UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA
CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS
MESTRADO EM DIREITO NEGOCIAL
ANA CLIA DE JULIO SANTOS
DA VIDA HUMANA E SEUS NOVOS PARADIGMAS:
A MANIPULAO GENTICA E AS IMPLICAES
NA ESFERA DA RESPONSABILIDADE CIVIL
LONDRINA 2006
ANA CLIA DE JULIO SANTOS
DA VIDA HUMANA E SEUS NOVOS PARADIGMAS:
A MANIPULAO GENTICA E AS IMPLICAES
NA ESFERA DA RESPONSABILIDADE CIVIL
Dissertao apresentada Universidade Estadual de Londrina UEL, para a obteno do ttulo de Mestre em Direito Negocial. Orientadora: Prof. Dr. Valkiria Aparecida Lopes Ferraro
LONDRINA 2006
ANA CLIA DE JULIO SANTOS
DA VIDA HUMANA E SEUS NOVOS PARADIGMAS:
A MANIPULAO GENTICA E AS IMPLICAES
NA ESFERA DA RESPONSABILIDADE CIVIL
COMISSO EXAMINADORA: Prof. Dra. Valkiria A. Lopes Ferraro Prof. Dra. Rozane da Rosa Cachapuz
Prof. Dr. Clayton Reis
Londrina, 28 de junho de 2006.
LONDRINA 2006
Em memria de minha Giovanna, sonho em forma de ddiva Divina, que em apenas dois meses me ensinou o sublime significado das palavras Amor e Me.
AGRADECIMENTOS
A DEUS, que em seu infinito Amor nunca deixou de me abenoar e proteger. Olvia, filha querida, que apesar de to tenra idade, aceitou minha ausncia nas horas em que buscava o conhecimento. Aos meus pais, Clio e Lgia, por permanecerem comigo, lado a lado, em todos os caminhos por mim escolhidos, ensinando-me com total propriedade a honestidade, perseverana e f. Aos irmos Jos Renato e Viviane, pelo incentivo e compreenso. Aos colegas do mestrado e ao Francisco Carlos Navarro, os quais s acrescentaram e me honraram com sua convivncia. Aos amigos Carlos e Juliana, verdadeiros irmos, pelo apoio incondicional em todas as horas. A Professora Doutora Rozane da Rosa Cachapuz, pelas palavras sempre positivas e carinhosas e conhecimentos transmitidos; A minha orientadora Professora Doutora Valkiria Aparecida Lopes Ferraro, meus sinceros agradecimentos, pela sua firme e segura orientao na elaborao deste trabalho e principalmente pela confiana dispensada em todos os momentos. Ao Querido Professor Doutor Clayton Reis, por ter me dado a honra de aceitar o convite como membro convidado para a avaliao do presente trabalho.
A inteligncia sem amor, te faz perverso; A justia sem amor, te faz implacvel; O xito sem amor, te faz arrogante; O trabalho sem amor, te faz escravo; A vida sem amor, no tem sentido.
(Autor desconhecido) SANTOS, Ana Clia de Julio. Da vida humana e seus novos paradigmas: a manipulao gentica e as implicaes na esfera da responsabilidade civil. 2006.
Dissertao (Mestrado em Direito Negocial), ****p. Universidade Estadual de Londrina UEL, Londrina.
RESUMO
A anlise da responsabilidade civil frente s inovaes biotecnolgicas hodiernas permite o resgate do questionamento acerca da verdadeira funo do direito perante a sociedade, principalmente em decorrncia da velocidade de informaes e das constantes descobertas cientficas do Mundo Contemporneo. Nesse dilogo entre as inovaes cientficas e a adequao jurdica aos comportamentos delas advindos, depreende-se que o direito no pode mais ficar espera de casos concretos para regulamentar o assunto. Ao contrrio, deve o direito ter o condo de trazer mecanismos assecuratrios eficientes s relaes contratuais e extracontratuais firmadas entre as partes envolvidas, e tambm da sociedade de forma geral, se pensarmos na proteo da vida das geraes futuras. De uma forma ou de outra, seu objetivo principal continua sendo a proteo dos direitos fundamentais, principalmente o direito vida digna. Tal tarefa no fcil, pois o problema encontrado no presente tema que tampouco a cincia tem resposta quando inquirida sobre as provveis conseqncias das pesquisas que envolve a manipulao gentica clulas vegetais e humanas. Refrear tais pesquisas no se faz oportuno, ante esperana da cura de doenas e de maior qualidade de vida. Por outro lado, brincar de Deus tarefa preocupante, ante os danos que porventura possam causar humanidade. A legislao global, na grande maioria, no tem apresentado posies favorveis manipulao gentica de clulas de embries. No Brasil, atravs da Lei 11.105/2005, a chamada Lei de Biossegurana, que trata da permisso da utilizao de clulas-tronco embrionrias em pesquisas cientficas, inaugurou-se um grande marco legislativo na histria brasileira, apesar de conter imperfeies e lacunas. Mas a questo, mesmo regulamentada, ainda objeto de acaloradas discusses no mbito da sociedade como um todo, principalmente entre a comunidade cientfica e a religiosa. O presente trabalho vem de encontro com as lacunas deixadas pela Lei e as situaes que reclama maior ateno: a questo do dano gentico e sua reparao civil, principalmente com relao aplicao, nesses casos, da Teoria Objetiva da responsabilidade civil. Palavras-chave: proteo da vida humana; dano gentico; responsabilidade civil.
SANTOS, Ana Clia de Julio. Da vida humana e seus novos paradigmas: a manipulao gentica e as implicaes na esfera da responsabilidade civil. 2006.
Dissertao (Mestrado em Direito Negocial), ****p. Universidade Estadual de Londrina UEL, Londrina.
ABSTRACT
SUMRIO
INTRODUO ..................................................................................................... 08 1 A REVOLUO BIOTECNOLGICA ............................................................... 12 1.1 A tica, a Biotica e o nascimento do Biodireito ............................................ 25 1.1.1 tica ............................................................................................................ 27 1.1.2 Biotica........................................................................................................ 28 1.1.2.1 Macrobiotica e microbiotica .................................................................. 30 1.1.2.2 Princpios Basilares da Biotica ............................................................... 31 1.1.3 Biodireito ..................................................................................................... 33 1.1.3.1 Princpios do Biodireito............................................................................. 35 2 ENGENHARIA GENTICA, DIREITOS HUMANOS E CONSTITUIO: O PATRIMNIO GENTICO HUMANOS COMO DIREITO DE 4 DIMENSO...... 38 2.1 Da proteo dos direitos fundamentais classificao das geraes ou dimenses de direitos humanos.......................................................................... 44 2.1.1 Direitos Humanos Fundamentais de 1 Dimenso...................................... 46 2.1.2 Direitos Humanos Fundamentais de 2 Dimenso...................................... 47 2.1.3 Direitos Humanos Fundamentais de 3 Dimenso...................................... 48 2.1.4 Direitos Humanos Fundamentais de 4 Dimenso...................................... 49
3 PROJETO GENOMA ........................................................................................ 54 3.1 Consideraes sobre o Projeto Genoma........................................................ 54 3.2 A Declarao dos Direitos do Homem e do Genoma Humano ...................... 57 4 A VIDA HUMANA COMO CENTRO DA TUTELA JURDICA .......................... 61 4.1 O Relatrio Warnock ...................................................................................... 68 4.2 Argumentos Jurdicos para a questo do Incio da Vida ............................... 69 4.3 A Vida e a Dignidade Humana como objeto do Direito................................... 71 4.4 A Vida como pressuposto dos Direitos da Personalidade .............................. 74 5 EVOLUO LEGISLATIVA ACERCA DOS DIRIETOS INERENTES VIDA 77 5.1 O direito do nascituro ..................................................................................... 79 5.2 O direito integridade fsica do nascituro ...................................................... 85 5.3 O direito imagem e honra do nascituro..................................................... 87 5.4 O Aborto ......................................................................................................... 88 6 EVOLUO LEGISLATIVA ACERCA DA MANIPULAO GENTICA ........ 90 6.1 A Manipulao Gentica e seus limites............................................................... 6.2 Panorama geral acerca do tema manipulao gentica no Brasil.................. 90
6.3 A regulao jurdica brasileira e os novos fatos da engenharia gentica.......101 7 A QUESTO DA LIBERAO DE PESQUISAS COM CLULAS-TRONCO.108 7.1 Panorama global................................................................................................... 7.2 Manipulaes do embrio in vitro...................................................................108 7.3 Clulas-tronco adultas e embrionrias...........................................................109 7.4 Argumentos prs e contras a manipulao gentica de clulas-tronco embrionrias.........................................................................................................109 8 RESPONSABILIDADE CIVIL E O DANO GENTICO....................................110 8.1 Importncia do Tema na Modernidade................................................................. 8.2 Breve histrico sobre a Responsabilidade Civil e seu desenvolvimento no
Direito Brasileiro..........................................................................................................
8.2.1 Desenvolvimento Doutrinrio da Responsabilidade Civil..................................
8.3 A Questo do Dano e do Dano gentico........................................................110 8.3.1 Dano Gnico, Dano Genmico e Dano Gentico........................................112 8.3.2 Alguns aspectos para a preveno do dano................................................121 8.3.3 Os requisitos de certeza e atualidade em face ao dano gentico...............121 8.4 Anlise do dano gentico nos dispositivos da Lei 11.105/2005.....................122
8.5 Alguns exemplos de Responsabilidade Civil envolvendo manipulao gentica.
8.5.1 Responsabilidade civil nas pesquisas cientficas..............................................
8.5.2 Responsabilidade civil nos casos de inseminao artificial...............................
8.5.3 Responsabilidade civil das empresas de engenharia gentica......................... 8.5.4 Responsabilidade civil nos casos de transplantes de rgos............................ CONCLUSO.......................................................................................................139 REFERNCIAS....................................................................................................143 ANEXOS...............................................................................................................146 INTRODUO
O homem contemporneo assiste a uma poca de incontestvel
desenvolvimento tcnico-cientfico, capaz de promover significativas mudanas
nos domnios da vida.
Os avanos da biotecnologia alcanam, no mundo, polmicas
discusses filosficas, sociais, econmicas e jurdicas. O impacto na sociedade,
em relao aos avanos trazidos pelo desenvolvimento cientfico e tecnolgico
nos campos da biologia, da sade e da vida, de modo geral, notvel, levando a
humanidade a deparar-se com as mais diversas e inusitadas situaes at pouco
tempo inimaginveis.
