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Ela devia ter dito qualquer coisa.
Ainda agora, sete anos depois, com a loiça do jantar
de Ação de Graças arrumada e outro mês de dezembro soli-
tário a aproximar-se, Molly Allen sabia a verdade. O seu ano,
a sua vida, o seu Natal… tudo isso poderia ser diferente se ela
tivesse dito alguma coisa.
Sexta-feira, um dia depois da Ação de Graças: as possibilida-
des atormentavam-na. Saíram com ela pela porta do escritório
da sua fundação em Portland, Oregon, pairaram ao seu lado
durante o almoço no P. F. Changs e distraíram-na de cada vez
que ela foi espreitar os cães e os gatos no abrigo para animais
que ela própria criara.
Aquele era o Dia do Vídeo. O dia de Molly depois do Dia
de Ação de Graças.
Todas as outras pessoas na zona de Portland passavam
aquele dia à procura de pechinchas e a parar no abrigo para
ver se o presente que procuravam não estaria numa jaula,
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K A r e n K i n g s b U r y
em vez de no Walmart mais próximo. Agora, à medida que o
dia chegava ao fim, enquanto os outros esvaziavam os sacos
e viam quanto dinheiro lhes sobrava, Molly iria enroscar-se
sozinha debaixo de um cobertor a ver o vídeo.
Tal como fazia todos os anos, naquele dia.
Prendeu uma madeixa do seu comprido cabelo louro atrás
da orelha e baixou-se até à jaula grande na prateleira de baixo.
A sala ecoou com uma dezena de latidos e ganidos e gemi-
dos de atenção. Um coro de inquietação e de ligeira preocu-
pação proveniente dos animais resgatados naquele mês para
o seu abrigo, uma extensão dos esforços da Fundação Allen.
— Muito bem, Buster. — Abriu a jaula e recebeu nos bra-
ços um terrier de pelo cinzento. — É o teu dia de sorte. É sim.
— Prendeu uma trela à coleira de Buster. O cão tinha dois
anos e estava no abrigo havia três semanas. Mais tempo do
que o costume, tendo em conta que era época de Natal e que
os cães bonitos normalmente iam primeiro. Coçou o pelo do
cão acima da orelha. — Vamos levar-te à tua família.
Por via das dúvidas, fez um anúncio geral aos outros.
— Ainda faltam sete dias até dezembro, meninos. A vos-
sa vez há de chegar!
Buster abanou a cauda furiosamente enquanto Molly o
levava até à entrada. Ela gostava da nova família de Buster.
Como é claro que gostava da maioria das famílias que a visi-
tavam ali: qualquer pessoa disposta a resgatar um animal de
estimação era sua amiga, sem dúvida nenhuma. Mas aquela
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D o i s A n o s e U m A e t e r n i D A D e
família com os seus gémeos de sete anos parecia especial: os
olhos dos rapazinhos brilharam quando Molly virou a esqui-
na com Buster.
— Pai, é ele! O nosso Buster! — Um dos rapazes aproximou-
-se a correr e caiu de joelhos, abraçando Buster pelo pescoço.
O outro rapaz era mais reservado e ficou para trás com
os pais. No entanto, o seu sorriso iluminou à mesma a sala.
A família já tinha assinado a papelada necessária, de modo
que aquele era o último passo. Os pais apertaram-lhe a mão
antes de saírem.
— É muito importante, aquilo que a senhora está aqui a
fazer. — Os olhos do pai eram calorosos. — Tenho a sensação
de que teria muito mais coisas com que ocupar o seu tempo.
— Acenou-lhe com a cabeça. — Feliz Natal!
— Obrigada. — Molly hesitou. — Boas festas.
A família voltou a sua atenção para Buster e para a anima-
ção de o levar do interior aconchegante para a chuva e para
a carrinha estacionada à porta. Quando a família arrancou,
Molly olhou para o relógio. Seis minutos para o fecho. Foi até
à porta e voltou o letreiro. As jaulas estavam limpas e todos
os animais tinham feito o seu exercício com os dez volun-
tários da escola secundária que tinham trabalhado até uma
hora atrás. Tinha só de verificar se as tigelas tinham água e
podia ir para casa.
G
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K A r e n K i n g s b U r y
Ele chamara «A Ponte» ao seu projeto de vídeo.
