão: é dentro da gente”188. Ou, diante da
dificuldade de nomeação deste lugar, ele aparece como pura indefinição, um isto que
aponta para um mais além (ou aquém) do espaço, do tempo e da compreensão: “O
senhor tolere, isto é o sertão”189, como demonstrou Finazzi-Agrò no livro dedicado ao
que o autor considera uma demanda ou apelo dos confins na obra de Rosa190, no qual
assinala justamente o caráter de infinitude deste sertão: “O sertão é do tamanho do
mundo”191. O espaço assume uma extensão infinita que atinge, no limite, a absoluta
ausência de espaço: “O sertão é sem lugar”192. E culmina numa ausência de palavras
para descrevê-lo, que se torna uma pura indicação: “o sertão: o senhor sabe”193.
O termo paisagem tem origem na Europa do século XVI, inicialmente vinculado
à pintura e, mais tarde, a um estilo de jardim orientado pela busca de um retorno à
185 ROSA, J.G. (2001) p.23.
186 Idem, p.35.
187 BOLLE, W. (2004) p.82. 188 ROSA, J.G. (2001) p. 325. 189 ROSA, J.G. (2001) p.23.
190 FINAZZI-AGRÒ, E. (2001). 191 ROSA, J.G. (2001) p.89.
192 Idem, p.370. 193 Idem, p.406.
natureza194, referindo-se tanto a uma certa imagem do mundo, desde o início concebida
a partir de um determinado modo de olhar; como à idéia de uma organização, de um
conjunto. Na literatura, a paisagem vai progressivamente desvencilhar-se de um lugar
físico, e ser expressa como um espaço indissociável entre o subjetivo e objetivo195.
Atualmente, o termo incorporou-se a diversos outros meios, admitindo-se a
possibilidade paisagens musicais, literárias, geográficas, históricas, entre outras, o que
tornou o conceito transdisciplinar. Nas palavras do pesquisador francês Michel Collot, a
paisagem se constitui numa “encruzilhada onde se encontram elementos vindos da
natureza e a cultura, a geografia e a história, o interior e o exterior, o indivíduo e a
coletividade, do real e do simbólico.”196 Como na língua portuguesa, a palavra deriva
de país, e o sufixo age acrescenta a idéia de uma apreensão ou forma que permite tomá-
lo como um conjunto.
Desde a origem, o conceito estaria intrinsecamente ligado à subjetividade, pois a
paisagem não diz respeito ao retrato objetivo, mas, conforme Collot, a “um ponto de
vista”197, a um certo olhar que inclui não apenas a visão como sentido (lembremos do
aroma e sabor da madeleine, ligada a uma imagem do passado que, uma vez
reencontrados, despertam a memória involuntária e recriam a partir dela toda a
paisagem de recordações em Proust198). Como propõe Merleau-Ponty, a construção de
194 O jardim inglês estará também na origem do termo romântico e, segundo Antonio Candido, Rousseau, no séc.XVIII, pode ser considerado um precursor do Romantismo ao vincular a idéia de um “sentimento da natureza, a meditação e o movimento do corpo nos Devaneios do Passeante Solitário”. Cf. CANDIDO, A.(1993) p.261. A noção de uma paisagem subjetiva em movimento, como tento mostrar, estará no cerne do romance de Rosa. 195 COLLOT, M. (1997) p.7. 196“Le paysage est un carrefour où se rencontrent des éléments venus de la nature et la culture, de la géographie et de l’historie, de l’intérieur et l’extérieur, de l’individu et de la collectivité, du réel et du symbolique.” Cf. COLLOT, M. (1997) p.5, tradução minha. 197 Cf. COLLOT, M. (1997) p.13. 198 “Procurar? Não apenas: criar.(...) Certamente, o que palpita desse modo bem dentro de mim deve ser a imagem, a lembrança visual, que, ligada a esse sabor, tenta segui-lo até mim.” Cf. PROUST, M. (2002) p.49.
uma paisagem envolve uma pluralidade de sentidos que se dá através do corpo como
um todo e que, a partir do sensível, chega a atingir o invisível.199
Recentemente, a noção de paisagem vem sendo formulada por Collot através da
fenomenologia de autores como Husserl e Merleau-Ponty, que buscam explicar como se
dá a percepção deste conjunto, acrescentando ao conceito a idéia de uma junção entre o
mundo sensível e sua apreensão, na bela expressão do teórico alemão Erwin Strauss,
“um sentido dos sentidos”200. Isto significa que a paisagem apreendida pelos sentidos
seria, de antemão, em certa medida organizada pelo simbólico, excluindo-se a
possibilidade de uma pura percepção associada aos sentidos e totalmente desvinculada
de seu registro psíquico.
Em outro artigo intitulado “Du sens de L’espace à l’espace du sens”, Collot
propõe haver uma intuição da continuidade entre o espaço verbal e o espaço
extralingüístico201, intuição própria aos poetas e ao pensamento poético, inserindo-se no
centro da problemática sobre a ruptura e proximidade entre a linguagem e o mundo
discutida em diferentes formulações sobre a poesia na Modernidade, para ficar apenas
com autores anteriormente mencionados202, desde Michel Foucault, em As Palavras e
as Coisas, a Paul Valéry e Octavio Paz, que expõe a tensão não somente em seu
trabalho crítico, mas em sua poética, como se lê em “Carta a Léon Felipe”, de 1967:
...A escrita poética
é apagar o escrito Escrever sobre o escrito
o não escrito
199 MERLEAU - PONTY, M. Apud. COLLOT, M. (1997) p.199. 200 “un sens des sens” Apud COLLOT, M. (1997) p.200. 201 “Cette intuition d’une continuité entre l’espace verbal et espace extra-linguistique me semble une contance de la refléxion poétique contemporaine.” Cf. COLLOT, M. (1987) p.99. 202 Cf. FOUCAULT, M. (1999), VALÉRY, P. (1999) e PAZ, O. (1972). Os autores diferem quanto ao maior ou menor teor de aproximação e de ruptura entre a linguagem e o mundo que a poesia inscreve na Modernidade, sendo que, enquanto o primeiro, diferentemente de Collot, parece privilegiar o aspecto da cisão em suas análises; os dois últimos, poetas-críticos, tendem a considerar a questão como um conflito exposto pela própria poesia, como no poema citado acima. Ver também cap. 4 deste trabalho.
Representar a comédia sem desenlace Je ne puis parler d’une absence de sens sinon lui donnant un sens qu’elle n’a pas (...) O poeta Tu o dizes em tua carta é o que pergunta aquele que desenha a pergunta sobre o fosso e ao desenhá-la a apaga A poesia É a ruptura instantânea Instantaneamente cicatrizada Aberta de novo (...)Alguns querem mudar o mundo outros lê-lo Nós queremos falar com ele...
(PAZ, O., 1997, p.387-388)203.
A novidade da teoria sobre a paisagem estaria na forma de recolocar e explorar a
questão a partir do eixo entre a linguagem e o espaço, de supor este espaço
extralingüístico como um além do signo, uma abertura em contrapartida ao fechamento
do universo dos signos defendido por determinadas abordagens de um estruturalismo
que não apontam para nenhuma exterioridade às palavras204. A imagem poética ou
literária constitui, de acordo com esta concepção da paisagem, o meio privilegiado de
demonstrar este solo comum entre o mundo percebido e o simbólico: no poema de Paz,
a pergunta é desenhada num verso e apagada em seguida; a ruptura se abre e cicatriza,
mas não fecha, e o poema é estruturado numa disposição visual onde cada verso,
203 “...La escritura poética/ es borrar lo escrito/ Escribir/ sobre lo escrito/ lo no escrito/ Representar la comedia sin desenlace/ (...)/ La escritura poética es/ aprender a leer/ el hueco de la escritura/ em la escritura/ (...)/ El poeta/ lo dices em tu carta/ es el pregunton/ el que dibuja la pregunta/ sobre el hoyo/ y al dibujarla/ la borra/ La poesia/ es la ruptura instantânea/ instantáneamente cicatrizada/ abierta de novo/ (...)/ Algunos quieren cambiar el mundo/ otros leerlo/ nosotros queremos hablar com él... Cf. PAZ, O. (1997) p.387-388. Tradução de Cláudio Willer. Cf. WILLER, C. (2001), página eletrônica. 204 Cf. COLLOT, M. (1989) p.5-6. O autor menciona na introdução do livro assumir um distanciamento dos estudos literários da década de 70, que segundo ele censuravam qualquer alusão a elementos extra-textuais, por considerá-los suspeitos de reconduzir a uma ilusão referencial ou lírica.
iniciado à margem do anterior, cria um ritmo que acompanha este movimento, numa
alternância entre o ir e vir, a proximidade e a distância.
Seguindo esta proposição, a imagem poética consistiria na tentativa de expressão
de uma “paisagem de uma experiência”205, que coloca em jogo a idéia de uma
“estrutura do horizonte”206, horizonte que vem a ser o da escrita poética, da busca de
uma fala com o mundo realizada pela poesia e pelos poetas. Neste sentido, pode-se
afirmar que a estrutura do horizonte da poesia rompe com as disjunções tradicionais
entre “coisa ouvida” e “coisa pensante” ou entre espaço e linguagem207.
O horizonte assinala a dupla face da experiência perceptiva: o sentido, como foi
dito, que a define igualmente como uma experiência simbólica, já contida (mas não
determinada) numa simples apreensão de qualquer cena, diz Collot, na qual desde
sempre haveria uma série de relações entre os objetos que são igualmente percebidas e
fazem parte deste mundo simbólico, da linguagem208. E, de outro lado, uma ausência,
concebida por Lacan como própria ao registro do real, do que se apresenta como um
inassimilável na experiência do sujeito209, que aqui demarca uma linha de um invisível
absoluto ao qual a poética contemporânea não cessa evocar210, na sua insistência em
reenviar continuamente a novos sentidos, novos horizontes de sentidos:
ela não é a seus olhos (dos poetas) um limite provisório que se permite cruzar para descobrir o que segue à paisagem, mas sim a fronteira de um outro mundo destinado a permanecer desconhecido. (COLLOT, M., 1989, p.104). 211
Graças a este caráter de invisibilidade radical, acrescenta o teórico francês, esta
linha pode servir de metáfora a diversos domínios da experiência do invisível, dentre os
205 COLLOT, M. (1997) p. 201. 206 Idem, (1987) p.99. 207 Idem, ibidem. 208 Idem, p.100-101. 209 Cf. LACAN, J. (2008b) p.60. 210 COLLOT, M. (1989) p.103. 211 “elle n’est pas a leurs yeux une limite provisoire que l’on peut franchir pour découvrir la suite du paysage, mais bien la frontière d’un outre monde destiné à demeurer inconnu.” Idem, p.104.
quais se destaca a da profundidade do passado212, que tanto para a fenomenologia como
para a psicanálise (da mesma forma, também, no índice secreto do passado
benjaminiano) contém um horizonte, uma espessura:
...Husserl mostrou como cada momento que vem modificar aquele que o precedeu: o fenômeno da retenção não significa a conservação pura e simples da imagem do passado mas, ao contrário, a sua contínua transformação. (COLLOT, M., 1989, p.56). 213
A idéia de um passado vivo, que possui um porvir, de que as lembranças se
remexem, no dizer de Riobaldo, e que nos reenvia continuamente a novos horizontes –
tal como a busca riobaldiana pelo passado e a redefinição de memória que a acompanha
– leva à constatação de que há no passado uma dimensão escondida, irredutível à
rememoração, a que Collot nomeia como “a versão negativa da estrutura do horizonte
do passado”214.
Eis, segundo Collot, um dos pontos de interlocução entre a compreensão
fenomenológica do horizonte da paisagem e a teoria psicanalítica, que permite que o
Inconsciente seja comparado a um horizonte: a definição mesma de Freud, que demarca
simultaneamente a “parte obscura, impenetrável de nossa personalidade”215,
inacessível à consciência e a origem de onde provêm os sentidos que podem se tornar
conscientes. A noção de imagem se situa no centro deste paradoxo, reaproximando
horizonte e Inconsciente, pois o autor nos lembra duas idéias freudianas que
estabelecem a continuidade entre mundo sensível e linguagem, entre sentir e pensar, ou
entre imagem e palavra, exposta acima.
212 “C’est porquoi l’horizont peut servirde métaphore à tous ces seuils d’invisibilité absolue auxquels se heurte la conscience dans les divers domains de l’experience: tache aveugle du corps, mystère insondable de L’Être, profondeur du passé, indetermination de l’avenir, transcendance d’autrui”. Cf. COLLOT, M. (1989) p.104. 213 “Husserl a montré comment chaque moment qui vient modifie ceux qui l’ont précédé: le phénomène de la rétention ne signifie pas la conservation pure et simple de l’image du passe, mais au contraire sa continuelle transformation.” Cf. COLLOT, M. (1989) p.56. 214 Idem, p.59. 215 Citado por COLLOT, M., (1989) p.113.
A primeira seria a concepção de inconsciente como formado fundamentalmente
por representações-coisa, diversamente dos sistemas consciente e subconsciente, onde
se encontrariam as representações-palavra216. A noção de imagem que a representação-
coisa contém se abriria por si mesma a esta multiplicidade de significações que
transformam o inconsciente neste horizonte de sentido indefinido. Na mesma linha de
pensamento, a noção de traços mnêmicos, para Freud ligada a resíduos de experiências
do mundo sensível, que formarão parte do Inconsciente, igualmente articula a apreensão
do mundo pelos sentidos à memória, redefinindo, vale dizer, a experiência dos sentidos
e a memória como diversos de um registro objetivo do mundo e da representação
tradicional, distintos da idéia clássica de arquivo217, e fundamentando a noção de
paisagem como uma experiência relacionada à memória, situada sempre entre estes dois
registros, a percepção e a memória (ou o sentir e o pensar) tradicionalmente colocados
como excludentes.
Nesta perspectiva, a paisagem do sertão vai sendo construída como este lugar
impreciso, em sucessivas definições que não definem, onde um horizonte de sentido
leva a outro; formada subjetivamente por fragmentos, desejos, lembranças, mas também
por uma ausência, pelos vazios e lacunas que permanecem abertos: “Lugar sertão se
divulga: é onde os pastos carecem de fechos”218. Sob a mesma ótica, este Grande
Sertão se associa, ainda, à paisagem de “Os Cimos”219 que marca o desmedido momento
que parece transbordar de um processo de subjetivação, onde o Menino tem de se
confrontar com uma seqüência de ausências e presenças, iniciadas em “As Margens da
216 (Respectivamente Dingvorstellung e Wortvorstellung). Utilizo a tradução de Luiz Alfredo Garcia-Roza, que suprime a preposição “de” para evitar confusões entre os representantes psíquicos e a noção tradicional de representação. Cf. GARCIA-ROZA, L. (1991). 217 Cf. Capítulo 3 desta tese. 218 ROSA, J.G. (2001) p.24. 219 ROSA, J.G. (1988).
Alegria”220: aparecimento, morte – reaparecimento de outro peru, feroz – surgimento
intermitente da alegria, com a luz do vaga-lume.
Hiância que continua neste segundo conto, durante o trabalho do pássaro:
ausência da mãe doente, idas e vindas de outro pássaro, o tucano, volta para a mãe,
sarada, perda do macaquinho jogado fora, perdido “no sem-fundo escuro do mundo”221
e encontro do chapéu do bonequinho que compõe, em seqüência, um verdadeiro poema
sobre o fort-da freudiano222, nesse jogo de ausência e presença que reencena o trauma e
possibilita uma elaboração subjetiva: “feito o desenglobar-se de uma nebulosa”223. Ir e
vir como o movimento do macaquinho – o equivalente ao carretel do menino observado
por Freud – que é suposto passear lá, “na outra parte, aonde as pessoas e coisas
sempre iam e voltavam”224, e que traz para o Menino a miragem da completude
original:
Como se ele estivesse com a Mãe, sã, salva, sorridente, e todos, e o Macaquinho com uma bonita gravata verde – no alpendre do terreirinho das altas árvores... e no jipe aos bons solavancos... e em toda-a-parte... no mesmo instante só... o primeiro ponto do dia... donde assistiam, em tempo-sobre-tempo, ao sol no renascer e ao vôo, ainda muito mais vivo, entoante e existente – parado que não se acabava – do tucano, que vem comer frutinhas na dourada copa, nos altos vales da aurora, ali junto de casa. Só aquilo. Só tudo... (ROSA, J.G., 1988, p.159-160).
No entanto, a paisagem dos cimos, da plenitude da origem, é a que resta
desmedida, a não caber na representação ou linguagem tradicionais: “paisagem e tudo,
fora das molduras”225. A beleza da escrita de Rosa é justamente conseguir falar deste
descabimento através da sua poética, produzir este efeito de apontar o intangível através
220 Idem. 221 Idem, p.159. 222 FREUD, S. (1976). 223 ROSA, J.G. (1988) p.159. 224 Idem, ibidem. 225 ROSA, J.G. (1988) p.159.
das palavras226. O caráter desmedido, de resto e de origem ao mesmo tempo, fica mais
claro com a comparação com a “nenhuma parte” da “Terceira-Margem do Rio” e com
o lá de “Lá, nas Campinas”227, dois contos de Rosa nos quais o espaço já foi apontado
como metáfora do Inconsciente.
Ambos falam deste local como origem. No primeiro conto, trata-se do local de
exílio do pai, que parte numa canoa, rio afora, num terceiro espaço, intermediário entre
as duas margens: “naqueles espaços do rio, de meio a meio”228. “Ele não tinha ido a
nenhuma parte”229. O adjetivo nenhum figura como expressão deste impossível lugar
paterno ao qual o filho, inconformado com a perda, tenta, em vão, ocupar, substituir o
lugar do pai naquela canoa230. Segundo Perrone-Moisés:
De modo recorrente, quando o escritor se refere a esse “lugar” psíquico onde agem a memória e o desejo, ele o qualifica como “nenhum”, e usa, como metáfora, o outro lado de uma paisagem montanhosa. (PERRONE-MOISÉS, L., 2002, p.210).
Já em “Lá, nas Campinas”, este lá é associado à terra perdida da infância que o
personagem Drijimiro tenta reencontrar na recordação: “Vinha-lhe a lembrança – do
último íntimo, o mim de fundo”231 e da qual resta a frase: “Frase única, ficara-lhe, de
no nenhum lugar antigamente: Lá, nas campinas”232. Novamente, surge o termo
nenhum, pontuando a negatividade dos lugares que a mesma autora qualificou de
“nenhures”233, a partir da formulação de Lacan de que ao Inconsciente, “o nome de todo
lugar convém tanto quanto o de nenhum lugar”234, e que consistem em lugares apenas
226 Neste aspecto, vale a transcrição de Leyla Perrone-Moisés, quando afirma que “enquanto os psicanalistas sabem muito, os poetas sabem tudo”. PERRONE-MOISÉS, L. (2000) p.279. 227 Respectivamente em ROSA, J.G. (1988), (1985). 228 Idem, ibidem. 229 ROSA, J.G. (1985) p.33. 230 Para uma análise de ambos os contos sob a perspectiva das relações entre esta topologia do inconsciente e a melancolia, ver o capítulo 3 deste trabalho. 231 ROSA, J.G. (1985) p.97. 232 Idem, ibidem. 233 PERRONE-MOISÉS, L. (2002) p.210. 234 LACAN, J. Apud. PERRONE-MOISÉS, L. (1990) p.111.
no sentido de uma representação metafórica do Inconsciente, nunca em termos de
localização cerebral235.
No conto, onde o personagem, tendo passado “por incertas famílias e mãos; o
que era comum quando vêm esses pobres”236, repete a vida toda esse resíduo de sua
obscura origem como um refrão, este lá é comparado pela mesma autora ao “Wo Es
War” de Freud, relido por Lacan como “Lá onde era”, o lugar a partir de onde um
sujeito pôde advir:
... A rememoração (...) é um problema do sujeito, que necessita voltar para “lá, onde era”, segundo a famosa formulação de Freud: “Wo Es war, soll Ich werden”, que Lacan traduz e examina como “Là où c’était, le sujet doit advenir” (Lá onde era, o sujeito deve vir a ser)... (PERRONE-MOISÉS, L., 2000, p.275).
Além do enunciado cifrado, o personagem guardava na memória fragmentos de
lugares: “Largo rasgado de um quintal, o chão amarelo de oca, olhos d’água jorrando
de barrancos”237 e nenhuma lembrança de pessoas. Nota-se, portanto, que esta
paisagem rosiana envolve um espaço intrincado entre o objetivo e o subjetivo; mas,
sobretudo, evoca um local de origem que não se confunde com o passado cronológico.
Como salienta Perrone-Moisés, a partir da leitura de Lacan da teoria freudiana; lá
concerne não apenas à história familiar e edipiana de uma vida e, sim, ao impossível
lugar de origem a que todos tentamos alcançar: “à origem ontológica de que todos os
homens são órfãos, não por terem perdido uma completude anterior, mas por serem
constitutivamente incompletos.”238 Este lá será pensado, portanto, como nenhum,
ausência, enigma constituinte do humano, como centro a partir do qual um isso – da
mesma forma que o sertão: é isto de Rosa, esbarra na impossibilidade de definição, pois
235 Idem, p.211. 236 Idem, p.98. 237 ROSA, J.G. (1985) p.97. 238 PERRONE-MOISÉS, L. (2000) p.273.
não consiste objetivamente numa positividade, sendo apenas possível apontá-lo, isso, ou
lá, de onde eu vim... – pôde dar lugar a um sujeito, e que pressupõe, conforme já
começamos a perceber, outras temporalidades envolvidas.
Uma vez considerados alguns aspectos da topologia deste cenário rosiano, resta
indagar como, no GSV, as diversas referências ao tempo histórico (apresentadas no
início do capítulo) participam da configuração ou do desenho deste mapa subjetivo; ou
talvez, como o tempo se conjuga ao espaço, e que formas do tempo se colocam em
cena. Enfim, tendo em vista a marcante proximidade que o texto estabelece entre estes
inomináveis e a memória, cabe perguntar que outras concepções podem lançar luzes
sobre as sombras deste rememorar rosiano?
Retrato negativo
Sempre no gerais, é à pobreza, é à tristeza. Uma tristeza que até alegra. JOÃO GUIMARÃES ROSA
Em Português, o termo paisagem surge alguns anos após o seu aparecimento na
Europa, mas a idéia de construção de uma paisagem nacional somente chegará ao Brasil
com os viajantes do início do século XIX, acolhida por uma classe dominante ávida em
fornecer substrato cultural a um Estado recém-independente239. De acordo com Flora
Sussekind, a obra de Guimarães Rosa, ao lado de escritores como Machado de Assis, se
insere num momento da produção literária nacional em que, já tendo “retratado” a
geografia e a história do país, o narrador rompe com a perpectiva fixa, e introduz a
ambigüidade em relação ao que é narrado, transformando-se, ele próprio, em
paisagem.240
239 Cf. BOLLE, W. (2004) p. 49. 240 SUSSEKIND, F. Apud. BOLLE, W. (2004) p.49-54.
Willi Bolle considera o Grande Sertão como parte da série retratos do Brasil,
um gênero derivado do livro homônimo de Paulo Prado, de 1928241, que teria início
com Os Sertões242, de Euclides da Cunha, e estaria ao lado de obras como Casa-Grande
e Senzala243, de Gilberto Freyre e Raízes do Brasil244, de Sérgio Buarque de Holanda,
cujos autores são todos considerados legítimos pensadores do Brasil, e suas obras
bastante reveladoras da cultura brasileira. No que concerne ao GSV, este retrato não
pode ser tomado como registro objetivo; e sim, como nos induz a pensar Bolle, em
artigo onde distingue o ponto de vista do narrador-personagem rosiano, situado a partir
da memória de um jagunço, do interior, e do plano mais baixo do sertão,“ao nível da
estrada e do rio”245, em contraste com o olhar de “sobrevôo”246 do observador que
pretende uma visão geral, do alto, exterior aos acontecimentos, representado por
Euclides da Cunha em Os Sertões. Em contrapartida, o retrato de Rosa do país pode ser
visto como o negativo ou contraponto de sua época, a partir do olhar crítico do escritor
sobre um determinado contexto histórico do Brasil.
Além das já demonstradas noções de infinitude e de negatividade, podem ser
considerados, então, como traços da paisagem no GSV, primeiramente (em ordem
aleatória): a idéia do mundo misturado, que como se verá, guarda ressonâncias com
aspectos históricos. Mas, num primeiro momento, é preciso observar como esta noção
toma conta do espaço, reunindo, ao mesmo tempo, um cenário de um inferno próximo e
uma imagem do paraíso, construída pelo universo do sonho, onde o amor deixou seus
rastros numa natureza exuberante, para que o sujeito possa emergir como intérprete. É o
que o narrador tenta comunicar a seu hóspede:
241 Apud. BOLLE, W. (2004) p.23-24.
242 Idem, p.35.
243 Apud BOLLE W. (2004) p.24.
244 HOLANDA, S.B. (1995). 245 BOLLE, W. (1994-1995) p.85. 246 Idem, ibidem.
Lhe mostrar os altos claros das Almas: rio despenha de lá, num afã, espuma próspero, gruge; cada cachoeira, só tombos. O cio da tigre preta na Serra do Tatú – já ouviu o senhor gargaragem de onça? (...) Quem me ensinou a apreciar essas as belezas sem dono foi Diadorim...(...) Quando o senhor sonhar, sonhe com aquilo. Cheiro de campos com flores, forte, em abril: a ciganinha, roxa, e a nhiíca e a escova, amarelinhas... (ROSA, J.G., 2001, p. 42).
Contraponto ao horror da guerra e todo o Mal inerente à vida do sertão, esta
paisagem idílica só se torna visível através do amor por Diadorim, que o faz sonhar um
sertão, para além da lógica tradicional, insuficiente para compreender aquela realidade:
Por mim, só, de tantas minúcias, não era o capaz de me alembrar, não sou de à parada pouca coisa; mas a saudade me alembra. Que se hoje fosse. Diadorim me pôs o rastro dele para sempre em todas essas quisquilhas da natureza. (ROSA, J.G., 2001, p. 45).
Junto a esta, outra linha do desenho deste sertão se move entre a ruína, a miséria
absoluta dos catrumanos, a violência extrema que esculpe os corpos à faca, presente na
imagem do jagunço sem orelha, ou dos hermógenes cortando os próprios dentes no
acampamento. No extremo oposto, as imagens irônicas sobre o progresso futuro,
expressas em sua maior parte no projeto e anseios de Zé Bebelo: de pontes, de fábricas e
escolas que virão “remediando a saúde, preenchendo a pobreza”247, riscam um espaço
onde ainda convivem diferentes contradições e ambigüidades próprias à história e
cultura do país.
A presença de uma pura plasticidade ou reversibilidade das coisas e seres, que
Rosenfield conceitua como princípio relacionado à questão do Mal e da versão e
reversão do nada em tudo248, cujo lema: “tudo é e não é”249 insere-se também no
espaço através da sentença: “sertão: tudo certo, tudo incerto”250. Aqui, o primeiro
aspecto que chama a atenção, e através do qual a descrição do espaço se conjuga ao
tempo, é que a paisagem, construída a partir da memória, vai sendo descrita de acordo
247 Idem, p.147. 248 ROSENFIELD,K. (1993); (2006). 249 ROSA, J.G. Op. Cit., p.27. 250 Idem, p.172.
com o deslocamento do narrador e, em boa parte do texto, esse movimento coincide
com a errância, entre ataques e fugas, do bando de jagunços: é neste “desfile” que os
lugares e personagens encontrados pelo caminho vão descrevendo o sertão, por isso
também a paisagem é sempre movente, sempre outra, como o desejo de Riobaldo:
“Viajar! – mas de outras maneiras: transportar o sim desses horizontes!...”251
Trata-se, ainda, de uma geografia onde não apenas os lugares, por fazerem parte
do passado, da memória, igualmente se remexem: “Sertão é isto: o senhor empurra
para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados.”252 Mas, de uma
dimensão na qual a mobilidade dos sentidos do sertão, das infinitas descrições que não
descrevem (tais como as definições que não definem, de Finazzi-Agrò253), apontam
algo, reenviando sempre a outros sentidos. Ao apresentar um espaço primordial, um
não-espaço, um não-lugar, o texto nos traz de volta o horizonte do inconsciente de
Freud, que guarda outra semelhança com este curioso espaço do sertão: os
representantes da pulsão que compõem o Inconsciente, segundo Freud, são igualmente
“isentos de contradição mútua”254, ligando-se e religando-se com liberdade, daí a
versão e reversão do Mal em bem, do nada em tudo, e a já comentada angústia do
narrador em relação a este mundo tão misturado.
Entretanto, esse não-espaço se inscreve como uma falta da própria origem, que
não é apenas referida a uma vida, mas à origem do país; a partir da leitura da história
como fracasso e ruína, e de sua inserção nesta paisagem, o escritor inverte a tentativa da
historiografia de encontrar na geografia o sentido da história (aquela que naturaliza a
pobreza, explicando-a de acordo com características geográficas da região)255, ou até
251 Idem, p.407. Para uma associação entre a paisagem da memória e as anotações de viagem do escritor, cf. capítulo 4 desta tese. 252 Idem, p.302. 253 Cf. p.42 desta tese. 254 FREUD, S. (1988a) p.191. 255 Cf. FINAZZI-AGRÒ, E. (2001) p.77-79.
mesmo a pretensão de definir uma origem da nossa história, pois o que mais se
evidencia neste trabalho de rememoração é que ele promove um deslocamento
permanente desta suposta origem, reescrevendo outras histórias a partir do mapa
subjetivo da memória, o que significa o mesmo que apontar que o que falta é a própria
origem, na medida em que ela é sempre outra.
Ao começar sua história literalmente pela morte, que não é apenas de Diadorim,
mas a destruição, vinda de muitos lados, a violência, a doença, a miséria, o choque do
progresso, a cidade que vem acabar com o sertão; Guimarães Rosa também ultrapassa a
definição de metáfora inerente à paisagem, pois a concebe como uma metáfora
perpassada pela história, pela ação do tempo, uma alegoria de um determinado
momento histórico, construída através da memória deste narrador-testemunha.
Raízes e resíduos do país
Aqui tudo parece que ainda é construção e já é ruína. LÉVI-STRAUSS
Mas, começar a história pela morte revela uma outra afinidade com a concepção
benjaminiana da história, que enxerga no processo e na escrita da história uma dimensão
trágica, de catástrofe e ruína, onde a história conhecida é a história dos vencedores: “os
que num momento dado dominam são os herdeiros dos que venceram antes.”256 A
imagem benjaminiana para esta vitória não poupa materialismo: “Todos os que até hoje
venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os
corpos dos que estão prostrados no chão.”257 A história que se constrói a partir da
morte dos vencidos é movida pelo progresso, é o que mostra a imagem do anjo da
história, o Angelus Novus, inspirado no quadro de Paul Klee, que, segundo Benjamin,
256 BENJAMIN, W. (1986e) p. 225. 257 Idem, ibidem.
ao ser atingido pela tempestade chamada progresso, é impelido para o futuro, mas volta
seu olhar para o passado, onde vê somente uma catástrofe e ruínas:
... Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter este aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés... (BENJAMIN, W., 1986e, p.226).
Este olhar voltado para o passado pressupõe certa desconsideração com o tempo
cronológico, mas significa algo bem mais complexo do que uma suposta ausência de
referência ao contexto histórico258, tanto em Benjamin como no enredo rosiano. Como
já se começou a demonstrar, a história para Benjamin se desenrola em camadas ou
superposições de tempos, distintas do tempo sucessivo e linear: “A história é objeto de
uma construção, cujo lugar não é formado pelo tempo homogêneo e vazio, mas por
aquele saturado pelo tempo-de-agora (Jetztzeit).”259 A noção de um tempo-de-agora,
comparável ao kairos260, tempo oposto a Chronos, chamado pelos gregos momento
certo, momento oportuno; aqui, se refere à idéia do potencial revolucionário do passado,
pois a revolução é comparada ao “salto do tigre em direção ao passado”261, onde cada
momento guarda consigo um passado, um presente e um futuro interligados, e o salto
consiste em avançar até a origem, recuperar do esquecimento um passado vencido e
interromper a marcha da catástrofe e do progresso:“Porque todo minuto poderia ser
uma origem”262.
258 Ver também “Le Maintenant de la Possibilité de la Connaissance”, in: BENJAMIN, W. (2003) p.451-452. 259 BENJAMIN, W. (1986e). 260 LÖWY, M. (2005) p.119. 261 BENJAMIN, W. (1986e) p.120. 262 Trata-se do conto “O Mau Humor de Wotan”, publicado em 1948, onde encontram-se vestígios autobiográficos da estadia de Rosa como cônsul-adjunto na Alemanha durante a Segunda Guerra. Aqui, a idéia da possível origem a cada instante relaciona-se com os fatos que culminaram na morte do amigo do narrador no conto, “o menos belicoso dos homens”, o alemão Hans-Helmut Heubel, amigo de Rosa em Hamburgo, enviado para a guerra sem treinamento algum. Cf. ROSA, J.G. (1970) p.5. Sobre os aspectos biográficos, conferir o artigo da antropóloga e crítica Ana Luisa Martins Costa e o ensaio e documentário ainda inédito de Adriana Jacobsen. COSTA, A. L. M. “Veredas de Viator”. In: GALVÃO, W.N.; COSTA, A.L.M. (2006). JACOBSEN, A.; VILELA, S. “Outro Sertão”. Idem.
Considerando-se esta outra dimensão do tempo, oposta ao tempo cronológico, é
preciso ver um pouco mais detalhadamente como se caracteriza este olhar para o
passado no romance de Rosa; em outras palavras, como a história pode ser pensada na
escrita rosiana? Embora enredadas na ficção, as referências históricas do GSV estão no
texto: a de guerras antigas, passadas nas eras de 1879263; e a menção, situada no tempo
da vida jagunça, à passagem da Coluna Prestes pela região264 que, conforme se sabe,
cruzou o interior do país entre os anos de 1925 e 1927. O que leva a crer que, se a
juventude do narrador é datada na década de vinte, a velhice, no presente da narrativa,
pode situar-se em torno dos anos cinqüenta, coincidindo também com a época em que o
texto é elaborado, levando-se em conta que o livro foi publicado em 1956.
Ora, em plenos anos cinqüenta – marcados pelo projeto desenvolvimentista da
era Juscelino Kubitscheck, pelo lema cinqüenta anos em cinco, que encontrou seu
clímax na construção de Brasília, pelo intenso crescimento das cidades – é curioso como
o olhar do artista se volta para os esquecidos da história; e quem seriam eles? Toda a
sua obra é construída por personagens rurais, de um Brasil interior e arcaico, habitantes
de pequenos vilarejos, fazendas, taperas isoladas no meio do mato ou ribeirinhas. São
loucos, como em “Sorôco, sua mãe, sua filha”265, estranhos, como em “A Menina de
Lá”266, e mais uma série de peões, mestiços, jagunços, bandidos, prostitutas; em poucas
palavras, são figuras do desterro e do desamparo, como Miguilim267, que termina a saga
de infeliz infância sendo levado pelo moço, para morar na cidade... São representantes
dos que ficaram mantidos à margem da história, e que o GSV reúne num universo
único, como restos, resíduos a quem o Brasil modernizado não concedeu lugar
263 ROSA, J. G. (2001) p. 128. 264 Idem, p.114. 265 ROSA, J.G. (1988). 266 Idem, ibidem. 267 Idem, (2001b).
apropriado268; transformados, agora, na ficção, em protagonistas principais da outra
estória.
Inúmeras passagens dão nota do olhar sensível do narrador diante do “estatuto
de misérias e enfermidades”269, não apenas da vida jagunça, mas dos sertanejos tão
sofridos que vão sendo encontrados pelo caminho do bando, como a fila de doentes que
vinham pedir milagre: “lázaros de lepra, aleijados, por horríveis formas, feridentos, os
cegos mais sem gestos, loucos acorrentados, idiotas, héticos e hidrópicos, de tudo:
criaturas que fediam”270. Pobreza que atinge desde os moradores, contrastados em
honestidade em relação aos jagunços: “pai de família faminta. Coisas sem
continuação”271; aos jagunços rivais, presos pelos companheiros de Riobaldo: “Senti
pena daqueles pobres, cansados, azombados, quase todos sujos de sangues secos – se
via que não tinham esperança nenhuma decente.”272 Uma condição em que à
destituição se alia à tristeza: “Jagunço é homem já meio desistido por si”273.
Supor que esta paisagem é composta por referentes da história do país,
entretanto, não reenvia a nenhuma idéia de memória como registro fiel dos fatos: “Pois
o importante, para o autor que rememora, não é o que ele viveu, mas o tecido de sua
rememoração, o trabalho de Penélope da reminiscência.”274 O passado não é o vivido,
diz Benjamin275, mas tampouco esta rememoração se esgota na lembrança. Pois lá, na
origem, no fundo, como tento demonstrar, o que se insinua no texto de Rosa é o
esquecimento, e não apenas da noite que desfaz o dia, como pondera Benjamin sobre o
apagamento da lembrança, o trabalho do esquecimento, que substitui o trabalho da
memória e é mencionado a partir da obra de Proust: “Ou seria melhor falar no trabalho 268 STARLING, H. (1999) p.16. 269 ROSA, J.G. (2001) p. 75. 270 Idem, ibidem. 271 Idem, p.88. 272 Idem, p.150. 273 Idem, p.67. 274 BENJAMIN, W. (1986) p. 37. 275 Idem, p.37.
do esquecimento?”276 Mas o esquecimento como suposto ponto de origem de toda
memória, como o mesmo autor leva a pensar quando situa a imagem involuntária no
mundo das correspondências, numa “camada especial, a mais profunda (...) na qual os
momentos da reminiscência (...) não mais isoladamente, com imagens, mas informes,
não visuais, indefinidos e densos, anunciam-nos um todo”277.