Se por um prisma todas essas conquistas trazem na sua esteira
renovadas esperanas de melhoria da qualidade de vida dos indivduos, por outro
criam uma srie de contradies que necessitam ser criteriosamente estudadas,
visando no s ao equilbrio e ao bem-estar futuro da espcie como prpria
sobrevivncia do planeta. Por essa razo, as teorias atuais da justia e da moral
trilham por caminhos prprios, diferentes dos da tica em seu sentido clssico de
uma doutrina da vida correta.
Falar-se em responsabilidade para com a vida implica um
retrocesso a princpios bastante antigos, regentes do plano da eticidade humana.
Nesse sentido, o pensamento platnico constituiu-se num marco da crena grega
tradicional, segundo a qual caberia aos deuses a deciso sobre o destino do
homem e de sua vida.
PLATO tratou do chamado mito de Er, onde fez aluso quilo
que estaria reservado ao homem no curso de sua vida. Para ele, o homem no
seria livre para escolher entre viver ou no. Mas, esse mesmo homem, dizia o
filsofo ateniense, teria a liberdade de escolha entre viver ou no de acordo com a
virtude ou sob o domnio do vcio. Segundo PLATO1:
Almas efmeras, vai comear outro perodo portador da morte para a raa humana. No um gnio que vos escolher, mas vs que escolhereis o gnio. O primeiro a quem a sorte couber, seja o primeiro a escolher uma vida a que ficar ligado pela necessidade. A virtude no tem senhor; cada um ter em maior ou menor grau, conforme a honrar ou a desonrar. A responsabilidade de quem escolhe. O deus isento de culpa.
1 PLATO. A Repblica. 9 ed. Lisboa: Funcao Calouste Gulbenkian, 2001. p. 490.
No texto, PLATO afirma que a divindade no teria mais nenhum
comprometimento com a responsabilidade humana. Caberia, ento, ao prprio
homem deliberar sobre suas aes e omisses, responsabilizando-se pelas
conseqncias de suas escolhas.
Ento sobre os ombros do homem, para Plato, pesa a rdua
tarefa de decidir sobre sua vida, sendo ele o prprio agente tico apto a responder
por seus atos.
Vale ressaltar que no pensamento platnico destaca-se a
responsabilidade humana sempre projetada para uma dimenso atemporal, ou
seja, direcionada para o transcendente, cuja marca seria a eternidade. Plato
ento buscava a responsabilidade humana sempre direcionada ao destino final do
homem.
J no pensamento filosfico contemporneo, HANS JONAS
representa com louvor os pensadores que se dedicaram a discutir a
responsabilidade na era tecnolgica, afastando-se dos pensamentos platnicos
sobre a responsabilidade em dimenses atemporais e transcendentais, para focar
seus argumentos na responsabilidade temporal.
Em linhas gerais, para HANS JONAS2, a responsabilidade a ser
exigida nos dias de hoje se subsume na temporalidade. Tanto assim que
asseverou: ipsis litteris: O Eros platnico, orientado eternidade e no
2 JONAS, Hans. El principio de respobnsabilidad: ensayo de uma tica para la civilizacin tecnolgica. Traduo de Javier Maria Fernndez Retenaga. Barcelona: 1995.
temporalidade, no responsvel de seu objeto. Aquilo ao que nele se aspira
algo superior, que no ser, seno que j .3
Ento para HANS JONAS no se trata de preocupao imediatista
em relao responsabilidade, ou seja, aquela que se baseia s no presente ou
mesmo em um futuro prximo. Trazendo-se tona aes passadas, que devem
ser consideradas, a responsabilidade projeta-se no presente, ou seja, neste
mundo de agora.
Mas isso no significa que tal responsabilidade envolva apenas o
mais imediato, mas sim que tal responsabilidade deva ser nas aes de hoje, mas
por um mundo vital longnquo, isto , pela vida que se projeta em direo ao mais
distante futuro.
Em sntese, para esse filsofo a era tecnolgica contempornea
faz com que o homem de tempos atuais no possa desprezar a necessidade de
ser responsvel tanto pelo tempo presente, como tambm pelo futuro que foge
aos seus olhos, ou seja, o mais distante que se consiga dimensionar. Tal
responsabilidade, vale dizer, deve sempre existir na mesma escala da capacidade
de interferncia do homem no tocante vida.
diante desse quadro que passa-se a tratar, agora, de
empreender esforos que orientem e afirmem a conduta responsvel de todos
aqueles cujas aes possam interferir nos amplos domnios da vida. E essa
exigncia deve levar em conta o prisma temporal dessa responsabilidade, porque
necessariamente envolve o comprometimento com as geraes atuais bem como
3 JONAS, Hans. Opus cit., p. 209. No original: El Eros platnico, orientado a la eternidad y no a la temporalidad, no es responsable de su objeto. Aquello a lo en que en l se aspira es algo superior, que no ser, sino que ya es.
com as futuras, sendo que pelo termo futuras se entenda as mais longnquas
que o pensamento imediato seria apto a projetar. Esse um dos grandes desafios
da biotica, indubitavelmente.
Em relao a temas como a proteo jurdica do nascituro, ou do
paciente terminal, o direito vida, um aspecto que no pode ser resolvido de
forma voluntarista, seja por parte do legislador, pelos mdicos ou pela famlia.
Vislumbra-se sob esse ngulo o aspecto moral, ou seja, o momento em que se
comea a resolver a questo da vida e da morte sob a tica moral.
O direito contemporneo, especialmente o biodireito, enfrenta
dificuldades para lidar com essas novas realidades justamente pelo fato de que
no se reconhece nas questes da cincia e da engenharia gentica uma
dimenso moral. A questo emergente, destarte, a que remonta ao tema da
responsabilidade para com a vida.
O ordenamento jurdico, portanto, passa a ter a obrigao de
mostrar solues para esses anseios, sendo forado a movimentar-se para
atender a esta nova demanda. fundamental que existam leis e mecanismos de
vigilncia que controlem o uso de novas tecnologias.
Desse modo, imprescindvel que, alm de se editarem normas
regulamentadoras da questo da possibilidade de fazer pesquisas cientficas com
material gentico, mormente o humano, necessrio sejam feitas consideraes
sobre os reflexos atinentes essa regulamentao, principalmente em relao
negociao envolvendo o patrimnio gentico humano e da responsabilidade civil
oriunda dos servios prestados, das empresas ligadas terapia gentica, sob
pena de prejuzos considerveis a toda a sociedade.
Ao se associar os direitos de personalidade existentes e previstos
em nosso ordenamento jurdico com a verificao das formas de negociao que
visam ao desenvolvimento e a um dito avano da sociedade, principalmente no
que tange a utilizao do corpo humano, percebe-se que limites devem ser
impostos.
Nesse diapaso, FRANCISCO AMARAL4 entende:
[...] questo preliminar reconhecer-se que o progresso cientfico deve-se orientar para promover a qualidade de vida individual e social, pessoal e ambiental, mas tambm que tais descobertas podem causar problemas que o Direito chamado a resolver, elaborando estruturas jurdicas de resposta que se legitimem pelo respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana.
No contexto da regulamentao da questo da manipulao
gentica, alm de se levar em conta principalmente a proteo incondicional
vida, o presente trabalho tratar desses temas atuais envolvendo a questo da
proteo da vida em razo dessa nova perspectiva legislativa, em especial a
responsabilidade civil dos entes ligados manipulao gentica, por ser
imprescindvel que se tracem parmetros chamada responsabilidade civil
objetiva, j que o Cdigo Civil trata da responsabilidade civil subjetiva.
Para que se alcance concluso plausvel, faz-se necessria a
anlise de vrias nuances relacionadas ao patrimnio gentico, tais como os
avanos da cincia gentica, o papel do princpio da dignidade da pessoa
humana, a proteo conferida personalidade, bem como os limites da
manipulao do genoma, delineados pelo ordenamento jurdico, seja no campo
4 AMARAL, Francisco. In: CARNEIRO, F (Org.). A moralidade dos Atos Cientficos: questes emergentes dos comits de tica em Pesquisa. Rio de Janeiro, Fiocruz, 1999.
Constitucional, seja no infraconstitucional, haja vista a Lei 11.105/2005 a Lei de
Biossegurana, regulamentada pelo Decreto 5.591/2005.
Assim, considerando o homem como centro do ordenamento
jurdico, pretende-se interpretar as normas reguladoras do tema, bem como os
princpios que norteiam a questo, levando-se em considerao quais sejam os
parmetros legais e doutrinrios para chegar-se a uma responsabilizao dos
entes praticantes de engenharia gentica, de forma a manter-se equilbrio entre o
ressarcimento, reparao dos danos e o no cometimento de avanos capazes de
ensejar enriquecimento sem causa por parte das vtimas.
Por bvio no se pretende esgotar a questo, mas to somente
proceder a investigaes que levem a posicionamentos consistentes e possam
fundamentar uma regulamentao rgida da matria, sob pena de que o vazio
jurdico5 no promova precipitaes ou omisses, com escopo mnimo de
construir-se seres humanos eticamente responsveis.
5 Expresso adotada por FRANCISCO AMARAL nos estudos decorrentes do I Simpsio de Biotica e Biodireito Por um estatuto jurdico da vida humana a construo do Biodireito, conferncia proferida no Simpsio de Biotica e Biodireito, realizado em Londrina (PR), apoiado pela UEL Universidade Estadual de Londrina, e pelo CONPEDI Conselho Nacional de Pesquisa e Ps-graduao em Direito, em maio de 1997.
1 A REVOLUO BIOTECNOLGICA
Nas ultimas dcadas, os avanos trazidos pelo desenvolvimento
cientfico e tecnolgico nos campos da biologia, da sade e da qualidade de vida,
de modo geral, tem levado a humanidade a deparar-se com as mais diversas e
inusitadas situaes at pouco tempo inimaginveis.
Dia-a-dia a mdia traz notcias de inovaes biotecnolgicas, tais
como o clone de uma clula, o mapeamento gentico humano, a duplicao de
mamferos, a pesquisa em utilizao de clulas-tronco capazes de se
reproduzirem em tecidos de quaisquer outros rgos, etc. At mesmo produes
cinematogrficas foram realizadas em torno do tema, expondo a situao de pais,
v.g., que perderam o filho em acidente de trnsito, e atravs de clonagem de
clulas dessa criana, deram a existncia de sua cpia, ou de seu clone6. Idia
absurda??? Dir-se-ia que no.
