DA IMPRESSIONANTE HISTÓRIA DO HOMEM QUE
PRECISAVA PARIR UM MACACO E DE SEU ENCONTRO
COM A MULHER QUE QUERIA VIRAR PLACA
GUSTAVO HENRIQUE DE AGUIAR PINHEIRO
2008
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A Jocélia e Alexandre, pelo
sirigado encantado que
partilhamos juntos; um daqueles
pedaços, não sei se, no momento,
macho ou fêmea, inspirou-me
bastante a entender o destino do
homem do macaco e a verdade da
mulher da placa.
* A pintura que ilustra a capa é um auto-retrato de Vincent van Gogh.
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Numa de minhas viagens ao inaudito conheci um homem muito
interessante. Era diferente de todas as pessoas que tinha conhecido
na vida. Além de sua aparência carismática, possuía uma capacidade
extraordinária de falar de suas experiências, como se seu íntimo
tivesse sido forjado em algum mundo mitológico, daqueles de que só
temos notícia nos livros sobre os deuses e nos filmes acerca dos
homens.
De alguma forma, ele me chamou a atenção. Estava sozinho
dando comida aos insaciáveis pombos dos jardins de Rodin, quando
fui chegando perto e, subitamente, fitou-me e disse uma frase em
português familiar: “decifra-me ou devoro-te”.
- O senhor fala português? - Perguntei admirado com o possível
conterrâneo tantos oceanos distantes de casa.
- O homem fala bem mais do que pode pensar, meu filho. Os
sentimentos expressos em seu rosto dizem muito sobre os seus
desejos e a mim não é difícil interpretá-los, pois tenho vivido a procura
de solucionar enigmas e, nesse movimento, expando muito a minha
concepção sobre o mundo, as pessoas e o cosmos.
- Afinal, o senhor decifra enigmas ou os propõe?
- Na verdade, tenho um enigma para resolver e sempre proponho
algum para quem julgo interessante, na esperança de que essa
pessoa, quem sabe, possa ajudar a resolver o meu dilema. Ele
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somente pode ser compreendido por alguém que um dia tenha
encontrado a Caipora, o Saci-Pererê, o Minotauro, Édipo, Prometeu,
Hércules, Medusa, o barqueiro do Estige, D. Quixote, os quatro
mosqueteiros, o Conde de Monte Cristo, Eurípedes Waldick Soriano, a
perna cabeluda, a quintessência invisível das nuvens ou o próprio
espelho de Dorian Gray.
- Esse é mais um enigma? O senhor julga que posso ajudá-lo?
- A minha percepção não é deste mundo e peno bastante para
conformar o que vejo com o que sou capaz de perceber. Não foi a
idade que me fez assim, mas posso perceber na vida marcada em
suas expressões matizes invisíveis aos seus olhos. Isso lhe posso
revelar, se você puder ouvir um pouco sobre o enigma que busco
decifrar ainda durante esta vida, que cada dia se passa mais rápido e
me encanece os cabelos e a alma.
- É claro que posso escutá-lo! Estou mesmo com a impressão de
que esse local é muito diferente, onde a gente pode sentir a pulsação
dos quadros e a leveza dos movimentos das bailarinas das estátuas
de mármore. Não era de se estranhar que eu encontrasse um pedaço
de minha casa e de meus amigos por aqui. Estou no lugar mais longe
que já estive de casa até agora, mas parece que acabei de chegar ao
quintal de minha avó, aquele que já não existe mais. Resta guardado
apenas em minhas lembranças.
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- Obrigado, tenha um pouco de paciência e se prepare para ouvir
a história de minha vida, que acabará logo que eu encontrar a parte de
mim que você carrega consigo e não consegue expressar, exatamente
como aqueles nossos segredos mais guardados, que somente os
outros é que deles sabem dizer.
- Para que você possa entender o meu metamoforseamento
itinerante, vou lhe contar uma história, a impressionante história do
homem que precisava parir um macaco.
Sempre fui interessado em saber como nasciam os mitos, parece
que realmente trazemos gotas de espíritos antepassados em nossos
pedaços pequenos (alguns querem colocar tudo isso só em genes),
que nos asseguram desde sempre alguma experiência e sabedoria de
uma inconsciência com existência em dimensões não aparentes.
De outro modo, parece que, se não temos um destino traçado em
definitivo, recebemos muitas outras influências passadas, além das
meramente culturais, mas somos livres para viver ou morrer.
