Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
1
Pedro Henrique Barreto de
Lima
Crítica a “Conhecimento por
presença: em torno da filosofia
de Olavo de Carvalho”
1ª edição
Belo Horizonte
Edição do autor
2020
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
2
D353 de Lima, Pedro Henrique Barreto, 1987
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da
filosofia de Olavo de Carvalho” - 1. ed. - Belo Horizonte, Edição
Independente, 2020.
369 p.; 27 cm.
ISBN : 978-65-00-15294-4
1. Capítulo I - o que é a "pseudo-iniciação"?
I. Título
CDD 200
CDU: 11
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
3
Sumário Capítulo I - o que é a "pseudo-iniciação"? ....................5
Capítulo II - Olavo de Carvalho e o tema do expletivo 76
Capítulo III - Um estudo teológico da teoria dos quatro
discursos .................................................................... 99
Capítulo IV - O ocultismo e o tema da "dúvida radical"
................................................................................ 169
Capítulo V – Ação histórica e o “trabalho do negativo”.
................................................................................ 236
Capítulo VI – O simbolismo do figo e o sonho de Olavo
de Carvalho ............................................................. 270
Capítulo VII – Simbolismo do filme “O náufrago”
(2000) ...................................................................... 329
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
4
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
5
Capítulo I - o que é a "pseudo-
iniciação"?
Um homem e sua jovem filha
estão em um bar-restaurante,
conversando de modo
distraído e tranquilo. De
repente, chega um garçom à
mesa com duas taças de
martini, "Um 'cosmopolitan'
para o senhor", diz o garçom
pondo sobre a mesa um pedido
que pai e filha não haviam
requisitado, "e um 'sex on the
beach' para a moça. Cortesia
do homem à direita, no bar."
Gesto atrevido, mas ainda é
possível bufar sem estrondo e
seguir em frente; não fosse o
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
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bilhete deixado pelo abonador
desconhecido, vindo junto
com as taças: "Parabéns pelos
genes, velhote, a tua filha tem
saúde!"
Esse é o sentimento usual, de
algo impertinente, que sentem
os olavistas ante críticas
dirigidas à filosofia de Olavo
de Carvalho ou à linguagem
convencional do seu meio; isto
é, quando o crítico tem a sorte
de não se deparar com simples
indiferença ou desinteresse.
Dizem que Pierre Viret, um
colaborador de Calvino, foi
bem sucedido como
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
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missionário protestante pela
capacidade de infundir na sua
audiência sentimentos de
doçura. Eu desejaria que essa
fosse a minha posição
alcançável, no me dirigir
criticamente à filosofia
olavista. Lamentavelmente, o
crítico da filosofia olavista se
coloca na mesma posição de
certo personagem de filme,
vítima da conspiração de
gângsteres, homem que levou
para passear de carro uma
espiã se passando por
namorada, chamada
"Heroína"; ele um personagem
cujo porta-malas fora enchido
com a droga "heroína". O
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
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pobre homem se viu obrigado
a alegar, a policiais que o
pararam, que não estava
fazendo nada mais que levar a
Heroína para passear,
enquanto a sua "namorada"
dava no pé. Eu deixo ao leitor
julgar se é possível, em tais
circunstâncias, arrazoar com
sentimentos de doçura e
generosidade.
A tese central da minha crítica
à publicação de Ronald
Robson ("Conhecimento por
presença: em torno da filosofia
de Olavo de Carvalho") é a de
que o olavismo é uma pseudo-
iniciação, exatamente no
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
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sentido que o orientalista e
metafísico francês René
Guénon atribuiu a um
fenômeno como o teosofismo.
Importa, portanto, explicar o
que é a "pseudo-iniciação".
O principal discutidor
do assunto parece ter sido
René Guénon, mas o estudo
desse fenômeno foi de modo
similarmente formidável
empreendido pelo escritor
britânico J. R. R. Tolkien,
autor dO Senhor dos Anéis.
Guénon retrata a pseudo-
iniciação como um
"mecanicismo" que reduz os
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
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fenômenos terrestres a
"engrenagens" feitas por mãos
humanas; isso contrastando
com como no Livro de Daniel
a estátua do sonho do
Imperador Nabucodonosor
(esta um objeto "feito por
mãos" e potencial símbolo da
idolatria) é destruída por uma
rocha "não cortada por mão".
A "mão" significa tanto um ato
ou uma atividade, quanto um
ato especificamente criador. A
redução das coisas a
"engrenagens", ou à
"indústria", simboliza um ato
criador que se separa
usurpadoramente de uma
ordem ou processo "natural".
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Essa separação significa que
aquilo que é acidental se
separa do que é essencial
(embora essência e acidente
tenham um vínculo
subjacente), e ganha uma
espécie de ilusória aparência
auto-suficiente. Nessa analogia
o que é de criação humana
("feito por mãos") corresponde
ao acidente cujo vínculo com a
essência é obscurecido; o que
é de criação divina
correspondendo, de outro lado,
à essência que contém em si
todo acidente latente. Uma
expressão dessa separação é o
chamado "pensamento
metonímico" (que toma a parte
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
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pelo todo, o aspecto isolado
pelo fenômeno em si),
conforme bem descreve a
filosofia de Olavo de
Carvalho. Uma outra
expressão da separação entre
essência e acidente é o tema
bíblico da "árvore do fruto do
conhecimento do bem
[essência] e do mal
[acidente]".
O "Anel de Sauron", em O
Senhor dos Anéis, também
chamado "the one ring" ("o um
anel"); simboliza esse
fenômeno da pseudo-iniciação.
Simboliza a sombra de um
conhecimento (ou de uma
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
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tradição), sombra que
condensa em si os ecos desde
um vínculo subjacente com o
que é essencial e não sombrio;
mas esse vínculo foi de tal
modo afastado por um curso
degenerativo que restou
apenas um cadavérico
mausoléu onde outrora existira
um palácio real. O anel é um
objeto "feito por mãos",
forjado pelo ato criador de um
artífice, e adorna a "mão".
Assim, o fato de que a
narrativa do Sr. Tolkien fala a
respeito de o anel "ter uma
vontade própria", como um
ente vivo, de algum modo
reflete o tema apocalíptico da
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
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"imagem idolatrada da besta,
que ganha vida" (significando
o se deixar "encorajar e
vivificar" por aquilo que é
falto de "essência"), ou o tema
mitológico de Medusa, cujo
olhar torna as pessoas estátuas
(isto é, objetos "feitos por
mãos"); significando um efeito
hipnótico que torna as pessoas
sombras de si mesmas porque
refletidoras de uma forma
sombria ou "acidental" de
conhecimento; um efeito
hipnótico cuja expressão
política ou massificada é a
"obrigação de comprar e
vender com o sinal da besta"
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
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(a tirania vista desde um ponto
de vista espiritual).
O se tornar uma sombra de si
mesmo pelo impacto do
acidente separado da essência
("efeito-medusa") lembra o
preceito de etiqueta segundo o
qual "aquele que não sai do
lugar-comum [a Medusa
figurativa] força os outros a se
sentir míseros".
Antes de examinar o que o
fenômeno da pseudo-iniciação
significa mais detidamente,
talvez alguns exemplos
particulares ilustrem o assunto.
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
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Um primeiro exemplo é que o
fenômeno do "espiritismo" se
notabilizou por propor
narrativas sobre a vida no
"além", ou em outros
"planetas", que são
ofensivamente banais, como
meras sombras-repetições da
vida terrestre ordinária; dando
à impressão terrestre-ordinária
das coisas (acidente) a
aparência de algo que não
supõe um fundo mais
universal, ou um vínculo
subjacente com algo que
ultrapassa o ordinariamente
imaginável (esse "algo"
corresponde à essência).
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
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Esse mesmo padrão, no
espiritismo, se repete quando
os espíritas confundem a
noção dos resíduos psíquicos
imateriais de falecidos
(acidente), correspondendo ao
que os gregos antigos
chamavam de
"metempsicose"; com o
próprio "eu" de falecidos para
além da vida terrestre
(essência), correspondendo ao
que os gregos chamavam
"transmigração".
Um segundo exemplo é a
teologia de Gregório Palamas
(séc. XIV), prevalente entre
"ortodoxos orientais", segundo
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
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a qual a inteligência humana
tem acesso à "energia divina
incriada" (correspondendo à
manifestação e ao acidente),
mas não tem acesso à
"essência divina". A
valorização da manifestação
(acidente), em detrimento de
uma essência obscurecida, é
basicamente o principal traço
do existencialismo, de cuja
escola o marxismo é uma
espécie; assim restando tanto
mais compreensível a
incorporação do marxismo em
um país "ortodoxo" como a
Rússia. Ademais (e na esteira
disso), um pastor anglicano
chamado Gyordano
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
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Montenegro Brasilino deu-me
o parecer de que (na sua
opinião) a doutrina eucarística
calvinista, que supõe a
"presença espiritual" e não a
"presença real" de Cristo,
guarda uma "semelhança
estrutural" com a doutrina
palamista.
Há ainda o exemplo de certos
opinadores públicos soi-disant
tradicionalistas, os quais,
pressionados a admitir um
vínculo subjacente e
necessário entre dogma
(essência) e moral (acidente),
isto é, pressionados a admitir
que dogma e moral são termos
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
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relativos, como "pai" e "filho",
ou "grande" e "pequeno", ou
"agente" e "paciente", e,
portanto, mutuamente
prolongados um no outro
(porque necessariamente
sugerindo um o outro); negam
essa relação entre dogma e
moral de modo simples. Essa
relação entre "dogma" e
"moral", no entanto, não
apenas está dada na Carta a
Flaviano (Papa Leão I, ensino
"ex cathedra"), quando esta
fala das testemunhas terrestres
de 1 João 5:8 "sendo um"; em
particular o "espírito da
santificação" e a "água do
batismo" (o chamado
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
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"sacramento da fé"); mas está
dada no fato de as “três
testemunhas” ou princípios da
purificação religiosa (quais
descritos na epístola bíblica),
"espírito", "água" e "sangue",
corresponderem seguramente à
tripartição dos catecismos em
doutrina "dogmática",
"sacramental" e "moral".
Assim, existe entre o domínio
dogmático e o domínio moral
a mesma relação, um similar
paralelismo, que existe entre
um objeto e o seu reflexo no
espelho. O desvio dogmático
que separa da Igreja
corresponde a algum pecado; o
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
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pecado que separa da Igreja a
algum desvio dogmático. O
desvio dogmático em potência
que não separa da Igreja
("heresia material")
corresponde a uma condição
moral degenerativa ou ao
menos desvantajosa "em ato"
(ou "de imediato"), conquanto
secundária em importância,
por conta de uma inversão
analógica; como aquela pela
qual uma imagem no espelho
apresenta um dizer invertido.
Na mesma esteira, o desvio
moral em ato que não aparta
da Igreja corresponde a um
desvio dogmático "em
potência".
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
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A esse respeito é significativo
ou destacadamente inteligível
que; a moral seja um domínio
mais potencial que o domínio
dogmático; e tenha a moral um
seu aspecto comparativamente
"em ato" que é relativo a um
aspecto dogmático
comparativamente "em
potência". Isso sugere, note-se,
que essa simultaneidade de
"ato" e "potência" diz de uma
mesma coisa vista desde dois
planos distintos.
O paralelismo é intrincado,
mas suficientemente claro; a
relação entre os termos
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
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"dogma" e "moral" também,
adicionando subsidiariamente
à definição solene da Carta a
Flaviano.
Ora, o fato de que os
"tradicionalistas" que rejeitam
esse ensino infalível o façam,
tem certa continuidade com o
fato de que eles se indignem
com certas teses, baseados
precisamente na ideia da
autossuficiência e
independência da "impressão"
(acidente) em relação à
"concepção" (essência). Por
exemplo, se alguém disser aos
tais que os símbolos
maçônicos da régua e do
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
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compasso têm certa
continuidade doutrinal com as
noções católicas sobre o
batismo e sobre a função do
batismo (qual indicado no fato
de que o batismo também
supõe um simbolismo
geométrico, por exemplo
presente nos batistérios
tradicionais em forma
octogonal etc.), os
"tradicionalistas" vão
estereotípica ou
provavelmente tomar essa
afirmação como herética. A
maçonaria manipula de muitos
modos noções cristãs, incluso
por ser uma tradição ocidental,
notoriamente tomando o motif
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
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da ordem monástica dos
Templários, entre outros. Qual
é, pois, a diferença específica
(em termos de ocasião para
ofensa) entre, de um lado, se
indignar que alguém alegue
que a maçonaria discute uma
doutrina sacramental de modo
mais ou menos direto; e, de
outro, se indignar que alguém
alegue que os protestantes
(que não são católicos)
discutem uma doutrina
sacramental? E se alguém se
indigna com a primeira
alegação, e não a segunda,
essa diferença ocorre em
função do que, senão da
impressão ou do sentimento
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
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(acidente), em detrimento da
concepção (essência), assim
negando a "acidente" e
"essência" um vínculo
subjacente, e mesmo
confundindo de modo idólatra
o que é "feito por mãos"
(acidente) com o que não é
(essência)?
Isso permite perceber por
que o vínculo entre fé e moral
é negado: o hábito
existencialista de separar e
negar o vínculo subjacente
entre acidente e essência é tão
arraigado entre alguns que
pedir para se o deixar de fazer
em um caso particular soa no
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
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mais alto grau como uma
indiscrição, se é que o pedido
soa de todo compreensível.
O obscurecimento pseudo-
iniciático do vínculo entre
essência e acidente se
manifesta amplamente.
Por exemplo, no feminismo
(mesmo primitivo), porque
sucede que a situação a que se
endereçou Mary
Wollstonecraft criticamente
(Inglaterra do séc. XVIII) não
supunha uma intervenção
"comissivo-tirânica" da classe
masculina sobre a classe
feminina, mas, ao contrário;
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
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supunha uma espécie de
abandono e não cultivação; e a
autora parece mais se ressentir
(em certos pontos),
inadvertidamente, do papel
degenerativo, vazio e sombrio
que as mulheres haviam
assumido (acidente e "efeito-
medusa"), do que de alguma
formulação pedagógica
abundantemente administrada
e impingida às mulheres
(essência); sendo significativo,
a esse respeito, a tese de ares
aristotélicos segundo a qual a
tirania consiste precisamente
em tentar disfarçar o se estar
de mãos vazias. A solução
feminista histórica parece ter
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
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sido tornar as mulheres mais
parecidas com os homens (o
que inclui o desenvolvimento
feminista mais recente da
promoção indiscriminada do
lesbianismo), desembocando
corroborativamente na
ideologia identitária
contemporânea, que faz das
mulheres, dos negros etc.,
desde o seu tratamento
midiático, pouco mais do que
"personas" políticas e lugares-
comuns em forma humana.
Algo análogo se passa com a
crítica que certos opinadores
fazem da Igreja Pós-Concílio
Vaticano II, por exemplo o
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documentário "Scandal in the
Vatican"; o qual conclui dos
escândalos de abuso sexual e
pedofilia pelos clérigos pós-
conciliares; não que se deveria
voltar a uma moralidade sadia
tradicional, e sim que a vida
celibatária e casta é inviável, e
os clérigos devem tomar
esposas para não se tornar
desviantes. A solução para a
falta da vida consagrada
(essência) é aboli-la de vez
para que ela não desemboque
nos escândalos (acidente).
Entre os exemplos destacados
está o terem os conservadores
dos Estados Unidos da
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América erigido a "liberdade",
sobretudo religiosa (acidente),
quando menos como lema
ordinário, à condição de
supremo valor político ou
concernente à promoção do
bem comum (essência); o que
forçosamente anatematiza o
catolicismo "de facto" e
naturalmente tende a o alijar
de qualquer respeitabilidade
secular íntegra,
comprometendo a sua
liberdade de existir; já que o
catolicismo supõe a
anatematização de todas as
religiões não católicas, e
portanto a desaprovação
secular de todas elas; porque
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
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no catolicismo não é possível
tomar a "moralidade natural"
(acidente) como substituidora
suficiente da profissão
dogmática (essência); motivo
pelo qual Santo Tomás de
Aquino, em comentário a
Romanos 2:14, critica como de
ares pelagianos (ou heréticos)
a ideia hoje usual de que São
Paulo fala de um gentio
seguindo a "lei natural"
salvífica sem a conversão.
Propõe Santo Tomás, no lugar
disso, a ideia de que São Paulo
simplesmente fala de um
gentio recém-convertido,
socorrido pelas graças da
Igreja na apreensão suficiente
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
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do que leva à salvação. O
“catolicismo permitido”
(alheio às controvérsias
teológicas trazidas por
tradicionalistas como os
Irmãos Dimond com retidão),
em conclusão, é apenas um
catolicismo "feito por mãos".
Talvez o exemplo atual mais
emblemático do
obscurecimento do vínculo
entre essência e acidente seja a
tendência da New Age,
expressa em um estudioso
famoso (e prestigioso) como
Graham Hancock, de estudar
sítios arqueológicos; como se
a posse dos resíduos de
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
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civilizações antigas (acidente)
fosse uma gratificação da alma
suficiente ou representasse um
substituto suficiente (enquanto
gratificação) da reconstituição
de tais civilizações (essência).
Esse abrir mão de uma
gratificação intelectual, em
prol de uma gratificação
relativa a um efeito psíquico, é
propriamente o que se pode
chamar "xamanismo"; e
sucede que o Sr. Hancock é
conhecido ativista em favor do
benefício de ritos literalmente
administrados por xamãs, os
quais ritos incluem a ingestão
de substâncias alucinógenas.
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
36
O que essas tendências de
modo geral assinalam é
precisamente um estado de
"decomposição" civilizacional,
no qual se tem acesso apenas
ao que é acidental, a "ruínas
arqueológicas".
É disso que fala o monólogo
inicial do filme "O Senhor dos
Anéis", dito pela personagem
elfa (os elfos representam as
pessoas contemplativas ou
dedicadas à intelecção),
Galadriel: "O mundo está
mudado. Eu sinto-o na água.
Eu sinto-o na terra. Eu cheiro-
o no ar. Muito do que havia
está perdido, porque ninguém
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
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agora vive que o lembra." São
palavras que assombram.
Na tradição hindu o "olfato"
não se associa ao elemento
natural do ar, mas sim à água.
É o "tato" que naturalmente
guarda uma associação
simbólico-metafísica com o
"ar". A água (olfato)
corresponde, no simbolismo
hindu dos cinco elementos, ao
domínio da atividade
econômica (enquanto o ar
corresponde ao domínio da
"atividade contemplativa"),
atividade econômica que tem
como um dos aspectos
principais ser relativo ao
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
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midiático ou público. Ao
alegar, pois, que fareja “no ar”
(não sente com o tato) o
obscurecimento do que fora
conhecido, Galadriel sugere
que a percepção do que é
próprio da vida contemplativa
passou a ser acirradamente
mais dependente do que
subsiste como exterioridade ou
cristalização midiática residual
(acidente), em oposição ao que
subsiste como conhecimento
carregado e não potencial
(essência).
Eu observei que o
obscurecimento do vínculo
entre essência e acidente se
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
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expressa na dualidade do fruto
do conhecimento do bem e do
mal, o fruto proibido no
paraíso. Ora, quando Adão e
Eva provaram o fruto os seus
olhos foram abertos e eles
perceberam a si mesmos como
nus, por isso eles coseram
folhas de figueira e fizeram
para si aventais (versão bíblica
Douay-Rheims). O "avental"
sugere uma atividade ou
indústria (acidente), além de
ser um objeto "feito por
mãos". O "fruto proibido" é a
separação dual do que estava
unido na "árvore da vida", a
saber, essência e acidente. O
fruto sagrado corresponde ao
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
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"figo"; de modo que os
aventais com folhas de
figueira são uma continuação
acidental do figo.
Essência e acidente
correspondem a "ato" e
"potência", ou "ápice" e
"gestação"; os quais por sua
vez correspondem a
"masculino" e "feminino". A
separação entre essência e
acidente, assim,
desembocando no abrir de
olhos que alertou para a
própria nudez, significa
também que Adão e Eva
perceberam a condição
sexuada de um modo mais
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
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pejorativo, sem a percepção
imediata de uma unidade
subjacente entre o masculino e
o feminino. Os aventais
suavizam isso, e são um meio
de sugerir a condição não
decaída. Essa diferença entre
ver algo desde um ponto de
vista mais elevado, e ver desde
um ponto de vista mais
decaído, corresponde, por
exemplo, ao fato de que um
mesmo termo, "plenitude",
pode significar "inteireza", de
um lado, e "copiosidade", do
outro. O primeiro é um sentido
mais qualitativo e "interno", o
segundo um sentido mais
quantitativo e "externo". Essa
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
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mesma dualidade se expressa
na passagem bíblica sobre o
"jovem rico" que possuía
muitas virtudes (copiosidade)
mas se recusou a ver a unidade
subjacente entre elas e a
pobreza (inteireza ou
plenitude).
Se os aventais cobrem o que
torna cada sexo separado, de
certo modo isso sugere que o
"figo" é precisamente aquilo
que é coberto, porque deixou
de ser "uno". A palavra "figo"
guarda uma conotação
etimológica de "órgão sexual
feminino" (e portanto, de
"órgão sexual sem
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
43
qualificação"), por isso a
palavra de origem grega
"sicofanta" significa,
etimologicamente, "aquele que
faz um gesto indecente de dar
uma figa".
O ponto é que a unidade
subjacente entre essência e
acidente passou a ter de ser
intermediada por aquilo que é
"feito por mãos", algo
acidental, e o se gratificar com
o que pertence a essa unidade
passou a supor um esforço
("suor da fronte", Gênesis
3:19).
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
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Assim, embora aquilo que é
"feito por mãos" suponha uma
condição degenerativa ou
decaída, não supõe, entretanto,
algo inequivocamente
maligno. Com efeito, aquilo
que é "feito por mãos"
corresponde ao "domínio
psíquico", que é propriamente
o que o batismo na água
simboliza. Os
sacramentários recomendam
que o padre marque (com um
sopro) a água preparada para o
batismo com a letra grega
"psi" (Ψ – ψ), donde vem
"psique". O batismo ("água" e
avental) faz a
intermediação entre o mundo
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
45
terreno ou sensível ("sangue" e
folha de figueira) e o mundo
celeste ou suprassensível
("espírito" e figo); por isso
"espírito", "água" e "sangue"
(1 João 5:8) são princípios do
testemunho, ou são
"testemunhas".
Ora, sucede que as chamadas
"duas testemunhas
apocalípticas" que profetizam
durante a hegemonia secular
da "Grande Cidade"
apocalíptica, correspondem a
"espírito" (que se associa ao
domínio suprassensível) e
"sangue" (que se associa ao
domínio sensível). O terceiro
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
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termo ("água") corresponde à
própria Grande Cidade, a
explicação disso requerendo
certo recuo.
A Grande Cidade, também
descrita como "a Meretriz
Babilônia sentada sobre a
besta", possui dois nomes,
"Sodoma" e "Egito". Esses
nomes degenerativos sugerem
expressões degeneradas,
respectivamente; do papel do
sacerdote, que deveria buscar
uma gratificação intelectual
elevada, e do papel do nobre,
que deveria disponibilizar uma
gratificação intelectual
elevada; porque, por assim
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
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dizer, enquanto o
sacerdote entende, o nobre se
faz entender. Sodoma e Egito,
assim, são imagens sombrias
ou acidentais do "espírito"
(sacerdote) e do "sangue"
(nobre), um par que também
correspondem a "luz" e
"calor".