Algures durante os créditos de abertura, escrevera o
seguinte: A história de como um rapaz provinciano de Cartha-
ge, Mississípi, e uma rapariga distinta de Pacific Heights, Cali-
fórnia, arranjaram maneira de se entender no seu percurso diário
por Franklin Road, junto a Nashville, a Cidade da Música, até à
Ponte — a melhor livraria do mundo.
Demasiado longo, demasiados locais, dissera-lhe Molly.
Riram-se os dois, percebendo que ele nunca receberia a nota
máxima com uma frase de abertura tão horrível.
Molly pousou as suas coisas encharcadas junto à porta do
apartamento, acendeu as luzes e tirou a gabardina molhada.
Vivia bastante abaixo das suas possibilidades, num aparta-
mento novo com dois quartos na famosa NW Twenty-third
Street. As árvores ao longo da rua brilhavam com luzes cin-
tilantes mesmo em julho, e havia cafés e lojas de arte e de
moda feita ali mesmo em Portland. O ritmo de vida era ligei-
ro e as pessoas descontraídas.
O pai dela teria odiado.
O jantar fervia em lume brando no tacho, puré de legumes
com alho-porro em cubos, alho e salsa. A sopa que ele a ensi-
nara a fazer. A sua sopa na sexta-feira a seguir ao Dia de Ação
de Graças. Chegou-lhe da sala das máquinas um miado, e o
seu gato Sam apareceu, esfregando-se nos seus tornozelos.
Era um gato engraçado. Mais cão do que felino.
— Olá, Sam.
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D o i s A n o s e U m A e t e r n i D A D e
Ele deixou-se cair no chão da cozinha e pôs a cabeça en-
tre as patas.
— Pareces exausto. — Ela inclinou-se e esfregou-lhe o pelo
sob o queixo. — Lindo menino, Sam. Não exageres.
Pôs uma concha de sopa na tigela, pegou no cobertor e no
comando da televisão e instalou-se no sofá de couro de dois
lugares. O botão de cima do comando diminuiu as luzes e o
próximo deu início ao filme, que estava no leitor desde o iní-
cio da manhã.
Molly apanhou o cabelo e puxou-o para um lado.
O nome dele era Ryan Kelly.
Agora estava casado com a doce rapariga do Sul com quem
namorara desde o secundário, e tornara-se com toda a certeza
professor de Música na Escola Secundária de Carthage, em
Nenhures, Mississípi. Mas, durante dois anos, quando fre-
quentaram a Universidade de Belmont, Ryan fora seu. Ela
sonhara nunca mais voltar a casa e em tocar violino numa
orquestra filarmónica, e ele falara sobre partir em digressão
com uma banda country, vivendo da música que conseguisse
tirar da sua guitarra. Mas, ao fim e ao cabo, ele tinha Kristen,
a namorada, à sua espera em casa — e Molly tinha o império
do pai para gerir em São Francisco.
No entanto, durante aqueles quatro doces semestres na li-
vraria de Franklin, nada se interpôs entre eles.
O final foi o mais difícil: o último toque, terem de se afastar,
as mãos trémulas dela. Cada batimento cardíaco angustiante
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K A r e n K i n g s b U r y
permaneceu gravado na sua alma para sempre. A despedida
acontecera tão depressa que ela ainda não sabia se compreen-
dia o motivo. Como se podiam ter separado de forma tão rá-
pida e definitiva.
Molly premiu o botão play e, quando a música começou, a
dor familiar aumentou dentro dela. Não costumava permitir-
-se aquela viagem ao passado, mas o dia a seguir ao de Ação
de Graças pertencia a Ryan, à forma como as coisas tinham
sido antes, e àquela verdade forçosa, inevitável.
Tal como Rhett Butler em E Tudo o Vento Levou, ela devia
ter dito qualquer coisa.
G
Ele pousara a câmara em cima do tablier, fixando-a com
fita adesiva e uma base para poder girá-la um pouco.
O visor abriu-se para o lado, de frente para eles.
— Tens de agir naturalmente — disse ele. — Mantém
os olhos na estrada. — O riso gravado dele ecoou na sua
sala de estar como outrora ecoara em todas aquelas tardes
e manhãs.