Sendo assim, é preciso destacar a forma como aparecem, no GSV, as referências
à história do país; não como fatos isolados, mas como fragmentos, sempre atrelados à
subjetividade de alguém que recorda: o ano de 1979 consta da lembrança de Selorico
Mendes sobre a invasão de Januária e Cariranha, e a passagem da coluna Prestes é
evocada através do testemunho do narrador que, a respeito do acontecimento histórico,
conta o que dele pode restar: “Muitos anos adiante, um roceiro vai lavrar um pau,
encontra balas cravadas”278. Aqui, o que prevalece não está na ordem de uma pretensa
objetividade do fato em si, mas sim neste olhar crítico diante de um contexto específico,
que surge na ficção através das recordações do narrador e de outros personagens, como
resíduos, pedaços de um Brasil, dissolvidos entre lacunas e elementos da fantasia; como
o narrador descreve, melhor do que ninguém, quando se afirma incapaz de narração:
“retrato de pessoas diversas, ressalte de conversas tolas, coisas em vago...”279.
Cabe pensar de que forma estes fragmentos funcionam como índices de uma
tentativa de reescrever nossa história e origem numa linguagem que, como se verá,
aponta o tempo inteiro para o seu mais além, para uma ausência ou esquecimento. A
visão do escritor sobre seu tempo traz o questionamento benjaminiano sobre o passado,
uma reescrita que pressupõe “escovar a história a contrapelo”280, apontada pelo
filósofo como tarefa do historiador materialista, distinta do historicista (aquele que vê
276 Idem, ibidem. 277 Idem, p.49. 278 ROSA, J.G. (2001) p. 66. 279 Idem, p.221. 280 BENJAMIN, W. (1986e) p. 225.
na história uma cadeia linear de fatos), pois evita estabelecer uma relação de empatia
com os vencedores da história, e busca, através deste passado esquecido e vencido,
“despertar no passado as centelhas da esperança”281.
Segundo o capítulo “Memória e Libertação”, de Jeanne Marie Gagnebin, a
respeito da vida e obra de Benjamin: “O historiador materialista (...) pretende fazer
emergir as esperanças não realizadas desse passado, inscrever em nosso presente seu
apelo por um futuro diferente”282. A tarefa do historiador envolve, deste modo, uma
temporalidade que conjuga os três tempos, onde o passado traz uma ligação com o
presente e o futuro, visto pela mesma autora como o futuro do passado, daquilo que
teria podido acontecer, ou que requer retirar do esquecimento: “aquilo que teria podido
fazer da nossa história uma outra história”283. Ao revolver a fundo a história do país,
trazendo de volta nossos conflitos esquecidos entre o campo e a cidade, a lei urbana e o
costume do sertão, Guimarães Rosa compartilha da visão apontada pela mesma autora
como sendo comum a Benjamin, Freud e Proust (embora cada um a desenvolva a seu
modo): “da mesma convicção de que o passado comporta elementos inacabados; e,
além disso, que aguardam uma vida posterior, e que somos nós os encarregados de
fazê-los reviver”284.
Certamente, as imagens inequívocas do cortejo triunfal da história no romance
de Rosa se encontram na marcha das cidades, do progresso, e na máquina do governo
que avançam sobre o sertão: “Ah, tempo de jagunço tinha mesmo de acabar, cidade
acaba com o sertão. Acaba?”285 Conflito que o escritor reformula através desta
construção formal igualmente repetida no texto, na qual à afirmação segue-se a sua
interrogação não respondida, e que produz como efeito um corte ou uma suspensão no
281 Idem, p. 224.
282 GAGNEBIN, J.M. (1982) p.71. 283 Idem, p.60. 284 GAGNEBIN, J.M. (1982) p.71.
285 ROSA, J.G. (2001) p.183.
discurso do avanço do progresso286, colocando em relevo a dialética e o movimento
inerente ao processo de choque entre a cidade e o campo, ao conflito armado entre a lei
do governo e a lei do sertão, à guerra entre soldados e jagunços, e expondo o ponto de
vista dos últimos em relação aos primeiros:
Mas, quem era que podia explicar isso tudo a eles, que vinham em máquina enorme de cumprir o grosso e o esmo, tendo as garras para o pescoço nosso mas o pensante da cabeça longe, só geringonçável na capital do Estado? (ROSA, J.G., 2001, p. 319).
Através deste olhar crítico do narrador, lê-se um misto de sonho e ironia em
relação ao processo de modernização vigente na época, pois Riobaldo também sonha
com a cidadania de uma cidade mais justa que o sertão: “eu tinha raiva surda das
grandes cidades que há, que eu desconhecia. Raiva – porque eu não era delas,
produzido”287. São imagens de uma promessa que não chegará ao sertão, de trens que
não virão e do contraste entre a falta de pontes e a cidade na qual o senhor vive: “no
carro de bois, levam muitos dias, para vencer o que em horas o senhor em seu jipe
resolve. Até hoje é assim...”288
Afinal, para Riobaldo, o “progresso moderno”289 é uma “ilusãozinha”290 que
não resolve, mas seria até “bom, se fosse verdade”291. Se cada época guarda um
segredo, como soube dizer Benjamin292, o autor constrói, na ficção, a reescrita da
história, revelando, pelo avesso, alguns segredos perdidos pelo discurso
desenvolvimentista do período, que – diferentemente da origem em si mesma, tratada
por Rosa como enigma – podem ser revelados: a violência nos embates entre o campo e
286 Leyla Perrone-Moisés fala na suspensão do discurso do narrador no sentido do corte lacaniano, que aponta para a ausência de sentido, a possibilidade de criação novos sentidos, no final do conto “Lá, nas Campinas”, citando Rosa: “...Mas não acho as palavras.” Cf: PERRONE-MOISÉS, L. (2000) p.278. 287 ROSA, J.G. (2001) p. 533. 288 Idem, p. 118. 289 Idem, p.140. 290 Idem, ibidem. 291 Idem, ibidem. 292 BENJAMIN, W. (1986a) p. 40.
a cidade, entre o arcaico e o moderno, a marcha de um crescimento desigual, e a
ausência de diálogo entre os personagens do interior e a máquina distante do governo.
Das lembranças de guerra: esses tontos movimentos
O grande sertão é a forte arma. Deus é um gatilho?
JOÃO GUIMARÃES ROSA
Ao se abordar a forma como a violência surge articulada à memória no GSV, as
primeiras questões que sobressaem se situam dentro da recusa de Riobaldo em narrar a
guerra, diversas vezes repetida ao longo de sua fala. Afinal, trata-se do recalcado, que
ele não deseja rememorar, ou de algo que, comparado com outros acontecimentos de
sua vida, não é digno de ser narrado? A princípio, pode-se dizer que toda a memória
sobre a violência e a guerra é traumática; ou o seu oposto, a guerra tornou-se trivial, e
tudo que se refere a ela não passa de “tontos movimentos”293? Além disso, como
considerar as lembranças de guerra, tendo em vista as elaborações já iniciadas entre
memória e história, realidade e ficção, já que é em torno da violência que giram as
referências mais próximas à história do país, as Lembranças do Brasil294, como quer o
título do livro de Heloísa Starling?
Como sempre, o próprio narrador fornece algumas trilhas de compreensão, no
momento em que confessa, durante uma inexplicada viagem de Diadorim, sua angústia
diante da ausência do outro, chamando-a de “mordido e remordido sofrimento”295, no
qual o “remordido” dá a dimensão de algo que – mesmo no presente da narrativa – não
pode ser esquecido facilmente, algo relacionado ao trauma e à melancolia. Contraposto
293 ROSA, J.G. (2001) p. 245. 294 STARLING, H. (1999). 295 ROSA, J.G. (2001) p.245.
àquele, é o “sofrimento legal padecido”296, que Riobaldo atribui, na mesma passagem,
às guerras, diminuídas em relevância quando comparadas ao sentimento por Diadorim.
Leyla Perrone-Moisés parece tratar da mesma diferença, quando associa outra
oposição riobaldiana entre a “saudade da idéia e saudade do coração”297; separando, de
um lado, as lembranças conscientes, a saudade das alegrias e do companheirismo entre
os jagunços, e do outro, a melancolia sentida em relação a Diadorim:
Não resta dúvida de que a saudade maior de Riobaldo, como a de Drijimiro, é ‘saudade de coração’, não aquela que se cultiva como lembrança, mas aquela que dói sem remédio. (PERRONE-MOISÉS, L., 2000, p. 266).
A autora se vale aqui da distinção feita por Lacan entre a memória consciente, e
o inconsciente como fundamento do processo de rememoração, comparado ao chamar o
sujeito de volta para casa, no inconsciente:
... A rememoração não é a reminiscência platônica, não é o retorno de uma forma, de uma impressão, de um eidos de beleza e de bem que nos vem do além, dum verdadeiro supremo. É algo que nos vem das necessidades da estrutura, de algo humilde, nascido no nível dos baixos encontros e de toda turba falante que nos precede, da estrutura do significante... (LACAN, J., 2008b, p.53).
Diferença que, no romance, lança luzes sobre o que pode permanecer na ordem
da recordação traumática298, e o registro das lembranças que, posteriormente, não são
consideradas importantes – seja porque destituídas de valor subjetivo para o narrador:
“isso de guerra é mesmice, mesmagem”299; ou porque, mesmo tendo sido marcadas sob
o signo do trauma, puderam ter o esquecimento (possível) como resultante de um
trabalho de elaboração – lembre-se da fala de Riobaldo a este interlocutor silencioso
como possível metáfora de uma situação de análise. Tal esquecimento significaria
296 Idem, ibidem. 297 Idem, p.43. 298 Pois, como ainda veremos, este lá refere-se a um (des)encontro com o real do trauma, e o retorno diz respeito ao inconsciente como repetição. 299 ROSA, J.G. (2001) p.319.
também o que permite que se passe de uma recordação a outra, que se produza um
movimento ou um deslizamento de um sentido a outro. Ou, na formulação de Weinrich
inspirada em Freud, trata-se de diferenciar o esquecimento não-apaziguado, vinculado à
resistência do recalque, do esquecimento apaziguado300, que passou por um trabalho de
rememoração, onde a arte da memória se aproxima da arte de poder esquecer. Por ora,
demarcar esta diferença é o que basta para deixar, por um momento, a melancolia de
lado, e voltar à violência, já que, certamente, ambas ainda retornarão como subtítulos na
agenda da memória deste Grande Sertão.
A despeito da crítica manifestada pelo narrador repetidamente ao descrever os
detalhes das guerras, equiparadas por ele à dimensão objetiva da vida: “Vida e guerra, é
o que é: esses tontos movimentos”301; as lembranças de guerra efetivamente compõem
seu relato: “o senhor exigindo querendo, está aqui que eu sirvo forte narração – dou o
tampante, e o que for – de trinta combates. Tenho lembrança”302. E ele não poupa nem
a si mesmo quando se trata de admitir os próprios crimes, incluindo os dois estupros que
cometeu303; desaprovando, contudo, a violência já na época, como demonstra ao
compartilhar o sonho de sertão pacificado de seu amigo Zé Bebelo: “A gente devia
mesmo de reprovar os usos de bando em armas invadir cidades, arrasar o comércio,
saquear na sebaça.”304
Sobre este ponto, é preciso frisar que, retomando a questão do olhar do escritor
sobre estes personagens, ao inserir na história o ponto de vista dos jagunços, o texto não
incorre numa visão ingênua; tampouco caracterizar o olhar do escritor como sensível
significa propor que ele os transforme em vítimas da violência:
300 WEINRICH, H. (2001) p.191. 301 Idem, p. 245. 302 Idem, ibidem. 303 Idem, p. 189. 304 Idem, p.146.
Remorso? Por mim, digo e nego. Olhe: légua e outra, daqui, vereda abaixo, tigre cangussú estragou e arruinou a perna do Sizino Ló, (...). Comprou-se para ele, então, uma boa perna de pau. Mas, assim, talvez por se ter sacolejado um pouco do juízo, ele nunca mais quer sair de casa, nem se levanta quase do catre, vive repetindo e dizendo: – “Ái, quem tem dois tem um, que tem um não tem nenhum...” Todo o mundo ri. E isso é remorso? (ROSA, J.G., 2001, p.233).
No entanto, a discussão sobre o remorso situa-se numa passagem enigmática,
onde Tatarana, nessa que parece ser sua primeira batalha, entra numa espécie de transe e
atira automaticamente: “Eu olhava aquele bom suor, nas costas do Garanço. Ele
atirava. Eu atirava.”305 Tendo em frente o tempo todo as costas do amigo: “Aí, eu
estava escutando. Eu olhei. Olhava para as costas do Garanço, ela, a mancha, estava
ficando de outra cor... O suor vermelho... Era sangue!”306 Os textos seguintes: “Narrei
miúdo, desse dia, dessa noite, que dela nunca posso achar o esquecimento. O jagunço
Riobaldo. Fui eu? Fui e não fui. Não fui! – porque não sou, não quero ser.”307 E:
“porque dó de amizade é num sofrerzinho simples, e o meu não era”308, deixam “no ar”
se o seu questionamento envolve, direta ou indiretamente, a morte do companheiro.
Ainda em relação à decisão colocada entre narrar a guerra ou narrar as coisas
importantes; ela parece insinuar, além de uma crítica ao que merece ser contado, uma
diferença, que mais uma vez desvincula a memória da noção de realidade factual, pois o
que fica na memória como trauma pode estar, ou não, relacionado à guerra. É inegável,
contudo, que a violência se articula com a problemática do Mal e, sobretudo, se inscreve
também como trauma, relacionado a algo que se produz como um excesso309, que
sempre escapa à representação e à lembrança: “porque o extenso de todo sofrido se
305 Idem, p.230. 306 Idem, ibidem. 307 Idem, p.232. 308 Idem, p.234. 309 Em “Além do Princípio do Prazer”, encontra-se tanto a idéia do excesso como a de uma fixação do sujeito no trauma, na proposição retomada por Freud, de que: “os histéricos sofrem principalmente de reminiscências.” Cf. FREUD, S. (1976) p.24.
escapole da memória”310, levando o ex-jagunço a duvidar da possibilidade de
esquecimento do que é relacionado ao Mal:
... Informação que pergunto: mesmo no Céu, fim de fim, como é que a alma vence se esquecer de tantos sofrimentos e maldades, no recebido e no dado? A como? O senhor sabe: há coisas medonhas demais, tem. Dor do corpo e dor da idéia marcam forte, tão forte como o todo amor e raiva de ódio... (ROSA, J.G., 2001, p. 37).
A mesma irredutibilidade da dimensão traumática se coloca na primeira batalha
em que Riobaldo, tendo seguido Diadorim ao lado dos hermógenes, se vê contrariado
pelo não só pelo dever de matar: “Eu ia matar gente humana”311, como por ter como
alvo o amigo Zé Bebelo: “Meu querer não correspondia ali, por conta nenhuma. Eu
nem conhecia aqueles inimigos, tinha raiva nenhuma deles. Pessoal de Zé Bebelo...”312
Oscilante entre o autoquestionamento sobre a sua responsabilidade: “Quantos não iam
morrer por minha mão?”313 E a ausência de culpa: “Eu não tinha nada com aquilo,
próprio, eu não estava só obedecendo?”314 O improvável esquecimento se inscreve na
frase repetida – muitas vezes – durante a mesma passagem: “Ah, digo ao senhor: dessa
noite não me esqueço. Posso? Aos poucos, fui ficando soporado, nem bom nem ruim.
Matar, matar, quê que importava? Dessa noite esquecer não posso”315.
Mundo misturado, mundo à revelia
[o projeto de Brasília] nasceu do gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz. LÚCIO COSTA
Apresentados, deste modo, alguns dos eixos de reflexão que envolvem a
temática da violência, que atravessa o texto por inteiro, podemos nos acercar melhor do
310 ROSA, J.G. (2001) p. 418. 311 Idem, p.223. 312 Idem, ibidem. 313 Idem, p.224. 314 Idem, ibidem. 315 Idem, p.225.
lugar que ocupa, entre o traumático e o banal, a ficção e a história, e ainda entre o que
deve ser lembrado ou esquecido. O crítico José Miguel Wisnik aponta, na raiz da
violência que perpassa a obra de Rosa, uma especificidade da cultura brasileira
circunscrita em torno de uma dupla ou (dobra) da ausência da lei, e que se refere, não
somente ao acaso e à insuficiência na origem de toda lei; mas à ausência de uma lei que
“não faz sentido na formação ancestral brasileira” 316 e que merece ser pensada,
portanto, em sua singularidade.
No rastro das formulações das idéias fora do lugar, de Roberto Schwarz317, e das
contradições abordadas em Raízes do Brasil318, haveria algo em nossa história que se
repete e permanece como um enigma, “entre a violência e a retórica”319, onde a
tentativa de instauração de uma lei comum, capaz de impor limites à força bruta,
convive lado a lado com a lei do mais forte do sertão: “Sertão. O senhor sabe: sertão é
onde manda quem é forte, com as astúcias”320.
O ponto de partida de Wisnik é o conto “Famigerado”, de Primeiras Estórias321,
no qual a violência – diferentemente do GSV – comparece como ameaça não
concretizada, mas onde novamente um jagunço, do sertão, busca junto ao letrado,
homem da cidade, um sentido que lhe esclareça uma palavra ou uma experiência. O
ensaio se concentra na questão desta passagem do sertão à cidade, da ausência de lei do
sertão à lei que falta da cidade brasileira, através dos (des)entendimentos em torno do
sentido da palavra famigerado, que constitui o enredo do conto.
Na pergunta desafiante do jagunço Damázio, que vai da Serra do São Ão até a
cidade, para interrogar o médico, o narrador da história, sobre o sentido da palavra
316 WISNIK, J.G. (2002) p.184. 317 SCHWARZ, R. (1977). 318 HOLANDA, S. B. (1995). 319 WISNIK, J.G. (2002) p.184. 320 ROSA, J.G. (2001) p. 35. 321 ROSA, J.G. (1988).
famigerado, dirigida ao jagunço por um insensato moço do governo, se assinalam, com
humor, as “armas desiguais”322 de um e outro: “um homem cuja linguagem é a da faca
e a da bala está suspenso pelo fio sutilíssimo de uma palavra, podendo no entanto, e a
qualquer momento, cair matando”323. Estabelecida a tríade entre o jagunço, o homem
culto e o moço do governo, o que ali se delineia é o lugar intermediário do intelectual e
das idéias em nossa história, entre o poder da bala e o poder político, lugar que poderia
ser de mediação de um acordo comum, que fornecesse o solo simbólico de uma lei, por
sua vez, capaz de assegurar limites à ausência de limites.
O duelo é lido à luz do primeiro e do último conto do livro, “As Margens da
Alegria”324 e “Os Cimos”325, nos quais, excepcionalmente, o cenário rural privilegiado
por Rosa se inverte, e o personagem principal, o Menino, viaja para o: “lugar onde se
construía a grande cidade”326, numa referência à construção de Brasília, inaugurada em
1960, dois anos antes da publicação dos contos. Desta forma, o diálogo se inscreve num
cenário situado no centro do conflito, com todas as contradições que envolveram o
projeto de construção, símbolo de um programa modernizador que leva a cidade ao
centro do interior do país e faz dela a sede do poder político.
A escolha do campo como cenário privilegiado dos escritos de Rosa também
revela um local onde historicamente, no Brasil, desde Canudos, desenvolveram-se
conflitos violentos, envolvendo populações numerosas, o que contraria nossa auto-
imagem de “um caráter pacífico e ordeiro”327. Assim, a temática daqueles contos
persiste no GSV e, para Wisnik, consiste numa melancolia relacionada a uma passagem
322 WISNIK, J.M. (2002) p.177. 323 Idem, p.181. 324 ROSA, J.G. (1988). 325 Idem. 326 Idem, p. 7. 327 GRYNZPAN, M. (2002) p. 154.
traumática do arcaico ao moderno em nossa história, a algo de não-simbolizado aí, que
daria origem a um mundo misturado:
Mas o que se decanta nesses contos é mais um trabalho de luto, nem apologético nem saudosista, onde a saudade é mais funda e inclui o futuro – o desígnio irresolvido que persiste na mudança. A questão aqui não é a passagem sucessiva do arcaico ao moderno, mas a persistência de um no outro... (WISNIK, J.M., 2001, p.179).
Melancolia – é preciso dizer – assim como no GSV, “à qual não se
entregam”328 os personagens, e que não exclui a experiência da alegria, embora
apareça à margem, ou intermitente, como a luz do vagalume no final do conto, como
afirma o crítico. Em “Famigerado”, Rosa trata com humor a ambigüidade de sentido da
palavra, presente na origem de toda significação, tal como formulada por Freud329.
Ambigüidade que, contudo, associada a outras ambigüidades do contexto histórico
brasileiro, permanece como duplicidade não resolvida. Pois a palavra, desprendida da
experiência desde nossas origens, desliza, frágil, ao longo de uma cadeia de
associações: “fasmisgerado... faz-me gerado... falmisgerado... familhas-gerado...”330
A solução encontrada pelo homem culto é ignorar o contexto em que o termo foi
utilizado, e apelar para um sentido primeiramente neutro:
“– Famigerado é inóxio, é ‘célebre’, ‘notório’, ‘notável’... – ‘Vosmecê mal não veja em minha grosseria no não entender. Mais me diga: é desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?’ – Vilta nenhuma, nenhum doesto. São expressões neutras, de outros usos... (ROSA, J.G. 1988, p.16).
328 WISNIK, J.M. (1997) p.179. Cf. Capítulo 4 desta tese, sobre a felicidade do texto. 329 Freud investiga a relação do Inconsciente com a linguagem, através do princípio da não-contradição e do estudo de palavras ambíguas da língua egípcia, e analisa como o uso de uma palavra pode derivar no sentido oposto ao original, o que Rosa percebe ocorrer com famigerado, em português. Mais tarde, Freud irá propor o mesmo em relação ao termo Unheimlich (o Estranho). Cf. FREUD, S. (1970) e (1988b). 330 ROSA, J.G. (1988) p. 15.
Ao passar, porém, da neutralidade ao elogio, “–Famigerado? Bem. É:
‘importante’, que merece louvor, respeito...” 331, o homem culto reitera esse (literal)
estado de coisas, no qual a palavra passa a valer como ornamento: destituída de sentido
prático332, a inteligência se torna “decorativa”333, e a eloqüência diz o que o mais forte
deseja ouvir... Saída na forma de uma formação de compromisso, encontrada pela
inteligência em nosso passado histórico que, a fim de conciliar duas exigências opostas
(aqui, sair com vida do episódio e esclarecer o homem simples, dizer a verdade),
mantém no recalque, no esquecimento, a violência implícita na situação, numa esepécie
de paródia à história de nossas idéias fora do lugar334.
Nos contos que evocam Brasília, esta não-mediação simbólica, da linguagem, é
percebida pelo olhar do Menino, entre o mundo da natureza e a chegada da civilização:
entre a “incessante alegria”335, o transbordamento da natureza, na “paisagem de muita
largura”336 concentrada na visão do peru; e a descoberta do Mal encarnado “no mundo
maquinal, no hostil espaço”337 do campo de obras do aeroporto: “entre o
contentamento e a desilusão, na balança infidelíssima, quase nada medeia.”338
331 Idem, p. 16. 332 Trata-se da importação das idéias européias iluministas aplicadas a uma realidade incongruente com sua origem, como a idéia de liberdade à sociedade escravista e rural da época. Cf. SCHWARZ, R. (1977). 333 HOLANDA, S.B. (1995) p.84. 334 Implícita nesta formulação está também o conceito elaborado por Lacan de Foraclusão do Nome-do-Pai, da instância da lei, própria da estrutura psicótica, e que (simplificadamente) faz com que a palavra, ao não se inscrever simbolicamente, retorne do real na forma de delírios e alucinações, etc., levando, para a psicose, a que a palavra seja tratada como coisa, o que se verifica, por exemplo, na certeza irredutível, opaca, das construções delirantes. Cf. LACAN, J. (2008). Algo próximo do que estes estudos sociológicos apontam: na formação da cultura brasileira, o valor da palavra é deslocado para o ornamento, o enfeite; o que o pensamento hesitante de Damázio, parece indicar, como mostra Wisnik, ao final do conto, cogitando numa extradição da autoridade, encarnada no moço do Governo: “Sei lá, às vezes o melhor mesmo, pra esse moço do Governo era ir-se embora, sei não...” Cf. ROSA, J.G. (1988) p.17. E, ainda, a respeito da formação de compromisso efetuada pelas idéias em nossa cultura, Sérgio Buarque de Holanda mostra como a cordialidade irá se desenvolver como traço de caráter nacional desde os engenhos de açúcar... Tendo, na origem, o caldo onde se misturaram a herança ibérica e africana, diante da escravidão. Nesta ótica, a cordialidade admite a violência para não sucumbir a ela, ocultando-a. Cf. HOLANDA, S.B. (1995) p.61. 335 ROSA, J.G. (1988) p.9. 336 Idem, ibidem. 337 Idem, p.10. 338 Idem, ibidem.
Haveria, portanto, na origem da formação social brasileira, em nossa história,
uma “falha simbólica” ou ausência de um corte simbólico que, através da linguagem,
operasse uma distinção na experiência, e que, ao não se efetivar, retorna como violência
em ato, não simbolizada, o que nos levaria a confundir a lei e o crime, a polícia e o
bandido, o público e o privado, que passam a ser vivenciados como o mesmo, fazendo
com que, ainda hoje, a lei da cidade se aproxime, mais do que nunca, da lei da selva...
Em “As margens da Alegria”339, a violência desta passagem, não simbolizada no
coletivo, irá ser vivida subjetivamente pelo Menino (como pontua Wisnik), como “o
inaudito choque”340, um trauma, na medida em que comporta algo da ordem de um
excesso, em que o fator surpresa é preponderante e que envolve uma ruptura341, uma
divisão que é aqui relacionada à experiência do corte da árvore:
...Mostraram-lhe a derrubadora, que havia também: com à frente uma lâmina espessa, feito limpa-trilhos, à espécie de machado. Queria ver? Indicou-se uma árvore: simples, sem nem notável aspecto, à orla da área matagal. O homenzinho tratorista tinha um toco de cigarro na boca. A coisa pôs-se em movimento. Reta, até que devagar. A árvore, de poucos galhos no alto, fresca, de casca clara... e foi só o chofre: ruh...sobre o instante ela para lá se caiu, toda, toda. Trapeara tão bela. Sem nem se poder apanhar com os olhos o acertamento – o inaudito choque – o pulso da pancada. O Menino fez ascas. Olhou o céu – atônito de azul. Ele tremia. A árvore, que morrera tanto. (ROSA, J.G., 1988, p.10-11)
No GSV, a ausência da lei é ressentida por Riobaldo como algo que, passando
por uma autoridade política, poderia demarcar uma divisão, um limite capaz de
assegurar que o demo, signo da mistura do mundo, não existe:
...Olhe: o que devia de haver, era de se reunirem-se os sábios, políticos, constituições gradas, fecharem o definitivo a noção – proclamar por uma vez, artes assembléias. Que não tem diabo nenhum, não existe, não pode. Valor de lei! (...) Por que o governo não cuida?! (ROSA, J.G., 2001, p. 31).
339 Idem, ibidem. 340 Idem, p.11. 341 A noção de trauma envolve outros aspectos, principalmente a partir de Lacan, mas, por ora, estes são os aspectos necessários a destacar. Cf. FREUD, S. (1976) p.47.
A lei do mais forte do sertão aparece resumida na acusação de Ricardão durante
o julgamento de Zé Bebelo: “Lei de jagunço é o momento”342 ,“é a misericórdia de
uma boa bala”343. O “costume velho de lei”344, ditado pelo coronelismo, fruto de um
conjunto de alianças políticas entre os grandes fazendeiros e os chefes de bandos,
consiste na lição de Selorico Mendes ao jovem afilhado:
–“Ah, a vida vera é outra, do cidadão do sertão. Política! Tudo
política e potentes chefias (...) Mas, adiante, por aí arriba, ainda fazendeiro graúdo se reina mandador – todos donos de agregados valentes, turmas de cabras do trabuco e na carabina escopetada!...” (ROSA, J.G., 2001, p. 127-128).
O que o fazendeiro ensina é que, neste mundo à revelia, onde a norma já nasce
invertida, os jagunços são “ordeiros”345, responsáveis pela manutenção de um certo
equilíbrio neste intrincado sistema, movendo-se entre mandados e mandantes, fazendo a
lei que não há, ajudando a prender e dando julgamento segundo uma autoridade
essencialmente pessoal. Por exemplo, o caso dos irmãos que se unem para matar o pai,
que, antes, havia mandado um matar o outro. Presos pelos jagunços, os dois têm o
perdão como veredicto do então chefe Zé Bebelo, com a condição de terem a boiada
desapropriada pelos jagunços.346
As mesmas contradições se mostram no projeto de Zé Bebelo de acabar com a
jagunçagem: “Dizendo que, depois, estável que abolisse o jaguncismo, e deputado
fosse, então reluzia perfeito o Norte, botando pontes, baseando fábricas, remediando a
saúde de todos, preenchendo a pobreza.”347 A ironia de pretender a paz através da
342 ROSA, J.G. Op. Cit., p.284. 343 Idem, ibidem. 344 Idem, p.276. 345 Idem, p.128. 346 Idem, p.92. Há, nem tanto neste julgamento menor, mas sim no de Zé Bebelo – onde se esboça um fórum coletivo, no qual vários chefes dão acusação, e o réu é ouvido antes da sentença – toda uma discussão em torno da lei do sertão, a lei da cidade e do governo, e a justiça; que aponta para a construção de uma lei realmente intermediária entre os envolvidos, que escapa ao objetivo deste trabalho, mas que não deixo de ressaltar, a fim de apontar possíveis linhas posteriores de pesquisa. 347 Idem, p.146.
guerra, do extermínio dos jagunços com o apoio do governo – à semelhança da Guerra
de Canudos – se nota no grito de Bebelo após cada vitória num combate: “Viva a lei!
Viva a lei...!”348
Ao conceber formalmente o romance, projetando o desenho deste sertão como
uma conversa – onde o jagunço fala e o senhor escuta – Guimarães Rosa traz de volta
não apenas o diálogo que faltou em Canudos349, mas o simbólico como mediação
ausente na origem de nossa cultura, numa imagem alegórica que coloca estes opostos
em movimento, em interlocução:
Na conversa entre o narrador sertanejo, o velho fazendeiro e ex-jagunço Riobaldo e seu visitante, um jovem doutor da cidade, são tematizados as diferenças, os conflitos e os choques culturais, mas também as interações, os diálogos e o trabalho de mediação. (BOLLE, W., 2004, p 39-40).
Neste diálogo, é interessante observar que o termo doutor (ou Seu), comumente
utilizado no Brasil pelas populações menos instruídas como forma de tratamento a uma
pessoa culta, numa situação formal, não aparece no diálogo com o visitante. Além disso,
o tratamento senhor, empregado do início ao fim do romance, não seria usual em nossa
língua num diálogo tão extenso. Na verdade, a forma de tratamento senhor é
praticamente restrita, no país, a situações formais, utilizada por populações com nível
considerável de instrução.
Sob este ângulo, além da dialética entre o jagunço e o letrado, de Walnice
Nogueira Galvão350, a partir da leitura de Raízes do Brasil, e do “Famigerado” de
Wisnik – que ao final aponta justamente para a escravidão como a nossa violência mais
348 Idem, p.93. 349 “Só faltou uma conversa.” É com a frase do morador João de Régis sobre a falta de diálogo entre as autoridades e a população do Arraial de Canudos, no interior da Bahia, entre 1896 e 1897 – que culminou no massacre dos sertanejos e na destruição das 5.200 casas por parte do exército brasileiro, após três expedições derrotadas – que Willi Bolle inicia o seu estudo sobre o Grande Sertão. Cf. BOLLE, W. (2004) p.17. 350 GALVÃO, W. N. Op. Cit.
íntima e recalcada, nosso passado esquecido – este senhor também pode ser pensado
como designando, em contraste com o jagunço, escravo, o ancestral sinhô, o senhor de
engenho e posses, patriarca desta lavoura arcaica, na dupla conotação do termo, tanto
mítica como rudimentar351. Veja-se a forma como, lá pelas tantas, Riobaldo assume o
lugar dos catrumanos, prováveis descendentes de ex-escravos escondidos pelo sertão, e
se dirige ao senhor, como se verá adiante, na estranha língua falada por eles: “Tudo
isto, para o senhor, meussenhor, não faz razão, nem adianta.”352
Ao revolver desta maneira o fundo de nossa constituição como país, em nossas
miragens das origens, o texto desloca tanto as fantasias ligadas a concepções
idealizadas sobre a origem e a natureza, como as ilusões de Modernidade atreladas à
idéia de um país do futuro. Neste sentido, é que se pode afirmar que o GSV promove
uma lembrança dos “sonhos coletivos”353 do país, através destes resíduos da história.
Mas, também, inclui o despertar, como algo que torna possível “recordar aquilo que é
mais próximo, mais banal, mais ao nosso alcance”354 rearticulando o passado em sua
relação com o presente e o futuro.
Portanto, se, por um lado, a crítica atual a uma cultura da memória nos leva a
pensar no engodo de uma super-memória – tal como antecipa Funes, o memorioso355,
personagem de Jorge Luis Borges – o texto crítico de Rosa se faz presente na discussão
em torno da memória coletiva no Brasil (onde a ruína veio antes da construção) e na
América Latina, onde uma política do esquecimento das ditaduras ainda se exerce num
jogo de forças distinto do contexto globalizado, trazendo a necessidade de um discurso
351 Sobre os métodos rústicos utilizados na lavoura brasileira desde a colonização, cf. HOLANDA, S. B. (1994) p.49. E a respeito da dialética senhor-escravo no GSV à luz de Casa-Grande & Senzala, cf. BOLLE, W. (2004) p.281-306. 352 ROSA, J.G. (2001) p. 546. 353 BOLLE, W. (1994-1995) p.92. 354 BENJAMIN, W. (2007) p. 434. Ainda no texto das “Passagens”, Benjamin propõe o despertar como um processo: “que se impõe na vida tanto do indivíduo quanto das gerações”, associando-o à rememoração. Cf. BENJAMIN, W. (2007) p.433. 355 Cf. BORGES, J.L. (2007).
próprio, contrário ao apagamento dos rastros, ou o retirar do esquecimento, ainda em
primeiro plano. Esta associação entre o esquecimento produzido pelo recalque e a
memória histórica se encontra já no próprio Freud:
...É universalmente reconhecido que, no tocante à origem das tradições e da história legendária de um povo, é preciso levar em conta esse tipo de motivo, cuja meta é apagar da memória tudo o que talvez seja penoso para o sentimento nacional. (FREUD, S., 1987b, p.137).
Sob este viés, o texto de Rosa, situado no entrecruzamento entre o mundo
misturado, o mundo à revelia e ainda o imundo de loucura dos desmandos percebidos
por Medeiro Vaz356, se insere na atualidade ao despertar determinadas verdades
adormecidas, por banais que nos pareçam, como: “quem controla o passado, controla o
futuro”357. E outras, na verdade nem um pouco fáceis, mas que nos parecem igualmente
íntimas – como a idéia de Marx de que a história se repete: “a primeira vez como
tragédia (na violência da ausência de lei do sertão), e a segunda como farsa”358 (na lei
da selva, hoje, nas cidades, onde caberia perguntar, se as aparentes antinomias entre a
lei do governo e a lei da bala, por exemplo, não se estabelecem mais do que nunca,
como inseparáveis...).
356 ROSA, J.G. (2001) p. 60. 357 Frase de Orwell em 1984, constante como epígrafe do livro O que Resta da Ditadura, de Edson Teles e Vladimir Saflate. Cf. TELES, E.; SAFATLE, V. (2010). 358 MARX, K. (s/d).
Dessa volta não lhe dou desenho: o narrador-testemunha359
E passados muitos e muitos anos, uma vez consumada a fuzilaria do tempo, ainda assim de alguma forma eu seria um rosto sobrevivente... CHICO BUARQUE, LEITE DERRAMADO.
Dessa volta, não lhe dou desenho – tudo igual, igual.
