PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO PUC/SP
Gustavo Scudeler Negrato
Alienao fiduciria em garantia de bem imvel:
uma anlise comparada
MESTRADO EM DIREITO
SO PAULO
2010
PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
PUC/SP
Gustavo Scudeler Negrato
Alienao fiduciria em garantia de bem imvel:
uma anlise comparada
Dissertao apresentada Banca Examinadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, como exigncia parcial para obteno de ttulo de MESTRE em Direito das Relaes Sociais, sob a orientao da Prof. Dr. Maria Helena Diniz.
SO PAULO
2010
BANCA EXAMINADORA
__________________________________
__________________________________
__________________________________
AGRADECIMENTOS
Agradeo a meus pais pelos princpios, valores, exemplos e oportunidades, que certamente
tornaram mais amena essa rdua jornada.
Agradeo a Marina, esposa e companheira de todos os momentos, pelo apoio incondicional
para a concluso deste trabalho, mesmo durante os momentos finais da gravidez de nosso
filho, Enrico, e suas primeiras semanas de vida.
Agradeo a Prof. Dra. Maria Helena Diniz, exemplo de jurista e de ser humano, pela
oportunidade de ser seu aluno em Direito Civil Comparado na querida Universidade em que
me graduei, pela generosidade em aceitar minha orientao a despeito do curto perodo de
tempo disponvel e por me auxiliar a dar rumo a presente dissertao.
Agradeo a meu amigo e agora sogro, Dr. Jos Carlos Vilibor, pelo incentivo dado durante
todo o curso, desde as aulas iniciais como aluno ouvinte.
Agradeo a Prof. Dra. Anamaria Fadul, por dedicar algumas horas preciosas na leitura deste
trabalho, pelos conselhos de sua vasta experincia acadmica e por me ceder generosamente o
uso de sua biblioteca nas ltimas semanas, possibilitando-me, com isso, o isolamento
necessrio para finalizar o estudo.
Agradeo a minha me, a minha sogra e a minha irm pela ateno dispensada a Marina e
Enrico nos ltimos cinquenta dias, dando-me tranquilidade para atingir esse importante
objetivo.
Agradeo a meus colegas de banca de advocacia e clientes pela compreenso em aceitar
minha ausncia nos momentos de definio deste trabalho.
VI
A meus amores Marina, querida esposa, e Enrico,
nosso primeiro filho, incio de uma famlia que
desejo numerosa, harmoniosa, repleta de sade,
valores e princpios, em quem encontrei foras para
a concluso deste trabalho e para quem sempre me
dedicarei.
VII
RESUMO
NEGRATO, Gustavo Scudeler. Alienao fiduciria em garantia de bem imvel: uma
anlise comparada. (Dissertao de Mestrado em Direito) So Paulo: Pontifcia
Universidade Catlica, 2010.
Decorridos doze anos da aprovao da Lei do Sistema Financeiro
Imobilirio (9.514/97) ainda h muitas controvrsias, tanto na doutrina como na
jurisprudncia, sobre a modalidade contratual instituidora do novo direito real de
garantia, estendendo a propriedade fiduciria aos bens imveis. Este trabalho pretende
examinar os principais aspectos da alienao fiduciria em garantia de bem imvel,
com o objetivo de melhor compreender o conceito desse instituto. A perspectiva
adotada a do direito comparado, analisando-se a origem dos negcios fiducirios
atravs da fidcia do direito romano, do penhor do direito germnico, do trust no
direito anglo-saxnico, da utilizao de negcios fiducirios atpicos no direito
moderno pelos pases de tradio romanista e, por fim, o instituto positivado no direito
brasileiro. As principais concluses apontam para o carter singular da alienao
fiduciria adotada pela legislao brasileira, apesar das inegveis influncias do direito
estrangeiro, indicando-se a soluo para as questes controvertidas de maior
relevncia envolvendo o instituto, suas finalidades e consequncias. Conclui-se pela
constitucionalidade do procedimento de execuo extrajudicial previsto na legislao
em comento, sua compatibilidade com normas do Cdigo de Defesa do Consumidor, e
pela impossibilidade de se determinar a priso civil do fiduciante, em razo da recente
jurisprudncia pacificada no mbito do Supremo Tribunal Federal e do Superior
Tribunal de Justia.
Palavras-chave: Alienao fiduciria; garantia de bem imvel; direito comparado;
direito real; direito brasileiro; execuo extrajudicial; priso civil.
VII
ABSTRACT
NEGRATO, Gustavo Scudeler. Fiduciary assignment for the guarantee of real
estates: a comparative law analysis. (Master Thesis in Law) So Paulo: Pontifcia
Universidade Catlica, 2010.
After twelve years since the approval of the Law of Real Estate
Financing System (9,514/97) many controversial issues remain, either in doctrine or in
case law, regarding the contractual form that established the new in rem guarantee
right, extending the fiduciary property to real estates. The purpose of this thesis is to
examine the main aspects of the fiduciary assignment for the guarantee of real estates,
in order to improve the understanding of the concept of such institute. The prospect
adopted is the comparative law, analyzing the origin of fiduciary business by means of
the fiducia of Roman law, the pledge of Germanic law, the trust of Anglo-Saxon law,
the use of atypical fiduciary business in modern law by countries with Roman tradition
and, finally, the institute as regulated in Brazilian law. The main conclusions
appoint the unique character of the fiduciary assignment adopted by the Brazilian
legislation, despite the undeniable influence of foreign law, indicating the solution for
controversial questions regarding the institute, its finalities and consequences. It
concludes for the constitutionality of the procedure for extrajudicial execution
established by the law under discussion, its compability with standards of the Code of
Consumer Protection, and the impossibility of determining the civil prision of
fiduciant, because of the recent case-law in the Supreme Court Federal and Superior
Court of Justice.
Keywords: Fiduciary Assignment; Guarantee of Real Estates; Comparative Law; Real
Estates; Brazilian Law; Extrajudicial Execution; Civil Prision.