Existe uma outra
correspondência dos dois
nomes da Grande Cidade, a
saber, "pseudo-iniciação"
(Sodoma), que é uma forma
pejorativa ou falsa de
gratificação sagrada; e
"contra-iniciação" (Egito), que
é a negação máxima de toda
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
48
pretensão a uma gratificação
sagrada, isto é, se trata dum
"ceticismo" (análogo ao do
faraó de Êxodo) boicotador de
todo princípio, que por isso
mesmo permanece mais
discreto em relação ao olhar
público do que a "pseudo-
iniciação". O psiquiatra
Andrew Lobaczewski
acidentalmente topou com
essas duas categorias
(propostas por René Guénon),
no livro "Ponerologia:
Psicopatas no Poder", já que a
pseudo-iniciação (Sodoma)
guarda certa correspondência
com o "colaborador histérico"
da "patocracia" (o governo
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
49
patológico); enquanto a
contra-iniciação (Egito)
guarda certa correspondência
com o "psicopata". Existe algo
de tenebroso e temível na
filosofia política do Dr.
Lobaczewski justamente
porque ele enxerga esses
agentes da patocracia não
como fenômenos cósmicos,
que têm um papel sagrado a
desempenhar na ordem total
das coisas, embora se
associem a uma destacada
desordem desde um ponto de
vista mais baixo; a promoção
da exclusividade deste ponto
de vista inferior sendo
basicamente um modelo do
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
50
efeito que esses agentes
maléficos intencionam
produzir. No caso, tomar um
fenômeno cósmico por um
fenômeno sobretudo
psiquiátrico-político (a política
aí entendida em um sentido
não religioso), é precisamente
uma expressão do tomar o que
é acidental em um sentido que
supõe o obscurecimento do
vínculo entre acidente e
essência. Para falar de modo
figurativo ou analógico,
quando o Dr. Lobaczewski vê
os agentes patocratas ele vê
"fantasmas" ou "aparições"
hipnóticos (metempsicose)
sem um vínculo subjacente
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
51
com o "eu" dos falecidos
(transmigração). A
ponerologia,
consequentemente, é uma
expressão da hegemonia
existencialista ou pseudo-
iniciática no mundo
contemporâneo. Esta última
afirmação não significa,
entretanto, que o próprio Dr.
Lobaczewski se enquadre na
condição precisa de
"colaborador histérico", uma
vez que entre o domínio do
conhecimento cosmológico e o
domínio ponerológico (isto é,
psiquiátrico-político) há uma
correspondência, não uma
coincidência; o primeiro
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
52
domínio compreende e
ultrapassa o segundo.
Tampouco é a minha intenção
negar ao Dr. Lobaczewski e à
sua pesquisa cheia de
sacrifícios um mérito fora do
comum.
As categorias da "pseudo-
iniciação" (Sodoma) e da
"contra-iniciação" (Egito),
também correspondem,
respectivamente, ao tema das
"duas torres", em O Senhor
dos Aneis, a saber, "a torre de
Isengard" e "a torre de
Mordor".
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
53
O fato de que a Grande Cidade
é una com dois nomes, e as
testemunhas são não apenas
distintas conceitualmente, mas
também apartadas
substancialmente, significa um
contexto em que não é
possível dar ao mundo secular
uma feição sadia estável por
conta da necessidade
premente, por conta de uma
tensão ou divisão entre o
inteligível ("espírito" e
concepção) e o ininteligível
("sangue" e impressão). Essa
tensão é uma gestação e
desvelamento cujo freio ou
cuja rejeição desemboca
precisamente na auto-
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
54
indulgência da Meretriz
(Grande Cidade), a qual julga
que pode descansar desse
esforço mesmo sentada sobre
as instáveis "muitas águas" (a
"besta") que terminam por
ressentidamente mortificá-
la (essa mortificação
representa o efeito dissipativo
natural de retorno contra a
coesão intelectual de fachada,
pretendida). As duas
testemunhas são o tormento
dos "habitantes da terra"
porque elas assinalam que
concepção e impressão,
essência e acidente, são
distintos e também
substancialmente apartados,
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
55
em vez de substancialmente
idênticos; ou,
consequentemente, em vez de
assinaladores de uma
estabilidade externa. Essa
realidade é uma expressão
figurativa do dizer evangélico
"O meu reino não é deste
mundo" (João 18:36).
A Grande Cidade é o alívio
dos habitantes da terra porque
ela alega que concepção e
impressão, ou essência e
acidente, são o mesmo, isto é,
se está em uma condição
paradisíaca. A Grande Cidade
representa a auto-indulgência
existencialista em favor do
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
56
acidental como substituto
suficiente do essencial, as duas
testemunhas representam a
mortificação e confissão da
precariedade do "acidente"
(qual significado pelas
testemunhas se vestirem com
panos de sacos), elas
representam a necessidade do
contínuo desvelar do elo
subjacente entre acidente e
essência; esforço esse que
requer uma instabilidade no
domínio secular, ou das
aparências, que parece
excessivamente pesado aos
"habitantes da terra".
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
57
A relação entre a Grande
Cidade e as duas testemunhas
é um tanto mais intrincada do
que até aqui referido. Sucede
que as duas testemunhas são o
princípio movente da Grande
Cidade, assim como a essência
é o princípio do acidente,
assim como a ortodoxia é (de
certo modo) o princípio da
heterodoxia. De outro lado, é o
desvio contínuo da Grande
Cidade que dá às testemunhas
matéria sombria ou acidental
com que desvelar um fundo
concepcional. O que ocorre
entre as duas testemunhas e a
Grande Cidade é uma "dança
da morte". Um dos sentidos
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
58
que subjazem ao motif
artístico-alegórico da "dança
da morte", durante o Outono
da Idade Média, talvez seja
precisamente este: o caráter
degenerativo ou relativo a uma
instabilidade secular, daquele
período, assinalando um fundo
sagrado, uma ordem
subjacente.
As duas testemunhas operam
"na barriga da besta" (uma
alusão ao profeta Jonas), como
São Pedro e São Paulo atuam
desde a "Babilônia" (1 Pedro
5:13), a saber, Roma Pagã. A
besta apocalíptica representa a
pretensão da suficiência da
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
59
impressão ou instinto
(acidente), em detrimento da
concepção ou intelecção
(essência). O resultado da
"dança da morte" é que a
atuação das testemunhas,
mesmo "divididas",
desemboca na suficiente
concentração concepcional.
Para melhor explicar a ideia do
que motiva a contínua
concentração concepcional, ou
para fins de metáfora: o
Patriarca Santo Atanásio de
Alexandria foi acusado numa
corte judicial, pelo partido da
heresia ariana (séc. IV), de
haver matado um clérigo
chamado Arsênio, e Atanásio
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
60
também foi acusado de ter
realizado feitiçarias com a
mão do cadáver. Quando
Atanásio conseguiu apresentar
diante da corte o homem, vivo
e bem, que Atanásio teria
supostamente assassinado, a
reação dos arianos não foi dar
o braço a torcer; mas se diz
que os seus acusadores
alegaram com intensa
indignação que Atanásio,
sendo um feiticeiro, havia
ressurreto Arsênio por meio de
bruxaria. Esse é o tipo de
acusação pela qual as pessoas
não costumam esperar; e
equivale ao que em inglês se
chama "double down", "o
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
61
dobro ou nada". Em vez de
desistir de propor a
coincidência substancial entre
"concepção" e "impressão", a
Grande Cidade, similarmente,
aumenta a aposta contra as
duas testemunhas toda vez,
como um viciado em jogo,
forçando as duas testemunhas
a continuar a se esforçar por
servir de oposição à Grande
Cidade.
O sentimento de admiração
ante essa ousadia da Grande
Cidade corresponde ao
"espanto" hipnótico que a
Meretriz Apocalíptica
(Apocalipse 17:6), ou a besta,
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
62
incitam nas pessoas. Essa é a
mesma admiração que o "anel
de Sauron" incita no seu
portador, um fascínio ante uma
demonstração de poder, poder
de um tipo tanto mais sedutor
quanto mais apartado em
aparência de um vínculo
subjacente com o que "não é
feito por mãos". Essa
admiração, ou os agentes que
se associam a ela, representam
os "xamãs" substituindo o
clérigo na arena pública. A
esse respeito o exemplo do
partido contrário a Atanásio é
particularmente feliz, porque o
"xamã" se notabiliza por
produzir um efeito, em
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
63
detrimento de transmitir um
conhecimento. O que lhe falta
em substância, é compensado
por suas faculdades teatrais,
que podem incluir a
capacidade de se indignar e
alegadamente se bater pela
verdade e a justiça com
comoventes apelos. O xamã
não é insincero no sentido
ordinário da palavra.
Ao chegar no limite da
concentração concepcional (ao
fim do período de cerca de três
anos e meio, metade de sete,
este um número que indica
"completude" e que é dividido
em paralelismo com as
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
64
testemunhas) as duas
testemunhas morrem e jazem
sobre as ruas da Grande
Cidade durante cerca de três
dias e meio. Esse paralelo dos
períodos significa que aquelas
concepções acumuladas pelas
testemunhas durante a sua
pregação são injetadas, de
modo condensado, na cidade;
durante a exposição dos seus
corpos mortos; como o grão de
trigo que precisa morrer para
dar muito fruto (João 12:25).
A morte das testemunhas
significa que não é necessário
mais elas procurarem uma
unidade subjacente entre
impressão e concepção; isso,
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
65
ao mesmo tempo que as faz
semelhantes e incorporáveis à
Cidade, num primeiro
momento, também significa
que existe um limite depois do
qual a aposta da Grande
Cidade não pode ser renovada,
como um apostador que
perdesse tudo após apostar
todas as fichas em um lance
infeliz.
A décima parte da Grande
Cidade cai ou desmorona no
terremoto (Apocalipse 11:13)
como expressão dessa
incompletude no seu se
manifestar (só é possível
"blefar" até certo ponto), após
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
66
a ressurreição das
testemunhas; porque o número
"dez" representa completude
no domínio da manifestação.
As duas testemunhas, uma vez
ressurretas ou alçadas ao plano
celeste, se tornam finalmente
distintas e simultaneamente
partícipes da mesma
substância suprassensível. Isso
permite que a Grande Cidade
se torne a "terceira
testemunha" terrestre a fazer
com que os "habitantes da
terra" temam e deem glória a
Deus, a saber, a "água", o
domínio psíquico que serve de
intermediário entre o domínio
concepcional ou
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
67
suprassensível ("espírito") e o
domínio da impressão ou
sensível ("sangue").
Tudo que é "feito por mãos",
como a Cidade associada às
muitas águas, pode
corresponder ao domínio
psíquico. Também a água,
como visto. A Grande Cidade,
portanto, é uma expressão do
domínio psíquico mais
"acidental" do que "natural",
ou cujo vínculo subjacente
com a essência foi mais
profundamente obscurecido.
Assim, é a influência de fator
"natural", o terremoto, que
restabelece esse vínculo.
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
68
Um outro ponto é que a
influência das testemunhas
sobre os "habitantes da terra"
após a sua ressurreição
significa que, desde que uma
pessoa tenha passado pela
concentração concepcional de
modo suficiente, qualquer
matéria particular pode ser
usada comunicativamente
como meio de se expressar
plenamente. Por exemplo, há
coisas valiosas e de efeito
avassalador que são
comunicadas de modo sutil e a
despeito da aparência vulgar, a
despeito do conteúdo ordinário
na sua superfície. Isso é uma
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
69
das coisas que significa a luta
vitoriosa de Sansão usando
apenas uma queixada de
jumento, contra mil filisteus
(essa metáfora é sugerida na
bula papal "Mira Circa Nos",
1228 A.D., que canonizou São
Francisco de Assis). Alguns
santos católicos profetizaram a
respeito do "Grande
Monarca", um líder cristão que
no final dos tempos restaurará
a cristandade no mundo todo
desde uma situação de
apostasia quase universal; esse
fenômeno guardando nítida
relação com o presente
assunto. Ademais, essa
profecia, pela pena de São
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
70
Luiz Montfort, fala a respeito
de um papel destacado da
atuação da Virgem Maria, que
tem o título de "Cidade
Mística de Deus". A Virgem
Maria, sob o aspecto de ser um
instrumento humilde, que por
isso mesmo tanto mais
expressa a glória divina,
guarda certa correspondência
com a queixada de jumento.
Essas considerações, a respeito
de cuja extensividade eu peço
desculpas, não apenas
expressam o fenômeno da
"pseudo-iniciação", como
também expressam a sua
necessidade, isto é; expressam
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
71
como o aspecto acidental do
real pode se destacar, e como
tem de se destacar em relação
ao que é essencial na esteira de
ser o que é. Assim, a pseudo-
iniciação não é um fenômeno
inequivocamente maligno,
como o número da besta
também não é (666, um
número triangular que
enquanto tal expressa o auge e
também o encerramento
cíclico da própria
degeneração). Ele significa o
crescimento do domínio
psíquico ou a multiplicidade
sem centro ou sem um vínculo
subjacente aparente com o
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
72
"essencial", significa as
"muitas águas".
Diante do fenômeno da
"abominação da desolação"
(Mateus 24), que é um nome
para a pseudo-iniciação, é dito
por Cristo que os que estão na
Judeia devem fugir para as
montanhas; o que está no
telhado não deve descer para
tomar o que quer que seja da
casa; e o que está no campo
não deve voltar para tomar o
seu casaco. Esses três objetos,
"Judeia", "casa" e "casaco",
correspondem ao domínio
psíquico, são objetos "feitos
por mãos"; mas em diferentes
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
73
escalas. Isso sugere diferentes
expressões de uma mesma
degeneração ou decomposição
do que é relativo ao domínio
psíquico, desde aquilo que é
menos inteligível porque mais
complexo e abrangente
("Judeia") até aquilo que é
mais grosseiro, familiar e
direto ("casaco"). Todos esses
objetos "feitos por mãos" estão
infectados e exigem "apartar",
quando da ascensão
degenerativa da Grande
Cidade. O lamento por aqueles
que estiverem carregando
criança (gestação) quando
desses dias de fuga; significa,
em parte, que a pessoa cujo
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
74
esforço de receber a
transmissão religiosa (o
esforço das duas testemunhas)
estiver ainda muito incipiente,
vai ter esse esforço tanto mais
vulnerável e posto em perigo
pelos apelos hipnóticos da
Grande Cidade. Aquele cuja
fuga "se dá no sábado" parece
ser o indivíduo imerso na
circunstância de mais
enganoso "descanso e
estabilidade" ou "completude"
(o sábado é o sétimo dia);
aquele cuja fuga se dá "no
inverno" parece ser o
indivíduo imerso na
circunstância de sutileza
máxima da degeneração.
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
75
Essas observações sobre a
pseudo-iniciação, assim,
bastem como sugestão do
assunto.
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
76
Capítulo II - Olavo de
Carvalho e o tema do
expletivo
Na tarefa de demonstrar a
minha tese sobre a filosofia
olavista me parece útil
mencionar que, meses antes da
publicação do livro do Sr.
Ronald Robson (e do meu
conhecer a imagem da capa do
livro), eu havia escrito e
publicado um texto crítico ao
"Elementos da filosofia de
Olavo de Carvalho" (Ronald
Robson); e nesse texto eu
mencionara que a filosofia
olavista se associa ao
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
77
simbolismo do "mar noturno".
Tanto a "luz lunar" quanto o
"mar noturno" são expressões
acidentais ou indiretas do sol
(porque o mar noturno se diz
que acumula de modo máximo
o calor solar). A luz lunar
representa o domínio
"racional-cerebral", o mar
noturno o domínio das
sensações ou dos sentidos.
Coincidentemente, o livro de
Ronald Robson tem na capa,
conforme descobri surpreso,
precisamente a imagem de um
mar em um período
crepuscular ou no princípio da
noite.
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
78
Com o simbolismo, que é a
realidade mesma, a
realidade mesma se diz.
Consequentemente, pode
parecer quase vão dizer
qualquer coisa, se o efeito é
confirmar o que é sempre
confirmado. Por exemplo, e
semelhantemente ao caso da
capa do livro: eu publicara um
texto explicando que o papado
é um fenômeno "aquático", na
esteira de considerações como
as que constam mais acima,
significando uma
intermediação psíquica e
central ("Cidade Sagrada")
como o batismo. Alguém me
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
79
perguntou se ao dizer isso eu
me baseara em Santo
Antônio de Pádua, um
franciscano e doutor que
dissera exatamente a mesma
coisa sobre o papado. A
resposta foi "não", eu não
tinha a menor ideia de tal
coincidência.
O símbolo está impresso nas
coisas. Mas é necessário sair
da posse "instintiva" dos
símbolos para uma posse mais
consciente, em particular no
caso presente.
Ora, um sinal simbólico
significativo a respeito da
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
80
filosofia de Olavo de Carvalho
se expressa por meio de certa
tendência ao "instinto", como
oposto à "consciência", no
lidar eticamente com o que é
expletivo. Por exemplo, na
página 30 de "Conhecimento
por presença" diz o autor
(Ronald Robson): "Entre a
visão divina própria do
demônio e a cegueira
demoníaca inerente a Deus, o
ser humano vacila em meio à
ausência às vezes fria, às vezes
morna, que o separa do ideal e
ao mesmo tempo o anuncia."
Um expletivo é uma palavra
na qual a definição ordinária, o
conteúdo semântico principal,
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
81
"vai para a reserva", por assim
dizer, é trocado (sem deixar de
ser sugerido como sombra) por
uma definição acidental.
Assim, quando se diz
"Macacos me mordam!",
"macacos" é aí expletivo,
porque a definição ordinária
de "macaco" não é o que se
quer dizer.
O Sr. Robson usou o vocábulo
"Deus" como expletivo nessa
passagem; mais significativo
ainda, o uso expletivo desse
nome sagrado é a primeira
menção a Deus em todo o
livro, tornando a intenção
expletiva tanto mais enfática.
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
82
A doutrina católica proíbe que
se faça isso (essa é a violação
do Segundo Mandamento);
qual visto, por exemplo, em
que um autor renomado de
doutrina moral, o Frei Luiz de
Granada, expressa esse
Mandamento na fórmula
segundo a qual o nome
sagrado deve ser usado
"apenas com devoção e
afeição".
Não é a minha intenção; seja
corroborar essa última
observação com fontes ou
autoridades (que existem sem
escassez); seja transformar o
presente estudo em uma
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
83
pregação ordinária; a intenção
é, antes, examinar por que
estas duas possibilidades estão
fadadas, desde a probabilidade
aparente, ao absoluto fracasso
em convencer ou demover o
meio olavista, para não falar
do próprio Olavo de Carvalho.
O fracasso provável delas não
é aparente senão em um
sentido "instintivo".
Para desenvolver o assunto é
preciso falar do que é o
"expletivo" considerado em si
mesmo. Ele pode ser
considerado a expressão
linguística do acidente se
destacando em relação à
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
84
essência, ou se distanciando da
essência. Como nos festivais
carnavalescos da antiguidade,
em que se tratava de "inverter"
a ordem "natural" das coisas
de modo extraordinário,
substituindo a natureza por
aquilo "feito por mãos", qual
simbolizado pelas "máscaras"
que são feitas pela mão. A
linguagem expletiva tem algo
a respeito de si que é
carnavalesco e uma exploração
"extraordinária" da linguagem.
Não se pode viver em um
contínuo e ordinário carnaval;
também, uma pessoa não
consegue se comunicar apenas
por meio de expletivos,
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
85
embora nas tiranias a
linguagem expletiva cresça de
modo extraordinário para que
a linguagem não sirva para
condenar a má conduta do
tirano (essa sugestão está
suficiente na Política, de
Aristóteles).
Acaso essas considerações
significam, por exemplo, que o
palavrão (um expletivo por
definição) é sempre
inadequado? Ora, se o
expletivo guarda paralelismo
com a situação carnavalesca, a
qual acontece a despeito de ser
extraordinária, dizer que o
palavrão não tem legitimidade
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
86
para se incorporar à linguagem
seria o mesmo que julgar que a
qualidade "carnavalesca" não
pode ser descrita ou sugerida
de maneira nenhuma. Estar
imerso em uma situação
carnavalesca sem ser capaz de
a expressar verbalmente
sugere uma situação de
prevalência das duas noções
de Bruno Tolentino (que são
propriedades da tirania),
"mundo como ideia"
(correspondendo ao auto-
engano ou à superstição) e
"mundo como rapto"
(correspondendo a um
sentimentalismo ou
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
87
obscurecimento acirrador do
"aqui e agora").
Se pode dizer que assim como
o coser os aventais "feitos por
mão", da parte de Adão e Eva,
lhes propiciou o amenizar a
sensação de "mundo como
rapto" da própria nudez,
trazendo como contrapeso a
insuficiência do avental em
restaurar a condição anterior à
Queda (isso corresponde a
"mundo como ideia"); o uso de
palavrão pode em algumas
situações (a título de
resistência primitiva ou
incipiente) amenizar a
sensação da dualidade "mundo
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
88
como ideia" e "mundo como
rapto", que são dois lados da
mesma moeda. Por exemplo,
no filme "Anaconda 2 - A
Caçada Pela Orquídea
Sangrenta" (2004), cujo motif
ofídio baste para sugerir a
história edênica; o capitão do
navio que transporta os
cientistas-pesquisadores pela
selva, Bill Johnson (um
veterano militar), tem ele de
alojar essas pessoas no seu
barco velho e de pouco valor.
Além disso, tem ele de ceder o
próprio quarto a uma
pesquisadora destacadamente
atraente (essa qualidade dela o
próprio filme destaca)
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
89
chamada Sam Rogers. A
situação é carnavalesca: o
Capitão Johnson tem de correr
riscos extraordinários por uma
rota perigosa
(vulnerabilidade); tem de
acomodar estranhos, de modo
que ele não sabe bem o que
esperar deles
(vulnerabilidade); e tem de
ceder o próprio quarto a uma
mulher atraente
(vulnerabilidade), nisso
necessariamente precipitando
uma familiaridade com pessoa
do sexo oposto
(vulnerabilidade) que vai
continuamente constatar os
traços furrecas do seu navio
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
90
sem confortos
(vulnerabilidade). A
vulnerabilidade alheia é
indecente (ou pode ser
associada de algum modo ao
indecente), porque precipita no
sentimento excessivo de poder
sobre o outro, e o poder se
associa à gratificação
excessiva.
"Compreensivelmente", a
reação do Capitão Johnson foi
expressar a situação com um
expletivo ou palavrão
carregado do se ressentir ele
da situação, quando ele diz a
Sam Rogers "Se você precisar
de alguma coisa... azar o seu!"
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
91
("If you need anything...
you're shit out of luck!").
Essa grosseria parece não ter
uma razão de ser, a princípio,
e sem dúvida supõe um mal
sentimento que deve ser
evitado, mas se pode
argumentar que, ao sugerir o
embaraço da situação, o
expletivo cristalizou a
possibilidade de refletir sobre
a situação desde uma posição
menos confusa. O expletivo
não é uma explicação pronta e
acabada, ou suficiente, mas ele
cria a possibilidade de um
recuo, conquanto
degeneradamente, em relação
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
92
a uma condição degenerada;
como a Grande Cidade
colabora a seu modo com as
duas testemunhas. Mateus
18:7: "Ai do mundo por causa
de escândalos. Porque é
necessário que escândalos
venham: mas de todo modo ai
daquele homem pelo qual o
escândalo vem."