Na verdade, ao homem, na busca de si mesmo, é passagem
obrigatória a investigação sobre as próprias origens, o que
necessariamente implica saber sobre a origem de Deus, do mito, do
cosmo.
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Sempre me fascinou a origem do mito, e eu, então, procurei saber
como havia sido o meu nascimento, para ter alguma indicação do que
poderia ser no futuro.
Nasci em um dia ensolarado de um grande inverno, que inundou
as ruas da vila e provocou o alagamento de muitas casas, fazendo
com que as pessoas saíssem nadando para tentar sobreviver ao que
parecia o próprio aguaceiro de Noé.
A situação era periclitante e eu fiquei isolado em casa com minha
mãe à espera de socorro, que, entretanto, estava demorando a vir.
Ela, que entendia bastante de ter esperança, rogou ao príncipe Moisés
do Egito, aquele que foi retirado das águas e depois abriu o Mar
Vermelho, para que tirasse o filho dela dali. E realmente foi atendida.
Fui retirado das águas do rio pelas mãos de um tratorista,
chamado Andrezinho Menescal, que, antes de voar pela última vez na
Amazônia de seus sonhos, nos resgatou num imensa Caterpillar
amarelo e nos embarcou de volta às terras de meu pai, onde um
pequeno varão sempre representava o desejo de continuação dos
feitos dos antepassados.
Se você perceber, amigo, tive um nascimento até que mais ou
menos mitológico, mas depois fui percebendo que os mitos, os
mártires ou os heróis somente o podem ser à custa de muita pancada,
pois parece mesmo que somente os grandes sofrimentos são capazes
de guindar alguém a uma quintessência diferenciada. Veja, por
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exemplo, a vida daquele bom homem que todos ainda hoje querem
massacrar, chamando-o de Deus.
O fato era que eu de certa forma também tinha sido tirado das
águas, o que era um bom começo para virar herói, sendo certo que os
deuses já haviam me dado alguma tradição familiar e uma vontade
inigualável de conhecer o mundo e a humanidade, o que talvez desse
para começar a brilhar.
Foi então que ouvir falar de umas pessoas da cidade que ficaram
ricas e famosas porque fizeram um contrato com o Diabo, que, em
troca de alguma coisa que eu não sabia o que, fazia que tais pessoas
conhecessem de forma definitiva o sucesso.
Evidentemente, para quem é muito pequeno e quer virar mito
parece razoável um colóquio com o Capeta, figura simbólica de
extensa carreira junto à humanidade e que parece integrar uma parte
inexpugnável do humano.
Pois, muito bem. Cacei o cachorrão em toda cidade, procurando
um tal carro vermelho em algum forrozinho existente na comuna.
Confesso que me intrigou um pouco saber que era possível encontrar
o tinhoso andando de carro por aí e nunca ter tido nenhuma
informação semelhante sobre Deus, sempre parado, pregado naquela
cruz. Se tivessem me dito que Deus estava vivo e podia se mexer,
tudo teria sido diferente para mim.
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Numa noite escura finalmente encontrei o encardido. O bicho
estava fantasiado de Flávio Galvão, tinha realmente um carro
vermelho e assustava o pessoal na novela Corpo a Corpo da Rede
Globo.
De fato, eu descobri a morada do diacho e ela estava na sala e
nos quartos de quase todo mundo do País. Se eu soubesse que era
fácil assim falar com o Demo, tinha pedido um exorcismo bem feito lá
em casa, para evitar tanta intimidade.
Na caixinha do diabo, porém, conheci o mundo, que insistia em
dizer que eu só poderia ser alguém se tivesse dinheiro, sucesso e
outros artifícios do Coisa-Ruim para mandar a gente para o inferno.
Diziam nessa época que havia gente querendo até sociedade com
o Capeta, que costumava enganar os sócios com máquinas e
engenhocas sofisticadas, capazes de fabricar dinheiro e violência para
sempre, até o dia que algum descendente da família nascesse puro de
coração, o que livrava toda a família do pacto com o Demo, mas
produzia um aleijão num dos membros no herói libertador, que teria de
sofrer exemplarmente na vida até o nascimento de seu primeiro filho,
que só sendo menina o libertaria para sempre de seu estigma. Eu
conheci esse homem, e sua filha também.