VIII
SUMRIO
PREFCIO................................................................................................................... XI
I EVOLUO HISTRICA DO INSTITUTO............................................ 1
1.1 A fidcia do direito romano............................................................................ 1
1.1.1 Fiducia cum amico............................................................................... 6
1.1.2 Fiducia cum creditore.......................................................................... 7
1.2 Os negcios fiducirios no direito germnico e sua comparao com a fidcia
romana
9
1.3 O trust do direito anglo-saxnico.................................................................... 12
1.4 Os negcios fiducirios no direito moderno................................................... 15
1.4.1 Negcios fiducirios com finalidade de garantia................................. 17
1.4.2 Venda com fins de administrao........................................................ 18
II PATRIMNIO DE AFETAO................................................................ 20
2.1 Conceituao e sua configurao no direito brasileiro.................................... 21
2.2 Experincia no direito estrangeiro.................................................................. 22
III PROPRIEDADE FIDUCIRIA.................................................................. 32
3.1 Conceito e elementos caractersticos.............................................................. 32
3.2 Propriedade fiduciria no direito comparado.................................................. 33
IV DESUSO DOS DIREITOS REAIS DE GARANTIA TRADICIONAIS E
NECESSIDADE DE UM NOVO DIREITO REAL
35
4.1 Principais elementos caractersticos dos direitos reais de garantia tradicionais 36
4.2 Motivos conducentes ao desuso das garantias reais tradicionais.................... 37
V ALIENAO FIDUCIRIA EM GARANTIA DE BEM MVEL........ 40
5.1 A lei do mercado de capitais........................................................................... 41
5.2 O Decreto-lei 911/69....................................................................................... 43
5.3 A alienao fiduciria disciplinada no Cdigo Civil de 2002......................... 45
VI ALIENAO FIDUCIRIA EM GARANTIA DE BEM IMVEL...... 46
6.1 Generalidades.................................................................................................. 46
6.2 Fatores scio-econmicos conducentes extenso da alienao fiduciria aos
bens imveis
46
6.3 O surgimento de um novo direito real de garantia........................................... 50
6.4 Conceito e elementos caractersticos da alienao fiduciria em garantia de 51
IX
bens imveis
6.4.1 Propriedade resolvel................................................................................. 52
6.4.2 Desdobramento da posse entre fiduciante e fiducirio............................. 53
6.5 Requisitos do instituto.......................................................................................... 54
6.5.1 Requisitos subjetivos................................................................................ 54
6.5.2 Requisitos objetivos.................................................................................. 56
6.5.3 Requisitos formais.................................................................................... 58
6.6 Direitos e deveres do fiduciante........................................................................... 59
6.7 Direitos e deveres do fiducirio........................................................................... 60
6.8 Extino da propriedade fiduciria...................................................................... 61
6.8.1 Consolidao da propriedade plena na pessoa do devedor fiduciante...... 62
6.8.2 Consolidao da propriedade na pessoa do credor fiducirio e a
problemtica da vedao ao pacto comissrio
62
6.8.3 Excusso extrajudicial do bem alienado fiduciariamente......................... 67
6.9 O exerccio do direito de preferncia por terceiros legitimados......................... 68
6.10 Os efeitos da recuperao judicial sobre bens alienados fiduciariamente.......... 69
VII ALIENAO FIDUCIRIA E INSTITUTOS AFINS.................................. 72
7.1 Alienao fiduciria e propriedade fiduciria...................................................... 73
7.2 Diferena entre alienao fiduciria e penhor..................................................... 74
7.3 Distino entre alienao fiduciria e hipoteca................................................... 75
7.4 Cesso fiduciria de direito creditrio e cesso de crdito objeto da alienao
fiduciria
76
VIII QUESTES POLMICAS NA DOUTRINA E JURISPRUDNCIA
RELATIVAS ALIENAO FIDUCIRIA DE BENS IMVEIS
79
8.1 Aplicabilidade do Cdigo de Defesa do Consumidor aos contratos de
financiamento imobilirio garantidos por alienao fiduciria, em especial a
regra estabelecida em seu art. 53, caput
79
8.2 Constitucionalidade do leilo extrajudicial e a problemtica suspenso de sua
realizao em virtude de discusso judicial do dbito
86
8.3 Locao de bem alienado fiduciariamente........................................................... 87
8.4 Aes possessrias cabveis, inclusive entre fiduciante e fiducirio................... 90
8.5 Priso civil do devedor fiduciante e o recente posicionamento sumulado do
STF
94
X
CONCLUSO.................................................................................................................. 102
BIBLIOGRAFIA.............................................................................................................. 105
ANEXOS........................................................................................................................... 117
Anexo I Lei n. 9.514/97................................................................................................. 117
Anexo II Acrdo TJSP Apelao n. 992060781229.................................................... 127
Anexo III Deciso STJ Medida Cautelar n. 15.590-DF................................................ 140
XI
PREFCIO
O presente trabalho tem por objetivo abordar os aspectos principais
do contrato de alienao fiduciria de bem imvel e do direito real de garantia
constitudo com seu registro, introduzidos ao ordenamento jurdico ptrio com o
advento da Lei n. 9.514, de 20 de novembro de 1997.
O estudo registra elementos histricos do surgimento dos negcios
fiducirios, desde sua origem com a fidcia do direito romano, passando pelo
penhor do direito germnico, pelo desenvolvimento do trust no direito anglo-
saxnico, a utilizao de negcios fiducirios atpicos no direito moderno pelos
pases de tradio romanista, sua comparao com negcios indiretos e negcios
simulados, culminando com a sua influncia no instituto positivado no direito
brasileiro.
Comenta-se a respeito da precedente aplicao da alienao
fiduciria aos bens mveis, sua evoluo legislativa e a extenso aos bens
imveis, que teve por finalidade principal estimular o mercado imobilirio
atravs do oferecimento ao credor de garantia mais eficaz que as existentes at a
sua introduo, especialmente pela possibilidade de satisfao do crdito sem a
necessidade de se socorrer do Poder Judicirio, uma vez autorizar a Lei n.
9.514/97 a realizao de leilo extrajudicial para a alienao do bem garantido
quando verificada a inadimplncia do devedor e configurada a sua mora,
seguindo procedimento detalhadamente previsto na legislao e que deve
constar do instrumento contratual.
Atravs da conceituao do instituto, da lio de renomados juristas
que se debruaram sobre a questo, alm do delineamento dos pontos distintivos
em relao a outros direitos reais de garantia, procura-se estabelecer suas
XII
caractersticas essenciais, traando pontos de convergncia e de divergncia com
figuras jurdicas assemelhadas do direito comparado.
A abordagem de questes controvertidas tanto na doutrina como na
jurisprudncia a respeito da execuo da modalidade contratual instituidora do
direito real de garantia constituda com o respectivo registro representa,
igualmente, preocupao deste trabalho, passados doze anos da publicao da
Lei do Sistema Financeiro Imobilirio.
Discorre-se sobre a aplicabilidade ou no dos preceitos do Cdigo
de Proteo e Defesa do Consumidor, especialmente da regra inserta em seu art.
53, sistemtica especfica introduzida pela Lei n. 9.514/97 aos contratos de
financiamento imobilirio garantidos pela alienao fiduciria.
A constitucionalidade dos procedimentos extrajudiciais
disciplinados, em caso de mora do fiduciante, para a consolidao da
propriedade fiduciria na pessoa do fiducirio, sua eventual antinomia com a
norma geral de vedao ao pacto comissrio, e para a venda pblica sem a
necessidade de interferncia do Poder Judicirio, tambm examinada nesta
dissertao.
Destaca-se, ainda, a recente edio de Smula Vinculante pelo
Supremo Tribunal Federal, em sesso plenria realizada em 16 de dezembro de
2009, sobre a ilegalidade da priso civil do depositrio infiel qualquer que seja a
modalidade contratual, no depsito genuno como em qualquer outro contrato
em que, por fico legal, se equipare a figura do devedor do depositrio,
encerrando-se, pois, ao menos na esfera jurisprudencial as dvidas que ainda
pudessem existir sobre a prevalncia dos direitos fundamentais da dignidade da
pessoa humana e liberdade sobre direitos creditrios, ainda que garantidos por
direitos reais.
Questes de menor repercusso, mas que hodiernamente surgem na
relao contratual entre fiduciante e fiducirio quando h
13
inadimplemento do primeiro, inclusive envolvendo terceiros interessados,
receberam ateno deste trabalho, tais como: o momento da ao de reintegrao
de posse pelo fiducirio, seu cessionrio ou sucessor; o exerccio de direito de
preferncia na aquisio do bem nos leiles pblicos e, infrutferos estes,
perante o fiducirio; a situao de locatrios com a consolidao da propriedade
plena na pessoa do fiducirio; a responsabilidade pelo pagamento de tributos e
despesas condominiais do imvel alienado fiduciariamente aps a consolidao
da propriedade; dentre outros.
