O PROFESSOR PDE E OS DESAFIOSDA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE
2009
Produção Didático-Pedagógica
Versão Online ISBN 978-85-8015-053-7Cadernos PDE
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SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO DO PARANÁ
SUPERINTENDÊNCIA DA EDUCAÇÃO
DIRETORIA DE POLÍTICAS E PROGRAMAS EDUCACIONAIS
PDE - PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO EDUCACIONAL
NEUSA MARIA FERREIRA DE CASTRO
UNIDADE TEMÁTICA
A ESCRITA FEMININA: EM BUSCA DA LIBERAÇÃO PELA PALAVRA
UNIÃO DA VITÓRIA - 2010
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NEUSA MARIA FERREIRA DE CASTRO
UNIDADE TEMÁTICA
A ESCRITA FEMININA: EM BUSCA DA LIBERAÇÃO PELA PALAVRA
Produção Didático-Pedagógica elaborada na forma de Unidade Temática, apresentada como um dos requisitos do PDE – Programa de Desenvolvimento Educacional, ofertado pela SEED – Secretaria de Estado da Educação do Paraná em parceria com a Secretaria de Tecnologia e Desenvolvimento. Orientador: Prof. Me Caio Ricardo Bona Moreira
UNIÃO DA VITÓRIA - 2010
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Dizia-se geralmente que ensinar-lhes a ler e escrever
era proporcionar-lhes os meios de entreterem
correspondências amorosas, e repetia-se, sempre,
que a costura e trabalhos domésticos eram as únicas
ocupações próprias da mulher. Este preconceito
estava de tal sorte arraigado no espírito de nossos
antepassados, que qualquer pai que ousava vencê-lo
e proporcionar às filhas lições que não as daqueles
misteres, era logo censurado de querer arrancar o
sexo ao estado de ignorância que lhe convinha.
Nísia Floresta Brasileira Augusta
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SUMÁRIO
DADOS DE IDENTIFICAÇÃO................................................................. 04
TEMA DE ESTUDO................................................................................. 04
TÍTULO................................................................................................... 04
JUSTIFICATIVA DO TEMA DE ESTUDO.............................................. 04
OBJETIVO GERAL................................................................................ 07
OBJETIVO ESPECÍFICO....................................................................... 07
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA............................................................. 08
CRÍTICA LITERÁRIA FEMININA........................................................... 14
BREVE HISTÓRICO DA ESCRITORA STELLA FLORENCE.............. 17
RESENHA DO LIVRO DE CONTOS HOJE ACORDEI GORDA.......... 20
CONTO ¨A VÍTIMA¨............................................................................. 20
ANÁLISE DO CONTO ¨A VÍTIMA¨......................................................... 27
METODOLOGIA..................................................................................... 31
CRÔNICAS DE STELLA FLORENCE................................................... 33
*CORINTO É AQUI................................................................................ 33
*NÁUFRAGO......................................................................................... 35
*VIOLÊNCIA SEXUAL........................................................................... 36
REFERÊNCIAS....................................................................................... 39
ANEXOS................................................................................................... 41
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DADOS DE IDENTIFICAÇÃO
Professora PDE: Neusa Maria Ferreira de Castro
Área: Língua Portuguesa e Literatura
Núcleo Regional: União da Vitória
Professor Orientador: Caio Ricardo Bona Moreira
IES vinculada: FAFIUV – Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de União
da Vitória
Escola de Implementação: CEEBJA – Centro Estadual de Educação Básica
para Jovens e Adultos – Ensino Fundamental e Médio.
Público-alvo da implementação: Educandos e educandas do ensino médio
da EJA
Produção Pedagógica: Unidade Temática
TEMA DE ESTUDO
A leitura da obra de Stella Florence e das escritoras preteridas por
uma sociedade patriarcal para estudo da poética feminina na literatura
brasileira.
TÍTULO
A escrita feminina: em busca da liberação pela palavra
JUSTIFICATIVA DO TEMA DE ESTUDO
A literatura foi escrita e institucionalizada exclusivamente pelos homens
e isso só vem se modificando há uns 50 anos. Ainda hoje se define a literatura
que narra histórias de mulheres e seus conflitos femininos e escrita por
mulheres, como uma “literatura feminina¨, ou ainda, pelo uso do termo ¨chick
lit¨. Esta expressão alguns críticos utilizam para se referir – pejorativamente – à
escrita feminina e significa literatura de mulherzinha.
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Menina não entra. Este era o lema da Academia Brasileira de Letras há
pouco tempo. Em 1897, quando foi criada a ABL, foi negada uma vaga à Júlia
Lopes de Almeida, importante romancista, contista e cronista e, em seu lugar,
convidado o marido, Filinto de Almeida, escritor inexpressivo. Em 1930, a
escritora piauiense Amélia de Freitas Beviláqua era forte candidata para a
cadeira nº 23, mas também foi preterida com a justificativa de que no estatuto
constava que a ABL era apenas para os brasileiros, não para as brasileiras. O
mesmo aconteceu com as escritoras Clarice Lispector e Cecília Meireles.
Somente em 1970 uma mulher tornou-se imortal: Raquel de Queiroz. E vinte e
seis anos depois – em 1996 – a escritora Nélida Piñon ocupou o mais alto
posto: a presidência da ABL.
Embora se manifeste de maneiras diferenciadas, a opressão feminina
tem raízes no campo cultural, econômico e político, e continua a produzir
sementes. Por isso a importância em se disseminar, estudar e compreender a
escrita de autoria feminina, já que – tradicionalmente – a análise literária é
considerada um campo neutro, independente de influências como gênero,
orientação sexual, raça ou classe social. E há como comprovarmos que não é
assim: o patriarcalismo se manifestou desde sempre, seja na exaltação dos
escritores masculinos, no ¨esquecimento¨ de obras escritas por mulheres ou na
exclusão feminina dos espaços literários, praticamente todo ocupado por
homens.
Há, atualmente, muitos teóricos e estudiosos que nos sinalizam a
importância de lançarmos sobre a literatura um olhar investigativo, reflexivo e
crítico, buscando desconstruir preconceitos no que se refere à mulher escritora,
leitora e personagem do texto literário de autoria feminina e masculina.
No exercício do Magistério, as mulheres educadoras são
indiscutivelmente, maioria, portanto, devemos refletir sobre o papel que têm
representado na sociedade brasileira, principalmente na literatura. A imagem
da mulher e os preconceitos impostos a ela devem ser analisados, e, com o
auxílio da literatura e de estudiosos do tema, pretendemos dar nossa parcela
de contribuição. Pois, ao mesmo tempo em que a escola tem reproduzido
preconceitos que contribuem para uma imagem negativa da mulher, ela pode
ser um espaço de reflexão, leituras de mundo e consequentes mudanças de
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pensamentos e ações.
A função da literatura na vida escolar e na cotidiana é ajudar a escrever
melhor, além de estimular a fantasia e o término dos preconceitos. Com ela
podemos vivenciar, em parte, papéis muito distantes da nossa realidade e
assim, nos colocarmos “no lugar de”, exercitando a empatia.
O trabalho desta pesquisa e sua implementação na EJA pretende levar
os educandos e educandas a esse exercício, ao estudar a presença da mulher
em nossa literatura. Lendo, ouvindo histórias, cantando e discutindo o assunto,
alunos e alunas, professores e professoras contribuem na formação de uma
sociedade justa, fraterna e igualitária para homens e mulheres.
Segundo as DCE - Diretrizes Curriculares da Educação Básica de
Língua Portuguesa (2008, p. 59), o texto literário permite múltiplas
interpretações, uma vez que é na recepção que ele significa. [...] Além disso, o
texto traz lacunas, vazios, que serão preenchidos conforme o conhecimento de
mundo, as experiências de vida, as ideologias, as crenças, os valores, entre
outros, que o leitor carrega consigo.
E para expandir o conhecimento de mundo dos alunos e alunas da EJA,
tanto no ensino fundamental quanto no ensino médio, a prosa, a poesia e a
música são instrumentos poderosos, seja qual for o tema escolhido – neste
caso –a figura da mulher na obra de Stella Florence e na sociedade brasileira.
Quanto aos teóricos contemporâneos, as DCE (versão final, 2008), nos
orientam ao estudo da Estética da Recepção, criada por Hans Robert Jauss em
1960, na qual o autor propõe sete teses para uma nova metodologia no ensino
da literatura e da Teoria do Efeito, de Wolfgang Iser, que trata sobre o
resultado estético da obra literária no leitor durante a recepção. Um leitor ideal,
mas nem sempre real.
Estas teorias são de suma importância para os educadores e
educadoras na análise literária e na formação do leitor ou leitora, além de
incrementar o trabalho em relação ao Conteúdo Estruturante da Língua
Portuguesa (Discurso como prática social).
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OBJETIVO GERAL
Aprimorar, pelo contato com os mais variados textos literários que
contemplem o tema “a mulher brasileira em nossa sociedade” a capacidade do
pensamento crítico e a sensibilidade estética dos alunos da EJA, tendo como
referência a obra da escritora Stella Florence.
OBJETVOS ESPECÍFICOS
• Conhecer, ler e interpretar a obra da escritora brasileira Stella Florence,
cujo foco narrativo dirige-se à figura da mulher contemporânea, bem
como a obra das escritoras preteridas pela sociedade patriarcal
brasileira.
• Ler e interpretar diversos textos literários que enfoquem a representação
da mulher ao longo da história brasileira: as questões de gênero, o
mercado de trabalho para a mulher no Brasil atual, as questões
amorosas e também àquelas que cantam a beleza e a força da mulher
brasileira, além da inegável e inestimável presença da mulher indígena
no País.
• Valorizar e conhecer a realidade da mulher brasileira, a fim de amenizar
e transformar pensamentos pejorativos, dando ênfase a temas –
contemporâneos ou não – como o combate ao racismo, a mulher negra
na mídia, o padrão de beleza imposto pela mídia e a violência contra a
mulher.
• Discutir, com o auxílio de textos literários – impressos ou audiovisuais –
uma questão relevante em nossas escolas: o poder da mídia na
construção de uma identidade de corpo feminino e seus vários
desdobramentos.
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FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Sou a mulher que sustenta o céu. O arco-íris atravessa meus olhos.
O sol abre passagem até o meu ventre. Meus pensamentos têm o feitio das nuvens. Mas minhas palavras ainda não se ouviram.
Poema das indígenas Ute
A literatura nasceu na antiga Grécia e não tinha esse nome, chamava-se
poesia. Entre uma guerra e outra, os nobres deleitavam-se com as
declamações dos poetas, que preferiam a paz e não participavam das guerras.
Assim nasceram duas obras fantásticas, base para toda a poesia que se
escreveria, a Ilíada e a Odisséia. Depois ela passou a ter caráter educativo e
hodiernamente parece que só lemos poesia para realizar interpretações,
estudo para o vestibular, pretexto para exercícios gramaticais, entre outros
afazeres que damos a nossa amiga poesia.
A literatura, como produção humana, está intrinsecamente ligada à vida social. O entendimento do que seja o produto literário está sujeito a modificações históricas, portanto, não pode ser apreensível somente em sua constituição, mas em suas relações dialógicas com outros textos e sua articulação com outros campos: o contexto de produção, a crítica literária, a linguagem, a cultura, a história, a economia, entre outros (DCE, 2008, p.57).