O vídeo começava com a câmara focada nele, e a sua pri-
meira pergunta fazia-a sempre sorrir.
— Muito bem, menina Molly, diga às pessoas como nos
conhecemos. O encontro improvável que deu início a esta
loucura.
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D o i s A n o s e U m A e t e r n i D A D e
— A história toda? — Ele virou a câmara para que ela apa-
recesse, o seu rosto com uma expressão pouco agradável ao
volante do BMW. — Enquanto conduzimos?
Ele riu-se de novo.
— Falta meia hora para A Ponte. Acho que podes fazer
mais do que uma coisa ao mesmo tempo.
Ela fez-lhe uma careta e depois riu-se quando olhou para
a câmara.
— Está bem. Qual é outra vez a pergunta?
— Mantém os olhos na estrada.
O riso de ambos juntou-se numa valsa rápida, enquanto a
câmara captava a forma discreta como os seus corpos pare-
ciam atraídos um pelo outro. A forma leve, mas intencional,
como os seus joelhos e cotovelos se tocavam e a forma como
ela o olhava enquanto ele a filmava, como se nunca tivesse
sido mais feliz em toda a sua vida. Molly sorriu enquanto o
vídeo passava. A câmara captara a união dos seus corações,
a amizade, mas também captara a ligação da qual nunca es-
tiveram dispostos a falar. A química entre eles, tão forte que
ainda agora a deixava sem fôlego.
Aquela inegável química insana entre os dois.
Enquanto o vídeo continuava, algo extraordinário aconte-
ceu — o motivo exato por que Molly via aquele vídeo todos
os anos naquele dia. Já não estava sentada diante do televi-
sor a ver imagens filmadas sete anos antes. Em vez disso, ali
estava ela de novo, o sol nos seus ombros, a aventura no co-
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K A r e n K i n g s b U r y
ração, no verão após o fim do secundário. Não numa espécie
de flashback. Mas realmente ali. A dirigir-se a um auditório
enorme com três colegas novinhas em folha para as aulas de
orientação de agosto em Belmont.
Talvez fosse a sensação de liberdade que Molly sentira na-
quele dia, o facto de ter convencido o pai a deixá-la fazer o im-
pensável, deixar a Costa Oeste para frequentar a universidade
num estado como o Tennessee. Ou o facto de ali ela não ser
uma herdeira à espera que o tempo passasse para poder assu-
mir a liderança das empresas do pai. Era uma estudante uni-
versitária, tal como todas as outras. Fosse o que fosse, naquele
dia ela sentira-se maravilhosamente viva e esperançosa, cada as-
peto previsível da sua vida tão distante como o oceano Pacífico.
Naquele dia, o auditório de Belmont estava cheio com a
energia dos caloiros, animados e ansiosos e a tentarem de-
sesperadamente integrar-se. Molly e as amigas ocuparam os
primeiros lugares. Os seus olhos mal se tinham ajustado à
luz no auditório quando uma das amigas deu uma cotovela-
da na outra.
— Olha para ele! — E apontou para um rapaz que esta-
va ali perto. Era alto e bem-constituído, com cabelo escuro e
olhos azuis penetrantes. — Está a olhar para mim!
— Boa tentativa — riu a amiga. — Ele está mas é a olhar
para a Molly. Tal como todos os outros rapazes.
— Não sejas ridícula. Ele está só… — sorriu Molly, sem
conseguir concluir o seu pensamento, porque naqueles pou-
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D o i s A n o s e U m A e t e r n i D A D e
cos segundos a ligação entre ela e o rapaz de cabelo escuro
foi tão forte que lhe tirou o fôlego. Ela já conhecera vários:
durante as inscrições e o almoço e os jogos de campo nessa
tarde. Aquilo parecia diferente, e Molly teve a certeza de uma
coisa, independentemente do que lhe acontecesse durante os
quatro anos seguintes em Belmont.
Nunca esqueceria aquele momento.
Não falaram, não se aproximaram quando a aula de orien-
tação terminou. Molly quase perguntou a si mesma se o pai
teria alguém a segui-la, alguém que pagaria ao rapaz para fi-
car longe dela. Porque o seu tempo ali viera acompanhado
de uma estipulação dos pais: ela podia estudar música, mas
não podia namorar. Se o pai descobrisse que ela andava com
um rapaz de Belmont, metia-a no primeiro voo para casa.