Aí está, de algum modo, a
chave para entender por que a
reação olavista previsível à
admoestação sobre o Segundo
Mandamento é provavelmente
infrutífera: os nomes sagrados,
bem como o Mandamento
(que é ele próprio sagrado),
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
93
são tomados como termos
expletivos, não como termos
ordinários. A distância normal,
ou a perspectiva normal, entre
o termo ordinário e o termo
expletivo, foram obscurecidas;
de modo que o esforço por
superar essa condição
degenerativa, desde o ponto de
vista olavista, só pode ser
confuso e incipiente, só pode
estar amparado de impressões
primitivas.
O Sr. Robson não sugere de
modo suficiente a consciência
de que a linguagem que ele
usa supõe uma condição
política tirânica, uma condição
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
94
acidental e não ordinária, de
modo que ele não percebe em
que medida a sua linguagem
exemplifica como funcionam
as categorias de "mundo como
ideia" e "mundo como rapto";
exatamente como o súdito de
uma tirania não percebe como
é não viver em uma tirania.
A "expletivação" da
linguagem sagrada, que é por
sinal uma propriedade da
tirania, torna a linguagem
sagrada um corpo de "lugares
comuns" que tornam as
pessoas "míseras" ou
"estátuas" (efeito-medusa),
correspondendo à obrigação de
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
95
ter a marca da besta para
"comprar e vender". A lógica
interna do discurso olavista
toma por ordinário um
"contínuo carnaval".
Aqui não se trata de atribuir
essa condição degenerativa ao
meio social olavista apenas, e
não à sociedade
contemporânea de modo geral;
se trata apenas de notar a
expressão disso na teoria
olavista.
René Guénon fala de como
autores espíritas não
conseguem distinguir entre o
"imaginável" (correspondendo
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
96
ao sensível) e o "concebível"
(correspondendo ao
suprassensível), em livros
espíritas em que se descreve a
vida em outros "planetas" e
"dimensões". As formas
"alienígenas" de vida são
apenas variações, de duvidosa
criatividade, do modo de vida
terrestre, banal. Assim, os
espíritas não parecem
conseguir conceber ou admitir
a possibilidade de seres vivos
cujo modo de ser não é
contínuo com a percepção
humana ordinária, seres vivos
hipotéticos, por exemplo, que
não perceberíamos como seres
vivos se topássemos com eles,
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
97
ou cujo modo de ser fosse tão
estranho ao modo humano de
apreender que seria impossível
notá-los.
Isso tudo é análogo a como no
olavismo o dogma é
apreendido. É como se o
dogma fosse um ser vivente
cujo modo de ser é tão
estranho ao modo olavista de
apreender, que os dois cruzam
caminho sem a percepção
correspondente, "and none is
the wiser".
O que o Sr. Robson chama "a
visão divina própria do
demônio e a cegueira
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
98
demoníaca inerente a Deus"
guarda correspondência,
respectivamente, com as
categorias de Bruno Tolentino,
"mundo como ideia" e "mundo
como rapto".
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
99
Capítulo III - Um estudo
teológico da teoria dos quatro
discursos
Diz o Sr. Robson (página 100,
"Conhecimento por
presença"): "(...) a vontade,
livre, necessita perceber a
distância entre norma abstrata
e a situação concreta
específica, e as mediações
entre uma e outra, tão sutis e
de uma variedade que dá boa
imagem do que seja o infinito,
jamais acharão plena
expressão em códigos de lei
escrita. Quando uma pessoa
passa a acreditar que tudo que
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
100
tem de fazer para ser livre e
boa é cumprir uma série de
regras prescritivas, está morta
e acabada em sua vontade, é
escrava de um Outro que
promete benevolência e
equanimidade, mas serve
apenas embotamento de
consciência."
Essa tensão entre "verdade" e
"vontade" guarda também
certa correspondência com a
dualidade ou bifurcação de
Bruno Tolentino, a saber,
"mundo como ideia e mundo
como rapto". Na página 64 diz
o Sr. Robson: "Essa
processão [da consciência do
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
101
homem por estágios de
personalidade cada vez mais
elevados] necessita de um
motor: é a vontade, a vontade
que afirma a verdade,
precisamente porque a verdade
independe da vontade."
Nesse caso "verdade" e
"vontade" correspondem,
respectivamente, a "luz lunar"
e "mar noturno". Existe um
hiato entre esses dois aspectos
da natureza, embora ambos se
diz que reflitam algo do sol; a
lua a luz fria ou reflexa, o mar
o calor acumulado. Enquanto a
"verdade" é "imóvel" (luz
lunar), a "vontade" se move
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
102
em tentativa corroboração da
verdade (mar noturno).
A independência entre
"verdade" e "vontade" é
sugerida pelo Sr. Robson
como paralela,
respectivamente, ao hiato entre
"norma abstrata" e "situação
concreta específica"; o
primeiro par sendo o aspecto
"essencial", o segundo o
aspecto "substancial" da
questão. Isso pode ser indicado
de modo simbólico: "verdade"
e "vontade" (polo essencial)
correspondem a "luz lunar" e
"calor do mar noturno",
enquanto "norma abstrata" e
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
103
"situação concreta específica"
(polo substancial)
correspondem a "lua separada
da luz" e "mar noturno
separado do calor". A
dificuldade que ele examina
em se fazer uma intermediação
entre "verdade" e "vontade",
ou "norma abstrata" e
"situação concreta", também
corresponde à oposição que
ele irá mais tarde notar e
rejeitar (página 193) entre
"idealismo" ("inflação" do
sujeito) e "realismo"
("inflação" do objeto) quais
defendidos modernamente. No
par "verdade" e "vontade", o
elemento subjetivo
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
104
corresponde à vontade, o
elemento objetivo à verdade.
No par "norma abstrata" e
"situação concreta" o elemento
subjetivo corresponde à norma
abstrata, o elemento objetivo à
situação concreta. No primeiro
par (verdade e vontade) o Sr.
Robson sugere a predileção
pela atuação do sujeito
(vontade). No segundo par
(norma abstrata e situação
concreta específica) o Sr.
Robson sugere a predileção
pela atuação do objeto
(situação concreta).
Consequentemente, a sua
própria formulação descritiva
inicial (os dois pares iniciais),
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
105
com o respectivo problema da
dificuldade de uma
intermediação, sugere certa
afinidade com os pontos de
vista que mais adiante ele há
de retratar como supersticiosos
("idealismo" e "realismo")
associáveis a uma oposição
carecedora de uma
intermediação devida. Essa
afinidade não demonstra um
erro ou contradição da parte
dele, mas é um sinal retórico
de uma resolução por se
endereçar a um assunto
primeiro desde o aspecto
acidental ou "expletivo", desde
a impressão.
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
106
Uma maneira de exemplificar
isso de modo mais palpável é
com dois exemplos, em
relação ao Segundo
Mandamento. O primeiro eu
tomo do opinador público
chamado "Conde Loppeux",
mas não no sentido de sugerir
que ele fale pelo meio olavista
(afinal, se eu não posso bancar
o Pierre Viret, que ao menos
eu não irrite as pessoas como o
cafajeste do bar). O segundo
de um aluno de Olavo de
Carvalho, o Sr. Jelcimar
Rouver Júnior.
Quando eu expliquei ao
"Conde Loppeux" que, de
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
107
acordo com o Catecismo de
Baltimore (um manual usado
nos EUA pela Igreja Romana),
o Segundo Mandamento
impõe a proibição de se usar o
nome de Deus ou de coisas
sagradas para expressar
surpresa ou raiva; por conta de
um mal entendido (por não
achar a fonte etc.), ele
primeiro concluiu da citação
por mim dada que eu a tinha
inventado pura e
simplesmente. Quando ele
eventualmente percebeu que a
citação era verídica, e
contrastando com a reação
inicial de incredulidade
suscitada, ele basicamente
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
108
propôs que a proibição vale
para os Estados Unidos
apenas, e seguramente diz
respeito às peculiaridades
linguísticas daquele país.
Assim, ele tomou o meu
entendimento como um mau
cálculo (nas palavras de
Ronald Robson) da "distância
entre norma abstrata e a
situação concreta específica",
e como uma admissão de
"regras prescritivas"
desembocando em uma forma
de "escravidão" e
"embotamento".
Em paralelismo a isso, o Sr.
Jelcimar, verossimilmente
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
109
tomando como contexto certa
discussão de texto meu, propôs
a ideia de que o uso de
palavrões parece adequado ao
meio brasileiro por causa do
sensualismo vulgar reinante, a
saber, o palavrão na linguagem
brasileira dissipa certa
inconsistência existencial,
certa afetação. A discussão a
respeito tem a ver com a tese
(por mim traga) de que a
etiqueta guarda certa
continuidade com o preceito
religioso, por exemplo porque
tanto a religião quanto a
etiqueta têm por efeito visado
a assunção de
"respeitabilidade" ou "glória"
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
110
(não no sentido de vaidade, e
sim em um sentido mais
elevado). Consequentemente,
a discussão do palavrão, a
respeito de etiqueta, deveria
ser discussão relativa (como a
religião) ao que independe de
tempo e lugar. A resposta do
Sr. Jelcimar a essa abordagem,
como visto, foi paralela a do
Conde Loppeux: fazer o
preceito descer ao que
depende de tempo e lugar.
Essa abordagem em relação a
preceitos ou normas abstratas
consiste precisamente em
"começar pelo acidental". Se
trata de um método, o qual é
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
111
cristalizado na Teoria dos
Quatro Discursos. De acordo
com essa teoria do filósofo
Olavo de Carvalho, atribuída a
Aristóteles; conforme o Sr.
Robson elabora; a ordem da
sucessão dos discursos
acompanha uma crescente
escala de credibilidade, do
discurso poético ao discurso
analítico, passando pelos
discursos retórico e dialético.
Também, a formulação
cognitivo-cultural, de um dado
ou fenômeno, primeiro se
apresenta como "fantasia" ou
"possibilidade" (poesia);
depois como verossimilhança
ou apelo retórico (retórica);
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
112
depois como superposição de
proposições desveladora de
um objeto complexo na ordem
do conhecer (dialética); por
fim, como exposição
demonstrativa transparente
(lógica).
Dessa teoria decorre a
constatação de que o Segundo
Mandamento é visto de modo
"expletivo" (em vez de uma
norma imediatamente
obrigante); desde a expectativa
ordinária; porque é visto como
"fantasia" ou "mera
possibilidade". Sugerir a um
olavista a imediata admissão e
aplicação desse preceito, por
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
113
meio de uma citação doutrinal;
soa tão extravagante quanto
alegar que você é um príncipe
dinamarquês chamado Hamlet
e as pessoas o tratam como
maluco por causa de uma
atmosfera tirânica e de
perigosa intriga política.
Existe certo aspecto do
fenômeno da linguagem
expletiva que é, como já
sugerido, a simultaneidade
correlativa entre "impressão"
(correspondendo a "mundo
como ideia") e "sentimento"
(correspondendo a "mundo
como rapto"). O orientalista
Sir John Woodroffe, usando
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
114
uma linguagem kantiana,
chama essa experiência de
"impressão sem concepção".
Na linguagem expletiva (por
exemplo, "Se você precisar de
alguma coisa... azar o seu!") o
aspecto eidético é primitivo ou
insuficiente demais para ser
associado a uma concepção no
sentido ordinário. Em outras
palavras, na linguagem
expletiva não se sabe direito o
que se está dizendo. Isso
corresponde à superstição de
"mundo como ideia"; às
tendências pejorativas logico-
matematizantes de autores
excêntricos como Otto
Weininger (qual o Sr. Robson
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
115
discute em detalhe); e ao
caráter de obstáculo relativo
que o transcendentalismo de
Edmund Husserl atribui aos
"dados objetivos", que são
precisamente o que Sir
Woodroffe chamaria
"impressões sem concepção".
Parece, na esteira disso, que
discurso poético e discurso
analítico (ou lógico),
correspondem,
respectivamente, a "mundo
como rapto" e "mundo como
ideia". Isso é visto no fato de a
filosofia de Olavo de Carvalho
associar o discurso analítico,
por excelência (na prática), ao
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
116
hiato e àquilo de restrito
alcance. É essa, inclusive,
matéria para certa "disputa"
entre Olavo e o Sr. Robson,
em que o último parece se
bater um pouco mais pela
utilidade ou valor do estudo
lógico.
O caráter inicial do discurso
poético (na sua
correspondência com a
inermedade da experiência de
"mundo como rapto") pode ser
ilustrado pelo sentimento de
Olavo no escrito "O trauma da
emergência da razão", citado
pelo Sr. Robson: "Nunca
estamos perfeitamente
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
117
adequados à razão; ela nunca é
adequada para compreender
nenhum caso singular. E muito
menos o nosso. A razão é a
cruz que o homem carrega."
O discurso poético é
correlativo com o discurso
analítico, assim como "mundo
como rapto" e "mundo como
ideia" são correlativos, duas
faces da mesma moeda. Isso
não significa que o discurso
poético e o discurso analítico
sejam equivalentes, quais
presentemente entendidos,
porque, como Olavo de
Carvalho bem explica, eles
têm finalidades distintas. De
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
118
outro lado, porque o discurso
analítico, desde o ponto de
vista olavista, é sempre
caracterizado como carregado,
na prática, de um hiato e de
uma insuficiência ou restrição
(que são acidentais à certeza
lógica enquanto tal); esse
aspecto tem necessariamente
de acometer o discurso
poético, ainda que isso
aconteça de uma maneira
analógica, como oposta a uma
maneira coincidente. Nos dois
casos se trata de que os
discursos se carregam
marginalmente (isto é, em
parte) de uma "impressão sem
concepção", ou se
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
119
caracterizam marginalmente
por um vazio concepcional.
Ora, se o vazio concepcional
está dado no próprio discurso
de base que fundamenta as
possibilidades exploradas por
toda a progressão crescente; e
se está dado por definição;
todo o esquema da progressão
supõe um caráter pejorativo ou
insuficiente; e esse caráter,
sendo associável à cultura; tem
de ser associável à tirania, que
é o vazio concepcional
expresso no domínio político-
cultural. A teoria dos quatro
discursos é uma justificação ex
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
120
post facto de uma condição
civilizacional tirânica.
Na progressão dos discursos a
dupla "discurso poético" e
"discurso lógico" guarda certa
correspondência com a dupla
"discurso retórico" e "discurso
dialético"; em que a noção de
"mundo como ideia"
corresponde a "discurso
lógico" e a "discurso retórico";
enquanto a noção de "mundo
como rapto" corresponde a
"discurso poético" e a
"discurso dialético". Tanto no
discurso retórico quanto no
discurso lógico se fixa
proposições ou afirmações;
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
121
enquanto nos discursos poético
e dialético se trata
(comparativamente) de aceitar
o contato com o sombrio, com
o mistério não ainda
desvelado. A distinção aqui é
aquela entre coagulação
(retórica e lógica) e dissolução
(poética e dialética). Na
filosofia olavista a dupla
"retórica" e "dialética" (em
contraste com a dupla
"poética" e "lógica")
representaria o centro ou o
hotspot da atividade filosófica.
E, com efeito, é na
manipulação desses dois
discursos ("retórica" e
"dialética") que a filosofia
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
122
olavista parece mais
"acordada" e exerce com
melhor desempenho o que o
seu "tour de force" tem a
oferecer. Consequentemente, o
paralelismo advindo das
noções de coagulação e
dissolução, que é atribuído aos
pares de discursos, sugere que
a poética e a lógica são
tomadas com sombras da
retórica e da dialética, são
periféricas, sob o ponto de
vista da gratificação
intelectual.
O próprio escrito do Sr.
Robson, que tem inegável
charme, ilustra isso ("tour de
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
123
force") de modo tão palpável e
suficiente, que não é
necessário insistir nisso muito
mais. Entretanto, sucede que a
relação analógica entre os dois
pares de discurso possui uma
correspondência no
simbolismo da Grande Cidade
Apocalíptica. O livro sagrado
(Apocalipse) diz que a
meretriz se veste de púrpura e
escarlata. A cor púrpura
combina o azul (que simboliza
calma, estabilidade) com o
arder e a ferocidade da
escarlata. Assim, o par
"retórica-dialética"
corresponde à cor púrpura, o
par "poética-lógica" à cor
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
124
escarlata; no primeiro caso se
trata do polo mais
estabilizador da dispersão ou
degeneração, no segundo caso
se trata do polo mais acirrador
da dispersão ou degeneração.
Se trata de algo análogo à
"tática das tesouras",
empregada e notabilizada pela
política comunista, em que se
apresenta duas opções, um
conflito interno dentro do
movimento com dois partidos
ou vertentes em aparente
oposição (por exemplo, como
quando o ditador comunista da
Albânia, Enver Hoxha,
escreveu um livro chamado "O
eurocomunismo é
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
125
anticomunismo") para melhor
baixar a guarda do inimigo
ocidental e fazer que este se
alie a uma das vertentes.
O polo "retórica-dialética" na
sua exploração exuberante de
concepções "em ato", cria a
aparência de um equilíbrio e
contrapeso oposto ao polo
"poética-lógica". Entretanto,
por mais que as concepções
filosoficamente exploradas por
esse contrapeso sejam reais,
elas são, como visto,
necessariamente insuficientes.
Mais do que isso: a tensão
entre os polos, porque supõe
uma insuficiência; se expressa
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
126
na realidade por meio da
promoção de uma inversão
carnavalesca.
A cor púrpura corresponde
àquele aspecto de uma
atmosfera tirânica em que a
impressão está maximamente
preenchida de concepção
(embora o preenchimento seja
insuficiente), a cor escarlata
corresponde ao aspecto da
atmosfera tirânica em que a
impressão está maximamente
esvaziada de concepção. Por
exemplo, o filme "O Senhor
dos Aneis" corresponde à cor
púrpura, i.e. o fundo
concepcional que supõe é
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
127
insuficientemente
compreendido pela maioria; o
filme "Deadpool" corresponde
à cor escarlata. No primeiro
caso o apreender e pressentir
do fundo concepcional
envolvido tranquiliza e
estabiliza (correspondendo ao
"azul" da cor púrpura), a
insuficiência no desvelamento
desse fundo significa uma
deficiência marginal desse
efeito (correspondendo ao
vermelho da cor púrpura); ao
passo que em um filme como
"Deadpool", que é
francamente indecente, se trata
de se desviar maximamente do
que é tranquilizador ou
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
128
estabilizador (escarlata). Como
a tirania não pode viver apenas
de carnaval, o elemento
púrpuro é precisamente aquilo
que sustenta e dá
"respeitabilidade" à cor
escarlata.
Em "O Senhor dos Aneis"
(que corresponde
alegoricamente, para fins do
meu argumento, ao polo
"retórico-dialético") o fundo
concepcional estabilizador é
velado por um "rearranjo
grotesco-ficcional" de seres ou
objetos materiais, por um
simbolismo; que ao mesmo
tempo esconde e revela o
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
129
conteúdo de fundo. Em
"Deadpool" (que corresponde,
para fins do meu argumento,
ao polo "poético-lógico") a
ausência concepcional
desestabilizadora é velada por
um "rearranjo grotesco-
ficcional" não de seres ou
objetos materiais, mas de
emoções; por exemplo,
colocando o desespero de
modo expletivo-carnavalesco
como mais ordinário do que
que a esperança e a
consolação; e esse efeito é
reforçado ou tornado
verossímil precisamente pela
técnica de "breaking the fourth
wall", isto é, pelo reconhecer
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
130
explicitamente que a trama e
os seus seres materiais são
fictícios e convenções vazias.
O rearranjo grotesco-ficcional
das emoções não se expressa
apenas em filmes, também se
expressa em eventos como o
carnaval, ou como a guerra
(além de movimentos políticos
como o comunismo). Por
exemplo, o historiador
britânico Paul Johnson cita no
seu livro "Modern Times"
(1983) que ao início da
Primeira Guerra Mundial um
número considerável de jovens
europeus se sentia
entusiasmado e encorajado
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
131
pela oportunidade de participar
do conflito, como se fosse uma
forma de diversão; porque a
escala e a enormidade dos
eventos pareciam uma
exploração de possibilidades
fascinante. Essa emoção é um
exemplo de rearranjo grotesco-
ficcional das emoções, e supõe
translucidamente o
ressentimento contra o vazio
de concepções ou
possibilidades, na alma.
Segundo certas sugestões de
René Guénon, e certas
sugestões corânicas, a respeito
do islã, esta religião se baseia
precisamente em uma
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
132
mitigação (como oposta a uma
dissipação) do jogo entre o
púrpura e a escarlata; porque
se baseia na separação enfática
entre exoterismo (mundo
como rapto) e esoterismo
(mundo como ideia); o que
desemboca necessariamente,
conquanto mitigadamente, no
rearranjo grotesco-ficcional
das emoções.
O ponto é que as proezas
intelectuais do Sr. Robson, do
filósofo Olavo de Carvalho, do
olavismo de modo geral, por
definição nunca são suficientes
para dissipar um efeito
marginal ou residual do
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
133
rearranjo grotesco-ficcional
das emoções (que supõe a
valorização da impressão em
detrimento da concepção).
O que está na origem da
Teoria dos Quatro Discursos
qual formulada por Olavo de
Carvalho, é a premissa de que
a "impressão" principia de
algum modo a concepção. Isso
corresponde à tese proto-
marxista ou neoplatônica,
descrita por Leszek
Kolakowski; de que o mundo
criado (a "natureza",
correspondendo à impressão)
foi feito para servir de
princípio, ou de princípio
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
134
aperfeiçoador, da própria
divindade (correspondendo à
concepção). Essa premissa é
sugerida quando o Sr. Robson
diz que os filósofos gregos,
posteriores ao período da
formulação dos mitos
fundadores gregos, "criaram
uma nova forma de explicar
algo da realidade". Não ocorre
ao Sr. Robson (ou, me parece,
ao próprio Olavo de Carvalho)
discutir ou examinar a tese
guenoniana de que o período
histórico da formulação e
disseminação dos mitos gregos
supunha de algum modo todas
as noções dos filósofos
posteriores, e era um período
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
135
intelectualmente mais rico e
interessante do que o período
posterior, não apenas sob o
aspecto da impressão ou de um
discurso poético em que se
visa a que a possibilidade
explorada seja, primariamente,
tão só possibilidade. A ideia
de que a "impressão vem
primeiro", depois "vem a
concepção", também está
dada em um autor bem
conhecido e influente no meio
olavista, a saber, Eric
Voegelin, o qual propunha o
ponto de vista das
"civilizações cosmológicas"
(em que a distinção entre
impressão e concepção é
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
136
obscurecida em um sentido
pejorativo) como "primitivo",
e não uma degeneração
posterior. Ora, esse é o mote
do existencialismo moderno
("a existência precede a
essência"), embora seja
aparentemente improvável que
o Sr. Robson se possa ver
inclinado a notar com
apreensão como isso é
estruturalmente insinuado no
seu dizer "Os Evangelhos são
narrativas; a teologia são
descrições (...) a verdade, nós
sempre a conhecemos como
uma narrativa; explicá-la - que
pena - só o podemos fazer com
descrições mais e mais
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
137
abstratas." Aqui não se trata de
propor que para o Sr. Robson
o discurso poético não se
carrega por definição de
concepções tomadas como
tais, mas sim de propor que
para ele o processo com que
uma concepção se cristaliza
supõe necessariamente uma
"tão-só possibilidade (ou
impressão) prévia à
concepção".