“Passaram-se muitos séculos até a literatura adotar o nome que
atualmente a identifica” (ZILBERMAN,1990, p.13). É difícil apontar o erro, se é
que houve um, para a dificuldade que existe em fazer dos nossos alunos e
alunas leitoras; leitores de verdade, apaixonados e ávidos por mais e mais
leituras. No entanto, estamos buscando uma solução para este problema, e,
pelos inúmeros artigos, livros e pesquisas sobre o tema, é nítida a preocupação
em fazer o que os gregos faziam bem: simplesmente deleitar-se com a poesia-
literatura.
A importância social das mulheres enquanto seres que pensam foi e
permanece um desafio para a sociedade moderna, pois a mulher sempre foi
discriminada no meio pensante.
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A história da mitologia grega enaltece as mulheres, representando-as na
figura de suas deusas: Ártemis, Atena, Afrodite, Deméter, Hera, Perséfone,
Pandora e Gaia, ainda que a inteligência e o pensamento sejam simbolizados
pela deusa Minerva (variante latina da deusa Atena). Quanto à Minerva, é
importante realçar que esta veio ao mundo não através do corpo de sua mãe e
sim da cabeça de seu pai, Zeus, o que evidencia desde o início que a mulher
era vista como inferior ao homem.
Para a história, combinar idéias e formar pensamentos sempre foi
considerado um direito pertinente aos homens, porém, mesmo com tanta
discriminação as mulheres conseguiram garantir uma pequena participação na
vida acadêmica, política, científica, literária e em outros espaços culturais e
profissionais.
Um dos poucos apontamentos históricos sobre o assunto foi a criação
de um núcleo de formação intelectual somente para mulheres, um educandário
fundado por Safo, poetisa de Lesbos que nasceu em 625 a.C. O pensamento
que vigorava era que as mulheres somente tinham direito a um corpo e a uma
mente, porém, não os dois ao mesmo tempo, pois desta forma a mulher nunca
poderia gerar a razão.
No Egito há diversas pinturas em tumbas que nos dão informações a
respeito da vida das mulheres egípcias. Elas desenvolviam suas atividades em
espaços fechados, embora tivessem a liberdade de ir e vir. A maioria dos que
sabiam escrever eram homens, mas havia também mulheres que conseguiram
aprender a ler e a escrever. Algumas delas se tornaram escritoras.
Segundo estudos do egiptólogo Antônio Brancaglion Jr., da Universidade
de São Paulo, os egípcios produziram tantos ou mais textos que os gregos e
romanos. E que, dentre as poesias que exaltavam o amor, chama a atenção
aquelas em que a mulher toma a iniciativa, elogiando a beleza do parceiro
(GALILEU, 2001).
Diante do exposto, pode-se afirmar que a inferioridade da mulher foi
vista como natural e invariável e este espectro do “feminino” esteve presente
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na história da literatura e permanece como um combate singular para as
mulheres, escritoras ou não.
Em nossas obras literárias há muitos preconceitos e estereótipos. Em
Marília de Dirceu; na personagem do romance A moreninha, exemplo de
candura, beleza e de tudo o que se esperava de uma mulher na época em que
o romance foi publicado; em Iracema e todos os romances indianistas de José
de Alencar; sem falar nas poesias de José de Anchieta. Porém, o mesmo José
de Alencar escreve Senhora, retratando uma mulher que subverte a ordem
estabelecida, inclusive comprando um marido e tratando-o como os homens
tratavam as mulheres. Surgem também obras como Memorial de Maria Moura,
romance belíssimo escrito por Raquel de Queiróz. A mesma Raquel que
Graciliano Ramos, ao ler sua obra O quinze, não acreditava ter sido escrito por
uma mulher.
Certamente não podemos nos esquecer das indígenas e negras que
lutaram contra a dominação do homem branco (ao contrário da personagem
Iracema, que se jogou aos pés do colonizador, morrendo por ele). O livro Uma
história do feminismo no Brasil, escrito por Céli Regina Jardim Pinto conta toda
a trajetória das mulheres percorrida até os nossos dias. O nome de Bertha Lutz
aparece como de fundamental importância para a primeira fase do feminismo
brasileiro, seguido de nomes como Leolinda Daltro, professora que promoveu a
primeira passeata de que se têm notícias em prol da cidadania feminina em
1917. Exatamente dez anos depois - em 1927 - outra professora obteve o
primeiro título de eleitor feminino: Celina Guimarães Viana, da cidade de
Mossoró, no Rio Grande do Norte. Ficaram conhecidas como sufragistas, por
terem incendiado as discussões quanto a conceder ou não o direito à mulher
de votar.
Não nos esquivaremos, contudo, do ensino da literatura, somente
tentamos encontrar metodologias que tornem as nossas aulas mais atrativas,
ao mesmo tempo em que ensinem princípios de cidadania e proporcionem
conhecimento ao alunado. Para nos guiar, citamos novamente Zilberman ¨A
crise levou o ensino de literatura a se indagar sobre seu sentido e finalidade.
De certo modo, a literatura precisa descobrir, considerando as novas
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circunstâncias, em que consiste sua natureza educativa (ZILBERMAN, 1990,
p.19).
Para o estudo da literatura, consideramos absolutamente relevante os
escritos, principalmente os poéticos, sobre a figura feminina – escritos por
homens ou mulheres e a introdução ao estudo do ecofeminismo. No século
XIX, as mulheres que escreveram e desejaram fazer dessa ocupação um ofício
remunerado, eram feministas e só o desejo de sair dos seus afazeres
domésticos já indicava como pensavam e liam o mundo.
São deste século os primeiros textos escritos por mulheres brasileiras
que têm alguma divulgação entre o público letrado. Nos tempos coloniais a
mulher escreveu muito pouco, ou escreveu e os textos não apareceram, ou são
exceção, entre a maioria quase absoluta de textos escritos por homens. A
razão é simples: apenas os homens tinham acesso à educação formal em
seminários de várias ordens religiosas, desde que não fossem pardos e
possuíssem bens.
Um dos primeiros romances brasileiros que se tem notícia não é de um
homem, e sim de Tereza Margarida da Silva e Orta, filha de um português e
uma brasileira. Tereza Margarida escreveu Aventuras de Diófanes, uma obra
de cunho moralista. Ela foi viver em Portugal quando tinha cinco anos,
entretanto, nasceu aqui no Brasil e por isso muitos estudiosos da literatura
brasileira consideram esse como sendo o primeiro romance brasileiro.
Outra escritora que ficou relegada ao esquecimento é Nísia Floresta
Brasileira Augusta, autora da obra Direito das mulheres e injustiça dos homens,
publicado em 1832. A obra de Nísia Floresta trata de assuntos diversos e
mostra sensibilidade e lucidez ao abordar não só a beleza da terra brasileira e
de tantos países europeus, mas a rebeldia do índio, a educação da mulher e a
luta pelos seus direitos, a caminho da sua emancipação cultural.
Os seres discriminados procuram, na literatura, serem ouvidos. A título
de exemplo, pois há inúmeras referências: Castro Alves, o poeta dos escravos,
ao combater a escravidão em seus poemas e declamações em praça pública,
deu voz aos negros escravizados.
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O ensino de literatura precisa levar nossos alunos e alunas a refletirem
sobre a própria existência para compreender melhor a si mesmos e aos outros.
E como isso ocorre? Através da leitura, ao observar e analisar a condição
humana, através dos sentimentos e conflitos existenciais das personagens de
ficção. E a personagem Gerda – do conto A vítima – é cheia desses conflitos,
portanto, pode servir muito bem aos nossos propósitos. Mas é somente uma
pequena amostra da vasta literatura contemporânea publicada em nosso País.
Vamos lembrar-nos de outra escritora que, discriminada, despertou
interesse e hoje é alvo de discussões acadêmicas: Carolina de Jesus. Mulher
negra, mãe solteira, semi-analfabeta e favelada, ela registrava seu cotidiano
em cadernos que recolhia do lixo. Descoberta pelo jornalista Audálio Dantas na
favela Canindé, produziu narrativas fortes e dolorosas sobre a condição
humana. Carolina morreu pobre, abandonada e esquecida, mas se a levarmos
para a sala de aula, certamente os educandos e educandas irão gostar da
leitura, mesmo não fazendo parte do cânone literário.
Há que se conhecer ainda a história da primeira mulher que aprendeu a
ler e a escrever no Brasil: Madalena Caramuru. Ela viveu na Bahia, no século
XVI. Era filha do português Diogo Álvares Corrêa, o Caramuru, e da indígena
Moema. Os historiadores descobriram uma carta muito bem escrita
por Madalena - apesar de que alguns contestem a autoria - porque naquela
época encontrar uma mulher alfabetizada era quase impossível. Segundo
pesquisas, ela teria aprendido as primeiras letras incentivada pelo marido, o
português Afonso Rodrigues.
A carta foi enviada ao bispo de Salvador em 1561 e solicitava que ele
intercedesse na defesa das crianças escravas, vítimas de maus-tratos pelos
seus senhores. Um trecho da carta: ¨O abuso que nesta cidade se pratica,
separando os tenros filhinhos dos desgraçados escravos, (...) gerou na alma de
uma herdeira do imortal Caramuru o sentimento de evitar que (...) se pratiquem
esses atos de desumanidade¨. Madalena é a primeira mulher brasileira
alfabetizada de quem se tem notícia (CLAUDIA, abril de 2000, p. 21). Ela usou
o termo ¨desgraçados¨ para se referir aos escravos e em 1869, três séculos
depois, um poeta espetacular usaria esta mesma expressão no poema O navio
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negreiro. Só um detalhe: ele ficou conhecido, foi admirado e ganhou a alcunha
¨O poeta dos escravos¨. Não sem mérito, é claro.
Exemplos como esses merecem destaque e que os escritos dessas
mulheres sejam disseminados, lidos e analisados entre nossos alunos e
alunas. São escritos difíceis de encontrar, mas o acesso que temos hoje às
páginas da web torna mais fácil e prazerosa a pesquisa.
Quanto ao segundo destaque, o ecofeminismo: é um movimento criado
pela feminista francesa Françoise d´Eaubonne em 1974 e simboliza a síntese
entre ambientalismo e feminismo em defesa do meio ambiente. A história
comprova que as mulheres sempre se relacionaram melhor com o meio
ambiente, se comparada aos homens, pois jamais pretenderam subjugar a
natureza.