— Vais casar com alguém como tu — sempre lhe dissera
o pai. Dizia aquilo com um sorriso, mas falava a sério. E não
queria dizer que ela teria de se casar com um qualquer rapaz
do seu círculo de amigos.
Queria referir-se a Preston J. Millington III.
Preston andara no colégio interno com ela. Era inteligen-
te e bondoso e suficientemente bem-apessoado. Os pais de
ambos eram grandes amigos, e Preston estava encaminhado
para fazer um MBA. O pai dela já lhe prometera uma posi-
ção na sua empresa.
Molly não sentia nada por Preston, mas fora criada a acre-
ditar que não tinha escolha. Nem voto nas decisões que iriam
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K A r e n K i n g s b U r y
moldar a sua vida. Só quando pôs os pés no complexo uni-
versitário de Belmont é que sentiu que a sua vida parecia re-
motamente sua. Ainda assim, no fim da primeira semana de
aulas, Molly pensou para consigo se voltaria a ver o rapaz da
aula de orientação.
Naquela sexta-feira, uma das amigas de Molly convidou-
-a para jantar, e ela disse que sim, tal como dizia sim a cada
convite. Adorava a liberdade de poder ir e vir sempre que
queria e de passar tempo com as pessoas, independente-
mente dos seus rendimentos e da sua influência. A amiga
morava no centro de Franklin, meia hora a sul de Nashville.
Quando Molly saiu do seu carro, viu um rapaz sair de uma
velha carrinha de caixa aberta Dodge na casa ao lado. Ele ti-
nha um estojo de guitarra pendurado ao ombro, e estacou
quando a viu.
Os seus olhos encontraram-se de novo e Molly inclinou-se
sobre a porta do carro aberta. Era ele, não tinha dúvidas. Mas
o que estaria a fazer ali? Antes que pudesse perguntar-lhe o
nome ou por que motivo estava ali, a meia hora do complexo
universitário, ou que aulas frequentava, a amiga saiu dispa-
rada pela porta da frente.
— Molly! Estás aqui! Entra e vem conhecer toda a gente.
A minha mãe esteve a cozinhar o dia inteiro e…
Molly obrigou-se a desviar os olhos do olhar profundo
dele e abraçou a amiga. Estavam a meio caminho da porta
quando ela se virou e o procurou, mas ele devia ter entrado.
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D o i s A n o s e U m A e t e r n i D A D e
Durante todo o jantar, Molly pensou nele, em formas de per-
guntar à família da amiga quem era ele e se morava ali ou se
estava de visita.
Quando se foi embora naquela noite, a carrinha desapare-
cera.
Na segunda-feira, Molly chegou cedo ao edifício da Mú-
sica para a sua aula de Teoria Instrumental. Quando entrou
no corredor, foi envolvida pelos belos sons de uma guitarra
acústica e de um rapaz a cantar uma música que ela nunca
tinha ouvido. A voz dele derreteu-a e, de alguma forma, mes-
mo antes de dobrar a esquina para a sala, ela soube. Como se
o tivesse conhecido toda a sua vida, soube.
Vê-lo do outro lado da porta da sala de aula apenas con-
firmou tudo.
Ele sorriu e continuou a tocar, continuou a cantar, enquan-
to ela se encostava à parede e assistia. Quando a música ter-
minou, ele baixou a guitarra e olhou através dela.
— Começava a pensar que eras fruto da minha imaginação.
Ela tentou pensar numa resposta inteligente, mas a sua
risada saiu primeiro.
— Estás a estudar música?
— Sim. — Ele levantou-se e apertou a mão dela com a que
tinha livre. Assim tão perto, os seus olhos pareciam mais azuis
do que no auditório. — Ryan Kelly. Puseram-me na turma
errada. Acabei de resolver tudo.
— Então estás na nossa? — Ela ficou radiante.
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K A r e n K i n g s b U r y
— Se conseguir apanhar-vos. — Esboçou um meio sorriso e
ergueu uma sobrancelha. — Talvez tenha algumas perguntas.
Ela sentiu os seus olhos começarem a dançar.
— Talvez eu tenha as respostas.
E, sem mais nem menos, tudo começou.