JOÃO GUIMARÃES ROSA. Diferentemente da forma o senhor sabe, introdutória de boa parte da memória de
origem coletiva que visa transmitir ao visitante – o que já contém certa ironia, pois é o
jagunço que ensina o senhor sobre sua experiência no sertão: “O senhor sabe? Já
tenteou sofrido o ar que é saudade?”360 – quando se trata de dar testemunho através da
recordação do que restou do sertão361, a frase que Riobaldo repete inúmeras vezes é o
senhor vá: “Sertão: estes seus vazios. O senhor vá: Alguma coisa ainda encontra.”362
Neste ponto, já se observam algumas características que nos permitem falar em
testemunho, embora ele se diferencie do que convencionou-se a chamar literatura de
testemunho, surgida das narrativas dos sobreviventes sobre as catástrofes do século XX,
sobretudo a partir de Auschwitz363. Pois, aqui, será considerado o testemunho do
359 O termo, sugerido por Susana Kampff Lages a partir do texto apresentado na qualificação desta tese, em agosto de 2009, é conceituado originalmente pelo crítico e teórico norte-americano Norman Friedman (1955) em “O Ponto de Vista da Ficção”, como uma categoria de narrador, levando-se em conta quem narra, como narra, o lugar do narrador, a distância em relação ao texto e ao leitor. Ali, o narrador-testemunha (I as witness): “é um personagem em seu próprio direito dentro da história, mais ou menos envolvido na ação, mais ou menos familiarizado com os personagens principais, que fala ao leitor na primeira pessoa (...). Podemos notar aqui que as cenas são apresentadas de modo direto, como a testemunha os vê.” Isto quer dizer que o narrador insere o leitor diretamente dentro da cena. Cf. FRIEDMAN, N. (2002) p. 175-176. Note-se, contudo, que, como sempre, o narrador rosiano não se encaixa muito bem numa única categoria, sobrepondo outras tipologias do próprio Friedman, como a de narrador-protagonista. Em segundo lugar, esta categoria literária de testemunha não envolve o caráter do testemunho como intrinsecamente relacionado às catástrofes históricas, que vem a articulá-lo à chamada literatura de testemunho, e constitui exatamente o centro da presente abordagem de Riobaldo como narrador-testemunha. 360 ROSA, J.G. Op. Cit., p. 43. 361 Neste sentido, Márcio Seligmann-Silva concebe o testemunho como uma modalidade de memória. Cf. SELIGMANN-SILVA, M. (2008) p.73. 362 ROSA, J.G. Op. Cit., p. 47. 363 Cf. SELIGMANN-SILVA, M. (2003a) p.388.
narrador, ou o narrador como testemunha, tratando-se, portanto, também, de uma
construção fictícia.364
Como já se começou a delinear, o narrador Riobaldo possui traços pertinentes
aos dois termos em latim para designar o testemunho: testis e superstes365. De acordo
com o termo superstes, aquele que sobreviveu a uma catástrofe, o narrador é testemunha
como ex-jagunço, sobrevivente da história do progresso que marcha sobre o sertão, do
sertão em extinção, em ruínas. Sobretudo se pensamos na matança dos jagunços como
metáfora do extermínio em Canudos, sugerida no momento mesmo em que o bando é
pego pelos soldados do governo: “Mas descemos no canudo das desgraças, ei, saiba o
senhor.”366 Neste sentido, o testemunho traz uma lacuna, como diz Agamben367, ou
“uma tentativa de apresentar uma experiência que resiste a essa apresentação”368, que
se sobressái, por exemplo, nos inúmeros questionamentos de Riobaldo sobre a
possibilidade de narração, como na tentativa de contar sobre a travessia do Liso do
Sussuarão: “Como vou achar ordem para dizer ao senhor do martírio...?”369
Através do imperativo o senhor vá – incitação para conferir diretamente o que o
a fala não pode comunicar – se mostra a referência à precariedade da representação da
experiência pela linguagem, a algo que sempre resta, e que articula o testemunho à
noção de trauma e de real da psicanálise370. Mas é com a morte de Diadorim, “a
364 O objetivo de traçar associações entre o testemunho de Riobaldo e elementos da discussão atual sobre o tema seria mais o de apontar linhas de pesquisa futuras do que aprofundar uma teoria em torno de uma questão tão complexa que, por si, já configuraria tema único para uma tese. Abordagens da noção de testemunho na obra de Rosa vêm sendo realizadas recentemente pela crítica, aparecendo nos seguintes artigos: SELIGMANN-SILVA (2009); CARDOSO, M. R. (2008). 365 SELIGMANN-SILVA, M. (2009) p.131. 366 ROSA, J.G. Op. Cit., p. 317. 367 AGAMBEN, G. (2008) p.42. 368 SELIGMANN-SILVA, M. (2009) p.131. 369 ROSA, J.G., (2001) p. 66. 370 A noção de catástrofe é marcada em Benjamin pela noção de trauma freudiano. Cf. BENJAMIN, W. (1989). Ambas situam-se na ordem do que não pode ser lembrado nem totalmente esquecido, mas permanece como um excesso, retornando como sintoma; e desde as teses benjaminianas sobre a história, há também uma outra leitura do excesso na catástrofe, que se refere à perpetuação da barbárie, do “inimigo que não tem cessado de vencer”. Cf. BENJAMIN, W. (1986e) p.225.
selvagem desgraça”371 que se encontra mais claramente a dimensão do testemunho
como tentativa de elaboração do trauma, onde a memória encontra o esquecimento,
visto que a fala de Riobaldo, sempre endereçada a um outro, este senhor que o escuta,
reproduz uma situação de análise, na qual o dispositivo da enunciação “é a
oportunidade de construção de uma narrativa”372, sendo o texto comparável “a uma
vereda por onde o mal pode fluir”373, onde o lembrar busca paradoxalmente o
esquecimento: ao mesmo tempo reúne e apresenta a impossibilidade de reunir os
pedaços. Isto porque: “Só no branco do esquecimento a imagem pode ser deitada”374,
e não apenas no sentido do esquecimento necessário a uma tentativa de reconstrução da
sua história, mas inversamente, como ainda veremos, porque a narrativa testemunhal de
Riobaldo indica o esquecimento, o silêncio e o vazio como dimensões essenciais do
próprio rememorar, da palavra e da significação375.
Em latim, para o testemunho há também o termo testis, que se refere à
testemunha como terceiro, aquele que pode restabelecer a verdade objetiva ou jurídica,
que, no romance, se mostra em fatos que Riobaldo menciona, como o de uma forca
construída para matarem os prisioneiros, por falta de cadeia na região, da qual o
narrador assegura: “eu vi”376. Porém, como pontua Seligmann-Silva, no relato de
Riobaldo, as duas vertentes do testemunho mostram-se indissociadas: as coisas que vi
371 ROSA, J.G. Op. Cit., p.173. 372 SELIGMANN-SILVA, M. (2009) p.196. 373 Idem, ibidem. 374 Idem, p.137. 375 Cf. caps. 3 e 4 desta tese. Ainda sobre a existência de uma lacuna ou vazio próprio do testemunho, Agamben baseia-se no estruturalismo do lingüista Benveniste para explicá-lo do ponto de vista da perda ou dessubjetivação inerente a todo ato de fala. Resumidamente, o ato de fala comportaria ao mesmo tempo uma apropriação e uma desapropriação ou perda do sujeito na língua (onde o testemunho torna-se o lugar por excelência de um estranhamento, de uma não-coincidência, entre o ser vivo e o ser falante), postulando haver no lugar de um sujeito do testemunho, antes: “um processo ou um campo de forças percorrido sem cessar por correntes de subjetivação de dessubjetivação”. Em outras palavras, o testemunho seria também o resto deste encontro mal-sucedido, se estabelecendo num não-lugar intermediário: “o resto de Auschwitz – as testemunhas – não são nem os mortos, nem os sobreviventes, nem os submersos, nem os salvos, mas o que resta entre eles.” Cf. AGAMBEN, G. (2008) p. 124; 162. 376 ROSA, J.G. Op. Cit., p.90.
não se separam das coisas que vivi 377, pois quando testemunha: “vi a morte com muitas
caras”378, no meio da batalha da Fazenda dos Tucanos, desconfiado da traição de Zé
Bebelo, o sentido da morte se abisma nas muitas mortes que presenciou, proporcionou,
ou às quais sobreviveu: sozinho, no meio da travessia.
O que restou do sertão, segundo a memória do narrador, são fragmentos da
natureza – mais ou menos aprazíveis – como a cor do céu, “esse é céu azul-vivoso, igual
um ovo de macuco”379; ou o trovão: “Na Serra do Cafundó, ouvir trovão de lá, e
retrovão, o senhor tapa os ouvidos, pode até ser que chore, de medo mau em ilusão,
como quando foi menino.”380 Mas a natureza, como já se disse, foi marcada na
recordação do narrador por Diadorim, daí a indissociabilidade entre o ver e o viver de
seu testemunho. Também restaram figuras do sertão cotidiano, como vaqueiros,
misturados, do mesmo modo, a crenças e fantasias, ou as “bizarrices”381 que ele
imagina que interessariam ao forasteiro, e que assinalam tanto o aspecto novamente
subjetivo do relato; como, no nível histórico, a invasão da cidade sobre o campo, que só
consegue enxergá-lo como exótico, fantasioso:
...O senhor vá. (...) Vaqueiros? Ao antes – a um, ao Chapadão do Urucúia – aonde tanto boi berra... (...) cavalo deles conversa cochicho – que se diz – para dar sisado conselho ao cavaleiro, quando não tem mais ninguém mais perto, capaz de escutar. Creio e não creio. (ROSA, J.G., 2001, p. 47).
Sobram, ainda, as diferentes imagens do Mal, como os brejos entre os rios
Carinhanha e Piratinga: “Dali, para cá, o senhor vem (...) Por lá, sucuri geme. Cada
surucuiú do grosso (...) Tudo em volta, é um barro colador, que segura até casco de
mula, arranca ferradura por ferradura.”382 E – depositário de toda a memória
377 SELIGMANN-SILVA, M. (2009) p.131. 378 ROSA, J.G. Op. Cit., p. 374. 379 Idem, p.42. 380 Idem, p.43. 381 Idem, p. 42. 382 Idem, p.47.
coletiva, incluindo hábitos, crenças, estórias dos sertanejos – resta o compadre
Quelemén, indicando a figura do narrador, da narrativa, e da transmissão desta memória
como modalidade de resistência ao apagamento deste universo:
Compadre meu Quelemén é um homem fora de projetos. O senhor vá lá (grifo nosso), na Jijujã. Vai agora, mês de junho. A estrela – d’alva sai às três horas, madrugada boa gelada. É tempo de cana. (...) Senhor vê, no escuro, um quebra-peito – e é ele mesmo, já risonho e suado, engenhando o seu moer. O senhor bebe uma cúia de garapa e dá a ele lembranças minhas... (ROSA, J.G., 2001, p. 74).
Outro elemento presente é o caráter fictício do testemunho383, evidenciado no
trecho anterior sobre o cochicho dos cavalos, que prossegue numa passagem em que o
narrador começa alertando o visitante (e, com ele, o leitor) sobre a mentira dos outros.
Mas, então, é o seu próprio discurso que se reveste de ambigüidade; fazendo com que,
ali, já não se saiba bem em quem acreditar, principalmente ao considerar-se a lembrança
que o narrador recusa como falsa, estranhamente relacionada a um subterrâneo onde
outrora se torturavam escravos:
...E agora me lembro: no Ribeirão Entre-Ribeiros, o senhor vá ver a fazenda velha, onde tinha um cômodo quase do tamanho da casa, por debaixo dela, socavado no antro do chão – lá judiaram com escravos e pessoas, até aos pouquinhos matar... Mas, para não mentir, lhe digo: eu nisso não acredito. Reconditório de se ocultar ouro, tesouro e armas, munição, ou dinheiro falso moedado, isto sim. O senhor deve de ficar prevenido: esse povo diverte por demais com a baboseira, dum traque de jumento formam tufão de ventania. Por gosto de rebuliço. Querem-porque-querem inventar maravilhas glorionhas, depois eles mesmos acabam temendo e crendo. Parece que todo o mundo carece disso. Eu acho, que. (ROSA, J.G., 2001, p. 90).
Na medida em que o narrador se depara com a ruína do sertão, o incentivo a
desbravar este espaço se reverte no seu contrário não vá, e é por acreditar que não
restou mais nada que ele desencoraja a viagem do explorador:
383 O teórico aproxima neste artigo o testemunho da ficção, citando Derrida, para afirmar que o testemunho só existe diante da possibilidade, ao menos, da mentira e da ficção. Cf. SELIGMAN-SILVA, M. (2009) p.144.
Mas o senhor sério tenciona devassar a raso este mar de
territórios, para sortimento de conferir o que existe? Tem seus motivos. Agora – digo por mim – O senhor vem, veio tarde. (...) Quase que, de legítimo leal, pouco sobra, nem não sobra mais nada. (ROSA, J.G., 2001, p.41-42).
Dentre o que foi destruído pela história e restou apenas como fragmento no
discurso, narrativa testemunhal, está a grandeza de chefes como Medeiro Vaz: “raça de
homem que o senhor mais não vê, eu ainda vi”384. Além dela, o jaguncismo é extinto;
alguns costumes dos vaqueiros cedem lugar a outros, como as roupas de couro; e até o
gado, domesticado, alude à entrada do progresso e da cidade sobre o sertão:
... Os bandos bons de valentões repartiram seu fim; muito que foi jagunço, por aí, pena, pede esmola. Mesmo que os vaqueiros duvidam de vir no comércio vestidos de roupa inteira de couro, acham que traje de gibão é feio e capiau. E até o gado no grameal vai minguando menos bravo, mais educado: casteado de zebu, desvém com o resto de curraleiro e de crioulo... (ROSA, J.G., 2001, p. 42).
Riobaldo guarda a lembrança e, lamenta melancolicamente o apagamento desta
memória através dos nomes de seus lugares da infância, que são alterados pelo mesmo
processo:
Perto de lá tem vila grande – que se chamou Alegres – o senhor vá ver. Hoje, mudou de nome, mudaram. Todos os nomes eles vão alterando. É em senhas. São Romão todo não se chamou de primeiro Vila Risonha? O Cedro e o Bagre não perderam o ser? O Tabuleiro-Grande? Como é que podem remover uns nomes assim? (ROSA, J.G., 2001, p.58).
E a Guararavacã do Guacuí, o lugar onde, em meio ao silêncio, ele, já crescido,
admite que além de mandar a morte, também pôde mandar o amor:
A Guararavacã do Guacuí: o senhor tome nota deste nome. Mas, não tem mais, não encontra – de derradeiro, ali se chama é Caixeirópolis; e dizem que lá agora dá febres. Naquele tempo, não dava. (...) Agora, o mundo quer ficar sem sertão... (Grifo nosso). (ROSA, J.G., 2001, p. 305).
384 Idem, p.60-61.
Note-se que, no mesmo testemunho do sobrevivente à morte que lhe rondou por
todo lado, que aponta para o inenarrável de sua experiência, podemos ler, no sentido
daquele que viu o mundo querer ficar sem sertão, o depoimento de Riobaldo que atesta
a catástrofe, retirando do esquecimento tanto a paisagem da memória, como o próprio
processo de apagamento deste universo.
Catrumanos, muçulmanos: ecos de outro sertão?
Sofriam a esperança de não morrer. GUIMARÃES ROSA
O episódio do menino peludo, confundido com um macaco, morto, assado e
comido pelos homens do bando durante a primeira travessia do Liso do Sussuarão; e o
encontro com os catrumanos e o povo do Sucruiú constituem o ápice do quadro de
horrores que Riobaldo testemunha, onde a pobreza atinge a dimensão de catástrofe, que
ele assinala após deixar para trás o povoado do Sucruí, e a visão dos catrumanos:
“Algum dia, depois de hoje, hei de esquecer aquilo.”385
O encontro com os catrumanos é antecipado da seguinte forma pelo narrador:
“Porque está chegando a hora d’eu ter que lhe contar as coisas muito estranhas”386.
Ocorre quando o bando, já chefiado por Zé Bebelo, tendo conseguido cavalos em
Currais-do-Padre, deve pegar munição no local chamado Virgem-Mãe mas, por irônico
engano, é levado para a Virgem-da-Lage, e se perde na “estrada de muitos
cotovelos”387, onde não há sinal de ninguém durante três dias de viagem: “nós
estávamos em fundos fundos”388. Então, são interceptados pelos catrumanos, que tentam
impedir a passagem até o arraial do Sucruiú, assolado pela varíola.
385 Idem, p.408. 386 Idem, p.397. 387 Idem, ibidem. 388 Idem, 398.
Descritos como um povo reperdido: “Do fundo do sertão”389, na mesma fala
que antecede sua aparição, são equiparados ao próprio sertão: “De repente, por si,
quando a gente não espera, o sertão vem. Mas, aonde lá, era o sertão churro, o
próprio, mesmo”390. São vistos, portanto, como produzidos por um sertão sujo,
estranho, repugnante:
Para o nosso juízo, eles eram dôidos. Como é que, desvalimento de gente assim, podiam escolher ofício de salteador? Ah, mas não eram. Que o que acontecia era de serem só esses homens reperdidos sem salvação naquele recanto lontão de mundo, groteiros dum sertão, os catrumanos daquelas brenhas. (ROSA, J.G., 2001, p. 400).
Comparáveis a criaturas, vivendo como os mais primitivos dentre os sertanejos,
à parte de um Brasil que manda lembranças, como bem se observa no recado de Zé
Bebelo – em nova referência aos que são mantidos à margem da história do país:
– “O que mal não pergunto: mas donde será que ossenhor está servido de estando vindo, chefe cidadão, com tantos agregados e pertences?” – “Ei, do Brasil, amigo!” – Zé Bebelo cantou resposta, alta graça...” (ROSA, J.G., 2001, p. 403).
Os catrumanos habitam um limiar de difícil compreensão, no qual a humanidade
dos jagunços, através da voz de Riobaldo, é questionada, da mesma forma como seus
vizinhos, o povo do Sucruiú, doentes e identificados a seres humanos apenas por suas
casas: “coisa humana”391:
Um eu vi, que dava ordens: um roceiro brabo, arrastando as calças e as esporas. Mas os outros, chusmote deles, eram só molambos de miséria, quase que não possuíam o respeito das roupas de vestir. (ROSA, J.G., 2001, p.399).
Embora o caráter documental estrito não constitua o foco desta análise, devido
às impressionantes semelhanças que ultrapassam a homofonia entre os catrumanos e os
muçulmanos dos campos de extermínio nazistas, e também pelo conhecido hábito de
389 Idem, p.406. 390 Idem, p.397. 391 Idem, p.408.
Rosa de coletar e reutilizar palavras pouco conhecidas, como nomes de plantas, animais,
descrição física de lugares, etc., cabe conjeturar sobre esta sombria inspiração para o
termo catrumano, que em português constitui um regionalismo, sinônimo de caipira, e
cuja etimologia – quadrúmano – já aponta um primeiro traço em comum, a condição de
destituição de humanidade à qual ambos são impostos.
Até o momento, não se sabe se o escritor teve acesso ao termo muçulmano, um
jargão dos campos de concentração alemães durante a Segunda Guerra Mundial.
Entretanto, no conto “A Velha” – que é considerado um dos que contém elementos de
um diário ainda inédito do escritor, conhecido como Diário de Hamburgo392, escrito em
parte em alemão, parte em português, entre 1938 e 1942, quando o escritor esteve como
cônsul adjunto na Alemanha – Rosa narra, em meio ao “espírito de catástrofe, em
tempo tão ingeneroso”393 de uma Alemanha pré-guerra, um dos atendimentos à
multidão de judeus que procurava o consulado brasileiro na tentativa de sair do país
(“Vê-los, vinha à mente a voz de Hitler ao rádio – rouco, raivoso.”394); no qual lhe
foram descritos em detalhes as “hitlerocidades, as trágicas técnicas, o ódio abismático,
os judeus trateados”395 dos campos nazistas, tornando plausível a intencionalidade
desta associação, além da evidente semelhança encontrada no texto.
O fato é que os catrumanos encarnam, no texto, a alteridade de uma condição
ainda mais vil e abjeta que a dos sertanejos e jagunços já tão sofridos na mesma
392 Os outros contos, todos publicados em Ave Palavra, seriam: “o Mau Humor de Wotan”, “A Senhora dos Segredos”, e “Homem, Intentada Viagem”, e trazem como cenário a Alemanha durante a Segunda Guerra. Cf. ROSA, J.G. (1970). Conforme destacou a pesquisadora Eneida Maria de Souza, uma das organizadoras da edição do diário, em todos eles há material do Diário de Hamburgo. Cf. SOUZA, E. (2008). Segundo Reinaldo Marques, outro dos organizadores da edição ainda não publicada do diário, no excelente ensaio “Grafias de Coisas, Grafias de Vidas”, uma espécie de genealogia da trajetória do documento, o diário contém uma diversidade de registros, entre os quais registros de palavras em várias línguas, listas de livros na estante, de temperos da cozinha alemã, roteiros de viagem, relatos de visita ao zoológico, descrições de paisagens, do clima, e colagens, onde têm destaque notícias da guerra, em recortes do jornal do Partido Nazista. Cf. MARQUES, R. (2009). 393 ROSA, J.G. (1970) p.110. 394 Idem, p.108. 395 Idem, ibidem.
proporção em que os muçulmanos, os prisioneiros judeus que não resistiram aos campos
de extermínio nazistas, conforme o livro de Agamben nos lembra396. Segundo o relato
dos sobreviventes, dentre os quais tem destaque o de Primo Levi, o termo designava
tanto um quadro clínico de desnutrição intensa, quanto uma condição, para uns,
marcada pela perda da dignidade, para outros da consciência, ou ainda da capacidade de
resistir às inumanas condições.
Em que pese a precariedade de definições para o que se considerava impensável,
o que importa é que, nos campos, eles eram facilmente identificáveis como a imensa
maioria que sucumbia rapidamente, produzidos pelo experimento do campo, num
estado aparente de um puro sobreviver; um “semiviver”397 nas palavras de Rosa, ao qual
se sucedia uma morte rápida. Sobrevivência na qual o limite entre a vida e a morte,
entre o humano e o inumano, põe em xeque a própria idéia de estabelecer um limite:
“Para Levi, o muçulmano é, antes, o lugar de um experimento, em que a própria moral,
a própria humanidade são postas em questão” 398.
Situados num limite do que o humano pôde suportar, representando o pior do
pior, por isso mesmo ambos desencadeiam reações de repulsa, tanto por parte dos
jagunços, como dos prisioneiros dos campos. Da íntima semelhança com este alter, que
a qualquer momento pode passar a ser o mesmo, da indesejada e a todo tempo recalcada
equivalência, adviria a inquietante estranheza, conforme ensina Freud em “O
Estranho”399. A repulsa é confirmada por um dos sobreviventes citados por Agamben:
O estágio do muçulmano era o terror dos internados, pois nenhum deles sabia quando tocaria também ele o destino de muçulmano,
396 Cf. AGAMBEN, G. (2008). 397 Em “A Velha”. Cf. ROSA, J.G. (1970) p.109. 398 AGAMBEN, G. Op. Cit., p.70. 399 FREUD, S. (1988b). Ainda sobre as tentativas de encobrir esta condição, em Agamben: “Por isso, a preocupação mais insistente do deportado consistia em esconder as suas enfermidades e as suas prostrações, em ocultar incessantemente o muçulmano que ele sentia aflorar em si mesmo por todos os lados.” Cf. AGAMBEN, G. (2008) p.59.
candidato certo para as câmaras de gás ou para qualquer outro tipo de morte. (LANGBEIN, H. Apud. AGAMBEN, G., 2008, p.59).
Também para Riobaldo, os catrumanos eram difíceis de serem olhados: “Ossos
e queixos”400; ou de se fazerem entender, falando uma língua igualmente estranha,
onomatopaica, cheia de “s”: “Ossenhor utúrge, mestre...”401. Despertavam o riso dos
jagunços, mas Riobaldo expressa por eles, além da estranheza que perpassa todo o
encontro, um misto de pena e medo:
...Aqueles catrumanos pedindo por maldição, como era que eu podia deixar de pensar neles? Há-de, que se eles tivessem me pegado sozinho, eu apeado e precisado, decerto me matavam, para roubar minhas armas, as coisas e minhas roupas. (...) Draste eu duvidava deles. Duvidava dos fojos do mundo... (ROSA, J.G., 2001, p. 405).
Equiparam-se, uma vez mais, muçulmanos e catrumanos, em sua posição central
no campo: de um lado, aquele que “viu a Górgona”402, a cabeça de serpentes da
medusa, que produzia a morte, e “chegou ao fundo”403, testemunhando a
impossibilidade de ver e testemunhar, ocupando o lugar, de acordo com Primo Levi, de
testemunhas integrais404. De outro, produzidos pelo “fundo do sertão”, os catrumanos
representam a “multidão sem rosto e sem especificidade”405, a quem o narrador-
testemunha tenta dar rosto e voz.
400 ROSA, J.G. Op. Cit., p. 401. 401 Idem, ibidem. 402 AGAMBEN, G. Op. Cit., p.61. 403 Idem, ibidem. 404 Idem, p.67. 405 PENNA, J. C. (2005) p.46.
Um outro cortejo O narrador é a figura na qual o justo se encontra consigo mesmo.
WALTER BENJAMIN
Quando eu morrer cansado de guerra
morro de bem com a minha terra: cana, caqui:
inhame abóbora onde só vento se semeava outrora Amplidão, nação, sertão sem fim
Ó Manuel, Miguilim Vamos embora.
CHICO BUARQUE DE HOLANDA, Assentamento.
Se a narrativa nasce da morte e opõe à historiografia uma outra história, nesta
reescrita têm lugar os esquecidos da história. Contudo, além do cortejo triunfal dos
vencedores da história, Benjamin aponta na obra do escritor russo Leskov – tomado
como modelo de uma narrativa que coloca o tempo em movimento, na transmissão da
memória e tradição do narrador ao ouvinte, um retorno ao passado, mas uma recriação
da memória no presente e uma retransmissão às gerações futuras – a existência de um
cortejo dos justos, definidos como figuras ligadas ao mundo arcaico, à redenção, e ao
maternal, que representariam a “sabedoria, a bondade e o consolo do mundo”406,
corporificando-se como porta-vozes das criaturas mais abjetas e insignificantes.
A idéia do justo, nesta perspectiva, vem enfatizar o potencial da narrativa na
recriação da memória e na oposição à marcha dos vencedores da história, na medida em
que, se há em jogo uma política do apagamento dos rastros de determinada memória,
esta pode ressurgir, como resíduo, fragmento, em nova composição narrativa. Mesmo
considerando que, atualmente, só se possa falar na figura do narrador ou da narrativa
como aquele que comparece como ausente, em extinção: pois é deste outro lado – deste
fim que coincide com a origem – que se pode testemunhar a barbárie:
406 BENJAMIN, W. (1986d) p. 216.
O narrador mantém sua fidelidade a essa época, e seu olhar não se desvia do relógio diante do qual desfila a procissão das criaturas, na qual a morte tem seu lugar, ou à frente do cortejo, ou como retardatária miserável. (BENJAMIN, W., 1986d, p.210).
Um dos justos citados em Leskov é hermafrodita e assexuado, fazendo pensar
em Diadorim, que, apesar de movido pelo ódio e pela vingança, demonstra compaixão
pelos oprimidos, como na travessia de volta do Liso do Sussuarão, onde protege a mãe
do menino morto e assado pelos jagunços. As figuras femininas são, por todo o texto,
comparáveis à mãe de Riobaldo que, tendo criado seu filho solteira, é lembrada por ele
como alguém que concentrou uma dupla função, de um amor maternal compreensivo e
de uma autoridade que lhe colocou limites407: “A bondade especial de minha mãe tinha
sido a de amor constando com a justiça, que eu menino precisava. E a de, mesmo no
punir meus demaseios, querer-bem às minhas alegrias.”408 As mulheres representam,
para Riobaldo, ora uma mediação ao desmedido da guerra sem fim dos homens do
sertão, ora uma saída ou diferença em relação ao universo do ódio, que ele enxerga no
erotismo da prostituta Nhorinhá: “A mais, com aquela grandeza, a singeleza: Nhorinhá
puta e bela”409.
Outra versão feminina de uma generosidade superior pode ser identificada na
cartomante Ana Duzuza, que oscila entre a figura do justo, “naquele sertão essa dispôs
de muita virtude”410; e a mais abjeta das criaturas: “Raspava a rapadura com a quicé,
ia ajuntando na palma da mão o farelo peguento preto; ou, se não, segurava o naco,
rechupando, lambendo. A gente engrossava nôjo, salivava.”411 A cartomante é salva
407 ROSENFIELD, K. (2006) p.264-273. 408 ROSA, J.G. (2001) p.57. 409 Idem, p. 327. 410 Idem, p. 49. 411 Idem, p.53.
por Riobaldo precisamente quando ele alega ser seu filho, contrapondo-se ao desejo de
matar de Diadorim412.
Além da feminilidade, o que torna interessante esta leitura benjaminiana é que a
figura do justo não consiste num personagem propriamente dito, mas pode deslizar
numa cadeia que vai do justo “até os abismos do inanimado”413. Pois, “como ninguém
está à altura desse papel, ele passa de uns para outros.”414 Sendo assim, se no “topo”
da hierarquia está Riobaldo, no extremo oposto estão os catrumanos, situados no “ponto
em que, para os místicos, a mais profunda abjeção se converte em santidade”415.
Riobaldo, que termina a história como o pacificador do sertão, assume sua face de justo
nos momentos em que, apesar de jagunço, demonstra sua empatia pelos oprimidos: “E
eu tinha receio que me achassem de coração mole, (...) que tinha pena de toda cria de
Jesus”.416 Da mesma forma, ao deixar o povoado do Sucruiú, ele fala em salvação,
sonhando em sair dali levando todos consigo (todos, menos o Hermógenes, remarque-
se): desde Diadorim e Zé Bebelo, até os catrumanos e o povo doente do arraial
vizinho417.
A noção de alegoria, para Benjamin associada como método do drama barroco
alemão418, abre diversas perspectivas à imagem do justo na escrita de Rosa. A palavra
alemã Trauerspiel (traduzida por drama barroco) traz em si o conflito entre luto
412 Uma coincidência biográfica não pode deixar de ser mencionada: no período em que Guimarães Rosa e sua esposa Aracy trabalharam juntos no consulado brasileiro em Hamburgo, expediram centenas de vistos a judeus que fugiam da perseguição alemã. Aracy de Carvalho Guimarães Rosa teve, inclusive, seu nome gravado no Jardim dos Justos, no Museu do Holocausto, em Jerusalém, obtendo o título dos “Justos entre as Nações”, que homenageia os não-judeus que ajudaram a salvar judeus durante o holocausto. 413 BENJAMIN, W. (1986d) p. 217. 414 Idem, p.218. 415 Idem, p.219. 416 Idem, p.186. 417 Benjamin associa a idéia do justo a um princípio religioso grego, a apocatastasis, que designa a salvação de todas as almas ao Paraíso, embora em seu texto se acrescente uma conotação política, onde a salvação é pensada através da narrativa, da figura mesmo do narrador: “Salvos, como nos contos de fadas”. Cf. BENJAMIN, W. (1986d) p.216. 418 Cf. BENJAMIN, W. (1984).
(Trauer) e jogo (Spiel)419, consistindo na arte de dizer uma coisa através de outra, revela
que o sentido está perdido, mas engendra a possibilidade de novos sentidos a partir da
morte e da perda. Assim é composto o texto do GSV: com os restos de tudo que sobrou
da história oficial, as ruínas e resíduos da história, o artista construiria um outro sertão.
A grande diferença entre o símbolo e a alegoria é a temporalidade, pois –
diferentemente do símbolo, que pressupõe relação atemporal e imediata entre a imagem
e o conceito – a alegoria contém em si a temporalidade histórica, a dialética, o
movimento. Por tratar-se de uma substituição, pode ser pensada como uma metáfora ou
imagem perpassada de ruína e morte, pois o que está desde sempre perdido é o referente
ou o objeto, tornando a relação com o referente sempre mediada pela linguagem420. A
alegoria se refere à impossibilidade de reunir os pedaços, e ao mesmo tempo a esta
colagem ou mosaico.
A partir desta concepção de alegoria como concernente à dialética, vai se
tornando claro, também, que a imagem alegórica mais próxima deste cortejo dos justos,
oposto ao cortejo triunfal do progresso, é a do próprio bando de jagunços, em sua
errância sem fim pelo sertão, em busca de justiça, deparando-se pelo caminho com os
outros desvalidos da história... Principalmente no último bando, quando, à frente do
cortejo e ao lado do chefe Urutú Branco são postos um cego (Borromeu) e uma criança
(o pretinho Guirigó). Imagem dialética e poética que une, na figura do jagunço de uma
terra-sem-lei, o justo e o justiceiro, o pedido por justiça e o ato, quase sempre violento,
do fazer justiça com as próprias mãos, reunindo também no mesmo bando os jagunços e
os mais frágeis representantes da população.
O cortejo tem lugar num sertão onde, como afirmou Heloísa Starling421, desde
Medeiro Vaz, o rei dos gerais – que se despojou de todos os bens, família, casa, tudo
419 GAGNEBIN, J.M. (1994) p.45. 420 Cf. BENJAMIN, W. (1986g). 421 STARLING, H. (1999).
que o prendia a uma identidade particular – todos os chefes repetem, em vão, a mesma
tentativa de refundar uma lei a partir do nada, (como em Canudos, fundar uma outra
sociedade) e todos fracassam no “sonho de um só”422. Os bandos seguem seu cortejo
num sertão destituído de tudo, compondo uma alegoria, pais-agem onde desfilam, lado-
a-lado, a ruína e o progresso.
Neste deslocamento incessante, se movem os dois extremos da história do país, a
barbárie e a redenção. É o que ocorre, por exemplo, no julgamento de Zé Bebelo pelos
jagunços, quando cada um dos envolvidos toma a palavra para refletir sobre o crime, a
culpa e a justiça, e cuja sentença final se define pelo seu exílio do sertão, destoando do
costume local de simplesmente matar os inimigos. Ali, tem lugar um dos momentos
intermediários entre a lei da bala e a lei do governo, onde ambas se deslocam, e o que
se insinua é a possibilidade de construção de uma lei outra, terceira em relação ao
conflito originário.
Através destes múltiplos desdobramentos de imagens, dá-se a perceber o
potencial da narrativa, da linguagem; que pode advir da morte e retornar a ela, mas
engendra a vida em sua proliferação de sentidos, fazendo vislumbrar, a partir dos
resíduos, uma outra vida possível. Aqui, uma palavra se destaca, novamente seguindo
Benjamin: o entrecruzamento. Pois, se o tecido da memória é infinito, e o texto se
constrói como o que tece o rememorar através da trama da narrativa, a eternidade a que
se refere à memória involuntária de Proust, localiza-se numa camada mais profunda que
a memória, que, para Benjamin, não é a do tempo infinito, idealista e mítico, mas a do
tempo-de-agora, tempo entrecruzado, por vezes chamado tempo imemorial423.
Esta encruzilhada dos tempos, tempo-de-agora ou tempo imemorial, isso que
Benjamin aponta em Proust – e nós lemos, aqui, agora, no tempo-sobre-tempo de “Os
422 Idem, p.63. 423 Cf. BENJAMIN, W. (1986a) p.40; cap.4 desta tese.
Cimos”424 – é também demonstrado como capaz de ser entrevisto na pintura, é o que
Benjamin afirma numa aparentemente singela nota de rodapé sobre a presença do olhar
diante da multidão das cidades recém-crescidas na Europa, no impressionismo de
Monet425. Porém, ressalte-se, se o tempo entrecruzado é definido a partir do salto do
tigre em direção ao passado, como aquilo que pode apontar algo simples na origem,
revela também o seu caráter imemorial, que igualmente não será o da origem
cronológica, pois lá, a lembrança encontra-se como enigma, impossível de ser
recuperada por confundir-se com a própria origem.
Deste modo, o trabalho da memória e do esquecimento tecidos no texto
constituem algo que passa por, mas também ultrapassa a melancolia. Retomando o
primeiro e o último conto de Primeiras Estórias426; se, no primeiro, trata-se de uma
alegria às margens (melancolia das coisas, mas alegria da vontade, diz Wisnik427), em
“Os Cimos” justamente se trata do inverso afastamento da melancolia contida no
primeiro, que percebemos como o impulso de felicidade do rememorar (ensaio de
Benjamin sobre Proust)428.
A rememoração e a narrativa envolvem, portanto, algo que Benjamin não cessa
de repetir e Guimarães Rosa não se detém em realizar, chegando até a falar sobre isso
em entrevistas, onde novamente aparece a imagem do infinito (“a travessia para a
424 ROSA, J.G. (1988). 425 O que parece se inscrever em primeiro plano no texto “Sobre Alguns Temas em Baudelaire” é a experiência de choque diante da multidão emergente das cidades européias no séc. XIX, como um dos temas que fundam sua poesia como eminentemente moderna. Contudo, nesta nota, Benjamin nos brinda com nada menos do que este exemplo de como a obra de arte pode expressar imagens visuais não exatamente sobre estas distintas sobreposições do tempo, mas do olhar sobre elas, um olhar que materializa o novo tempo das cidades e que se superpõe à experiência pré-industrial anterior a ela. Pois o filosofo “lê” o tumulto das manchas de tinta da pintura como “reflexo das experiências tornadas familiares aos olhos dos habitantes das grandes cidades. Um quadro como a Catedral de Chartres, de Monet, que parece um formigueiro de pedras, poderia ilustrar esta suposição”. Cf. BENJAMIN, W. (1989) p.123. 426 ROSA, J.G. (1988). 427 WISNIK, J.M. (2002) p.181. 428 BENJAMIN, W. (1986a) p.38-39.
solidão que equivale ao infinito”429, infinito da felicidade), e que podemos situar nesta
imagem da travessia, que também pode ser a travessia do fantasma, pensada tanto na
dimensão do trabalho da rememoração, no atravessamento do trauma, como no processo
da escrita: uma travessia da palavra.
429 LORENZ, G. (1983) p.73.
Escute meu coração, pegue no meu pulso. JOÃO GUIMARÃES ROSA
III. TRAVESSIA, MELANCOLIA E ESQUECIMENTO
...Mas escrever a vida é outra história. Inacabamento.
PAUL RICOUER Vida inquieta, inquietante estranheza
“A vida não fica quieta”430 diz o narrador do conto “Antiperipléia”, um bem-
humorado guia de cegos – mas poderia perfeitamente ser uma frase de Riobaldo, tal o
volume e a intensidade de sua fala quando decide contar suas memórias a seu hóspede,
na fazenda São Gregório, herdada por ele do padrinho Selorico Mendes. Na visita que
era para durar, no mínimo três dias, conforme ele pede ao senhor, não se sabe ao certo
qual a duração do estranho diálogo.
O que chama a atenção nas mais de seiscentas páginas escritas sem uma única
pausa, em parágrafos sucessivos, sem nenhum capítulo ou qualquer outra divisão formal
que interrompa o texto, é este efeito de um jorro da memória, comparável ao furor com
que Benjamin descreve a obra de Proust em seu ensaio sobre o escritor, sobretudo
quando o pensador assinala, neste excesso, a discrepância entre a vida e a poesia,
definindo, ali, o texto como tecido da rememoração431.