Procura-se, pois, analisadas a origem do instituto, a finalidade de
sua introduo a nosso ordenamento jurdico e os pontos convergentes com
figuras afins do direito comparado, destacar os elementos fundamentais da
alienao fiduciria em garantia de bens imveis e os principais reflexos
sentidos pela sociedade brasileira desde sua criao.
So Paulo, ___ de _____________ de 2010
Assinatura: ___________________________________
1
I EVOLUO HISTRICA DOS NEGCIOS FIDUCIRIOS.
O estudo da alienao fiduciria, assim como de qualquer outro
instituto jurdico, deve iniciar-se, para que se consiga obter elementos que
proporcionem a sua completa compreenso, com a anlise de seus antecedentes
histricos e a evoluo imposta para atendimento dos anseios da sociedade.
Para tanto se mostra necessria a abordagem do surgimento dos
negcios fiducirios, sua utilizao e desenvolvimento nos direitos romano,
germnico e anglo-saxnico.
Discorre-se, inicialmente, sobre as modalidades da fidcia de
origem romanista, passando para o estudo do penhor germnico e, por fim, do
mortgage e trust anglo-saxnicos.
Feita a anlise de seu desenvolvimento histrico at o conceito
moderno de negcio fiducirio e a comparao deste a negcios indiretos e
negcios simulados, passa-se a apreciar a introduo da garantia fiduciria ao
ordenamento jurdico ptrio, primeiro quanto alienao de bens mveis.
Descreve-se, aps, acerca da evoluo legislativa do instituto at
que fosse estendida a garantia ao financiamento imobilirio, traando-se pontos
de convergncia e divergncia com institutos afins atualmente existentes no
direito comparado.
1.1 A fiducia do direito romano.
A fidcia1 romana a fonte dos negcios fiducirios que hoje
conhecemos e so empregados nas relaes sociais, pela qual uma pessoa
1 Arnoldo Wald, Do regime legal da alienao fiduciria de imveis e sua aplicabilidade em operaes de financiamento de bancos de desenvolvimento, Revista de Direito Imobilirio, n. 51, p. 255 (2001).
2
transferia um bem de sua propriedade para uma pessoa conhecida com fins de
preservao e administrao do patrimnio (fiducia cum amico) ou a um credor
com escopo de garantia do pagamento de uma dvida (fiducia cum creditore),
estabelecendo-se um pacto para que o bem lhe fosse restitudo aps
implementadas as condies estipuladas. Antes, contudo, de se detalhar cada
uma das modalidades da fidcia romana, mostra-se importante situar o seu
surgimento no contexto histrico da sociedade romana.
O estudo das instituies de direito privado exige que se proceda a
uma introduo histrica, para que sejam analisadas as instituies polticas, as
fontes de cognio do direito e a jurisprudncia romana.
Reportamo-nos, nesse ponto, abordagem feita por MOREIRA
ALVES2 do que denominou de histria externa do direito romano, que
corresponderia introduo aludida no pargrafo anterior, e do que intitulou de
histria interna, relacionada ao estudo das instituies de direito privado,
dividindo-se, cada uma delas, em perodos.
A histria externa dividida de acordo com as diferentes formas de
governo de Roma, quais sejam: perodo real, das origens de Roma queda da
realeza em 510 a.C.; perodo republicano, de 510 a 27 a.C., com a investida pelo
Senado de Otaviano no poder supremo com a denominao de princeps; perodo
do principado, de 27 a.C. a 285 d.C., quando tem incio o dominato com
Diocleciano; e perodo do dominato, de 285 a 565 d.C., data da morte de
Justiniano. Dividiu-se, por seu turno, o estudo da histria interna em trs fases:
do direito antigo ao pr-clssico, das origens de Roma Lei Aebutia,
compreendido aproximadamente entre 149 e 126 a.C.; do direito clssico, que
transcorreu desse momento at o trmino do reinado de Diocleciano, em 305
d.C.; e do direito ps-clssico ou romano-helnico, de 305 d.C. at a morte de
2 Moreira Alves, Direito romano, v. I. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 1-3.
3
Justiniano, em 565 d.C, denominando-se, contudo, de direito justinianeu quele
vigente a partir de 527 d.C., com o incio do reinado de Justiniano.
Embora os romanistas no tenham conseguido precisar com
exatido o momento do surgimento da fidcia no direito romano, atribui-se a sua
origem3 Lei das XII Tbuas (450 a.C.), mais especificamente a preceito
contido na Tbua VI que concedia fora de lei aos acordos firmados entre as
partes4.
Nesse momento, no entanto, inexistia sano para o caso de
descumprimento da obrigao, que tinha suas bases em valores morais como a
lealdade e a confiana.
Apesar de GAIO no incluir em suas Institutas a fidcia no rol dos
direitos reais, j se podia constatar referncias a essa forma de garantia em
algumas passagens da obra (Inst. II, 59-60; e III, 201).
Os autores modernos divergem a respeito da incluso ou no pelos
jurisconsultos romanos da fidcia entre os contratos reais, ressaltando
MOREIRA ALVES5 que a maioria dos romanistas considera includa a fidcia
entre os contratos reais daquela poca e que a omisso das Institutas de GAIO
devia-se ao fato de que a natureza contratual da fidcia se obscurecia em
virtude de ser ela usada, principalmente, como garantia, enquanto que a
omisso das Institutas de JUSTINIANO se explicaria por j ter aquela
desaparecido em seu tempo6.
Trata-se, no entanto, de problema complexo. Isso porque, embora
as Institutas de GAIO tenham considerado apenas o mtuo como contrato real 3 Posicionamento compartilhado por Alfredo Buzaid [(Ensaio sobre a alienao fiduciria em garantia, RT, v. 401, p. 11 (1969)]. 4 lvaro V. Azevedo [(Priso civil por dvida. 2. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 15; e Fiducia, Enciclopdia Saraiva de Direito, coordenao de Rubens Limongi Frana. So Paulo: Saraiva, v. 37, p. 192 (1977)] e Otto de S. Lima (Negcio fiducirio, So Paulo: Revista dos Tribunais, 1962, p. 11-13). 5 Moreira Alves, Direito romano, cit. p. 135-137. 6 Sebastio Cruz (apud Isabel Andrade de Matos, O pacto comissrio contributo para o estudo do mbito da sua proibio. Coimbra: Almedina, 2006, p. 34).
4
(Inst., III, 90-91), os Aureorum Libri, textos do mesmo autor ou de
jurisconsultos ps-clssicos includos no Digesto, alargaram o conceito de
contrato real para enquadrar, alm do mtuo, o comodato, o depsito e o penhor;
mesma previso contida nas Institutas de JUSTINIANO. Com a extenso do
conceito do contrato real ao comodato, ao depsito e ao penhor, nada impedia
que o mesmo se verificasse com a fidcia, motivo que levou MOREIRA
ALVES a estud-la dentre os contratos reais, porm, quanto a ela no existia
fonte segura de informao, uma vez que desapareceu no perodo ps-clssico,
tendo os compiladores do Corpus Iuris Ciuilis procurado apagar7 dos textos
clssicos ou ps-clssicos qualquer aluso fidcia8.
CARLO LONGO salienta que os vestgios da fidcia foram no
apenas excludos pelos compiladores do Corpus Iuris Ciuilis como o vocbulo
fiducia teria sido substitudo por pignus (penhor), descoberta esta, atribuda a
OTTO LENEL, que possibilitou o estudo do instituto nos textos clssicos9.