Termo relativamente novo e que se divide em três vertentes: o clássico,
o espiritualista do Terceiro Mundo e o construtivista. Artigos e teses de
doutorado como o de Rosângela Angelin, militante feminista e doutoranda em
Direito Ambiental na Alemanha, nos elucida melhor o tema:
O ecofeminismo originou-se de diversos movimentos sociais – de
mulheres, pacifista e ambiental – no final da década de 1970, os quais, em
princípio, atuaram unidos contra a construção de usinas nucleares. O
movimento ecofeminista traz à tona a relação estreita existente entre a
exploração e a submissão da natureza, das mulheres e dos povos estrangeiros
pelo poder patriarcal (MIES/SHIVA, 1995: 23). Assim, a dominação das
mulheres está baseada nos mesmos fundamentos e impulsos que levaram à
exploração da natureza e de povos. Tanto o meio ambiente como as mulheres
são vistos pelo capitalismo patriarcal como “coisa útil”, que devem ser
submetidos às supostas necessidades humanas, seja como objeto de
consumo, como meio de produção ou exploração. Além disso, o capitalismo
patriarcal mostra-se intolerante diante de outras espécies, seres humanos ou
culturas que julga subalternos, e o que faz é dominá-los e explorá-los. Neste
contexto estão inseridos tanto o meio ambiente quanto as mulheres (ANGELIN,
ano V, nº. 58, 2006).
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O movimento ecofeminista busca a libertação não só da mulher, mas de
todo e qualquer grupo oprimido e, por isso, é realmente maravilhoso. Chegou a
ser considerado como a Terceira onda feminista por Ynestra King, ecofeminista
que avalia e categoriza as correntes feministas e estuda a relação da mulher
com a natureza e a cultura.
De acordo com o texto publicado na enciclopédia livre, mais tarde o
termo foi usado para designar o Movimento Chipko (movimento criado pelas
mulheres pobres na Índia que se abraçavam às árvores para impedir sua
derrubada) Women´s Pentagon Action, nos Estados Unidos da América
(quando duas mil mulheres cercaram o Pentágono em Washington-DC, no dia
17 de novembro de 1980, em defesa do meio ambiente). É a teoria que busca
o fim de todas as formas de opressão. Relaciona as conexões entre as
dominações por raça, gênero, classe social, dominação da natureza, do outro -
a mulher, a criança, o idoso, o índio. Identificam-se vários ecofeminismos que
acordam quanto ao fim dos "ismos" de dominação, sejam eles históricos,
simbólicos, casuais, literários, políticos, religiosos, étnicos e buscam
igualmente o resgate do Ser. Um convívio sem dominante e dominado, onde há
complementação e nunca exploração (WIKIPÉDIA, 03 jun. 2010).
CRÍTIVA LITERÁRIA FEMININA
A professora de Sociologia e crítica literária feminina Regina
Dalcastagnè, do Departamento de Teoria Literária e Literaturas da UnB,
coordena um grupo de pesquisas que revelou um capítulo sombrio da literatura
brasileira contemporânea. A literatura produzida entre 1990 e 2004 revela a
quase ausência da representação de mulheres negras nos romances
publicados pelas três maiores editoras do País: Companhia das Letras, Rocco
(a mesma editora de Stella Florence) e Record. De um total de 1.245
personagens catalogadas em 258 obras, apenas 2,7% são mulheres negras. E
nas poucas vezes em que apareceram nas páginas dos romances, em
aproximadamente 70% dos casos, as negras ocupavam posições como
empregadas domésticas e profissionais do sexo. Outros papéis recorrentes são
a de escrava, dona de casa e bandida. A mesma pesquisa alerta ainda para o
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fato de que as mulheres mais velhas também estão pouco presente nas
páginas da literatura brasileira contemporânea: de 1.245 personagens
catalogadas, apenas 40 eram mulheres em idade mais avançada (SHINODA,
abril de 2010).
Recentemente foi ao ar a novela Viver a vida da Rede Globo, que
causou polêmica ao trazer como protagonista uma atriz negra: Thaís Araújo.
Quando a atriz foi cotada para personagem principal, muito se falou, dizendo
que o papel ficaria melhor se fosse interpretado por Suzana Vieira, Regina
Duarte, entre outras consagradas, e que ela (Thaís Araújo) precisava ainda ter
muita bagagem profissional para ganhar o destaque de protagonista de uma
novela de horário dito nobre. Infelizmente, o telespectador é levado a aceitar
certas atitudes das personagens como normais e o fato da personagem Helena
aparecer ajoelhada pedindo perdão à Teresa – mulher branca, rica e culta - por
sua filha ter sofrido um acidente, mostrou claramente a submissão, o racismo e
o preconceito existente nos textos globais. Helena não consegue enfrentar o
racismo, e, fragilizada, ocupa uma postura de submissão, ao se ajoelhar aos
pés da mulher branca e pedir perdão, e ainda, não revida o tapa que recebe,
como se fosse obrigada a ¨assumir a culpa¨ por ter abortado, casado com um
homem branco e não ter “cuidado” devidamente da enteada, numa relação que
muito nos lembra mucama e sinhazinha.
O feminismo questiona e faz frente a essas questões e, principalmente,
a qualquer tipo de mídia ou cultura que sejam cúmplices da prática do sexismo.
A crítica literária se concentra contra a aniquilação simbólica da mulher e as
representações culturais impostas a ela pela mídia, a mesma que insiste me
perpetuar os estereótipos. Critica ainda como as mulheres são
responsabilizadas pela cultura de massa considerada baixa e descartável,
enquanto que aos homens são atribuídas as artes, a cultura e a ciência. O
professor Bonnici explicita sobre o início da crítica literária, construída a partir
da Segunda Onda Feminista:
Na Segunda Onda Feminista a crítica literária feminista teve início com Kate Millett, na publicação de Sexual polilics em 1970, seguida por Germaine Greer, Mary Ellmann, Adrienne Rich, Donna Haraway e outras. Há dois tipos de crítica literária
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feminista. Uma refere-se à redescoberta e reavaliação de escrita de autoria feminina; outra envolve a releitura da literatura do ponto de vista da mulher e não do homem (RUTHVEN, 1984). Evidentemente, "ler como mulher" constitui "uma diferença crítica", embora haja grande resistência por parte de críticos tradicionais (inclusive mulheres), que alegam a irrelevância e o valor a-histórico dessa crítica aplicada a obras clássicas. A finalidade da crítica literária e da leitura feministas é focalizar a constituição do estilo, da imagística e das características do patriarcalismo numa determinada obra. Uma leitura feminista dos romances indianistas de José Alencar, por exemplo, não se limita apenas a dizer que Dom Antônio ou Martim são chauvinistas masculinos e, portanto, o autor o é também. Os textos alencarianos se revelam como uma narrativa de desejo e fantasia masculina, definem a mulher como objeto e não como sujeito, e embasam-se na estereotipagem da mulher duplamente colonizada. As estratégias de leitura e os conceitos fundamentais ("ideologia" e "patriarcalismo") moldam a interpretação do leitor dirigindo sua atenção à desigualdade do poder sexual nas obras literárias (DUARTE, 1999). Portanto, a leitura obriga a identidade sexual ou de gênero a se transformar em algo equívoco, questionáyel e aberto às mudanças. Essa hipótese de leitura poderá mostrar não apenas como um texto literário refletirá a ideologia essencialista e oposicionista, mas como ele poderá, ao mesmo tempo, desconstruir os pressupostos tradicionais (BONNICI, 2007).
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BREVE HISTÓRICO DA ESCRITORA STELLA FLORENCE
* Fotos enviadas pela escritora via e-mail.
Stella Florence nasceu em14 de abril de 1967 na cidade de São Paulo,
onde vive até hoje. É formada em Letras, e, antes de se tornar escritora,
foi secretária executiva. Tem uma filha, 30 tatuagens e sete livros
publicados, entre eles o sucesso Hoje Acordei Gorda, um divertido livro
de literatura ficcional adotado pelo AMBULIM-SP, como leitura
terapêutica para pacientes que sofrem de distúrbios alimentares.
Cronista veterana, escreve semanalmente para o portal feminino itodas
e mantém um site oficial <http://www.stellaflorence.com> A mescla de
humor e drama, além do verbo ácido, se tornou a marca registrada de
sua literatura.
A escritora, acusada pelos críticos literários de produzir ¨literatura de
mulherzinha¨ , a chick lit, uma escrita carregada de humor e pendendo
para a auto-ajuda, diz não se preocupar com os rótulos e que eles
podem ajudar a identificá-la, num primeiro momento.
Stella trabalha, sempre de forma cômica, elementos da comunicação de
massa, do entretenimento e do cotidiano. Entretanto, seus contos, crônicas e
romances tratam de situações problemáticas vividas pelas mulheres na
sociedade atual como a obesidade e suas consequências, o corpo e a
sexualidade, a violência, os direitos sexuais e reprodutivos, enfim, dialoga com
questões relevantes, principalmente para o gênero feminino.
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Seu último romance ¨32 – 32 anos, 32 homens e 32 tatuagens¨ trata
sobre a compulsão romântico sexual de uma mulher, retratando, através
de situações vividas no cotidiano, os seus sentimentos de dor, de amor,
de prazer e de frustração. Nesta nova obra, Stella mantém o texto
despojado, de humor inteligente e muita sensibilidade. ¨O diabo que te
carregue!¨ relata a difícil separação de um casal. Stella foi cronista da
revista Criativa e Criativa online, do site Bolsa de mulher, da revista
Ouse e do site Crônicas da vida a dois, com o escritor Eduardo Haak. O
romance ¨Só saio daqui magra¨ é direcionado aos adolescentes.
Para conhecê-la melhor, há duas entrevistas disponíveis no You tube,
uma no Programa do Jô Soares e outra no Sem censura, ambas
divididas em duas partes:
<http://www.youtube.com/watch?v=ZdtwCiMhiDM&NR=1>,
<http://www.youtube.com/watch?v=kkiT1rqzCpU&feature=related>
<http://www.youtube.com/watch?v=C2b4agg5pzw>
<http://www.youtube.com/watch?v=FM-jllLmE9A>
Quando foi ao Acre – Rio Branco – lançar o seu romance ¨32 – 32 anos,
32 homens e 32 tatuagens¨, esteve no programa Ideias da aldeia,
apresentado por Jorge Henrique Queiroz, todas as terças às 21h30min.
O vídeo disponível na web nos apresenta a Stella Florence escritora e
pessoa do bem, numa conversa agradável e inteligente. A qualidade da
produção é excelente, com 39min14s de duração. Vale a pena conferir!
Disponível em:
<http://ideiasdaaldeia.blogspot.com/search?q=stella+florence>
19
A escrita de Stella Florence já publicada:
• Hoje acordei gorda – 1999
• Ele me trocou por uma porca chauvinista – 2001
• Ciúme, chulé e um apelido ridículo – 2002
• Ser menina é tudo de bom – 2005
• O diabo que te carregue! – 2006
• Por que os homens não cortam as unhas dos pés? – 2007
• 32 – 32 anos, 32 homens, 32 tatuagens – 2009
20
RESENHA DO LIVRO DE CONTOS HOJE ACORDEI GORDA
Hoje acordei gorda, como talvez o título possa sugerir, não
é mais um manual de auto-ajuda ou de receitas mágicas de
emagrecimento. O livro reúne, ao mesmo tempo, o melhor
dos dois lados do mundo literário: a rapidez de um
videoclipe na forma de contos/crônicas e o ininterrupto
prazer que um mesmo tema traz ao leitor acostumado a
romances. Em histórias distintas, Stella Florence oferece um
leve e bem-humorado panorama do dia a dia (e da cabeça) não só de
gordinhos, mas também de pseudogordos (aquela parte absurdamente grande
do mundo que insiste em se sentir enorme vestindo manequim 38). Recheado
de humor e picardia, o conto Manequim 40, por exemplo, relata a revanche de
Cláudia, uma ex-gordinha que deliberadamente leva à loucura as vendedoras
de uma loja de grife. Passa horas e horas experimentando roupas e sai da
butique sem nada comprar. Afinal, às magras tudo é permitido. Stella Florence
consegue manter nos 26 contos um ritmo intenso e surpreendente. Sua
narrativa em momento algum banaliza o tema. Ao contrário, através do humor
a autora mostra com transparência sua poção cruel e mordaz. O humor, aliás,
vem logo nas primeiras páginas. Mário Prata, autor do prefácio, proclama a
autoria de Hoje acordei gorda e diz que Stella Florence é seu pseudônimo.