Foi mesmo na invenção do Maldito, entretanto, que eu aprendi a
ser ambicioso e a cobiçar o mundo, não demorando muito para ela me
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sugerir que eu tinha talento e vocação para comandar, que o mundo
podia ser meu, que eu era um líder nato.
Então, finalmente eu fiz um pacto com o Rabudo, o qual garantiu
que eu ia entrar para o que de melhor poderia existir na terra em
termos de ganância e poder: a política. Em troca, eu apenas precisaria
ser político de verdade, pois o ”destroço” vinha naturalmente da
carreira.
O Cachorrão prometeu e me fez sonhar ser prefeito, deputado,
governador, senador, presidente...tudo em virtude de meu desejo de
virar mito, de entrar para a história, sonho que qualquer televisãozinha
de catorze polegadas pode simplesmente desvirtuar e violentar numa
criança.
O preço pelo pacto depois se evidenciou, pois como nos casos
típicos de diabrice, o Bode-Preto queria a minha alma em troca da
Prefeitura, da Assembléia, do Senado e da Presidência.
Em matéria de acordo com o Cramulhano tudo estava como
sempre foi, a alma do inocente era desejada para o sacrifício, mas o
processo de entrega da alma é que agora era diferente.
Pois é, o diabo está se sofisticando. Organizou a entrega da alma
como um processo, dividido em eleições, durante a trajetória política
de sucesso. A cada nova etapa, mais e mais a pessoa vai perdendo a
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alma para o espírito de Maquiavel, para a insensibilidade e a maior
característica do político de sucesso: o narcisismo exarcebado.
Então, a pessoa vai progredindo e se sentido cada vez mais útil à
humanidade, que já não poderá viver sem ela, exercendo o poder
diuturnamente para favorecer os seus e destruir os demais, mas
sempre posando de estadista para toda a Nação.
Esse processo diabólico de troca política da alma acaba sempre
acontecendo, com menor ou maior intensidade, com todas as pessoas
que enveredam pelos caminhos da política-partidária, mas o Maligno
previa um futuro brilhante para mim, que parecia querer tanto entrar
para a história.
Até tentei começar a rezar na cartilha do cão, mas tinha feito um
catecismo muito bom acerca dos verdadeiros valores da humanidade,
e logo percebi que o meu sonho inocente de querer virar mito tinha
sido vilmente manipulado e me transformaria numa górgona
assustadora, jamais em Prometeu ou Hércules. Entendi, por
conseguinte, que dessa forma não seria um herói mitológico.
Então, decidi romper o contrato com o diabo. Não sabia como isso
era possível. Então, me formei em Direito para tentar encontrar uma
forma de distrato. Mas, o Excomungado, no entanto, se recusou
terminantemente a me liberar da avença.
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Foi mesmo na faculdade que eu aprendi o sentido da palavra
recorrer, pois, na estrutura da jurisdição, há sempre um órgão superior
para a quem a gente pode apelar, já que dizem que o erro e maldade
estão em todo o lugar, principalmente no juízo das pessoas.
Lembrei-me de que na vida sempre a gente também pode apelar
para um ser superior: Deus. Assim o fiz.
Meu primeiro problema foi encontrar Deus para entregar o meu
recurso. Nem procurei na televisão porque já tava ocupada. Saí por aí
perguntando, estudando, procurando...e nada.
Até que um dia um homem surgiu repentinamente em minha
garagem e me surpreendeu na janela do carro.
- Dê me uma ajuda!
Apesar de cabreiro, pois o tal homem desconhecido estava
estranho e tinha aparecido do nada, baixei o vidro e lhei um óbolo de
cinqüenta centavos.
Agradeceu e pediu uma carona. Olhei de novo aquele estranho
gigante negro musculoso e mal-encarado. Pensei, sinceramente, que
estava sendo vítima de um assalto ou seqüestro.
Não pude impedi-lo. Ele então me contou de sua libertação do
presídio, naquele dia mesmo, de todos aqueles que matou para roubar
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e dos sete filhos que tinha. Pedro Ventura apreciou minha gentileza e
se ofereceu para “qualquer coisa”. Tive tanto medo que inventei
precisar ir à farmácia e deixá-lo no caminho. Ao se despedir,
agradeceu, deu-me o aperto de mão mais forte de todos os tempos, e
disse-me circunspecto: “nós estamos dentro de Deus, você está no
meio de Deus; e eu também estou no centro de dEUs”.