Entretanto, conforme vimos, se o narrador fala a partir da morte, esta também
engendra a vida como aquilo faz falar e que gera a narrativa; pulsão nomeada por
Seligmann-Silva (à maneira de Benjamin e Freud) em “Narrar o Trauma”, como a
“pulsão testemunhal”432. No ensaio, o autor compara a narrativa testemunhal à cena
psicanalítica, destacando o potencial do testemunho de, ao dirigir-se a um outro,
estabelecer novas associações e temporalidades, em que pese o aspecto da
430 ROSA, J.G. (1985) p.19. 431 BENJAMIN, W. (1986a) p. 49. 432 SELIGMANN-SILVA, M. (2008) p.70.
irredutibilidade do trauma433. Em “Sobre a Escova e a Dúvida”, um dos quatro prefácios
de Tutaméia, Guimarães Rosa dá testemunho sobre a origem da obra como uma força
estranha ao próprio autor:
... Quanto ao GRANDE SERTÃO: VEREDAS, forte coisa e comprida demais seria tentar fazer crer como foi ditado, sustentado e protegido – por forças ou correntes muito estranhas. (ROSA, J.G., 1985, p.175).
Sem dúvida, muita estranheza perpassa o texto. Especificamente, o que
caracteriza a rememoração de Riobaldo como distinta de qualquer outra narrativa de
memórias é, a princípio, a sua forma de um diálogo, onde só um fala. Mas, o que vem a
ser uma fala? “O que distingue uma fala de uma gravação de linguagem?”434, pergunta
e emenda Lacan: “Falar é antes de mais nada falar a outros”. A estrutura do texto,
construída na forma da mensagem (que, contudo, é diferente de comunicação)
endereçada a este alguém de fora, um outro que escuta, silencioso, permite a
comparação do texto com uma situação de análise:
...Não devia de estar relembrando isto, contando assim o sombrio das coisas. Lenga-lenga! Não devia de. O senhor é de fora, meu amigo mas meu estranho. Mas, talvez por isto mesmo. Falar com o estranho assim, que bem ouve e logo longe se vai embora, é um segundo proveito: faz do jeito que eu falasse mais mesmo comigo. Mire veja: o que é ruim, dentro da gente, a gente perverte sempre por arredar mais de si. Para isso é que o muito se fala? (ROSA, J.G., 2001, p.55).
A alteridade deste desconhecido em relação a esta fala-narração é bem marcada,
ele é o único personagem sem nome da história, a quem Riobaldo chama de senhor, o
que já proporcionou interpretações desta figura como sendo a do próprio escritor, por
sua estampa culta e viajante, e até mesmo o próprio leitor, devido às incessantes
incitações do narrador para que ele participe na produção dos sentidos da narração,
433 (Sobre a narrativa): “Conquistar essa nova dimensão equivale a sair da posição do sobrevivente para voltar à vida. Significa ir da sobre-vida à vida. É claro que nunca a simbolização é integral...” Cf. SELIGMANN-SILVA, M. (2008) p.69. 434 LACAN, J. (2008) p.48.
respondendo às suas indagações e aos vazios de sentido textuais: “O senhor pense, o
senhor ache. O senhor ponha enredo”435. Entretanto, assim como em Freud, a
estranheza parece advir muito mais da sua continuidade com uma condição de
intimidade, do “amigo-estranho” do que a um caráter de pura exterioridade436:
inquietante familiaridade, como corrige João Camillo Penna437, é o que faz desta fala
um falar consigo mesmo.
Através da definição de Schelling, o Estranho é associado por Freud a um ao que
retorna do recalcado: “Unheimlich é o nome de tudo o que deveria ter permanecido...
secreto e oculto mas veio à luz”438. De fato, a narrativa de Riobaldo reenvia a todo
tempo ao campo do inconsciente, à procura por narrar uma memória não-sabida: “Me
lembrei do não-saber”439. Não-saber que vai se constituindo a partir da suposição de
saber a este Outro, reafirmada o texto inteiro na forma de: o senhor sabe. Ao contar sua
história, o narrador endereça, transfere a seu ouvinte-leitor esta sua verdade não-sabida:
“Narrei ao senhor. No que narrei, o senhor talvez até ache mais do eu, a minha
verdade.”440 Sua fala faz apelo a este saber inconsciente – de acordo com Lacan, a esse
algo “que fala no sujeito, além do sujeito, e mesmo quando o sujeito não sabe, e diz
sobre isso mais do que crê”441 – como se estivesse numa situação de análise: “Conto ao
435 ROSA, J.G. (2001) p.325. 436 O argumento de Freud é o de que o significado da palavra heimlich “se desenvolve na direção da ambivalência, até que finalmente coincide com o seu oposto, unheimlich”. Das várias matizes de sentido de heimlich: familiar, doméstico, íntimo, secreto, oculto, inquietante, estranho (pouco usado); haveria um ponto em que o íntimo, secreto e oculto deriva para levemente assustador, inquietante, e se torna unheimlich. FREUD, S. (1988b) p.244. De acordo com Luiz Hanns, entretanto, o termo estranho em português possui um sentido de exterioridade, alteridade (sinônimo de forasteiro), inexistente em alemão, o que não nos impede de constatá-lo como um dos sentidos presentes no texto, o que o aproxima da figura do psicanalista. Cf. HANNS, L. (1996) p.234. 437 PENNA, J.C. (2003) p.96. 438 FREUD, S. (1988b) p. 243. 439 ROSA, J.G. (2001) p.303. 440 Idem, p.616. 441 LACAN, J. (2008) p.54.
senhor é o que eu sei e o senhor não sabe; mas principal quero contar é o que eu não
sei se sei, e que pode ser que o senhor saiba”442.
Por isso, pode-se considerar a presumida motivação da rememoração ligada à
carência de que o bom seja apartado do ruim como situada no plano do discurso
manifesto, pedido endereçado ao analista-senhor para que responda e resolva. Mas, ao
pedido e à pergunta se sobrepõe algo, numa latência, que impulsiona a narrativa e a
memória em direção às coisas obscuras, o que o próprio narrador também percebe com
o tempo: “Não é só no escuro que a gente percebe a luzinha dividida? Eu quero ver
essas águas, o lume da lua...”443 Vê-se, então, que a recordação se move menos no
sentido de um esclarecimento – embora Riobaldo resista, a princípio, – o rememorar e o
contar se deslocam em direção ao sombrio – o estranho – das coisas.
E como num processo de análise, se esta fala traz demanda de respostas e
soluções, também formula um desejo em aberto, dos pastos que carecem de fechos;
Riobaldo, parafraseando o título de Vladimir Safatle444, tem paixão pelo negativo, gosta
do que não compreende: o sertão está além do seu entendimento, ele tenta aprender com
Quelemén a recordar a sobre-coisa, e com Diadorim, a sua neblina – a personificação
da obscuridade – admite desejar o impossível:
Que vontade era de pôr meus dedos, de leve, o leve, nos meigos olhos dele, ocultando, para não ter de tolerar de ver assim o chamado, até que ponto esses olhos, sempre havendo, aquela beleza verde, me adoecido, tão impossível. (ROSA, J.G., 2001, p. 62).
Em outras palavras, há o pedido de “quero todos os pastos demarcados”445,
endereçado ao senhor através das várias perguntas: “Mas não diga que o senhor,
442 ROSA, J.G. (2001) p.245. 443 Idem, p. 325. 444 SAFATLE, V. (2006). 445 ROSA, J.G. (2001) p.237.
assiado e instruído, que acredita na pessoa dele?! Não? Lhe agradeço!”446, há o apelo
pela norma dum caminho certo que desfaça a mistura do mundo:
Só o que eu quis, todo o tempo, o que eu pelejei para achar, era uma só coisa – a inteira – cujo significado e vislumbrado dela eu vejo que sempre tive. A que era: que existe uma receita, a norma dum caminho certo, estreito, de cada uma pessoa viver – e essa pauta cada um tem – mas a gente mesmo, no comum, não sabe encontrar; (...) Mas, esse norteado tem. Tem que ter. Se não, a vida de todos ficava sendo sempre o confuso dessa doidera que é... (ROSA, J.G., 2001, p.500).
No entanto, um pedido mais fundamental se sobrepõe ao primeiro: “Me dê um
silêncio. Eu vou contar”447, pedido de escuta do que não está no dito, da palavra como
instrumento, mas no sobredito, pulsão, busca pelas outras palavras: “Escute meu
coração”, pegue no meu pulso”448 – pedido que comove uma outra busca, relacionada
com o desejo, ainda presente, por Diadorim; mas fundamentalmente com a questão da
ausência, do Mal ou da negatividade sob todas as suas formas, com as lacunas e vazios
deixados para que sejam tecidos, conforme ele provoca: “O senhor fia?(...). O senhor
tece?”449 “O senhor sente?”450. Ou, simplesmente, para que sejam deixados em aberto,
para que se admita o nada, o silêncio como fim, retorno e origem da rememoração e da
criação, da narrativa.
Quanto a saber se houve pacto ou não, se o diabo existe e não existe, a questão é
formulada de início numa dimensão filosófica, relacionada ao gosto por especular idéia,
do Mal que verte e reverte no bem: “Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem,
446 Idem, p.26.
447 Idem, p. 609. 448 Idem, p.601. 449 Idem, p.201. 450 Idem, p.200. É preciso fazer uma ressalva, aqui, pois mesmo estas perguntas aparentemente endereçadas ao senhor são construídas de uma forma aberta, insolúvel, e o silêncio do senhor como resposta também as distanciam de perguntas comuns, apontando para a diferença entre o caráter artístico do texto e uma situação analítica (embora o silêncio do analista seja justamente uma das condições fundamentais para se estabeleça uma análise, como veremos), pois o primeiro, ao se estabelecer em formas elaboradas abertas, plurais, atinge o inconsciente do leitor, provocando a construção de novas respostas. A esta abertura se deve o alcance universal da obra de arte, uma distinção importante em relação à forma “fixa” do sintoma neurótico. Sobre isto, cf. PERRONE-MOISÉS, L. (1990) p.120.
os crespos do homem – ou é o homem arruinado, o homem dos avessos”451. No decorrer
do texto, a indagação vai sendo subjetivada, assumindo a forma da culpa diante da
morte de Diadorim: “E o diabo não há! Nenhum. É o que eu tanto digo. Eu não vendi
minha alma. Não assinei finco. Diadorim não sabia de nada”452.
Entretanto, há também em relação à questão do demo um retorno freqüente à
dimensão do Mal como inominável, inapreensível, em meio mesmo à travessia da
questão do pacto (levando-nos a pensar em novas dessubjetivações), o que faz com que
o trabalho da rememoração seja fundado sobre e deslocado para esta negatividade,
afinal as coisas importantes se situam num plano não totalmente redutível à
rememoração, o que a faz desenrolar-se permanentemente em busca do valor das outras
coisas. Ao falar em saudade como motor da busca, portanto, é preciso retomar a
distinção entre a saudade da idéia e a saudade do coração, pois esta saudade não é
somente a nostalgia consciente do que passou, mas algo que concerne ao inconsciente (à
toda parte que coincide com a nenhuma) que move o desejo de rememorar e contar sua
história, como a tristeza sem razão de motivo, pois determinada pelo não-sabido:
“Apertou aquela tristeza, da pior de todas, que é a sem razão de motivo”453.
A selvagem desgraça, ainda.
Aqui a estória se acabou. Aqui a estória acabada.
Aqui a estória acaba.
Pensar em Diadorim como signo maior da negatividade no enredo é diferente de
dizer que a rememoração é movida pelo desejo ou pelo amor de Riobaldo em relação a
Diadorim, pois o que move ou pulsa é suposto situar-se além ou aquém da
rememoração, da compreensão e da representação, podendo-se indagar se o próprio
caráter de proibição deste amor não funcionaria como motor de um desejo louco para
451 Idem, p.26. 452 Idem, p.500. 453 ROSA, J.G. (2001) p.304.
alguém tão atraído pelo lume da lua como Riobaldo454: “às loucas, gostasse de
Diadorim”455.
A despeito disso, o amor por Diadorim mantém-se como aquilo que não passa,
marcando toda a rememoração de Riobaldo – desde o primeiro encontro com o menino
Reinaldo, na juventude: “Não me esqueci de nada, o senhor vê. Aquele menino, como
eu ia poder deslembrar?”456; ao reencontro, quando o jovem Riobaldo decide se juntar
aos jagunços de Medeiro Vaz, e o reconhece como “o que atravessou o rio comigo,
numa bamba canoa, toda a vida”457, e cujo caráter de permanência no tempo é
sintetizado poeticamente no sorriso de Reinaldo, tal como o narrador o recorda: “E
como ele sorriu. Digo ao senhor: até hoje para mim está sorrindo”458. Deste modo, o
amor por Diadorim no presente da narrativa atravessa o rememorar, manifestando-se
quando o ex-jagunço reconta sua história ao visitante, levando-o a conjugar os verbos
relembrar e amar: “Ahã. Deamar, deamo... Relembro Diadorim. Minha mulher que não
me ouça.”459
Por outro lado, na dimensão em que representa o grande mistério para Riobaldo,
em sua esquisitice, em seu gosto pelo silêncio, em seu enigma não revelado, no conflito
que o faz sentir e que ele busca compreender: “Acho que eu tinha de aprender a estar
alegre e triste juntamente, depois, nas vezes em que no menino pensava, eu acho
que”460, compreender a si próprio – também se pode considerar este um dos
movimentos da rememoração, que se acrescenta às diversas culpas, seja por associar o
amor por outro homem ao demo: “... o amor assim pode vir do demo? (...) Peço não ter
454 Ao diferenciar o objeto do desejo do objeto da pulsão, Lacan fala, deste último exatamente como os desejos loucos, vazios, como os decorrentes de uma simples proibição. Cf. LACAN, J. (2008b). 455 ROSA, J.G. (2001) p. 55. 456 Idem, p. 120. 457 Idem, p.154. 458 Idem, ibidem. 459 Idem, p.56. 460 Idem, p.126.
resposta; que, senão, minha confusão aumenta”461. Ou, por não ter se antecipado ao
acontecimento da morte: “Como foi que não tive um pressentimento?”462
Entretanto, além desta dimensão de elaboração e do trauma e reconstrução da
história, há outra dimensão da rememoração se refere a um nível concebido por Freud
como “tendências mais primitivas (...) e independentes” do princípio do prazer463, que
vêm a caracterizar a pulsão de morte. Em termos lacanianos, tanto formulações como o
não assimilável do trauma464, como a do real que retorna sempre ao mesmo lugar465,
apontariam para a pulsão como aquilo que move o rememorar466. É o que se vê na
forma do demônio: “E a idéia me retorna”467. Retorna como nenhum e com todos os
nomes, por toda a narrativa:
... Mas, então? Ah, então: mas tem o Outro – o figura, o morcegão, o tunes, o cramulhão, o dêbo, o carôcho, do pé-de-pato, o mal-encarado, aquele – o-que-não-existe! Que não existe, que não, que não, é o que minha alma soletra. E da existência desse me defendo, em pedras pontudas ajoelhado, beijando a barra do manto de minha Nossa Senhora da Abadia!... (ROSA, J.G., 2001, p. 317-318).
A morte de Diadorim constitui para Riobaldo uma dupla perda: a morte do amor
evitado no passado, que o faz sufocar “numa estrangulação de dó”468 e a revelação:
... A dôr não pode mais do que a surpresa. A coice d’arma, de coronha. (...) Diadorim era mulher, como o sol não acende a água do rio Urucúia, como eu solucei meu desespero. (ROSA, J.G., 2001, p.615).
Revelação num tempo posterior, que traz em si a perda do que teria sido
possível somente no passado, acenando-lhe com o impossível de todo: “E a beleza dele
461 Idem, p.155. 462 Idem, p.207. 463 FREUD, S. (1976) p.29. 464 LACAN, J. (2008b) p.60. 465 Idem, p.55. 466 Idem, (2008b). 467 Idem, p.55. 468 Idem, p. 614.
permanecia, só permanecia, tão impossivelmente”469. Talvez, nesta dupla perspectiva,
possamos compreender a proposição de Susana Lages segundo a qual a narrativa seria
um resíduo da saudade de Riobaldo por Diadorim, da saudade que não passa e que
fundamenta o texto como um todo:
A dor sentida pela morte de Diadorim expressa-se fisicamente: suor, febre; Riobaldo adoece, quase “morre de saudade”, de uma saudade em luta contra a melancolia: vazio improdutivo, repetição, morte. Riobaldo ultrapassa com “tardança” esse estado melancólico e dirige-se à nova vida com Otalícia, à qual, no entanto, não supre o vazio deixado pela perda de Diadorim. Ao contar sua história ao Compadre Quelemén, sua melancolia dissolve-se e a saudade, resíduo, resto de melancolia, produz a narrativa enquanto ação, vida. (LAGES, S., 2002, p.111).
A morte de Diadorim é quando origem e fim coincidem. A tripla afirmação
sobre o fim da história na última epígrafe, desdobra os sentidos do fim, da permanência
e da origem, sob os diversos tempos: da estória que se acabou no passado, da estória
acabada ou destruída, no tempo inexorável do particípio passado, e da estória
rememorada ou narrada, que acaba no presente, e continua acabando... Mas,
simultaneamente, recomeça, sob a forma da recordação contada a Quelemén, como
pulsão que o religa à vida, com a narração ao visitante que dá forma ao texto. Note-se,
porém, que tampouco o texto sai inatingido do golpe, quando o narrador –
inesperadamente – se confessa como escritor da estória, e se recusa a narrar a morte,
ameaçando não escrevê-la: “Os olhos dele ficados para a gente ver. (...) Os cabelos
com marca de duráveis... Não escrevo, não falo! – para assim não ser: não foi, não é,
não fica sendo! Diadorim...”470
469 Idem. 470 Idem, p.614.
Aqui, a duplicidade da perda é assinalada novamente através de uma construção
formal que acompanha um tema semântico. A mesma idéia de um duplo trauma, e mais
ainda do trauma que retorna como repetição, atingindo o presente, se nota na forma e no
ritmo deste dia (re)marcado na memória, onde diversas construções e fonemas se
repetem:
...Me lembro, lembro dele nessa hora, nesse dia, tão remarcado. (...). O senhor mesmo, o senhor pode imaginar um corpo claro e virgem de moça, morto à mão, esfaqueado, tinto todo de seu sangue, e os lábios da boca descorados no branquiço, os olhos dum terminado estilo, meio abertos meio fechados? E essa moça de quem o senhor gostou, que era um destino e uma surda esperança em sua vida?! Ah, Diadorim... E tantos anos já se passaram. (ROSA, J.G., 2001, p. 207).
A selvagem desgraça mostra, ainda, nitidamente, o entrecruzamento entre a
rememoração própria ao romance, ligada à trajetória de uma vida, e a memória coletiva,
associada à narrativa épica471: pois é a nele que a questão do Mal, difusa em suas
múltiplas histórias, é tomada como coisa sua para Riobaldo. Isto é, confrontado com o
Mal em sua forma mais aguda, por assim dizer, o jagunço se volta ao passado, tentando
buscar na memória uma resposta particular à questão do demo e do pacto. No mesmo
eixo de discussão, o acontecimento da morte associa o trauma como experiência do
sujeito que perde seu amor à dimensão da catástrofe, na medida em que a revelação da
Mulher envolve em termos dos determinantes coletivos, da violência e pobreza que
compõem – o querer e o poder – de matar dos jagunços.
Ao deparar-se com o real do corpo de mulher de Diadorim, Riobaldo e os
jagunços choram, e ele se abraça com a mulher que a preparava para o enterro, mas esta
mulher aparece aí com letra maiúscula, apontando possivelmente para A Mulher, o
feminino e toda a diferença a que ela pode remeter: “Recaí no marcar do sofrer. Em
real me vi, que com a Mulher junto abraçado, nós dois chorávamos extenso. E todos
471 Cf. Cap.1 desta tese.
meus jagunços decididos choravam”472. A imagem seguinte traz a dor diante da perda
em particular do amor e da castração do feminino no plano coletivo, condensada no
lamento diante do corte nos cabelos de Diadorim:
... Adivinhava os cabelos. Cabelos que cortou com tesoura de prata... Cabelos que, no só ser, haviam de dar para baixo da cintura... E eu não sabia por que nome chamar; eu exclamei me doendo: - ‘Meu amor!’ (ROSA, J.G., 2001, p.615).
Junto ao sofrimento de Riobaldo diante da surpresa da revelação, está o choro
dos decididos jagunços, onde se lê também o lamento de todos por um (im)possível
presente melhorado, pela diferença que o feminino poderia fazer não só na vida de
Riobaldo, mas numa vida onde efetivamente pudesse manifestar-se, ainda viva, como
contraponto à guerra sem fim do sertão.
Dor em aberto
E qualquer coisa que eu recorde agora, vai doer, a memória é uma vasta ferida.
CHICO BUARQUE, Leite Derramado. Além da melancolia dirigida ao passado histórico, este lamento sertanejo, o
olhar melancólico perpassa também a memória dos amores de Riobaldo, sobretudo a
recordação ligada a Diadorim, seu “amor de ouro”473; o que não significa, entretanto,
em nenhum dos aspectos, propor que a rememoração se esgota na melancolia, nem
sequer pensá-la como traço definitivo estabelecido nestes laços de amor. Pois, aqui,
como lá – lembre-se a imagem dialética do cortejo dos justos – há um enfrentamento
desta dor e deste luto, o que leva Riobaldo, mesmo sem esquecer Diadorim, a seguir em
frente, atravessando no meio da tristeza, podendo amar e casar-se com Otalícia, o
472 ROSA, J.G. (2001) p.616.
473 Idem, p.68.
“amor de prata”474, e a situar-se na história – não apenas, mas também – a partir de um
tempo após a perda: “Eu estou depois das tempestades”475.
Entretanto, a melancolia – sofrimento que Freud diferencia do luto comum e se
relaciona com um desencadear específico nos processos de enlace e separação do objeto
de amor, “de um amor que não pode ser renunciado”476 – também perpassa a
rememoração, onde a dor sem remédio, a saudade do coração e o remordido sofrimento
transmitem a mesma idéia de um irredutível lamento diante da perda: “ah, meus
buritizais levados de verdes”477. Esta sensação da perda do objeto como uma parte de si
mesmo constitui uma primeira distinção entre a melancolia em relação ao luto,
caracterizado por uma elaboração da perda que possibilita a escolha de outros objetos de
amor.
Por toda a rememoração se encontra uma identificação do sujeito com este
objeto, numa condição especial, tal como a perda descrita por Freud na melancolia: “a
sombra do objeto caiu sobre o sujeito”478, que o personagem manifesta no momento
mesmo da morte de Diadorim: “da dôr que me nublou”479. Identificação na qual o que
foi perdido mantém-se – ainda no presente da narrativa – em obscuridade, não se
discernindo completamente do sujeito: “mas Diadorim é a minha neblina (grifo
nosso)...”480. A ambivalência desta sombra se mostra, ainda, no lamento diante do
tempo e do amor irrecuperável, nas variantes da fórmula: “Ah, naqueles tempos eu não
sabia, hoje é que sei...”481. E a culpa, mais um traço apontado como próprio à
melancolia no texto de Freud, como possível conseqüência da ambivalência no próprio
laço com o objeto, que se acirra diante da perda, na qual uma parte do sujeito sofre, 474 Idem, ibidem. 475 Idem, p.611. 476 FREUD, S. (1988c) p.256.
477 ROSA, J.G. (2001) p. 614. 478 FREUD, S. (1988c) p.254. 479 ROSA, J.G. (2001) p. 613. 480 Idem, p.40.
481 Idem, p.62.
culpada: “Eu tinha culpa de tudo, na minha vida, e não sabia como não ter”482.“Agora,
no que eu tive culpa e errei, o senhor vai me ouvir”483. E a outra, goza, sadicamente
(diria Lacan) com as auto-recriminações484.
Difícil apontar, em Rosa, a estória mais triste, o personagem mais melancólico;
possível, contudo, é comparar as diferentes versões ou ensaios sobre a melancolia ao
longo de sua produção. Assim, a melancolia de Riobaldo pode ser pensada face ao já
mencionado lamentar repetitivo da terra perdida da infância, no conto “Lá, nas
Campinas”485, juntamente com o narrador de tristes palavras de “A Terceira margem do
Rio”486. Do primeiro conto, cabe apenas ressaltar a associação entre a dimensão da
perda em particular do personagem, insinuada no texto como possível abandono dos
pais, para uma dimensão inconsciente, não apenas como cenário dos desejos edipianos,
da tragédia familiar de cada um, mas também como fundo originário, enigma
constitutivo do sujeito487.
Em “A Terceira Margem do Rio”, a forma como o filho se refere aos pais,
durante todo o conto, aproxima afetivamente o leitor, irmanando-o na experiência de
desamparo com o recolhimento do pai a uma canoa, rio afora: “Nosso pai era homem
cumpridor, ordeiro, positivo; (...). Nossa mãe era quem regia”488, “Nosso pai não
voltou.”489, “Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura...”490 A forma,
482 Idem, p. 304. 483 Idem, p. 329. 484 Um aspecto pouco pensado pela crítica parece justamente a ambivalência amor-ódio de Riobaldo em relação à escolha de Diadorim pela guerra (e não pelo amor), sendo o ódio de Diadorim, ao mesmo tempo, o que atrái e repele Riobaldo, divisão que aumenta diante da revelação de que ela era mulher somente na morte. Cf. o artigo de Ana Luiza Martins Costa, intitulado “Diadorim, delicado e terrível”, em: SCRIPTA (1998). Como sugere Freud, na melancolia, as auto-recriminações são recriminações ao objeto amado... Cf. FREUD, S. (1988c) p.254. 485 ROSA, J.G. (1985) p.97-100.
486 Idem, (1988) p.32-37.
487 Cf. PERRONE-MOISÉS (2000) p.264-279.
488 ROSA, J.G. (1988) p.32. 489 Idem, p.33. 490 Idem.
utilizada do início ao fim do texto, dá à experiência o tom – ou o ritmo, repetição que
acompanha o lamento melancólico – universal.
A forte ligação afetiva com o pai fica igualmente evidente desde o início, no
pedido do filho para ir junto: “Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?”491 E a
dificuldade para esquecer, índice de sua melancolia, aparece em suas constatações: “E
esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.”492, “A gente teve de se
acostumar com aquilo. Às penas, que, a gente nunca se acostumou, em si, na
verdade”493.
Com o passar do tempo, não diminuem, mas aumentam os entraves para
encontrar objetos substitutos deste amor: “Tiro por mim, que, no que queria e no que
não queria, só com nosso pai me achava”494. Dificuldades que a família parece tentar
superar; mas ele, não. A irmã se casa, a família se muda para longe; só ele, o filho,
permanece. E o sentimento de culpa: “Sou homem de tristes palavras. De que era que
eu tinha tanta, tanta culpa? (...) Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto...”495
Culpa cujo ápice se dá com a tentativa de se substituir, tomar o lugar do pai na canoa;
tentativa fracassada, pois identificar-se completamente com o pai seria a morte, com o
que o filho se assombra, fugindo da empreitada, e adoecendo fisicamente com o
impasse:
...E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele pareceu vir: da parte de além. Sofri o grave dos medos, adoeci... (ROSA, J.G., 1988, p.37.)
491 Idem, ibidem.
492 Idem, p.35.
493 Idem, p.34.
494 Idem, ibidem.
495 Idem, p.36.
O final do conto reafirma a tristeza e o desejo de habitar este lugar, a terceira
margem do rio: “Mas então que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem
também, numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e eu rio
abaixo, rio a fora, rio a dentro – o rio.”496 Faz pensar, também, na universalidade da
condição subjetiva e a impossibilidade de uma identificação total com a figura paterna,
ou ainda o limite de acesso a este local, fundo originário de onde brotaria a
subjetividade... Neste sentido, a partir da idéia de Perrone-Moisés a respeito de uma
orfandade particular contraposta a uma falta constituinte na origem da subjetividade
como universal, é interessante pensar como Rosa reúne ambas as vertentes do
inconsciente numa única imagem poética de uma terceira-margem comum a todos, na
qual nosso pai e nossa mãe nos tornam irmãos de uma mesma orfandade, de uma
origem desconhecida e de uma busca de retorno a este lá onde era.
No entanto, há na rememoração de Riobaldo um movimento diferente dos outros
dois contos. É que, apesar da travessia particular do primeiro e da tentativa do segundo,
ambos terminam com a morte – objetiva, de Drijimiro, num caso; e o apelo de morte do
filho, no outro – indicando a morte como único retorno possível a esta origem. No
Grande Sertão, talvez pela forma com que é endereçado ao Outro, talvez por tratar-se
de uma elaboração posterior do autor para um tema ensaiado nos contos; a narrativa se
põe num movimento, num ir e vir, onde o real: “não está na saída nem na chegada: ele
dispõe para a gente é no meio da travessia”497, onde a “mãe morte”498 se espalha por
toda a história; mas a travessia pode, sim, deslocar aquele impossível, a dor em aberto,
sem suprimi-lo, mas na direção de uma possível alegria.
Mais uma vez, estamos diante da imagem poética que, se na dimensão coletiva
situava-se no cortejo dos justos em direção a uma outra justiça; aqui, encontra-se em
496 Idem, ibidem.
497 ROSA, J.G. (2001) p. 80. 498 Idem, p.371.
uma imagem do movimento: a travessia, tristonha, porém, não apenas entrecruzada pela
alegria: “O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais,
no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza!”499. Alegria
construída durante: “Mas liberdade – aposto – ainda é só alegria de um pobre
caminhozinho, no dentro do ferro de grandes prisões”500. “Minha tristeza é uma volta
em medida; mas minha alegria é forte demais. Eu atravessava no meio da
tristeza...”501.
E, finalmente, alegria como o que permite a passagem: “O vau do mundo é a
alegria”502. De acordo com o dicionário, vau significa tanto o local raso de um rio que
pode ser atravessado a pé ou a cavalo, por onde os peões passam com o gado durante
as cheias; como ocasião favorável, oportunidade503.
Travessia de minha vida
Mas o mor o infernal a gente também media.
JOÃO GUIMARÃES ROSA
A imagem da travessia reaparece várias vezes ao longo do texto: desde a
travessia do São Francisco, no primeiro encontro com Diadorim, quando o atravessar à
canoa o rio imenso, ao lado do menino Reinaldo, “... o que até hoje, minha vida, avistei,
de maior, foi aquele rio. Aquele, daquele dia”504, é associado pelo jovem Riobaldo ao
enfrentamento do medo, através da coragem que o fascina no outro, que marca a
abertura de um caminho próprio, ao começo de um tempo: “Foi um fato que se deu, um
dia, se abriu. O primeiro.”505 Até a Guararavacã do Guacuí, lugar onde Riobaldo
499 Idem, p.334. 500 Idem, p. 323. 501 Idem, p.168-169. 502 Idem, p. 321. 503 Cf. Houaiss, A. (2009). 504 Idem, p. 122. 505 Idem, p.116.
descobre o “amor mesmo amor, mal encoberto em amizade”506, onde ele menciona
novamente a “Travessia de minha vida”507, confirmando ser a travessia reconstruída na
rememoração, enigmaticamente marcada e remarcada por Diadorim.
Entretanto, a construção deste caminho como travessia de sua própria vida
requer um confronto com a solidão, com a qual Riobaldo se depara nos vários
momentos em que tenta convencer o amigo a trocar a guerra por uma vida juntos, e o
encontra irrevogável, revendo-se diante da escolha pela vida jagunça – “eu achava que
não tinha nascido para aquilo”508 – ao lado de um amor muitas vezes visto como
impossível: “Digo ao senhor: naquele dia eu tardava, no meio de sozinha travessia”509.
A travessia da rememoração de Riobaldo se apresenta na dupla vertente entre o
lembrar, recordar, recompor, “remembrar”510 “as passagens emendadas”511 da vida, e
o esquecimento, na medida em que a triste travessia é esquecer Diadorim:
... Ao tanto com o esforço meu, em esquecer Diadorim, digo que me dava entrante uma tristeza no geral, um prazo de cansado. Mas eu não meditava para trás, não esbarrava. Aquilo era a tristonha travessia, pois então era preciso... (ROSA, J.G., 2001, p. 248).
No trabalho de luto que se sobrepõe à melancolia de Riobaldo, e que compõe a
rememoração, iniciada a partir da morte de Diadorim, o mais difícil e doloroso é este
retomar cada lembrança, cada fragmento de memória que promove um reencontro com
o objeto perdido, ter de rever para ressignificar, dar novos sentidos no sentido do
desligamento. Em outras palavras, o sofrimento não é simplesmente perder, mas
reencontrar, sabendo que foi perdido, como afirma o psicanalista Juan David Nasio:
...Admito-a, mas não situo a dor como diretamente resultante da separação. Não; penso, ao contrário, que a dor surge no momento em
506 Idem. 507 Idem, p.305. 508 Idem, p.82. 509 Idem, p.200. 510 Em “Nenhum, Nenhuma”. Cf. ROSA, J.G. (1988) p.49. 511 ROSA, J.G. Op. Cit., p. 235.
que há um superinvestimento da representação do objeto amado e atualmente perdido. O que dói no trabalho de luto não é tanto a ausência do ente querido, mas o encontro, o investimento e o superinvestimento da representação psíquica que temos do ser amado e perdido. Em seu texto, Freud fala em ligação e desligamento das representações do objeto perdido; creio, exatamente que a dor se produz quando localizamos e delimitamos mais de perto (...) o objeto perdido...(NASIO, J.D., 1991, p.101).
Lembrar e esquecer Diadorim constitui, portanto, dimensão importante da
rememoração: “Mas eu estou repetindo muito miudamente, vivendo o que me faltava.
Tão mixas coisas, eu sei. Morreu a lua? Mas eu sou do sentido e do reperdido”512.
Neste trabalho de elaboração513, onde o tempo não é linear, mas narrado conforme a
rememoração, aos saltos, sobretempos, falhas, lacunas, num processo movido entre a
lembrança e o esquecimento, entre a melancolia e a alegria, “entre a paz e a
angústia”514: “Todo caminho da gente é resvaloso. Mas, também, cair não prejudica
demais – a gente levanta, a gente sobe, a gente volta!”515.
As duas travessias do Liso do Sussuarão, a primeira interrompida, no início; e
outra concluída, quase no fim do romance, mostram-se emblemáticas do processo que
Lacan chamará a travessia do fantasma, noção bastante complexa e recorrente em todo
seu pensamento516 que, aqui, interessa na acepção da fantasia construída pelo sujeito
512 ROSA, J.G. (2001) p. 546. 513 Segundo Luiz Hanns, o termo utilizado por Freud, durcharbeitein (verbo) ou durcharbeitung (substantivo), expressa a idéia de “trabalhar-se através (durch) de alguma tarefa” ou “percorrer uma tarefa do início ao fim”, sem pretensão de triunfar ou conquistar, o que difere um pouco da tradução em português elaboração, que pode dar a idéia de um processo de aperfeiçoamento, digestão ou assimilação, que se distancia do uso em Freud e Lacan, e que destacamos, aqui, em Rosa como travessia, pois o luto seria muito mais atravessado, do que digerido ou eliminado. A noção, encontrada por toda a obra freudiana, possui esta conotação no texto “Recordar, Repetir, Elaborar”, como elaboração das chamadas resistências, daquilo que se repete num processo de análise, como constituinte do próprio processo e, numa primeira acepção, algo cujo enfrentamento permite que o processo de análise prossiga: “Esta elaboração das resistências pode, na prática, revelar-se uma tarefa árdua para o sujeito da análise e uma prova de resistência para o analista. Todavia, trata-se da parte do trabalho que efetua as maiores mudanças...” Cf. FREUD, S. (1987c), p. 171; HANNS, L. (1996) p.198-204. 514 Em “Nenhum, Nenhuma”, cf. ROSA, J.G. (1988) p.49. 515 ROSA, J.G. (2001) p. 329. 516 A noção de fantasia como fator determinante na memória é percebida por Freud a partir da clínica, e pode ser situada teoricamente, na medida em que ele abandona a concepção de sedução como origem da histeria, declarando a Fliess (Carta 69 - 1897): “não acredito mais em minha ‘neurótica’”. Cf. FREUD, S. (1988d) p.309. A constatação de que não era de uma realidade objetiva que falavam suas pacientes a respeito da sedução paterna, e sim da fantasia inconsciente, marca uma reviravolta em sua teoria e
como um trauma ligado à sua origem, que faz fronteira com o real, pois o fantasma
encerra uma opacidade própria ao real, uma “entrada para o real”517, na medida em
que o fantasma é o que pode “fornecer ao sujeito uma experiência da ordem da não-
identidade e do descentramento próprio ao Real”518.
O Liso do Sussuarão, descrito por Riobaldo como deserto intransponível: “pra
lá, pra lá, nos ermos”519 (note-se novamente o lá), um vazio, um oco cheio de nada,
traz todas as marcas de seu fantasma pessoal e inconsciente: “que o Liso do Sussuarão
não concedia passagem a gente viva, era o raso pior havente, um escampo dos
infernos”(...) “Não era possível!”520. Atravessar o Liso, desta forma, constitui metáfora
da travessia do fantasma, ou do confronto com o inominável, também apresentado na
cena do pacto, confronto com o demo, sobre o qual – curiosamente – Riobaldo se
questiona: “Atravessei meus fantasmas?”521
Não cabe tentar desvendar a travessia do Liso nem o pacto, pontos cegos,
umbigos da idéia522 no enredo, veja-se a caracterização das Veredas Mortas, local do
pacto, como fundo imemorial: “aquele chão gostaria de comer o senhor; e ele cheira a
clínica. A partir deste momento, a fantasia adquire lugar preponderante na constituição da lembrança, dando lugar a uma concepção de memória ligada à lembrança como construção do sujeito, diferenciada de uma realidade objetiva. Cf. FREUD, S. (1975). A visão de Lacan, por sua vez, interessa por partir do fantasma como aquilo que não apenas se repete numa análise durante seu percurso, sentido já exposto no texto acima, mas no desenvolvimento dado por Freud posteriormente, quando Freud o percebe como algo que resta, um irredutível, mesmo ao final de qualquer processo de análise, o que Lacan atesta como ligado ao trauma: “Nossa experiência nos põe então um problema, que se atém a que (...) vemos conservada a insistência do trauma a se fazer lembrar a nós. O trauma reaparece ali, com efeito, e muitas vezes com o rosto desvelado”. Cf. LACAN, J. (2008b) p.60. 517 LACAN, J., Apud SAFATLE, V. (2006) p.206. A idéia, aqui, é do fantasma como cena criada a partir dos primeiros objetos perdidos (ou cedidos, como lembra Safatle em seu livro, assim chamados por Lacan), que dizem respeito portanto a este encontro não-idêntico e não totalmente assimilável com o real, o que pressupõe, por sua vez, que o fantasma não seja totalmente submetido à estrutura fantasmática, que ele comporta algo da não-identidade do real exposta acima, que se relaciona à pulsão e à repetição. 518 SAFATLE, V. (2006) p.206. 519 ROSA, J.G. (2001) p. 50. 520 Idem, p. 50. 521 Idem, p.499. 522 Idem, p. 579.
outroras... Uma encruzilhada, e pois!”523 Por outro lado, vale, sim, destacar alguns
pontos demarcados na memória de Riobaldo, que entrecruzam, até certa medida, a
questão do pacto e da travessia, com o amor por Diadorim e a questão do medo que, por
sua vez, perpassam – diferentemente – a rememoração.