Hoje no se pode mais duvidar ou asseverar que uma ou outra
tcnica possvel apenas em telas de fico. bom lembrar que at pouco tempo
no se imaginava a criao de animais clonados, ou de bate-papo on line
atravs de programas de informtica, ou da possibilidade de se tornar me ou pai
mesmo se tendo problemas com fertilidade. Seria isso tudo apenas o incio?
Chegar o tempo em que o homem far compras tranqilamente em um
supermercado gentico?
6 Godsend, 2004 by Lions Gate Films. Extrado do site www.godsendthefilm.com\ . Cita-se outros longa-metragens referentes ao tema: Gattacca, Meninos do Brasil, A Ilha, entre outros.
http://www.godsendthefilm.com/
Se por um lado todas essas conquistas trazem na sua esteira
renovadas esperanas de melhoria da qualidade de vida para a humanidade, por
outro, criam uma srie de contradies que necessitam ser criteriosamente
estudadas, visando no s ao equilbrio e ao bem-estar futuro da espcie como
prpria sobrevivncia do planeta. O desenvolvimento responsvel deve ser a viga-
mestra de toda a evoluo.
O tema se faz to complexo, que levou JRGEN HABERMAS7 a
inquietar-se diante de uma pergunta aparentemente simples: O que o homem faz
com o tempo de sua vida?
A partir dessa questo, discorre sobre se ainda so possveis
respostas ps-metafsicas sobre o que seja a vida correta, j que por muito
tempo os filsofos acharam que dispunham de conselhos adequados para as
perguntas sobre a conduta de vida pessoal ou at coletiva, entendendo que hoje,
aps a metafsica, a filosofia j no se julga capaz de dar respostas definitivas
sobre o assunto, pois a tica regrediu cincia, j que no mximo, permite sejam
feitas reflexes dispersas, retidas na forma aforstica e originadas da vida
prejudicada (termo utilizado pelo autor).
Embasando suas reflexes, afirma:
[...] enquanto a filosofia ainda acreditava que podia se assegurar da totalidade da natureza e da histria, ela dispunha de uma posio supostamente consolidada, na qual a vida humana dos indivduos e das comunidades devia se inserir. A estrutura do cosmo e a natureza humana, as fases da histria universal e da histria sagrada forneciam elementos impregnados de normas, que aparentemente tambm
7 HABERMAS, Jrgen. O futuro da natureza humana. So Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 3-4.
ofereciam elucidao sobre a vida correta. Correto tinha aqui o sentido exemplar de um modelo digno de imitao para a vida, seja pelo indivduo, seja pela comunidade poltica. Do mesmo modo como as grandes religies apresentavam a vida dos seus fundadores como o caminho para a salvao, a metafsica tambm oferecia seus modelos de vida para a minoria, certamente um caminho diferente daquele da maioria. As doutrinas da boa vida e da sociedade justa, como a tica e a poltica, eram ainda doutrinas com uma base nica, que formavam um todo. Todavia, com a acelerao da transformao social, tambm os perodos de declnio desses modelos da vida tica se tornaram cada vez mais curtos independentemente de sua orientao, que podia ser para a polis grega, para as classes da societas civilis medieval, para o indivduo universal do Renascimento urbano ou, conforme Hegel para a estrutura da famlia, da sociedade civil e da monarquia constitucional.
Em sntese, HABERMAS enfatiza o fato de que a teoria moral
contempornea abandonou todo o conceito pr-social de pessoa, concluindo que
a pessoa o resultado da juno de relaes humanas e sociais, no tendo
sentido a padronizao de um tipo universal de pessoa, mas somente ao indivduo
dotado de valores e direitos, que lhe so atribudos pela sociedade.
Partindo desse pensamento, de se constatar que ento no
existem valores universais, representados pela pessoa humana, mas somente
valores e direitos variveis de acordo com cada sociedade, cada estado. Esse
argumento, no entendimento de VICENTE DE PAULO BARRETO8 resulta de
referncias culturais que impregnam o nosso direito, influenciado ainda por uma
biologia ultrapassada, pouco diferente da embriologia aristotlica.
Sob um enfoque mais elaborado, JOHN RAWLS9 considera a
idia de pessoa inserta na chamada teoria da justia. Esse filsofo norte-
americano visualiza a idia de pessoa concebida numa determinada sociedade
para, ento, afirmar que esse conceito fundamentalmente poltico. Afirma que a
8 BARRETO, Vicente de Paulo. A idia de pessoa humana e os limites da biotica. In: Novos temas de biodireito e biotica. So Paulo: Renovar, 2003. p. 250. 9 RAWLS, John. Uma Teoria da Justia. So Paulo: Martins Fontes, 2000.
sociedade um sistema de cooperao eqitativa entre grupos sociais e
indivduos, atravs de geraes.
Citado por VICENTE DE PAULO BARRETO10, quando trata de
tema de biotica, o filsofo JOHN RAWLS entende que a idia de pessoa, como
alicerce da sociedade eqitativa, uma concepo normativa, quer legal, poltica
ou moral, ou mesmo filosfica ou religiosa, dependendo do arcabouo global no
qual est inserida.
Associa ento, com fundamento nesse entendimento da natureza
da sociedade, a idia de pessoa vinculada idia de cidadania, sendo ento o
cidado aquela pessoa que pode participar da vida social atravs do exerccio de
direitos e o respeito a deveres. Atravs de seu pensamento poltico-liberal, tira
concluses a partir dos fracassos das tentativas filosficas de determinar modos
de vida como exemplares ou universalmente decisivos.
Segundo RAWLS, a sociedade justa deixa ao critrio de todas as
pessoas aquilo que elas querem iniciar como tempo de suas vidas, garantindo a
todos a mesma liberdade para desenvolver uma autocompreenso tica, a fim de
formar uma concepo pessoal da boa vida segundo capacidades e critrios
prprios.
Mas isso no significa que a filosofia prtica renuncie totalmente
s reflexes normativas; limita-se, entretanto a questes sobre a justia,
esforando-se especialmente para elucidar o ponto de vista moral adotado para
10 BARRETO, Vicente de Paulo. A idia de Pessoa Humana e os Limites da Biotica. In: Novos temas de biodireito e biotica. So Paulo: Renovar, 2003. p. 250-251.
julgar normas e aes sempre que se trata de estabelecer o que de interesse
comum de cada um e igualmente bom para todos.
Entende, destarte, que para tentar se chegar a uma resposta do
que seja bom para ns, preciso tambm se questionar sobre o que seja bom
para mim, e bom para mim hoje e a longo prazo o que seja bom para todos ns.
Claramente observa-se que no se chega a uma resposta conclusiva, pois
existem paradoxos subjetivos a serem analisados.
Por essa razo, as teorias atuais da justia e da moral trilham por
caminhos prprios, diferentes dos da tica em seu sentido clssico de uma
doutrina da vida correta.
A teoria moral, por seu plano, sofre profundas transformaes por
dividir seu trabalho com uma tica especializada nas formas da autocompreenso
existencial, pois assim se desfaz a conexo com as narrativas preexistentes
metafsicas e religiosas, as quais eram as nicas a garantir aos julgamentos
morais a motivao para agir corretamente.
As convices morais s condicionam efetivamente vontade
quando se encontram insertas numa autocompreenso tica, que coloca a
preocupao com o prprio bem-estar a servio do interesse pela justia.
HABERMAS11 afirma que as teorias da justia, desatreladas da
tica, s podem esperar pela transigncia de processos de socializao e formas
polticas de vida.
Subsiste, todavia, em relao ao direito vida, seja do nascituro,
seja do paciente terminal, um aspecto que no pode ser resolvido de forma 11 HABERMAS, Jrgen. Opus cit. , p. 7.
voluntarista, seja por parte do legislador, seja pelos mdicos, governantes e a
famlia. Esse aspecto exatamente o aspecto moral; ou seja, o momento em que
se comea resolver a questo da vida e da morte sob a tica moral.
O biodireito contemporneo enfrenta dificuldades para lidar com
essas novas realidades justamente pelo fato de que no se reconhecem nas
questes da cincia e da engenharia gentica as suas dimenses morais.
RONALD DWORKIN12 assevera que para constatar a idia de
pessoa atravs da tica da moral preciso apenas responder a duas questes: 1)
quando a criatura humana adquire direitos e passa a ter deveres?; e 2) quando a
vida da pessoa humana dotada de valor intrnseco e quais as suas
conseqncias?
Para esse filsofo, ao responder-se essas indagaes, no se faz
necessrio decidir-se se um feto uma pessoa completa desde a sua concepo
ou em que ponto da gestao torna-se um ser humano. O estado pessoal no
pode, dessa forma, ser determinado pela cincia e o direito no tem resposta para
essa questo por ser eminentemente de cunho moral.
Sob a mesma tica definiu a pessoa humana o filsofo alemo
IMMANUEL KANT13, partindo da formulao de Bocio, mas ampliando a sua
abrangncia e buscando uma justificativa inteiramente racional, sem a
interferncia de fatores externos ao prprio ser humano, para a idia de pessoa.
12 DWORKIN, Ronald. Domnio da vida: aborto, eutansia e liberdades individuais. Traduo Jefferson Luiz Camargo. So Paulo: Martins Fontes, 2003. 13 KANT, I., Immanuel. Traduo Leopoldo Holzbach. Fundamentao da Metafsica dos Costumes e outros escritos. So Paulo: Martin Claret, 2004.
Vincula, assim, a idia de pessoa humana questo da liberdade racional como
ncleo da vida moral dos indivduos.
KANT entende ento que uma pessoa o sujeito cujas aes so
suscetveis de imputao. A personalidade moral nada mais do que a liberdade
de um ser racional obediente a leis morais.
Assim, a referncia do que vem ser pessoa humana, em termos
kantianos, o qual ir se expressar constitucionalmente no princpio da dignidade
humana no se resume a uma simples definio dogmtica, mas uma definio
antes de tudo racional, de caractersticas prprias do ser humano, prprias para
diferenci-lo das coisas e que ir dotar cada um deles de valores essenciais para
a existncia da comunidade humana.
Direcionando-se a anlise filosfica para o tema da manipulao
gentica e o incio da vida humana, parte-se da premissa de que o embrio
adquire o estatuto de pessoa potencial quando ocorre a formao fsica do crtex
no processo de gestao.