Essas considerações tornam
um tanto mais embaraçoso
que, conforme o Sr. Robson
nota (citando Olavo de
Carvalho), para Santo Tomás
de Aquino os quatro discursos
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
138
são ordenados conforme "o
sentido unilateral de uma
hierarquia descendente que vai
do mais certo (analítico) ao
mais incerto (poético)", dando
a entender que "da Tópica
[discurso dialético] 'para
baixo', estamos lidando apenas
com progressivas formas do
erro ou pelo menos do
conhecimento deficiente". Em
outras palavras, Santo Tomás
(que segundo o Sr. Robson
teria apreendido "um tanto
mal" a unidade dos discursos)
inverte em 180 graus o sentido
da progressão olavista dos
discursos; do que se pode
inquirir: "Acaso Santo Tomás
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
139
consideraria a Teoria dos
Quatro Discursos uma
inversão carnavalesca?"
Ora, a Teoria dos Quatro
Discursos tem certa relação
com o tema dos "ciclos
cósmicos", por exemplo
porque a progressão dos
discursos se expressa em
certos desenvolvimentos
históricos, e há épocas e
lugares mais centrados em um
discurso em detrimento do
outro, conforme o Sr. Robson
explica.
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
140
Olavo de Carvalho, entretanto,
se opõe à existência dos ciclos,
como é bem sabido.
Na teoria dos ciclos, qual
exposta por René Guénon, um
sinal da razão de ser dos ciclos
é que na origem dos
desenvolvimentos no "mundo
terrestre" está a intervenção ou
atuação de um personagem
sagrado chamado "o Rei do
Mundo"; indicado em
diferentes tradições (como o
hinduísmo); inclusive no
judaísmo e no cristianismo. No
judaísmo é o "Melquisedeque,
rei de Salém". No
cristianismo, o Rei-Mago
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
141
Melquior, que presenteia o
Messias quando do nascimento
dEste em Belém. No
Comentário de Santo Tomás
de Aquino à Epístola aos
Hebreus, a respeito do dizer de
São Paulo sobre a "ordem
[sacerdotal] de
Melquisedeque"; Santo Tomás
reconhece e discute por que
Melquisedeque se destaca de
modo extraordinário na
narrativa de Gênese, a saber,
porque Melquisedeque não é
introduzido com referência ao
seu pai ou número de anos.
Hebreus 7:3: "Sem pai, sem
mãe, sem genealogia, não
tendo nem começo de dias
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
142
nem fim de vida, mas
assemelhado ao Filho de Deus,
continua sacerdote para
sempre". Isso sugere que
Melquisedeque transmitia
orientação, sem jamais receber
de outrem ou de um pai. Santo
Tomás reconhece de algum
modo o fundo de mistério por
trás da linguagem paulina, ao
asseverar ser uma heresia
confundir Melquisedeque com
o próprio Verbo Divino (o
Filho, na Santíssima
Trindade). Se trata, portanto,
conforme a fórmula
guenoniana, mais alusiva do
que estrita, de que o rei do
mundo é uma expressão
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
143
cósmica do princípio divino,
sendo por isso mesmo
diferente do princípio divino
enquanto tal. Não é possível
entender ou definir o "rei do
mundo" de modo análogo a
como não é possível entender
ou definir "Deus"; ou,
conversivelmente, não é
possível ser o pai do rei do
mundo, lhe transmitir
conhecimento ou bênção, de
modo análogo a como é
impossível "criar Deus". Por
isso Abraão foi abençoado por
Melquisedeque, em vez de o
abençoar, e pagou dízimo a
Melquisedeque.
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
144
A "criação da divindade",
sugerida na tese proto-
marxista ou neoplatônica
supramencionada, guarda
correspondência,
consequentemente, com a
pretensão de "atuar como um
pai para o rei do mundo". E é
precisamente isso que ocorre
quando se ordena os discursos
partindo da "impressão" para
se chegar à "concepção". O rei
do mundo transmitiu o
conhecimento na ordem
tomista do mais certo para o
mais incerto, porque no
conhecimento dele a distinção
entre concepção e impressão
não supunha uma separação
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
145
substancial destacada, de
modo análogo a como as
pessoas divinas são distintas
(ou "diferentes quanto à
categoria da relação",
conforme a fórmula
agostiniana) mas a substância
delas é exatamente a mesma.
Isso também corresponde ao
fato de que, para São Paulo,
Melquisedeque é
"assemelhado ao Filho de
Deus", o Verbo ou Logos
Divino. Ora, o termo "Logos"
sugere, etimologicamente,
tanto "vocábulo"
(correspondendo à impressão),
quanto "termo"
(correspondendo à concepção)
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
146
unidos por um vínculo
essencial.
Esse ponto de vista
cosmológico ou relativo a
desenvolvimentos históricos se
relaciona à Teoria dos Quatro
Discursos. É possível se
perguntar se a tese de Olavo
de Carvalho, de acordo com a
qual o ápice da revelação
religiosa na história
(cristianismo) pôde acontecer
em qualquer momento, pôde
acontecer em um ponto
indeterminado "no meio"
como expressão da liberdade
divina; se essa tese tem certa
correspondência estrutural
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
147
com a progressão dos
discursos, uma progressão na
qual o ponto mais "quente"
(em termos da obtenção
filosófica da concepção) é
precisamente "no meio" (do
discurso retórico para o
discurso dialético), um ponto
caracterizado pela
indeterminação ou por uma
qualidade residualmente
"errática".
O assunto pode ser melhor
esclarecido se à ordem dos
discursos dada por Olavo de
Carvalho for sobreposta a
ordem dos mistérios do
rosário. Os cinco "mistérios
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
148
gozosos", compreendendo
eventos da juventude de Jesus,
correspondem ao discurso
poético e, em parte, ao
discurso retórico. Os cinco
"mistérios dolorosos",
compreendendo eventos da
Paixão, correspondem ao
discurso retórico e dialético.
Os cinco "mistérios gloriosos",
compreendendo a ressurreição
de Jesus até a coroação de
Maria no céu, correspondem
ao discurso dialético e lógico.
Essa tripartição também
corresponde a "doutrina
sacramental" (mistérios
gozosos e poética-retórica),
"doutrina moral" (mistérios
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
149
dolorosos e retórica-dialética),
"doutrina teológica" (mistérios
gloriosos e dialética-lógica). O
que essa correspondência
significa é que o início da
"iniciação não carnavalesca"
se associa aos sacramentos,
porque os sacramentos são
uma intermediação entre moral
("impressão" e costume) e
dogma ("concepção" e
profissão de fé), condensando
as duas coisas antes de certa
"expansão ulterior". Os
sacramentos são,
simultaneamente, não
sucessivamente, poesia e apelo
retórico, porque
simultaneamente abrem
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
150
possibilidade e estabelecem
normas com justificação
suficiente. A doutrina moral é
simultaneamente, não
sucessivamente, apelo
retórico-normativo e
sobreposição dialética de
impressões, estas com um
fundo concepcional
marginalmente potencial (não
imediato). A doutrina
dogmática é simultaneamente,
não sucessivamente, um tecido
de teses sobrepostas
marginalmente obscuras
(dialética), e uma arquitetura
de proposições luminosas cuja
admissão e profissão imediatas
constituem uma gratificação
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
151
intelectual real e não
meramente potencial (lógica).
Assim, do discurso poético ao
discurso lógico não acontece
uma "aquisição consciente de
concepção desde a impressão",
mas uma espécie de expansão
predicativa desde um corpo
condensado de concepções e
impressões não bifurcadas
umas em relação às outras.
Isso pode ser visto em que a
salvação, de acordo com a
teologia tomista, se baseia em
uma antecipação terrena
suficiente de concepções do
mundo celeste, e com o
batismo sacramental mesmo
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
152
bebês pequenos podem ser
salvos pelo efeito antecipativo,
de acordo com o dogma
católico. Por exemplo, como
visto no "Decreto do Papa São
Sirício a Himério" (385 A.D.),
documento ex cathedra, que
fala a respeito do batismo
como um "socorro" para esses
bebês, caso estejam em risco
de morte. Também, a tradição
cristã fala a respeito de bebês
batizados como vestindo "o
hábito (veste 'feita por mãos')
da fé", e é impossível atribuir
à fé o ter na concepção um
acidente, não uma
propriedade. O aspecto
“hábito” corresponde à
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
153
impressão, o aspecto “fé” à
concepção.
Há certa significativa
observação constante do livro
"Aristóteles em nova
perspectiva" (citada pelo Sr.
Robson): "o discurso humano
é uma potência única, que se
atualiza de quatro maneiras
diversas: a poética, a retórica,
a dialética e a analítica
(lógica)." Desde essa
observação, que pode ser
expressa com a ideia de que,
em um sentido subjacente, os
quatro discursos "são um"; há
um sinal mais de que os quatro
discursos correspondem a
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
154
"espírito" (dogma), "água"
(sacramento) e "sangue"
(moral), uma vez que os três
"são um" (1 João 5:8).
Existem outras
correspondências relativas à
Teoria dos Quatro Discursos.
A primeira é a
correspondência entre os
quatro discursos e as "quatro
criaturas viventes" de
Apocalipse 4:6. A segunda é
entre os quatro discursos e os
"quatro impérios" (de ouro,
prata, bronze e ferro)
expressos na alegoria da
Estátua de Nabucodonosor
(Daniel 2:38). A terceira, que é
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
155
uma variação das demais, é a
correspondência dos quatro
discursos com as quatro castas
sociais, a saber, sacerdote,
nobre, "comerciante" e servo.
As criaturas viventes se
apresentam na seguinte ordem:
leão, bezerro, homem, águia.
O leão é um simbolismo do
centro, ou um símbolo solar, o
que sugere que ele concentra
(numa correspondência)
"concepção" e "impressão". O
bezerro conota,
etimologicamente, tanto a
ideia de inatividade quanto a
ideia de dilatação/crescimento,
o que pode ser visto como um
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
156
prolongamento do simbolismo
real, por exemplo em que
desde a "cadeira" ou "trono"
na qual o rei se senta, o poder
dele se dilata ou se estende (o
rei é um "inamovível
movente"). O homem é uma
sugestão tanto de uma
expressão reflexa, "cerebral"
ou "lunar", da "intuição solar",
quanto do centro (o
inamovível movente divino),
porque é feito "à própria
imagem" de Deus (Gênese
1:27). A águia também é um
simbolismo solar, como René
Guénon observa; mas é,
complementarmente, algo que
conota "segredo", e um olhar
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
157
penetrante desvelador do
mistério; porque, como dito no
evangelho a título de promessa
da acessibilidade eventual da
salvação aos eleitos, "onde
quer que o corpo esteja, lá as
águias também estarão
reunidas juntas." (Mateus
24:28).
É possível notar que a
progressão dos animais
corresponde à progressão
anterior, desde os mistérios
gozosos aos mistérios
gloriosos.
Quando as criaturas viventes
são contrastadas com os quatro
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
158
impérios ou partes da estátua
(cuja cabeça é de ouro, os
braços e peito são de prata, as
coxas de bronze, as pernas de
ferro, os pés de ferro
misturado a barro); se nota, em
primeiro lugar; que o contraste
das criaturas com a estátua
corresponde à distinção entre
"coisas não feitas por mãos" e
"coisas feitas por mãos", a
saber, essência e acidente.
Assim, o contraste é também
aquele entre "ordem do ser" e
"ordem do conhecer".
A cabeça de ouro corresponde
ao Imperador Nabucodonosor
(segundo o profeta Daniel), em
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
159
cujas mãos repousam os
pássaros do céu. As mãos
correspondem à impressão (ao
acidental), os pássaros à
concepção. Essa dualidade
simultânea e condensada
perfaz o discurso poético.
Depois vem o império de
prata, que Daniel diz que é
"inferior". Significa essa
inferioridade um afastamento
da concepção, mas a
simultânea possibilidade de
resistir ao esvaziamento com o
apelo ou esforço dos "braços"
(que correspondem à ação ou
ao acidente), o discurso
retórico se notabilizando
precisamente pelo apelo. O
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
160
bronze simboliza não mais
uma univocidade (metálica),
mas uma liga metálica, ou ao
menos, por uma restrição
etimológica, uma liga metálica
possível. No bronze o
princípio mais escuro, ou
cobre, se esconde no estanho,
que é mais claro, assim como
no discurso dialético a
extensividade da sobreposição
de impressões de superfície
guarda uma continuidade mais
universal, oculta
marginalmente pela mistura da
liga. O bronze "há de governar
sobre todo o mundo", segundo
Daniel, em correspondência
com a expansão ou
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
161
extensividade própria do
discurso dialético. Nas pernas
de ferro a distinção entre cobre
(oculto) e estanho (externo) dá
lugar a uma uniformidade
cheia de hiatos, como visto
nos pés terem ferro misturado
a argila. O hiato é significado
tanto por essa
descontinuidade, quanto pela
propriedade das pernas de
"saltar"; que é precisamente
correspondente aos saltos
lógicos inevitáveis; e a
tendência inferior lógico-
matematizante que o Sr.
Robson descreve corresponde
à posição inferior das pernas
no corpo. A uniformidade e o
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
162
hiato simultâneos expressam o
discurso lógico.
Na correspondência entre isso
e as castas sociais: o sacerdote
é aquele que disponibiliza a
obra divina (pássaro e
concepção) por mãos humanas
(impressão); o nobre é aquele
cuja ação visa a remediar uma
situação degenerativa, e que
portanto deseja, apela ou ora
por uma correção; o
comerciante ou agente
econômico é aquele que se
dirige ao mundo
midiaticamente ou expande a
sua elaboração prévia
concepcional mais secreta em
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
163
colaboração com o mundo; o
servo é aquele que obedece
justamente porque outrem
preenche para si o hiato da sua
fórmula concepcional
compreensível. As quatro
castas, adicionalmente,
correspondem aos "Quatro
Cavaleiros do Apocalipse".
Essas correspondências
permitem explicar que os
quatro discursos têm, cada um,
uma expressão mais elevada e
uma expressão mais
pejorativa. A expressão
elevada do discurso poético se
expressa nos sacramentos
recebidos com piedade. O
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
164
discurso poético também se
expressa pela função
sacerdotal (a "Ordem de
Melquisedeque"). A expressão
pejorativa do discurso poético
se expressa pelo jogo duplo
dos arranjos grotesco-
ficcionais, isto é, as cores
púrpura e escarlata da Meretriz
Apocalíptica.
A expressão elevada da
retórica, na Teoria dos Quatro
Discursos, é mais ordinária em
aparência do que a expressão
elevada da poética;
provavelmente pela
cristalização secular da noção
pejorativa de "sofística", que
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
165
implica automaticamente um
contraste, incluso entre o
orador filosófico e o sofista.
Há que se atentar, entretanto,
que para Aristóteles a dialética
é um ramo da retórica, e que
isso por sua vez sugere que
esta última é, desde certo
ponto de vista, não apenas a
predecessora da dialética, mas
o seu princípio ordenador. A
expressão elevada da retórica é
a profissão religiosa, incluso
porque, conforme Aristóteles
sugere, é um ponto de vista
insuficiente no estudo da
retórica o desviar-se das
proposições e teses
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
166
particulares que orientam a
expectativa humana.
A expressão elevada da
dialética figura de modo
particularmente claro no seu
contraste com sua expressão
pejorativa. O contraste entre a
exuberância econômica, de um
lado, e a exuberância jurídica
(que sugere prolixidade
tirânica), de outro; demonstra
do que se trata; e essas duas
exuberâncias, por sua vez,
guardam certa
correspondência,
respectivamente, com os
caminhos “estreito e largo" do
evangelho.
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
167
A expressão elevada da lógica,
como oposta à sua expressão
pejorativa, está, de certo
modo, no efeito do
transcendentalismo
husserliano em transfigurar a
impressão em concepção,
abrindo uma fenda na
impressão (pelo exame
detido); o que corresponde à
"rocha cortada de uma
montanha sem mãos" (Daniel
2:34) que quebra os pés de
ferro misturado a barro, da
estátua de Nabucodonosor, e
com isso todo o resto da
estátua é quebrado. Isso
significa a demonstração que
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
168
jorra por si mesma, em um
sentido, para usar linguagem
teológica,
“anagógico”. Também
corresponde isso à passagem
evangélica: "onde quer que o
corpo [impressão] esteja, lá as
águias [concepção] também
estarão reunidas juntas."
(Mateus 24:28). A associação
das águias a certo socorro
alegórico também está em O
Senhor dos Anéis.
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
169
Capítulo IV - O ocultismo e o
tema da "dúvida radical"
O ocultismo tem como
propriedade ser uma espécie
de "formulação
civilizacional" que prepara o
mundo para a ausência de
clérigos; os clérigos
entendidos aqui como os
indivíduos que correspondem
à concepção na esfera política,
assim como o leigo
corresponde à impressão. O
clérigo administra a concepção
ao leigo, num elo de
paternidade que supõe um
vínculo amoroso. É útil manter
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
170
em mente, a esse respeito, o
enfático preconceito espírita (o
espiritismo e o teosofismo têm
estreita ligação histórica, e
certa interpenetração
doutrinal) contra os clérigos.
No ocultismo, que supõe a
justificação discursiva do
boicote ou da perseguição ao
clérigo, está implícito um
igualitarismo na esfera
intelectual, mesmo quando a
ideia de elitismo espiritual seja
sugerida (como no caso do
teosofismo, claramente
distinto do espiritismo a esse
respeito, ou como quando os
teóricos espíritas dão alguma
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
171
importância ao sacerdócio
católico a despeito do seu
profundo anticlericalismo).
Esse igualitarismo se expressa,
por exemplo, no alçar a moral
à condição de competidora
extrínseca ao dogma (qual
sugerido no livro de Albert
Pike, "Morals and Dogma",
em que vem primeiro, no
título, a "moral"), justamente
porque a moral é, como um
corpo de preceitos,
relativamente mais acessível à
inteligência da maioria. Esse
processo desemboca na
redução da religião a uma
espécie de "ética cívica"; e no
atribuir a certas empresas
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
172
filantrópicas, por si mesmas, o
caráter de "obras salvíficas".
Ora, a perspectiva
epistemológica vitalista de
Ortega y Gasset; tomada (pelo
Sr. Robson) como uma
influência positiva sobre
Olavo de Carvalho; se baseia
precisamente em uma
oposição (expressa
literariamente) à preeminência
da concepção, entendida
pejorativamente, quando
contrastada com a vida, com o
mundo da experiência vital.
Ortega y Gasset muito
habilmente tomou o ponto de
vista racionalista anglo-saxão
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
173
como assinalador de um hiato
ou uma incongruência vital; o
racionalismo como uma
representação alheia ao
cotidiano ou ao "aqui e
agora".
É por conta de um exame
filosófico, desde o seu
vitalismo, que Ortega y Gasset
substituiu a noção de
sociedade cunhada por
Durkheim, por uma outra
noção. Para Durkheim a
sociedade, e a expressão
concreta do fenômeno social,
supõem uma consciência
sobrehumana sutil operando
por meio de agentes humanos.
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
174
As pessoas seriam "fantoches"
da sociedade. Para Ortega y
Gasset, ao contrário, os
costumes (sinônimos do que é
relativo à sociedade), são
como ferramentas sem vida
própria, mas impressas com o
selo do gênio humano (tanto
na origem quanto na
manutenção), que operam
vivificadas "pela vida mesma"
num curso marginalmente
errático.
A oposição vitalista a um
abstratismo pejorativo, e
mesmo à personificação
fantasmagórica de um ente
abstrato ("a sociedade"),
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
175
responde com o tomar a
sociedade como justamente o
oposto a algo tão
imediatamente inteligível
quanto uma "abstração";
responde essa oposição, em
suma, com o tomar a
sociedade como aquilo que é,
por definição, marginalmente
ininteligível. Isto é, tão
marginalmente ininteligível
quanto a vida entendida no
vitalismo ou no
existencialismo. Lembrando as
palavras do filósofo Olavo de
Carvalho, que se aplicam ao
fenômeno vital: "Nunca
estamos perfeitamente
adequados à razão; ela nunca é
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
176
adequada para compreender
nenhum caso singular. E muito
menos o nosso. A razão é a
cruz que o homem carrega."
A teoria de Ortega y Gasset
sobre a sociedade associa a
sociedade a uma arquitetura ou
rede de linguagens cujo
significado permanece
"potencial" e não
imediatamente acessível (não
acessível sem a sua presença,
sem ao menos a proximidade
do "aqui e agora" como ponto
de referência); a teoria dele faz
essa associação entre
"costume" e "sentido do
costume" de um modo que
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
177
torna obscurecida, ou ao
menos problemática, a
distinção entre o sentido que
se atribui ao costume e o
sentido intrínseco ao costume.
O costume, aí, é visto como
um acidente cujo vínculo com
o que é essencial pode ser
eventualmente esclarecido;
mas, ao mesmo tempo (e
paradoxalmente), é visto como
algo cujo auto-bastar-se só
pode ser comprometido pela
ausência da convivência
humana, pela ausência da vida
(que é por definição
marginalmente ininteligível, e
sob esse aspecto acidental ela
própria).
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
178
Por conta disso Ortega y
Gasset apresenta como
louvável e saudável o
fenômeno da riqueza inglesa
de costumes, costumes cuja
linguagem então lhe parecia
destacadamente sutil e
propiciadora de gratificação.
Ademais, a vantagem nos
costumes o autor (Ortega y
Gasset) parece tomar como
modelo de vantagem
civilizacional ou bem
civilizacional.
Entretanto, os costumes
ingleses não podem ser
inequivocamente separados
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
179
das tendências racionalistas
anglo-saxãs (expressas, por
exemplo, na escola analítica
criticada pelo Sr. Robson).
Com efeito, a exuberância de
costumes pode ser vista como
uma sobreposição do domínio
abstrato-normativo sobre o
domínio da situação concreta
específica, ou um avanço do
primeiro sobre o segundo.
A valorização vitalista dos
costumes é um paradoxo, já
que o vitalismo é uma
valorização do concreto-vivido
em detrimento do abstrato;
quando a vida cotidiana em
muito depende de convenções
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
180
e costumes registrados como
preceitos abstrato-normativos
(por exemplo, em que o
Direito Canônico moldou o
cotidiano hispânico que o Sr.
Robson toma como causa
formal da escola vitalista).
Existe um vínculo profundo
entre racionalismo e vitalismo,
assim como existe um vínculo
na origem entre "luz lunar" e
"mar noturno", que é a
influência remota, e distinta,
do sol sobre ambos.
O racionalismo e o vitalismo
são duas faces da mesma
moeda, assim, como as
categorias de Bruno Tolentino,
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
181
"mundo como ideia" e "mundo
como rapto".
O Sr. Robson longamente
descreve as dificuldades
teóricas, na mesma esteira, de
um crítico literário
chamado Hans Ulrich
Gumbrecht (intelectual de
Stanford); dificuldades que
opõem a "construção do
sentido" da obra à
"substancialidade" da obra.
Essa oposição é ainda mais
uma variação correspondendo
à oposição entre norma
abstrata (linguagem ou
costume) e vida (intuição);
com a mesma sugestão do ser
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
182
obscuro quer um ou outro dos
polos em disputa se basta ou
necessita do outro.