Ao conhecer Diadorim, o que primeiro chama a atenção é que Riobaldo
encontra-se desvalido, destituído, pedindo esmola a mando de sua mãe. Após a travessia
do São Francisco ao lado do Menino, imediatamente após o Reinaldo mencionar a
coragem que herdou do pai, (que mais tarde será reconhecida por Riobaldo como um
“mandado de ódio”524): “Meu pai disse que eu careço de ser diferente, muito
diferente”525. É então que Riobaldo (que então não conhecia o próprio pai), não sem
interrogar-se a si mesmo, identifica-se com esta fala e, ao rememorar, elege o
enfrentamento de seu medo como marco inicial de sua travessia: “E eu não tinha medo
mais. Eu? (...) eu não sentia nada. Só uma transformação, pesável”526.
Apesar disto, o medo é uma constante pelo sertão e pelo discurso de Riobaldo,
fazendo-se medo do demo. Se, pouco antes do pacto, o medo retorna, e ele se diz
enjoado daquela realidade, ao encontrar os fazendeiros da região, sem um chefe
confiável, desconfiado de Zé Bebelo, sozinho, questionando sobre o sentido de
permanecer jagunço, sem ter realizado o amor por Diadorim: “Eu queria minha vida
própria, por meu querer governada. A tristeza, por Diadorim: que o ódio dele, no fatal,
por uma desforra, parecia até ódio de gente velha – sem a pele do olho”527. Após o
pacto, ao passar de jagunço a chefe do bando, ele se refere àquele sofrimento como
queixas antigas, demarcando uma mudança de posição não apenas de estatuto social,
mas subjetivo.
523 Idem, p. 417. 524 Idem, p.444. 525 Idem, p.125. 526 Idem, ibidem. 527 Idem, p.370.
Outro marco importante: anterior ao pacto com o demo, houve o pacto sempre
reafirmado com Diadorim, de lutarem juntos, e de vingança pela morte de seu pai, Joca
Ramiro, matando o Hermógenes. É quando este pacto, de certo modo, se vê ameaçado
pelo contexto acima, que Riobaldo tenta o pacto com o demo. Mas a questão da vida
desgovernada permanece, pois agora quem ameaça mandar é o demo. Como chefe,
Riobaldo se vê leve, voltado para a ação, mas vulnerável ao Mal, perdendo o controle
no encontro com o fazendeiro seo Ornelas e o lázaro. Diante desta conjuntura, outro
ponto remarcado aqui é a intervenção de analista do compadre Quelemén, ao afirmar
que o caso do delegado Hilário, contado pelo seo Ornelas, cuja moral da história era –
“Um outro pode ser a gente; mas a gente não pode ser um outro, nem convém”528 –
tinha muito a ver com a história de Riobaldo:
... Mas só porque o compadre meu Quelemén deduziu que os fatos daquela éra faziam significado de muita importância em minha vida verdadeira, e entradamente o caso relatado pelo seo Ornelas, que com a lição solerte do dr. Hilário se tinha formado. Aí narro. O senhor me releve e suponha. (ROSA, J.G., 2001, p. 477).
Todas estas passagens associam o atravessar do fantasma ao discernimento dos
aspectos imaginários, projetados tanto na figura do Hermógenes, temido e enfrentado,
como na de Diadorim, admirado e desejado, bem como a de Medeiro Vaz e Zé Bebelo
(que Riobaldo menciona ao fazendeiro Ornelas, logo ao se apresentar), todos,
caracterizados como pequenos outros em quem Riobaldo se espelha na busca por si
mesmo. Não por acaso, voltado para o tempo de jagunço anterior ao pacto e à travessia,
ele indaga: “Com Zé Bebelo da minha mão direita, e Diadorim da minha banda
esquerda: mas, eu, o que é que eu era? Eu ainda não era ainda. Se ia, se ia”529.
Atravessar o fantasma, portanto, como o deserto do Liso, requer coragem: “O
sertão tem medo de tudo. Mas hoje em dia acho que Deus é alegria e coragem – que ele
528 ROSA, J.G. (2001) p. 476. 529 Idem, p. 407.
é bondade adiante.”530 “O que ela [a vida] quer da gente é coragem”531. Coragem,
segundo a leitura lacaniana, de deslocar-se do trauma à fantasia532, isto é, de confrontar-
se com a dimensão fantasmática do trauma, questionando-a em seu estatuto de ordem
imaginária, criação do sujeito, o que novamente distancia a memória da objetividade, ao
aproximá-la da fantasia. Algo que é entrevisto no questionamento de Riobaldo sobre o
Hermógenes, associado, como Diadorim, à neblina e ao fantasma:
... Queria ver ema correndo num pé só... Acabar com o Hermógenes! Assim eu figurava o Hermógenes: feito um boi que bate. Mas, por estúrdio que resuma, eu, a bem dizer, dele não poitava raiva. Mire veja: ele fosse que nem uma parte de tarefa, para minhas proezas, um destaque entre minha boa frente e o Chapadão. Assim neblim-neblim, mal vislumbrado, que que um fantasma? E ele, ele mesmo, não era que era o realce meu – ? – eu carecendo de derrubar a dobradura dele, para remedir minha grandeza façanha!...” (ROSA, J.G., 2001, p. 556).
Igualmente interessante é constatar como a coragem e o mover-se, o dar um
passo adiante, pode tornar o que parece impossível em possível, conforme as falas do
Urutú Branco antes da travessia: “O que ninguém ainda não tinha feito, a gente se
sentia no poder de fazer”533. E após o suposto pacto: “Eu caminhei para diante. Em, ô
gente, eu dei mais um passo à frente: tudo agora era possível”534. Evoca, portanto, uma
outra experiência, experiência de encontro com o real, que – se não torna tudo, como
imagina Riobaldo, possível – faz com que algo se desloque (como a percepção de um
deserto nem tão terrível assim, mais adiante) juntamente com a própria travessia,
530 Idem, p. 329. 531 Idem, p. 334. 532 O que é importante apontar nesta noção, para esta análise, é, segundo Lacan, a correlação entre aquilo que se repete como trauma, com a fantasia, que funciona como uma espécie de tela, cena, para o real: “O lugar do real, que vai do trauma à fantasia – na medida em que a fantasia nunca é mais do que a tela que dissimula algo de absolutamente primeiro”. Cf. LACAN, J. (2008) p.64. Outra observação importante diz respeito ao aspecto imaginário de Diadorim, como um dos aspectos, não o único, pois já associei este amor como objeto da pulsão, do estranho em Diadorim. Diadorim pode ser considerado ligado ao fantasma de Riobaldo, pois o mesmo objeto pode aparecer ao sujeito ligado à dimensão da pulsão, do real, à dimensão simbólica ou ainda imaginária. Cf. SAFATLE, V. (2006) p.206. 533 Idem, p. 61. 534 Idem, p. 451.
fazendo lembrar a afirmação de Collot535, de um encontro com o real que a poesia e os
poetas não cessam de evocar, e que esta abordagem do fantasma como atravessável
também acentua536.
A travessia faz com que – lá, de dentro do deserto – e só depois, Riobaldo
redimensione a impossibilidade em atravessá-lo: “O que era – que o raso não era tão
terrível?”537 Dali, ele pode ver “um feio mundo, por si, exagerado”538, e surpreender-se
com a existência de vida naquele estranho local; com os insetos, aranhas, abelhas: “No
que nem o senhor nem ninguém não crê: em paragens, com plantas”539. Uma jornada
que pressupõe arte, cujo movimento é freqüentemente associado à dança: “Mas o
demônio não existe real. Deus é que deixa se afinar à vontade o instrumento, até que
chegue a hora de se dansar. Travessia. Deus no meio”540.
A travessia ressurge, ainda, na última página do romance, quando Riobaldo põe
fim à sua fala para o senhor que o escuta, na forma da inconclusa resposta à questão do
demo, como travessia do homem humano, à qual se segue o símbolo (∞), imagem
existente desde gravuras rupestres, utilizada no tarô como equilíbrio entre os opostos,
nomeada pela letra grega leminiscata, como o símbolo matemático do infinito, já
apontado por Ettore Finazzi-Agrò541.
Em perspectiva, o símbolo pode ser visto como a curva, tira ou Banda de
Moebius, na forma comparável a de um anel torcido, onde o seu lado direito coincide
com o avesso, e que constitui justamente um dos modelos topológicos utilizados por
535 Cf. Cap.2. 536 Esta perspectiva se opõe à leitura exclusivamente estruturalista do real como impossível, para pensá-lo como experiência do real, experiência de confronto com a não-identidade, o descentramento, o desconhecido, o inominável, distinta do imaginário e da apreensão simbólica. Encontro esta ênfase na leitura de Lacan de Vladimir Safatle e em algumas formulações de M.D. Magno, por exemplo, que considero, por este motivo, bastante próximas da literatura de Rosa. 537 ROSA, J.G. (2001) p. 524. 538 Idem, ibidem. 539 Idem, ibidem. 540 Idem, p. 325. 541 Cf. FINNAZI-AGRÒ, E. (2001) p.29.
Lacan para falar da memória e da subjetividade542, intrinsecamente relacionado à noção
de a posteriori, (Nachträglichkeit, em Freud), aprés-coup da significação, ou
simplesmente só-depois (tradução originalmente proposta por M.D. Magno). O a
posteriori diz respeito aos efeitos da significação, construídos só-depois, a esta volta ou
dobra do tempo sobre si mesma, presente na forma do romance, cujo fim está inserido
desde o início, na dupla face onde o sujeito simultaneamente narra e é narrado, e a volta
atrás coincide com o passo adiante543, dobra do tempo que Riobaldo associa inúmeras
vezes a Diadorim como trauma:
... Às voltas e revoltas, eu pelejava contra o meu socorro. Hoje, eu sei; pois sei, por que. (...) Só que andava às tortas, num lavarinto. Tarde foi que entendi mais do que meus olhos, depois das horrorosas peripécias, que o senhor vai me ouvir. Só depois (grifo nosso), quando tudo encurtou... (ROSA, J.G., 2001, p.517).
Dos fracassos da memória ao esquecimento Mas tampouco nada se parece se parece menos com a Balbec real do que
aquela com que muitas vezes sonhei... MARCEL PROUST
Somente a partir de uma expectativa de uma memória bem-sucedida, de uma
positividade total da lembrança, pode-se falar em fracasso na recordação544, é preciso
frisar. Entretanto, de acordo com a psicanálise, nos pontos em que a memória falha,
542 Lacan usa o termo transfinito (do matemático Georg Cantor) para distanciar-se do caráter totalizante do infinito, ao referir-se ao que ultrapassa o finito. Cf. LACAN, J. (2003); (2008). Entretanto, conforme já mencionamos, o tema do infinito era uma idéia cara a Rosa, sem que, a nosso ver, em sua obra, isso constitua objetivamente uma definição, surgindo muito mais como abertura, como também parece propor a análise de Finazzi-Agrò. Mas o infinito pode ser lido também, numa acepção literal e diversa, como o não-finito da finalidade sem fim do objeto poético, cujo excesso de sentidos se opõe ao fechamento ou finitude da lógica do mercado. Cf. LINS, V. (2005) p.7. 543 “... a verdade, implícita na fala do narrador, é alcançada graças a uma volta atrás”.543 Cf. FINAZZI-AGRÒ, E. (2001) p.43. Cabe ressaltar de que a verdade será tomada nesta abordagem como verdade parcial, subjetiva, construída nesta fala endereçada do narrador ao senhor-leitor. 544 Em “O Mecanismo Psíquico do Esquecimento”, de 1898, um dos seus textos iniciais, Freud busca compreender os processos psíquicos em jogo nos lapsos de memória, utilizando-se de exemplos autobiográficos a respeito do esquecimento de nomes, e de como estes “equívocos” podem ser determinados pelo inconsciente. No texto freudiano, lado a lado com a proposta de uma psicanálise que visa corrigir os recalques, resgatar as lembranças perdidas através da recordação, como lembra Coimbra, aparecem expressões como: um “inacessível à memória” e “lacunas da memória”, além da expressão referida ao fracasso, que acenam para uma outra visada sobre o tema. Cf. FREUD, S. (1994a); COIMBRA, J.C. (1997) p.120.
erra, desvia, é que se insinua a noção de algo que resta não-totalmente recoberto pela
rememoração ou pela reminiscência criadora, isto é, pela noção de uma reconstrução de
uma história através do rememorar. Neste sentido, um aspecto já apontado no processo
de rememoração de Riobaldo é o de que a temporalidade não é linear: “Em desde
aquele tempo, eu já achava que a vida da gente vai em erros, como um relato sem pés
nem cabeça, por falta de sisudez e alegria”545.
Desta forma, a memória não se apresenta de uma só vez, nem segue uma única
direção do tempo. De acordo com Freud, “ela se desdobra em vários tempos”546. Isto
significa que não há uma seqüência ou seta única do tempo, na direção passado-
presente-futuro, ao contrário, os tempos podem coabitar ou fundir-se num mesmo
tempo, e o passado é determinado pelo presente, nas voltas que o texto dá, rompendo
com a cronologia, em mais uma analogia com o inconsciente freudiano, cujos processos
são descritos como intemporais, ou seja, não são ordenados cronologicamente547. A
referência ao tempo seria dada posteriormente, pelo consciente, o que faz com que a
rememoração se assemelhe a um jogo onde as cartas se embaralham para Riobaldo:
“Teve um instante, bambeei bem. Foi mesmo aquela vez? Foi outra?”548 O relato de
suas memórias é composto de múltiplas camadas do tempo, de diferentes saltos no
tempo, onde o narrador interpõe recordações, num ir e vir da elaboração, do tecer a
história.
A noção de lembranças encobridoras diz respeito às formas pelas quais o
inconsciente pode encobrir, condensando, sobrepondo ou deslocando a recordação549.
545 ROSA, J.G. (2001) p.260-261. 546 FREUD, S. (1988e), p. 281. 547 Idem, (1988a) p.214. 548 ROSA, J.G. (2001) p.198. 549 FREUD, S. (1994b). O que é importante frisar em torno do conceito é a distinção entre memória e experiência, ou o abandono da concepção de memória ligada aos fatos verídicos, à realidade objetiva, em prol de uma memória ligada à verdade do sujeito, em outras palavras uma memória determinada pelo inconsciente. Novamente, há a afirmação de que a memória é constituída pela fantasia através de resíduos do passado.
No linguajar de Riobaldo, os lapsos e as lembranças encobridoras seriam as peças que a
memória nos prega, os descaminhos por onde os labirintos da memória nos fazem errar.
É assim que o narrador confunde nomes, como o da encruzilhada onde ocorre o suposto
pacto, no princípio denominadas Veredas Mortas, que – ao final da narrativa, após a
perda de Diadorim, tendo adoecido gravemente e, de certo modo, tendo escolhido
continuar a viver – Riobaldo descobre chamarem-se, na verdade, Veredas Altas,
demonstrando, além disso, uma associação dos nomes dos lugares de acordo com o
sentido que adquirem na memória do personagem550.
Durante a rememoração de Riobaldo, é freqüente a constatação do narrador de
que tanto o passado lhe escapa – permanecendo como enigma ou mistério – bem como a
de que ele não se esgota nesta tentativa de recuperação, produzindo sempre um resíduo.
Ao deslocamento do narrador pelo espaço, se acrescenta esta errância das recordações,
dos nomes, dos equívocos, num redemoinho (cuja imagem de uma espiral do tempo é
também a do a posteriori freudiano, no qual, do presente, ele ressignifica o passado, e o
que deste retorna como resto não-recuperado, incide novamente sobre o presente e o
futuro, numa volta adiante...), e cujo excesso nos leva a subverter a noção de fracasso,
para a concepção de que a memória toda ela é constituída por estas peças, pela
fantasia551. E de que toda lembrança seria encobridora, desvinculando-se da noção de
experiência ou verdade, para uma verdade construída pelo sujeito552.
Pois, só depois, vários anos depois, quando o passado volta uma segunda vez, e
ele reconta sua história ao visitante silencioso, Riobaldo assinala o caráter fantasmático,
ilusório, de suas lembranças: “mocidade é tarefa pra mais tarde se desmentir”553 . E
com ele, a constatação de que todo o trabalho de rememoração coloca em xeque a
550 Cf. capítulo 4. 551 Como se vê no decorrer da trajetória freudiana, por exemplo em “Construções em Análise”, de 1920, e principalmente em toda a obra lacaniana. cf. FREUD, S. (1975). 552 Cf. FREUD, S. (1975). 553 ROSA, J.G. (2001) p.39.
recuperação do tempo perdido, pois a lembrança se torna deslembrança: “lembro,
deslembro”554.
O que todos estes índices do “fracasso” da memória apontam seria, sobretudo,
para um esquecimento não-incorporado na lembrança, que Riobaldo afirma quando se
diz incapaz “de dar narração”555: “o que sinto, e esforço em dizer não consigo...”556
Esta diferença entre o esquecimento como simples apagamento da lembrança e uma
dimensão constituinte do esquecimento talvez possa ser entrevista nas expressões do
autor deslembro e não-memória, abordadas no próximo capítulo. Por ora, é importante
apenas frisar que este esquecimento como ponto de enigma da origem seria também o
que separa esta concepção de memória da noção de arquivo clássica557.
Depois após: divisão do tempo e do sujeito Aí era um tempo no tempo.
J. G. ROSA.
“Aqui eu podia pôr ponto”558: a frase é dita por Riobaldo no meio do livro. Ali,
tem lugar uma espécie de balanço da história contada, na qual ressurge a idéia de que
tudo já teria sido dito na primeira metade. E é com frases curtas, numa alteração 554 Idem, ibidem, p.42. 555 ROSA, J.G. (2001) p.221. 556 Idem, p. 305. 557 Cf. FREUD, S. (1994a); DERRIDA, J. (2001); BIRMAN, J. (2008); BENJAMIN, W. (1986a).
Para uma aproximação com uma discussão mais sistemática sobre a questão do arquivo, que escapa ao projeto desta tese, deixo apenas algumas indicações que, a meu ver, distanciam a teoria freudiana da memória da noção de arquivo clássica: a primeira, já comentada no primeiro capítulo seria a noção de resíduo, pois difere da idéia de memória como registro fiel da realidade, armazenamento. A ela, acrescento a perspectiva deste esquecimento constituinte da memória, ligado ao inominável ao imponderável da origem, e não apenas como apagamento da memória necessário à capacidade de novos armazenamentos, como também ressalta Birman sobre a crítica de Derrida à teoria freudiana. A estes dois aspectos somem-se, entre outras, a comparação freudiana do trabalho de análise à escavações, ruínas, das camadas do tempo; a idéia da memória como fantasia, construção, no processo de análise, que Freud expressa como se o analista pudesse emprestar um passado ao analisando, e finalmente a idéia de que a beleza das coisas é que elas passam, em “Sobre a Transitoriedade” ; que, somados, constituem fortes argumentos para uma diferenciação entre a teoria freudiana e a concepção positivista de arquivo como registro de lembranças estável, centrado, organizado e linear. Cf. FREUD, S. (1975); (1988f); BIRMAN, J. (2008); DERRIDA, J. (2001). 558 ROSA, J.G. (2001) p. 324.
sensível do ritmo anterior, em ritmo de dansa (como ele escreve), que o narrador abre
seu saquinho de relíquias, e retira seus fragmentos, retorcendo e interrogando seu
passado nas cinco páginas seguintes a este ponto enigmático:
... Do jeito é que retorço meus dias: repensando. (...) Tenho saquinho de relíquias. Sou um homem ignorante. Gosto de ser... ... Deus nunca desmente. O diabo é sem parar. Saí, vim, destes meus gerais: voltei com Diadorim. Não voltei? Travessias... (...) O São Francisco partiu minha vida em duas partes. A Bigrí, minha mãe, fez uma promessa; meu padrinho Selorico Mendes tivesse de ir comprar arroz, nalgum lugar, por morte de minha mãe? Medeiro Vaz reinou, depois de queimar sua casa-de-fazenda. (...) Zé Bebelo me alumiou. Zé Bebelo ia e voltava... Tudo o que já foi, é o começo do que vai vir, toda a hora a gente está num cômpito. Eu penso assim, é na paridade. O diabo na rua... (ROSA, J.G., 2001, p. 325-326-328).
Condensada num único parágrafo que toma quase quatro destas cinco páginas,
no mesmo balanço, a rememoração vai e vem, deslizando por fatos e personagens de
sua vida, sem obedecer a nenhuma cronologia, onde o que se destaca é este anúncio do
fim ainda no meio, sinalizando que os tempos da história estariam todos contidos no
entrecruzamento do texto anterior, mas só percebidos neste instante em que o narrador
vai e volta do passado, nesta curva do tempo. Não por acaso, a imagem do redemoinho
é insinuada aqui (o diabo na rua...), na forma de uma espiral que nos reenvia a esta
noção traçada e retraçada por Freud e Lacan, de um tempo desdobrado, ou só-depois da
significação.
A noção de a posteriori ou só-depois da significação articula tempo e memória,
pois, ao supor uma significação dada ao trauma num tempo posterior ao evento
recordado559, Freud estabelece um tempo desdobrado para a significação, onde só-
depois o sujeito confere um sentido traumático a uma lembrança. O que se coloca em
cena, portanto, além do distanciamento entre a memória e o acontecimento, entre a
559 É difícil estabelecer uma data exata para os conceitos, numa obra que foi permanentemente revisada pelo seu autor, mas pode-se pensar na “Carta 69” de Freud a seu amigo Fliess, como um marco, uma reviravolta no pensamento que, ao deslocar a noção de sedução para a idéia de um trauma psíquico, situa na lembrança, e portanto só-depois, no presente da rememoração, o sentido traumático da recordação. Cf. FREUD, S. (1988d); COIMBRA, J. C. (1997).
memória e a realidade objetiva – já que não é o evento em si que se torna motivo do
trauma, mas sim a forma como ele é lembrado por alguém: “Eu me lembro das coisas,
antes delas acontecerem...”560 – é esta noção de um tempo dividido em dois, que
Riobaldo, além de possivelmente inspirar a tradução de M.D. Magno561 (como se viu,
só-depois é uma fala do jagunço), nos oferece através de outra expressão desdobrada,
igualmente ligada ao trauma:“Bem que eu conheci Otalícia foi tempos depois; depois se
deu a selvagem desgraça, conforme o senhor ainda vai ouvir. Depois após.”(Grifo
nosso)562.
O a posteriori consiste, em seu aspecto mais conhecido, naquilo que confere à
rememoração a forma de uma ressignificação da história, que possibilita ao sujeito uma
construção de sua história:
... Mesmo o que estou contando, depois é que eu pude reunir relembrado e verdadeiramente entendido – porque, enquanto coisa assim se ata, a gente sente mais o que o corpo a próprio é: coração bem batendo. Do que o que: o real roda e põe diante. (ROSA, J.G., 2001, p. 154).
Entretanto, o outro aspecto já insinuado do só-depois diz respeito ao jamais563,
ao irrecuperável do tempo perdido. A divisão do tempo coloca em jogo uma divisão do
sujeito que leva o narrador a uma incessante interrogação sobre si mesmo diante da
dobra do tempo: “Eu não tinha nada com aquilo, próprio, eu não estava só
obedecendo? Pois, não era?”564 Como tentei mostrar, esta divisão se acompanha de
uma construção formal específica: “Ah, digo ao senhor: dessa noite não esqueço.
560 ROSA, J.G. (2001) p. 47. A frase é retomada por Chico Buarque em seu último romance, Leite Derramado, que desenvolve, através das memórias de um narrador centenário e senil, idéias bastantes próximas sobre o tempo e a memória. Cf. BUARQUE, C. (2009). 561 O estudo de Magno sobre Rosa veio a constituir sua tese de doutorado no curso de Letras pela UFRJ. Cf. MAGNO, M.D. (1985). 562 Idem, p. 173. 563 Sobre estes dois aspectos do a posteriori, ver o capítulo da dissertação de mestrado em Teoria Psicanalítica da UFRJ, intitulado “O Só-Depois e o Jamais”, em FLANZER, S.N. (1998). 564 Idem, p.223.
Posso?”565 Onde a reiteração das perguntas desfazem, desafiam a afirmação anterior,
sendo dirigidas tanto ao um passado esquecido da história, “cidade acaba com o sertão.
Acaba?”566; como à sua experiência particular: “dessa noite não esqueço. Posso?”567.
Ambas dizem respeito a uma suspensão do tempo, a um passado que não passa,
seja na forma do sertão que permanece, seja na lembrança traumática da primeira noite
de guerra. Cisão do sujeito que se interroga, e divisão do tempo; pois, nesta indagação,
o passado é interrogado a partir do presente568. Na tentativa de passagem de um tempo a
outro, algo não coincide, algo de refratário que se produz como resto não-integrado à
história, resíduo que vem a ser uma das definições de real em Lacan, e que persiste
impulsionando o próprio rememorar569, o mesmo real que roda e põe diante, e que se
articula como repetição, movendo o rememorar em nova volta (daí a forma da espiral do
tempo), na qual, contudo, o narrador não se vê mais identificado a si mesmo: “O senhor
tolere e releve estas minhas palavras de fúria; mas, disto, sei, era assim que eu sentia,
sofria. Eu era assim. Hoje em dia, nem sei se sou assim mais”570.
A dimensão de resto se nota, ainda, na indagação sempre reformulada e nunca
completamente respondida, promovido sobretudo pelo silêncio do interlocutor:
... E eu estava sabendo que eu já dizer aquilo era traição. Era? Hoje eu sei que não, que eu tinha de zelar por vida e pela dos companheiros. Mas era, traição, isto também sim: era, porque eu pensava que era. Agora, depois mais do tudo que houve, não foi? (ROSA, J.G., 2001, p. 215).
A divisão ou dobra do tempo coloca em questão uma idéia de memória que não
se resume na ressignificação do passado, mas aponta para algo que insiste como um
565 Idem, p.225. 566 Idem, p.183. 567 Idem, p.225. 568 Para uma análise específica sobre este duplo aspecto do trauma na obra de Ruth Klüger, cf. TRÔCOLI, F. (2010). 569 Cf. LACAN, J. (2008b). E: “Que no intervalo deste passado que ele já é no que se projeta, um buraco se abre por constituir um certo caput mortuum do significante (...) constitui o que basta, para suspendê-lo da ausência, para obrigá-lo a repetir seu contorno.” Cf. LACAN, J. (1996) p.57. 570 Idem, p. 204.
vazio; que, a cada vez, resta como não-realizado, não-recuperado, que impulsiona a
rememoração. É, portanto, a partir da noção deste tempo desdobrado que a
rememoração estabelece uma relação com o esquecimento, na medida em que a própria
rememoração insiste numa recuperação da lembrança jamais integralmente bem-
sucedida:
... Eu atravesso as coisas e não vejo – e no meio da travessia não vejo! – só estava entretido era na idéia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar noutra banda é num ponto muito mais em baixo, bem diverso do em que primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso? (ROSA, J.G., 2001, p.51.).
A noção de um esquecimento constituinte é pensada por Freud e Lacan através
das diversas formulações que apontam, todas, para o inconsciente: o umbigo do sonho,
a pulsão e o real como concepções-limite entre a representação e uma exterioridade. Em
relação à rememoração, o inconsciente é definido como aquele lá onde era que se
insinua através da repetição, mas na forma de um além, uma ausência ou hiância571,
suposto, só depois, como ponto de origem, enigma que em última instância se confunde
com o próprio sujeito. Sujeito que se constitui não apenas dividido e descentrado, mas
fundado sobre este esquecimento que assegura um limite à regressão infinita da
rememoração: “sou do deslembrado”572.
Ponto final e inaugural que não escapa ao questionamento de Riobaldo, quando
se lembra da Guararavacã do Guacuí, o lugar onde seu amor se revela: “Será que tem
um ponto certo, dele a gente não podendo mais voltar pra trás?”573 E ponto
enigmático – ao qual a cena do pacto alude (lembre-se do registro das Veredas Mortas,
local do pacto: “Ali eu tive limite certo”574) – levando-o a afirmá-lo também, quando se
571 LACAN, J.(2008) p.59. 572 ROSA, J.G. (2001) p. 546. 573 ROSA, J.G. (2001) p.305 574 Idem, p.418.
questiona por que não matou o Hermógenes antes, quando esteve comandado por ele,
tendo-o a seu lado: “Tem um ponto de marca, que dele não se pode mais voltar para
trás. Tudo tinha me torcido para um rumo só, minha coragem regulada somente para
diante...”575
Se o a posteriori envolve uma superposição de tempos, onde a rememoração é
determinada pelo desejo presente, um retorno que não é ao passado cronológico, mas ao
“que é mais inicial e autêntico em mim”576; também acena para o futuro, para Lacan, o
tempo verbal do futuro anterior577, que corresponderia em língua portuguesa, ao futuro
do presente composto, o tempo do que terá sido. Pois lá seria simultaneamente o local
do porvir, no qual o retorno: “Não é um passo atrás, na descoberta de uma origem,
mas, insisto, um retorno adiante, uma entrada mais adiante no país natal, em suma, o
retorno do recalcado”578.
Riobaldo tem sua versão sobre a pulsão como força constante579, que faz com
que o passado retorne num passo à frente: “Os dias que são passados vão indo em fila
para o sertão. Voltam, como os cavalos: os cavaleiros na madrugada – como os
cavalos se arraçôam”580. O retorno do sertão faz com que o trabalho da rememoração
caminhe novamente: “Mas o senhor vá avante (...) eu queria decifrar as coisas que são
importantes”581. Imagem semelhante à dos cavalos se vê no que move o desejo de
realização do pacto: “Nela eu pensava, ansiado ou em brando, como a água das beiras
do rio finge que volta para trás, como a baba do boi cai em tantos sete fios”582.
575 Idem, p.229-230. 576 NASIO, J.D. (1991) p.105. 577 “Isto poderia figurar um rudimento do percurso subjetivo, mostrando que ele se funda na atualidade que tem no seu presente o futuro anterior”. Cf. LACAN, J. (1996) p.57. 578 Idem, (1988) p.28. 579 “A primeira coisa que diz Freud da pulsão é, se posso me exprimir assim, que ela não tem dia nem noite, não tem primavera nem outono, que ela não tem subida nem descida. É uma força constante.” Cf. LACAN, J. (2008) p.163. 580 ROSA, J.G. (2001), p.327. 581 Idem, p.116. 582 Idem, p.419.
Eu senhor de certeza nenhuma: o sujeito descentrado
O espelho, são muitos (...) Mas que espelho?
J.G.ROSA Ao desdobrar-se junto com o tempo, Riobaldo se depara com a inevitável
experiência do descentramento: pois, ao afirmar: “No passado, eu, digo e sei, sou
assim”583, já não sabe mais quem é, dividido entre o que lembra e o que é levado pela
lembrança: “A lembrança dela me fantasiou (...)”584, “Noite lembrada em mim”585; o
que faz com que, a determinada altura, ele tenha se reconhecido num “eu senhor de
certeza nenhuma”586. É interessante observar uma fusão, na forma eu-senhor, imagem
dialética e poética – em outras palavras, a construção de um terceiro – entre o narrador
que quer saber e o senhor que sabe, mas imediatamente, não sabe mais...
Pois “a travessia é a travessia do espelho”587, das identificações imaginárias,
cujo percurso é a produção de uma outra cena, onde o narrador pode olhar de fora para
o espelhamento, e perceber a dissimetria, a diferença (que Riobaldo percebe depois, em
Diadorim, Maria Deodorina) entre dois reflexos, e produzir um texto, imagem, obra,
que ocupa o lugar do espelho, lugar de enigma que nos olha desde um ponto abissal, nos
interroga, nos abre “a um vazio que nos olha, que nos concerne e, em certo sentido, nos
constitui”588.
A experiência de desencontro consigo mesmo, de um eu excêntrico a si é uma
constante em Guimarães Rosa, e novamente parece que, a partir dos motivos presentes
583 Idem, p.156. 584 Idem, p.57. 585 Idem, p.585. 586 Idem, p.370. 587 De acordo com Magno, numa referência a Lewis Carrol, atravessar o liso é atravessar o liso do espelho. O chiste refere-se à mudança na relação especular, bidimensional com o outro, para situar-se num lugar terceiro, mais aberto à dessemelhança. Cf. MAGNO, M.D. (1985) p.55. 588 Sobre o espelho: Idem, p.190; sobre o que nos olha na imagem: DIDI-HUBERMAN, G. (1998) p.31.
nas interrogações de contos, como em “O Espelho”: “Você chegou a existir?”589, à já
mencionada pergunta final do narrador no conto de sugestivo título “Nenhum,
Nenhuma”: “eu; eu?”590; Riobaldo leva ao extremo estas indagações, atravessando-as,
indo e vindo com suas identificações, deixando-se atravessar pela incerteza, sem
dissolver-se por completo, mas – tampouco – deixar de se reconhecer no Outro: “o
sertão me produz, depois me engoliu, me cuspiu...”591
Desta forma, se o narrador confirma a divisão do sujeito que pensa onde não
é592, não parece paralisar-se na oposição entre o ou pensa ou é. E traz – comparável,
mas não idêntico a Hamlet – nossas contradições em aberto; pois, como ainda se verá, a
pergunta se o diabo existe e não existe? resta sem resposta até o fim, permanecendo
como a nossa questão: to be or not to be, versão brasileira; onde a inconclusão consiste
muito mais numa “escolha poética”593 (em decidir ser ‘e’ não ser, ao invés de paralisar
na dúvida entre ser ‘ou’ não ser) do que numa suposta “‘natureza ‘duvidosa’ da
identidade brasileira”594:
589 Não me estenderei no comentário sobre este conto já exaustivamente analisado à luz da psicanálise, apenas observo o mesmo endereçamento da questão, nele formulada através da identidade, a um senhor culto, apontando uma noção de sujeito que vem necessariamente do Outro, presente no primeiro parágrafo do texto: “O senhor, por exemplo, que estuda e lê, suponho nem tenha idéia do que seja na verdade – um espelho?” – O conto termina com a pergunta direta ao leitor, através de nova provocação: “Você chegou a existir? Sim? Mas, então, está irremediavelmente destruída a concepção de que vivemos em agradável acaso, sem razão nenhuma, num vale de bobagens? Disse. Se me permite, espero, agora, sua opinião, mesma, do senhor, sobre tanto assunto.” ROSA, J.G. (1988) p.65; 72. 590 Idem, p.54. 591 ROSA, J.G. (2001) p.601. 592 No item “Do sujeito da certeza”, Lacan destaca a oposição entre o sujeito freudiano e o cógito cartesiano, definindo o inconsciente como “nem ser, nem não ser”, mas como não-realizado, como o representante de algo que não está lá, constituindo um sujeito que pensa onde não é, e também menciona Hamlet, sujeito imerso na dúvida entre ser ou não ser. Cf. LACAN, J. (2008) p.36-41. 593 Todas as vezes em que me refiro à escolha poética em deixar as perguntas em aberto, trata-se da fala de Didi-Huberman, segundo a qual “a suspensão da conclusão é uma questão de ritmo”, “não reponder é uma decisão poética” do artista que assim decidiu (“il a bien décidé”), que acena também para a ética e a responsabilidade de toda escolha. Cf. DIDI-HUBERMAN, G. (2009/2010). Em outras palavras, o indecidível não está dado de antemão, não constitui uma ‘natureza em si’; diferença que, pensada no contexto do olhar crítico do escritor sobre a nossa história, talvez se traduza na escolha entre um elogio de uma indecisão perpétua, ou da suspensão que nos reapresenta a contradição, de uma dialética que se abre para uma terceira possibilidade. 594 Cf. FINNAZI-AGRÒ, E. (2001) p.143. Tomo emprestada a expressão utilizada pelo pesquisador, embora saiba que sua perspectiva é histórica, para ilustrar uma abordagem existente da ambigüidade brasileira enquanto identidade, natureza a-histórica; numa palavra, um destino, ao qual a decisão de ser e não ser se contrapõe.
...A suspeita prévia, mais uma vez, é que a solução do dilema nacional – assim como a questão da existência ou inexistência do Diabo – esteja dobrada na pergunta, ou seja, que a verdade de uma nação que não é “una” (...) consiste justamente na sua inconsistência e indefinição, ou melhor, no seu conter de modo problemático e interrogativo, tudo aquilo que a pode abolir: “O Brasil existe e não existe?” (FINAZZI-AGRÒ, E., 2001, p. 102).