Dizem os estudiosos do inconsciente que o homem perdeu a sua
capacidade de se comunicar diretamente com Deus, que agora só se
manifestaria nos sonhos. A certeza da existência daquele homem está
perpetuada no arrepio freqüente da minha espinha e o encontro com
Deus eu finalmente o tive, dormindo, logo em seguida.
Deus me explicou em sonho que o pacto com o Sarnento é um ato
de gravíssima implicação e que somente seria permitida uma solução
acaso eu aceitasse voluntariamente me submeter a uma técnica de
convencimento muito utilizada por Moisés: a submissão às pragas.
- Claro, Abba, eu aceito!
Pois bem. Essa técnica muito eficiente, capaz até de regenerar
todos os meus sonhos de menino desvirtuados pelo mundo, consiste
realmente numa praga, com a qual se tem que conviver pelo resto da
vida.
Por essa praga, a pessoa pode experimentar muito sofrimento e
sensações estranhas, que permitem a percepção profunda sobre o
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homem e o mundo, levando o ser ao ápice da compreensão, mas que
desestrutura o corpo, fazendo-o convulsionar e enlouquecer com tudo
aquilo que por um instante lhe foi dado enxergar, colocando-o perante
a desafios reais somente possíveis aos vocacionados à perpetuação
mitológica, ao encontro com figuras excepcionais em suas diferenças,
muitas delas, como Caronte, mensageiras da morte.
Esse, em verdade, é um processo de cura da alma vendida e
exige que a pessoa se supere a cada dia. Ao contrário do que pode
parecer, é um maravilhoso remédio divino, que regenera e pode
proporcionar o desejado nascimento da própria lenda.
Para chegar-se à cura completa e ao êxtase anímico, com a
realização de todos os sonhos, inclusive o de entrar para história
virando herói, é preciso ainda realizar uma tarefa inaudita.
- E foi nessa hora que Deus me anunciou o maior enigma da
minha vida. O Pai olhou para mim e disse:
- Filho, eu te quero em Mim realizado, por isso para que tenhas
paz e possas cumprir a tua missão, terás que lutar diária e
silenciosamente pelo teu próximo, que não estará mais sob o teu
palanque; o teu aleijão não será tocado pelos demais, o teu nome não
aparecerá no trabalho que faças, e.... tu terás que parir um macaco.
Essas foram as últimas palavras de Deus para mim. Desde então
tenho me visto livre do Coisa-Ruim, carregando a minha sina de viver
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discretamente, somente nos bastidores, sem estar nunca no palco,
sem exercitar a minha verve de líder, escapando com meu trabalho
anônimo e minha praga benfazeja, que me permite conhecer a
humanidade pelo ângulo do amor, do sofrimento e da diferença, me
proporcionando uma existência muitíssimo rica, como jamais bens da
fortuna poderiam proporcionar.
Não tenho patrimônio; também não me foi dado permanecer com
essa parte do pacto, e vivo com aquilo que me é suficiente para bem
viver. Ainda hoje, no entanto, busco de todas as maneiras parir um
macaco para poder chegar onde sempre quis.
Compreendo que, na linguagem simbólica de Deus, eu não estaria
realmente obrigado a gestar e parir um símio para me libertar, mas,
até hoje, não compreendi o que o Criador quis dizer com esse enigma
que jamais consegui decifrar.
- Você teria alguma idéia, meu amigo?
- Meu bom velho: é claro que um jovem ruão como eu jamais
poderia entender tão mística intenção. Parece que o propósito de
Deus em sua vida é um mistério, daqueles que nossas almas
precisam de muitas vidas para solucionar.
Posso lhe contar, entretanto, a história de uma mulher que, assim
como o senhor, queria adentrar a glória, ela queria virar placa; dessas
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placas de rua que carregam os nomes de pessoas que o tempo não
permite lembrar por muito tempo, nem quando é o endereço da gente.
Um encontro com ela talvez o ajude a esclarecer o enigma.
Ela também foi uma menina interessante, bem criada e de uma
família muito nobre. Parece que, de alguma forma, estudou na mesma
escola que a sua e assistiu aos mesmos programas de televisão, sem,
no entanto, precisar fazer nenhum pacto com ninguém, pois ela
realmente acreditava em sua sorte, carisma e poder. Além do mais
tinha muito apego à cidade, de modo que não pensava muito em se
largar para Brasília.