Esse fato fsico, entretanto, no suficiente para a constituio da
pessoa humana, mas unicamente da pessoa em potencial, j que a cincia
biolgica identifica o processo evolutivo em fases: at o 14 dia de gestao o
embrio um conjunto de clulas humanas; em seguida um indivduo humano,
depois uma pessoa potencial e, enfim, depois de seu nascimento com vida, como
estabelece o Cdigo Civil de 2002, art. 2 14, uma pessoa. A reduo dessa idia
14 Art. 2 CC A personalidade civil da pessoa comea do nascimento com vida; mas a lei pe a salvo, desde a concepo, os direitos do nascituro.
de pessoa a um fator fsico leva limitao com que se defronta a biotica
contempornea.
Essa perplexidade filosfica que levou o pensamento
contemporneo a procurar outros fundamentos ou classificaes para a idia de
pessoa humana, em virtude de se estabelecer gradativamente essa idia mais
relevante para a cultura poltica e jurdica do estado democrtico de direito.
HABERMAS, por outro turno, enfatiza o fato de que a teoria moral
contempornea abandonou todo o conceito pr-social de pessoa, concluindo que
a pessoa o resultado da tessitura de relaes humanas e sociais, no tendo
sentido a referncia a uma categoria universal de pessoa, mas somente ao
indivduo dotado de valores e direitos, que lhe so atribudos pela sociedade.
Nesse caminhar filosfico, SREN KIERKEGAARD15 foi o
primeiro a responder questo tica e fundamental sobre os xitos e fracassos da
prpria vida com um conceito ps-metafsico do poder de si mesmo. Para os que
seguem KIERKEGAARD, tais como HEIDEGGER, JASPERS e SARTRE, tal
filsofo, protestante inclinado admisso de um Deus misericordioso, quando
discutiu o pensamento especulativo de HEGEL, deu questo sobre a vida
correta conotao de nuance acentuadamente religiosa, apesar de ps-metafsica.
Entretanto, os filsofos existencialistas, comprometidos com um
atesmo metdico, reconheceram em KIERKEGAARD o pensador que reformula a
questo tica de um modo surpreendentemente inovador e a responde de maneira
15 KIERKEGAARD, Sren. Entweder/Oder, organizado por H. Diem e W. Rest, Kln e Olten, 1960, p. 827-830. Apud HABERMAS, Jrgen. Opus Cit., p. 11.
substancial e com formalismo suficiente no sentido de proibir-se quaisquer tutelas
em questes ticas.
Ao enfrentar a dicotomia da concepo tica e esttica da vida,
KIERKEGAARD desenha a imagem de uma existncia jocosa em seu
egocentrismo, com tons de ironia e regada ao prazer desejado e ao momento,
tendo assim chegado ao conceito de uma resoluta conduta tica de vida, que
exige do indivduo que se concentre em si prprio e se liberte da dependncia em
relao a um ambiente dominador.
Assim, para KIERKEGAARD, o indivduo precisa recobrar a
conscincia de sua individualidade e de sua liberdade, para ganhar distncia de si
mesmo. Somente dessa forma, o indivduo, ao se recuperar da disperso annima
de uma vida num timo reduzida a fragmentos, d a prpria vida continuidade e
transparncia, sendo ento capaz de assumir a responsabilidade pelos prprios
atos e contrair compromissos com seus semelhantes.
Num exerccio temporal, a preocupao consigo mesmo cria uma
conscincia da historicidade de uma existncia, que se realiza entre o futuro e o
passado, de forma simultnea. Torna-se, destarte, consciente de que ela mesma
se torna uma tarefa que lhe fora imposta, mesmo que seja de forma inconsciente.
Em KIERKEGAARD, ante sua viso ps-religiosa, os enunciados
universais sobre os modos do poder ser si mesmo no so descries estanques,
mas possuem um valor normativo e fora de orientao. Na medida em que essa
tica do juzo se abstm no do modo de existncia, mas do determinismo
direcionado de projetos de vida individuais e de formas de vida particulares,
satisfaz-se s condies acerca do pluralismo ideolgico.
Interessante deparar-se com o limite que se traa entre esse
pluralismo ideolgico e a moderao ps-metafsica quando se tratam de assuntos
sobre uma tica da espcie. Quando a autocompreenso tica de sujeitos
capacitados para a linguagem e para a ao entram no contexto, a filosofia no
consegue mais ficar sem tomar decises acerca de questes de contedo.
exatamente nesse ponto em que se encontra hoje o
pensamento filosfico, ante ao progresso das cincias biolgicas e o
desenvolvimento da biotecnologia, as quais ampliam no s as possibilidades de
ao j conhecidas, mas tambm possibilitam um novo tipo de interveno. O que
antes era tido como dado pela natureza orgnica e podia, quando muito, ser
alimentado, move-se atualmente no campo da interveno orientada para um
objetivo.
De forma geral, a implementao dessas conquistas
biotecnolgicas afeta diretamente a autocompreenso como seres que agem de
forma responsvel, e de que modo isso se d, pois depender da
autocompreenso de cada sujeito o modo com desejaro utilizar desse novo
caminho de decises; de maneira autnoma, segundo consideraes normativas
insertas na formao democrtica da vontade, ou de maneira arbitrria, em razo
de suas preferncias subjetivas, que sero satisfeitas pelo mercado.
HABERMAS questiona, a partir das premissas acima trazidas, que
se deve refletir a possibilidade hodierna de se intervir no genoma humano ser
apenas em razo de um aumento de liberdade ou se dar como autopermisso
para transformaes que dependero de preferncias no necessitando assim de
nenhuma autolimitao.
Segundo tal filsofo, s existir uma limitao de uma eugenia
negativa e voltada eliminao de males quando se responder afirmativamente
questo atravs do aumento de liberdade, desde que se analise profundamente a
questo do que seja uma moderna compreenso da liberdade.
A decodificao do genoma humano promete intervenes que
lanam, surpreendentemente, uma luz sobre uma condio natural de nossa
compreenso normativa, condio essa que at agora no fora tematizada, mas
que essencial16.
O objetivo dessa recuperao filosfica da idia da pessoa
humana tem a ver diretamente com a funo moral primordial do Direito, qual seja,
a de proteger essa pessoa em perigo ou buscar os instrumentos normativos que
possam preservar a humanidade do homem.
A partir desse entendimento da funo superior do Direito, retira-
se o sistema jurdico da funo de servido do voluntarismo individualista ou do
16 Habermas ainda traz questionamento que o que se observava at os dias de hoje que o pensamento secular da modernidade europia pde, tanto quanto a crena religiosa, partir do princpio de que a constituio gentica dos recm-nascidos e, por conseguinte, as condies orgnicas iniciais para sua futura histria de vida escapavam da programao e da manipulao intencional feitas por terceiros. Certamente, a pessoa em crescimento pode submeter sua histria pessoal a uma avaliao crtica e a uma reviso retrospectiva. Nossa biografia compe-se de uma matria da qual podemos nos apropriar e pela qual podemos, no sentido de Kierkegaard, nos responsabilizar. O que hoje se coloca a disposio algo diferente: a indisponibilidade de um processo contingente de fecundao, com a conseqente combinao imprevisvel de duas seqncias diferentes de cromossomos. Todavia, no momento em que podemos domin-la, essa contingncia discreta revela-se como um pressuposto necessrio para evidenciar o poder de si mesmo e a natureza fundamentalmente igualitria das nossas relaes interpessoais. Com efeito, um dia quando os adultos passarem a considerar a composio gentica desejvel dos seus descendentes como um produto que pode ser moldado e, para tanto, elaborarem um design que lhes parea apropriado, eles estaro exercendo sobre seus produtos geneticamente manipulados uma espcie de disposio que interfere nos fundamentos somticos da autocompreenso espontnea e da liberdade tica de uma outra pessoa e que, conforme pareceu at agora, s poderia ser exercida sobre objetos, e no sobre pessoas. Desse modo, mais tarde os descendentes poderiam pedir satisfao aos produtores do seu genoma e responsabiliza-los pelas conseqncias, indesejveis do seu ponto de vista, desencadeadas no incio orgnico de sua histria de vida.
sistema tcnico-econmico, conservando a sua prpria normatividade. Segundo
LENIO LUIZ STRECK17, esses tipos de normativismos os quais esto sendo
questionados na contemporaneidade, levaram o jurista perda total da segurana,
haja vista a morte do cogito cartesiano.
Alm de tais paradigmas, no entendimento do filsofo tambm
alemo HANS JONAS18 acerca do presente tema, criou-se um paradoxo entre
evoluo biotecnolgica e autodestruio, j que assevera que a tica e a filosofia
contemporneas tornaram-se impotentes diante do chamado homem
tecnolgico, o qual possui poderes tanto para desorganizar como tambm para
alterar radicalmente os fundamentos da vida, para a criao e destruio de si
prprio.
o que se observa nesse contexto hodierno de descobertas, onde
anunciam-se novas formas de diagnstico precoce de cnceres e de
medicamentos potentes para seu controle, e ao mesmo tempo, destri-se a
camada de oznio, devasta-se as florestas, utiliza-se de potentes pesticidas na
agricultura. Em uma face da moeda tem-se a descoberta de evoludas tcnicas de
reproduo assistida, e na outra face, destri-se o meio-ambiente do qual
depende a manuteno das novas geraes.
JOS EDUARDO DE SIQUEIRA19 ao analisar as questes
bioticas e a tecnocincia revela que pela tcnica, o homem tornou-se perigoso
17 STRECK, Lenio Luiz. Hermenutica Jurdica e(m) crise. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 273. 18 JONAS, Hans. Il principio responsabilit; untica per la civilit tecnolgica. Turim: Einaudi, 1990. 19 SIQUEIRA, Jos Eduardo de. tica e tecnocincia: uma abordagem segundo o princpio da responsabilidade de Hans Jonas. Londrina: UEL, 1998. p.39.
para o homem, somando vulnerabilidade da vida um fator desagregador
suplementar que a sua prpria obra.
Isso faz com que as pessoas vivam inseguras, ameaadas por tais
fatores identificados e provenientes da prpria cincia e de aes vinculadas ao
manejo das novas tecnologias, sobretudo quando estas so aplicadas no campo
da medicina e da gentica.