Na entrevista de 1965 a Günter Lorenz, Rosa afirma a brasilidade justamente
como algo de originário, mas, noutro de seus muitos paradoxos, “a língua de algo
indizível.(...) talvez um sentir-pensar”595, fornecendo como um dos exemplos de
brasilidade, após o exasperado apelo do entrevistador alemão; exatamente a crença no
diabo, o que só vem reforçar a leitura da questão, aqui, como pergunta que nos devolve,
poeticamente, a forma do nó, o fascínio e o horror de ser e não ser596 presentes em
nossas contradições irresolvidas (apesar de certa disjunção entre esta leitura e a
declaração final do escritor de uma possível superação completa da questão):
... Um terceiro exemplo: segundo nossa interpretação brasileira, não muito cristã, mas muito crédula, o diabo é uma realidade no mundo. Está oculto na essência das coisas, e faz ali suas brincadeiras. A ciência existe para expulsar o diabo. O homem sofre sempre o desespero metafísico, pois conhece a existência do diabo e pode assim liquidá-lo, superando-o até conseguir uma humanidade sem falsidades. Também isto é brasilidade. (In: LORENZ, G., 1983, p.62).
Considerando as implicações desta pergunta paradoxal, juntamente com a noção
de um sujeito dividido e descentrado, não se pode argumentar que a rememoração da
vida do jagunço unifica a história, conferindo-lhe uma identidade íntegra – pois vida,
diz ele, “a vida não é entendível”597: “Vida” é noção que a gente completa seguida
assim, mas só por lei duma idéia falsa. Cada dia é um dia”598. E Diadorim ensina que:
595 LORENZ, G. (1983) p.92. 596 Ver também a noção de imagem poética em Octavio Paz, justamente como o que condensa os opostos em uma única unidade, rompendo com a lógica pré-socrática de Parmênides o ser é – o não ser não é. Em: PAZ, O. (1972) p.37. 597 ROSA, J.G. (2001) p.156. 598 Idem, p.414.
“A vida nem é da gente...”599, insinuando a impossibilidade de dissociar inteiramente
esta destituição da vida de seus enlaces sociais, já que há um confronto explícito entre o
fazendeiro, “sujeito da terra definitivo”600, e o jagunço, “homem provisório”601, que
articula a destituição do jagunço também às condições impostas por aquele sertão.
Entretanto, o percurso da rememoração põe em cena uma destituição que não se
restringe à esfera social, pois, em que pese a fronteira fluída entre os termos eu e outro
(fluidez acentuada por toda a obra de Rosa e para a qual o próprio conceito de
destituição subjetiva irá apontar), trata-se, na destituição, de uma espécie de
esquecimento de si, comparável, como a lemos, ao gesto fundador de Medeiro Vaz:
... Quando moço, de antepassados de posses, ele recebera grande fazenda. Podia gerir e ficar estadonho. Mas vieram as guerras e os desmandos dos jagunços – tudo era morte e roubo, e desrespeito carnal das mulheres casadas e donzelas, foi impossível qualquer sossego, desde em quando aquele imundo de loucura subiu as serras e se espraiou nos gerais. Então Medeiro Vaz, ao fim de forte pensar, reconheceu o dever dele: largou tudo, se desfez do que abarcava, em terras e gados, se livrou leve como que quisesse voltar a seu só nascimento (...). No derradeiro, fez o fez – por suas mãos pôs fogo na distinta casa-de-fazenda, fazendão sido de seu pai, avô, bisavô (...) Daí, relimpo de tudo, escorrido dono de si, ele montou em ginete, com cacho d’armas, reuniu chusma de gente corajada, rapaziagem dos campos, e saíu por esse mundo em roda, para impor a justiça...(ROSA, J.G., 2001, p.60).
Cansado da violência, deste imundo de loucura; num único gesto, Medeiro Vaz
reconhece seu dever, sua condição de assujeitamento, e destitui-se dela, despojando-se
de todos os vestígios de sua vida anterior, instituindo um nada, um marco inicial que,
por sua vez, dará origem à nova subjetivação, relacionada à era dos medeiros-vazes.
599 Idem, p.171. 600 Idem, p. 429. 601 Idem, ibidem.
Destituição e esquecimento: os vários riobaldos e o rio
Consegui o pensar direito: penso como um rio tanto anda: que as árvores das beiradas mal nem vejo...
JOÃO GUIMARÃES ROSA
Se o curso da vida de Riobaldo não unifica completamente a história, não é
somente porque, conforme visto no primeiro capítulo, as memórias coletivas
atravessam, compondo a narrativa e dificultando o seu enquadre como um relato de
memórias puramente individual. Mas também, porque, ao falar de si, tampouco se trata
de um único Riobaldo: na rememoração de sua vida, o narrador se desdobra em vários
eus, discerníveis através de seus vários nomes: o menino, o professor, o jagunço
Tatarana, o cerzidor, o chefe Urutú Branco e o fazendeiro aposentado.
Do ranger de sua rede, ele conta as suas memórias entrecruzadas pelas memórias
dos outros, os casos de caipira, sem que nenhuma delas – assim como nenhuma de suas
identidades, isoladamente – se estabeleça como definitiva, ou responda definitivamente
aos seus questionamentos; e além disto, é capaz de filosofar sobre:
... De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que era como se fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu conto... (ROSA, J.G., 2001, p.115).
A constatação leva imediatamente ao questionamento de Agamben em sua
investigação sobre o testemunho602: diante destes vários eus, considerando a noção de
um narrador-testemunha; quem narra, quem é o sujeito da narrativa? De que começos
ou limites Riobaldo fala, quando assinala determinados pontos que parecem marcar a
passagem de uma identidade a outra, com termos como: uma transformação pesável, ou
o primeiro dia da travessia do São Francisco603? Ou: “Tudo agora reluzia com
602 Cf. AGAMBEN, G. (2008). 603 “Foi um fato que se deu, um dia, se abriu. O primeiro.” Cf. ROSA, J.G. (2001) p. 116.
clareza”604, e “de meus íntimos esvaziado”605 após o pacto. Ou, ainda: “Desmim de
mim mesmo”606, diante da morte próxima de Diadorim?
Duas noções lacanianas bastante úteis para pensar a questão são as de retificação
e destituição subjetiva. Enquanto a retificação subjetiva concerne a uma re-significação
do passado através do trabalho da rememoração, ao apelo à construção de um saber
sobre si mesmo através do rememorar; a destituição subjetiva refere-se a um conceito
pensado inicialmente por Lacan a partir da experiência do término do processo de
análise – associado, portanto, à travessia do fantasma – quando o sujeito “se reconhece
na opacidade de um objeto pulsional que o constitui ao mesmo tempo que lhe
escapa”607 (cf. o caso de Medeiro Vaz), opacidade relacionada à uma queda do sujeito
suposto saber e à noção de algo que resta, não mais vinculado ao imaginário, mas com o
real.
A destituição diz respeito a um momento em que o sujeito, reconhecendo que
sempre haverá um resto impossível de nomear, um inacessível à palavra, pertencente ao
registro do real, pode atravessar o seu fantasma, o que provoca uma “queda” deste
sujeito (“o faz tombar de seu fantasma”)608, ao mesmo tempo assegurando-lhe a
possibilidade de seguir em frente com o testemunho de um novo saber, o da sua própria
análise, e mais aberto à experiência do real. Em termos mais próximos à memória,
haveria um confronto com a impossibilidade de recuperar o tempo perdido e uma
abertura ao esquecimento constituinte. A idéia de que o fantasma desvela seu aspecto
real faz, ainda, com que ele se represente como algo de “informe, de impessoal, de
opaco”609, de desumano.
604 ROSA, J.G. (2001) p. 440. 605 Idem, p.439. 606 Idem, p. 610. 607 SAFATLE, V. (2006) p.216. 608 LACAN, J. (s/d) p.36. 609 SAFATLE,V. (2006) p.219.
Neste sentido, é interessante comparar a destituição de Riobaldo na imagem do
rio, seu desejo de pensar como o rio anda, com a transmutação em onça do narrador de
“Meu Tio, o Iauaretê”610. Enquanto no conto, que reproduz a forma do diálogo
silencioso com um visitante, o leitor é lançado desde o início numa espécie de vertigem,
de ameaça, que termina com uma alusão à morte – seja do ‘eu – onça’ pelo moço de
fora, antecipado na fala do selvagem: “Eu vou. Um dia volto mais não”611; seja do
moço, devorado por este âmago, coração selvagem das trevas612. Por outro lado, no
GSV, a destituição configura uma corrente, de acordo com a definição de Agamben613,
que não se dá apenas no fim; não custa lembrar que o real se apresenta para a gente é no
meio da travessia. Mas, além disso, para Riobaldo, a corrente é tomada ao pé da letra:
“Eu queria a muita movimentação, horas novas. Como os rios não dormem. O rio não
quer ir a nenhuma parte, ele só quer é chegar a ser mais grosso, mais fundo”614.
No GSV, a imagem do rio, do tornar-se o rio, surge como efeito das sucessivas
passagens, que pode ser visto, em retrospecto, nas múltiplas subjetivações, por toda a
travessia como um passado que está lá só-depois. Porém, diversamente da saída para o
assassinato, presente em “Meu tio”; Riobaldo mergulha no “reprofundo”615, mas não se
afoga. Em contraste com o um dia volto mais não do onceiro, como veremos adiante, as
canções de Siruiz falam justamente de um jogo entre o ir e voltar. E, ainda,
diferentemente da “Terceira Margem do Rio”616, tampouco há o imperativo da morte, o
fim do tempo, como condição para descer rio abaixo, para tornar-se o próprio tempo.
610 ROSA, J.G. (1969). 611 Idem, p.142. 612 Conferir a comparação entre o conto, o GSV e o romance de Joseph Conrad. Cf. FINNAZI –AGRÒ, E. (2001) e cap. 4 deste trabalho. 613 Cf. Cap. 2 desta tese. 614 ROSA, J.G. (2001) p.450. É interessante perceber o paralelo entre questões que Rosa desenvolve em sua obra, formuladas através da teoria e da clínica psicanalítica: “...como atravessar o fantasma a fim de disponibilizar ao sujeito a experiência de um real capaz de produzir o descentramento? E, principalmente, como atravessar o fantasma sem jogar o sujeito, de uma vez por todas, no silêncio absoluto da angústia?” Em: SAFATLE, V. (2006) p.205. 615 ROSA, J.G. (2001) p.365. 616 Idem, (1988).
Pois o rio reúne a metáfora de Lete, o rio do esquecimento, mas também a do correr do
tempo, do vir a ser, de Heráclito, no qual um homem não se banha duas vezes:
... Tempo? Se as pessoas esbarrassem, para pensar – tem uma coisa!: eu vejo é o puro tempo vindo de baixo, quieto mole, como a enchente duma água... Tempo é a vida da morte: imperfeição... (ROSA, J.G., 2001, p.603).
Ao invés de dissolver-se completamente no tempo, Riobaldo, que se viu aberto,
dividido pelo tempo, pelo São Francisco, que partiu sua vida em duas partes; ao tornar-
se rio, também é capaz de abrir-se a este tempo e à sua dimensão criadora, visível na
imagem da travessia no final do texto, que evoca este tempo no tempo, do tornar-se
tempo aqui-agora, do rio como aquilo que só-depois, inserido no princípio, acena para
o devir das coisas futuras.
Como ensina Lacan, a destituição tem a ver com a já comentada noção de algo
que resta, produto do só-depois da significação: “Que possam surgir liberdades da
clausura de uma experiência, eis o que tem a ver com a natureza do ‘aprés-coup’ na
significância.”617 Experiência de deslocamento, abertura, descentramento e estranheza
comparável à obra de arte, daí a possibilidade da leitura de Magno, partilhada por
Susana Lages618, do texto como resto, resíduo da travessia.
Neste sentido, é também possível indagar se a famigerada pergunta sobre o
Diabo, fantasma que constitui Riobaldo como sujeito desta busca, que o fascina e
assombra por toda a narrativa – apesar de permanecer em aberto, através do pingado de
pimenta que o escritor introduz com a expressão se for, reinstauradora da dúvida – em
617 LACAN, J. (s.d.) p. 39. 618 Cf. p.135 deste trabalho.
suma, se esta questão-fantasma não é destituída no final do romance, ou seja, de algum
modo, deslocada, dando lugar à imagem da travessia619:
...Amável o senhor me ouviu, minha idéia confirmou: que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que digo, se for... Existe é homem humano. Travessia. (ROSA, J.G., 2001, p.624).
Na travessia precedida, no fim, como no início do texto, por não e nada620, vai
se delineando uma possível resposta à questão de quem narra, do narrador-testemunha,
situado neste limite instável entre um e outro, o que narra e é narrado, pois quando
Agamben afirma que “o sujeito do testemunho é quem dá testemunho de uma
dessubjetivação”621, é preciso ler o que ele diz em seguida, que vem a ser a já citada
corrente de subjetivações e dessubjetivações própria ao testemunho, justamente como o
testemunho de Riobaldo, que atravessa o deserto, mas não o habita o tempo todo (como
supõe-se do pai, na terceira margem do rio): Riobaldo traz o rio em seu nome, mas vai
lá e volta, como a letra da canção de Siruiz, o brinquedo do menino de “Os Cimos”622 e
– evidentemente – como o carretel do neto de Freud.
Se a destituição, a queda do sujeito, dá lugar a esta noção de sujeito de
passagem623, à imagem da travessia e à identificação com o rio, é interessante pensar
que, além de ser possível somente em retrospectiva perceber como toda a narrativa traz
esta marca624; há uma provável escolha poética do escritor – tão atento aos jogos
formais com a simetria e a dissimetria, à disposição das palavras no texto e à ordem dos
619 Na leitura de Safatle sobre a destituição subjetiva, o objeto não seria abandonado, dando lugar a um puro deslizamento significante, mas trata-se de um “deslocamento no interior da significação do objeto”, que possibilita o “desvelamento do descentramento”, ou experiência do real, que ele nomeia como carne, termo inspirado em J.P. Sartre, que revelaria a opacidade do objeto, pois Safatle está tratando questão da destituição do sujeito através do amor. Cf. SAFATLE, V. (2006) p.206. 620 Nonada vem a ser a contração de não e nada, sinônimo ainda de tutaméia, ninharia, pouca coisa, e aparece abrindo e fechando o texto, como sua primeira palavra e uma das últimas, no parágrafo final. 621 AGAMBEN, G. (2008) p.124. 622 ROSA, J.G. (1988). 623 Utilizo a idéia de passagem e travessia também presente em FINAZZI-AGRÒ, E. (2001). 624 Magno destaca o caráter da letra (∞) como simultaneamente resíduo e fundamento da narrativa do GSV, que vem em lugar do que a palavra não alcança: “É com esta letra, com este ícone, que Rosa marca a anca do seu bezerro erroso chamado Grande Sertão: veredas.” Cf. MAGNO, M.D. (1985) p.56.
contos nos livros – ao inscrever nonada como a primeira, mas não a sua última palavra,
esta, sim, a travessia, que indica um retorno ao início do livro, à estória contada e escrita
do (re)memorar.
Nas idas e vindas da rememoração de seus outros eus, a noção de sujeito da
narrativa, o narrador-testemunha, portanto, não consiste propriamente numa
objetividade, sendo pensada como lugar625, passagem, efeito, de um a Outro, dando
testemunho de suas dessubjetivações e engendrando novas subjetivações, definição que
complementa a já mencionada leitura de Arrigucci de que a narrativa individual se
desenreda da coletiva, pois revela a constituição deste sujeito não apenas a partir destes
outros eus; mas, fundamentalmente, a partir do Outro como campo do não-realizado,
inconsciente, como os campos gerais “cheios de nada” 626, o mesmo nada capaz de
“virar coisas”627.
A rememoração é, portanto, realizada na dupla face destituição-retificação, na
qual ambas respondem pela (im)possibilidade de narrar uma história. Em sua fala para,
Riobaldo pode passar – com a intervenção silenciosa deste senhor que soube escutar o
seu pedido por um silêncio – da repetitiva suposição o senhor sabe, para outras
posições, onde a reserva de saber do senhor insere uma lacuna, na qual o senhor não
sabe – “o senhor não sabe: rincho de cavalo padecente assim, de repente engrossa e
acusa buracões profundos”628 – “Ao que narro, assim refrio, e esvaziado, luiz-e-silva.
O senhor não sabe, o senhor não vê”629 – permitindo, assim, a introdução de uma
negação mais radical ainda no interior de seu discurso:
... Ao dôido, doideiras digo. Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz,
625 MAGNO, M.D. (1985) p. 14. 626 ROSA, J.G. (2001) p. 538. 627 Idem, 296. 628 Idem, p. 357. 629 Idem, p.608.
então me ajuda. Assim é como conto. Antes conto as coisas que formaram passado para mim com mais pertença. Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe (grifo nosso). Só umas raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas, veredazinhas... (ROSA, J.G. Op. Cit., p. 116).
A passagem de o senhor não sabe para ninguém não sabe630 somente pode ser
realizada graças ao silêncio, ao não saber responder às suas demandas, por parte deste
senhor-escritor-analista, que introduz e possibilita a construção deste silêncio, fazendo
com que, quando Riobaldo lhe proponha: “Aí, no intervalo, o senhor pega o silêncio,
põe no colo”631 – o silêncio se espraie pela obra e por todos nós, senhores-leitores. Pois
ao pedido por um silêncio se junta o pedido por uma intervenção que ponha ponto final
na rememoração infinda: “Conforme foi. Eu conto; o senhor me ponha ponto.”632
A partir deste nada absoluto, Riobaldo passa da expectativa de objetividade do
relato, para a criação narrativa:
... E mais não digo; chus! Nem o senhor, nem eu, ninguém não sabe. Conto. Reinaldo – ele se chamava... (ROSA, J.G., 2001, p.155).
E pode, então, ocupar uma outra posição, chamada por Lacan de discurso do
mestre ou do analista, posição de alguém que passou de um lugar expectante para um
lugar onde se reconhece como tendo sido capaz de atravessar e deixar-se atravessar pela
linguagem, pelo ser narrado e pelo vazio, de onde não e nada, ninguém não sabe
(destituição, dessubjetivação) pode dar lugar a algo, lugar de mestria ou autoria
(retificação, nova subjetivação): o senhor saiba; é como ele se refere algumas vezes ao
visitante, agora inversamente colocado na posição de aprendiz, expressão que aparece,
630 Creio ter encontrado a mesma diferença entre estes dois registros na já mencionada distinção de Iser entre a lacuna e a negatividade radical (cf. Cap.2), na formulação do vazio que é destinado a permanecer desconhecido, de Collot (cap. 2); ou na formulação lógica pensada por Lacan, que distingue entre o zero e o nada, entre o que pode ser preenchido e o que já é, em linguagem rosiana, cheio de nada, centro opaco, que não pode ser preenchido, mas funciona como centro insondável de sustentação da subjetividade ou de origem da narrativa. Cf. LACAN, J. (s/d). 631 ROSA, J.G. (2001) p. 306. 632 Idem, p. 546.
não por acaso, com maior freqüência após o pacto: “Saiba o senhor – lá como se diz –
no vertiginosamente: avistei meus perigos”633. – “Saiba o senhor, eu estava ali, assim,
em padastro de todos”634.
Na passagem de um a outro, o que se representa é o sujeito, o sujeito como efeito
ou lugar (tutaméia?), movimento, “montagem surrealista da pulsão”635 (talvez
coubesse, devido à semelhança entre os ângulos recortados aos cacos e ruínas, e ao
caráter parcial, não-todo de toda imagem, lembrar, também, a composição cubista da
canção popular636). Dividido e descentrado, mas aberto pelo e ao tempo, a quem é
possível tornar, torcer, o exílio, o desterro, a perda; em viagem, dansa, criação – sujeito
sempre outro – no dizer de Riobaldo: “acho que eu não era capaz de ser um só o tempo
todo...”637
Por tudo isto, é possível concluir que, quando o crítico Finazzi-Agrò afirma que
a travessia não apaga a melancolia, está se referindo à marcha do progresso, e não a esta
travessia do rememorar:
... Mas a travessia, o ir além e para a frente, o ser arrastados, pela “tempestade do progresso”, rumo ao futuro, não pode nem deve apagar o olhar melancólico que Guimarães Rosa – como o Ângelus Novus, como o anjo da história imaginado por Benjamin – teve que a coragem de dirigir à dimensão assombrosa de que se (e nos) afastou: a esse passado selvático, disseminado de ruínas, povoado pelos mortos e pela Morte... (FINAZZI-AGRÒ, E., 2001, p.142).
Pois, se a travessia é a busca da outra coisa, da sobre-coisa e das coisas
importantes, alçadas à dimensão de negatividade, das terceiras memórias, da não-
memória, que se deslocam, alternando-se no texto com os conteúdos positivos da
memória: as lembranças coletivas, as lembranças de guerra, as lembranças de Diadorim,
num ir e vir da memória e das palavras às imagens-sem-nome benjaminianas, ao silêncio
633 Idem, p.366. 634 Idem, p.602. 635 LACAN, J. (2008b). 636 Trata-se da canção chamada Vaca Profana, do compositor Caetano Veloso. 637 Ibidem, p.485.
e ao esquecimento, das lembranças que vão em fila para o sertão; mas retornam, desde
os ocos e ermos, como os cavalos... – seguindo as definições em aberto do mesmo
crítico, cabe tentar reinscrever a questão, parafraseando Riobaldo, na forma das suas
construções inquietantes: A travessia não apaga a melancolia. Apaga?
E, por ser poética e sempre outra a travessia, é possível revertê-la numa imagem que
tensiona e reúne os dois opostos: a travessia da melancolia. Talvez, assim, ela recoloque
o problema do que Rosa realiza de forma única neste livro, considerando a melancolia
em nossas raízes mais íntimas.
IV. OFICINA ABERTA638: PALAVRA, IMAGEM E ESQUECIMENTO
...Tudo é porta tudo é ponte
OCTAVIO PAZ
Findo o sólido. Findo o contínuo e o calmo. Uma certa dança está em toda parte.
HENRI MICHAUX Os Nomes da Memória
...Nome de lugar onde alguém já nasceu, devia de estar sagrado. JOÃO GUIMARÃES ROSA
A identificação – ou destituição – de Riobaldo em apenas rio nos traz de volta à
questão do nome, da importância capital do nome e da nomeação das coisas no texto,
antecipada na epígrafe acima. Em termos mais teóricos, a leitura da memória e do
tempo no romance de Rosa – e, principalmente as considerações finais, sobre o ir e vir
das imagens no espelho de Riobaldo, bem como a produção de um resto resistente à
significação, na imagem da letra [∞] – relacionada às noções de Inconsciente e real,
apontam para a idéia de um passado tecido de linguagem, onde diversos índices opacos
do que é não-totalmente recuperado pela lembrança coloca em evidência uma outra
dimensão da linguagem, além do significante, que nos traz de volta às discussões sobre
a criação poética.639
638 De acordo com o artigo de Ana Luiza Martins Costa, este seria um dos títulos encontrados por Paulo Ronái numa lista do escritor, junto a outros possíveis títulos para a coletânea Ave, Palavra. Em GALVÃO, W.N.; COSTA, A.L.M. (2006) p.211. 639 Apenas para indicar alguns pontos de discussão, alguns elementos reiteram o quanto estas leituras do nome estão mais próximas do que parecem com as formulações psicanalíticas apresentadas anteriormente, vejam-se as afirmações de Lacan em 1972, no momento em que está tentando estabelecer sua teoria numa linguagem matemática, através da topologia (por ex. a Banda de Moebius); e faz uma espécie de revisão de seu ensino: “o inconsciente é estruturado como uma linguagem, eu não disse pela”. E acrescenta: “a referência pela qual eu situo o inconsciente é justamente aquela que escapa à lingüística (...) eu o disse em quê: no que a condensação e o deslocamento antecederam a descoberta, com a ajuda de Jakobson, do efeito de sentido da metáfora e da metomínia.” Cf. LACAN, J. (2003) p.490-491. O que se vê nesta nova visada lacaniana, portanto, é um privilégio da linguagem sobre a concepção de cadeia significante dada pela lingüística, no que a linguagem aponta para um além do signo, ou seja, a própria definição de inconsciente.
O debate, apresentado desde Platão, é reavivado com o surgimento da
lingüística, caracterizando uma discussão à qual: “Toda a filosofia, e toda a literatura
posterior a Platão, terá de lidar de alguma forma”640, e remonta à discussão sobre a
origem das línguas e a natureza da linguagem, dividida entre uma teoria baseada na
arbitrariedade do signo, adotada pela lingüística, e uma concepção da origem natural ou
originária da linguagem, pensada a partir do primeiro romantismo alemão641; sendo
exposto da seguinte forma por Susana Lages:
... o conflito entre uma visão cratilista e uma visão que poderíamos chamar de hermogênea da linguagem, assim como é apresentada por Platão no Crátilo. O problema da adequação entre nome e coisa conduzido por Sócrates nesse diálogo constitui o fundamento de qualquer discussão moderna sobre a linguagem e dá origem a duas vertentes, nomeadas segundo os interlocutores de Sócrates no diálogo – Hermógenes e Crátilo. A primeira, ligada ao que hoje chamamos, a partir de Saussure, arbitrariedade do signo ou da linguagem, ou depois de Benveniste, de convencionalidade do signo, contraposta a uma linhagem cratilista, cujo cerne é a idéia de algo que hoje se convencionou chamar caráter não-arbitrário ou motivado do signo... (LAGES, S.K., 2002, p. 122-123).
Como assinala Seligmann-Silva, Benveniste não se pronuncia sobre a origem,
por considerá-la uma questão metafísica; simplesmente deixa-a de lado, em favor de
uma concepção da natureza arbitrária do signo642. Diferentemente desta, há no primeiro
romantismo alemão (de F.Schlegel e Novalis) uma concepção mágica, ligada a uma
origem divina ou natural, um além do aspecto comunicacional ou instrumental da
língua, e que se formulava através de três momentos fundamentais: o de uma natureza
da linguagem a priori, segundo Novalis: “o tempo no qual pássaros, animais e árvores
falavam”643, marcado pela semelhança entre a linguagem e o mundo; a passagem à
queda, que equivale à ruptura com as similitudes, à origem das diferentes línguas, à
640 LAGES, S.K. (2002) p.123. 641 Cf. SELIGMANN-SILVA, M. (1999). 642 Idem, p.23. 643 Apud. SELIGMANN-SILVA, M. (1999) p.24.
fragmentação desta relação, que resulta numa fragmentação da linguagem e da
apreensão das coisas; e a tentativa de restituição desta linguagem originária, através da
idéia do mundo como livro a ser lido, decifrado e reescrito, numa escrita que se
encarregue da colagem dos cacos, da restituição do poder mágico que ligava as palavras
às coisas, que vem a ser proposta através da escrita poética.
No GSV, ambas as dimensões surgem articuladas à memória e ao esquecimento,
seja através de um deslizamento das imagens do passado, como vimos, entre as diversas
identificações de Riobaldo; ou, na constatação de imagens que escapam, de um núcleo
irredutível à memória e à dimensão instrumental da linguagem, onde os signos são
tomados em sua opacidade. Riobaldo vê nos olhos de Diadorim os olhos de sua mãe, e
se diz transportado pela lembrança a esta similitude originária com o mundo: “Então,
eu vi as cores do mundo. Como no tempo em que tudo era falante”644.
Do mesmo modo, diante da perda dos nomes dos lugares marcados nas
recordações de infância, que são, com o tempo, substituídos por outros, o personagem
lamenta: “é em senhas”645. Cabe demarcar novamente o necessário (e impossível, de
todo) deciframento da senha, que revela e esconde seu sentido, na mesma fala em que,
ao ressaltar o caráter sagrado do nome, ele não diz que os nomes se sucedem em
séries...
A importância dos nomes próprios já foi destacada por Ana Maria Machado em
Recado do Nome646, onde a autora se pergunta justamente sobre as funções do nome na
obra de Rosa, marcada pela presença de uma dimensão significante, cujo conteúdo se
associa a outro significante no texto (ex: Diadorim, Diá, o diabo); indissociável de uma
função nomeadora, de um “nome que enche os tons”647. A crítica partiu principalmente
644 Idem, p. 164. 645 ROSA, J.G. (2001) p. 58. 646 MACHADO, A.M. (2003). 647 Idem, a citação acima, do texto de Rosa, constitui o título do capítulo 4 do livro de A.M. Machado.
a partir da leitura do “Recado do Morro”648, onde o nome se transmite através de um
recado que, como pontuou Wisnik649, é diferente de mensagem, pois a idéia do recado é
de que o nome porta uma significação não-comunicacional a ser decifrada, algo que se
encontra, também, na descrição do nome de Diadorim: “Diadorim – o nome
perpetual”650.
O nome porta uma densidade que se articula à concepção romântica da
linguagem, e que, por sua vez, como ressalta Seligmann-Silva, encerra “nada – ou
muito pouco de metafísico”651, pois a noção da linguagem decaída insere
necessariamente uma concepção de linguagem muito próxima da Modernidade, na
medida em que é fundada sobre a ruptura com as coisas e a fragmentação, onde a
palavra divina é dada como perdida. É a esta linguagem que a poesia tentaria restituir,
desvinculando-a do sentido cotidiano, para um sentido criador, de uma linguagem
concebida como pura linguagem:
...Língua elevada à segunda potência (...) língua do som e imagem-escrita. Ela possui mérito poético e não é retórica – subalterna – quando ela é uma expressão perfeita – eufônica – correta e precisa – quando ela é como que uma expressão com [e] pela expressão – quando ela ao menos não aparece como meio – mas é em si mesma uma produção perfeita da faculdade lingüística superior. (NOVALIS, apud. SELIGMANN-SILVA, M., 1999, p.28).
A importância dada por Guimarães Rosa não apenas aos nomes próprios, mas às
palavras em geral – também encontra raízes na formulação romântica da poesia,
segundo a qual “todas as palavras são elevadas à categoria de nome”652 – tornando-se
visível no gosto do escritor por coletar palavras, confeccionar listas, nos diários e
cadernetas amplamente utilizados em seu processo criativo. Método que revela uma
648 ROSA, J.G. (2001b). 649 WISNIK, J.M. (1998). 650 ROSA, J.G. (2001) p. 387. 651 SELIGMANN-SILVA, M. (1999) p.26. 652 Idem, p.32.
procura intensa pela palavra precisa; e articula, também, a memória pessoal do escritor a
esta crença no poder mágico do nome, da palavra, da linguagem653, pois os nomes
procedem dos registros da experiência subjetiva do escritor, seja no caso da viagem de
1952, pelo sertão, junto com os vaqueiros; ou em suas anotações de viagem como
diplomata pela Europa:
...Quando saio montado num cavalo pela minha Minas Gerais, vou tomando nota das coisas. O caderno fica impregnado de sangue de boi, suor de cavalo, folha machucada. Cada pássaro que voa, cada espécie, tem um vôo diferente. Quero descobrir o que caracteriza o vôo de cada pássaro, a cada momento. Eu não escrevo difícil. EU SEI O NOME DAS COISAS. (Apud. GALVÃO, W.N.; COSTA, A.L., 2006, p.196).
Na entrevista a Günter Lorenz, o autor fala da criação de uma linguagem
própria, como um estilo necessário ao escritor e ao homem, criação pautada numa
relação de amor com a língua, expressa na já célebre citação: “A língua e eu somos um
casal de amantes que juntos procriam apaixonadamente”654. Amor pela ida ao sentido
originário das palavras, em uma “utilização de cada palavra como se ela tivesse
acabado de nascer, para limpá-la das impurezas da linguagem cotidiana e reduzi-la ao
seu sentido original”655. Na mesma entrevista, a procura pela palavra revela-se como
um método de escrita: “E também choco meus livros. Uma palavra, uma única palavra
ou frase podem me manter ocupado durante horas ou dias”656.
O cuidado se revela, no GSV, na escolha dos diferentes nomes para se referir à
memória, que podem parecer neologismos, mas são em sua maior parte termos antigos,
pouco usados, como olvidar (termo antigo, sinônimo de esquecer) e alembrar (antigo,
sinônimo de lembrar). Este último adquire, no texto, o sentido de um lembrado pela
653 A este respeito, ver também o estudo da pesquisadora Marília Rothier Cardoso, onde associa as anotações de viagem feitas pelo escritor à construção da paisagem no conto inédito e inacabado “O Imperador”. CARDOSO, M. R. (2008). 654 LORENZ, G. (1983) p.83. 655 Idem, p.81. 656 Idem, p.79.
lembrança: “Alembrado de que no hotel e nas casas de família se usa toalha pequena
de se enxugar os pés; e se conversa bem. Desejei foi conhecer o pessoal sensato...”657.
Ou então, os nomes são usados numa função incomum, como a flexão do verbo
em substantivo: uns lembrares. O termo deslembrar aparece como sinônimo do esforço
do trabalho do esquecimento: “Aquele menino, como eu ia poder deslembrar?”658; ou,
de um esquecimento originário, abissal, como em “sou do deslembrado”. Recordar e
recordação (do latim re, de novo; e cordis, coração, voltar ‘com’ ou ‘no’ coração) são
usados em passagens carregadas de afeto, como “o que me agradava era recordar
aquela cantiga, estúrdia, que reinou para mim no meio da madrugada”659, referindo-se
à canção de Siruiz. Associado, por sua vez, à repetição inerente ao processo de
rememoração, surge o prefixo re, como já apontamos: relembrar, relembro, recordei.
Já o termo remembrar, de “Nenhum, nenhuma”660, não aparece no texto do
GSV, mas é digno de nota pela dupla sinonímia entre o uso antigo, no sentido de
relembrar, e o atual tornar a unir o que estava separado, que parecem ambos
condensarem-se na rememoração como trabalho de reunião das passagens emendadas
da vida, no emendo e comparo de Riobaldo. E, finalmente, destempo: “Ah-oh-ah, o
destempo de estar sendo debochado se irou em mim”. Segundo o dicionário, significa o
que chega ou está fora do tempo661; mas a palavra alude, num sentido mais amplo, no
texto, ao tempo não-cronológico que irrompe ao longo da rememoração.
Nesta análise, o que a discussão sobre a linguagem traz como questões para a
memória seria algo em torno do seguinte: como o texto de Rosa articula, ou vai além de
uma mera articulação, recriando, fazendo novas perguntas, a partir de uma visão de um
passado que não apenas não responde às questões colocadas pelo narrador, mas de um
657 ROSA, J.G. (2001) p. 354. 658 Idem, p.120. 659 Idem, p.137. 660 Idem, (1988). 661 Idem, p. 144. E, para todos os sinônimos supracitados, cf. HOUAISS (2009).
rememorar que só faz produzir maiores questões: “Vivendo, se aprende; mas o que se
aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas”662?
Dito de outro modo, como se entrecruza uma noção de memória em que a
imagem do passado só existe articulada pelo presente num futuro anterior (o tempo do
que terá sido, do a posteriori), com esta idéia de uma dimensão originária e densa da
linguagem? Já vimos como isto se dá através de várias formulações sobre o tempo e
memória, mas e em relação à linguagem, na sua dimensão menos significante e mais
nomeadora, por assim dizer?
Um primeiro ponto em que nome e memória se tocam, no texto, é na
importância do nomear as imagens do passado, situando-se no cerne da luta que não é
somente travada contra um neutro esquecimento, mas uma guerra entre memórias663,
entre as memórias da cidade e do sertão, dos velhos e dos jovens, entre a história oficial
e a estória. Trata-se de dar nome aos anônimos: retirar do esquecimento o nome dos
lugares da infância; dos companheiros vivos e dos mortos nas guerras (enumerados, um
a um, por Riobaldo); de elementos regionais da cultura, como a jacuba (comida de
peões, feita com carne-seca e pirão de leite); ou da natureza, como o pássaro
Manuelzinho-da-Crôa. Entretanto, no nível em que apresenta o inominável, o nome faz
referência a um esquecimento situado além ou aquém do recalque, a um esquecimento
constitutivo ou originário, que se articula por sua vez ao aspecto do não-realizado, e
forma a noção freudiana de inconsciente, juntamente com o recalcado.
Outros pontos inquietantes parecem girar em torno da questão das origens e da
natureza da linguagem em questão. Rosenfield664 chamou a atenção para a relação entre
o nome Hermógenes e a concepção hermogênea da linguagem (da contingência dos
signos) salientando que Riobaldo percebe o personagem como a encarnação do Mal,
662 Idem, p. 429. 663 Cf. PORTELLA, E. (2003) p.7. 664 ROSENFIELD, K. (2006), cap.1.
representante da mistura, do próprio demo. Mas, paradoxalmente, percebemos que o
Hermógenes exerce seu fascínio sobre o personagem. O conflito se manifesta na
angústia de Riobaldo, na sua demanda por uma ordem superior ou anterior às coisas,
que organize a mistura do mundo.
No entanto, na medida em que o jagunço se depara com os sucessivos equívocos
e fracassos que apontam para a ausência de ordem ou fundamento; a aversão ao acaso
parece modificar-se, até o momento em que ele decide confrontar-se com o Mal – e,
num mesmo gesto – pactuando com o demo (o acaso), mas eliminando o Hermógenes (a
personificação do Mal) e todos os de seu bando; pacificando o sertão, mas abrindo-se ao
correr do tempo e ao acaso, o que reabre novamente a questão sobre a natureza do
sentido. No mesmo leque de questões, como já apontado, Riobaldo se pergunta se o Mal
consiste numa objetividade, isto é, se existe demo sozinho; ou, se o Mal é apenas a
contingência, o não-saber, a dificuldade humana em separá-lo do bem, presente na
imagem do demo habitante dos crespos do homem.
Além disso, em relação ao apelo a um retorno às origens, encontrado seja nas
diversas alusões aos fundos sem fundos; no Liso do Sussuarão, como miolo Mal do
sertão, seja na figura do jagunço como habitante originário do sertão; Rosa parece (sem
negá-la), provocar um curto-circuito na aspiração romântica de retorno a uma relação
mimética com a natureza, invertendo a crença numa harmonia originária, ao inserir, lá,
na origem, através da nossa figura mais primitiva, a do indígena, o Mal como
contingência, arbitrariedade, mistura, confusão: “Quem tem mais dose de demo em si é
índio, qualquer raça de bugre”665. E acrescenta, estendendo a maldade ao homem em
geral: “A gente viemos do inferno – nós todos”666.