A VÍTIMA
"O corpo conserva os vestígios bem marcados dos cuidados que se teve com ele
ou dos acidentes que sofreu Acontece o mesmo com a alma. Quando ela se despoja do corpo,
conserva os traços evidentes de seu caráter, de seus sentimentos,
e as marcas que cada um dos seus atos lhe deixou. "
Sócrates (470 - 399 a.c.)
– Sinto muito.
– Mas eu sou inocente, juro!
21
– Entendo sua posição e isso será considerado na audiência: não se preocupe,
você possui muitos atenuantes.
– Não é uma questão de atenuantes, dr. Miguel, sou inocente cem por
cento!
– Por favor, apenas Miguel.
– Tudo bem: Miguel. Como podem me acusar assim se nunca quis que isso
acontecesse! E não aconteceu!
– Ninguém a está acusando, Gerda. Existem várias causas que você julga
ignorar e que, no entanto, sempre estiveram pulsantes na sua consciência.
Porém, não se desespere. Aliás, nunca, em hipótese alguma, se desespere:
esse estado dificulta o processo analítico e o tornará mais lento sem, contudo,
desviá-Ia um milímetro da justa decisão. O seu histórico é bastante doloroso e
isso a beneficiará.
– Quanta injustiça, meu Deus ... já sofri tanto, e agora isso!'
– Não há injustiça alguma. Injustiça haveria se você estivesse sendo
maltratada ou se não contasse com meu apoio, por exemplo. Queixas não têm
serventia, Gerda. Você realmente é suicida, de uma categoria diferente da
comum mas, ainda assim, suicida.
– Eu devo estar ficando louca mesmo: eu não me matei, não me matei, não
dá pra ver, não?
– O que vejo é uma corrosão progressiva de suas forças vitais
impulsionada, essencialmente, pela sua própria vontade desencadeando a
morte. Os mecanismos da vida são um tanto complexos e o que parece ser
uma resposta definitiva é, muitas vezes, apenas a ponta de um delgado e
profundo iceberg. Primeiro você precisa se conscientizar de que se suicidou de
forma lenta e indireta. Então, tudo ficará mais fácil.
– Do que você está falando? Que história é essa de que me suicidei e
corrosão sei lá o quê?! Tudo o que fiz na vida foi cair... cair e sofrer!
– Você diz que só fez cair e sofrer e o "cair" foi sua maior...
– Culpa. Culpa, não é? Vamos lá: diz!
– Não. Cair foi sua maior escolha, sua responsabilidade.
– Você está querendo me dizer que depois de viver quarenta e sete anos num
verdadeiro inferno, tratada como uma aberração, amada como uma barata
caseira, surrada dia e noite por uma dependência que não me permitiu um só
22
minuto de perfeita alegria, vão ser tachadas de suicida por ter comido demais?
Como se eu adorasse aquela situação? Como se já não tivesse sofrido o
bastante? O que é isso? As mocinhas da moda são abençoadas; pelo que
verifico, têm algum privilégio que me foi tirado! Por que, hein? Porque sou feia
demais, desgraçada demais, deformada demais para a estética dos anjos?
Porque sou gorda? Mas nem morta eu vou me livrar disso?
– Calma Gerda. Vamos passear a beira– mar um pouco e lhe explicarei
tudo. E afinal, quem está morto aqui? Estamos mais vivos do que jamais
estivemos. Além do mais, eu lhe prometo: nada de mal irá lhe acontecer.
– Miguel, eu só queria ser como todo mundo, poxa! Por exemplo: estacionar
em qualquer vaga no shopping! Sabe, eu tinha sempre que estacionar do lado
de alguma pilastra por causa do vão maior, senão não conseguia abrir bastante
a porta pra sair do carro.
– Sim, eu sei.
– Com 15 anos não quis ir à Disney com os meus primos ricos porque não ia
caber no assento do avião. Disse pra eles que já era uma mocinha bem
crescida para gostar dessas bobagens, quando meu maior sonho era ir pra lá!
Eu acordava todas as manhãs com os olhos inchados e mentia pra minha mãe
dizendo que era conjuntivite; a verdade é que eu chorava até dormir, morrendo
de vontade de estar lá com eles... Você sabe que um monte de vezes deixei de
ir ao cinema, no teatro, num restaurante, com medo de não caber nas cadeiras
e as pessoas rirem de mim mais ainda do que já riam?
– Eu sei, sim.
– Foi nessa época que comecei a passar por um batalhão de especialistas,
todos com o mesmo diagnóstico: comida. Controle a comida. Reduza a
quantidade. E eu sonhava!... Depois de cada médico, me imaginava magra
caminhando pelas ruas de minissaia: que prazer! Mas as dietas eram como
bilhetes do Missão impossível: depois de muito pouco tempo, se
autodestruíam.
– Você tem senso de humor, Gerda.
– Alguma coisa a gente tem que desenvolver quando a natureza não ajuda, ué.
Por isso os perfeitamente belos acabam se tornando irretocavelmente
insossos. Pra que vão se esforçar em ser inteligentes, interessantes, sagazes,
espirituosos, se o mundo já cai aos seus pés com um simples piscar de
23
pestanas? Eles são chamados de suicidas por nunca terem precisado de
alguém pra amarrar os sapatos deles?
– Os perfeitamente belos, como você diz, são, muitas vezes, perfeitamente
infelizes. As variantes são imensas, mas vou lhe dar um exemplo. Venha
comigo.
– Aonde você está me levan ...
– Não tema, apenas continue de mãos dadas comigo. Estamos na superfície
da Terra.
– Ahh... tão rápido!?
– Vê essa moça deitada? Você a reconhece?
– Calma, deixa eu ver. Hum... claro que sim, ela é uma
modelo superfamosa! Ah, que corpo ela tem... Queria ver ela se virar com o
meu, isso sim!
– Chegue mais perto.
– Pra que ela está lendo essa bobagem? Eu já fiz essa dieta; é batata: você
emagrece, mas fica anêmica e, aí, dá– lhe vitamina... Hei, o que são essas
lesões na barriga dela?
– Só nós as estamos vendo, Gerda. São muito semelhantes às que você
tem.
– Eu? Mas eu fiquei tanto tempo naquele hospital depois que morri...
– Você não morreu.
– É, é.
– Você esteve e está em tratamento e, por agora, sob minha responsabilidade.
Chegará o dia em que irá se curar por completo.
– E isso na garganta dela? Eu não tenho isso, tenho?
– Não, isso você não tem. Veja que ela está bem mais comprometida do que
você. Uma jovem com fama, beleza, fortuna e que, para manter a forma exigida
pelo mercado de trabalho que escolheu, se submete aos mais deprimentes
processos, acabando por desenvolver, inclusive, uma terrível doença pela qual
ela não teria necessariamente de passar.
– Posso ver?
– Foi para isso que a trouxe aqui.
– Ai, Miguel! Ela está comendo feito uma louca! Nossa, como sei o que é isso
... Hei, que que está acontecendo? Pra que esse tubo de borracha? Ai, credo, é
24
assim que ela machuca a garganta! Que horror, coitadinha! Miguel, a gente não
pode fazer alguma coisa? Por Deus!
– Fico feliz em ver que você se apieda dela, contudo nós não devemos
interferir neste caso. Ela está sendo constantemente auxiliada e você ainda
não está pronta para ver tudo. – Então alguém vai ajudar ela, não vai?
– Claro que sim, contanto que ela também se ajude. Nós
não podemos interferir no livre– arbítrio de quem quer que seja. Ela sabe,
através da consciência, que precisa de um médico, porém tem medo de que
sua doença caia no domínio público e comprometa sua carreira. Seu orgulho a
está fazendo piorar e dificultando nosso trabalho.
– Mas e se alguém dissesse isso pra ela: se você aparecesse, agora, na
sua frente?
– Se isso houvesse acontecido com você, você acreditaria nos seus
sentidos? Diga– me, sinceramente.
– Ah, eu ia... não, você tem razão. Eu ia achar que foi uma alucinação ou
coisa assim. Mas ela pode acreditar, Miguel, tente!
– Gerda, não é justo agirmos assim. A liberdade e a consciência são
propriedades inalienáveis do ser e entre as duas cada um tem de encontrar o
equilíbrio por própria vontade. Mas como lhe disse, seu caso está sendo
acompanhado de perto por companheiros nossos que incansavelmente,
através da intuição, dos sonhos, lhe sopram bons conselhos. No entanto, a
decisão será sempre dela e o mérito ou demérito dessa decisão também.
Apenas se houver extrema necessidade, eles poderão exercer influência mais
direta sobre os fatos.
– Coitadinha! Deitada no banheiro desse jeito...
– Temos de voltar.
– ...
– Você compreende agora, Gerda?
– Um pouco, acho que sim. Se ela não se ajudar vai também ser considerada
suicida.
– Sim, vai. E de uma classe mais grave que a sua. Contará, porém, com
toda a assistência, assim como você conta.
– Mas então não existe escapatória? Todo gordo feliz e assumido, todo
25
magro tentando continuar magro, todo gordo infeliz tentando ficar menos gordo,
vai se encontrar nessa situação do lado de cá?
– Não, de maneira alguma. Há muitas pessoas gordas que cuidam da
saúde com previdência e são, aliás, muito felizes. Há pessoas magras que se
conservam de forma saudável e, se não o podem ou não o conseguem,
aceitam normalmente as mudanças do tempo. Há pessoas ainda que, diante
de um exame limítrofe e uma advertência dura por parte dos médicos, passam
a pensar, antes, nos anos que ainda estão por vir, nos entes queridos que
precisam delas na Terra, e dominam seus vícios, controlam suas
dependências, sejam elas quais forem, em prol da vida, simplesmente pela
vida.
– Foi o que não fiz Miguel. Os médicos disseram que eu tinha hipertensão
aguda. Comecei a ter pressão alta depois que um namorado meu... ele foi
embora porque eu fiquei ... você sabe tudo da minha vida?
– Sim, sei.
– Então você sabe do Jonas?
– Sei. Não precisa se envergonhar de nada, Gerda, sei tudo o que aconteceu.
Jonas ainda está na Terra, porém você não deve vê– Io: não é recomendável,
por enquanto.
– Você sabe até o que eu estou pensando...
– Com o tempo você perceberá os meus pensamentos também. Nós
estávamos conversando sobre a sua hipertensão. Vamos voltar a ela?