Vestgios sobre a existncia da fidcia constam, ainda, das Pauli
Sententiae, na Collatio Legum Mosaicarum et Romanorum, na Consulatio
Veteris Cuiusdam Iurisconsulti, na Fragmenta Vaticana, no Codex
Theodosianus e na Lex Iulia.
Os primeiros documentos, contudo, considerados como fonte direta
para o estudo do negcio fiducirio foram a Formula Baetica e a Mancipatio
Pompeiana, contribuindo para a definio conceitual do instituto, utilizado para
fins patrimoniais ou no, e o delineamento de suas espcies.
7 Fato este salientado por Giusepe Messina (Scritti Giuridici: negozi fiduciari, v. 1, Milano: Giuffr, 1948, p. 105), Otto de S. Lima (Negcio, cit. p. 11) e, mais recentemente, por Odete Novais Carneiro Queiroz (Priso civil e os direitos humanos, So Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 60-61), que ressalta ser essa a razo de no terem as modalidades da fidcia romana sido recepcionadas pelos sistemas da Civil Law, citando como exemplos o Cdigo Civil francs de 1804, o BGB alemo de 1896 e o Cdigo Civil brasileiro de 1916. 8 Cristina Fuenteseca, El negocio fiducirio en la jurisprudncia del tribunal supremo, Barcelona: Jose Maria Bosch Editor, 1997, p. 21. 9 Apud Otto de S. Lima, Negcio, cit. p. 13-16.
5
Demonstrada a origem do instituto no direito romano, passa-se
anlise do conceito apresentado por seus estudiosos, segundo os quais a fidcia
romana correspondia ao contrato pelo qual o proprietrio de um bem infungvel,
denominado de fiduciante, o transferia a outra pessoa, chamada de fiducirio,
que se obrigava a restitu-lo a seu antigo proprietrio, implementada certa
condio, ou a lhe dar a destinao ajustada10.
Realizava-se por meio de dois negcios jurdicos, a mancipatio e a
in iure cessio. O primeiro deles, de acordo com ANTNIO ALBERTO VIEIRA
CURA11, caracterizava-se por ser a forma solene empregada para a realizao de
uma compra e venda real, em que se procedia troca imediata da coisa contra o
preo, tendo objeto, conforme interpretado pelo professor portugus das obras
de GAIO (I, 120; II, 22) e ULPIANO (XIX, 3), a aquisio da propriedade sobre
a coisa ou do poder sobre pessoas, por qualquer causa. J a in iure cessio, com
fim negocial, consistia, segundo o mencionado jurista, com apoio nos textos de
GAIO (II, 24) e ULPIANO (XIX, 9), numa reivindicao fingida ou imaginria,
na qual o reivindicante afirmava ser o proprietrio e, inexistindo impugnao do
alienante, o magistrado adjudicava a coisa ao adquirente, encerrando-se o
processo com addictio.
A estrutura da fidcia era composta, assim, no apenas de um dos
negcios solenes e formais de transferncia da propriedade descritos, mancipatio
ou in iure cessio. queles juntava-se um acordo no formal12, pacto ou
conveno, denominado de pactum fiduciae, pelo qual a pessoa a quem se
transferia o domnio da coisa ou o poder sobre algum se comprometia a
restituir o objeto ou a libertar a pessoa mancipada, quando preenchidas certas
condies.
10 Moreira Alves, Direito romano, cit. p. 143. 11 Antnio Alberto Vieira Cura, Fiducia cum creditore, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (suplemento), n. 34, p. 6-8 (1991). 12 Antnio Alberto Vieira Cura, Fiducia, cit. p. 29-31.
6
Demonstrado que a fidcia resultava da conjugao daqueles
negcios solenes com um pacto acessrio, caracterizando uma figura jurdica
complexa, passa-se a analisar a sua aplicao no terreno patrimonial, atravs das
espcies fiducia cum amico e fiducia cum creditore.
1.1.1 Fiducia cum amico.
A fiducia cum amico era, segundo MARIA HELENA DINIZ13,
apenas um contrato de confiana e no de garantia, pelo qual o fiduciante
alienava seus bens a um amigo, com a condio de lhe serem restitudos quando
cessassem as circunstncias aleatrias ajustadas, como risco de perecer na
guerra, viagem, perdas em razo de acontecimentos polticos, dentre outros
fatos. Essa modalidade de fidcia no tinha, pois, o objetivo de garantir um
crdito, mas, sim, de preservar determinados bens de uma pessoa14.
Para JUDITH H. MARTINS COSTA, reportando-se doutrina de
CORRA FREIRE e GRASSETTI, a fiducia cum amico foi socialmente a
modalidade de fidcia mais interessante uma vez que proporcionava dupla
segurana por possuir conotaes que continham tanto a idia de confiana
como a de segurana para ambos os contratantes, o que teria feito com que seu
uso se proliferasse em pocas de guerras ou lutas internas, sendo utilizada
tambm para defender o fiduciante de execues ou desapropriaes arbitrrias
que no se estendiam, por determinado motivo, ao fiducirio15.
Como se ver a seguir, a exemplo do que ocorria com a outra
modalidade de fidcia romana, o pactum fiduciae aposto ao ato de transmisso
13 Maria Helena Diniz, Curso de direito civil brasileiro, v. 4. 19. ed. So Paulo: Saraiva, 2004, p. 543. 14 Melhim Namem Chalhub, Negcio fiducirio, 4. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 11. 15 Judith H. Martins Costa, Os negcios fiducirios. Consideraes sobre a possibilidade de acolhimento do trust no Direito Brasileiro, RT, v. 657, p. 38.
7
da coisa gerava para o fiduciante um direito meramente obrigacional de voltar a
ser o proprietrio daquela com o implemento da condio ajustada, o que podia
acarretar abuso de direito por parte do fiducirio. No sendo restitudo o bem ao
fiduciante, caberia-lhe apenas ao para reparao de perdas e danos.
As bases de confiana desse negcio jurdico encontram-se
presentes hodiernamente em algumas modalidades de negcios fiducirios16
adotados em pases de tradio romanista com finalidade de administrao de
bens, conforme se examinar adiante.
1.1.2 Fiducia cum creditore.
A fiducia cum creditore, por seu turno, j tinha finalidade de
garantia, pois o devedor vendia seus bens ao credor, sob a condio de recuper-
los se, dentro de certo prazo, efetuasse o pagamento de dbito. Tambm nessa
modalidade de fidcia havia, pois, a obrigao do adquirente de restituir o bem
ao alienante, depois de cumprido o objetivo ajustado17.
Referido negcio jurdico destinou-se em um primeiro momento a
permitir aos proprietrios rurais o acesso ao crdito em troca da oferta de bens
em garantia, sem a perda de sua posse, para que se evitasse a privao de bens
essenciais atividade econmica exercida18.
16 Diogo Leite de Campos e Joo Costa Andrade, Autonomia contratual e direito tributrio (a norma geral anti-eliso), Coimbra: Almedina, 2008, p. 39. 17 Guilherme Guimares Feliciano (Tratado de alienao fiduciria em garantia. Das bases romanas lei n. 9.514/97, So Paulo: LTr, 1999, p. 31-32) considera ter sido a fidcia cum creditore a mais popular e relevante dentre as modalidades desse negcio jurdico romano, sendo a de maior importncia para o estudo das garantias fiducirias atualmente utilizadas. 18 Cndido Rangel Dinamarco, Alienao fiduciria de bens imveis, Revista de Direito Imobilirio, n. 51, p. 237 (2001).