665 ROSA, J.G. (2001) p. 38. Neste sentido, como não ler, na questão de Riobaldo sobre o demo, além da já afirmada versão brasileira do to be or not to be (cap.3 desta tese), uma reescrita do tupy or not tupy, do Manifesto Antropofágico de 1922? Novamente, é a análise de Finazzi-Agrò quem dá as coordenadas desta leitura, ao ler no canibalismo do “Meu Tio, o Iauaretê”, uma releitura – ainda menos mistificante e
A imagem da constelação, em Benjamin, à qual a linguagem é comparada,
ilustra bem a duplicidade da linguagem, pois permite uma dupla leitura: numa dimensão
mágica, as estrelas podem significar o destino dos homens; porém, esta leitura é
inseparável da interpretação da dimensão semiótica de sua posição relacional no céu667.
Com isto, lança novas luzes à questão, na medida em que os nomes não surgem como
verdades isoladas e anteriores, mas surgem articulados, adquirindo sentido em relação
uns aos outros, no texto.
No ensaio “Sobre a Linguagem em Geral e sobre a Linguagem Humana”,
Benjamin afirma que “o nome resume em si esta totalidade intensiva da linguagem”668,
que constitui a função nomeadora. Pois o nome não reenvia à coisa em si, mas a esta
capacidade de nomear: “no nome, a linguagem fala. Pode-se definir o nome como
linguagem da linguagem”669. O nome é como a imagem do passado que perpassa veloz,
mas, no instante em que o ocorrido se encontra com o agora (imagem dialética), ela se
revela num lampejo, despertando ou salvando o que ficou esquecido pela história670. Em
sentido semelhante, vale lembrar a conceituação de recalque, no artigo sobre o
mais radical – da antropofagia de Oswald de Andrade, mas que possui em comum com este a inversão da tese do indianismo romântico, que localizava no indígena a idéia de pureza vinculada à identidade nacional. A distância de Rosa da antropofagia seria relativa ao caráter ainda idealizador desta última, ao “colocar o autóctone na posição de quem, a partir da sua condição radical e liminar, assimila o Outro europeu comendo seu corpo e corrompendo sua alma,(...) disfarçando o índio de improvável precursor do comunismo e do surrealismo”; enquanto neste eu-onça não sobraria espaço para uma idealização identitária fechada, justamente por situar-se nesta zona-limite do representável, da pura destituição. Cf. FINAZZI-AGRÒ, E. (2001) p. 146. 666 ROSA, J.G. (2001) p. 64. 667 BENJAMIN, W. (1986f). 668 “Le nom résume en lui cette totalité intensive du langage comme essence spirituel de l’homme.” BENJAMIN, W. (2000) p.148. 669 “... dans le nom, le langage parle. On peut définir le nom comme le langage du langage.” Idem, ibidem. 670 Como esclarece M. Seligmann, em seu livro sobre Benjamin, as idéias, como mônadas, os fenômenos originários e a imagem dialética pertencem a uma mesma constelação de conceitos que aproximam a teoria da linguagem da temporalidade histórica. Há uma semelhança entre o sentido que só é conferido pelo texto, pela linguagem, com a verdade que só pode ser conhecida no instante, no agora. Cf. SELIGMANN-SILVA, M.(1999) p.147; BENJAMIN, W. (1984).
inconsciente, como exatamente aquilo que nega à representação-coisa, vinda do
inconsciente, a sua tradução em palavras.671
A duplicidade da linguagem se articula às concepções de linguagem decaída – a
coisa em si não tem nenhum verbo, diz Benjamin672, ela é conhecida pelo verbo
humano: a linguagem – bem como de uma linguagem pura, ou linguagem da
linguagem, pois a restituição a que se refere não é propriamente a do sentido original, já
que o sentido está perdido desde sempre, mas da significação (admitindo-se que o signo
comporta a duplicidade); trata-se, para Benjamin, de “recuperar a faculdade de
nomeação”673.
Da mesma forma, o texto de Rosa apresenta ambas as dimensões da linguagem,
mostrando-nos como uma não existe sem a outra. Assim, no aspecto significante dos
nomes da memória, os significados se articulam no interior do texto, ou em relação a
outros textos do autor, por exemplo, na oposição lembrar-deslembrar; ou ainda na
diferença entre deslembrar Diadorim e ser do deslembrado de Riobaldo. Contudo, é no
cruzamento deste registro com a dimensão nomeadora que Ana Maria Machado referiu-
se à função do nome na escrita do autor como uma “constelação de significados”674:
... Mas o mais importante é que essa significação nunca é isolada e só se verifica realmente se o Nome é tomado no conjunto do texto, como parte de um sistema, em que um elemento só existe por oposição a outros. (MACHADO, A. M., 2003, p.121).
No que concerne à dimensão mágica do nome no texto, o nomear evoca o
retorno à origem para redimir as palavras esquecidas, e recuperar o ato criador, que lhe
confere o estatuto de sagrado não por uma natureza intrínseca, mas, simplesmente,
671 Cf. FREUD, S. (1988a) p.206. 672 “...parce que la chose en elle-même n’a aucun verbe; crée à partir du verbe de Dieu, elle est connue dans son nom selon le verbe humain.” Cf. BENJAMIN, W. (2000) p.156. 673 LINS, V. (2005) p.145. 674 MACHADO, A.M. (2003) p.182.
porque, neste ato, o homem se compara a Deus, nomeando aquilo que não tem nome – o
que a declaração do escritor ao Cruzeiro, em 1967, parece confirmar:
Eu não crio palavras. Elas todas estão nos clássicos, nos livros arcaicos portugueses. São expressões de muito valor que eu pretendo salvar. (...) Para determinadas passagens, entretanto, não existem palavras. Então é preciso criá-las, ou redescobri-las através de sons que a correspondam. (Apud. GALVÃO, W.N.; COSTA, A.L.M., 2006, p.82).
Talvez, esta citação forneça chaves de leitura para a criação do termo não-
memória, no conto-poema “Evanira”, de Ave, Palavra675, expressão criada para nomear
uma memória que a lembrança não alcança, feita de esquecimento, e que tem, como
veremos, muito a esclarecer sobre a memória no Grande Sertão.
As Terceiras Memórias ou Uma História do Coração
Dificultoso, mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até no rabo da palavra.
JOÃO GUIMARÃES ROSA.
Afirmar, portanto, que a memória no texto é fundada sobre a negatividade do
esquecimento não significa que não haja produções de sentido em relação ao conteúdo
do que merece ser lembrado, e à própria concepção do rememorar. Pois a memória não
foge à regra rosiana da tensão entre os opostos, do tudo é e não é de Riobaldo, que
engendra sempre uma terceira possibilidade. Assim, cabe ver um pouco mais no detalhe
esta sucessiva busca pelo passado que se desdobra na interrogação filosófica sobre a
própria noção de rememoração.
Em sua negação mais contundente, quando se recusa a narrar as guerras,
caracterizadas como tontos movimentos, o que está em jogo para o narrador é uma
lembrança que pode ser relatada, mas não possui valor. Em outras palavras, trata-se de
675 ROSA, J.G. (1970).
um questionamento ético do que vale a pena ser lembrado, do estatuto ético da
memória:
... Que isso merece que se conte? Miúdo e miúdo, caso o senhor quiser, dou descrição. Mas não anuncio valor. Vida, e guerra, é o que é: esses tontos movimentos, só o contrário do que assim não seja. (ROSA, J.G., 2001, p. 245).
A lembrança sem valor é, assim, interrompida em seus excessos, como na
tentativa frustrada em atravessar o Liso do Sussuarão: “Mas para que contar ao senhor,
no tinte, o mais que se mereceu?”676. No repetido questionamento, a linguagem é alçada
à posição de um limite ético, onde o que se percebe é a insuficiência da memória diante
da impossibilidade de comunicar exatamente o que se passou: “Para que conto isto ao
senhor? Vou longe. Se o senhor já viu disso, sabe; se não sabe, como vai saber?”677 –
“De contar tudo o que foi, me retiro, o senhor está cansado de ouvir narração, e isso
de guerra é mesmice...”678.
Além de sua função comunicativa, portanto, a dimensão parcial, fragmentada e
negativa da linguagem, que aponta para a impossibilidade de dizer tudo, surge como
mediação para a escolha subjetiva de não narrar, não rememorar o Mal indefinidamente,
impondo um limite, como se vê também na primeira batalha junto ao Hermógenes: “De
tudo não falo. Não tenciono relatar ao senhor minha vida em dobrados passos; servia
para quê? Quero é armar o ponto dum fato, para depois lhe pedir um conselho”679.
Aqui, dois aspectos chamam a atenção: a associação das memórias de guerra à narração
de uma vida como seqüência linear de fatos objetivos; e a contraposição a estas, de uma
outra instância da memória, das outras coisas que valem a pena serem buscadas, e que
se configuram numa armação subjetiva da memória, onde, através do signo, se juntam o
676 ROSA, J.G. (2001) p. 70. 677 Idem, p. 227. 678 Idem, p. 319. 679 ROSA, J.G. (2001) p. 232.
pensamento e o sentimento, indicando, mais uma vez, que os sentidos da memória se
encontram além da objetividade do relato:
... Guerras e batalhas? Isso é como jogo de baralho, verte, reverte (...). O que vale, são outras coisas. A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com outros acho que nem não se misturam. Contar seguido, alinhavado, só sendo as coisas de rasa importância... (ROSA, J.G., 2001, p.114).
Se esta recusa incessante revela um plano sempre deslocado para mais além,
sempre outro, há efetivamente a construção de sentidos para o rememorar, que se
colocam em oposição aos primeiros: as horas da gente são valorizadas em oposição às
horas de todos, o armar o ponto dum fato em oposição à narração da vida em dobrados
passos; os signos e sentimentos em distinção às guerras e batalhas. No entanto, estas
segundas imagens da memória, colocadas em oposição às primeiras, não possuem
significado definido e estável como os anteriores. Quando nos indagamos sobre o
sentido que podem produzir, vemos que seu sentido se constrói não apenas em oposição
aos primeiros, mas num eixo: horas da gente – armação do ponto dum fato – signos e
sentimentos. Da mesma forma, as outras coisas – a sobrecoisa – as coisas importantes
se ligam numa constelação que produzem sentidos; porém, sentidos mais opacos,
obscuros, e por serem parciais, não-todos, o que eles mais produzem são as novas
perguntas, novos significados criados a cada leitura.
Construídas em aberto, num nível distinto da descrição, do dito, estas imagens
da memória propagam-se numa terceira possibilidade – esta imagem tão cara a Rosa –
revelando o desejo do narrador de contar as outras estórias, que não se configuram
como primeiras, nem segundas, mas como terceiras estórias, por serem projetadas
numa terceira margem da significação. Lá, onde era – nos ocos cheios de nada, onde as
coisas podem vir a ser – ou, o terceiro pensamento, entre a paz e angústia – a imagem
surge como o terceiro elemento benjaminiano de uma memória comparada aos sonhos,
reino em que as imagens, sobredeterminadas pela condensação e pelo deslocamento,
guardam a capacidade de se assemelhar entre si; onde, conforme o verso de Paz, tudo é
porta, tudo é ponte:
... As crianças conhecem um indício desse mundo, a meia, que tem a estrutura do mundo dos sonhos, quando está enrolada, na gaveta de roupas, e é ao mesmo tempo “bolsa” e “conteúdo”. E, assim como as crianças não se cansam de transformar, com um só gesto, a bolsa e o que está dentro dela, numa terceira coisa – a meia –, assim também Proust não se cansava de esvaziar com um só gesto o manequim, o Eu, para evocar sempre de novo o terceiro elemento: a imagem. (BENJAMIN, W., 1986a, p.39).
Dizendo de outro modo, na rememoração, que inclui a busca das “razões de não
ser”680 de seu passado, e na filosofia sobre o tempo e a memória de Riobaldo, há
afirmação, mas sobretudo de algo que não está lá. Esta construção fica ainda mais clara
na associação entre as imagens da memória anteriores (horas da gente, coisas
importantes, etc.) com a imagem de uma memória do coração:
Para que referir tudo no narrar, por menos e menor? (...) Mesmo
o que estou contando, depois é que eu pude reunir relembrado e verdadeiramente entendido – porque enquanto coisa assim se ata, a gente sente mais é o que o corpo a próprio é: coração bem batendo. (...) “Essas são as horas da gente. As outras, de todo tempo, são as horas de todos” – me explicou o compadre meu Quelemém. (ROSA, J.G., 2001, p.154).
Pois a memória do coração tem a ver – ao mesmo tempo – com o amor por
Diadorim, com as vísceras, com o que pulsa no real do corpo; mas também com o que é
depois entendido e nomeado como horas da gente, numa subjetivação desta
experiência, como recordação – o que volta no coração e marca no corpo:
... Só estive em meus dias. E ainda hoje, o suceder deste meu coração copia é o eco daquele tempo; e qualquer fio de meu cabelo branco que o senhor arranque, declara o real daquilo, daquilo – sem traslado... (ROSA, J.G., 2001, p. 481).
680 ROSA, J.G. (2001) p. 201.
A imagem do coração reúne todas as coisas: “Coração cresce de todo lado.
Coração vige feito riacho colominhando por entre serras e varjas, matas e campinas.
Coração mistura amores. Tudo cabe”681. Por isto mesmo, define-se como o menos
conhecido, a parte mais central ou profunda de algo, o âmago e a parte mais íntima de
um ser682. “Coração da gente – o escuro, escuros”683. Obscuridade que apela para ser
conhecida, nomeada; escutar as memórias de Riobaldo é escutar seu coração: “Escute
meu coração, pegue no meu pulso...”684
A junção entre o real do corpo e a idéia de um cerne da linguagem encontra
expressão no desejo de Riobaldo de ir até no rabo da palavra. No diálogo com Günter
Lorenz, o escritor associa a tarefa do escritor a um “compromisso do coração”685,
distinto da luta política engajada, como um “credo, uma poética”686 que equipara
homens e escritores em um “servir à verdade e aos homens”687. Compromisso que se
aproxima da “leitura das vísceras”688 (das semelhanças) benjaminiana, da busca em
liberar a imagem do passado, cuja apreensão “dá-se num relampejar. Ela perpassa
veloz, e, embora talvez possa ser recuperada, não pode ser fixada”689. Na mesma
entrevista, Guimarães Rosa articula a busca pelo sentido original das palavras à crença
no poder transformador da linguagem: “renovando a língua se pode renovar o
mundo”690; definindo-se como um reacionário da língua: “pois quero voltar cada dia à
origem da língua, lá onde a palavra ainda está nas entranhas da alma, para poder dar
681 Idem, p. 204. 682 HOUAISS, A. (2009). 683 ROSA, J.G. (2001) p. p.52. 684 Idem, p.601. Pensando na força poética desta imagem de Rosa, que parte de um exame médico para abri-la em mil e uma imagens da memória, cabe a pergunta, parafraseando Didi-Huberman, a respeito de Walter Benjamin: “E como não segui-lo, como não fazer nosso este desejo?” Cf. DIDI-HUBERMAN, G. (1998) p.178. 685 LORENZ, G. (1983) p.84. 686 Idem, p.74. 687 Idem. 688 BENJAMIN, W. (1986f) p.112. 689 Idem, 110. 690 Idem, p.88.
luz segundo a minha imagem”691. Novamente, a ressalva segundo a minha imagem o
distancia da visão de uma verdade objetiva situada na origem, reinserindo as noções de
construção, montagem, fantasia, tanto para a temática da ficção, como para a da
memória.
Vê-se, portanto, que a memória do GSV envolve ir ao coração da linguagem e ao
coração da história: ao encontro daquilo que volta no corpo, no coração, daquilo que faz
com que o pensamento pare, uma mônada, um centro saturado de tensões, para extrair,
emancipar692 a imagem – o terceiro elemento – esquecida, da história. De maneira bem
próxima, este coração já foi objeto da análise de Finazzi-Agrò, no estudo onde lê o
conto “Meu tio, o Iauaretê” juntamente com o GSV, comparando-os com o Heart of
Darkness, O Coração das Trevas693, romance de Joseph Conrad.
A semelhança gira em torno deste centro escuro, originário, de uma “natureza”
selvagem e abominável que exerce seu fascínio imaginário sobre uma civilização que
vai a seu encontro (o crítico emprega a palavra vertigem), e onde a questão da
aniquilação, da morte, se impõe por todos os lados. Em “Meu Tio, o Iauaretê”, este
centro se faz notar em diversos níveis, desde o deserto indefinido habitado pelo
protagonista: “Sou fazendeiro não, sou morador... Eh, também sou morador não. Eu –
tôda a parte”694. Sujeito indefinido pelo espaço: “Eu – longe”695; bem como pela
origem, filho de índia com branco; ele se revela um misto de homem e animal: “Eu –
onça”696: “onça é meu tio, o jaguaretê”697.
691 LORENZ, G (1983) p.84. 692 “Emancipar: do latim manceps/pis, termo jurídico que significa tomar, pegar pela mão, duplo gesto de reivindicar autoridade e libertar de uma autoridade. As imagens se vendem e se compram, mas a ‘imago’ é inestimável, não se vende, é sua história, sua genealogia (...) emancipar significa assumir a possibilidade de remontagem do tempo”. Cf. DIDI-HUBERMAN, G. (2009). 693 CONRAD, J. (2010). 694 ROSA, J.G. (1969) p. 126. 695 Idem, p.129. 696 Idem, p.135. 697 Idem, p.137.
Ele, caçador, pago pelo fazendeiro para desonçar o mundo, narra uma
experiência no limite do humano, de con-fusão com o maior predador do território
brasileiro. Sim, segundo o próprio, ele: caça, mata, come a carne e o coração, bebe o
sangue, come a caça, cheira a, fala, entende, trepa (?) com onça; até descobrir-se: “Eu
viro onça. Então eu viro onça mesmo”698. Originário deste local inconsciente, de onde
brota a linguagem; ele, mais perto do fundo do que Riobaldo, possui, não somente
vários nomes, mas todos: “Ah, eu tenho todo nome”699; condição que o equipara ao
sem-nome, o Diabo: “ Diabo? Capaz que eu seja...”700 – “Agora, tenho nome nenhum,
não careço”701.
Impossível não ler, também aqui, a perda do nome como destituição, em seus
contornos histórico-sociais: o tornar-se onça como vingança contra a condição imposta
pelo fazendeiro Nhô Nhuão Guede, o homem ruim e rico, de quem ele se queixa
repetidamente: “me botou aqui. Falou: – ‘Mata as onças, tôdas!’ Me deixou aqui
sòzinho, eu nhum, sòzinho de não poder falar nem escutar...”702 E a solução final,
deixada em suspensão, como mistério, como um segredo do qual não saberemos nunca,
quem mata quem, lá, em nossa origem: o índio, que come o preto e o branco? Ou o
branco, que assassina a tiros aquele que é visto como selvagem? Esta me parece ser a
questão central desenhada no final do conto703:
Mecê gostou, ã? Prêto prestava não, ô, ô, ô... Oi: mecê presta,
cê é meu amigo... Oi, deixa eu ver mecê direito, deix’eu pegar um tiquinho em mecê, tiquinho só, encostar minha mão...
Ei, ei, que é que mecê tá fazendo?
698 Idem, p.146. 699 Idem, p.144. 700 Idem. 701 Idem. 702 Idem, p.149. 703 Devo a uma conversa com a professora Marília Rothier Cardoso esta leitura da inconclusão, que difere da interpretação de Finazzi-Agrò sobre o final da estória, para quem o selvagem é morto a tiros pelo visitante. Entretanto, o crítico é quem coloca com maior precisão a questão da inconclusão na obra de Rosa, que suscitou todo este debate.
Desvira esse revólver! Mecê brinca não, vira o revólver pra outra banda... Mexo não, tô quieto, quieto... Oi: cê quer me matar, ui? Tira, tira revólver pra lá! Mecê tá doente, mecê tá variando... Veio me prender? Oi: tou pondo mão no chão é por nada, não, é à toa... Ói o frio... Mecê tá dôido?! Atiê! Sai pra fora, rancho é meu, xô! Atimbora! Mecê me mata, camarada vem, manda prender mecê... Onça vem, Maria-Maria, come mecê... Onça meu parente... Ei, por causa de prêto? Matei prêto não, tava contando bobagem... Ói a onça! Ui, ui, mecê é bom, faz isso comigo não, me mata não... Eu – Macuncôzo... Faz isso não, faz não... Nhenhenhém... Heeé!...
Hé... Aar-rrã... Aaâh... Cê me arrhoôu... Remuaci... Rêiucàanacê... Araaã... Uhm... Ui... Ui... Uh... uh... êeêê... êê... ê... ê... (ROSA, J.G., 1969, p.159).
De acordo com Finazzi-Agrò, enquanto no romance de Conrad trata-se de uma
viagem da memória, para a qual o leitor é preparado e levado, progressivamente, a
penetrar no âmago do horror; no conto de Rosa, o lugar da enunciação ocupado pela
voz narrativa, é como se já estivesse lá e, deste centro obscuro partisse sua narrativa e
sua rememoração, pois a forma do conto também é a do diálogo, onde o protagonista
conta sua vida a um interlocutor, mas numa voz que partiria do próprio abismo:
... em suma, diferentemente do que acontecia em Heart of Darkness, não há um Marlow contando de um Kurtz, o que preserva, em certa medida, a perspectiva de uma razão falando de seu contrário – aqui, não, aqui é o habitador do centro que con-voca, no seu discurso, o discurso do outro, do civilizado. Anula-se, com isso, o espaço, a distância, a fronteira tranqüilizadora entre o eu culto e o ele selvagem, instaurando um novo (e, ao mesmo tempo, voltando a um antiqüíssimo) sentido do espaço (...) em que também nós, os interlocutores, os civilizados, corremos o risco de ser engolidos. (FINAZZI-AGRÒ, E. 2001 p. 136-137).
Há, no conto rosiano, porém, algo não apontado diretamente pelo crítico, que,
por outro lado, o aproxima de minha leitura do GSV, e que consiste no humor inserido
pelo escritor mineiro nesta ameaça insidiosa, onde o discurso do narrador também oscila
entre ameaçar e ser ameaçado; estabelecendo-se num ritmo, comparável aos
movimentos que os felinos fazem com suas presas, parecendo brincar com elas... É que
o texto parece jogar com todas as nossas idealizações, promovendo uma dança dos
lugares entre quem devora e é devorado, deslocando os lugares ocupados pelos
personagens na história. Do contrário, como justificar nosso riso e o desconcerto diante
das repetidas menções do índio ao preto – o ser ausente no diálogo (não fala nem escuta,
mas é falado o tempo todo) entre o índio e o branco, e de quem, aparentemente, não
resta dúvida ter sido aniquilado?
Eh, onça gosta de carne de prêto. Quando tem um prêto numa comitiva, onça vem acompanhando, seguindo escondida, por escondidos, atrás, atrás, atrás, ropitando, tendo ôlho nele. Preto rezava, ficava seguro na gente, tremia todo... (ROSA, J.G., 1969, p. 151).
Entretanto, se todos os textos mencionados trazem o questionamento até as
raízes da história e da linguagem; a língua onomatopaica do conto rosiano, cheia de
ruídos e palavras indígenas, nos quais o sentido se dissolve no som, confirma a posição
abissal do narrador; que, como já afirmei, difere da posição de Riobaldo no Grande
Sertão. Neste, o narrador não se situa o tempo todo no deserto absoluto, sua
rememoração é entremeada por diversos signos da negatividade. Mas, o atravessar – o
mór infernal a gente media – e o deixar-se atravessar por esta corrente que tudo leva,
tornando-se parte dela, não alude à morte como saída, pois Riobaldo pensa, rememora –
e se move – através do vazio, tanto na acepção do atravessar, como no sentido de fazer
dele seu mote, seu objeto704.
Sem pretender atribuir hierarquias de qualquer natureza entre os textos, pode-se
dizer que há traços deste fundo imemorial de que parte o conto, no romance; ou talvez
pudéssemos dizer que, enquanto no conto, o narrador se encontra no presente, lá, no
exílio, à beira do abismo escuro da origem; no romance, há uma idéia de trânsito,
passagem, viagem permanente, que atravessa e evoca este mesmo abismo. Apropriando-
704 Toda esta analogia vai ao encontro das pesquisas de Ana Luisa Martins Costa, segundo as quais o GSV e Corpo de Baile, escritos quase na mesma época, fariam parte de um mesmo projeto de Guimarães Rosa, tendo o GSV crescido demais, e se desenvolvido de uma das novelas não publicadas do Corpo de Baile, possivelmente o “Meu Tio, o Iauaretê”. Cf. GALVÃO, W. N.; COSTA, A. L. M. (Orgs.) (2006).
me da fala de Didi-Huberman sobre a imagem dialética, é preciso reconhecer que o
coração do sertão funciona como um centro para:
...pensar a oscilação contraditória em seu movimento de diástole e sístole (a dilatação e a contração do coração que bate, o fluxo e o refluxo do mar que bate) a partir de seu ponto central, que é seu ponto de inquietude, de suspensão, de entremeio. (DIDI-HUBERMAN, G., 1998, p.77).
A radicalidade desta proposta encontra nome, como antecipamos, em
“Evanira”705, texto de difícil classificação, cuja abertura por um narrador que nomeia a
um si mesmo enquanto tal, duplicando-se, já introduz a complexidade: “O narrador,
tenta, em ímpetos, narrar o inarrável”706. Para Susana Lages, trata-se de um poema
com diálogos e uma narrativa comparável a um roteiro de teatro ou cinema. Em sua
análise, que enfatizou a figura do anjo como mediador entre os tempos e entre os
amantes, destaca-se a idéia relacionada à memória, da saudade como “emblema da
relação amorosa que deve, (...) necessariamente passar por alguma vivência da morte
(...) sob a forma da separação”707.
Perpassado pela figura do Anjo-nôvo e suas asas, que enviam às memórias de
infância,
Anjo nôvo. Nós – E UM SOM CHEIO DE AVENCAS PENDURADAS, restituindo-me: menino. (ROSA, J.G., 1970, p.37).
o texto fala deste anjo como a necessária saudade, pensada a partir da história de
dois seres “que imemorialmente se amam”708, uma saudade como anterior ao próprio
amor:
705 ROSA, J.G. (1970). 706 ROSA, J.G. (1970) p. 36. 707 LAGES, S. (2002) p.148. 708 ROSA, J.G. (1970) p.36.
...quem não ama e tem saudades está à espera de alguém, como o não nascido quer o ar, ainda não respirado. Como a pedra, de asas inùtilmente ansiosa. Como os cães elevam os ouvidos. Como o temer, sòzinho, ver. Como o não saber. (ROSA, J.G., 1970, p. 37).
Onde o nosso jardim imemorial, que evocaria a plenitude da origem, é feito de
“florestas e pausas (grifo nosso)”709. Mas, da dissolução no amor, experiência que
reúne, “Amo-te (...) Uno-me. Eu, enfim era eu, indispersado”710 – resta uma saudade,
“sobrada solidão”711, que evoca novamente o não-saber da origem: “quem poderia
restituir-me o que, DEPOIS nunca houve, só ausente, (...) no nevoeiro do agora?”712. A
saudade em “Evanira” faz menção à memória da origem enquanto perdida, mas
potencialmente criadora: “EVA-NASCENTE, PRIMEVA”:
A saudade é um sonho insone A saudade é o coração dando sombra. (ROSA, J.G., 1970, p.39).
Ao evocar a incompletude, o “no meio do caminho desta vida”713 de Dante, a
saudade funda uma ausência que se constitui como deserto a atravessar “(ou atravesso-
a, como a um não-mar, a um não-lugar – EU, SAARONAUTA ...)”714. É quando o
narrador se diz ameaçado pelo evanescer da saudade e do tempo, que põe em risco a
perda do Amor. Aqui, tem lugar esta memória que não a alcança, que traz de novo o não
saber da origem, junto a uma possível releitura do tempo originário romântico; pois,
mesmo antes, nem tudo era falante:
NÃO-MEMÓRIA NÃO-LEMBRANÇA:
(...) A AUSÊNCIA DOS PÁSSAROS QUE ANTES VISITAVAM NOSSAS MASMORRAS EMPAREDADAS DE SILÊNCIO.
709 Idem, p.37. 710 Idem, p. 37. 711 Idem, p.38. 712 Idem. 713 Idem. 714 Idem, p.39.
(ROSA, J.G., 1970, p. 40). O narrador tem, então, “SAUDADE da saudade”715, e fala da importância de
cultivar a saudade e a memória, através de um limite mortal, pois “morre-se de não se
lembrar”716, de não ter saudade. Mas é a saudade da saudade que o confronta com a
morte, com a não-memória, com o limite da origem. Se estamos no campo do
inconsciente, não há como fugir do tempo desdobrado, do só-depois que insere a
memória e a saudade como saudade da origem.
Ao atravessar o vazio da saudade, diz o narrador, sobre si mesmo: “o narrador
sabe-se transformado novamente e que passou por uma espécie de morte, propiciatória
e necessária”717. Então, este vazio, não-memória, revela-se como mediador e fonte,
como o que move a memória:
SAUDADE: A DONA DE PONTES, CIDADES E PAISAGENS. (...) A DANÇA LUCIFORME Deusa. (ROSA, J.G., 1970, p.43).
O texto termina com um apelo à construção desta saudade e ao silêncio,
acenando para esta não-memória, ou história do coração, do que volta no coração, e do
que move o retorno ao coração da história – que, se envolve uma ida à origem, da
linguagem, seria para recuperar o diabolismo718 da palavra, sua capacidade de seduzir e
reproduzir, produzindo sempre um sentido a mais, além, que inclui o necessário silêncio
– do mesmo modo que a ida ao passado caracteriza-se como capaz de liberar a imagem,
na miragem da origem, não para fixá-la como registro; mas, ao compará-la, movê-la,
colocando em evidência sua dimensão evanescente, de esquecimento.
715 Idem, p.40. 716 Idem. 717 Idem, p.42. 718 Cf. PERRONE-MOISÉS, L. (1990) p.14.
Trata-se, portanto, de um texto revelador em muitos aspectos, entre eles, o da
constatação de que este lá, (onde era) é fundamentalmente ritmo, nota musical, o que é
percebido na extrema semelhança do ritmo do poema, semelhante ao de uma canção,
com aquele do meio do romance, que apontei anteriormente, quando Riobaldo faz
balanço de sua história, colocando tudo, até a si mesmo, em suspensão719. É preciso
perceber que é em compasso de dança, onde o ritmo do luto se aproxima do jogo, que
esta imagem, que o nome “não-memória” evoca, é elaborada, do mesmo modo como as
que se seguem.
Imagens do esquecimento
Muita coisa importante falta nome. JOÃO GUIMARÃES ROSA
Os representantes da ausência espalham-se pela recordação de Riobaldo,
constituindo-se em índices da negatividade; ou seja, manifestações de algo que
comparece como ausente, cujos exemplos vão desde o espaço físico, até algumas
figurações humanas e inumanas, insinuando-se através de determinadas construções
formais. No espaço, já foi apontada a presença dos inúmeros “fundos fundos”720, ocos e
ermos, cujo maior exemplo seria o deserto do Liso do Sussuarão, o miôlo Mal do
Sertão; mas que se estendem aos pântanos movediços, como o “brejão engolidor”721;
ou abismos como:
... ao Vão-do-Ôco e o Vão-do-Cúio: esses buracões precipícios – grotão onde cabe o mar, e com tantos enormes degraus de florestas (...). Isto é um vão. E num vão desses o senhor fuja de descer e ir ver, aindas que não faltem as boas trilhas de descida, no barranco matoso escalavrado, entre as moitarias de xaxim. (ROSA, J.G., 2001, p. 520).
719 Devo esta afirmação aos textos e ao curso de Didi-Huberman, à sua formulação de que o que nos olha na obra provém do ritmo e dos restos, bem como à obra crítica e teórica de José Miguel Wisnik, cujos textos consultados encontram-se na bibliografia final deste trabalho. 720 ROSA, J.G. (2001) p. 398. 721 Idem, p. 83.
O Diabo representa a figura máxima desta escala, cujo excesso de nomes já
aponta para algo que se manifesta sem, necessariamente, consistir numa identidade:
“Não é, mas finge de ser”722.
... Rincha-Mãe, Sangue-D’Outro, o Muitos-Beiços, o Rasga-em-Baixo, Faca-Fria, o Fancho-Bode, um Treciziano, o Azinhavre... o Hermógenes... Deles, punhadão. Se eu pudesse esquecer tantos nomes... (ROSA, J.G., 2001, p.26).
O pacto se insere como o grande acontecimento negativo do enredo, onde
Riobaldo invoca o demônio, e obtém como resposta o silêncio. A noite do pacto, repleta
de escuridão, de vento, e de frio – mas também de seres noturnos, grilos, passarinhos,
cobras – fica sendo o grande confronto com o Nada, o Acaso, o unheimlich, o
descentramento do real; verdadeira “experiência da noite sem limite”723, onde tudo é
passível de dissolução:
“– Lúcifer, Lúcifer!...” – aí eu bramei, desengulindo. Não. Nada. O que a noite tem é o vozeio dum ser-só – que principia feito grilos e estalinhos, e o sapo-cachorro, tão arranhão. E que termina num queixume borbulhado tremido, de passarinho ninhante mal-acordado dum totalzinho sono. “– Lúcifer ! Satanaz!...” Só outro silêncio. O senhor sabe o que é o silêncio é? É a gente mesmo, demais. (ROSA, J.G., 2001, p.438).
O Hermógenes se apresenta como uma personificação do demo, e é interessante
lembrar que ele é vencido por outro personagem que escolhe a guerra ao amor, mas que
se caracteriza, acima de tudo, mais pela ambigüidade do que pelo Mal, que vem a ser
Diadorim: “Diadorim era aquela estreita pessoa – não dava de transparecer o que
cismava profundo”724. A esquisitice de Diadorim remete ao silêncio: “Ele gostava de
722 Idem, p. 318. 723 DIDI-HUBERMAN, G. (1998) p.99. 724 Idem, p.77.
silêncios”725. Diversos aspectos, já mencionados, apontam para o enigma em torno de
Diadorim.
Outros dois personagens destacam-se em seu caráter negativo: um cego, aquele
que não vê, Borromeu é indagado por Riobaldo, que o toma como a personificação do
próprio sertão, numa passagem bastante enigmática: “– Você é o Sertão?”726 – E o
senhor, que não fala, presença sem nome e silenciosa por todo o romance, que confirma
– através do seu silêncio como propiciador da construção da história – que a
negatividade destacada, aqui, vai muito além do Mal como valor moral, e tampouco
define uma posição niilista, pois o Mal, talvez situado para além da maldade, é visto
como parte de tudo que há, da qual podemos ver somente a manifestação, os efeitos.
Neste sentido, o que denominamos negatividade no GSV possui ressonâncias
com a noção de pulsão, como algo além da representação, exterior ao psíquico, que se
manifesta através da repetição; e que, portanto, em primeiro lugar, não se confunde ou
restringe a uma agressividade submetida à esfera da moral ou do sexual, pois trata-se de
um princípio ou função, “isto é, (...) algo que está presente a cada momento regendo
cada começo”727. Além disso, como princípio disjuntivo, a pulsão de morte tampouco
se confunde com niilismo absoluto; ao contrário, de acordo com a leitura lacaniana, o
que está em jogo é uma “vontade de destruição, vontade de recomeçar com novos
custos, vontade de Outra-coisa, na medida em que tudo pode ser posto em causa” 728;
“vontade de criação a partir de nada”729, que a inscreve numa positividade, como
potência criadora.
Novamente, encontramos ressonâncias com o pensamento de Walter Benjamin,
quando afirma, sobre o caráter destrutivo: “O caráter destrutivo só conhece um lema:
725 Idem, p. 51. 726 Idem, p. 607. 727 GARCIA-ROSA, L.F. (1990) p.155. 728 LACAN, J. (1988c) p.260. 729 Idem.
criar espaço; só uma atividade: despejar. Sua necessidade de ar fresco e espaço livre é
mais forte que todo ódio.”730 Veja-se, na recordação de Riobaldo, a percepção sobre o
momento do pacto: “Ah, esta vida, às não-vezes, é terrível bonita, horrorozamente, esta
vida é grande”731. E o testemunho do período que sucedeu este encontro com o
nada:“desde por aí, tudo o que vinha por suceder era engraçado e novo, servia para
maiores movimentos”732.
Na mesma perspectiva, no prefácio “Aletria e Hermenêutica”733, uma espécie de
ensaio em que Guimarães Rosa contrapõe a estória à história, situando a primeira do
lado do humor, da anedota; ele menciona um nada residual, distinto da morte absoluta,
definido como um resto da linguagem, que aponta para algo que não se submete
totalmente a ela mesma: “O nada é uma faca sem lâmina, da qual se tirou o cabo”734.
Em seguida, acrescenta: “Se viemos do nada, é claro que vamos para o tudo”735, como
se fosse Riobaldo, a declarar: “Do escurão, tudo é mesmo possível”736.
Em relação à linguagem, se a língua rosiana tem como proposta este mergulho,
esta ida ao âmago da própria linguagem, já se falou num lance de dês (entre Deus,
Diabo, Diadorim e seus desdobramentos mórficos, que compõem o texto...), que se
articula como um encontro com a potência do Acaso, da profusão diabólica da
linguagem737. De maneira análoga, já se apontou um lance de ‘s’ e ‘f’ associado ao Mal
e ao sem-fim (“oferecer fim, oferecer faca”), que constituem formas pelas quais a
linguagem se afasta da função comunicativa para demarcar a dimensão em que o
sentido se aproxima do som, da materialidade do signo, que aponta para o não-sentido:
730 BENJAMIN, W. (1989) p.236. 731 ROSA, J.G. (2001) p. 438. 732 ROSA, J.G. (2001) p. 445. 733 ROSA, J.G. (1985). 734 Idem, p.10. 735 Idem, p.17. 736 Idem, (2001) p. 220. 737 CAMPOS, A. (1978).