Assim, tais inovaes constantes e paradoxais resultam em custos
psquicos para a humanidade, fazendo-se mister uma adaptao social e a
adoo de novos posicionamentos compatveis com as mudanas possibilitadas
pela cincia, seja para recepcion-las, seja para repudi-las. No fcil mudar
repentinamente conceitos pr-estabelecidos sobre a prpria natureza humana.
No se faz inoportuno lembrar das anlises conceituais de
SIGMUND FREUD20:
A questo fatdica para a espcie humana parece-me ser saber se, e at que ponto, seu desenvolvimento cultural conseguir dominar a perturbao de sua vida comunal causada pelo instinto humano de agresso e autodestruio. Talvez, precisamente com relao a isso, a poca atual merea um interesse especial. Os homens adquiriram sobre as foras da natureza um tal controle, que, com sua ajuda, no teriam dificuldades em se exterminarem uns aos outros, at o ltimo homem. Sabem disso, e da que provm grande parte de sua atual inquietao, de sua infelicidade e de sua ansiedade. Agora s nos resta esperar que o outro dos dois Poderes Celestes, o eterno Eros desdobre suas foras para se afirmar na luta com seu no menos imortal adversrio. Mas quem pode prever com que sucesso e com que resultado?
20 FREUD, Sigmund. O mal estar na civilizao. Rio de Janeiro: Imago, 1997, p. 111-112.
A seu passo, toda essa mudana paradigmtica e axiolgica traz a
relativizao das normas ticas, de forma que os conceitos tradicionais de bem e
mal, justo e injusto, j no se apresentam de forma unnime para orientao do
agir humano. Hoje a flexibilidade e o respeito diversidade firmam-se como
qualidades fundamentais para a vida do homem ps-moderno. Situaes relativas
a adoo de crianas por casais homossexuais, o aluguel de tero, transplante de
rgos, entre outras, so realidades que j no causam tanto espanto como
antigamente.
Cumpre ressaltar-se que a cincia no funesta e sim o
comportamento humano, ou seja, o que o homem pode fazer com descobertas
cientficas. Por isso preciso encontrar limites, estabelecer distines entre bem e
mal no uso das novas tecnologias, aplicando-se o direito no apenas para
inscrever as proibies, mas tambm para reconhecer e absorver as
transformaes operadas na vida, consolidando os pilares ticos orientadores das
condutas relativas ao avano da cincia.
Essa preocupao constante de se controlar a tecnologia tem
reaproximado a tica e o conhecimento, ou seja, os valores morais e a cincia. Tal
interao sempre ser permeada pelo Direito, consolidando conceitos bioticos j
existentes, bem como dando novo sentido aos que forem atingidos pelas
descobertas tcnico-cientficas.
Segundo MARIA AUXILIADORA MINAHIM21, ao ensinar sobre o
estudo da Biotica, preleciona:
21 MINAHIM, Maria Auxiliadora. Direito Penal e Biotecnologia. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 28-29.
[...] antes de ingressarem no campo do direito, porm, essas questes, introduzidas pelos avanos tcnico-cientficos e os conflitos que suscitam, passam por discusses em um campo mais amplo que o da Biotica. A tica, alis, sempre foi ponto de encontro de saberes como o Direito, a moral, a religio. Esse terreno comum abriga discusses sobre situaes que podem ensejar diferentes escolhas morais, embora nem sempre as perspectivas sejam coincidentes. Assim foi com os temas da pena de morte, do aborto e, atualmente, com a clonagem, a fecundao assistida, a terapia gnica e outros da mesma natureza.
Assim, a tica aplicada enseja a promoo de uma interao entre
a cincia e o valor nsito vida humana. Essa capacidade de interlocuo da
Biotica com a religio, a moral e o direito ir preencher lacunas deixadas pelos
princpios jurdicos.
Mas a Biotica, ao contrrio do Direito, no procura estabelecer
ordens gerais para as aes, no possuindo fora coercitiva capaz de coibir certos
comportamentos; ela vem discutir a funo da tecnocincia para o bem-estar da
humanidade, validando-a, na medida em que serve ao ser humano, intermediando
os conflitos morais trazidos pelas novas tecnologias, bem como oferecendo
suporte para as aes mdicas e cientficas.
1.1 A TICA, A BIOTICA E O NASCIMENTO DO BIODIREITO
O Direito contemporneo est enfrentando novos problemas, que
nem sempre so resolvidos pelos instrumentos tradicionais de proteo vida. Os
estudos de Cincias Biomdicas, Biotica, Filosofia e Direito esto cada vez mais
amplos, em virtude dos avanos da tecnologia, da medicina e das investigaes
que surgem na cincia contempornea. Tais pesquisas levam ao conhecimento e
exame dos resultados das investigaes e suas aplicaes em seres humanos.
Temas como o anncio de resultados fascinantes da biologia
molecular e da engenharia gentica, inclusive em seara ambiental; novas prticas
biomdicas resultantes do descobrimento do DNA recombinante contm em si
mesmos o poder de criao e destruio da vida e da natureza, o que fatalmente
traz problemas tico-jurdicos relacionados vida, morte, ao paciente terminal,
sexualidade, reproduo humana, s tecnologias conceptivas, paternidade,
maternidade, filiao, ao patrimnio gentico, correo de defeitos fsicos e
hereditrios, ao uso de material embrionrio em pesquisas, eugenia, s
experincias farmacolgicas e clnicas com seres humanos, ao equilbrio do meio
ambiente, criao de produtos transgnicos, clonagem, ao transplante de
rgos e tecidos humanos, transfuso de sangue, ao mapeamento seqencial
do genoma humano, ao patenteamento da vida, mudana de sexo, entre outros.
Nos dizeres de MARIA HELENA DINIZ22:
[...] essa nova faceta criada pela biotecnocincia, que interfere na ordem natural das coisas para brincar de Deus, surgiu uma vigorosa reao da tica e do direito, fazendo com que o respeito dignidade da pessoa humana seja o valor-fonte em todas as situaes, apontando at onde a manipulao gentica da vida pode chegar sem agredir.
Destarte, a gentica coloca questes cruciais para a sociedade
que, por sua vez, desejaria v-las reguladas juridicamente, isto , consoante uma
22 DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 2 ed. aum. e atual. conforme o novo Cdigo Civil (Lei 10.406/2002). So Paulo: Saraiva, 2002. p. XXIV.
ordem, uma pauta normativa que preservasse valores ticos fundamentais
concernentes proteo da dignidade humana.
1.1.1. tica
Inicialmente, deve-se conceituar o que seja o objeto do presente
estudo e, para se conceituar "Biodireito", deve-se, antes, explicitar uma idia do
que seja "Biotica", o que, por sua vez, exige um breve conceito de "tica".
Em decorrncia do desenvolvimento atual da biotecnologia, a
tica e a Moral tm sido amplamente discutidas pelos mais variados profissionais,
tais como bilogos, juristas, religiosos e filsofos. De forma simples, pode-se dizer
que tica algo estabelecido para possibilitar a convivncia em sociedade.
FTIMA OLIVEIRA23 define tica da seguinte forma:
A tica construda para estabelecer as normas de convivncia com o conjunto da sociedade em um dado momento. Comporta a microtica (pessoal/privada o ser humano) e a macrotica (coletiva/pblica a humanidade). A tica representa o consenso possvel no interior de uma cultura plural, com valores diversos e divergentes; ou seja, a tica deve refletir os traos de unidade entre os diferentes valores morais.
Aplicando-se este conceito no campo profissional, "tica mdica"
seria, por exemplo, uma relao de normas de conduta que visasse regular o
comportamento dos profissionais da medicina de modo a resguardar o bem da
prpria profisso, atravs de uma conduta que se pretenda seguida, a fim de
garantir a imagem da profisso perante toda sociedade, e, ao mesmo tempo, seria
o estabelecimento de um rol de condutas que fossem capazes de resguardar a 23 OLIVEIRA, Ftima. Engenharia Gentica O Stimo dia da criao. 5 ed. So Paulo: Ed. Moderna, 1995, p. 118.
boa relao pessoal, profissional e recproca entre os profissionais da rea
mdica.
Ainda segundo FATIMA OLIVEIRA24, o sentido etimolgico de
tica o mesmo que o de moral, sendo que tica vem do grego, e moral do latim.
Ambos significam costumes, que por sua vez significa os valores relativos a
determinado agrupamento social, em algum momento da sua histria.
Todavia, possvel fazer distino entre o que especfico em
cada uma delas, o que se faz imprescindvel para o estudo da biotica e do
biodireito. Em brilhante estudo sobre o tema, SIMONE BORN DE OLIVEIRA25 cita
os conceitos de tica e moral de MARIA DO CU PATRO NEVES, a qual traduz
tica como sendo a cincia dos fundamentos ou dos princpios da ao, e a
moral como o conjunto de normas que regulam a ao humana.
De uma forma ou de outra, inconteste que a tica e a moral so
valores que no sobrevivem de forma independente; culminam, no mnimo, em
conceitos entrelaados aptos para legitimar a ao humana com enfoque
primordial no equilbrio e bom-senso no tratamento jurdico das situaes que
envolvam as inovaes biotecnolgicas.
1.1.2 Biotica
Como o prprio termo indica, a Biotica est vinculada tica,
com todas as suas regras, seus dogmas, identificando-se com a idia de
24 OLIVEIRA, Ftima. Opus cit. p. 118. 25 OLIVEIRA, Simone Born de. Da Biotica ao Direito: Manipulao Gentica e Dignidade Humana. Curitiba: Juru Editora, 2002. p. 42.
conscincia, delineando os valores fundamentais que devem reger as cincias
biolgicas, tendo em vista conciliar o desenvolvimento da tecnocincia com as
exigncias morais da sociedade.
Os primeiros questionamentos acerca das justificativas dos
avanos cientficos e a importncia da proteo dos direitos e do bem estar das
pessoas se deram por volta de 1967 quando, segundo EDUARDO DE OLIVEIRA
LEITE26, Christian Barnard transplantou um corao humano de uma pessoa
falecida em um cardiopata em estado terminal.
Narra PESSINI E BARCHIFONTAINE27 que cinco anos antes, a
revista Life publicava um artigo intitulado Eles decidem quem vive e quem
morre, trazendo a histria de um comit em Seattle com o escopo de selecionar
pacientes para o programa de hemodilise crnica. Como havia mais pacientes
que capacidade do programa, a soluo foi criar esse comit, composto pela
maioria de profissionais no mdicos, para determinar critrios para escolha dos
pacientes que receberiam o tratamento. Tais fatos marcaram a problematizao
acerca dos valores humanos em virtude do rpido desenvolvimento cientfico.