Nenhum deles vivia no complexo universitário. Ele não
podia pagar o alojamento e a alimentação, por isso vivia em
Franklin com um casal amigo da família. Ela morava numa
casa que os pais possuíam na McGavock Farms, em Brent-
wood. O pai tinha-a comprado bastante abaixo do valor de
mercado. Contratara uns homens para a remodelar antes do
início das aulas, tencionando mantê-la até Molly sair de Bel-
mont, altura em que iria vendê-la com bom lucro. Por ago-
ra, a casa contava com uma governanta e um jardineiro, um
casal que morava no andar de cima. Molly tinha uma suíte
no piso térreo, ao lado da sala de música, onde poderia en-
saiar e estudar. Viver num dormitório estava fora de questão.
— A vida em comunidade não é adequada — dissera o pai.
Tentara suavizar a sua expressão. — Não sabes nada sobre
esse estilo de vida. Assim, estarás em segurança.
Desde o início, sentia-se segura dos seus sentimentos por
Ryan. E uma vez que os empregados dos pais teriam feito
queixa dela se recebesse visitas de rapazes, a ideia de Ryan
foi perfeita também desde o início.
— Conheço uma livraria. Livros novos e usados numa casa
antiga no centro de Franklin. Tem uma sala de leitura no pri-
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D o i s A n o s e U m A e t e r n i D A D e
meiro andar que ninguém usa. A minha casa longe de casa.
— Ele sorriu, e o brilho nos seus olhos tocou as profundezas
da alma de Molly. — Chama-se A Ponte.
Molly ficou intrigada e, desde essa primeira sessão de es-
tudo, A Ponte tornou-se um mundo particular para Ryan e
para ela, um esconderijo para os dois. É claro que havia ou-
tros clientes, mas os estudantes de Belmont não conduziam
até tão longe, e Molly adorava o anonimato.
A loja fora instalada numa casa antiga que tinha sido em
tempos um esconderijo para os soldados da União durante a
Guerra Civil. O soalho era de velho pinho resistente, e as pa-
redes e portas tinham descaído, pelo que não estavam muito
direitas. O local cheirava a livros antigos e a couro curtido, e
Molly adorava tudo nele.
A Ponte era gerida por um homem chamado Charlie Bar-
ton, um amigo da comunidade de Franklin. Charlie mantinha
café acabado de fazer numa mesa perto do balcão da entrada,
onde se costumava sentar, pronto a sugerir o livro certo ou a
ter uma conversa memorável. De vez em quando juntava-se-
-lhe a mulher, Donna. O casal sentava-se com Molly e Ryan
perto da lareira e ouvia. Ouvia mesmo.
— Falem-me das vossas aulas — pedia Charlie. Então, pu-
xava uma cadeira, como se tivesse o dia todo para ouvir por-
menores sobre as palestras de Música e os testes de Ciências
e os trabalhos de Literatura Inglesa que eles estavam a fazer.
Às vezes, Donna puxava Molly à parte.
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K A r e n K i n g s b U r y
— Aquele rapaz está completamente apaixonado por ti —
dizia. — Quando vão ambos admiti-lo?
Molly ria-se.
— Somos apenas amigos. A sério.
— Hum… — Donna levantava as sobrancelhas. — Vere-
mos.
No fim do primeiro semestre, Molly sentia-se mais próxi-
ma de Charlie e de Donna do que dos próprios pais.
— Nunca hei de voltar — disse ela a Ryan mais do que
uma vez, enquanto estavam na livraria. — Eles não podem
obrigar-me.
Ele sorria para ela, com os olhos a brilharem de uma for-
ma que a fazia ficar imóvel.
— Ninguém pode obrigar-nos a fazer nada.
Foram precisas apenas algumas tardes de estudo para sa-
berem tudo o que havia a saber sobre o outro. Molly contou-
-lhe coisas que não contara a ninguém: como a vida dela em
casa a sufocava e como nunca sequer lhe ocorrera irritar os
pais ou desobedecer-lhes. Falou-lhe sobre Preston e a empre-
sa do pai e os planos que ele tinha para ela.
Ele também foi franco.
— Tenho uma namorada em Carthage. — Olhou para ela,
à espera de uma reação. — Namoramos desde o secundário.