... O fato é que a reflexão sobre o ser da maldade e o fim maligno do prazer de fazer sofrer e de sofrer desdobram-se de modo sonoro numa proliferação de “s” e “f” que aparecem maciçamente nas cenas que descrevem o movimento dilacerante, triturante, moedor e destruidor da “matéria vertente” – das massas aquáticas, animais ou humanas. (...) As saudades repetidamente mencionadas pelos jagunços de uma “boa esfola, com faca cega” aparecem assim como a versão humana do movimento “surdo e cego” da ondulação aquática (...) ou do Liso do Sussuarão, “inferno sem fim” que “se emenda com si mesmo”. (ROSENFIELD, K., 2006, p.229).
Porém – vale dizer novamente – o não-sentido, aqui, é considerado como lugar
de criação dos múltiplos sentidos, e não pura ausência, note-se o exemplo dos
significantes Diadorim delicado, ou Diá, como produtores de significados importantes.
A linguagem onomatopaica aponta, segundo Benjamin, para esta dimensão em que o
som procura assemelhar-se ao sentido, que revela a face da linguagem além do
significante:
... Mas, se a linguagem, como é óbvio para as pessoas perspicazes, não é um sistema convencional de signos, é imperioso recorrer, no esforço de aproximar-se da sua essência, a certas idéias contidas nas teorias onomatopaicas, em sua forma mais crua e mais primitiva. (BENJAMIN, W., 1986f, p.110).
Além disso, os testemunhos de Riobaldo sobre o pacto (citados na página
precedente) fazem pensar é nesta experiência do vazio como um processo, que só é
“reveladora por ser dialética (...) mostrando o objeto como perda, mas ultrapassando
também a privação em dialética do desejo”738. A série de transformações que têm lugar
após o pacto, como a passagem de jagunço a chefe do bando, a mudança de posição de
Riobaldo em relação a Diadorim e o projeto de acabar com a guerra no sertão, apontam,
todas, para o desejo colocado em movimento.
As construções formais negativas se espalham pelo texto, ainda, através dos
paradoxos, que produzem uma exaustão do sentido; das pausas e interrupções rítmicas
da narração; das interrogações sem resposta; e das negações desdobradas, que evocam
738 DIDI-HUBERMAN, G. (1998) p.102.
uma dimensão mais primordial da negativa, um além da representação, além (ou aquém)
do recalque739; ora referidas ao sertão: “Sertão, – se diz –, o senhor querendo procurar,
nunca não encontra. (grifo nosso)”740. Ora, ao Liso do Sussuarão:“Nas lagoas aonde
nem um de asas não pousa” (grifo nosso)741. “Não tem excrementos. Não tem
pássaros.”742 – “Água não havia, capim não havia”743.
Montagem, jogo, dansa
... De tal modo que Matilde pensaria em mim sempre que olhasse em torno
dele, e em sonho nos visse os dois ao mesmo tempo, sem compreender quem era a sombra de quem. E ao despertar, talvez só se lembrasse vagamente de ter
sonhado com o desenho das ondas em preto-e-branco, no mosaico da calçada de Copacabana.
(BUARQUE, CHICO. LEITE DERRAMADO).
Em relação à comparação com o divino feita por Benjamin – do júbilo da
nomeação744 – que encontramos na paisagem fora das molduras de “Os Cimos”745, ou
na afirmação do nome como sagrado, não penso ser forçado compreendê-la mais como
um efeito do que uma crença, pois, como ensina Didi-Huberman, a partir de Freud, a
nomeação da experiência só se dá numa obra de perda, somente diante da morte
iminente, ou entre duas mortes, daquilo que não existiu e um dia deixará de existir; a
experiência da linguagem se dá diante da fenda, entre o ser nomeado e o nomear746.
739 Em “A Negativa”, Freud associa, primeiro, a negação ao recalque daquilo que não se admite recordar, chegando a afirmar que “o reconhecimento do inconsciente por parte do ego se exprime numa fórmula negativa.” Mas, ao longo do texto, faz supor um outro nível de negatividade, não necessariamente submisso ao recalque, pois se apresenta também na psicose; ligado à pulsão de morte, definida, ali, como uma função, algo destrutivo, disjuntivo, oposto à união estabelecida por Eros, que me parece próximo do que vemos nas negações desdobradas de Guimarães Rosa. Cf. FREUD, S. (1988g) p.269. 740 ROSA, J.G. (2001) p. 317. 741 ROSA, J.G. (2001) p. 47. 742 ROSA, J.G. (2001) p. 50. 743 ROSA, J.G. (2001) p. 67. 744 Nas palavras de Pierre Fédida, baseado no termo criado pelo poeta Francis Ponge: “Objeu [objeto-jogo] é acontecer da palavra num gargalhar de coisa. É júbilo de encontro, exatamente entre coisa e palavra.” Apud. DIDI-HUBERMAN, G. (1998) p.81. 745 ROSA, J.G. (1988). 746 DIDI-HUBERMAN, G. (1998) p.79-85.
Em O que Vemos, o que nos Olha, o historiador da arte afirma que – diante da
imagem, que porta em si uma suspensão, uma tensão dialética entre o visível e o
invisível (ou entre a aura, a distância; e o vestígio, ruína, proximidade), que exige uma
experiência de confronto com o nada, com o vazio que nos olha – duas formas de
denegação do vazio se apresentam: a crença no ver além da imagem, preenchendo seu
vazio com um sentido além dela mesma; ou o cinismo da tautologia, a negação de
qualquer sentido além do visível, expresso na fórmula: você vê o que você vê, que
pretenderia uma pura objetividade da imagem, um sentido que se esgotaria na forma,
sem que ela remetesse a qualquer ausência747.
Vale a pena ler mais uma vez parte do texto de Rosa para mostrar o momento
em que a busca riobaldiana da memória se afirma no entremeio, no intervalo entre estas
duas dimensões da imagem, justamente quando rejeita a objetividade das lembranças de
guerra:
... Vida, e guerra, é que é: esses tontos movimentos, só o contrário do que assim não seja. Mas, para mim, o que vale é o que está por baixo ou por cima – o que parece longe e está perto, ou o que está perto e parece longe... (ROSA, J.G., 2001, p. 245).
Mas, além disto, é preciso destacar que, quando Didi-Huberman se vale da
noção do fort da freudiano para ilustrar a criação da imagem artística, está equiparando
a criação de imagens artísticas, visuais e literárias, à experiência originária de criação
das imagens psíquicas, à entrada do sujeito na linguagem, na qual a imagem surge como
resto de uma alternância, de um ir e vir, de um jogo entre a presença e a ausência, onde
também o sujeito, ao brincar, ao jogar com isso, se constitui entre o ser deixado e o
deixar.748 Em última instância, trata-se de equiparar a montagem das imagens na arte à
747 DIDI-HUBERMAN, G. (1998). 748 “... não é de saída que a criança vigia a porta por onde saiu sua mãe, indicando assim que espera re vê-la ali, mas, anteriormente, é o ponto mesmo em que ela o deixou, o ponto em que ela o abandonou perto dele, que ele vigia (...) Pois o jogo do carretel é a resposta do sujeito àquilo que a ausência da mãe
teoria da construção da memória (do sujeito como montagem surrealista da pulsão),
ambas elaboradas como o jogo do luto ao qual se junta o jogo do prazer – e, aqui,
chega-se ao mesmo ponto crucial ao qual vimos insistindo, de um pensamento que
subverte a noção de memória ao compará-la à ficção:
... as imagens da arte (...) sabem apresentar a dialética desse jogo no qual soubemos (mas esquecemos de) inquietar nossa visão e inventar lugares para essa inquietude. (...) As imagens da arte sabem de certo modo compacificar esse jogo da criança que se mantinha apenas por um fio, e com isso sabem lhe dar um estatuto de monumento, algo que resta, que se transmite, que se compartilha (mesmo no malentendido)... (DIDI-HUBERMAN, G., 1998, p.97).
Anteriormente, o próprio Freud já havia comparado o jogo à criação poética em
“Escritores Criativos e Devaneios”, texto de 1908, no qual ele começa assinalando que a
aproximação entre o poeta e o homem comum, entre a poesia e a vida, é feita em geral
pelos próprios escritores. Comum ao brincar e à criação poética estaria a noção de jogo;
relação cuja similitude teria deixado vestígios na língua alemã, nos termos jogo do luto
e jogo do prazer:
A linguagem preservou essa relação entre o brincar infantil e a criação poética. Dá [em alemão] o nome de ‘Spiel’ [‘peça’] às formas literárias que são necessariamente ligadas a objetos tangíveis e que podem ser representadas. Fala em ‘Lustspiel’ ou ‘Trauerspiel’ [‘comédia’ e ‘tragédia’...] (FREUD, S., 1988h, p.136).
No texto, se esboça uma continuidade entre o jogo e a fantasia ou devaneio,
sendo os dois últimos considerados substitutos ao jogo infantil. Porém, o mais
importante é que, ao dar forma estética, através das imagens artísticas, às imagens da
fantasia, do inconsciente, recusadas pelo adulto, a escrita poética as apresenta,
conferindo-lhes legibilidade: “A verdadeira ars poética está na técnica de superar esse
nosso sentimento de repulsa, sem dúvida ligado às barreiras que separam cada ego dos
veio criar na fronteira de seu domínio – a borda de seu berço – isto é, um fosso, em torno do qual ele nada mais tem a fazer senão o jogo do salto”. Cf. LACAN, J. (2008b) p.66.
demais.”749 Mas, Freud vai além da analogia, insinuando o apelo da obra de arte ao
inconsciente, à inquietação e à produção de nossas próprias imagens, ou a garantia de
sua reivindicação de expressão: “Talvez até grande parte desse efeito seja devida à
possibilidade que o escritor nos oferece de, dali em diante, nos deleitarmos com nossos
próprios devaneios, sem auto-acusações ou vergonha”750.
Este duplo aspecto da reivindicação à forma e da sua insubordinação, por parte
da imagem, foi repensado – especificamente em relação à poesia – por Paul Valéry, três
décadas mais tarde, na conferência “Poesia e Pensamento Abstrato”, onde aproxima o
estado poético das lembranças dos sonhos:
Entretanto, nossas lembranças de sonhos nos ensinam, através de uma experiência comum e freqüente, que nossa consciência pode ser invadida, enchida, inteiramente saturada pela produção de uma existência, cujos objetos e seres parecem ser os mesmos que os da véspera; mas seus significados, suas relações e seus meios de variação e de substituição são completamente diferentes e representam-nos, sem dúvida, como símbolos e alegorias, as flutuações imediatas de nossa sensibilidade geral, não controlada pelas sensibilidades de nossos sentidos especializados. É quase da mesma maneira que o estado poético se instala, desenvolve-se e, finalmente, desagrega-se em nós. (VALÉRY, P., 1999, p.197-198).
Para Valéry, assim como a lembrança do sonho evoca as imagens inconscientes,
a imagem poética não se esgota na comunicação, pois “quer viver ainda, mas uma vida
totalmente diferente”751; promovendo, no leitor – simultaneamente – o esquecimento do
sentido usual, instrumental, objetivo; e a rememoração do universo poético. O estado
poético desenvolve-se como as lembranças de sonhos, quer dizer, promove uma
recordação dos nossos sonhos, uma libertação da imagem, que possui o caráter de
resíduo, ou de vestígio da lembrança do sonho.
749 FREUD, S. (1988h) p.142. 750 Ibidem, p.143. 751 VALÉRY, P. (1999) p.200.
A imagem do pêndulo, oscilando “entre a forma e o conteúdo, entre o som e o
sentido, entre o poema e o estado de poesia”752, diz respeito ao movimento através do
qual a poesia se faz, entre a voz, o ritmo, a pura forma; de outro lado, o sentido, o
conteúdo, as imagens da rememoração provocadas por aquela forma, que, entretanto
reclamariam, de volta, essa forma, esse ritmo, criando o movimento; que é outra forma
de dizer que a poesia provoca em mim as minhas lembranças. Também neste sentido é
que podemos pensar que a escrita poética rosiana evocaria nossas lembranças subjetivas
e coletivas. Seguindo Valèry, a palavra não é apenas dança, puro movimento, pois
sempre produz algum sentido, mas é possível fazer as palavras dansarem, como Rosa
faz, dançando sobre as pranchas, parando sobre as pontes até que as palavras se
precipitem, gerando novas palavras; de acordo com a tese da experiência do abismo
como criadora.
A noção benjaminiana de alegoria como colagens de restos de imagens753
igualmente articula a imagem artística com as imagens da memória e da história,
assinalando seu caráter crítico, de despertar; pois o alegorista – comparado ao
cirurgião754, que corta, separa e reorganiza os fragmentos, recompondo-os segundo a
sua imagem (quando a dimensão crítica se aproxima da criação da imagem, como o
terceiro elemento desta dialética) – é reconhecido como criador de uma montagem, da
mesma forma que o historiador materialista procede com os cacos da história.
...a imagem do vaso quebrado que deve ser reconstituído a partir de seus cacos. Comum a ambos os movimentos é a relação de contigüidade, o estar lado a lado, sem qualquer fusão entre os elementos. Essa preocupação com um relacionamento não fusional entre elementos perpassa todo o pensamento e a escrita benjaminianos, pois nela se encerram duas questões recorrentes e que definem por excelência uma tarefa crítica: a da mediação, transmissão,
752 Ibidem, p.205. 753 “As alegorias são, no reino dos pensamentos, o que são as ruínas no reino das coisas”. Cf. BENJAMIN, W. (1984) p. 200. “Pois a alegoria é as duas coisas, convenção e expressão, e ambas são por natureza antagonísticas”. Cf. BENJAMIN, W. (1984) p.197. 754 BENJAMIN, W. (1986c) p.186.
comunicação, por um lado, e a da interrupção da cesura, do silêncio, por outro. (LAGES, S.K., 2002, p.102).
No mesmo sentido, em Benjamin, o começar com pouco, com os restos da
tradição e da barbárie, coincide com o arrancar à tradição ao conformismo – e ambos
colocam em cena a tensão entre a memória, do aproveitamento dos rastros; e o
esquecimento, da renúncia – referindo-se tanto à criação artística como à relação que as
gerações e os sujeitos estabelecem de maneira geral com a história e com a memória dos
antepassados755, e acenam para a rememoração como algo distinto da tradição, ou seja,
algo relativo à criação, à memória inventada756, que se manifesta como ausência: não-
memória, traduzindo em língua rosiana.
A mesa de montagem se revela, deste modo, como imagem do processo de
rememoração do narrador rosiano que, ao voltar seu olhar ao passado, se depara com os
restos, os resíduos da história:
... Em todos os momentos, em Zé Bebelo sempre pensei, e em como a vida é cheia de passagens emendadas. Eu na Nhanva, ensinando lição a ele, ditado e leitura (...). Então, agora, era eu também – Zé Bebelo vinha de lá, comandando armas de esquadrões, e o que ele tinha jurado, naquela ocasião, ficava sendo de acabar comigo, com minha vida. (ROSA, J.G., 2001, p.235).
O trabalho deste luto, ou a travessia da melancolia, se constitui no jogo, nesta
oficina aberta de montagem das passagens emendadas da experiência. “Hoje em dia,
verso isso: emendo e comparo”757. É no digo, e desdigo; no conto, e reconto que o
narrador pensa e repensa a história, compara o incomparável do trauma, compondo sua
coleção de relíquias como uma colagem, coleção de cacos, do lixo que sobrou da
história; e o faz em movimento de dansa, nesta alternância entre o ir e vir, entre a
755 Cf. BENJAMIN, W. (1986b) p. 756 “Na verdade, a imagem dialética dava a Benjamin o conceito de uma imagem capaz de se lembrar sem imitar, capaz de repor em jogo e de criticar o que ela fora capaz de repor em jogo. Sua força e sua beleza estavam no paradoxo de oferecer uma figura nova, e mesmo inédita, uma figura realmente inventada da memória.” DIDI-HUBERMAN, G. (1998) p.114. 757 ROSA, J.G. (2001) p. 173.
proximidade e a distância; o que leva as coisas passadas a se remexerem nos lugares,
fazendo balancê, e dá à rememoração seu caráter móvel, plástico, reversível, abrindo-se
para a reinvenção.
Esta idéia de um movimento constituinte da rememoração, da paisagem
construída nas andanças, por sua vez, é constitutiva do processo mesmo de escrita de
Guimarães Rosa, indo desde o valor das anotações, dos registros colhidos durante as
viagens pelo sertão e pela Europa, que constituem sua matéria prima; ao estranho ritual
de escrita do GSV, revelado a Benedito Nunes, onde o rolar pelo chão se articula como
momento inicial, inquietante, da escrita, ao qual se segue o movimento de ler, reler,
reescrever o texto:
Ando muito, canto, rolo no chão. Depois escrevo e repasso tudo até oito, nove vezes. Se consigo descobrir coisas novas no escrito, nele já deparo com as situações antes não pensadas, então começa a segunda fase do trabalho. A estória terá se produzido como se outro a houvesse escrito. Daí por diante posso trabalhar noutras direções. (In: GALVÃO, W. N.; COSTA, A. L. M. [Orgs.]).
É assim que os motivos presentes nas noções (já mencionadas) do prazer do
movimento (Wisnik), da alegria intermitente (Rosa), do júbilo da nomeação (Fédida) ou
da felicidade do rememorar (Benjamin), convergem para a idéia de dança, montagem,
dança do pensamento, mas pensar num ritmo, numa coreografia; dança, sobretudo,
como ato de conhecimento, onde “o movimento argumentativo dá lugar ao movimento
coreográfico”758. Dansa escrita, no romance, sempre com ‘s’, talvez por reenviar ao
som da palavra, à música, e também à origem onomatopaica da língua, conforme a
presença dos ‘s’ na língua dos catrumanos e nos significantes malignos.
Como signo, a dança se articula ao desejo insidioso, “Diadorim, você
dansa?759” À festa: “Mas queria festa simples, achar um arraial bom, em feira-de-
758 Cf. DIDI-HUBERMAN, G. (2009). 759 ROSA, J.G. (2001) p. 190.
gado. Queria ouvir uma bela viola de Queluz, e o sapateado dos pés dansando”760. E
ritual, capaz de reunir o bem, o mal, o caos e o diabolismo do acaso: “Você quer
dansação e desordem”761. – “Em dansa de demônios, que nem não existem”762. No
entanto, o movimento não se detém no caos, não cultua o irracionalismo, mas se
conforma como o que permite ir lá e voltar, dando novos passos em direção ao desejo:
... até que chegue a hora de se dansar. Travessia. Deus no meio”763.
Em direção ao sem-fim da origem, como movimento da rememoração, se vai e se
retorna, no embalo dos versos da canção de Siruiz que, em sua primeira versão, coloca
exatamente em questão a possibilidade do retorno:
Urubú é vila alta mais idosa do sertão: padroeira, minha vida – vim de lá, volto mais não... Vim de lá, volto mais não?... (...) Remanso de rio largo, viola da solidão: quando vou p’ra dar batalha, convido meu coração... (ROSA, J.G., 2001, p. 135).
A segunda cantiga, composta pelos jagunços, não por acaso, após a morte de
Siruiz, já descreve uma coreografia completa, um vaivém, cujo desenho seria
popularmente conhecido como ginga, e que põe em jogo uma certa dialética da
malandragem764, de uma ida iniciada mas não totalizada, que, contudo, não evita nem se
contrapõe ao mergulho no reprofundo nem o atravessar até o fim. Mas, como, no sertão,
760 Ibidem, p.540. 761 Ibid. p.484. 762 Ibid., p.618. 763 Idem, p. 325. 764 Cf. CANDIDO, A. (1993). Creio estar utilizando o termo mais em seu valor imagético do que conceitual, pois a dialética da ordem e da desordem, para Candido, na qual insere a comicidade, é vista como sistema, estrutura que explica tanto o texto como os fatos sociais: “...dialética da ordem e da desordem, é um princípio válido de generalização, que organiza tanto AB como A’B’, dando-lhes inteligibilidade.” Cf. p.46. Enquanto, aqui, a dialética da malandragem me parece, é concebida como forma de pensamento, numa certa linhagem de imagens às quais Candido faz referência quando cita Macunaíma, por exemplo.
é o próprio corpo que é tornado carretel, lembre-se dos entraves com a mediação
simbólica, já discutidos, e da morte como ameaça onipresente – a atenção é detida no
ponto de onde se é capaz de retornar vivo; o que também nos reenvia à discussão sobre
o humor presente em “Meu Tio, o Iauaretê”765:
Olerereêe, bai- Ana... Eu ia e não vou mais: Eu fa- ço que vou lá dentro, oh baiana, e volto do meio p’ra trás... (ROSA, J.G., 2001, p.193).
Sabe-se que a ginga provém da arte de enganar o inimigo na capoeira, esse misto
de dança e luta dos escravos no Brasil; portanto, uma certa encenação da dança se
acrescenta a este movimento, que se contrapõe, como resistência, à melancolia: “O
correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa,
sossega e depois desinquieta”766.
Enfim, considerar este processo de rememoração como uma mesa de montagem
a partir da ausência, da alternância, do ritmo, da dialética e do humor, nos leva à
constatação de que as imagens não se subjugam completamente a uma ordem ou
conceito, pois as imagens pedem para serem lidas, traduzidas; mas, por outro lado,
mantém-se “intocadas não só pelos fenômenos, como umas pelas outras”767,
765 ROSA, J.G. (1969). E como não mencionar – já que grande parte desta formulação parece ter origem na concepção benjaminiana de montagem e direito de escolha das imagens no cinema, em “A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica” – um filme que ilustra bem estas idéias, que consiste numa montagem de imagens já existentes, portanto restos de imagens, do século XX, onde não há diálogos, apenas nomes e pequenas frases escritas; que vem a ser “Nós que Aqui Estamos por Vós Esperamos”, de Marcelo Masagão, no qual há uma seqüência impressionante de imagens dos dribles do jogador de futebol Garrincha, demonstrando seu talento na arte do “faço que vou... e volto”, intercaladas, comparadas, em ritmo de samba, com uma coreografia de Fred Astaire. 766 ROSA, J.G. Op. Cit., p. 334. 767 No livro “A Origem do Drama Barroco Alemão”, estou considerando a “idéia” como imagem, nos itens “A idéia como Configuração” (constelação) e “A Palavra como Idéia”, onde Benjamin trata da questão nos termos da idéia e da palavra, na tradução de Sérgio Paulo Rouanet, BENJAMIN, W. (1984) p. 59. A aproximação foi feita a partir da leitura de Seligmann-Silva, e da concepção de que a imagem
reivindicando novamente seu direito à palavra ou à representação. Embora a linguagem
seja a condição de apreensão das imagens – graças ao duplo caráter de distância,
ausência, que reenvia permanentemente a novas imagens, e de vestígio como ruínas da
história – elas mantém-se insubordinadas, rebeldes ao aprisionamento na linguagem,
exatamente como as imagens da memória, irredutíveis em sua dimensão de origem e
resto, reenviando a novas buscas pelo passado desde sempre perdido.
A rememoração de Riobaldo põe as lembranças como as cartas de um baralho,
que verte e reverte, cuja mudança na ordem apela, criticamente, por uma reconfiguração
do mundo:
... Ao modificar a ordem fazemos com que as imagens tomem uma posição. Uma mesa não se usa nem para estabelecer uma classificação definitiva, nem um inventário exaustivo, nem para catalogar de uma vez por todas – como um dicionário, um arquivo, ou uma enciclopédia – mas sim para recolher segmentos, trocos do parcelamento do mundo, respeitar sua multiplicidade, sua heterogeneidade. E para outorgar legibilidade às relações postas em evidência. (DIDI-HUBERMAN, G., 2010, n/c.).
A mesa de montagem leva, portanto, à equiparação entre a composição da
memória e da narrativa, “o contar como montagem de um sutil cosmos de imagens
refratados”768, onde a significação sempre parcial do passado, no giro da memória,
depende de uma configuração dos pedaços, de acordo com o ponto de vista, com o
olhar, ou com o momento presente de onde se volta ao passado:
... Mesmo eu – que, o senhor já viu, reviro retentiva com espelho cem-dobro de lumes, e tudo, graúdo e miúdo, guardo – mesmo eu não acerto no descrever o que se passou assim, passamos, cercados guerreantes dentro da Casa dos Tucanos, pelas balas dos capangas do Hermógenes, por causa. (ROSA, J.G., 2001, p.359).
A rememoração se compara, assim, ao caleidoscópio usado por Baudelaire como
imagem exemplar do olhar do artista e da obra de arte. Mais uma vez, a imagem do
“não se deixa fixar”, sendo percebida num lampejo; ambas já mencionadas. Cf. SELIGMANN-SILVA, M. (1999); BENJAMIN, W. (1986f). 768 ROSENFIELD, K. (2006) p.205.
espelho, porém multifacetado, fragmentado, cuja forma se move, compondo e se
recompondo, de acordo com o ponto, a posição de onde se olha. Assemelha-se, ainda,
ao sujeito em análise, girando seu ponto de vista em relação à sua história, como o
balanço entre as lembranças e o esquecimento de Riobaldo:
... um espelho tão grande quanto esta multidão, a um caleidoscópio dotado de consciência, que, a cada um de seus movimentos, representa a vida múltipla e a graça movente de todos os elementos da vida. É um eu insaciável de não-eu, que, a cada instante, o devolve e o exprime em imagens mais vivas que a própria vida, sempre instável e fugidia. (BAUDELAIRE, C., 1976, p.352)769.
Neste movimento de avanço e recuo pelo sertão, do qual se compõe a narrativa,
formada como um caleidoscópio de imagens produzidas pela rememoração – em última
instância, o que se produz é um espelho do próprio tempo – sem que, ali, os conflitos
sejam resolvidos, pois “uma imagem não tem nunca uma palavra final”770. Talvez por
isto, sua última palavra, travessia; e sua última imagem, a Banda de Moebius,
convidem, façam esta invocação ao tempo. É que, desta oficina da memória, da porta
assim escolhida para permanecer aberta – lá, desde aquele vão, ainda aqui, agora, o
Grande Sertão nos olha, grande espelho das desigualdades – e nos desinquieta, nos
instiga a atravessá-lo, a rever e reescrever nossa história, talvez com outras linhas e
palavras: a não-memorizar e evanascer...
769 “... un mirroir aussi immense que cette foule; à un kaléidoscope doué de conscience, qui, à chacun de ses mouvements, représente la vie multiple et la grâce mouvante de tous les éléments de la vie. C’est un moi insatiable du non-moi, qui, à chaque instant, le rend et l’exprime em images plus vivantes que la vie elle-même, toujours instable et fugitive”. Cf. BAUDELAIRE, C. (1976) p.352. Ver também a dança do cristal em Didi- Huberman, cf. DIDI-HUBERMAN (1998), p.118. 770 DIDI-HUBERMAN, G. (2009).
CONCLUSÃO: RESTOS – DO SERTÃO – A CONCLUIR
Eis, portanto, minha vez de fazer balanço do próprio trabalho, relendo, uma vez
mais, buscando, nas idéias desenvolvidas, nos resíduos que insistem a nos inquietar, o
lugar comum, na forma da repetição, e os traços diferenciais deste percurso, que
pretendeu discutir, situar, comparar – a partir da fala de Riobaldo – as noções de
memória e esquecimento presentes no texto.
De início, a discussão realizada no primeiro capítulo, acerca das concepções de
memória individual e memória coletiva, envolveu, também, a correlação benjaminiana
entre uma memória própria da narrativa épica, e uma rememoração típica do romance.
Porém, ao ser confrontada com a busca e o desejo de Riobaldo das coisas sempre
outras, instaurador de uma negatividade da memória; a mesma distinção apontou para
uma certa insuficiência destas categorias de memória, na medida em que possibilita uma
leitura dicotômica da memória; ao contrapor, de um lado, a memória individual e, de
outro, a coletiva.
Por outro lado, se vistas como intrinsecamente articuladas, as mesmas categorias
permitiram pensar a memória e o tempo no romance de Rosa em interlocução com as
concepções de tempo e memória psicanalíticas e benjaminianas; na medida em que a
idéia de uma memória do narrador que se desenreda do coletivo se aproxima da
concepção de uma memória subjetiva para a psicanálise, constituída sempre a partir do
Outro. De forma semelhante, a memória de Riobaldo pôde ser considerada, de acordo
com a concepção de Walter Benjamin, numa tensão constante entre os tempos, entre a
tradição e a ruptura, a renúncia e o começar com pouco.
O mesmo ocorreu com o conceito de memória coletiva de Halbwachs, visto que
a memória coletiva permite tanto uma leitura mais fechada, se contraposta à memória
individual; como traz importantes ressonâncias com o texto de Rosa, a partir das noções
de resíduo ou traço de memória, comuns a Benjamin e Freud; mostrando-se
fundamental para pensar a memória no texto, segundo a presente leitura.
No segundo capítulo, a partir das noções de história como ruína e memória
como resíduo, procurei analisar a questão dos referentes espaço-temporais. Aqui, a
preocupação foi indagar como os traços ou restos da história e da memória se articulam,
através de duas noções principais: a paisagem e o narrador-testemunha. Em relação à
primeira, encontrei um caminho na teoria de Michel Collot, que articula a idéia da
construção desta paisagem com a noção de inconsciente freudiano, através da
formulação do inconsciente como um horizonte; uma linha que, ao projetar sempre um
outro plano da paisagem, manifesta-se como ausência, negatividade. Além disto, a
formulação de um narrador-testemunha como sobrevivente e testemunha da barbárie,
possibilitou abordar simultaneamente os aspectos históricos do romance e as dimensões
de lacuna, ficção e fantasia do testemunho.
O incessante deslocamento da rememoração de Riobaldo, do plano da outra
coisa, das coisas importantes, e da sobre-coisa revelou, também, uma verdadeira
filosofia sobre o tempo e a memória. Trouxe, com a recorrência, por todo o texto, dos
fundos, ocos e ermos; a idéia de rememoração como retorno, manifestação do
inconsciente freudiano, de uma ausência só pensada a partir da linguagem que,
entretanto, evoca o seu além ou aquém, na forma do enigma, do esquecimento.
O terceiro capítulo foi dedicado a seguir esta trajetória da memória de Riobaldo
tendo em vista seu movimento desdobrado e dividido entre o narrar e ser narrado, entre
suas diferentes subjetivações e dessubjetivações. A rememoração foi considerada à luz
da noção de tempo do nachträglichkeit freudiano, traduzido como a posteriori ou só-
depois, sintetizado na imagem do redemoinho e da curva de Moebius, pois ambas falam
de um tempo que rearticula o princípio e o fim do romance.
Ao comparar a fala de Riobaldo a uma situação de análise (demonstrando como
preenche algumas de suas condições básicas: associação livre, abstinência do analista e
transferência de saber); entretanto, o tempo todo, mantive a preocupação de preservar o
seu caráter de obra de arte e de escritura, mostrando a montagem desta memória através
de diferentes construções de linguagem que a tornam irredutível a um puro setting
analítico.
No último capítulo, tentei estabelecer relações entre a memória, o esquecimento
e a linguagem, situando a rememoração numa alternância, num ir e vir, entre a
possibilidade, referida à memória; e a resistência do nome, que alude ao esquecimento
como resto ou opacidade não-nomeável; chegando, também, à concepção de memória
como montagem subjetiva, parcial e fragmentada, que a religa à idéia de fantasia e
ficção.
Para retornar ao início deste trabalho – imitando a forma temporal da narrativa –
uma primeira indagação, apresentada na introdução, que ainda pode restar, seria a
questão da existência de um ponto de origem que ponha limite à memória infinita;
pensado como relacionado, no texto, aos fundos, ocos, e ermos; à negatividade do
esquecimento, ao deslembrado, que Riobaldo afirma haver: “Tem um ponto de marca,
que dele não se pode mais voltar para trás...”771 Teoricamente, poderia, ainda, ser visto
como o ponto de torsão da Banda de Moebius que, como Lacan demonstra, ao girarmos
a banda longitudinalmente, percebe-se como um vazio, aludindo para sua dimensão
fantasmática. Em Benjamin, como foi visto, igualmente há a noção de um fundo
771 Idem, p.229-230.
imemorial, onde a memória encontra o esquecimento, que se constitui simultaneamente
como limite e fonte da rememoração.
Outro aspecto importante se encontra nas possíveis analogias entre os tempos do
futuro anterior (o terá sido) do a posteriori freudiano, e o futuro do passado (o teria
sido) do olhar do historiador-materialista benjaminiano. Ambos se contrapõem à idéia
de um tempo linear, e se referem a um tempo que se sobrepõe em camadas, no qual a
noção de resto ou resíduo está presente como fundamental para a rememoração. E,
finalmente, ambos os tempos se encontram no agora, tanto em Benjamin como em
Freud, o agora é o tempo determinante de onde se volta ao passado, um tempo saturado
de tensões, como o real no meio, de Riobaldo.
Resta, ainda, a questão da ausência e a “saída” elaborada pelo texto diante da
mesma; situada entre a morte, a melancolia, a travessia e o humor. Dito de outro modo,
procurei demonstrar como a ausência seria construída e elaborada de forma
diferenciada, no GSV, em relação a outros textos do escritor. Pois – diferentemente do
apelo a uma espécie de dissolução através da morte e da melancolia, presentes em
alguns contos analisados; ou, ainda, diversamente do caráter predominante de humor,
traço distintivo de Tutaméia772 – no Grande Sertão, o que vejo destacar-se é a idéia de
movimento, de travessia, que permite ir e vir, dialetizar, colocar em movimento, tanto o
caráter do trauma ligado a Diadorim, como os contornos mais históricos da ausência,
nas formas da falta da lei, da violência, da miséria. Neste caso, movimento que consiste
no modo como o texto remexe, desloca nossas memórias recalcadas sobre a violência e
a escravidão.
Mas, se o humor não é predominante no romance, não se trata da inexistência de
humor; veja-se como Riobaldo, diante da ausência, brinca, ironiza com o nó entre a
772 ROSA, J.G. (1985).
destituição subjetiva e a destituição da condição social de menos-valia; questionando,
simultaneamente, o saber do chefe Zé Bebelo e o do senhor culto e viajado:
– “Pois é Chefe. E eu sou nada, não sou nada, não sou nada, não sou nada... Não sou mesmo nada, nadinha de nada, de nada... Sou a coisinha nenhuma, o senhor sabe? Sou o nada coisinha mesma nenhuma de nada, o menorzinho de todos. O senhor sabe? De nada. De nada... De nada...” (ROSA, J.G., 2001, p. 366).
Portanto, em relação à afirmação inicial de que a travessia não apaga a
melancolia, é como se o texto do GSV, sem contradizê-la, também nos levasse a afirmar
que: apesar da melancolia, atravessamos. A travessia se substitui, reformulando,
colocando em outros termos a pergunta sobre a possibilidade de esquecer o trauma, pois
o texto mostra – feliz e dolorosamente – como é possível, não apenas ser atravessado,
mas atravessá-lo até o fim, e aceitar, paradoxalmente, que algo de irredutível sempre
pode restar.
Outra pergunta elaborada no princípio diz respeito ao modo como a obra de arte
interfere na relação com nossas lembranças, nossa memória, em nossa percepção do
tempo. A obra, memória inventada, afeta nossa memória... Já foi dito como a arte pode
ser lida à luz da psicanálise, mas eu proporia também o inverso como questão: como ler
a psicanálise a partir da obra de arte e da teoria da arte? Algumas indicações creio que
foram dadas no sentido de um encontro com o real, através de autores que trabalham
nesta fronteira entre a arte e a psicanálise, pois todos falam da arte como propiciadora
de uma experiência do real, do parcial, do descentramento, e do esquecimento;
experiência, que, contudo, só vale na medida em que põe em movimento o desejo; em
outros termos, que permite articular uma outra história.
Uma última observação acerca da relação entre teoria e texto foi encontrada em
Didi-Huberman, na noção de uma estética da comparação, do como773. Trata-se de uma
outra forma de pensar a teoria, que não exclui a lógica, mas inclui as imagens. Pois,
quando Freud compara a memória ao bloco mágico ou às escavações, às ruínas; ou
quando Lacan compara o inconsciente à linguagem; quando Rosa insere e recria,
adaptando as imagens existentes, do sertão, do país, segundo a sua imagem; sem
dúvida, é de uma outra forma de pensar que se trata, além da lógica.
Uma analogia ou dança como forma de pensamento, que se produz em
movimento, que não exclui a lógica, mas não nega o vazio; nas palavras de Guimarães
Rosa, põe no colo o silêncio. Esta imagem fala desta travessia que se move, deixando-se
embalar pelo silêncio, mas que é também capaz de embalá-lo, de acolher o silêncio, de
uma dialética ou ida e vinda em direção ao silêncio; ou ainda, de uma inserção do vazio
através do movimento, que produz mais movimento, como o pêndulo poético de Valéry.
Findo o trabalho, em que pese o mergulho em todos os ocos e fundos sem fim
deste sertão, seja através das raízes do Brasil profundo, inconsciente; seja através das
apesar das várias faces da memória e do esquecimento, dos diferentes jogos e modos do
rememorar e do esquecer; é importante destacar que este sertão só se pode apontar,
como faz Riobaldo: sertão: é por ali, – jamais colocar um ponto final nesta indicação.
A travessia se fez, e apesar dos restos de melancolia, há o encontro com um
tempo capaz de remexer e deslocar o passado, o presente, e talvez o futuro. Um tempo
do não-realizado, para o qual é necessário montar e remontar, colar e separar, colar de
novo, analisar como se colam e se comparam as imagens; e compará-las de novo, afim
de “recuperar a imago da imagem”774 e, neste ritmo, também a alegria e o humor do
773 DIDI-HUBERMAN, G. (2009). 774 Idem.
encontro com o diabolismo da palavra. Pois o sertão, após nos engolir, nos cuspir do
quente da boca, também nos produz.
... Aí, no intervalo, o senhor pega o silêncio, põe no colo. JOÃO GUIMARÃES ROSA
BIBLIOGRAFIA
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