Se destaca na exposição do Sr.
Robson sobre a filosofia de
Olavo de Carvalho
precisamente um se desviar do
tratar "luz lunar" (discurso) e
"mar noturno" (intuição) como
fenômenos guardando um
vínculo subjacente e uma
relação, a despeito da
admissão de que o discurso ou
a linguagem fazem de algum
modo a intermediação do
conhecimento. Esse vínculo é
discursivamente suprimido
como um vácuo no meio da
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
183
exposição. Por exemplo, ao
falar do início da experiência
intelectual, e da sua expressão
"fundante" (a tripla intuição,
que supõe a apreensão
simultânea e sensível de
"sujeito", "conhecimento ou
nexo" e "objeto"), nenhuma
menção é feita à relação entre
a intuição direta, propiciada
pela presença direta do objeto;
e o discurso poético (que é
alhures sugerido como a causa
formal necessária da obtenção
da concepção desde a
impressão). Essa supressão ou
vácuo, em meio ao estabelecer
a intuição direta (e sua
respectiva concepção) como
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
184
fenômeno fundante do
conhecimento, guarda relação
com Ortega y Gasset ter
estabelecido a vida mesma
como fundamento do
conhecimento, num sentido
que parece atribuir à
linguagem ou aos costumes
uma posição lateral ou
acidental. Conversivelmente, a
posição de Ortega y Gasset,
segundo a qual a vida
"vivifica" os costumes, guarda
certa correspondência com a
sugestão olavista de que a
intuição direta de alguma
maneira ativa o discurso ou é
parcialmente descompactada
nele.
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
185
Diz o Sr. Robson à página
232: "Que de todo modo essa
experiência [intuição como
pressão do real] seja
inescapável, aí está algo que
aponta para uma modalidade
mais fundamental de
conhecimento que não só não
se identifica com o raciocínio
discursivo, como é ainda
matriz da própria possibilidade
da intuição e das formas de
preensão."
A intuição direta, a "presença"
fundante, correspondem ao
"mar noturno"; enquanto o
costume, e consigo a
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
186
construção discursiva,
correspondem à "luz lunar". O
motivo pelo qual o "mar
noturno" é tomado como auto-
bastante, e algo com um elo
acidental-obscuro com a "luz
lunar", é precisamente o
mesmo motivo pelo qual a
noite torna esses dois
fenômenos maximamente
apartados da sua fonte remota,
o sol, com isso obscurecendo a
sua relação autêntica. Isso está
particularmente evidente em
um trecho do texto de Olavo
de Carvalho chamado “Ser e
Conhecer” (citado pelo Sr.
Robson), que propõe “eliminar
a dualidade do racional e do
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
187
intuitivo, reduzindo tudo ao
intuitivo”. Não há dúvida, em
conclusão, que na filosofia
olavista a intuição direta seja,
desde a premissa aparente,
algo que tem no discurso em
geral, e no poético em
particular, um acidente: isto é,
para o olavismo, se você tem a
intuição você não
necessariamente tem o
discurso, mas se você tem o
discurso você tem a intuição.
Ora, a proposta de uma caráter
auto-bastante atribuído a algo
acidental (mar noturno em
relação ao sol) guarda
correspondência precisamente
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
188
com o fenômeno ocultista pelo
qual o leigo (correspondendo à
impressão) parece bastar-se
sem um vínculo religioso com
um clérigo (correspondendo à
concepção). O motivo pelo
qual Ortega y Gasset atribui
um caráter ontologicamente
estável à sua perspectiva
acidental a respeito do que
sejam os costumes, é que ele
está contando com a
ordinariedade da penúria de
clérigos, clérigos cuja função é
precisamente tornar acessível
o sentido dos costumes, e a
vinculação necessária dos
costumes a algo tanto mais
principial que a vida humana
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
189
quanto o sol é mais principial
que o calor noturno do mar,
acumulado desde o sol
diurno.
Basicamente toda a abordagem
olavista fiada na ideia de
presença é uma expressão
análoga ao se fiar no calor do
mar noturno como substituto
do sol diurno.
O aspecto fundante atribuído à
"vida concreta" ou à
"presença" é noção parecida
com a ideia destacada de
"civilização" (este um termo
que surgiu há bem poucos
séculos): é uma noção que
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
190
surgiu vocabularmente para
compensar a penúria da sua
manifestação carregada de
sentido.
O vitalismo, e a teoria da
presença, desde a maneira com
que são apresentados, são
justificações ex post facto da
penúria de clérigos.
Há algo ainda mais
significativo a respeito desse
fato, que é o paralelismo que
pode ser estabelecido entre
vitalismo e a dúvida radical
cartesiana (tão criticada por
Olavo de Carvalho no livro
"Visões de Descartes"): se na
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
191
tentativa dúvida radical de
René Descartes (filósofo
renascentista e racionalista) se
tratou de projetar sobre o
mundo uma "expletivação",
um ver as coisas desprovidas
do seu sentido ordinário (e tal
em um sentido
"inadvertidamente"
carnavalesco); a mesma coisa
opera no vitalismo da Escola
de Madrid, incluso sob o
aspecto de esta última ter um
vínculo dir-se-ia discreto, mas
real e profundo, com
tendências racionalistas (como
visto na teoria sociológica de
Ortega y Gasset, que abraça
noções abstratas acidentais
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
192
quando cristalizadas em
costumes). Nesses casos se
trata de uma manifestação do
fenômeno, observado por
René Guénon, em que os
filósofos modernos se veem
reduzidos a justificadores ex
post facto da mentalidade da
própria época; no caso se trata
de épocas, cada uma a seu
modo, marcadas pelo
acirramento do vazio da
atuação clerical.
Consequentemente, a reação
indiferente usual de pessoas do
meio olavista à
obrigatoriedade católica de
não usar o nome de Deus para
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
193
expressar surpresa ou raiva, ou
em um sentido acidental
(Segundo Mandamento); qual
ensinado em certas fontes
doutrinais legítimas; guarda
certa continuidade com a
dúvida radical cartesiana. Se
trata da expressão hiperbólica
de um recuo em relação ao
ajuizar doutrinal, um recuo
continuado, que tem como
fundo político precisamente a
desesperada expectativa da
não atuação de clérigos, que
poderiam auxiliar a ajuizar.
Isso guarda certa continuidade
com um motif literário,
segundo me parece: "El gran
teatro del mundo". Nem há
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
194
outro meio de explicar por
que, na olavista Teoria das
Doze Camadas da
Personalidade; é ordinário ou
regra passar por tantos
desenvolvimentos de
personalidade (não que passar
por todos seja sequer tomado
como provável) antes de se
chegar na camada final, da
vida estritamente piedosa ou
dedicada à religião: essa
prolixidade (baseada,
certamente, em um estado de
coisas, conquanto acidental) é
uma expressão de uma dúvida
radical e do recuar em relação
às gratificações próprias da
religião.
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
195
Em todo caso, o vínculo
subjacente e essencial, entre
"intuição direta" e "discurso",
tem certo fundamento
teológico. Foi dito que as três
testemunhas terrestres de 1
João 5:8, a saber, "espírito",
"água", "sangue";
correspondem a "doutrina
dogmática", "doutrina
sacramental", "doutrina
moral". Ora, essa
correspondência não esgota o
sentido dessas testemunhas,
que também podem, entre
outros, corresponder ao
"domínio suprassensível",
"domínio psíquico" e
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
196
"domínio sensível". O domínio
psíquico é um elo
intermediário entre o mundo
sensível e o mundo
suprassensível, assim como os
sacramentos fazem
intermediação entre dogma e
moral.
Cada uma dessas testemunhas
guarda dentro de si uma
imagem dessa relação
tripartite, com o elemento do
meio servindo de
intermediário. Por exemplo, no
que se refere ao "sangue"
(mundo sensível), ele pode
significar o domínio da
intuição sensível; também, por
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
197
extensão, o domínio da
intuição "por presença"
(significando a percepção
direta, temporal e substancial
de linhas de possibilidades).
Esse domínio possui "autor do
testemunho", "nexo de
conhecimento" e "objeto
testemunhado". O
reconhecimento simultâneo
dessas três peças e da sua
interconexão, conforme tese
olavista, supõe a demonstração
de que essas três peças são
unas ou possuem uma
continuidade ontológica
inseparável. Ora, o mesmo
ocorre com as três
testemunhas terrestres,
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
198
"espírito", "água", "sangue"; o
texto sagrado diz que elas "são
um", e a Carta a Flaviano
(Papa Leão I) propõe a ideia
de que o elo entre as
testemunhas é inseparável.
Entretanto, não é apenas no
"sangue", uma das
testemunhas, que opera um elo
interno tripartite como imagem
das testemunhas mais gerais.
Por exemplo, a testemunha
"água", que pode significar os
sacramentos (os quais supõem
um elo tripartite entre
"fórmula verbal", "intenção" e
"matéria"), também significa
qualquer expressão psíquica
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
199
intermediadora do "céu" e da
"terra". Por exemplo, a "água"
se expressa no "sinal da cruz".
Aqui, em vez de "sujeito",
"nexo" e "objeto", se tem o
sentido do gesto de que o
sujeito se carrega, a sua
aplicação, e a mão com que se
aplica o gesto.
No que se refere à testemunha
"espírito"; ela se assemelha
mais ao discurso do que à
intuição por presença (de fato
compreendendo o domínio
discursivo), quando se
expressa em uma tripartição
como "referente, significado,
signo"; mas sucede que as
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
200
coisas destacadamente
"invisíveis" (distintas do que o
Sr. Robson chamaria "intuição
interna") também têm um polo
mais "em ato", um polo "mais
potencial", e um elo de ligação
entre os dois; como acontece
com as noções de "essência",
"ordem" e "acidente", em que
a "ordem" entre o aspecto "em
ato" (essência) e o aspecto "em
potência" (acidente) estabelece
entre os dois um "elo" (porque
o essencial vem primeiro que o
acidente os dois são
vinculados por uma ordem);
elo expresso
independentemente de alguma
manifestação material.
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
201
Ora, se as três testemunhas,
"espírito", "água" e "sangue",
"são um" (1 João 5:8), por que
atribuir ao "sangue" (intuição
sensível, sensação ou
"presença") um caráter
fundante e principal em
detrimento das outras duas
testemunhas? Fazer isso
guarda certa correspondência
(como oposta a coincidência)
com a pretensão de que seja
possível a perfeição moral em
detrimento da profissão
dogmática (a posse da fé
Romano-trinitária), o acidente
a auto-bastar-se sem a
essência. Essa pretensão
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
202
também corresponde à redução
da religião a uma "ética
cívica" etc. O acidente
apartado da essência é uma
sombra do acidente cujo
vínculo com a essência (cuja
unidade subjacente com a
essência) é tornado patente.
Não é possível falar da
"presença" (correspondente ao
"sangue") como uma
experiência fundante, mais do
que é possível falar de
qualquer outra das três
testemunhas. Ademais, as três
testemunhas terrestres se
prolongam umas nas outras de
modo paralelo às três
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
203
testemunhas celestes (Pai,
Verbo e Espírito Santo) serem
relativas umas às outras desde
um vínculo inseparável (um
paralelismo que a passagem
bíblica em questão, sobre as
testemunhas, indica de modo
explícito).
Se cada uma das três
testemunhas terrestres tem
uma tripartição interna, as
testemunhas terrestres supõem
ao todo nove elementos que se
espelham mutuamente. Ora, o
número "nove" corresponde
simbolicamente à serpente
(como é visto na tradição
chinesa, e pelo formato
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
204
ordinário do algarismo etc.).
Esse número corresponde
precisamente à sutileza
(Gênese 3:1: "Ora, a serpente
era mais sutil que qualquer das
bestas da terra que o Senhor
Deus fez."), justamente porque
a unidade subjacente entre as
três testemunhas terrestres
supõe um desvelamento, de
uma verdade escondida a
despeito de estar à mostra.
A "presença" ("sangue"), de
que fala Olavo de Carvalho;
no seu caráter fundante e
abrangente, sempre a esconder
um fundo latente, sempre
impondo à inteligência uma
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
205
condição instintiva ou de
mudo testemunho ante o que
não pode ser descompactado
suficientemente; se é uma
noção correlativa com
"espírito" (suprassensível),
como de fato é; faz surgir uma
certa analogia. A "presença"
corresponde ao tema bíblico
do "camelo" (uma corda que
supõe composição e
complexidade), enquanto o
"olho da agulha" corresponde
ao "espírito" ou
"suprassensível" (Mateus
19:24), aquilo que é
desprovido de todo peso e
possui máxima simplicidade.
A incapacidade de ver uma
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
206
unidade subjacente entre a
"presença" e o "espírito", a
incapacidade de ver para além
da presença, é algo que a
passagem evangélica parece
sugerir ser um obstáculo
essencial à salvação da alma,
tanto quanto é um obstáculo ao
"jovem rico" a sua riqueza.
Essa mesma incapacidade
corresponde à irritação dos
trabalhadores da vinha, em
outra história evangélica
(Mateus 20:1-16), os quais se
irritaram por receber o mesmo
pagamento, após trabalharem
todo o dia, que tinham
recebido os trabalhadores que
entraram tardiamente na
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
207
jornada trabalhando uma só
hora.
O apego olavista à
multiplicidade e ao extensivo
(o "camelo"), em detrimento
do uno e "sintético"; se
expressa, ademais, no fato de o
Sr. Robson ter primeiro, e
repetidamente, chamado
atenção; na sua exposição dos
temas filosóficos
fundamentais; para a noção de
"Ápeiron" (Anaximandro)
cunhada na antiguidade, isto é,
a noção de um campo
ilimitado para além do qual
não se consegue ver; em
detrimento de chamar primeiro
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
208
atenção para o "simbolismo do
centro" que concentra todas as
possibilidades, representado
por uma circunferência.
Mesmo quando referiu esta
última noção, o Sr. Robson o
fez com o destaque para o
símbolo do centro como
ocasião para um sentimento
aflitivo de separação em
relação ao centro. Esse tipo de
abordagem sugere o tema da
"angústia metafísica", como a
de um personagem de
Fernando Pessoa como Álvaro
de Campos; cuja ordinariedade
é desencaminhadora.
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
209
A ideia de presença, conforme
as sugestões acima, é bem
diferente de uma noção
filosófica ordinária. É, na
verdade, um simbolismo sacro.
Esse símbolo (da "presença")
corresponde, na história de
Jonas, ao "grande peixe"
(Jonas 1:17). A entrada de
Jonas no ventre do grande
peixe guarda um paralelismo
com a entrada de Jonas "na
parte interior" da embarcação,
para dormir, quando se levanta
uma tempestade ameaçadora.
A diferença específica entre os
dois veículos ("embarcação" e
"peixe") é que, enquanto a
embarcação é algo "feito por
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
210
mãos" (acidente), o peixe é
algo "natural" (essência),
enquanto a embarcação supõe
a companhia coletiva (domínio
secular), o peixe supõe o estar
a sós com a própria
consciência (com efeito, o
peixe representa a própria
consciência, sob o aspecto da
sua maturação tomando do
instinto). Jonas é atirado ao
mar voluntariamente, para
acalmar a tempestade e salvar
os tripulantes da tempestade: a
tempestade representa
precisamente o campo a um
tempo externalizado e sutil,
pesado e profundo, que tem de
ser digerido ou examinado,
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
211
isto é, o conhecimento
potencial (não imediato) que
tem de ser assimilado, a fim de
se dar sobrevida ao domínio
secular degenerado (pela
transmissão de conhecimento
restauradora), essa digestão
representada por Jonas no
ventre do peixe.
As águas e vagas que oprimem
ou cercam Jonas no ventre do
peixe guardam um sentido.
Para citar o Sr. Robson: "A
água é tradicionalmente o
símbolo das potencialidades da
realidade primeva; as águas de
onde tudo assoma, a partir da
qual [sic] tudo se forma. É
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
212
símbolo de fonte de vida, de
formalidade possível." Essas
águas (como campos de
possibilidade), associadas à
maturação ou digestão
suspensiva e instintiva do
peixe, que esmagam o
intelecto de Jonas com a
própria extensividade, são
precisamente a "presença" de
Olavo de Carvalho; expressas
em um sentido mais sacro e
dramático; além de serem uma
transposição da "tempestade"
desde um domínio secular para
um domínio mais recôndito.
Essas águas, entretanto,
existem antagonicamente em
relação a Jonas; como a prévia
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
213
companhia de Jonas junto dos
tripulantes da embarcação
sugere; precisamente em
função de um desafio retórico
do qual Jonas havia tentado
escapar. Ademais, o
paralelismo entre a
embarcação tripulada e o peixe
sugere uma unidade subjacente
entre o domínio discursivo-
cultural ("espírito") e o
domínio da presença
("sangue"). Há, ainda, certo
paralelismo entre o par
“embarcação e peixe” e o par
“mistérios gozosos e mistérios
dolorosos”; um paralelismo
que, à luz do que foi discutido
acima, sugere que, em um
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
214
sentido inconsciente, Olavo de
Carvalho valoriza de modo
particular o discurso dialético
em paralelismo com a sua
valorização da “presença”;
embora na filosofia olavista
esses termos relativos ou
paralelos sejam vistos desde
uma abstração que os separa,
tanto entre si, quanto da ordem
previamente explicada dos
mistérios.
A concepção de presença, na
filosofia olavista, é, em suma,
a Grande Cidade Apocalíptica,
vista desde uma operação
abstratista que isola o aspecto
potencial da Cidade (a
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
215
impressão ou "sangue") da sua
correlação com o aspecto atual
(concepção ou "espírito").
Tanta (e tão repetida)
importância ser dada à
impressão do aspecto
extensivo e inabarcável da
"presença"; por uma operação
abstratista; é algo isolado de o
mundo contemporâneo ser
marcado por uma
extensividade discursiva
externa ou cultural (um efeito
degenerativo associável,
acidentalmente, ao discurso
dialético); como se a segunda
extensividade fosse acidental à
primeira e não um seu reflexo
correlato. É uma propriedade
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
216
da Grande Cidade
precisamente o tomar a
"impressão" como guardando
de modo suficiente a
concepção, em uma alegada
equivalência substancial entre
impressão e concepção que
necessariamente dá à
concepção um sentido
pejorativo; e mesmo quando
tal entendimento signifique
(em um sentido subjacente) a
proposta de uma estabilização
secular degenerativa, a
proposta da estabilização de
uma mentalidade eivada de
transitoriedade, que está
fadada a ser corroída pelo
curso temporal.
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
217
A estadia no ventre do grande
peixe é uma condição
carnavalesca (ainda que de
efeitos benéficos desde um
ponto de vista elevado),
extraordinária, e a proposta da
continuação e da ordinariedade
dessa suspensão equivale à
proposta de um "perpétuo
carnaval", um perpétuo estado
de dúvida radical, um perpétuo
estado de penúria
concepcional na esfera
político-secular. É
compreensível, portanto, que
Jonas tome a experiência no
ventre do peixe como
pesarosa: Jonas 2:2: "E eu
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
218
disse: Estou lançado para fora
da visão de teus olhos: mas
ainda assim hei de ver teu
templo santo de novo." O
"templo santo de Deus" é um
dos títulos do próprio Deus,
sob o aspecto de uma
gratificação divina. A
"presença", nesse sentido
acirrado, é uma experiência da
qual o profeta, pessoalmente e
desde certo ponto de vista,
prescindia, mas à qual ele se
dirigiu em prol de outrem,
desde um contexto retórico.
Se pode comparar a explicação
que eu dei para o significado
do "Anel de Sauron", e a
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
219
explicação dada em um escrito
de J. R. R. Tolkien. Este
propõe o anel como um
símbolo para o depósito do
"poder" naquilo fora do autor
do poder, como a criação de
um partido, de bens, etc., de
um modo que torna esse
poder, ou esses bens, passíveis
das vicissitudes terrestres,
como a traição ou o roubo etc.
Isso é diferente da minha
explicação, a saber, a do anel
como a expressão acidental,
degenerativamente afastada da
origem, de um conhecimento
ou tradição. Entretanto, as
duas explicações possuem um
fundo comum, uma
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
220
corroboração de fundo
(suficientemente assinalada
pela distinção entre essência e
acidente). Consequentemente,
tanto uma como a outra
poderia ser antevista, e é de
fato antevista, uma na outra,
porque são a mesma tese vista
desde pontos de vista
diferentes. A manifestação
consciente ulterior dessa
antevisão, que é em si mesma
um acidente; não precisa
necessariamente acontecer; no
mesmo sentido em que o
"jovem rico" não precisa das
suas riquezas.
A importância dada à
necessidade de sempre
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
221
cumular novas atualizações de
noções acidentais, sem
associar esse esforço de algum
modo a um fim retórico-
discursivo; está ligada à
contínua dúvida radical em
relação à gratificação da
profissão religiosa; porque é
uma propriedade da profissão
religiosa gratificar a alma de
modo suficiente (sintético,
como oposto a extensivo) e
fazer se prescindir de uma
expectativa desesperada e
temerária como aquela que
Olavo de Carvalho habilmente
atribuiu a René Descartes. A
esse respeito não faz diferença
se a preparação retórico-
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
222
discursiva do clérigo leva
tempo, e passa ao largo dos
olhos do mundo secular
(mesmo por muitas gerações);
o que importa é que a digestão
na "barriga do peixe" tenha
uma razão de ser correlativa
com essa preparação; e que
esse estado suspenso de modo
nenhum seja considerado por
si a máxima aspiração
intelectual humana, e não um
acidente.
A ilusão de tomar a impressão
de modo não correlato com a
concepção (de a tomar de um
modo que não que requer um
recuo contemplativo, como
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
223
oposto a uma estabilização
secular) se manifesta, por
exemplo; na tese olavista de
que as passagens evangélicas a
respeito dos milagres de Jesus,
ante o testemunho dos
discípulos de João Batista
(Lucas 7:18-23, Mateus 11:2-
6); significam que a
autodefinição do cristianismo
é a "sucessão de milagres",
"não um discurso doutrinal".
Ora, Santo Tomás de Aquino
toma como segura a tese do
Papa Gregório I, segundo a
qual "quando as sagradas
escrituras descrevem um fato,
revelam um mistério". Santo
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
224
Tomás também toma como
seguro que as sagradas
escrituras supõem
multiplicidade de sentido sem
ocasionar equívoco, e que o
sentido literal (correspondendo
à impressão) é só a camada
mais inferior, apresentada de
modo alegórico para esconder
o seu sentido e não dar aos
cães aquilo que é santo
(Mateus 7:6).
Nas duas passagens (Lucas
7:18-23, Mateus 11:2-6) o
número de argumentos ou
respostas de Jesus, tomando
como ocasião as curas, é
sete. Esse número significa
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
225
completude, especificamente a
completude da obra divina,
que opera de modo uno
subjacente à multiplicidade,
como a sétima cor
(branco) contém todas as
demais de modo subjacente,
como o sábado da criação
contém os seis dias, porque o
descanso divino é o "dia
eterno". Esse detalhe numérico
é acaso parte do argumento
messiânico? Sim. Inclusive
porque o contexto é a pergunta
vinda de João a respeito de se
Cristo é o messias que vem
trazer a completude, isto é,
uma obra sem a necessidade
de alguém mais. A pergunta
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
226
não era a respeito de se Jesus
era um verdadeiro mestre,
entre outros motivos pela
formulação da pergunta, além
do prévio e firme testemunho
de João a respeito de Cristo; e
sim se haveria de vir algum
outro. O próprio número de
argumentos (sete), portanto,
indica as duas dimensões de
que o Papa Gregório I fala (a
do fato e a do mistério, a da
superfície e a do fundo
subjacente).