Surge, assim a Biotica.
O neologismo Biotica derivado das palavras gregas bios
(vida) e ethike (tica), tendo aparecido inicialmente no ttulo da obra de VAN
RENSSELAER POTTER Bioethics: bridge to the future, em 1971, mas no com
o sentido que hoje se d ao instituto. Pesquisador da rea de oncologia, POTTER
26 LEITE, Eduardo de Oliveira. Procriaes artificiais: biotica e biodireito. In: Repensando o Direito de Famlia/ coordenador: Rodrigo da Cunha Pereira. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 145. 27 PESSINI, Lo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de biotica. So Paulo: Loyola, 1996, p. 16.
utilizou o vocbulo para designar uma participao racional, mas cautelosa, da
humanidade, no processo da evoluo biolgica e cultural.
Em um primeiro momento, PESSINI E BARCHIFONTAINE28
definiram biotica como sendo o estudo sistemtico da conduta humana no
mbito das cincias da vida e da sade, enquanto essa conduta examinada
luz de valores e princpios morais (...). Mas tal conceito se atualizou e vem se
atualizando dia a dia, haja vista as constantes inovaes da biomedicina,
abrangendo hoje as mais diversas reas, tais como o relacionamento profissional-
paciente, sade pblica, reproduo humana, pesquisa biomdica e
comportamental, terapia gnica, sade mental, sexualidade e gnero, morte e
morrer, gentica, tica da populao, doao e transplante de rgos, bem estar e
tratamento de animais, meio ambiente, etc.
O vocbulo Biotica hoje indica um conjunto de pesquisas e
prticas pluridisciplinares tendentes a solucionar questes ticas que o avano da
tecnocincia biomdica tem provocado, ultrapassando os limites da medicina,
alcanando a Psicologia, a Biologia, a Antropologia, a Sociologia, a Ecologia, a
Teologia, a Filosofia, o Direito, dentre outras.
1.1.2.1 Macrobiotica e a microbiotica
A Biotica divide-se em dois grandes ramos: Macrobiotica e
Microbiotica. Por Macrobiotica entende-se a tica que visa o bem da vida em
28 Opus Cit., p. 30.
sentido amplo, direcionada ao macrossistema da vida, estando ligada diretamente
ao meio ambiente e ao direito ambiental.
Neste contexto, MARIA HELENA DINIZ29 em sua obra O estado
atual do biodireito subdivide a Biotica em macro e micro, vindo a
macrobiotica tratar de assuntos tais como preservao do meio ambiente,
ecodesenvolvimento, biopirataria, patenteamento de organismos geneticamente
modificados, responsabilidade civil por dano ecolgico, entre outros.
Assim, em decorrncia da macrobiotica ter-se-ia um cdigo de
condutas que deveriam ser seguidas em todo tipo de ao humana,
principalmente nas experimentaes cientficas, que pudesse trazer como
conseqncia alteraes benficas ou prejudiciais ao meio ambiente.
J a microbiotica, surgiu de uma restrio do objeto da biotica:
a tica da vida humana. Dando seqncia ao seu pensamento, MARIA HELENA
DINIZ30 tambm trata de questes relativas microbiotica em seu contexto
tico-jurdico: proteo vida humana, direito ao nascimento, direitos do embrio
e do nascituro, maternidade e paternidade responsvel, planejamento familiar,
esterilizao humana artificial, sade fsica e mental, transfuso de sangue,
transexualidade, transplante de rgos e tecidos, morte digna, experincia
cientfica em seres humanos, fertilizao humana assistida, entre outros.
Neste contexto, Biotica seria um modelo de conduta a trazer o
bem Humanidade como um todo, e, ao mesmo tempo, a cada um dos
29 DINIZ, Maria Helena. O estado atual do Biodireito. 2 ed. aum. atual. conforme o novo Cdigo Civil (Lei n. 10.406/2002). So Paulo: Saraiva, 2002. p. 607-764. 30 Opus Cit., p. 21-606.
indivduos componentes da Humanidade. neste sentido que, perante os
avanos mdico-cientfico-tecnolgicos, tem-se utilizado os termos "Biotica" e
"Biodireito", no sentido de proteo da vida humana, principalmente com o intuito
de proteger todos os seres humanos que estejam direta ou indiretamente
envolvidos em experimentos cientficos.
1.1.2.2 Princpios Basilares da Biotica
Para que se entenda a importncia do estudo dos princpios
informadores da Biotica, bem como do Biodireito, necessrio se faz partir-se,
como ponto inicial, das seguintes concluses doutrinrias trazidas por LUIS
ROBERTO BARROSO31, de que:
[...] princpios so normas e as normas compreendem os princpios e as regras; - a norma constitui o gnero, do qual o princpio e a regra so espcies; - que os princpios gerais, em sentido e substncia, correspondem aos princpios constitucionais e que as regras, igualmente normas, possuem baixo grau de generalidade.
Diante de tais premissas, observa-se que a biotica possui os
seguintes princpios basilares, capazes de fornecerem orientao s situaes do
caso concreto:
31 BARROSO, Lus Roberto. Interpretao e Aplicao da Constituio. So Paulo: Saraiva, 1996. p. 141, afirma ainda que ... j se encontra superada a distino que outrora se fazia entre norma e princpio. A dogmtica moderna avaliza o entendimento de que as normas jurdicas, em geral, e as normas constitucionais, em particular podem ser enquadradas em duas categorias diversas: as normas-princpio e as normas-disposio (...) tambm referidas como regras, tm eficcia restrita s situaes especficas s quais se dirigem. J as normas-princpio, ou simplesmente princpios, tm, normalmente, maior teor de abstrao e uma finalidade mais destacada dentro do sistema.
a) o da autonomia ou do respeito s pessoas por suas opinies e escolhas,
segundo valores e crenas pessoais;
b) o da beneficncia, que se traduz na obrigao de no causar dano e de
extremar os benefcios e minimizar os riscos;
c) o da justia ou imparcialidade na distribuio dos riscos e dos benefcios, no
podendo uma pessoa ser tratada de maneira distinta de outra, salvo haja entre
ambas alguma diferena relevante.
Tais princpios so pontos de partida obrigatrios para qualquer
discusso concernente eutansia, aos transplantes de rgos, ao genoma
humano, experimentao em humanos, ao emprego das tcnicas de
reproduo assistida e a todas as demais questes porventura advindas do
assunto biotica.
Esses princpios surgiram atravs de uma Comisso Nacional
criada pelo Congresso dos Estados Unidos, em 1974, encarregada de identificar
os princpios ticos bsicos dirigentes da investigao em seres humanos pelas
cincias do comportamento e pela biomedicina. Quatro anos aps o incio dos
trabalhos, tal Comisso publicou o chamado Relatrio de Belmont, donde
estavam contidos.
Segundo HELOIZA HELENA BARBOZA32, a esses princpios Tom
L. Beauchamp e James F. Childress acrescentaram outro, em obra publicada em
1979: o princpio da no-maleficncia, segundo o qual no se deve causar mal a
outro e se diferencia assim do princpio da beneficncia que envolve ao de tipo
32 BARBOZA, Heloiza Helena. Princpios do Biodireito. In Novos Temas de Biodireito e Biotica. BARBOZA, Heloiza Helena; MEIRELLES, Jussara M. L. de; BARRETO, Vicente de Paulo. (Orgs). Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 55.
positivo: prevenir ou eliminar o dano e promover o bem, mas se trata de um bem
de um contnuo, de modo que no h uma separao significante entre um e
outro princpio.
Tais princpios atuam de forma ampla, disciplinando tanto a
experimentao com seres humanos at a prtica clnica e assistencial. Devem
ser obrigatoriamente observados desde que no haja conflitos entre si. Se
porventura ocorrer conflitos, no existe regra especfica de hierarquia entre os
mesmos, devendo ser observado o consenso entre os envolvidos no caso
concreto.
1.1.2 Biodireito
Quando se menciona temas como os acima transcritos, tanto os
atinentes macrobiotica quanto os de microbiotica, imediatamente faz-se
reflexo acerca dos valores e do respeito devidos ao ser humano e ao meio-
ambiente. Esse raciocnio delineia limites morais que devem existir diante dessas
prticas e investigaes biocientficas e que influem substancialmente na
formao do Direito.
A partir do sculo XX os conceitos, categorias e institutos do
direito civil clssico revelaram-se insuficientes para regular as relaes sociais
que surgiram na esteira dos avanos cientficos e tecnolgicos da biologia e,
especialmente, da engenharia gentica. Surge assim o biodireito, o qual ir tratar
dessas novas realidades e relaes sociais, que colocam em causa o homem no
somente como ser individual, mas como parte da espcie humana.
Chega-se ao conceito de "Biodireito", como sendo a positivao
das normas bioticas. Em outras palavras, biodireito a positivao jurdica de
permisses de comportamentos mdico-cientficos e de sanes pelo
descumprimento destas normas.
O Dicionrio Enciclopdico de Teoria e de Sociologia do Direito33
registra que o biodireito o ramo do direito que trata da teoria, da legislao e da
jurisprudncia relativas s normas reguladoras da conduta humana face aos
avanos da biologia, da biotecnologia e da medicina.
Mas o conceito de biodireito, como instituio independente ou um
tipo de microssistema no apoiado pela unanimidade de autores. MARIA DO
CU PATRO NEVES34 ensina que a denominao biodireito um fenmeno
tipicamente europeu, sem correspondente exato na cultura anglo-saxnica,
devendo constituir-se em espao de interao interdisciplinar e no em mais um
ramo do ordenamento jurdico.