8
A garantia apresentada pela fidcia romana, contudo, era pouco
prtica, na lio de ALEXANDRE CORREA e GAETANO SCIASCIA19, por
exigir dois atos solenes de transferncia da propriedade e podia ocorrer de o
credor transferir o bem adquirido a terceiros em prejuzo do devedor, que no
podia reivindic-la do novo adquirente20.
Aps traar os elementos caractersticos do instituto e de afirmar ter
sido a fidcia o primeiro direito real de garantia, ARNOLDO WALD21 tambm
menciona os problemas enfrentados pelos devedores (fiduciantes) com a recusa
do credor em lhes restituir o bem dado em garantia do pagamento da dvida,
ressaltando ser esse o principal inconveniente dessa operao negocial, porque a
garantia baseava-se unicamente na confiana.
Com a satisfao do dbito, surgia para o fiducirio a obrigao de
restituir o bem ao fiduciante, em razo do pactum fiduciae. O inadimplemento
desta obrigao, fundada sobretudo na fides, no gerava seno a obrigao de
indenizar. Este pactum representava o acordo de vontades entre devedor e
credor, aposto ao ato de alienao, pelo qual o credor se comprometia a restituir
a coisa ou a dar-lhe determinada destinao. Tratava-se de um pacto desprovido
de ao para compelir o credor restituir o bem ao devedor, convertendo-se
comumente a obrigao do fiducirio no pagamento de indenizao22.
Esse contedo meramente obrigacional caracterizava as duas
modalidades da fidcia romana, conforme ressalta MARCELO TERRA23.
Tratando-se de pacto desconhecido por terceiros, o descumprimento, pelo amigo 19 Apud Hrcules Aghiarian, Alienao fiduciria de imveis em garantia: lei 9.514/1997, Doutrina ADCOAS, v. 3, n. 7, p. 173 (2000). 20 Judith H. Martins Costa (Os negcios fiducirios, cit. p. 38), reportando-se lio de Orlando de Carvalho, vislumbra no direito atribudo ao fiducirio, pleno e incondicional, a possibilidade de ocorrer abuso contra o fiduciante, por entender desproporcionada a finalidade da transmisso com suas consequncias. 21 Arnoldo Wald, Do regime legal, cit. p. 255. 22 Guilherme Guimares Feliciano, Tratado, cit. p. 36. 23 Marcelo Terra, Alienao fiduciria de imvel em garantia (lei n 9.514/97, primeiras linhas). Instituto de Registro Imobilirio do Brasil, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 20.
9
ou pelo credor, da obrigao de restituir o bem alienado acarretava to somente
direito s perdas e danos, no podendo o antigo proprietrio, frustrado em sua
expectativa de retomar a propriedade do bem, reivindic-lo de terceiros. A
propriedade transmitida ao fiducirio era, portanto, plena, irrestrita e ilimitada.
O pacto desprovido de ao para compelir o fiducirio a restituir a
coisa perdurou durante o direito pr-clssico, tendo sido o pretor, no direito
clssico, a sancionar o pactum fiduciae, obrigando a restituio da coisa,
mediante uma actio in factum. Aps, no final da repblica, surgiram duas aes
in ius, transmissveis ativa e passivamente, a actio fiduciae directa, que era
concedida ao fiduciante quando o fiducirio no restitua a coisa ou no lhe dava
o destino combinado, e a actio fiduciae contraria, concedida ao fiducirio no
caso de o fiduciante se negar ao cumprimento de suas obrigaes24.
O esquema negocial prprio da fidcia romana serviu como fonte
de inspirao para a doutrina germnica, aps profunda reelaborao, passar a
tratar da categoria do negcio fiducirio25.
1.2 Os negcios fiducirios no direito germnico e sua comparao com a
fidcia romana.
Embora a fidcia do direito germnico medieval tivesse suas razes
na fidcia romana com ela no se confundia26. Tal fato devia-se recepo pelos
povos germnicos do direito romano, fazendo com que coexistissem, naqueles
povos, institutos germnicos e outros nitidamente influenciados pelo direito
romano27. Apesar de haver no direito germnico antigo figuras jurdicas com a
24 Moreira Alves, Direito romano, cit. p. 143. 25 Antnio Alberto Vieira Cura, Fiducia, cit. p. 8-9. 26 Luiz Augusto Beck da Silva, Alienao fiduciria em garantia, Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 8. 27 Otto de S. Lima, Negcio, cit. p. 118-126.
10
mesma terminologia da fidcia romana, com ela no se identificavam, ao passo
que outras figuras, sem a mesma identidade terminolgica, guardavam
semelhanas conceituais.
Dentre as figuras jurdicas do antigo direito germnico a que
provavelmente mais se assemelhava fidcia romana, da espcie cum creditore,
era o penhor de propriedade28, Treuhand, atravs do qual o devedor transferia a
propriedade de determinada coisa ao credor que se comprometia a restitu-la
assim que liquidado o dbito. O acordo, semelhante ao pactum fiduciae do
direito romano, formalizava-se mediante a entrega pelo devedor de uma carta
uenditiones ao credor, que, em contrapartida, entregava quele uma contracarta.
Destacam alguns estudiosos29 a presena de intermedirios nos
negcios fiducirios do direito germnico antigo, denominados de manusfidelis
e salmann. O primeiro deles, sempre pessoa de confiana do proprietrio, era
incumbido de realizar uma donatio pro anima, para cumprir uma liberalidade
em geral com fins de caridade ou para libertar um escravo. O salmann, por sua
vez, era o intermedirio utilizado para fazer a transmisso de um bem imvel do
proprietrio a um terceiro adquirente; passou a exercer, mais tarde, no apenas a
intermediao do negcio como tambm uma funo de tutela patrimonial, uma
vez que comeou a receber poderes para adquirir a propriedade em favor de
terceiros, deixando, com isso, de ser fiducirio do alienante para ser fiducirio
do adquirente.
A principal diferena30 entre a fidcia romana e a fidcia do antigo
direito germnico estava na consequncia de cada uma delas, uma vez que nesta
o bem era dado em garantia sob condio resolutiva que, cumprida, determinava
28 Conclusiva nesse sentido tambm a doutrina de Guilherme Guimares Feliciano (Tratado, cit. p. 66). 29 Giusepe Messina (Scritti, p. 152), Otto de S. Lima (Negcio, cit. p. 127-131), Guilherme Guimares Feliciano (Tratado, cit. p. 66-67). 30 Margarida Costa Andrade (A propriedade fiduciria. II Seminrio luso-brasileiro de direito registral. Centro de Estudos Notariais e Registrais IRIB. Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 56-59).
11
o retorno da propriedade ao antigo proprietrio, enquanto que no direito romano
o poder jurdico conferido ao fiducirio era ilimitado, embora se comprometesse
a restituir a coisa transmitida to logo fosse implementada a obrigao do
devedor31.