A menina também queria entrar para política e esse sonho era,
em verdade, parte de seu plano de virar placa. Havia nela uma
obstinação jamais vista.
De toda forma, a menina cresceu e encontrou uma maneira de
virar placa sem demora: virou parteira.
Confesso que nunca ouvi falar que a parteira tenha algum dia
trazido ao mundo senão legítimos seres humanos( macacos não são
muito freqüentes naquela região), mas certamente essa mulher trouxe
à vida pessoas e figuras extraordinárias, que a fizeram muito famosa e
garantiram uma linda placa em uma das ruas centrais da cidade.
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Num desses partos, contam que um velho homem amaldiçoado
pelo Asmodeu gerou uma criança secretamente com uma mulher
numa noite em que o Capiroto estava embriagado de si mesmo e
deixou de prestar atenção ao seu serviço.
O descuido do Chavelhudo ajudou a propiciar ao velho homem a
quebra de uma maldição de muitas gerações, segundo a qual todos os
filhos de sua estirpe deveriam morrer, até que o sangue deles fosse
suficiente para limpar os pecados de seus antepassados e dos
antepassados de seus grandes amores.
Nem tudo foi fácil assim, porém, pois o diabo voltou ao seu posto
e passou a procurar a mulher para ceifar a vida que ela havia
concebido em alegria. Foi um grande deus-nos-acuda, o velho
homem, tentando despistar a maldição, se afastou da cidade e formou
a convicção que a sua proximidade seria um grande risco para a
criança, já que era seu sangue que a marcava.
Numa noite de 13 de abril, o velho homem voltou secretamente à
cidade e foi diretamente falar com a parteira. Queria que ela colocasse
seu filho no mundo de uma maneira que o diabo não tomasse
conhecimento do fato.
A parteira lhe disse que não se preocupasse, que ninguém ia
tocar seu filho, pois ela o encantaria ainda na barriga da mãe, sem que
ninguém jamais o pudesse reconhecer.
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E assim foi feito, no dia do parto, de pai e mãe pretos autênticos,
nasceu um lindo menino louro, dos olhos azuis, que o diabo, ao ouvir o
choro distante, não pode reconhecer, procurando até hoje a criança do
velho homem pelas ruas da cidade.
Ainda não se sabe direito acerca da medicina da parteira, mas é
certo que ela ficou famosa em toda a região por ter enganado o
Azucrim e por conseguir trazer ao mundo uma espécie de gente que
pode ficar de toda cor, provando com isso que o branco pode nascer
do preto e vice-versa.
Como o feito da parteira foi verdadeiramente mitológico,
conseqüência natural foi a linda placa azul com letras brancas que foi
colocada no nome dela nas esquinas da cidade para todo o sempre,
pois o mundo nunca mais foi o mesmo com aqueles meninos e
meninas que podiam virar pretos ou brancos dependendo da
necessidade de amor entre os homens.
- Então, pensei que essa parteira talvez pudesse a ajudar a parir
seu macaco.
- De fato, essa mulher parece ser muito especial e fiquei com
alguma esperança em sua ciência, mas receio não poder mais
encontrá-la, uma vez que ela já virou placa e não deixou nada escrito
sobre os seus poderes; somente as letras de seu nome em tinta
branca e azul nas ruas da cidade.
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- Creio que um encontro somente com as placas da parteira não
será suficiente para amenizar o meu sofrimento. Parece que os seres
mitológicos só encontram seus caminhos na intimidade dos
sentimentos das pessoas de bom coração, dessas que param para
ouvir um velho solitário e doente num canto de um jardim distante,
como se fosse possível existir alguém assim fora das fortes
impressões causadas pela presença de um auto-retrato de eloqüência
extraordinariamente incomum.
De súbito, o homem desapareceu, ou, talvez, como ele mesmo
quis dizer, voltei a mim mesmo depois de fitar a enigmática figura do
expressionista de Zundert por um longo período.
Não sei como pude me deixar encantar pelos traços do pintor sem
que percebesse o momento exato no qual o homem que precisava
parir um macaco se preparava para partir... e isso me provocou
profunda tristeza, pois não pude ajudar num parto que parecia tão
essencial ao futuro de minha própria humanidade.
O tempo passou e nunca me esqueci daqueles instantes nos
jardins de Rodin.