– Ah, é... Então, um dos médicos que me examinou chegou a dizer claramente:
"Ou a senhora faz uma dieta rigorosa a partir de hoje, ou não vai ter muito
tempo de vida." – E o que você pensou?
– Ah, fiquei com medo, claro, mas depois pensei: "A minha vida é uma droga
mesmo, então pra que deixar de lado o único prazer que tenho?"
– Foi isso mesmo o que você pensou?
– Foi sim, Miguel.
– A que conclusão você chega?
– Que eu me entreguei. Que não valho nada. Que sou uma droga mesmo.
– Não, nada disso! Você se entregou sim, tem responsabilidade e dela
trataremos amanhã na audiência, no entanto você não é uma droga nem
tampouco nada vale. Pelo contrário, mostrou– se compadecida com o drama
26
de uma moça cuja vida pouco antes você depreciava. Existem muitos de nós
que cuidam dessas pessoas; espíritos que, como você,já passaram pelo
mesmo drama. Se você quiser, poderá ajudar também, dentro de algum tempo.
São casos complexos, posso lhe assegurar que você apenas arranhou a
realidade das coisas, em contrapartida eles são muito enriquece dores e
ternos.
– Miguel, isso seria fascinante, mas eu vou ser condenada amanhã... ih,
vou ficar presa?
– Ora, Gerda, que idéia, claro que não! Você não será "condenada", nem
presa. Prisões são estados de alma, literalmente, que podem se prolongar por
milênios ou desasnuviar– se em segundos, dependendo da compreensão do
indivíduo: por isso é tão importante que você compreenda. O que você precisa
é aprender uma série de coisas que ainda desconhece' para estar em condição
de me acompanhar. Há muito o que fazer, Gerda, mãos à obra! Estamos
acertados?
– Nossa... Estamos, claro que estamos! Puxa, Miguel, se eu tivesse
encontrado alguém como você lá na Terra, a vida teria sido bem mais fácil pra
mim...
– Tenho certeza absoluta disso.
– Você tem nome de anjo, Miguel. Você é um anjo, não é?
– Não.
– Ah, claro que é.
– Não, querida, não sou um anjo. Quem sabe um dia mereça esse indicador
carinhoso.
– Tá bom, Miguel, finge que eu acredito: você não é anjo. Então você é o que,
hein?
– Eu sou o filho que você optou por não ter.
Stella Florence
27
ANÁLISE DO CONTO ¨A VÍTIMA¨
Este conto faz parte do livro Hoje acordei gorda, escrito pela paulistana
Stella Florence e publicado pela Rocco. Além de Stella, há outras escritoras
contemporâneas que se posicionam quanto a questões importantes à
discussão de gênero e às mulheres como: obesidade, aborto, solidão, violência
contra a mulher, estupro, abuso sexual, auto-expressão sexual, entre outros.
No entanto, há críticas de que Stella dialoga livremente com a literatura ¨chick
lit¨, que seria uma literatura direcionada a mulheres urbanas, profissionais e às
voltas com seus problemas amorosos e sexuais: tendência forte no mercado de
livros após o sucesso Diário de Bridget Jones, da escritora inglesa Helen
Fielding.
O conto A vítima relata a problemática da mulher frente aos padrões de
beleza que a forçam a viver oprimida. A mulher cobra de maneira absurda de si
mesma atitudes e comportamentos exigidos pelo mundo machista e patriarcal e
isto a deixa vulnerável e com sua auto-estima em frangalhos. Nesse conto
(ficção criada por Florence, todavia, realidade para inúmeras mulheres
comprovada em estatística) o desenrolar da trama se dá na contramão: a
personagem Gerda quer ser bonita, porém fracassa. O desespero, aliado ao
sentimento de rejeição, resulta em tragédia, levando-a ao suicídio. A
incapacidade de não resistir à compulsão de comer revela o estado emocional
abalado dessa mulher que, mesmo se tratando com os melhores médicos, não
vence o vício e a tristeza, sucumbindo a ambos.
A busca de um padrão de beleza está aliada à auto-estima: a thymós.
Palavra de origem grega significando o reconhecimento que a pessoa requer
dos outros, ou seja, a parte da personalidade humana que pede que outros
reconheçam seu próprio valor. Thomas Bonnici descreve tal condição tomando
a opressão masculina por mote:
A opressão feminina é o resultado de uma estruturação de poder pela qual a ideologia masculina e a Weltanschauung masculina dominam a totalidade da sociedade humana, deixando a mulher hierarquizada e restrita a funções societárias estritamente ligadas à sua biologia (BONNICI, 2007, p. 194)
A problemática maior está na culpa que a mulher sente ao perceber
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que não foi forte o suficiente para resistir às pressões. O conto trata de um
assunto comum e que, infelizmente, faz parte da realidade cotidiana de
milhares de mulheres e nesse exato ponto que a literatura ganha com o que se
discute no decorrer da narrativa.
Com certeza, a autora traz à tona esse universo de preocupações
vivenciadas por tantas mulheres que sofrem preconceito por serem gordinhas e
se sentem culpadas por não terem o corpo exigido pelos padrões de beleza. A
mulher deixa de viver em sociedade por medo e isso pode levá-la ao vício ou à
depressão. São muitos os problemas vivenciados por mulheres de todas as
idades, que, para manterem um corpo bonito, acabam desenvolvendo
péssimos hábitos alimentares. E, como consequência, contraem doenças
gravíssimas. Esse assunto é muito polêmico, pois ao mesmo tempo em que
uma mulher critica outra por comer demais, essa mesma mulher se mutila para
ser parecida com alguém que considera o ideal da beleza. As clínicas de
cirurgia plástica estão cheias, as de estética e cabeleireiros também.
Certamente é saudável a mulher desejar melhorar sua aparência e investir na
beleza, porém, há certa dificuldade para se definir até que ponto o feio é feio e
o bonito é bonito, pois esse conceito depende de cada pessoa. De nada
adianta mudar a aparência da mulher, se ela continua insegura, infeliz e se
sentindo feia. A verdadeira beleza encontra-se nas atitudes e na maneira como
conduzimos nossas vidas. O que precisamos fazer é deixar nossa beleza
interior vir à tona e nos emocionar com as coisas simples que nos rodeiam.
A revista Psique ciência & vida, nº 44, ano IV, publicou uma reportagem
sobre o número assustador de meninas que estão insatisfeitas com o corpo e,
aquelas que têm condições financeiras, recorrem ao bisturi. Um trecho da
matéria Bisturi precoce: ¨Pesquisa revelou que das mais de 600 mil cirurgias
estéticas realizadas no Brasil, 10% são em adolescentes (...) O culto à beleza
reflete para a adolescente a idealização de que ser belo é significado de saúde,
felicidade e dinheiro¨. Além disso, segundo a psicóloga Cora Ferreira, há uma
inversão de valores em que adolescentes querem ser adultas e mulheres
maduras fazem de tudo para parecerem cada vez mais jovens.
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O que nos interessa é o pedagógico, a labuta diária em nossas escolas
e como faremos para tornar nossas aulas melhores. Então, será que nós,
educadores e educadoras, que temos diante de nós adolescentes, a maioria
meninas, não precisamos entender desses problemas? Claro que nossos
alunos e alunas não fazem as tais cirurgias estéticas, mas será que não estão
sofrendo ainda mais por isso? E o ânimo para estudar e a indisciplina, pode,
em alguns casos, estar acontecendo por problemas como esses?
O final do conto nos faz refletir quanto à prática do aborto ao revelar a
concretização do filho que ela não quis ter por se sentir triste, sozinha e
amargurada. Há ainda outra possibilidade de leitura: o sentimento de culpa
também pode ser porque ela optou por não ter o filho, apesar de não ficar claro
que cometeu o aborto. Ela pode ter tido a chance de planejar a gravidez, mas
se recusou ao papel de mãe. A professora Maria de Fátima Sena, em uma
postagem para o GTR- Grupo de Trabalho em Rede analisou bem esta
questão:
A pessoa nasce mulher, numa sociedade em que os homens são os reis, nasce gorda, cresce gorda, é discriminada, avaliada, subjugada, menosprezada e ainda tem a obrigação de gerar, sozinha, um filho de uma relação que não deu certo e, pior ainda, é ele quem fará parte da seção de tortura no seu julgamento final? (SENA, GTR, 2010)
Quanto à linguagem, a autora utiliza a linguagem poética, como função
emotiva e poética predominante, pois mesmo nós – professores e professoras
– de literatura, às vezes nos pegamos confusos quanto à poética em textos em
verso ou prosa. A linguagem poética não se encontra somente nos textos
escritos em versos, e em Florence percebemos isso claramente. O poético não
necessariamente se refere apenas à poesia, mas também à prosa. Segundo o
dicionário Priberam:¨ Uma poética está interessada no estudo de obras
literárias, particularmente as narrativas, criando conceitos interessados em
explicar melhor essas obras¨.
Ou seja, precisamos analisar a voz que se depreende dos textos de
Florence e como o discurso feminista se materializa nos seus escritos,
mostrando valores relativos à mulher que se transformaram ao longo do tempo.
30
Florence toca em questões polêmicas, que estão aí, nos rondando e às
nossas escolas. Além disso, usa uma linguagem popular, informal e atrevida,
mas que nossos alunos e alunas entendem perfeitamente. E não há como nos
escondermos, mesmo que o assunto seja de difícil trato, como o aborto.
Precisamos tomar cuidado para não julgar a Gerda. E acredito que aí está um
discurso NÃO DITO que podemos analisar com a classe. A partir do conto,
surgem inúmeras possibilidades de debate sobre o tema, que está no
Congresso Nacional esperando e sendo pressionado para ser aprovado.
Quanto à escolha de textos literários ou não, teóricos e teóricas
modernos vêm sinalizando que - podemos sim - ler e ofertar aos nossos
pupilos o que gostamos, sem, contudo, deixarmos os clássicos de lado. Eles
foram e sempre serão base da arte literária, antiga ou contemporânea. Vamos
então a Lima Barreto, Júlia Lopes de Almeida, Stella Florence ou Clarice
Lispector. O importante é deixarmos de dizer (apenas) que a leitura é
imprescindível e passar a ler verdadeiramente e com prazer.
E como ¨ampliar as visões de mundo¨ é um dos desafios quando
ensinamos literatura (se é que se pode ensinar literatura) cito EZEQUIEL T. DA
SILVA: ¨Ler literatura? Voar junto para outros lugares humanos, próximos
do meu porque também meus, e hermeneuticamente retornar, agora
muito mais conectado aos acontecimentos da vida.¨ A literatura nos oferece
uma riqueza de possibilidades . Então precisamos abrir uma brecha a outras
literaturas que vêm chegando e contando histórias de um jeito diferente, mais
ao gosto do nosso tempo e dos jovens. Quem sabe os escritos de hoje não
serão os clássicos de amanhã. O certo é que nossos alunos e alunas não
estão lendo os clássicos, como gostaríamos, então vamos mudar o rumo da
prosa. Por que não levarmos para nossas salas de aula um livro digital ou um
áudio livro? E Stella Florence, Elisa Lucinda, Marcelino Freire, Salgado
Maranhão, Céu e Cíntia Moscovich, só para citar alguns dentre tantos bons
escritores, escritoras, poetas e poetisas contemporâneos.