A comparao entre a fidcia do tipo romano e aquela do tipo
germnico tambm foi feita por CUSTDIO DA PIEDADE UBALDINO
MIRANDA32, ao analisar os negcios fiducirios como uma espcie de negcio
indireto. Primeiro, fazendo referncia doutrina de CARIOTA FERRARA,
afirma que tanto a fidcia romana como a fidcia germnica poderiam
reconduzir-se a um nico esquema conceitual genrico na medida em que, nos
dois tipos de fidcia, o que se v a atribuio ao fiducirio de um poder
jurdico para a obteno de escopos mais restritos, um excesso do meio em
relao ao fim visado. Aduz, porm, que na fidcia romana atribua-se ao
fiducirio um poder jurdico real ilimitado para a obteno de um escopo com
limites puramente obrigacionais, enquanto que na fidcia germnica a
limitao do escopo resulta, no de uma (outra) relao jurdica obrigatria, mas
da esfera do poder jurdico do prprio fiducirio, atravs da aposio de uma
condio resolutiva ao negcio, estabelecida em favor do fiduciante, em caso de
violao do pacto fiducirio. Pode-se concluir, diante disso, que o elemento
fiducirio mais acentuado na fidcia romana, ressaltando que a titularidade
ilimitada do fiducirio poderia colocar em risco33 a situao do fiduciante, em
caso de recusa daquele em restituir o bem.
31 Posicionamento esse compartilhado por Luiz A. Beck da Silva (Alienao, cit. p. 8-9), Moreira Alves (Da alienao fiduciria em garantia. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 31) e Melhim Namem Chalhub (Negcio, cit. p. 15). 32 Custdio da Piedade Ubaldino Miranda, Negcio jurdico indireto e negcios fiducirios, Revista de Direito Civil, Imobilirio, Agrrio e Empresarial, v. 8, n. 29, p. 90-91 (1984). 33 A possibilidade de abuso do fiducirio no modelo romano tambm foi considerada por Judith H. Martins Costa como elemento distintivo daquele para o tipo germnico (Os negcios, cit. p. 38-39).
12
Antes de tratar da introduo do instituto no direito brasileiro,
importante, ainda, mostra-se discorrer a respeito da utilizao e
desenvolvimento dos negcios fiducirios no direito anglo-saxnico.
1.3 O trust do direito anglo-saxnico.
O trust passou a ser delineado na Inglaterra com a conquista
normanda, em 1066, quando as terras da nobreza foram tomadas por Guilherme
I, que as concentrou em sua propriedade e passou a distribu-las de acordo com
o sistema feudal, sob forma de tenures, concesso feita pelo senhor a seu vassalo
com o objetivo de lhe assegurar o sustento e de lhe permitir prestar ao senhor o
servio requerido. A atribuio da propriedade a uma pessoa para benefcio de
outras (to the use of) j ocorria antes dessa poca, mas destinando-se a
propsitos especficos e por tempo limitado, como, por exemplo, em razo de
uma Cruzada e pelo tempo de sua durao34.
O surgimento do trust pode ser explicado com base na distino35
de common law e equity no direito ingls. Nesse sentido o ensinamento de
ORLANDO GOMES36, para quem as obrigaes originam-se, no sistema da
common law, apenas dos contratos e de delitos. A entrega de bens a pessoa de
confiana para administr-los por determinado perodo no acarretava obrigao
34 Melhim Namem Chalhub, Trust: breves consideraes sobre sua adaptao aos sistemas jurdicos de tradio romana, RT 790, p. 83 (2001). 35 Para Arnoldo Wald [Algumas consideraes a respeito da utilizao do trust no direito brasileiro, Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econmico e Financeiro, n. 99, p. 108 (1995)], a diferena entre a common law e a equity correspondeu existente, no direito romano, entre o tradicional direito civil (ius civile), de um lado, e, de outro, o ius gentium, comum aos romanos e aos estrangeiros, e o direito pretoriano, surgindo nos tribunais para corrigir as eventuais iniqidades do direito escrito. A fiducia cum amico surgiu no direito romano como uma tcnica para suprir a inexistncia, na poca, da cesso de crdito, do mesmo modo que a fiducia cum creditore foi uma das primeiras formas do direito de garantia. 36 Orlando Gomes, Contrato de fidcia (trust), RF, v. 211, p. 12.
13
jurdica da restituio daqueles. Disso decorria para o fiducirio apenas um
dever de conscincia, baseando-se, assim, o negcio puramente na confiana. J
no sistema da equity o dever de conscincia do fiducirio comportava
cumprimento coativo, na medida em que o transmitente-fiduciante poderia
apelar37 para a Corte de Chancelaria para constranger aquele a devolver os bens.
Aps ressaltar que a figura do trust apresentava caractersticas
diferenciadas das fidcias romana e germnica, especialmente em razo de
ligao histrica com a estrutura do sistema em que nasceu, JUDITH H.
MARTINS COSTA38 salienta que dele resulta a considerao da propriedade
como utilidade da coisa (estate) e no domnio sobre a coisa. Apresenta referida
autora, ainda, os sujeitos envolvidos nessa relao negocial: o settlor of trust,
que o proprietrio dos bens constitudos em trust; o trustee, aquele que se
incumbe da administrao dos bens; e o cestui que trust, que o beneficirio ou
tem os interesses administrados pelo trustee, que se obriga, pela equity, a
exercer, em proveito daquele, os direitos recebidos em trust.
PHILIP H. PETTIT39 conceitua o trust como o negcio jurdico
pelo qual uma pessoa, chamada de trustee, compromete-se a administrar bens
sobre os quais tem controle, que so chamados bens dados em trust, seja em
benefcio de seu proprietrio, denominado de settlor, de si mesmo ou outras
pessoas, chamadas beneficirias ou cestuis que trust, estando qualquer delas
investida de legitimidade para exigir o implemento da obrigao ou para uma
finalidade caritativa, que poderia ser fiscalizada pelo ministrio pblico.
Relevante para a compreenso do negcio jurdico examinado
tambm a conceituao que lhe deu MELHIM NAMEM CHALHUB40, para
37 Distino anotada tambm por Melhim Namem Chalhub (Trust: breves consideraes, cit. p. 83). 38 Judith H. Martins Costa (Os negcios, cit. p. 39). 39 Philip H. Pettit, Equity and the law of trusts. 7 ed. Londres: Butterworths, p. 23. 40 Melhim Namem Chalhub, Trust Fidcia: repercusses do instituto anglo-americano no direito brasileiro, Revista de Direito do Tribunal de Justia do Estado do Rio de Janeiro: doutrina e jurisprudncia, n. 51, p. 26 (2002).
14
quem o trust configura-se como o ato pelo qual o settlor destaca de seu
patrimnio determinados bens e os transmite ao trustee para a consecuo de
certo objetivo, em benefcio do proprietrio ou de terceiro, denominado cestui
que trust. Fica o trustee investido dos poderes de proprietrio apenas
nominalmente (nominal property), por receber a propriedade apenas para
administr-la em proveito do settlor ou do cestui que trust, os nicos possveis
destinatrios do contedo econmico da propriedade (equitable property). Em
razo disso, bens transferidos por meio do trust no so incorporados ao
patrimnio do trustee, passando a constituir um patrimnio de afetao,
separado de seu patrimnio pessoal, motivo pelo qual no respondem por
dbitos daquele.
Dos conceitos apresentados depreende-se uma caracterstica
essencial ou fundamento bsico do trust: a dupla41 propriedade dos bens, que, ao
mesmo tempo, confere grande maleabilidade ao sistema e segurana s partes
envolvidas.
Em razo disso, esse engenhoso instituto jurdico tem vrias
utilidades prticas, sendo empregado tanto em simples negcios como para a
administrao de grandes fortunas, servindo para a efetivao de disposies
testamentrias, a representao de acionistas e debenturistas de sociedades, bem
como para a prtica de atos de liberalidade.