As nossas famílias frequentam a mesma igreja.
Molly sentiu-se magoada com a notícia, mas não o demons-
trou. Não podia namorar com ele, de qualquer maneira. Ele
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D o i s A n o s e U m A e t e r n i D A D e
seria seu amigo, nada mais. Saber da sua namorada em casa
só tornava tudo aquilo ainda mais seguro, dando-lhe autori-
zação para se aproximar dele tanto quanto quisesse.
De início, Ryan falava da namorada com bastante frequência.
— O pai dela é agricultor — contou ele a Molly um dia,
quando estavam a estudar na Ponte. — Vai dar-lhe um hec-
tare de terra, por isso mais tarde… sabes, podemos lá viver.
Molly assentiu, pensativa. Não desviou o olhar, não vacilou
na sua conexão com ele.
— Como é que vais ser um guitarrista profissional em
Carthage, Mississípi?
A risada calma dele estava tingida de desânimo.
— Não vou. Toda a gente acha que vou voltar e dar aulas
de Música na escola secundária.
— E tu? — A voz dela ficou mais suave, o silêncio da sala
de estar da loja a incentivar a conversa. — O que queres?
— É um bom plano B, dar aulas de Música. Gosto de Car-
thage.
Ela percebeu o quanto tinham em comum, as suas vidas
já planeadas. De repente, não foi capaz de suportar a ideia.
— Não, Ryan! — Pousou-lhe a mão no ombro e apertou-
-o ao de leve. — Não podes acomodar-te. Tens de seguir o
plano A. Andar em digressão pelo mundo com as melhores
bandas country e tocar essa tua bela guitarra.
— Eu? — Ele riu-se de novo, mas os seus olhos mostra-
vam uma pitada de aventura que não estava lá antes. — E tu?
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K A r e n K i n g s b U r y
Nada de Preston nem de São Francisco para ti, Molly Allen.
Tens de tocar violino na orquestra filarmónica. — O seu riso
desvaneceu-se, e ele nunca pareceu tão sério. — Independen-
temente do que eles queiram para ti.
Foi assim que os sonhos deles ficaram definidos. Prometeram
incitar-se um ao outro, nunca se contentarem com qualquer coi-
sa, exceto o desejo dos seus corações. Revezavam-se nas viagens
para Belmont, e partilharam a boleia todos os dias desde o iní-
cio. Ryan parava a carrinha na esquina da McGavock Farms e da
Murray, onde ela o esperava, longe da vista dos empregados. Ele
levava-a à escola e depois à Ponte quando as aulas terminavam.
Na livraria, não se limitavam a fazer os trabalhos de casa.
Também encontraram livros, clássicos que lhes falavam de
forma tão profunda. E Tudo o Vento Levou e o preferido, Jane
Eyre, de Charlotte Brontë. Desde o início que Molly sentia
uma afinidade com a heroína e a sua determinação em fa-
zer a coisa certa, mesmo à custa do amor. Liam Jane Eyre em
voz alta um ao outro, e de vez em quando, na viagem para
A Ponte, declamavam citações.
— «Pergunto-me o que faria Jane Eyre para garantir a mi-
nha felicidade» — dizia Ryan com o seu melhor sotaque in-
glês, citando Rochester.
— «Eu faria qualquer coisa por si, senhor» — citava ela
Jane com o seu sotaque vitoriano, abafando o riso que sur-
gia sempre que estavam juntos. — «Qualquer coisa que fos-
se correta.»
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Quando não estavam a citar o romance de Brontë, canta-
vam ao som da rádio e falavam sobre as aulas e sonhavam
com o futuro. Durante aqueles maravilhosos dois anos, nunca
falaram sobre a única coisa que parecia tão óbvia na altura, a
única coisa que poderia ter feito toda a diferença. Nunca fala-
ram sobre se a sua amizade era uma cobertura para o óbvio.
Que talvez estivessem apaixonados um pelo outro.
Quando o vídeo chegou ao fim e Sam se enroscou no chão
ao lado dela, quando as lágrimas deslizaram pelo seu rosto
como deslizavam sempre que ela via o filme, Molly não pôde
impedir-se de pensar na única ideia que lhe ocorria sempre
naquela altura do ano.
Devia ter dito qualquer coisa.
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