Os sete testemunhos são: os
cegos veem; os aleijados
andam; os leprosos são
limpos; os surdos ouvem; os
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
227
mortos se levantam de novo
(ressuscitam); aos pobres o
evangelho é pregado; e os que
não hão de se escandalizar em
Cristo hão de ser abençoados.
Ora, nem todos dos sete
testemunhos são feitos
explicitamente "corporais",
associáveis a milagres de
modo estereotípico; porque a
pregação do evangelho é um
milagre comparativamente
mais concepcional do que
corporal. Todos esses milagres
são apresentados como
guardando uma unidade
subjacente e como
complementares, porque as
suas facetas estão todas
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
228
embutidas sem separação na
unidade subjacente à
multiplicidade. Disso se pode
deduzir, por exemplo, que a
pregação do evangelho trazia
alívio corporal; enquanto as
curas corporais supunham uma
correlação simbólica com
certas gratificações
intelectuais.
Ademais, o sétimo testemunho
("e os que não hão de se
escandalizar em Cristo hão de
ser abençoados") é
propositadamente colocado
(versão Douay-Rheims) em
um modo verbal chamado
"potencial";
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
229
consequentemente, um modo
não associado direta ou
inequivocamente a passado,
presente ou futuro; em vez de
no tempo presente (como nos
demais casos). Isso
corresponde à sutileza do
sétimo dia (isto é, o dia do
eterno descanso divino) ser
temporalmente subjacente nos
demais dias (e ser de algum
modo o primeiro e o único);
porque não se associa ao
domínio temporal mais
determinado em que estão
inseridos os demais dias.
O que o messias está dizendo é
que a aparência de distância
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
230
rigorosa entre o elemento
corporal ou natural (a
impressão) e o elemento
concepcional (a pregação
evangélica) é dissipada por um
vínculo subjacente operado
sobrenatural ou
providencialmente.
Consequentemente, a resposta
messiânica aos discípulos de
João sugere que se o vínculo
subjacente entre "impressão" e
"concepção" não estivesse
sendo estabelecido de modo
providencial, tampouco seria
Cristo "aquele que está para
vir".
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
231
Uma exemplificação a respeito
disso, no contexto de um dos
sete argumentos de Cristo
("aos pobres o evangelho é
pregado"); é que com "pobre"
não se quer dizer exclusiva e
inequivocamente uma
condição econômica; assim
como na passagem sobre o
"jovem rico" (Mateus 19:16-
22), a riqueza deste não
significa uma exclusiva e
inequívoca riqueza econômica.
A "copiosidade" do jovem rico
(como oposta à noção de
"plenitude") é o motivo pelo
qual, ao se dirigir a Cristo, o
jovem rico o chama de "bom
mestre" em um sentido
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
232
acidental (correspondendo à
impressão), sugerindo nisso a
incapacidade de enxergar em
Cristo a sua divindade
(correspondendo à concepção).
Conversivelmente, quando
Cristo fala a respeito dos
"pobres" recebendo a pregação
do evangelho, está impressa a
sugestão de que se trata
daqueles que têm a "plenitude"
(concepção), como oposta à
"copiosidade" (impressão).
Uma semelhante transposição
se aplica aos demais
argumentos de Cristo ante os
discípulos de João Batista.
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
233
Um milagre tem de ser
entendido como um fenômeno
no qual tanto a concepção
quanto a impressão estão
presentes, com a sua unidade
subjacente estabelecida. Nesse
sentido o cristianismo é de fato
uma "sucessão de milagres".
De outro lado, sugerir que o
cristianismo é uma sucessão
de feitos "miraculosos" sem
um fundo concepcional, é
como a sugestão inadvertida
do jovem rico de que Cristo é
bom no tocante à impressão
("copiosidade"), como oposta
à concepção ("plenitude"); é,
em suma, como a sugestão de
que o "camelo" pode passar
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
234
pelo olho da agulha sem a
intervenção divina, isto é, sem
a intermediação celeste. O
Catecismo de Trento propõe a
ideia de que, na oração do Pai
Nosso, o "céu" significa o
domínio suprassensível
(concepção), ou o aspecto não
corporal do fiel. A vontade
divina tem de ser feita "tanto
na terra como no céu" em
paralelismo com o milagre ter
de ser relativo tanto à
impressão (ou manifestação
física) quanto à concepção
(conhecimento sagrado). A
distinção e unidade subjacente
entre “céu” e “terra” se repete
pelo correr dessa oração
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
235
sagrada; por exemplo, na
distinção entre “as nossas
dívidas” (concepção) e as
dívidas dos “nossos
devedores” (impressão); uma
distinção entre o que é
conhecido íntima ou
plenamente, e o que é
conhecido externa ou
“numericamente”.
Por fim, na oração do Pai
Nosso, a correlação entre
“impressão” e “concepção”
está dada pelos termos “nome
santo” e “Pai”, ou seja, pelo
Segundo Mandamento.
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
236
Capítulo V – Ação histórica e
o “trabalho do negativo”.
Eu cito o Sr. Robson (página
312, “Conhecimento por
presença”): “(...) a teoria da
tripla intuição abre caminho
para a intuição radical que
fundamenta a objetividade do
instalar-se do indivíduo na
verdade, ao passo que a teoria
da verdade como domínio
estabelece uma segunda via de
retorno à presença, agora com
maior ênfase na razão
discursiva, construtiva”.
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
237
O motivo pelo qual a intuição
fundante e a teoria da verdade
como domínio não são vistas
como “dois lados da mesma
moeda”, ou “termos relativos”,
e sim como “caminhos”
mutuamente independentes em
relação à presença; conforme
eu previamente preparei como
sugestão; é que “linguagem” e
“construção raciocinante”, na
teoria de Olavo de Carvalho,
não são vistas como termos
relativos com a “presença”; e
sim como termos que têm de
ser em última instância
reduzidos à presença. Isso,
simbolicamente, equivaleria a
reduzir a “luz lunar” a “mar
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
238
noturno”; tornando a redução
mais claramente inadequada,
ou só adequada desde um
ponto de vista com duvidoso
senso de hierarquia.
Um zoom em cima da citação
acima, ademais, indica que
existe entre o fenômeno
fundante da “tripla intuição” e
o fenômeno ulteriormente
constatado da “verdade como
domínio em que se está
imerso”, um paralelismo ou
uma analogia com as noções
filosóficas do simbolismo do
centro (circunferência) e do
Ápeiron (Anaximandro).
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
239
As analogias supõem
necessariamente uma inversão.
Aquilo que era uma noção
sobretudo suprassensível
(simbolismo do centro) passa a
corresponder a uma intuição
fundante “sensível” ou
“terrestre”, a tripla intuição.
Aquilo que era uma noção
sobretudo sensível ou relativa
à intuição direta, o Ápeiron,
passa a corresponder à “teoria
da verdade como domínio”,
isto é, a um campo, nas
palavras do Sr. Robson, “agora
com maior ênfase na razão
discursiva, construtiva”.
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
240
A tripla intuição corresponde
àquilo que é abarcado ou visto
de modo concentrado, pontual.
A verdade como domínio
corresponde àquilo extensivo e
no qual se está imerso.
Quando a presença é retratada
de modo extensivo e
abrangente, não se traça o
paralelismo destacado entre
ela e a “verdade como
domínio” (como que para não
se ter de admitir que a
presença é correlativa com o
discurso dialético, o que traria
como consequência a
correlação entre a intuição
fundante e o discurso poético).
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
241
Quando a presença é retratada
de modo intensivo ou pontual
(tripla intuição fundante) em
comparação com o domínio da
verdade extensiva (esta a
“racionalidade discursiva”), aí
sim a comparação é feita.
Isso significa que a ordem dos
discursos, em paralelismo à
ordem da apreensão direta;
conforme a progressão
decrescente sugerida em Santo
Tomás etc.; é evitada na
filosofia olavista na base do
“heads I win, tails you lose”
(“se for cara eu ganho, se for
coroa você perde”); na base da
finta hipnótica inadvertida.
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
242
A presença, conforme antes
indicado, corresponde ao
“sangue” (das três testemunhas
terrestres), que corresponde na
passagem bíblica (1 João 5:8)
ao Espírito Santo. O Espírito
Santo se associa à “vida”, algo
em que as pessoas estão
imersas, e também à
“caridade” (amor), que supõe
o se sentir imerso em um
mistério (Chesterton).
Também se associa ao
“conhecimento”, que é algo
em que se está imerso. O Pai,
por sua vez, se associa ao
“sujeito do conhecimento”, o
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
243
Filho “ao objeto do
conhecimento”. Essas
distinções, entretanto, não
dizem respeito à substância
das Pessoas, mas à sua relação.
Analogamente, a verdade pode
ser vista como um domínio no
qual se está imerso, mas isso é
tão acidental à verdade quanto
um predicado sob a categoria
da relação (“Pai”, por
exemplo) é acidental à
substância de qualquer das
pessoas divinas.
Não é uma noção mais
fundante, da verdade enquanto
verdade, que ela seja um
“domínio” do que é que ela
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
244
seja um objeto, ou um sujeito.
Essa maneira acidental de
enxergar a verdade
(correspondente à “razão
construtiva”) é análoga à
pretensão de ver na tripla
intuição uma experiência
fundante em detrimento das
outras duas testemunhas como
fundamento.
É uma maneira de separar
“impressão” e “concepção”; é
mais um aspecto de uma
justificação ex post facto do
boicote ao clérigo, ou do
boicote ao Segundo
Mandamento, que é
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
245
conversível com a linguagem
do clérigo.
Segue uma postagem de Olavo
de Carvalho em rede social (26
de dezembro de 2020): ‘Como
a política é uma dimensão da
vida prática e não da mera
especulação teórica, É ÓBVIO
E INCONTESTÁVEL que o
sentido verdadeiro de um
preceito ideológico está na sua
tradução prática e não na sua
pura expressão verbal. O lema
"Liberdade, igualdade,
fraternidade" significa
ACIMA DE TUDO a
guilhotina e o reino do terror.
"Ditadura do proletariado"
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
246
significa acima de tudo a
ditadura de intelectuais
burgueses SOBRE o
proletariado. O resto é farsa.’
Essa declaração guarda certa
continuidade com uma
passagem citada pelo Sr.
Robson (do livro “Apoteose da
Vigarice”): “Todo discurso de
agente contém, de maneira
compactada e distinta, dois
elementos: os dados
verdadeiros ou falsos que ele
possui sobre a situação e as
ações que pretende
desencadear com seu discurso.
A força de sua influência sobre
os ouvintes depende, muitas
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
247
vezes, de que esses dois
elementos permaneçam
mesclados. Por isso mesmo há
em toda ação histórica um
componente de mistificação,
que pode chegar à completa
automistificação. A análise
decompõe esses fatores,
tornando inteligível o processo
na medida em que fornece os
meios de neutralizar, se
preciso, a força do agente.”
Essas declarações, se de um
lado não propõem a redução
da gratificação intelectual ao
ativismo que toma o ideal da
contemplação como
supersticioso, como faz
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
248
Antonio Gramsci; de outro
lado também não parecem
admitir a possibilidade de
certa simultaneidade entre o
agir político-histórico e a
concentração concepcional
elevada.
A hipótese dessa
simultaneidade é (em
aparência) admitida por Olavo
de Carvalho sob a forma da
“intervenção profética na
história” (Cf. O Jardim das
Aflições, 2015, página 245);
que não parece ocorrer ao
filósofo como correspondente
a um discurso próprio
diferente do ponto de vista
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
249
quaternário estabilizado na sua
teoria da cultura (“heads I win,
tails you lose”). Em outras
palavras, com a atuação
profética é feito algo similar
àquilo que é feito com o
fenômeno dos milagres.
Como consequência dessa não
correspondência, a tipologia
espiritual dos agentes
políticos, na teoria olavista,
(“intelectual”, “nobre”,
“comerciante”) não supõe
destacadamente a dualidade
“impressão” e “concepção”,
que por sua ver corresponde à
dualidade “ação política” e
“recuo contemplativo”.
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
250
Como os agentes políticos não
são vistos desde esse ponto de
vista dual, eles não são vistos
desde o ponto de vista da
profissão do Segundo
Mandamento.
Com efeito, a transposição que
o Sr. Robson parece fazer do
conteúdo de texto olavista
(“Elementos de tipologia
espiritual”), sugere uma
familiaridade insuficiente do
ponto de vista de Olavo de
Carvalho com o trabalho de
René Guénon sobre o
hinduísmo e a tipologia das
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
251
castas ("Etudes sur
l'Hinduism", 1966).
O Sr. Robson apresenta o
objetivo de vida dos vaixias
(os comerciantes, as pessoas
que promovem o mundo
material-econômico) como
sendo “o sucesso (a
acumulação de riqueza e o
encarecimento da imagem
pessoal perante a
comunidade)”; e dos sudras
(trabalhadores braçais) como
sendo “o prazer (o gozo dos
cinco sentidos)”.
Essa qualificação, embora
tenha um valor estereotípico
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
252
válido (conquanto precário), é
desencaminhadora. São os
vaixias, e a sua iniciação
específica, que têm a ver com
a busca do prazer, ou com o
atendimento de desejos. Isso
pode ser visto em que explorar
a satisfação das
concupiscências tem
necessariamente uma
amplitude potencial que pode
facilmente escapar ao escopo
dos sudras; estes por definição
se apartando de grandes
pretensões. Seria mais
adequado falar da aptidão dos
sudras como de tipo “infra-
econômico”, uma expressão
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
253
atenuada e restrita das
pretensões ao prazer sensível.
O conhecimento próprio dos
vaixias opera por meio da
simultaneidade do segredo e
do público (do cobre e do latão
unidos numa mesma liga
metálica, o bronze), da
concentração e da dispersão.
Consequentemente, não faz
mais sentido falar dos vaixias
como tendo a intenção de
“acumular riquezas”, do que
faz sentido falar deles como
tendo a intenção de consumir
riquezas. Similarmente, se esse
jogo entre concentração e
dispersão é transposto para os
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
254
interesses sociais dos vaixias,
ele esbarra nas emoções
propriamente sociais (a
crueldade e a gentileza, que
correspondem a
“concentração” e “dispersão”),
as quais constituem o processo
da sedução, e implicam
necessariamente o exercício
oposto ao “encarecimento da
imagem pessoal ante a
comunidade”. Por exemplo,
segundo o especialista em
sedução, Robert Greene, é um
aspecto do sedutor hábil ser
capaz de deliberada ou
calculadamente apresentar
uma conduta não sedutora, que
desagrada e faz outrem o
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
255
evitar. O ser capaz de exercer
essa técnica intencionalmente
faz parte de como o vaixia
explora a o seu campo de
conhecimento;
consequentemente, não é
inteiramente mais correto
associar a aspiração humana
em questão à obtenção do
prestígio social do que à
capacidade dissipar o prestígio
social.
A dualidade dos vaixia é uma
expressão do Segundo
Mandamento na faixa de
conhecimento que lhes é
própria; em que a
“concentração” sugere o que é
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
256
mais “grave”, a coisa sagrada,
enquanto a dispersão sugere o
que é menos grave, o “nome
sagrado”. A “concentração”
(ou “gravidade”) corresponde
à justiça (o nome
“Melquisedeque” significa “rei
de justiça”); a “dispersão”
corresponde à paz
(Melquisedeque era o “Rei de
Salém”, isto é, o “rei da paz”).
A mesma ausência de
dualidade está na abordagem
olavista da casta dos xátrias
(nobres e guerreiros) que
aspiram à realização de um
“senso de dever”. O Sr.
Robson afirma que o xátria
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
257
“encontra na espada” o exercer
ação sobre o círculo de
possibilidades dos demais
indivíduos. Ora, essa
abordagem é insuficiente; por
exemplo, em que o urso (um
símbolo tradicional do nobre)
tem como propriedade uma
aparência extraordinariamente
fina e atraente, em associação
a uma aparência formidável e
ameaçadora. Ao lado do
aspecto “grave” do nobre
(“justiça”) tem
necessariamente de
corresponder um aspecto
“suave” (“paz”). É
precisamente por meio dessa
dualidade que o nobre exige
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
258
dos seus súditos a submissão
ao Segundo Mandamento;
porque se pode dizer tanto que
a magnanimidade do nobre,
junto de certa correlativa
paciência, faz dele uma
expressão secular e viva do
Segundo Mandamento; quanto
se pode dizer que a reverência
para com o nobre (Quarto
Mandamento) é em certo
sentido uma reverência para
com o próprio nome de Deus.
Um sinal retórico disso é que
certo nobre francês poderoso,
Charles de Orléans (séc. XIV),
se notabilizou como excelente
cortesão (sugerindo isso os
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
259
aspectos mais suaves do urso),
e viveu décadas exilado, o que
sugere certa paciência
correlativa com a
magnanimidade ou expansão
do nobre (expansão que se
pode manifestar no “uso da
espada”).
À casta brâmane (que
representa o intelectual ou
clérigo) Olavo também parece
tirar a sua dualidade (na esteira
do que já foi dito a respeito da
Teoria dos Quatro Discursos);
uma dualidade que se expressa
de modo destacado na função
do clérigo como formador de
nobres ou “kingmaker”.
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
260
Na formulação dos aspectos
passivo e ativo do poder
dessas castas (aspectos que
sugerem sombria ou
acidentalmente a dualidade em
questão), como consequência
das premissas estereotípicas
usadas; nem a dualidade em
questão é bem expressa, nem a
mútua corroboração entre os
termos é claramente sugerida.
Desde a supressão da
dualidade do Segundo
Mandamento nas esferas de
ação político-históricas, surge
um embaraço adicional: como
ao aspecto comparativamente
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
261
dispersivo da dualidade
(“paz”) tem de estar correlato
um aspecto concentrado
(“justiça”); também ao aspecto
“negativo” da atuação política
tem de estar correlato um
aspecto “positivo”.
Segue disso que a pretensão da
filosofia olavista à ausência de
um “projeto de sociedade”, e a
uma atuação perfeitamente
negativa (“o trabalho do
negativo hegeliano”); tem de
ser correlata necessariamente
com um esforço positivo de
concentração concepcional e
formulação civilizacional. Se o
projeto pedagógico olavista
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
262
não reconhece esse esforço ou
não lhe atribui visibilidade ou
importância, é, como se diz em
inglês, “beside the point”.
A simultaneidade da
destruição e da construção é
um dos aspectos da “dança da
morte” travada entre as duas
testemunhas e a Grande
Cidade. Às testemunhas cabe,
comparativamente, a
concentração e a construção, à
última, a dispersão e
destruição comparativas. Esses
atributos se apresentam de
modo potencial, até ambíguo,
durante essa gestação, durante
a dança. Em todo caso, é
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
263
preciso estar próximo à
dualidade das testemunhas e
ao seu esforço de concentração
civilizacional para perceber a
correlação substancial entre a
destruição e a construção.
É claro que, porque as
testemunhas estão por
definição, antes do seu
“martírio”, alijadas de uma
posição estável de autoridade
secular, será secularmente
inconveniente reconhecer essa
correlação substancial; assim
como requererá pouco esforço
da Grande Cidade para impor
a inconveniência em questão.
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
264
Por exemplo, um autor e
etnógrafo americano, crítico
da chamada “escola
tradicionalista” fundada por
René Guénon, o senhor
Benjamin Teitelbaum; tentou
retratar o tradicionalismo (ou
perenialismo) como
subversivo ou extravagante,
em uma entrevista a
professores do Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas
da UNICAMPI.
Um dos argumentos em favor
do que o Sr. Teitelbaum
aparentemente tomaria como a
radicalidade indecente
específica do tradicionalismo é
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
265
a crítica tradicionalista
enfática do establishment
acadêmico, como se a classe
universitária estivesse em uma
condição degenerativa demais
para não ser objeto destacado
de oposição e vilipêndio. Esse
ponto de vista não é de modo
algum o teor da abordagem
literária de René Guénon, o
qual veria nisso, sem dúvida,
uma forma de ativismo bem
distante do que é típico da sua
forma de atuação.
Ainda que fosse legítimo fazer
essa atribuição que faz o Sr.
Teitelbaum, entretanto, se teria
que lidar com a consideração
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
266
de que tanto Ortega y Gasset,
um filósofo talentoso que
inspirou a criação de uma
organização secularista como a
União Europeia, sem os
auspícios de um princípio
religioso ou “tradicional” no
sentido de Guénon; quanto
Max Horkheimer (Cf. “Senhor
Feudal, Cliente e
Especialista”, 1964), um
teórico marxista com prestígio
acadêmico; estudaram e
propuseram, na prática, o
fenômeno da crescente
degradação das classes
acadêmicas. A marginalização
ou queda do “nobre”, na
acepção de Ortega y Gasset,
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
267
corresponde ao fenômeno do
desaparecimento ou
enfraquecimento crescente do
“especialista”, na linguagem
de Horkheimer.
Assim, a bandeira contrária ao
establishment acadêmico, ou
crítica dele, não é de modo
nenhum uma propriedade do
“tradicionalismo”.
Em adição a essas
considerações, e tornando a
perspicácia do Sr. Teitelbaum
tanto mais evidente, há o fato
da influência profunda e
avassaladora, a intervenção, de
René Guénon no meio
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
268
acadêmico e literário europeu,
particularmente na França.
A alegação do Sr. Teitelbaum,
que vai acima, é apenas uma
amostra, é um exemplo da
acusação xamanística que
toma o efeito psíquico como
suficiente, mesmo apartado de
alguma contraparte
concepcional. A acusação não
apenas é baseada no
escândalo, mas ela funciona
justamente por causa disso.
A ausência da dualidade
“impressão-concepção” na
esfera secular impede esse
domínio mais externo de
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
269
captar a gestação mais sutil
ocorrendo no “centro do
mundo”; porque as finalidades
da esfera secular-degenerativa
são diferentes das finalidades
da esfera da concentração
concepcional.
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
270
Capítulo VI – O simbolismo
do figo e o sonho de Olavo de
Carvalho
Existe uma relação entre os
porcos-monteses da passagem
evangélica de Lucas 8:26-39 e
a tradicional associação da
montanha com a iniciação
(sendo os porcos, ou mais
especificamente o javali, um
símbolo tradicional do
sacerdote ou do clérigo).
Como os porcos da passagem
supramencionada caem em um
lago, consequentemente, há
relação entre essa passagem de
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
271
Lucas e aquelas (e.g. Marcos
11:23) em que Jesus Cristo
fala a respeito de como uma
montanha pode ser lançada no
mar pela força da crença. A
conexão pode ser
suficientemente sugerida
tomando em conta que a
pérola (na sua raridade e valor)
pode se associar tanto à “fé
que move montanhas”, quanto
(como de fato o faz
etimologicamente) ao porco.
Entretanto, tal conexão pode
ser aprofundada com destaque
para os contextos de Marcos
11, Mateus 21, Gênese 3 e
Lucas 8.
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
272
Um primeiro ponto a respeito
de Gênese 3 é que, segundo
Santo Tomás de Aquino, o
“fruto proibido”, do qual Eva
toma, guarda paralelismo com
o “fruto do ventre” de Maria.