Esse trao marcante do trust dupla propriedade de bens traz,
contudo, dificuldades para a sua adaptao por ordenamentos jurdicos de
origem no direito romano, como o brasileiro, que se pauta pelo princpio da
unicidade ou exclusividade de domnio. Essa adaptao, apesar de difcil,
poderia ser muito interessante para o desenvolvimento econmico do Brasil, em
razo da grande variedade de negcios em que poderia ser empregado, sendo
bastante usado em vultosos negcios internacionais. 41 Nesse sentido: Arnoldo Wald (Algumas consideraes, cit. p.110), Judith H. Martins Costa (Os negcios, cit. p. 39) e Melhim Namem Chalhub (Trust: breves consideraes, cit. p. 96).
15
MELHIM NAMEM CHALHUB esclarece que no processo de
assimilao dos elementos essenciais do trust pelos sistemas romansticos j se
pode identificar a titularidade fiduciria e, consequentemente, a afetao
patrimonial42. Apresenta43 como exemplos de normas, no Brasil, que
assimilaram a idia do trust: Lei n. 4.728/65 e Decreto-lei n. 911/69, tratando da
alienao fiduciria de bens mveis; Lei n. 8.668/93, que disciplina fundos
imobilirios; e a Lei n. 9.514/9744, que introduziu a figura da alienao
fiduciria de bens imveis. Ressalta referido autor, no entanto, que essa
adaptao brasileira, que se limitou a negcios especficos, no se mostra
compatvel com as necessidades do mundo contemporneo.
1.4 Os negcios fiducirios no direito moderno.
O conceito de negcio jurdico fiducirio atual foi desenvolvido por
juristas alemes, com especial relevo para FERDINAND REGELSBERGER45.
Caracteriza-se o negcio jurdico fiducirio sempre que a
transmisso do bem tem finalidade que no a transmisso em si mesma,
servindo de garantia para o cumprimento de negcio diverso46.
Em razo dessa utilizao de negcio jurdico tpico para
consecuo de objetivo diverso de sua finalidade precpua, alguns juristas
42 Melhim Namem Chalhub (Trust: breves consideraes, cit. p. 97). 43 Melhim Namem Chalhub (Trust fidcia, cit. p. 32-33). 44 A inspirao de nosso legislador no trust tambm foi ressaltada por Arthur Rios [(A garantia fiduciria e seu efeito transformador dos contratos, Jurisprudncia brasileira: cvel e comrcio, n. 187, p. 10 (2000)]. 45 Maria Helena Diniz (Tratado terico e prtico dos contratos, v. 5. 5. ed. So Paulo: Saraiva, 2003, p. 60), Moreira Alves (Da alienao, cit. p. 3-4) e Pontes de Miranda (Tratado de Direito Privado, Tomo III, 4. ed., So Paulo: Revista dos Tribunais, 1974, 271, p. 117). 46 Pontes de Miranda, Tratado, cit. p. 115-116.
16
estudaram47 o enquadramento ou no dos negcios fiducirios dentre os
negcios indiretos ou at mesmo a tentativa de sua equiparao a negcios
simulados.
Embora possuam elementos caractersticos dos negcios indiretos,
podendo at ser considerados como espcie daqueles, uma vez que o resultado
pretendido pelos contratantes diverso do resultado jurdico tpico do negcio
escolhido, os negcios fiducirios caracterizam-se pela utilizao de um negcio
tpico com amplas finalidades, havendo um excesso em relao finalidade
desejada pelo fiduciante. Tanto os negcios indiretos como os fiducirios
fundam-se no princpio da autonomia da vontade e so, em regra, lcitos, desde
que no contrariem norma de ordem pblica e no tenham por objetivo fraudar
credores, distanciando-se, pois, dos negcios simulados48 principalmente porque
nestes a relao negocial estabelece-se somente por aparncia e naqueles o
objetivo material atingido realmente representa a vontade dos contratantes.
O elemento essencial para o negcio fiducirio a confiana.
Segundo DARCY BESSONE49 essa modalidade negocial somente se realiza por
confiar o fiduciante no fiducirio a quem concede, visando certo fim econmico,
uma posio jurdica mais ampla do que a prevista pela lei.
Conforme classificao apresentada por MELHIM NAMEM
CHALHUB, negcios fiducirios distinguem-se, conforme a finalidade, em duas
modalidades50: de garantia e de administrao. So exemplos da primeira delas a
venda com escopo de garantia, venda com reserva de domnio e a cesso
fiduciria de crdito; e da segunda modalidade o negcio fiducirio para
recomposio de patrimnio e a cesso fiduciria para fins societrios.
47 Ascarelli, Rubino, Distaso, Grassetti, Oertmann, Khler e Rabel so citados por Custdio da Piedade Ubaldino Miranda (Negcio, cit. p. 81-94). 48 Francesco Ferrara (A simulao dos negcios jurdicos, So Paulo: Saraiva, 1939, p. 76) e Judith H. Martins Costa (Os negcios, cit. p.. 42). 49 Darcy Bessone, Da compra e venda, promessa, reserva de domnio & alienao em garantia, 4. ed. So Paulo: Saraiva, 1997, p. 258. 50 Melhim Namem Chalhub (Negcio, cit. p. 49-53).
17
O direito positivo brasileiro no contempla regulamentao
genrica para os negcios fiducirios que, no entanto, so admitidos pela
doutrina e jurisprudncia, prestigiando-se o princpio da autonomia da vontade e
desde que no violem norma de ordem pblica ou caracterizem fraude lei ou
contra credores.
1.4.1 Negcios fiducirios com finalidade de garantia.
Os negcios fiducirios com escopo de garantia corresponderiam
modalidade da fidcia romana cum creditore, na medida em que a transferncia
de bens ou direitos por meio deles celebrada faz-se em garantia de uma
obrigao principal, nascendo para o fiducirio o dever de restituir o bem ou
direito to logo efetuado o pagamento pelo fiduciante.
Enquadra-se nessa modalidade negocial a venda com fins de
garantia51. Trata-se de contrato acessrio, pelo qual o fiduciante transmite ao
fiducirio um bem em garantia do pagamento de uma obrigao. Em caso de
mora do devedor, fica o credor autorizado a satisfazer seu crdito pelo uso do
bem ou com o produto de sua alienao em hasta pblica, restituindo ao devedor
o que sobejar. Diverge da dao em pagamento porque o credor, descumprida a
obrigao principal, no pode ficar com o bem.
A venda e compra com reserva de domnio tambm pode ser
enquadrada dentre os negcios fiducirios com fins de garantia. Isso porque o
vendedor permanece com a propriedade do bem, fiduciria e resolvel, at que o
comprador cumpra integralmente sua obrigao. Nesse caso extingue-se a
propriedade resolvel. 51 Negcio jurdico admitido pela jurisprudncia do Superior Tribunal de Justia: Recurso Especial n. 57991-SP (4T., Min. Slvio de Figueiredo Teixeira, j. 19/8/97, DJ 29/9/97, RSTJ, v. 102, p. 284) e Recurso Especial n. 155242-RJ (4T., Min. Slvio de Figueiredo Teixeira, j. 15/2/99, DJ 2/5/2000, RSTJ, v. 135, p. 405).
18
Outro exemplo de negcio fiducirio com finalidade de garantia a
cesso fiduciria de crdito, pela qual o cedente-fiduciante cede ao cessionrio-
fiducirio um crdito em garantia do pagamento de uma obrigao principal,
podendo o cessionrio exercer todos os direitos de credor, inclusive executar a
dvida, sem, contudo, ficar com o valor recebido, que reter at o cumprimento
da obrigao do cedente. A cesso extingue-se com o pagamento da dvida,
retornando o crdito ou o produto obtido na sua cobrana ao cedente52. Trata-se
de modalidade bastante utilizada no sistema financeiro para cobrana ou
compensao.