VOLNEI GARRAFA35 tambm entende que deve existir um
equilbrio entre a liberdade do pesquisador e a severidade da imposio legal
proibitiva. Diz para tanto que no processo de criao do biodireito, ao se
judicializar a biotica, devem ser elaboradas normas positivas, afirmativas,
evitando-se regras sobre proibies que podem deter a fora libertadora da
33 ARNAUD, Andr-Jean (org.). Dicionrio Enciclopdico de Teoria e de Sociologia do Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 69-73. 34 NEVES, Maria do Cu Patro. Biotica e biodireito. In: NEVES, Maria do Cu Patro. (Coord.). Comisses de tica: das bases tericas actividade quotidiana. 2 ed. Coimbra: Grfica de Coimbra, 2002. p. 499-502. 35 GARRAFA, Volnei. Biotica e Cincia: at onde avanar sem agredir. In: COSTA, Sergio Ibiapina Ferreira; OSELKA, Gabriel; GARRAFA, Volnei. (Orgs.) Iniciao Biotica. Braslia: Conselho Federal de Medicina, 1998. p. 105.
cincia e da tcnica, e mais, que tais benesses tragam benefcios a todos os
povos.
Assim, no se deve esquecer que as situaes inovadoras
trazidas pela biotecnologia devem ser filtradas pelo direito, desde que este esteja
apto a concretizar o mnimo tico desejado, ou seja, que seja capaz de
apresentar horizontes que atendam pluralidade axiolgica, respeitando as mais
variadas culturas e crenas.
1.1.3.1 Princpios do Biodireito
Conforme assinalou BOULANGER36:
[...] separados por suas regras e seus conceitos, os diferentes direitos positivos se renem por seus princpios, que so o essencial... a afirmao dos princpios guiada por um instinto sobre o qual, mediante os direitos positivos da mesma famlia espiritual, os mesmos princpios aparecem.
Dessa afirmao depreende-se que o biodireito no se trata
simplesmente de encontrar um correspondente jurdico para assuntos
relacionados biotica, mas sim de uma inter-relao entre uma cincia e outra.
No se pode, destarte, hierarquiz-las, j que a biotica tem sido imprescindvel
para a construo de novas relaes das quais o Direito no pode declinar.
Assim, ante ao ineditismo dos assuntos tratados pelo biodireito,
mister se faz a observncia dos princpios vigentes, os quais, segundo HELOIZA
36 BOULANGER, Jean. La mthode de linterpretation juridique. In Travaux de lAssociation Henri Capitant, VI. Paris, 1952. p. 63. apud BARBOZA, Heloiza Helena. Opus Cit. p. 71.
HELENA BARBOZA37 so valores eleitos pela sociedade, que no podem
sucumbir seduo das muitas vezes promessas de realizao de grandes e
antigas aspiraes humanas, como a imortalidade, devendo os avanos
cientficos sejam pormenorizadamente analisados para que no ocorram danos
irreversveis sociedade.
Com a promulgao da Constituio da Repblica de 1988, uma
nova ordem jurdica foi instaurada no Brasil, trazendo os princpios estruturais, os
chamados princpios constitucionais ou princpios gerais de direito. Nestes
incluem-se uma srie de valores fundamentais, como a vida, a dignidade humana,
a liberdade e a solidariedade. Estes so a base principiolgica do biodireito, ou
seja, os princpios constitucionais devem constituir os princpios do biodireito, por
serem princpios basilares tambm da biotica.
sabido que no existe um captulo prprio em nossa
Constituio a tratar do biodireito, e isso ocorre justamente em virtude de que
todos os princpios constitucionais atinentes vida humana, sua preservao e
qualidade, esto entrelaados ao Biodireito, este no se restringindo, por sua vez,
questes relativas sade, ao meio ambiente ou tecnologia.
Trata-se ento de algumas regras compreendidas dentre os
Princpios Fundamentais, como o princpio do respeito dignidade humana; outras
so encontradas dentre os Direitos e Garantias Fundamentais, quais sejam: direito
vida, igualdade, sade. Tambm se encontram normas mais especficas no
Ttulo da Ordem Social, que tambm trata de questes de sade, do meio
ambiente e a famlia, criana e ao idoso. 37 Opus Cit., p. 73
2 ENGENHARIA GENTICA, DIREITOS HUMANOS E CONSTITUIO: O
PATRIMNIO GENTICO HUMANO COMO DIREITOS DE 4 DIMENSO
Dentro da problemtica oriunda da revoluo biotecnolgica,
temos na engenharia gentica um dos pontos mais crticos ante as disposies
sacramentadas na Constituio Federal tais como a dignidade da pessoa humana,
o respeito aos valores mnimos de dignidade, liberdade e igualdade que
inspiraram o sistema normativo da ordem constitucional de 1988.
Num primeiro passo, vale ressaltar o conceito de vida sob diversos
enfoques, revelando sua conexo com vrios ramos do saber. Conceitos tratados
de forma genrica pela doutrina, tais como vida humana, a dignidade de pessoa e
sua evoluo em contraposio e adequao aos conceitos de tutela do que vem
a ser patrimnio gentico humano, sempre buscando o equilbrio de uma
gentica voltada ao cumprimento do mandato tico, demonstrando o liame entre
os pressupostos da biotica e da Constituio.
Depreende-se, destarte, que uma questo ronda a cultura
filosfica e jurdica contempornea: o que a pessoa humana. O que antes era
considerada como um dos conceitos mais pacficos do direito, a idia de pessoa,
principalmente em virtude dos avanos da biologia e de suas implicaes
tecnolgicas, sofreu ao longo dos ltimos cinqenta anos um profundo
questionamento, que se traduz na perplexidade encontrada entre filsofos, juristas
e cientistas sociais em face dos questionamentos sobre a concepo de pessoa,
constatando-se mesmo ameaas que colocam a pessoa em perigo.
Os conceitos que antes serviram como fundamentos para o
sistema normativo da sociedade liberal-burguesa necessitam de uma releitura de
significado e de sua funo na estrutura jurdica, em virtude dos avanos do
conhecimento cientfico e do mundo novo construdo pela engenharia gentica.
As tentativas, inclusive consagradas no direito positivo, de salvar-
se no contexto de crise da cultura e do direito contemporneo os valores
fundantes da cultura do Ocidente fizeram com que juristas e legisladores se
socorressem da formulao de princpios, como, por exemplo, o princpio da
dignidade da pessoa humana, considerado referencial obrigatrio para a
formulao e a base dos sistemas jurdicos da sociedade democrtica.
A dignidade humana, entretanto, como idia de valor, precisa que
seus fundamentos tico-filosficos sejam recuperados, para que sejam
compreendidos e aplicados de forma racional nos sistemas jurdicos, e assim,
estejam aptos para o exerccio da funo esperada em um estado democrtico de
direito.
Atravs de uma anlise histrica, observa-se que a idia do que
seja dignidade humana no foi fruto de doutrina ou legislao, mas resultou de
uma compreenso especfica da natureza da pessoa humana e da sociedade.
Conforme VICENTE DE PAULO BARRETO38:
[...] falar da dignidade humana sem que se situe esta idia no quadro de uma tica e antropologia filosfica determinada resulta lanar o valor que ela representa no vazio dos discursos polticos e jurdicos. Isto porque a idia de dignidade humana um conceito tico, que, de acordo com alguns autores expressa-se politicamente no conceito poltico moderno da Democracia.
No mundo contemporneo, entretanto, depara-se com um
problema diferente daquele da sociedade helnica clssica, e que se expressa em
duas questes subjacentes idia de dignidade da pessoa humana: em primeiro
lugar, determinar-se quais os critrios para que se possam distinguir entre todos
os seres vivos ou no do universo quais podem ser classificados como
pertencentes categoria pessoa humana; e em segundo lugar, refere-se ao
cerne do direito das sociedades democrticas contemporneas, onde se ir
atribuir a essa pessoa humana uma srie de valores que so determinantes e
caracterizadores dos direitos humanos, ncleo moral, poltico e jurdico do estado
democrtico de direito.
38 BARRETO, Vicente de Paulo. A Idia de Pessoa Humana e os limites da Biotica. In: BARBOSA, Heloisa Helena; BARRETO, Vicente de Paulo. (orgs.) Novos Temas de Biodireito e Biotica. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 220-221.
Segundo RITA DE CASSIA RESQUETTI TARIFA39, vive-se
hodiernamente um momento privilegiado da histria, em sede jurdica. Citando
NORBERTO BOBBIO40, a autora assevera que os direitos humanos, na forma
como esto reconhecidos no atual estgio da modernidade, tanto em nvel
internacional (sistema de proteo internacional) como nos Estados
Constitucionais de Direito (sobretudo no mundo ocidental) representam uma
importante conquista histrica. Assim, direitos humanos, democracia e paz so as
condies para vida digna no mundo moderno.
A priori, deve-se ter em vista que pensar em questes genticas
pensar na dignidade do ser humano. Assim, as escolhas feitas pela sociedade
brasileira que surgiro dever-se-o adequar-se sempre com tal princpio. Mas
indubitavelmente, desafios sempre viro, dia a dia, para que se reflita sobre o
tema.
Desta forma, o desafio colocado pela cincia biolgica
contempornea para a filosofia e para o direito encontra-se nos prprios avanos
do conhecimento e da tecnologia relativos ao incio e ao fim da vida humana, a
exemplo das discusses tericas sobre a natureza do embrio humano.
Os novos fatos criados pela biotecnologia, aps serem objeto de
reflexes ticas, devem, portanto, ter ingresso no direito, como instncia capaz de
concretizar o mnimo tico desejado. certo que o direito, e especialmente o
direito civil e penal, no devem ser usados para coagir as pessoas em razo de
39 TARIFFA, Rita de Cssia Resquetti. A proteo da vida humana pelo direito e a evoluo dos direitos fundamentais. In: ______ Autonomia Corporal e Manipulao Gentica Humana. 2004. p. 19. (mestrado em Direito Negocial) Universidade Estadual de Londrina, Londrina, Paran. 40 BOBBIO, Norberto. A era dos Direitos. 12 tiragem. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1992. Apud TARIFFA, Rita de Cssia Resquetti. Opus cit., p. 19.
sua posio moral, mas no se pode refutar a estreita ligao entre direito e moral,
relao que pode ser constatada quando se considera que as mximas morais
geram os costumes, os quais, por sua vez, servem como fonte material ao
legislador.
O direito deve, porm, na medida do possvel, apresentar-se com
abertura suficiente para atender ao pluralismo moral, realizando o princpio da
tolerncia e respeito diversidade, incentivado nas sociedades ocidentais
contemporneas. Esta, porm, uma tarefa delicada, em se tratando de temas
to impregnados de crenas, religiosidade e valores distintos.
Certo que as novas ameaas ao indivduo, sua liberdade e
diversidade impuseram uma reviso profunda no mundo jurdico, que passou a
centralizar suas atenes na dignidade da pessoa humana.