Esse paralelismo é tanto mais
claro porque o fruto proibido
jazia “no meio” do paraíso
(Gênese 3:3); e Deus guarda
correspondência com o
simbolismo do “centro”. Ora,
assim como o “fruto de Maria”
guarda certa continuidade com
Maria, na medida em que um
filho guarda continuidade com
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
273
a sua mãe, também é legítimo
supor que Eva guarda
continuidade com o fruto da
árvore do conhecimento do
bem e do mal. Essa
continuidade é tanto mais
compreensível porque a
mulher significa
potencialidade, processo,
gestação, precisamente o
ponto de vista acidental desde
o qual se acirra a divisão entre
o bem e o mal; como oposto
ao ponto de vista da
imutabilidade e do que é
inamovível e essencial, não
acidental. O gesto de tomar o
fruto, de Eva,
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
274
consequentemente, significa o
projetar sobre Deus (centro e
essência) o que é não divino
(circunferência, acidente);
conversivelmente, a
Encarnação no ventre de
Maria significa o projetar (de
modo restaurador) sobre o que
é não divino (a mulher na sua
acidentalidade) o seu fundo
divino.
O tomar do fruto é associado à
morte, e “morte”,
etimologicamente (desde
conotação proto-germânica),
significa precisamente “ato,
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
275
processo, condição”, isto é,
“acidente”.
Ora, ao referir a ordem divina
de não tomar do fruto
proibido, Eva (segundo a
versão Douay-Rheims)
testemunha que de acordo com
Deus apenas “talvez” eles
morressem caso tocassem e
comessem do fruto. Essa
contingência ou qualidade
relativa a potencialidade e
possibilidade (contida no
efeito do fruto), sendo
contínua com a qualidade
feminina, torna tanto mais
natural que ela tenha cedido à
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
276
tentação da serpente. A mesma
contingência, ademais, guarda
correspondência com a
passagem (Mateus 7:6) em que
há a ordem de não lançar
pérolas aos porcos para eles
“talvez” não retaliem com
agressão. Ora, o paralelismo
do fruto proibido com a pérola
decorre não apenas de
“pérola” significar (entre
outros) “fruto”,
etimologicamente, mas
também do fato de o porco
guardar uma continuidade
relativa com a pérola, assim
como Eva guarda uma
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
277
continuidade relativa com o
fruto.
Como consequência dessas
observações, se pode inferir
que, assim como o porco
corresponde no simbolismo
tradicional ao sacerdote
(etimologicamente, aquele que
sacrifica ou oferece o que é
sagrado), Eva possuía uma
condição sacerdotal e
sacrificial no paraíso. Como o
porco não poderia ter a si
lançada a pérola (que significa
“presunto” em latim,
significando o fruto da própria
mortificação) sem o risco de se
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
278
escandalizar, Eva não poderia
se aproximar do fruto no
centro do jardim sem correr o
risco de se escandalizar. Esse
paralelismo é tanto mais
estranho por causa da
continuidade do porco com a
pérola (uma continuidade
inusitada, sem dúvida); a
continuidade de Eva com o
fruto, a despeito da proibição
de aproximar-se ela dele,
sendo similarmente inusitada.
Esse mistério exige certo
recuo a uma meditação a
respeito do que seja a condição
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
279
sacerdotal. A própria
continuidade relativa de Eva
com o “centro” ou o fruto
sugere o que seja essa
condição. O sacerdote é como
o centro de onde a graça é
repartida; na esteira disso não
sendo senão inteligível que o
papa, estando no centro da
cristandade, seja o protetor e o
promotor por excelência dos
sacerdotes (graça), aquele que
os disponibiliza ao mundo. O
ponto no centro de uma roda
não se move, para que a roda o
faça; assim, é tanto mais
possível comunicar vida e a
guardar desde essa condição
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
280
imóvel. De outro lado, o
sacerdote pode ser visto desde
o aspecto da sua aparente
oposição à vida, ao
movimento, na sua
inamobilidade. É o paradoxo
do desencontro meramente
aparente entre estar estático e
estar comunicado ao
movimento — que
corresponde à oposição entre
essência e acidente –; o que,
na fala da serpente, imprimiu
curiosidade e confusão em
Eva. Se é verdade que não se
tem acesso ao fruto central (ou
relativo ao inamovível), então
parece ser verdade que não se
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
281
tem acesso aos demais frutos
(Gênese 3:1), que são a
circunferência que se move
comparativamente. O fruto
central corresponde a
“plenitude”, os demais frutos à
“copiosidade”. A tentativa de
consumir o fruto central
guarda, assim, a pretensão
figurativa de tornar o centro
inamovível móvel para melhor
se comunicar consigo, porque
o consumo supõe mudança e
movimento, o que guarda certa
correspondência com Gênese
6:2, a respeito da pretensão
aparente ou duvidosa de certos
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
282
anjos de tomar mulheres por
esposas.
A pretensão, assim, sendo a de
se dirigir a mulher (que
representa o acidente ou
movimento) ao fruto
inamovível; a despeito do fato
de previamente ter havido
comunicação, e mesmo certa
continuidade, entre a mulher e
o fruto; como há comunicação
e continuidade entre o centro
da roda e a sua circunferência.
A perda da condição
sacerdotal e “divina”, assim,
decorreu da inadvertida
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
283
tentativa de se aproximar de
uma condição sacerdotal e
divina que já havia. Por outro
lado, aquilo que Deus havia
prometido se encontrar no
fruto proibido, correspondendo
a uma contingência (“um
talvez”), era um movimento,
um domínio acidental, e não
inamovível; por oposição à
inamobilidade do se
permanecer no “paraíso de
prazer” (Gênese 2:15) alheio
às aflições associáveis ao
domínio acidental.
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
284
Afinal, Eva procurou a
essência ou o acidente no fruto
proibido? O próprio fruto, ou
ao menos o se aproximar dele,
é essa distinção entre essência
e acidente (ou bem e mal). O
se associar a condição
paradisíaca ao centro sugere
uma concentração e
indiferenciação primordial
entre a essência e o acidente;
por isso a possibilidade de
uma diferenciação se tem
suficiente sugestão de que só
possa ter partido desde esse
próprio centro. O tomar do
fruto foi uma escolha
(acidente) e ao mesmo tempo
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
285
uma necessidade (essência),
um mistério que está
subjacente no fato de que a
serpente “era a mais sutil das
bestas da terra que o Senhor
Deus tinha feito” (Gênese 3:1),
porque o termo “sutil” conota
um emaranhado ou uma
multiplicidade (diferenciação)
subjacente ou discreta. Essa
qualidade pode ser destacada
pela associação tradicional da
serpente com o número nove,
já que o nove se associa tanto
à universalidade ou
“plenitude”, porque
compreende todos os
algarismos arábicos, quanto
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
286
(subjacentemente) à
particularidade, porque supõe
cada um dos algarismos
tomados separadamente
(“copiosidade”). Tanto essa
universalidade quanto essa
particularidade são subjacentes
ou a princípio latentes,
bastando comparar o nove
(chamado pelos pitagóricos de
“número sem sorte”) com o
número dez, cuja aparência de
completude etc. é mais
manifesta.
É uma intenção deste estudo
examinar, à luz desse
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
287
paralelismo, qual o sentido de
Marcos 11:23, a respeito da
“montanha que se lança no
mar”.
Para isso recuo é necessário à
aos capítulos Marcos 11 e
Mateus 21. Ambos começam
com a entrada triunfal de Jesus
em Jerusalém. Mateus 21:1
refere que Jesus Cristo e os
seus chegaram a Betfagé (uma
cidade que significa “casa de
figos não maduros”). Marcos
11:1 refere que Jesus Cristo e
seus discípulos se
aproximavam (não refere que
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
288
chegaram) à cidade de Betânia
(que quer dizer “casa de
figos”).
Em Marcos se refere a um só
jumento ou potro, em Mateus
a uma mula e sua cria ou
potro; sobre os quais senta-se
Jesus quando da sua entrada
triunfal. A dualidade como
associada ao potro (a mãe da
cria, já que o feminino se
associa à dualidade),
entretanto, não está ausente em
Marcos de todo, porque o
potro é achado “ante um
portão de fora no encontro de
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
289
dois caminhos” (Marcos 11:4).
Logo, a mãe do potro
corresponde a essa dualidade.
Como o jumento tem uma
conotação satânica ou
pejorativa, e o sentar-se de
Jesus sobre o jumento
significa precisamente o
triunfo sobre o mal, a mãe do
jumento também tem uma
semelhante conotação, por isso
mesmo ambígua. O encontro
dos dois caminhos ao pé de
um portão supõe tanto a
advertência a respeito do
“portão estreito” e os dois
caminhos que se pode seguir
(Mateus 7:13), caminhos
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
290
associáveis ao “império de
bronze” (e ao discurso
dialético), quanto a ideia de
uma indistinção entre os dois
caminhos na escala da
eternidade (eternidade na qual
todo mal é dissipado ou
perfeitamente sujeito ao jugo
divino, como o jumento e o
estranho dono do jumento
estão sujeitos à entrada
triunfal).
A ideia dessa indistinção
permite devolver o presente
estudo ao paraíso de Gênese,
tanto por causa de uma alusão
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
291
a uma indistinção primordial
entre bem e mal; quanto por
causa do jogo temático com
“figos”, maduros ou não
distintamente imaturos em
Marcos (“Betânia”) e imaturos
em Mateus (“Betfagé”);
porque a primeira coisa que
Adão e Eva fizeram ao
apreender os efeitos de tomar
o fruto proibido foi costurar
para si mesmos aventais com
folhas de figueira. A
proximidade das localidades,
Betânia e Betfagé, sugere a
proximidade paradisíaca entre
bem e mal. Tais sugestões
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
292
parecem implicar que o figo é
o próprio “fruto proibido”.
Ora, o termo “potro” na versão
Douay-Rheims é referido
como “colt”, que sugere tanto
o jumento jovem, quanto o
cavalo jovem, e até mesmo
(em um sentido
etimologicamente mais
remoto) o javali jovem,
também a criança humana
jovem. Que Marcos fale
apenas de um jumentinho, e
Mateus de um jumentinho e
sua mãe, significa
precisamente a tentativa de
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
293
propor a proximidade entre
antigo e novo, maduro e
imaturo, ápice e gestação,
entre bem e mal, entre
essência e acidente. Como
“potro” se refere,
etimologicamente, também a
crianças, as crianças
exclamando “Hosana!” em
louvor de Jesus no templo dez
versos mais adiante, em
Mateus 21:16, são um
prolongamento do potro (isso
é reforçado porque tal
prolongamento é anterior ao
encerramento do tema da
figueira, iniciado no início do
capítulo discretamente). A
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
294
simultaneidade do louvor das
crianças e da indignação dos
escribas e sacerdotes do
templo corresponde à
simultaneidade ou
proximidade indistinta
primordial do bem e do mal,
da mãe e da cria, dos dois
caminhos.
Essa mesma proximidade entre
bem e mal é significada pela
multidão durante a Entrada
Triunfal a jogar mantos e
ramos sobre o caminho. Em
Mateus 24, entre outros, uma
continuidade é estabelecida
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
295
entre “sobreveste” e “casa”,
significando que as duas
coisas, sendo fruto do criar
humano, guardam certa
correspondência com a
dimensão psíquica humana. O
lançar a veste sobre o caminho
é um oferecer ou submeter os
próprios pensamentos a Cristo,
enquanto os ramos (que
etimologicamente significam
“braços” ou “armas”)
significam o lançar ou
submeter a Cristo as próprias
ações. Ora, pensamento e ação
correspondem a essência e
acidente, e, portanto, a “bem e
mal”, significando mais uma
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
296
sugestão alegórica da
associação da Entrada Triunfal
com a condição paradisíaca.
A proximidade indistinta entre
bem e mal é significada,
também, pela exclamação
“Hosana!”, já que ela significa
tanto um louvor grato (bem)
quanto um pedido de socorro
(mal).
Em Marcos 11:12-14 é
narrado o fato de Jesus
amaldiçoar a figueira por não
haver dado fruto, sem que ela
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
297
secasse de imediato, mas
secasse miraculosamente
apenas quando da volta à sua
visita ao templo. Em Mateus
21: 18-22 é narrado o fato de
ela secar imediatamente, e no
contexto da volta do templo.
Isso também sugere uma
proximidade e indistinção,
entre o potencial e o actual (ou
mal e bem), que correspondem
ao acidental e o essencial.
Ora, nessa esteira parece que
há certa continuidade entre
figo (o fruto proibido), e os
aventais costurados por Adão
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
298
e Eva com folhas de figueira.
Há certa similaridade
vocabular entre “figo” (no
inglês “fig”) e palavras como
“figment” ou “figure”, que
derivam de certa raiz que
significa “aquilo que é
formado, construído”. Existe
certo laço profundo entre
aquilo que é incriado (o fruto
proibido) e aquilo que é criado
pelo homem (os aventais).
Esse laço é alusivo da unidade
de fundo entre bem e mal,
entre essência e acidente.
Ademais, os aventais se
associam, etimologicamente, à
conotação de algo que é “útil”
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
299
como oposto a “bom em si
mesmo”, sugerindo essa
oposição mais uma unidade
subjacente na oposição.
A associação, aliás
multimilenária, entre o figo e
certo gesto sexual insultuoso,
deu origem ao termo
“sicofanta”. Assim, o figo
necessariamente sugere,
ordinariamente, o mal, como a
nudez tornada vergonhosa pela
ingestão edênica do figo. Esse
aspecto do figo é mais uma
sugestão da proximidade entre
bem e mal, ou, no jargão
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
300
aristotélico, do fato de que
ambos vício e defeito, opostos
um ao outro, guardam certa
relação com um centro de
equilíbrio de que são uma
imagem ou projeção.
Tais considerações permitem
retornar à relação entre os
porcos-monteses gadarenos de
Lucas 8:26-39, que caem de
um precipício para o lago, e a
passagem (no contexto da
figueira tornada seca) de
Marcos 11:23, sobre a
montanha lançada no mar pela
força da crença. Esse
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
301
paralelismo termina de
resolver o mistério de quão
estranha é a continuidade
subjacente entre o porco e a
pérola. A pérola é um objeto
do oceano ou do meio
aquático, e não tem vida;
enquanto o porco é terrestre, e
mesmo inclinado à montanha,
e vivente. A pérola é rara, o
porco é comum. A pérola
encoraja, o porco não, ou se o
faz enquanto símbolo do
sacerdote, o faz de um modo
mais sutil e indireto, como o
sacerdote. O encontro desses
dois objetos é tão inusitado
quanto o encontro entre a
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
302
montanha e o mar, como o
encontro entre o bem e o mal,
como o encontro entre
essência e acidente.
A montanha supõe um
conhecimento sagrado perene
(o bem), as águas a
mutabilidade das formas (o
mal). De outro lado, a
possessão demoníaca dos
porcos a pastar na montanha
associou a montanha (bem) ao
mal, e fez que as águas (mal)
protagonizassem um bem ( o
sufocar dos porcos tornados
maus pela possessão). Esses
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
303
paradoxos são prolongamentos
do simbolismo do “fruto
proibido”.
Há um aspecto do simbolismo
da Grande Cidade apocalíptica
que adiciona ao mistério do
figo (conforme pretendo
presentemente propor). Se
trata do fato de a meretriz,
uma variação da Cidade, estar
sentada sobre “muitas águas”,
como as águas nas quais a
montanha é lançada; que
constituem a um tempo a besta
e o mar de onde sai a besta
(significando uma indistinção
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
304
pejorativa entre princípio e
principiado, isto é, uma
perversão da ideia de
hierarquia). A meretriz, à luz
disso, e no seu caráter
degenerativo, parece
corresponder à montanha no
sentido pejorativo da
associação sua com os porcos
gadarenos.
Esse repousar sobre as águas
sugere um mistério justamente
porque as águas não servem
para se repousar. O verbo
usado no texto é “sentar”,
além de “governar” as águas.
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
305
A ideia de estar em inatividade
(repouso) está ligada à ideia de
governar, por isso a cadeira é
um símbolo do poder. Mesmo
o flutuar nas águas, embora
possa se associar ao lazer ou
deleite conversíveis com
repouso, não se adequa à ideia
de repouso perfeitamente;
porque jazer na água requer
constante estar atento, e de
todo modo não supõe
inamobilidade mas sim
constante deslocar-se.
Esses traços supõem um
paralelismo com a “mulher
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
306
vestida do sol”, a qual se acha
no deserto como a meretriz. O
“sol” corresponde ao “rei dos
reis” que está no seu ventre; o
qual necessariamente repousa
no seu ventre ou interior. O
paralelismo indica que de uma
mulher para a outra foi
invertida a função; isto é, a
mulher vestida do sol serve
como a “cadeira” onde o
princípio se assenta; apesar de
que essa condição é efêmera
por causa do parto, do dar à
luz próximo; enquanto a
meretriz usa as “águas” (que
simbolizam precisamente a
ausência de um centro ou
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
307
princípio) como “cadeira”. O
paralelismo supõe uma
inversão.
Essas noções naturalmente
guardam correspondência com
certas noções do hinduísmo, a
saber, “purusha” e “prakriti”,
as quais não chegam a
coincidir com a dualidade
escolástica de “ato” e
“potência”, mas guardam
consigo correspondência. A
palavra “purusha” significa
etimologicamente, em parte,
“cidade em repouso”. As
cidades são expressões
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
308
externas e extensivas de
concepções, nisso
simbolizando que a origem do
extensivo ou quantitativo é
uma qualidade desprovida de
todo valor quantitativo, e
repousando ou “habitando” a
quantidade, independente da
sua manifestação particular. A
cidade, portanto, é a expressão
externa, potencial e
“substantiva” de um princípio
interno, actual e “essencial”. A
noção de purusha significa
justamente a noção da unidade
subjacente entre esses dois
polos, e a sugestão do caráter
mais elevado do polo “em
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
309
repouso” ou alheio a todo
acidente. Ora, quando isso é
comparado com o paralelismo
apocalíptico entre as mulheres,
se nota que a mulher vestida
do sol é a cidade nesse sentido
(“purusha”), significando que
há uma unidade substancial
entre ela e o “rei dos reis” no
seu interior, que é o “sol” cujo
resplandecer imaterial sugere o
repouso ou a inatividade.
De outro lado a meretriz
parece estar desolada e
apartada desse interior solar, e
o repousar dela sobre as águas
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
310
significa um ecoar ou imitar o
interior em repouso de que ela
carece. Quando o polo
essencial está presente (sol), o
polo substancial é ordenado e
purificado (mulher). Quando
ele está ausente, e portanto
quando está ausente a
dualidade de “interior”
(concepção) e “exterior”
(impressão), o polo
substancial-exterior se arroga
tiranicamente a função de
repousar.
Essas observações não
esgotam o assunto, porque
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
311
sucede que o texto
apocalíptico diz que as
“muitas águas” não toleram
pacificamente o serem usadas
como “cadeira”, o que no fim
chega até a ser previsível, e
eventualmente devoram (na
forma dos chifres da besta,
significativamente aspectos
“sem vida” da besta) a carne
da meretriz; fazendo com que
desde a sua pretensão de
repousar sobre as águas e
assim imitar a função de um
seu interior e unidade, ela
termine no interior das águas
feita em pedaços. Uma
exemplificação contingente
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
312
disso seria o tomar riquezas
materiais (correspondendo ao
polo substantivo) como
valores auto-bastantes e não
meramente simbólicos ou
alusivos de uma riqueza
interior, assim se submetendo
ao apego a elas desembocar
(sem a intervenção essencial
de um elemento “vivente”) na
constatação de certa
insuficiência no se orientar, e
em sofrimento.
A esse respeito é significativo
que no filme “Lara Croft:
Tomb Raider” (2001) a
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
313
protagonista tenha dois
grandes ajudantes, o mordomo
antiquado Hilary, e o
tecnologista Bryce. O
mordomo Hilary se associa à
casa, e guarda a “essência” do
seu interior, não obstante de
modo degenerativo (qual
significado pelo perda do pai
de Lara pairando sobre o
ambiente doméstico). Não
existe grande distância entre
uma mansão e uma cidade, em
termos de simbolismo,
especialmente se a mansão é
nobre (como no caso do
filme), uma vez que a cidade é
apenas uma extensão ou
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
314
prolongamento do seu coração
ou palácio central. Bryce, de
outro lado, corresponde ao
“mar”, ao idiossincrático e
sem forma. Assim, é tanto
mais significativo que Bryce
não habite no interior da
mansão, assim como as
“muitas águas” não habitam a
meretriz, mas esta usurpe a
condição de princípio interior.
Com mais de oitenta quartos
na mansão, Bryce prefere
viver em um trailer fora.
Esse detalhe simboliza a
impossibilidade daquilo que
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
315
não é interior ou principial
(“as muitas águas”) de habitar
e vivificar a “mansão”. As
“muitas águas”, entretanto,
sendo algo “que era e não é”,
são um reflexo, conquanto
degenerado, do sol interior; e
por isso foram geradas
remotamente por esse sol e
têm uma função a
desempenhar na ordem total
das coisas. Essa é uma
explicação para o título dado a
Maria de “estrela do mar”,
significando a conciliação em
si da oposição entre bem e
mal. E sucede que o filme Lara
Croft: Tomb Raider (2001)
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
316
gira em torno do simbolismo
da estrela e do mar, embora
não caiba aqui maiores
detalhes.
A pretensão da filosofia de
Olavo de Carvalho de
“eliminar a dualidade do
racional e do intuitivo,
reduzindo tudo ao intuitivo”
corresponde a essa tentativa
das águas de devorar a Grande
Cidade, a Meretriz. É claro
que, porque as águas guardam
uma unidade subjacente com o
“sol” que é o princípio remoto
da estabilidade da Grande
Cidade, essa pretensão não é
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
317
infundada sob todo ponto de
vista; nem é possível negar
que esse processo de digestão
tenha uma razão de ser
benéfica desde certo ponto de
vista mais elevado.
Esse ponto de vista elevado, o
fundo benéfico por trás da
dissipação das águas, é como a
figueira estéril do evangelho
cuja associação discreta com o
figo está dada pela
comparação narrativa de
“acto” (Mateus 21:18-22) e
“potência” (Marcos 11:12-14),
referida antes. Assim, o fruto
da árvore da vida se esconde
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
318
por trás da figueira estéril,
como o sol por trás das muitas
águas.
Isso equivale, implicitamente,
a uma resposta a certo
missionário anticristão, o
Rabino Michael Skobac, o
qual corretamente observou
que o Antigo Testamento
propõe que o messias não
praticaria a violência, e no
entanto Jesus Cristo foi
violento com a figueira, a
fazendo secar.
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
319
Se a figueira representa a
acidentalidade de superfície
escondendo o fruto da vida,
então o fazer ela secar tem o
sentido, por exemplo, de
representar a dissipação da
antiga religião, para dar à luz
uma nova. Tem o sentido de
representar a morte do próprio
Jesus na sua aparência
terrestre (correspondendo ao
endereçamento do jovem rico,
que o chamou “bom mestre”),
a “impressão” se dissipando
para dar lugar à concepção, à
vida celeste. A violência
alegada pelo rabino é só uma
benevolência envolta em
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
320
mistério; um ato cirúrgico, não
um mal em detrimento de
algum bem, que define a
violência em sentido ordinário.