31
METODOLOGIA
Esta Unidade Temática tem a pretensão de auxiliar os educadores da
área de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira que desejem utilizar-se deste
material, por compartilhar das mesmas angústias, principalmente para os
alunos do ensino médio da modalidade EJA e demais modalidades
diferenciadas de ensino do Estado do Paraná.
Pretendemos ainda oportunizar aos nossos educandos e educandas da
EJA o contato com a diversidade e riqueza da MPB – às vezes desconhecida
para muitos brasileiros – que tratem do tema desenvolvido. Espera-se que esse
contato os torne aptos a dar sentido aos textos lidos ou cantados em classe. O
uso do recurso audiovisual e do impresso irão incrementar as aulas, assim
como o das TICs – Tecnologias da Informação. Todos os recursos
mencionados agradam a maioria dos alunos e alunas jovens e adultos e,
aliados ao interesse destes, o trabalho será, com toda certeza, gratificante e
bastante prazeroso para a comunidade escolar.
São escassos os filmes mencionados para o trabalho pedagógico
relacionados ao tema da obesidade, porém, encontramos dois possíveis de se
trabalhar: um documentário e um filme, ambos produzidos nos EUA. O
documentário de Morgan Spuriock ¨Super Size Me¨ sobre os hábitos
alimentares em ¨fast-foods¨ mostra cenas de comida com detalhes sobre as
técnicas publicitárias da rede McDonald’s para satisfazer seus clientes, e o
custo real deste tipo de costume alimentar em termos de saúde, segundo os
especialistas. O outro é o filme ¨Libs.¨ (abreviação para libras, unidade de
medida de peso usada nos EUA), escrito em parceria com o principal
protagonista, Carmine Famiglietti. O filme aborda com seriedade o vício da
comida e o protagonista é masculino, pois este é um problema de saúde não
apenas das mulheres e não só do Brasil (CORREIO DO BRASIL, ano X,
número 3630).
Para utilizar o conteúdo desta Unidade Temática, seguem alguns
indicativos:
32
• Leitura dos contos do livro digital Hoje acordei gorda, de Stella Florence,
que encontra-se disponível na web
<http://www.scribd.com/doc/24288128/Stella-Florence-Hoje-Acordei-
Gorda.
• Debate com a turma no formato mesa-redonda sobre a escrita de Stella
Florence. Críticas, sugestões, opiniões e novas interpretações serão
aceitas e muito bem-vindas.
• Assistir o documentário de Morgan Spuriock ¨Super Size Me¨ sobre os
hábitos alimentares em ¨fast-foods e um pequeno trecho do filme ¨Libs.¨,
de Carmine Famiglietti. Com estes dois vídeos, o debate realizado na
aula anterior e os contos de Stella Florence, estará lançada uma
campanha contra a ditadura da magreza, leia-se beleza, imposta pela
mídia, principalmente às mulheres.
• Introdução ao estudo de poemas que retratam o feminino, de autoria
feminina ou não. Aqueles que tiverem sido musicados veiculados na TV
pendrive e os outros lidos pela turma ou pela professora ou professor.
Para esta aula: Aviso da lua que menstrua (Elisa Lucinda), Conceição
das crioulas (Andreína Afonsina dos Santos) e Essas meninas (Carlos
Drummond de Andrade). Os dois primeiros textos foram selecionados
porque fazem parte da Coleção Cadernos de EJA, que se encontra em
nossa biblioteca, em número suficiente para todos os alunos da turma.
• Uma aula deverá ser dedicada às canções, literalmente, pois a turma irá
cantar a mulher brasileira. Elegemos 3 (três) dentre tantas maravilhosas:
a mulher lutadora na ditadura militar, a que não aceita os rótulos
impostos pela mídia e a divina e majestosa. O bêbado e a equilibrista,
de João Bosco e Aldir Blanc, Bobagem, de Maria do Céu Whitaker
Poças ou simplesmente Céu e Rosa, composta pelo mestre Pixinguinha
e na interpretação de Marisa Monte.
33
• Estudo da vida e obra de algumas mulheres que escreveram de forma
solitária, numa época em que quase nada lhes era permitido. Elencamos
apenas 3 (três) para as aulas sete e oito:Nísia Floresta Brasileira
Augusta, Florentina Vitel e Beatriz Brandão. Aqui fica a critério do
professor ou da professora a escolha de outras escritoras preteridas
pela sociedade patriarcal.
• Pesquisa na web ou na biblioteca da escola de textos, imagens,
biografias, entre outros, sobre as escritoras mencionadas (aula nº 7).
Neste momento, a turma será convidada a compor poemas ou escrever
pequenos contos sobre o tema estudado até esta aula.
• Esta aula se destina à organização de uma noite de poesia. A
organização será coletiva, pautada no respeito à individualidade dos
alunos e alunas, que poderão declamar, ler, cantar, ilustrar ou apenas
fazer uso do poder da palavra para contar histórias.
• Ensaio e novas pesquisas para a realização de uma noite de arte em
homenagem a essas escritoras maravilhosas que foram estudadas e
que poderá ser chamado I Varal poético feminino.
CRÔNICAS DE STELLA FLORENCE
CORINTO É AQUI*
Você fecha o livro, chocada. Absolutamente chocada. Medeia, a tragédia de
Eurípides, é uma das obras literárias mais cruéis de todos os tempos.
Vamos à história: Medeia jamais mediu esforços para favorecer seu amado,
Jasão. Após uma série de aventuras, eles se estabelecem em Corinto e, para
espanto de Medeia, Jasão, com a cara de pau que Deus lhe deu, desposa a
filha do rei Creonte. Ao saber da traição do esposo, Medeia não levanta a
fronte, não tira os olhos do chão, não se alimenta, se abandona à dor, se
34
consome em lágrimas e ouve as consolações dos amigos dura como um
rochedo.
Jasão jura de pés juntos à Medeia que seu objetivo, ao se casar com a filha do
rei, é dar irmãos reais aos seus filhos (seus dois filhos com Medeia) e, assim,
protegê-los quanto ao futuro incerto. Verdade ou não, ela está por demais
ferida para ser razoável. E decide se vingar.
Qual a vingança de Medeia? Matar o rei? Matar a nova companheira de Jasão?
Sim, ela faz isso. Envenena uma coroa, um vestido e manda de presente para
a noiva. Ao tocar nas peças, a moça morre vítima de crudelíssimos
padecimentos. O rei Creonte igualmente perece ao tentar ajudar a filha. Mas
esse ainda não é o cerne de sua vingança.
Cega pelo rancor de mulher rejeitada, Medeia usa um punhal e assassina os
próprios filhos, indiferente a seus gritos infantis. Por fim, exibe, de longe, seus
corpinhos inertes para um Jasão em desespero. Ele implora para abraçar os
filhos uma última vez e os sepultar, mas Medeia, no arremate de sua vingança,
não permite e vai embora.
Você lê a tragédia e pensa: “Impossível uma mãe chegar a esse extremo”.
Será? Será mesmo? O que você diria sobre formas metafóricas de matar os
próprios filhos? O que você diria sobre as Medeias modernas?
As Medeias modernas usam as crianças como instrumentos de ataque ao ex.
Elas insuflam seus filhos contra ele. Elas envenenam consciências infantis com
tormentos que pertencem apenas à história de duas pessoas adultas. Não raro,
elas conseguem exterminar ou reduzir drasticamente o convívio das crianças
com o pai.
Em seu supremo egoísmo, as Medeias modernas se disfarçam atrás da natural
preocupação que mães têm com seus filhos: “Estou fazendo isso pelo bem
deles!”. A não ser que o ex em questão seja um pedófilo ou alguém com pós-
graduação em violência, elas não estão pensando no bem das crianças coisa
nenhuma. As Medeias modernas estão fazendo isso por vingança: amarga,
quente e crua vingança. Corinto, quem diria, é aqui.
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NÁUFRAFO*
Em 1955, o destróier colombiano “Caldas” emborcou no Caribe e oito
tripulantes desapareceram no mar. Apenas um sobreviveu. Luís Alexandre
Velasco ficou 10 dias numa balsa à deriva, sem água e sem comida, até
chegar, semimorto, a uma praia deserta ao norte da Colômbia.
Após ter sido, a contragosto, transformado em herói pela então ditadura militar
do país, Velasco ofereceu sua história ao jornal “El Espectador”. Para escrever
seu depoimento, um repórter iniciante foi designado: Gabriel García Márquez,
hoje um dos maiores escritores do planeta. Por conta dessa matéria, publicada
em capítulos, o jornal foi fechado e García Márquez teve que se exilar em
Paris. Velasco perdeu o cargo na Marinha e a fama recente. Mas onde estão o
amor e o sexo, afinal? Estão no último parágrafo: confie em mim.
Peço agora que você pare e entre um instante na pele do náufrago. É quase
meio-dia quando o destróier emborca. Velasco se agarra a uma balsa. Três de
seus amigos se debatem ao redor. Inutilmente, ele tenta salvá-los: em minutos,
todos desaparecem.
Sozinho, Velasco acredita que o resgate não demorará. Olhos fixos no
horizonte, ele acompanha o pôr do sol, a noite escura e o nascer de um novo
dia. Aparecem aviões: três ao todo. O último deles esteve tão perto, enquanto
Velasco agitava sua camisa no ar, que ele teve certeza de que havia sido visto.
Mas não havia. Às cinco da tarde chegam os primeiros tubarões. Brilho de
luzes na superfície do mar: apenas um novo nascer do sol. Desespero, fome,
sede, dificuldade para respirar, dor, sono, a pele fervendo em bolhas. Outro
dia, um navio aparece no horizonte. Velasco rema furiosamente contra o vento,
mas o navio se afasta sem vê-lo. No quinto dia, torturado pela fome, Velasco
captura com as mãos uma gaivota. No entanto, mesmo há tantos dias sem
comer, ele percebe que não é capaz de comer qualquer coisa. Um novo dia,
ondas altíssimas. A balsa vira. Velasco nada em agonia, consegue alcançá-la e
se amarra ao estrado com o próprio cinto. A balsa emborca de novo e ele
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quase se afoga preso debaixo dela. Sorte os tubarões estarem longe naquele
momento. No dia seguinte, Velasco come os cartões de papel molhados que
tinha no bolso e sente algum conforto. Depois, tenta comer nacos do seu cinto
e sapatos, mas eles são duros demais. Um grande peixe pula dentro da balsa
tentando escapar dos tubarões. Velasco prova apenas dois bocados da carne
crua antes que um tubarão o ataque roubando o peixe e engolindo seu remo.
Outro dia, alucinações: o acidente se repete minuto a minuto. A água muda de
cor e Velasco supõe estar perto da terra. Porém, mais um dia se passa sem
que apareça sombra de costa no horizonte. Semi-inconsciente, ele tem certeza
de que vai morrer. Nesse instante, vê contornos de coqueiros, mas julga ser
apenas delírio. No dia seguinte, porém, os coqueiros estão mais próximos.