O fato de o ente humano ser tomado como eixo do sistema e de o
direito mostrar-se aberto para os novos fatos deve significar que o respeito ao ser
humano se dar alm das crenas e das moralidades, sem o que todo discurso
no passar de mera retrica. Ao homem pensado pelo Iluminismo como uma
abstrao descontextualizada, sucede a pessoa e as suas mltiplas
circunstncias, que devem ser respeitadas em todas as instncias normativas.
No mundo do Direito, essa tarefa oferece alguma complexidade.
Os pases democrticos procuram afirmar a igualdade de todos diante da lei, sem
distino de qualquer natureza, e desenvolvem, nesse sentido, polticas de ao
afirmativa. O alcance dessa meta no se esgota na superao das desigualdades,
mas pressupe, reafirme-se, a compreenso e aceitao da multiplicidade de
valores, crenas e ideologias de todos os cidados.
Essa a questo prpria e pulsante das sociedades ps-
modernas, e onde as diferenas devem encontrar oportunidade de realizao, que
se espera ocorrer o equilbrio delicado entre a regra jurdica e as liberdades
individuais.
Conforme j explanado, dentre todas as mudanas pelas quais
passa o direito na ps-modernidade, a tendncia benfica traz a emancipao em
desfavor da regulao, com tendncia at ao abandono das Codificaes
tradicionais e a consagrao dos minissistemas jurdicos, como o caso do
Cdigo de Defesa do Consumidor41.
Mas, mesmo neste contexto renovador, faz-se, ainda, mister no
se perder de vista a regulao, principalmente diante desses novos fatos e
avanos da cincia, no campo da engenharia gentica, pelos desafios que
apresenta nos campos da moral e da tica, que se impem.
O escopo principal colocar-se freios sede cientfica desmedida,
dentro do paradigma do personalismo tico, que privilegia a pessoa humana como
centro da tutela jurdica.
Nesse ponto, faz-se de importncia singular e fundamental a
anlise sobre a possibilidade de incurso das normas emanadas da Biotica no
terreno das Constituies dos Estados e, logicamente, no plano internacional,
porquanto se trata de uma disciplina identificada como lugar de disparidades
posicionais, cuja tendncia suscitar um consenso emprico sobre normas a
serem realmente implementadas.
41 Cdigo de Defesa do Consumidor: Lei n 8.078, de 11 de setembro de 1990.
Assim, torna-se evidente que esses progressos cientficos
provocaram um processo de criao de normas jurdicas que expressam as
inquietudes sobre a necessidade de tutelar uma nova relao de equilbrio entre
direitos fundamentais, mormente, entre o direito vida, integridade fsica,
liberdade de expresso cientfica e o direito sade.
Ao analisar-se a evoluo dos Direitos Humanos, ante sua
independncia vontade humana e universalidade, se tornou necessrio
classifica-los por Geraes, nominados de forma mais adequada de Dimenses
de direitos humanos, sendo que hoje existem direitos de 4 e at, para alguns
autores, direitos de 5 dimenso, sendo que especificamente que os de 4
dimenso referem-se aos direitos ligados ao chamado Patrimnio Gentico, ou
seja, situaes ligadas pesquisa gentica, surgidos da necessidade de se impor
um controle manipulao do gentipo dos seres, em especial o do ser humano.
Para tanto, surgiu, atravs da UNESCO, a chamada Declarao
dos Direitos do Homem e do Genoma Humano, a qual, dentre outros, traz
expresso reconhecimento do respeito dignidade e aos direitos fundamentais dos
indivduos, quaisquer que sejam suas caractersticas genticas.
2.1. Da proteo dos direitos fundamentais classificao das geraes
ou dimenses de direitos humanos
Num primeiro momento, essencial se faz ressaltar a importncia
das terminologias: direitos humanos e direitos fundamentais. De forma sucinta,
pode-se asseverar que os direitos humanos, em se tratando de referncia tica
dos homens, so os inerentes pessoa humana, no necessitando que os
legislem, ou mesmo que os queiram, pois so direitos naturais universais.
Nas palavras de NORBERTO BOBBIO42: por mais fundamentais
que sejam, direitos humanos so direitos histricos e nascem de modo gradativo
em virtude de determinadas situaes.
J os direitos fundamentais so conformadores do perfil tico do
Direito e definidores da ao estatal em seus diversos setores, quais sejam os
Poderes Executivo, Legislativo e Judicirio. Caracterizam-se, segundo KONRAD
HESSE43, como elementos fundamentais da ordem objetiva da coletividade.
Em outras palavras, direitos fundamentais so aqueles que cada
ordenamento jurdico os considera como tais, variando segundo o ordenamento
jurdico de cada Estado. Os direitos fundamentais, assim, como os direitos
humanos, visam tutelar a liberdade, a vida e a dignidade da pessoa humana.
JOS AFONSO DA SILVA44, por sua vez, ensina que a
terminologia direitos humanos a preferida pelos documentos internacionais.
Contudo, para este doutrinador, a expresso mais apropriada seria a de direitos
fundamentais do homem, pois:
[...] alm de referir-se a princpios que resumem a concepo do mundo e informam a ideologia poltica de cada ordenamento jurdico, reservada para designar, no nvel do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituies que ele concretiza em garantias de uma convivncia digna, livre e igual de todas as pessoas.
42 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1.992, p.5. 43 HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da Repblica Federal da Alemanha. Trad. Luiz Afonso Heck. Porto Alegre: Fabris, 1998. p. 228. 44 SILVA, Jos Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 12 ed. So Paulo: Malheiros, 1996. p. 176-177.
J NORBERTO BOBBIO45, faz uma dicotomia entre direitos do
homem unicamente naturais, que equivalem aos direitos humanos, e direitos do
homem positivados, estes correspondendo aos direitos fundamentais, ensinando a
converso universal em direito positivo dos direitos do homem, realando a
diferena entre os direitos do homem inerentes a todo ser humano e direitos do
homem efetivamente reconhecidos pelo ordenamento jurdico-positivo de um
determinado Estado.
ALEXANDRE DE MORAES46 traz outra terminologia, qual seja
direitos humanos fundamentais, definindo-os:
[...] o conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade bsica o respeito sua dignidade, por meio de sua proteo contra o arbtrio do poder estatal e o estabelecimento de condies mnimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana.
Por ltimo, importante trazer colao a distino feita por INGO
SARLET47, j que este defende existirem os chamados direitos do homem (como
direitos naturais no positivados); direitos humanos (os direitos positivados no
mbito do direito internacional) e direitos fundamentais (direitos reconhecidos ou
outorgados e protegidos pelo direito constitucional interno de cada Estado).
45 BOBBIO, Norberto. Opus Cit., p. 31-32 .Nesta mesma obra, BOBBIO expressa uma caracterstica pretrita dos chamados direitos humanos: quando os direitos do homem eram considerados unicamente como direitos naturais, a nica defesa possvel contra a sua violao pelo Estado era um direito igualmente natural, o chamado direito de resistncia. 46 MORAES, Alexandre. Direitos Humanos Fundamentais. So Paulo: Atlas, 1997. p. 39. 47 SARLET, Ingo Woligang. A Eficacia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 32.
Diante disso, num panorama geral, ao analisar-se o roteiro
histrico referente aos direitos humanos, torna-se evidente seu carter de
independncia vontade humana e de universalidade, advinda de expresses
histricas da humanidade, onde se afirma ter sido contedo desses direitos
constitudos e modificados ao longo do tempo, ensejando, destarte, a classificao
por geraes de direitos Nesse sentido, tm-se os ensinamentos de INGO
SARLET48, in verbis:
[...] a histria dos direitos fundamentais tambm uma histria que desemboca no surgimento do moderno Estado Constitucional, cuja essncia e razo de ser residem justamente no reconhecimento e na proteo da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais do homem.
A referncia da universalidade dos direitos humanos inerente a
essa espcie de direitos, a qual se manifestou num primeiro momento com a
promulgao da Declarao Francesa de 1789 e no momento da Declarao da
ONU. Nos dizeres de PAULO BONAVIDES49, esta Declarao:
[...] procura, enfim, subjetivar de forma concreta e positiva os direitos da trplice gerao (ainda no existiam os direitos de 4 gerao) na titularidade de um indivduo que antes de ser homem deste ou daquele pas, de uma sociedade desenvolvida ou subdesenvolvida, pela sua condio de pessoa um ente qualificado por uma pertinncia ao gnero humano, objeto daquela universalidade.
48 SARLET, Ingo Woligang. Opus Cit., p. 36. 49 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. So Paulo: Malheiros, 1995. pg. 527.
Assim, partindo dessa reflexo histrica, bem como dos
ensinamentos de NORBERTO BOBBIO50, classificam-se os Direitos Humanos e
Fundamentais em geraes, a saber:
a) direitos de primeira gerao;
b) direitos de segunda gerao; e
c) direitos de terceira gerao.
Convm ressaltar que existem doutrinas divergentes em relao a
essa classificao, haja vista a distino feita por alguns tericos estender-se
quarta gerao, bem como da terminologia aplicada gerao, como ensina INGO
SARLET51, o qual de forma diferente, reconhece a existncia de dimenses de
direitos e no geraes, j que:
[...] o reconhecimento progressivo de novos direitos fundamentais tem o carter de um processo cumulativo, de complementaridade, e no de alternncia, de tal sorte que o uso da expresso geraes pode ensejar a falsa impresso da substituio gradativa de uma gerao por outra, razo pela qual h quem prefira o termo dimenses dos direitos fundamentais.
Com razo o autor acima citado.
2.1.1 Direitos Humanos Fundamentais de 1 Dimenso
Chamados de direitos e garantias fundamentais de primeira
dimenso, tm-se os direitos e garantias individuais e polticos clssicos. Surgiram
50 BOBBIO, Norberto. A era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. 51 SARLET, Ingo. Opus Cit., p. 49.
no sculo XVIII, tornando-se a base do Estado de Direito, originando o Estado
Moderno.
Caracterizavam-se esses princpios pelo lema francs laissez-
faire, laissez-passer (deixar fazer, deixar passar), o qual pregava a liberdade de
iniciativa das atividades econmicas, e, pelo contexto histrico, foi transplantado
para a Poltica e para o Direito, surgindo o Estado Liberal ou Estado de Direito.
Era um Estado caracterizado pela total submisso dos governantes e pela mnima
interveno estatal no domnio e
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