Voltei para as minhas terras, sempre tentando descobrir uma
forma de conseguir ajudar o velho homem a realizar por completo o
seu destino.
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Numa dessas tentativas, encontrei o menino, agora homem, que a
parteira salvou enganando o diabo. Ele estava negro, no momento, e
tinha virado presidente dos Estados Unidos.
Perguntei-lhe se não sabia de nenhum segredo da parteira que
pudesse ajudar meu amigo velho a parir um macaco. Ele, então, me
respondeu em bom português:
- Homem de bom coração, por que procuras uma parteira para
trazer ao mundo o fruto do teu amor, do teu pecado e da tua
existência? O macaco ao qual queres dar vida por meio de parto só
nasce de doação, Jamais de ciência ou da intelecção!.
- O meu pai também sofreu como esse velho homem e, é
verdade, a parteira e a sorte o livraram da maldição do diabo, mas foi
o grande amor dele pela vida que o fez arriscar tudo para que eu
pudesse nascer, a fim de que seus grandes amores pudessem
finalmente parir seus filhos independentemente da cor deles.
- Meu pai tinha todos os filhos mortos antecipadamente no tempo
ainda no ventre das mães, até mesmo daquelas que ele ainda não
havia conhecido, e, contra isso, ele não podia mais lutar, mas a sua
ligação com a divindade, enquanto homem, foi um dom que nem
mesmo as más companhias ou a má saúde puderam destruir,
derrotando invisível e definitivamente o mal, que, ainda assim, sempre
está querendo sempre se perpetuar de alguma maneira.
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- Se você perceber, eu que nasci com a inusitada capacidade de
virar preto e virar branco, sou um verdadeiro macaco em diferença, de
uma raça derivada diretamente de Macunaíma, e que agora vai
organizar o mundo de maneira encantada, amorosa e tipicamente
brasileira, no comando da política mundial.
- Então, há esperança no parto de seu amigo. Ele parece,
entretanto, não poder resolver o problema sem a política, que é arte
do diabo para uns e a arte de enganar o Cão para outros, embora,
como você pode constatar, o capeta esteja sempre muito próximo
dessa atividade profissional.
- Apesar dessa visão de mundo, confesso que nunca conheci
política mais eficiente do que a de um velho carpinteiro lá das bandas
da Miraíma, parte indivisível de uma enorme pedra que nunca se
lascou, pois, fingindo que jamais morreu, ele continua fazendo
campanha até hoje, dando esperança a gente de um dia escapar
desse mundo para viver em plenitude o amor que aqui nos é tão caro
e impossível.
- Procure aconselhar seu velho amigo a doar um pouco de sua
humanidade para os amigos e as gerações futuras, esquecendo-se de
vez das placas, pois elas não dizem nada sobre o encanto que uma
bela história verdadeira pode produzir na alma das pessoas, ficando
penduradas nas paredes, sem conteúdo algum.
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- Diga-lhe para tirar da solidão aquela pessoa mais parecida com
Caroline, a menina que de maneira invisível escreveu no juízo o
verdadeiro mundo de Alice no país inventado de suas vidas, e que
descobriu, sem ter ciência, a face cruel do equilíbrio distante da
nobreza dos que morrem sem abraçar o macaco que só
aparentemente não pôde nascer.
- É preciso que a história daquela pessoa emplacada seja
repassada entre as gerações, como no caso da parteira, mas para
isso as novas gerações precisam ler, sentir e encarar, sem fantasia ou
mentiras de adultos embriagados com a própria dor, a verdadeira
história de seus antepassados, pois o amor só pode ser perpetuado no
encontro existencial com o outro, quase sempre comprometido com a
impossibilidade e com o erro, jamais na dança e nos ritos do poder e
das placas coloridas.
Confesso que nunca entendi suficientemente o homem preto que
virava branco e vice-versa. Parecia que ele sabia um daqueles meus
segredos que só os outros sabem, mas, desde esse encontro
inusitado, passei a escrever livretos, como este que está em suas
mãos agora, sobre as verdadeiras e importantes histórias da vida, na
esperança de que algum dia um deles possa ser lido pelo velho
homem que precisava parir um macaco ou por outra parteira que saiba
trazer ao mundo esse amor pelo outro, que, de tão diferente, ainda
precisa se disfarçar para poder nascer.
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