Velasco decide nadar os dois quilômetros que o separam da costa. Num
esforço sobre-humano, ele se arrasta, com o corpo em carne viva, e chega até
uma praia deserta.
Eu pedi que você entrasse na pele de Velasco, mas isso foi um blefe. você já
está na pele dele. À deriva, sem alimento, sem água, castigada pelo sol, iludida
por miragens, rondada por tubarões, com possibilidades de alimento que se
mostram intragáveis, com aviões que te sobrevoam, mas não te vêem e, ainda
assim, você continua sua busca por terra firme. Quando pensa que as suas
forças se esgotaram, alguma coisa tola, como gaivotas ou a mudança da cor
da água, te traz esperança para continuar. A questão é: quanto mais você
aguenta viver à deriva?
VIOLÊNCIA SEXUAL*
Que um homem desconhecido, um desequilibrado, uma criatura forjada e
endurecida num submundo paralelo (até submundo tem ética) fizesse o que ele
me fez como se tomasse uma cerveja, é possível. Mas alguém que beija a
palma da sua mão quando você está triste, que lhe mostra o esconderijo da
chave de casa, que conhece sua mãe, seus amigos, que conhece você… É
difícil de acreditar.
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Esta foi a causa de eu ter ficado imóvel quando ele me violentou. Nessas horas
extremas não há como prever reações: a dor vai direto para o corpo e, sem o
raciocínio a conduzi-la, ele simplesmente fala ou grita ou chora ou quebra ou
dói ou morre ou qualquer outra coisa que não faça sentido.
Quando ele foi ao banheiro, cheguei a pensar que havia morrido e me
transformado num fantasma (invisível, inodoro, imaterial) e ele apenas se
masturbara violentamente enquanto eu, espírito errante, deitara ali, bem
naquele momento, por descuido: tudo não passara de um grande engano! Não,
nenhum engano: o mais difícil para uma mulher violentada por um conhecido é
ela se convencer de que houve, sim, um estupro.
Antes que ele voltasse, fui embora. No meu apartamento, a primeira coisa que
fiz foi entrar no chuveiro. Sozinha sob a água quente, senti náuseas, tonturas e
cólicas: meu corpo tentou – até o limite em que um corpo pode expelir resíduos
de si mesmo – expulsar desesperadamente qualquer lembrança daquilo.
Uma imagem – naquela época recente – se desenhou quando fechei o
chuveiro e os olhos: nós havíamos ido juntos a um show e depois de horas em
pé (imobilidade imposta pela multidão que nos cercava) me agachei enlaçando
suas pernas numa posição claramente canina. Daquela maneira permaneci
enquanto ele acariciava meus cabelos – exatamente como faria se um cão lhe
roçasse os joelhos. O mesmo carinho. A mesma intenção. Um cachorro.
As dores físicas se tornaram insuportáveis (as emocionais permaneceram
insuportáveis por muitos anos). Madrugada no pronto-socorro. Luzes brancas
sem manutenção piscavam no corredor estreito. O médico, ao ver as marcas
no meu corpo, perguntou: “Você quer fazer algo a respeito disso?”. Minha
insegurança, meu medo e minha vergonha disseram “não”.
Os estudiosos analisam corpos marcados, medidas de mordidas, restos de
pele sob unhas, líquidos nas entranhas, espessura e profundidade de
arranhões. E o resto? E quando eu o aceitei sobre mim, sem vontade? E
quando me calei numa festa em que ele insinuou que eu era burra? E quando
parei de sair com meus amigos porque ele tinha ciúme? Quem era meu
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agressor, então? Eu disse “não!” naquela noite, disse bem alto, repeti, implorei,
mas era tarde: eu já havia ensinado àquele homem que meus desejos eram
negligenciáveis.
*Crônicas disponíveis no site itodas http://itodas.uol.com.br/amor-e-sexo
Acesso em 02 jun 2010.
* Fotos enviadas por e-mail pela escritora.
Stella Florence
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REFERÊNCIAS
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LAJOLO, M. O que é literatura? São Paulo: Brasiliense, 15 ed., 1994. LEAL, V. M. L. As escritoras contemporâneas e o campo literário brasileiro: uma relação de gênero. 2008, 249 f. Tese ( Doutorado em Literatura e Práticas Sociais) – Universidade de Brasília, Brasília, 2008. LUCINDA, E. O semelhante. Rio de Janeiro: Record, 5 ed., 2006, pp. 123-125.
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MONTE, M. A Rosa- Uma homenagem às mulheres. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=EX_mlgq9iEc> Acesso em: 18 abril 2010. PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação do Paraná. Departamento de Educação Básica. Diretrizes Curriculares da Educação Básica – Língua Portuguesa. 2008. _______. Secretaria de Estado da Educação. GTR- Grupo de Trabalho em Rede. A poética feminina em Stella Florence. Dia a dia Educação/e-escola: 2009/2010. PIXINGUINHA. Rosa. Letra da canção disponível em: <http://letras.azmusica.com.br/P/letras_pixinguinha_34351/letras_otras_23236/letra_rosa_-_pixinguinha_1419923.html> Acesso em: 03 mar. 2010. POÇAS, M. C. W. Bobagem. Canção disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=ytd4Rwtm6CE> Acesso em: 18 abril 2010.
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WIKIPÉDIA – Enciclopédia livre. Ecofeminismo. Disponível em:<http://pt.wikipedia.org/wiki/Ecofeminismo> Acesso em: 03 jun 2010.
ZILBERMAN, R. Literatura e pedagogia: ponto e contraponto. In: ZILBERMAN, R.; SILVA, E. T. – Porto Alegre; Mercado Aberto, 1990. 64. p. – (Série Contrapontos).
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ANEXOS
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ENTREVISTA: STELLA FLORENCE
Stella Florence, em seu livro de estréia, foi confundida com o escritor Mário
Prata. No prefácio de HOJE ACORDEI GORDA o escritor afirma ser Stella um
pseudônimo seu, o que gerou confusão. Ambos estiveram no PROGRAMA DO
JÔ em agosto de l999 para – entre risadas e muito charme – esclarecer o fato.
Hoje essa escritora paulistana é autora de vários livros, entre eles os sucessos
O DIABO QUE TE CARREGUE! e 32 – 32 ANOS, 32 HOMENS, 32
TATUAGENS.
Como meu projeto PDE (Programa de Desenvolvimento Educacional) - edição
2009, programa de capacitação docente promovido pela Secretaria de
Educação do Governo do Paraná, retrata os seus escritos e, seguindo a idéia
do professor Caio Ricardo Bona Moreira, meu orientador na FAFIUV de União
da Vitória, resolvi elaborar esta entrevista. Conversei com a Stella me valendo
desta maravilha, as páginas da web – que aprendi a gostar e achar útil – e ela
gentilmente concordou em conceder esta entrevista, em meio a seus inúmeros
compromissos. Vamos a ela.
Neusa – O que a motivou deixar a profissão de secretária para se dedicar
exclusivamente à de escritora?
Stella Florence - Talvez seja possível resumir em uma palavra: vocação. Foi
um surto da alma: aos 29 anos, eu me levantei, peguei minha bolsa, e fui
embora do escritório como um zumbi em transe. Dias depois a ideia de voltar a
escrever (coisa que eu fazia não profissionalmente na infância e adolescência)
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me pareceu óbvia, irrefreável. Por mais absurda que parecesse minha decisão
naquele momento, eu nunca tive qualquer dúvida de que a mudança de
profissão daria certo. Eu estava envolvida por uma espécie de lucidez espiritual
– que poderia facilmente ser confundida com loucura, é claro. (risos).
Neusa – Dia desses, li num artigo que Paulo Polzonooff Jr. – crítico curitibano
e autor do livro O cabotino - acredita que ¨Se você não tem talento, nem
morrendo de estudar você será um literato respeitável.¨ Você concorda com ele
ou pensa que sim, a gente pode se tornar um escritor ou escritora?
Stella Florence – Ele está coberto de razão! É fundamentalmente o talento (e
a perseverança, a leitura, a prática) que cria um bom escritor; já o estudo (e a
perseverança, a leitura, a prática) cria um bom crítico.
Neusa – Gostei muito dos contos de Hoje acordei gorda, porém, um me
deixou irada no início e no fim feliz: Eva era gorda mesmo. Pareceu-me que,
nesse conto, a mulher é vista de forma estereotipada e no final dá uma alegria,
um consolo por, finalmente, alguém afirmar que o natural é ser gordo e os
magros é que são os anormais. Poderia comentar sobre esse assunto?
Stella Florence – A ideia desse conto-crônica é brincar com a possibilidade de
uma origem gorda para todos nós, já que a queda do paraíso tem similaridades
com uma quebra de dieta. É apenas uma brincadeira sobre as teorias
esdrúxulas que tecemos em torno das mesas de bar, quando o álcool começa
a afetar nosso raciocínio.
Neusa – E quanto a um assunto bastante polêmico, o aborto, é contra ou a
favor? Quando lemos o conto A vítima, ficamos com a impressão que a dona
da escrita meio que redime a protagonista Gerda. A impressão é verdadeira ou
não?
Stella Florence – Sim, é. Sou a favor da legalização do aborto, não do aborto
em si. Não conheço nenhuma mulher que acorde um dia e pense: “Puxa, eu
nunca fiz um aborto na vida, preciso ter essa experiência!”. Portanto, não faz
sentido ser a favor de algo que só causa dor à mulher. No entanto, é preciso
que haja a legalização para que quem escolher se submeter a ele o faça com
condições básicas de saúde. No conto que você cita, um dos meus preferidos,
Gerda está morta e se vê amparada por um espírito que crê ser seu anjo da
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guarda. Ao insistir sobre sua identidade, o espírito que a acompanhava com
imenso carinho diz sem nenhuma mágoa: “Eu sou o filho que você optou por
não ter”. É uma visão minha: acredito que o amor e a compreensão dos limites
e das carências do outro sempre irão vencer a parada.
Neusa - Alguns críticos e críticas, entre eles, Regina Dalcastagné e Tânia
Ramos, a consideram uma escritora de auto-ajuda, propensa à prática da
literatura conhecida como ¨cick lit¨¨. O que pensa disso?
Stella Florence – Sim, eu sou tida como uma representante brasileira da
chamada ¨chick lit¨ (literatura de mulherzinha). Não me preocupam os rótulos,
eles são necessários para que você seja identificada num primeiro momento.
Carrego os rótulos de escritora de humor, de auto-ajuda, de literatura feminina,
de chick lit, de cronista ácida, etc. Como diz uma de minhas tatuagens: “sou
várias e todas verdadeiras”.
Neusa – Na época de sua publicação, muitas pessoas pensavam que o livro
de contos Hoje Acordei Gorda, foi escrito por Mário Prata. Isso a chateou ou
você encarou com bom humor?
Stella Florence – Eu AMEI! Foi o melhor presente que uma escritora iniciante,
como eu era na época, poderia receber. Imagine alguém que você admira e
respeita muitíssimo fingir que escreveu seu livro e ainda dizer “este é meu
melhor livro”. Eu babei de orgulho! Tenho convicção que, no Hoje Acordei
Gorda, o Mario Prata, genial como sempre, criou um dos melhores prefácios da
literatura.