De todo modo, o acirramento
da impressão de que o devorar
das águas é tão só o que parece
ser (olavismo e teoria da
presença), corresponde de
algum modo à impressão do
rabino de que o secar a
figueira é tão só o que esse ato
parece ser; isto é, uma vez
perdida de vista a dualidade de
“ato” e “potência” (etc.)
supramencionada.
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
321
Essa impressão de algum
modo é contínua com um
sonho que Olavo de Carvalho
mencionou em alguma
gravação pública, sonho em
que ele, Olavo, se via no
paraíso; mas a sua esposa, no
paraíso, era uma criança e não
uma pessoa adulta. Se trata
mais propriamente de um
pesadelo. Esse sonho é
análogo àquele de Maquiavel:
o sonho de que no inferno
estavam os pensadores
clássicos que Maquiavel
admirava, e no paraíso pessoas
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
322
de caráter inferior ou
desinteressante, desde cuja
consideração Maquiavel
preferiu habitar o inferno.
Nos dois casos o paraíso é
apresentado não como um
lugar ideal, mas como um
lugar infernal. Isso tem a ver
com o paraíso corresponder à
Grande Cidade, na sua
condição degenerativa, e o
inferno corresponder às águas
que devoram a cidade, as quais
têm um sentido
intrinsecamente ambíguo,
maléfico e benéfico.
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
323
O “paraíso” de Olavo traz a
sua esposa em uma faixa etária
“infernal”. Esse fato sugere
que o atribuir à fase primitiva
ou “jovem” do discurso, que é
o “império de ouro” (poesia),
uma qualidade insuficiente
relativa ao “principiar” a tão-
só impressão ou possibilidade;
em detrimento da concepção;
voltou para assombrar o seu
autor. A esse respeito é
significativo que, de um lado,
a infância seja associada (por
Robert Greene) à natureza,
que, como visto, corresponde à
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
324
impressão (ou à tão-só
possibilidade); porque a
ingenuidade e demais
características infantis têm a
aparência de algo “natural”,
não premeditado; de outro
lado, que o discurso poético,
enquanto discurso ou
“construção raciocinante”, seja
necessariamente “feito por
mãos”, e sob esse aspecto seja
artificial. É esse paradoxo,
esse serem Cidade e águas, luz
lunar e mar noturno, paraíso e
inferno, dois lados da mesma
moeda, que parece assombrar
o sonho em questão; desde a
falta do atinar que ser algo
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
325
“natural”, do mar noturno, não
equivale a ser “não feito por
mãos” sob todo ponto de vista;
isto é, o ser algo “natural” tem
diferentes acepções, a mais
elevada (“luz solar”)
dissipando a dualidade e ao
mesmo tempo clarificando o
vínculo entre essência e
acidente.
A “fase de ouro” é vista como
insuficiente, e por isso mesmo
o seu caráter paradisíaco é
questionado. Onde Olavo
deveria ver o princípio solar
habitando a Grande Cidade
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
326
(purusha), ele vê a Grande
Cidade extensa resistindo à
sua assimilação às águas, ou
sendo devorada pelas águas;
daí a estranheza da “esposa
infantil” (não extensividade).
A Grande Cidade representa a
própria esposa, ambas
representam o mundo secular.
Para Olavo de Carvalho se o
mundo secular não é
vivificado ou principiado no
seu curso pelas “muitas
águas”, que representam um
estágio ulterior de
desenvolvimento, não o
estágio primaveril (“império
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
327
de ouro” e purusha), não é
realmente possível se
relacionar com o mundo
secular, e a tentativa de fazê-lo
soa absurda e infernal; assim
como é absurdo que as “muitas
águas” devorem uma cidade
não dilatada ou não extensiva
(“esposa infantil”).
Que a esposa represente o
mundo secular é indicado, por
exemplo, em que um dos
principais sinais simbólicos do
assumir sua vocação, da parte
do nobre, é o matrimônio, o
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
328
qual encarna o seu senso de
dever.
A atuação solar sobre a mulher
“vestida do sol”, mulher que
corresponde às duas
testemunhas; é uma atuação
“exilada” ou apartada em
aparência do centro da arena
secular (“deserto”). É aí que
está a condição paradisíaca;
assim como a condição
paradisíaca está no “olho da
agulha”, como oposto ao
“camelo”.
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
329
Capítulo VII – Simbolismo do
filme “O náufrago” (2000)
O filme “O náufrago” casa-se
com o tema presente, acredite
o leitor se quiser.
Na história, estrelando o ator
Tom Hanks, o protagonista
chamado Chuck Noland é um
funcionário da FedEx, uma
empresa de remessa expressa
de correspondência, e um
homem num relacionamento
sério com uma mulher
chamada Kelly Frears (eles
moram em Memphis,
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
330
Tennessee). Ele desempenha
atividades no exterior, e
supervisiona ou treina outros
funcionários, sendo uma
pessoa obcecada com a
administração otimizada do
tempo. O filme destaca a sua
atuação na Rússia, antes de um
acidente de avião que o torna
um náufrago, com um
propósito.
A Rússia expressa a ideia de
uma civilização cujos
princípios secularistas ou
existencialistas entraram em
relativa e desvelada
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
331
decomposição (fim da Guerra
Fria), numa espécie de
interstício ou suspensão
desafiando o senso comum de
propósito. Isso é uma espécie
de “autoexílio civilizacional”,
e um “congelamento do
tempo”.
No exílio, como o que viveu
Chuck Noland por anos em
certa pequena ilha não
habitada (e sem significativa
esperança de resgate), depois
do acidente de avião; ele foi
cortado ou separado do
“movimento” e da
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
332
“transmissão palpável” em
relação ao mundo secular.
Essa condição foi tão
purificadora, em certo sentido,
quanto foi não purificadora a
pretensão de Eva (no paraíso)
de se ligar de um modo
palpável ao fruto “no centro”
inamovível, a fim de tornar
mais palpável a relação entre o
fruto no centro e os demais
frutos.
A ilha do naufrágio representa
esse não mover-se, esse estar
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
333
apartado das transformações
do mundo secular. Significa o
próprio Jardim do Éden; tanto
quanto a condição paradisíaca
está simbolizada na vida
monástica, a comunicação
entre a falta de movimento no
monastério e o movimento do
mundo ordinário sendo sutil
em paralelismo com ser sutil a
comunicação do fruto no
centro do jardim com os
demais frutos.
Existem dois sinais da
purificação pela qual passa
Chuck Noland na ilha,
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
334
enquanto tenta sobreviver no
ambiente “natural” ou “não
feito por mãos”. O primeiro é
a sua dor de dente e o arrancar
o dente, para aliviar a dor.
O dente simboliza uma
concupiscência, um desejo,
especificamente (em um
sentido mais ou menos
destacado) no contexto de
desejar provar o que é relativo
ao “ter todo tempo do mundo”,
à juventude; daí a expressão
inglesa “colt’s tooth” (“dente
de potro”), que significa
“devassidão”, “desejo”. Não
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
335
por coincidência a parceira de
Chuck Noland, Kelly Frears,
se casa com o dentista de
Chuck durante o naufrágio. A
função do dentista é cuidar da
manutenção do atendimento da
concupiscência.
O sacrifício da
concupiscência, da parte de
Chuck e desde a ilha (desde o
“centro”), tem a sua
contraparte na manutenção da
concupiscência no mundo
secular (na circunferência). A
comunicação entre esses dois
termos, “sacrifício” e
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
336
“atendimento da gratificação”,
está no centro do mistério da
história sobre o paraíso.
Um outro sinal do caráter
purificador da estadia de
Chuck na ilha, tem a ver com
o seu “amigo de mentirinha”,
uma bola de volleyball
(contida em uma das remessas
da FedEx) que Chuck apelida
“Wilson”, e com quem
mantém “conversas” para
exercer o próprio senso de
urbanidade e não se sentir tão
só.
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
337
Wilson é um ídolo, de certo
modo. Não só porque é um
objeto “feito por mãos” como
as estátuas, e literalmente
impresso com a marca de
sangue (este uma das três
testemunhas terrestres) com o
formato da mão de Chuck. Ele
é um ídolo porque é a
manifestação da necessidade
de se ser encorajado ou
vivificado por aquilo que não
tem realmente vida. Wilson,
com efeito, representa o
acidente que perdeu o vínculo
com o essencial, o
existencialismo.
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
338
O contínuo se desgastar, de
Wilson, expressa a contínua
“purificação” de Chuck
Noland; o clímax disso sendo
a perda de Wilson em alto-
mar, no meio das “muitas
águas”, quando da fuga
decisiva em relação à ilha.
Como Chuck, ao perder
Wilson, se tornou menos
“acidental”, menos uma
sombra de si; assim como o
personagem Frodo Bolseiro
(Senhor dos Aneis) ao destruir
o “um anel”; se pode dizer que
de certo modo Chuck e Wilson
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
339
são o mesmo, ou o segundo
era um espelho do primeiro.
A forma de atuação no mundo
secular contemporâneo, das
pessoas dedicadas à
contemplação, tem esses ares
dramáticos.
Após o seu regresso ao mundo
secular Chuck Noland não é
mais o mesmo. Os detalhes
simbólicos por trás disso são
intrincados, e desnecessários
ao escopo do presente narrar.
Baste a menção de que o
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
340
protagonista tenta de algum
modo “retomar” de onde
parou, dirigindo aos
destinatários as encomendas
de que se valeu no naufrágio,
entre elas uma bola de
volleyball nova em folha.
No retorno de uma das
entregas, não tendo sido
atendido à porta mas tendo
deixado a encomenda na
soleira, Chuck estaciona o
carro em uma encruzilhada e
consulta um mapa. Uma
mulher estaciona ao lado e lhe
orienta sobre o caminho, e
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
341
sucede que ela é a mesma
pessoa (sem que ele se dê
conta de imediato) a quem ele
acabara de deixar a
encomenda, uma mulher
chamada Bettina Peterson. A
encomenda dela era a única
que ele não tinha aberto
durante a sua estada na ilha.
Essa encomenda representa o
“fruto proibido”, e não a haver
aberto representa o se apartar
da tentação da serpente. Há a
sugestão de que o conteúdo no
embrulho se associa ao
símbolo das “duas asas de
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
342
anjo” que estão tanto no
embrulho quanto na
caminhonete de Bettina
Peterson. As duas asas se
associam às “duas asas de uma
grande águia” que são dadas à
mulher vestida do sol
(Apocalipse 12:14) no exílio
dela no deserto. A dualidade
das asas guarda
correspondência com as duas
testemunhas, e com o próprio
fruto proibido.
A Ms. Peterson, com efeito, é
uma espécie de contraparte de
Chuck Noland, assim como os
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
343
elementos do fruto (“bem e
mal”), por exemplo em que
aparentemente ambos tiveram
relacionamento amoroso
interrompido ou rompido.
O encontro e simultâneo
desencontro entre eles é mais
uma variação do mistério da
aparente não comunicação
entre o fruto no centro do
jardim e os demais frutos, isto
é, o mistério de uma
comunicação sutil, como
oposta a palpável.
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
344
A cena final em que Chuck
mira para as direções de
estrada, no centro da
encruzilhada, representa o
inesperado se achar no
“centro”, apartado de todo
acidente ou possibilidade
particular munido da
“suspensão temporal
máxima”; pressionado pela
pergunta “E agora?” como
quem tivesse terminado de
ouvir a canção do rouxinol.
Ele saíra da ilha mas a ilha não
saíra dele, porque a eternidade
compreende todos os tempos e
lugares.
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
345
A mesma situação retratada no
filme acometeu o Apóstolo
Pedro. Certo estudo histórico
de um autor chamado Sean
McDowell sugere que os
historiadores seculares
consideram estranho Dionísio
de Corinto (segundo registrou
Eusébio de Cesareia) a
mencionar em carta ao Papa
Sóter, séc. II, que os apóstolos
Pedro e Paulo tenham fundado
a Igreja de Corinto juntos, e
tenham ensinado em Corinto
juntamente, assim como o
fizeram em Roma. A
estranheza se deve ao fato de
Atos dos Apóstolos, e as
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
346
epístolas, não mencionarem
explicitamente esse fato,
quando houvera oportunidade
ampla de o fazer.
É possível que a explicação
disso tenha a ver com o
Apóstolo Pedro ser o
personagem “Áquila” (que
significa “águia”), com quem
Paulo esteve hospedado em
Corinto. A passagem de Atos
18 não esclarece se Áquila e
sua esposa (Priscila) tinham
sido convertidos e batizados
antes (ou depois) de encontrar
e receber Paulo na sua morada
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
347
de exílio, nem tampouco
explica por que o Imperador
Cláudio expulsara os judeus de
Roma, trazendo inconveniente
para Áquila.
Logo após a hospedagem de
Paulo eles (Paulo e Áquila) se
associam na indústria de
fabricação de tendas, o que
seguramente tem um sentido
esotérico. Em primeiro lugar
porque “tenda” significa a
formulação psíquico-
discursiva que ampara uma
situação civilizacional
principiante (por exemplo, no
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
348
tema da tenda de Noé após o
dilúvio), como oposta a uma
situação civilizacional
avançada, qual ilustrada na
construção do Templo de
Jerusalém. Em segundo lugar
porque, de acordo com um
canonista americano chamado
Charles Augustine, o Apóstolo
Paulo tem como título sacro
“fazedor de tendas”.
O motivo para a expulsão dos
“judeus” de Roma, portanto, o
próprio paralelismo com a
passagem em Gênese a
respeito da “tenda” de Noé
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
349
sugere qual seja: esse
paralelismo é que assim como
Noé escandalizou o seu filho
Cam quando foi achado
“embriagado” na sua “tenda”,
o Apóstolo Pedro escandalizou
os romanos ao transmitir um
conhecimento tecnicamente
judaico. Isso de algum modo
confirma certas lendas não
bíblicas sobre São Pedro ter
sido uma figura bem
conhecida de Roma, qual é
sugerido em certas tradições
hagiográficas em torno da
biografia do Papa Alexandre I.
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
350
Na esteira disso é mais do que
natural que um historiador dos
tempos de Mânio Glábrião
(um cristão primitivo da elite
romana), como Cassio Dio,
tenha falado a respeito de uma
perseguição de políticos
importantes por causa da
adesão deles a certas
novidades judaicas, se tratando
evidentemente da adesão ao
cristianismo.
No cenário em questão a
dificuldade de Pedro
corresponde ao que os
estudiosos de Stanford, Dan e
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
351
Chip Heath, chamaram “a
maldição do conhecimento”
(Cf. o livro “Ideias que
colam”), o conhecer tão
perfeita e extensivamente um
assunto quanto a ignorar a
extensão da ignorância alheia.
Pedro conhecia tão
perfeitamente a unidade
subjacente entre essência e
acidente, o vínculo íntimo no
tecido de continuidades entre o
cristianismo e o judaísmo, que
ele tinha dificuldade de
perceber a incapacidade alheia
de perceber esse vínculo. Isso
é provavelmente suficiente
para explicar o conflito entre
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
352
Pedro e Paulo entre os gálatas,
e é significativo a esse respeito
que São João Crisóstomo
tenha proposto que esse
conflito foi algum tipo de
“encenação”, portanto não
sendo um conflito em um
sentido ordinário.
Paulo era capaz de ver a
ignorância alheia, inclusive o
seu protagonismo na fundação
da Igreja de Corinto tem
precisamente a ver com o
sofrimento de ter de
testemunhar essa ignorância e
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
353
ainda se carregar de esperança
como pregador.
Assim como Noé (qual Adão e
Eva) teve de ser “coberto”, a
fim de se cobrir a sua nudez e
remediar a sua embriaguez,
São Pedro teve de ser
“coberto” na passagem para
contornar a dificuldade de
explicar a sua dificuldade
específica, uma dificuldade
paradoxal decorrente de uma
vantagem; incluso coberto
com um “ofício industrial”, o
que lembra os aventais de
Adão e Eva.
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
354
O papel de São Paulo junto a
Pedro, assim, era o de servir
de “filtro” ou intermediador a
promover um ajuste
discursivo. Se Pedro é o
vigário de Cristo, Paulo é um
reflexo vicário do sopro de
Cristo sobre os discípulos
(João 20:22), o qual sopro é o
Espírito Santo. Se Cristo é o
grão de trigo que tem de
morrer para frutificar (João
12:24) – o fruto se associa ao
Espírito Santo, enquanto
distribuidor de dons e
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
355
“consolador enviado” –, Pedro
tinha de se manter em relativa
obscuridade, por assim dizer
“morrer” para o mundo, a fim
de a sua condição
contemplativa e concentrada,
inamovível e movente,
permitir a atuação e a
intervenção de Paulo no
mundo.
Na associação de “Pedro” com
“águia” é curioso, conforme
antes observado, que a
linguagem bíblica permita um
paralelismo entre a “rocha não
cortada por mão” (Daniel
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
356
2:34) e as águias reunidas em
torno dos corpos (Mateus
24:28); porque o nome
“Pedro” basicamente significa
“rocha”.
O detalhe de que “Áquila” fora
nascido em Pontus, na
Anatólia, também é
significativo. Esse termo,
“Pontus”, sugere
etimologicamente tanto
“ponte”, donde vem
“pontífice”, quanto “mar”,
donde está sugerida a ideia de
multiplicidade e de aparências
irreconciliadas ou distintas. O
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
357
cenário da atuação apostólica é
justamente o de conciliar
unidade e multiplicidade, ou,
mais alegórico, o fazer o
obscuro chegar ao claro, a
águia chegar ao corpo.
Nesse sentido, tem conotações
subjacentes o detalhe de que
Áquila era casado com uma
mulher chamada Priscila (São
Pedro era casado, embora
decreto do Papa São Sirício
deixe claro indiretamente que
ele estava obrigado, como
clérigo, a se abster de
relações). O termo “Priscila”
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
358
conota etimologicamente, a
ideia de “anterior”, e também
de “superior”. Isso sugere o
“oriente”, que é superior
porque anterior
(concentração). Disso decorre
que Priscila pode conotar
adicionalmente a Igreja como
oposta à sinagoga, isto é, que a
Igreja é a expressão não
degenerada ou apartada de
desvios, em relação à
sinagoga, como Cristo é
associável à semente
precedendo o desenvolvimento
do fruto e a eventual
decadência do fruto. De outro
lado, a palavra “Priscila”
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
359
também conota “posterior”,
não apenas “anterior”, o que é
uma ambiguidade inerente à
eternidade do caráter doador
de vida do Verbo, e ao caráter
da Igreja de fundação e algo a
ser desenvolvido e a frutificar.
Um último ponto é que o
nome “Áquila” tem um
fonema que une “quê” e “ele”,
e isso é uma expressão
invertida de parte dos nomes
“Melquisedeque” e
“Melchior”. A etimologia de
“Melquisedeque” é “rei de
justiça”, em que o fonema
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
360
discutido corresponde a “rei”.
Esse paralelismo sugere a
associação do poder real ao
segredo; e do poder temporal,
“externo”, com um reflexo de
espelho em relação ao poder
exercido em segredo.
Essa sugestão também é
contínua, de algum modo, com
a ideia de que o Apóstolo
Pedro foi crucificado de
cabeça para baixo, de modo
invertido; para significar o ser
ele um reflexo do Pastor
Eterno, não um estrito
equivalente.
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
361
No entanto, os dois apóstolos,
Pedro e Paulo, não apenas são
em aparência igualmente
associados à Sé Romana (por
exemplo, em um padre como
Santo Irineu, séc. II); como se
diz que a Festa de São Pedro e
São Paulo é um dos dias mais
sagrados do calendário
litúrgico.
É um dos alegados trunfos do
filósofo Olavo de Carvalho
contra René Guénon que este
último tenha proposto como
distintas as noções metafísicas
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
362
da “impossibilidade de
manifestação” e da
“possibilidade da não-
manifestação”; sem, de acordo
com Olavo; reparar que essas
noções são estritamente
idênticas.
Entretanto, porque há um claro
paralelismo entre a atuação
“mais escura” de Pedro, e
“mais às claras” de Paulo,
numa unidade subjacente
indicada pela festa
supramencionada; se pode
concluir que essa unidade
subjacente na distinção entre
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
363
as noções suprassensíveis é
precisamente o que a literatura
guenoniana intencionou
indicar.
Aparentemente, Olavo ignorou
a sugestão de Guénon (por
exemplo contida em um
estudo como “O Esoterismo de
Dante”) de que a linguagem
sacra guarda aquilo que é
significativo precisamente no
que escapa ao ordinariamente
palpável, e reside no que é
fugidio e sutil.
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
364
A distinção e equivalência em
questão é precisamente uma
das camadas de sentido da
expressão “purusha” (“cidade
em repouso”), em que a
“possibilidade da não-
manifestação” corresponde ao
“repouso”, e em que a
“impossibilidade de
manifestação” corresponde à
“cidade”, a qual denota
necessariamente uma não
transposição da concepção
para o “mundo secular”
(“impressão”), porque uma tal
transposição é
necessariamente imperfeita ou
aquém. Os dois aspectos são,
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
365
no fundo, idênticos. Isso
também é sugerido pelo ter
Machado de Assis apresentado
(no romance “Esaú e Jacó”) os
irmãos “Pedro” e “Paulo”,
cujo nome de batismo fora
inspirado nos apóstolos, como
simultaneamente gêmeos e de
distinto caráter; e a vida
suspensa da moça que os amou
(“transforma-se o amador na
coisa amada”) a expressão de
possibilidade e
impossibilidade simultâneas e
conversíveis.
O se recusar a escolher um
deles, da moça Flora,
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
366
corresponde ao se apartar da
arena secular da parte das
“duas testemunhas
apocalípticas”. Logo, está
sugerida certa degeneração ou
cegueira secularista na rejeição
das noções guenonianas em
questão.
Friedrich Nietzsche teria dito,
antes de morrer: “Se há um
Deus vivo eu sou o mais
miserável dos homens.” Se
Olavo de Carvalho
concordasse com o conteúdo
do presente livro, ele teria de
sentir-se não muito diferente.
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
367
Ante um carnaval de absurdos,
a resposta escandalizada às
vezes vem de modo
semelhante a duas “faces” ou
versões possíveis da figueira
amaldiçoada. De um lado está
Ofélia, delirante, a balbuciar
“Eu enchi o mundo de rosas, e
guardo nas mãos espinhos!”.
De outro está Laertes, a não
esperar nem conceder
misericórdia e bondade, senão
no íntimo.
O que Chuck Noland sentia
em relação a sua amada, no
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
368
“exílio”, se pode imaginar, é
que sacrificaria muito para
algum dia poder testemunhar
mais um gesto gentil e amigo
dela, embora admitindo tal
uma impossibilidade.
Também, que ele sacrificaria
mesmo isso para estar seguro
do seu bem-estar (consideraria
esta possibilidade um consolo
igualmente gentil e amigo).
Em uma peça sobre Thomas
Becket, arcebispo e mártir, em
uma das cenas finais; quando
os nobres a mando do rei
entram com espadas no seio da
Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”
369
igreja para assassinar e
martirizar o arcebispo piedoso,
Becket pronuncia calmamente
as palavras: “Ela está aqui
agora, a Grande Loucura; esta
é a sua hora” (possibilidade); e
também, vendo cair pela
espada um amado clérigo
ajudante, morto pouco antes
dele próprio: “Ó Senhor, quão
pesado é carregar a tua honra!”
(impossibilidade).
Eis a figueira amaldiçoada, eis
a vida eterna.
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