Neusa – Esta é um ¨clichê¨, sem dúvida, mas que adoramos saber: quais seus
livros de cabeceira e qual está lendo no momento? E seus autores preferidos,
poderia comentar sobre eles?
Stella Florence – Para não estender demais a resposta, vou centralizar em
dois dos meus preferidos: sou apaixonada pelo Gabriel García Márquez e pelo
Tennessee Williams. Acho “Um bonde chamado desejo” (de T.W.) uma peça
brilhante que consegue, através de duas personagens (Blanche e Stella),
abordar quase todos os aspectos do feminino. Já Gabo (leio tanto Gabriel
García Marquez que me sinto íntima do escritor colombiano a ponto de chamá-
lo pelo apelido) é imbatível na maneira como aborda o amor e o sexo. Ninguém
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fala de sexo como Gabo (isso para não falar no aspecto jornalístico e mágico
de sua obra espetacular). Quanto a minha cabeceira, o único livro que sempre
está lá é o Evangelho Segundo o Espiritismo, de Allan Kardec.
Neusa – Você teria alguma idéia ou um posicionamento de como os docentes
poderiam incutir o gosto pela leitura em seus alunos e alunas, já que é sabido
da dificuldade que há quanto à prática da leitura nas escolas?
Stella Florence – Todo mundo gosta de ler. Quem acha que não gosta é
porque não encontrou seu (ou seus) escritor predileto, aquele que traduz seu
pensamento, suas dores, suas entranhas, com mestria, clareza e sentimento.
Oferecer aos alunos opções mais amplas de literatura (inclusive com nomes
que não obrigatoriamente figurem no primeiro escalão) pode ajudar.
Neusa – O escritor João Guimarães Rosa, em suas andanças e viagens como
cônsul, embaixador do Brasil e em muitas excursões pelo Mato Grosso,
anotava em cadernos cenas, conversas, paisagens, como pretexto na criação
de seus personagens. E para você, de onde vem a inspiração?
Stella Florence – Estou o tempo todo (mesmo que não queira) absorvendo,
elaborando e editando tudo o que acontece fora e dentro de mim. Mas eu não
faço anotações: se não desenvolvo o texto imediatamente e a ideia desaparece
é porque não era uma boa. A ideia boa sempre volta.
Neusa - No conto Tive de quebrar minha garota, do livro Ele me trocou por
uma porca chauvinista (p. 117), você menciona um colaborador: Carlos
Eduardo Miranda. Pode nos contar sobre ele, se foi mesmo guitarrista e tocou
com Eric Clapton ?
Stella Florence – Carlos Eduardo Miranda é o nome verdadeiro do escritor
Eduardo Haak, com quem tenho uma filha. Somos muito amigos e ele me
ajudou com os detalhes técnicos desse texto, pois ele também toca guitarra
(aliás, Eduardo está preparando um livro delicioso de curiosidades sobre o
assunto). Ah, e não, ele nunca tocou com Clapton, a história é toda ficcional.
Neusa – Aqui, finalizo esta entrevista deliciosa. Stella é franca, honesta e dona
de uma simplicidade e humildade incríveis. Aceitou em responder esta
entrevista e, carinhosamente, se prontificou a me enviar outros materiais,
inclusive fotos, para a elaboração do projeto e produção didático-pedagógica.
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Cada vez tenho mais certeza: vale a pena conhecê-la, principalmente sua obra.
Obrigada Stella! Que conquiste mais e mais leitores!
AVISO DA LUA QUE MENSTRUA
Moço, cuidado com ela!
Há que se ter cautela com esta gente que menstrua...
Imagine uma cachoeira às avessas:
cada ato que faz, o corpo confessa.
Cuidado, moço
às vezes parece erva, parece hera
cuidado com essa gente que gera
essa gente que se metamorfoseia
metade legível, metade sereia.
Barriga cresce, explode humanidades
e ainda volta pro lugar que é o mesmo lugar
mas é outro lugar, aí é que está:
cada palavra dita, antes de dizer, homem, reflita..
Sua boca maldita não sabe que cada palavra é ingrediente
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que vai cair no mesmo planeta panela.
Cuidado com cada letra que manda pra ela!
Tá acostumada a viver por dentro,
transforma fato em elemento
a tudo refoga, ferve, frita
ainda sangra tudo no próximo mês.
Cuidado moço, quando cê pensa que escapou
é que chegou a sua vez!
Porque sou muito sua amiga
é que tô falando na "vera"
conheço cada uma, além de ser uma delas.
Você que saiu da fresta dela
delicada força quando voltar a ela.
Não vá sem ser convidado
ou sem os devidos cortejos..
Às vezes pela ponte de um beijo
já se alcança a "cidade secreta"
a Atlântida perdida.
Outras vezes várias metidas e mais se afasta dela.
Cuidado, moço, por você ter uma cobra entre as pernas
cai na condição de ser displicente
diante da própria serpente
Ela é uma cobra de avental
Não despreze a meditação doméstica
É da poeira do cotidiano
que a mulher extrai filosofando
cozinhando, costurando e você chega com a mão no bolso
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julgando a arte do almoço: Eca!...
Você que não sabe onde está sua cueca?
Ah, meu cão desejado
tão preocupado em rosnar, ladrar e latir
então esquece de morder devagar
esquece de saber curtir, dividir.
E aí quando quer agredir
chama de vaca e galinha.
São duas dignas vizinhas do mundo daqui!
O que você tem pra falar de vaca?
O que você tem eu vou dizer e não se queixe:
VACA é sua mãe. De leite.
Vaca e galinha...
ora, não ofende. Enaltece, elogia:
comparando rainha com rainha
óvulo, ovo e leite
pensando que está agredindo
que tá falando palavrão imundo.
Tá, não, homem.
Tá citando o princípio do mundo!
Elisa Lucinda (Da série “Ímpetos”, agosto de 1990)
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CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS
Da Comunidade Conceição
A vocês quero falar
Onde o povo descobriu
Um jeito novo de trabalhar
Fugindo da escravidão
As crioulas aqui chegaram
Fiaram aquele algodão
E seu patrimônio compraram
Não sabiam que assim estavam
Fazendo do seu artesanato
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Povo simples de pequena cultura
O ofício que sempre desempenharam
Se antes alguém viu como insignificantes
Vejam agora um povo vitorioso
Que se assumem como negros
Bem felizes e importantes
Andreína Afonsina dos Santos
* Andreína Afonsina dos Santos é trabalhadora da Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas, no sertão pernambucano, a 550 quilômetros de Recife.
ESSAS MENINAS
As alegres meninas que passam na rua, com suas pastas escolares, às vezes
com os seus namorados. As alegres meninas que estão sempre rindo,
comentando o besouro que entrou na classe e pousou no vestido da
professora; essas meninas; essas coisas sem importância.
O uniforme as despersonaliza, mas o riso de cada uma as diferencia. Riem
alto, riem musical, riem desafinado, riem sem motivo; riem.
Hoje de manhã estavam sérias, era como se nunca mais voltassem a rir e falar
das coisas sem importância. Faltava uma delas. O jornal dera notícia do crime.
O corpo da menina encontrada naquelas condições, em lugar ermo. A
selvageria de um tempo que não deixa mais rir.
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As alegres meninas, agora sérias, tornaram-se adultas de uma hora para
outra; essas mulheres.
Carlos Drummond de Andrade
O BÊBADO E A EQUILIBRISTA
(João Bosco / Aldir Blanc – 1979) Intérprete: Elis Regina
Caía a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto
Me lembrou Carlitos
A lua, tal qual a dona do bordel,
Pedia a cada estrela fria
Um brilho de aluguel
E nuvens, lá no mata-borrão do céu,
Chupavam manchas torturadas, que sufoco!
Louco, o bêbado com chapéu-coco
Fazia irreverências mil pra noite do Brasil.
Meu Brasil.
Que sonha com a volta do irmão do Henfil.
Com tanta gente que partiu num rabo de foguete.
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Chora a nossa pátria mãe gentil,
Choram Marias e Clarisses no solo do Brasil.
Mas sei que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente, a esperança
Dança na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha pode se machucar
Asas, a esperança equilibrista
Sabe que o show de todo artista
Tem que continuar...
João Bosco e Aldir Blanc
Histórico: Composta em 1979, tornou-se um símbolo da luta pela anistia. Pela
volta dos exilados e pela abertura política do regime militar. Carlitos,
personagem mais famoso de Charles Chaplin, representa a população
oprimida, mas que ainda consegue manter o bom humor, denunciava as
injustiças sociais de forma inteligente e engraçada. A Equilibrista dançando na
corda bamba, de sombrinha, é a esperança de todo um povo.
Henrique de Sousa Filho, conhecido como Henfil, foi um cartunista, quadrinista,
jornalista e escritor brasileiro. Seu irmão, Herbert José de Sousa, conhecido
como Betinho, foi um sociólogo e ativista dos direitos humanos brasileiro;
concebeu e dedicou-se ao projeto Ação da Cidadania contra a Miséria e pela
Vida. Com o golpe militar, em 1964, mobilizou-se contra a ditadura, sem nunca
esquecer as causas sociais. Mas, com o aumento da repressão, foi obrigado a
se exilar no Chile em 1971.
Maria era mãe de Betinho (irmão de Henfil) e Clarice mulher do jornalista
assassinado a mulher do jornalista assassinado na ditadura militar: Wladimir
Herzog. Portanto, as Marias e Clarisses, no plural, fazem referência às mães,
talvez irmãs ou mulheres de pessoas que se foram, ou mesmo deixaram o
nosso país, lutando por um ideal, um sonho: ver o Brasil livre.
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ROSA Compositor: Pixinguinha Intérprete: Marisa Monte
Tu és, divina e graciosa
Estátua majestosa do amor
Por Deus esculturada
E formada com ardor
Da alma da mais linda flor
De mais ativo olor
Que na vida é preferida pelo beija-flor
Se Deus me fora tão clemente
Aqui nesse ambiente de luz
Formada numa tela deslumbrante e bela
Teu coração junto ao meu lanceado
Pregado e crucificado sobre a rósea cruz
Do arfante peito seu
Tu és a forma ideal
Estátua magistral oh alma perenal
Do meu primeiro amor, sublime amor
Tu és de Deus a soberana flor
Tu és de Deus a criação
Que em todo coração sepultas um amor
O riso, a fé, a dor
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Em sândalos olentes cheios de sabor
Em vozes tão dolentes como um sonho em flor
És láctea estrela
És mãe da realeza
És tudo enfim que tem de belo
Em todo resplendor da santa natureza
Perdão, se ouço confessar-te
Eu hei de sempre amar-te
Oh flor meu peito não resiste
Oh meu Deus o quanto é triste
A incerteza de um amor
Que mais me faz penar em esperar
Em conduzir-te um dia
Ao pé do altar
Jurar, aos pés do onipotente
Em preces comoventes de dor
E receber a unção da tua gratidão
Depois de remir meus desejos
Em nuvens de beijos
Hei de envolver-te até meu padecer
De todo fenecer
Pixinguinha
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