1.4.2 Venda com fins de administrao.
Nesta modalidade de negcio fiducirio a transferncia do bem ou
direito no feita para garantia do pagamento de um dbito, mas para que o
patrimnio do fiduciante seja administrado, conservado ou explorado em seu
proveito ou no dos beneficirios que indicar. H elementos tanto da fidcia
romana cum amico como de uma das formas mais usuais do trust anglo-saxo,
sendo muito utilizada na gesto de negcios imobilirios e nos fundos de
investimento.
Esses elementos esto presentes no negcio fiducirio para
recomposio de patrimnio, pelo qual uma pessoa, que est com o patrimnio
onerado e no se sente em condies de recomp-lo, opta por transferir a uma
pessoa de sua confiana a propriedade de seus bens para que esta se encarregue
pela recomposio patrimonial. Feito isso, os bens voltam a ser de propriedade
do fiduciante.
52 Csar Fiuza, Alienao fiduciria em garantia (de acordo com a lei n. 9.514/97), Rio de Janeiro: AIDE, 2000, p. 18.
19
Outro negcio fiducirio com fins de administrao a cesso
fiduciria no direito societrio, que ocorre quando um acionista transmite a
titularidade fiduciria de suas aes a uma pessoa para que esta, seguindo
orientaes previamente estabelecidas, manifeste voto em assemblias,
retornando a titularidade ao cedente aps a realizao do ato.
20
II PATRIMNIO DE AFETAO.
Apesar de os direitos reais de garantia disciplinados luz do
Cdigo Civil de 1916 terem apresentado acelerado processo de
enfraquecimento, em razo principalmente da habitual morosidade do processo
judicial executrio, os negcios fiducirios nunca foram utilizados em larga
escala, especialmente em se tratando de bens infungveis de maior valor, uma
vez que a propriedade plena constituda em favor do fiducirio coloca o
fiduciante sob risco de abuso de poder daquele, contra quem no tem direito
real, mas somente obrigacional.
Alm disso, nos negcios fiducirios atpicos aceitos em nossa
doutrina e jurisprudncia o bem transferido ao credor no fica imune a dbitos
deste, causando mais uma insegurana jurdica ao devedor, o que no existe no
trust do direito anglo-saxo, justamente pela existncia neste do patrimnio de
afetao, que impede que o bem transferido responda por dbitos de seu novo
proprietrio e administrador.
As vantagens da maleabilidade da figura negocial do trust tm
seduzido diversas naes, mesmo aquelas de tradio romanista, a tipificar
contratos com finalidades e objetivos de algumas modalidades de trust,
destacando-se o elemento do patrimnio separado ou afetado.
No continente americano, alguns pases instituram negcio jurdico
com caractersticas semelhantes, denominado de fideicomisso, adotado por
Argentina, Costa Rica, Colmbia e Mxico, com extenso muito mais ampla do
que o instituto de mesmo nome do ordenamento jurdico brasileiro. Na Europa
muito vem se estudando sobre a importncia para o desenvolvimento de relaes
comerciais internacionais da adoo nos pases do sistema da civil law de
mecanismos semelhantes aos existentes no trust, especialmente depois da
ratificao por alguns pases da Conveno de Haia de 1985 sobre esse
21
importante tema, tendo sido institudo recentemente na Frana o contrato de la
fiducie e na Itlia o contrato de destinazione.
Em todos os pases citados destacou-se a importncia de o bem ou
direito transferido em confiana no se confundir com o patrimnio pessoal do
devedor, administrador ou mandatrio, ficando, assim, excludo em caso de
insolvncia, recuperao judicial ou falncia de seu possuidor direto, atribuindo
maior segurana jurdica aos negcios.
2.1 Conceituao e sua configurao no direito brasileiro.
O patrimnio de afetao, ou simplesmente patrimnio separado ou
apartado, compreende bens e direitos transferidos a uma pessoa para fins de
garantia ou administrao e que no se confundem com o patrimnio da pessoa,
fsica ou jurdica, que os recebe, devendo retornar para a titularidade do
alienante ou de terceiro beneficirio aps a consecuo do objetivo contratado.
Serve para atribuir segurana jurdica aos contratantes, evitando constries por
dvidas privilegiadas, como fiscais e trabalhistas, que nos direitos reais em
garantia tradicionais praticamente esvaziam a prpria garantia em caso de
insolvncia do devedor.
A introduo no ordenamento jurdico brasileiro da noo de
segregao patrimonial coincide com a introduo da propriedade fiduciria pela
Lei de Mercado de Capitais (Lei n. 4.728/65), que, tratando de fundos de
investimento, estabeleceu em seus artigos 49 e 50 a formao de condomnios
para a constituio dos fundos e a separao contbil do patrimnio de referidos
fundos.
22
A segregao patrimonial, embora presente nas legislaes
relacionadas alienao fiduciria em garantia de bens mveis53 e imveis54,
como se examinar nos captulos seguintes, especificamente no que tange
expressa previso legal de o bem alienado fiduciariamente no ser atingido pela
falncia ou insolvncia do devedor fiduciante, recebeu regulamentao mais
detalhada pela Lei n. 8.668/9355, que estabelece regras para a constituio de
fundos de investimento imobilirio.
2.2 Experincia no direito estrangeiro.
Alm do trust anglo-saxnico j comentado, o patrimnio de
afetao est presente em pases de nosso continente, por ser elemento
caracterstico do fideicomisso adotado em alguns pases de lngua espanhola56, e
vem recebendo ateno especial em leis recentes de pases europeus. 53 Decreto-lei n. 911/69: Art. 7o Na falncia do devedor alienante, fica assegurado ao credor ou proprietrio fiducirio o direito de pedir, na forma prevista na lei, a restituio do bem alienado fiduciariamente. 54 Lei n. 9.514/97: Art. 32. Na hiptese de insolvncia do fiduciante, fica assegurada ao fiducirio a restituio do imvel alienado fiduciariamente, na forma da legislao pertinente. 55 Art. 6 O patrimnio do Fundo ser constitudo pelos bens e direitos adquiridos pela instituio administradora, em carter fiducirio. Art. 7 Os bens e direitos integrantes do patrimnio do Fundo de Investimento Imobilirio, em especial os bens imveis mantidos sob a propriedade fiduciria da instituio administradora, bem como seus frutos e rendimentos, no se comunicam com o patrimnio desta, observadas, quanto a tais bens e direitos, as seguintes restries: I - no integrem o ativo da administradora; II - no respondam direta ou indiretamente por qualquer obrigao da instituio administradora; III - no componham a lista de bens e direitos da administradora, para efeito de liquidao judicial ou extrajudicial; IV - no possam ser dados em garantia de dbito de operao da instituio administradora; V - no sejam passveis de execuo por quaisquer credores da administradora, por mais privilegiados que possam ser; VI - no possam ser constitudos quaisquer nus reais sobre os imveis. 56 Miguel Virgos Soriano (El trust y el derecho espaol. Madrid: Civitas, 2006, p. 81-82), comentando o art. 781 do Cdigo Civil Espanhol, esclarece ser possvel naquele pas a substituio fideicomissria somente no mbito do direito sucessrio, limitada, em linha de herdeiros, a dois chamamentos de pessoas que no haviam nascido ao tempo do falecimento do testador, porm j concebidas.
23
Na Argentina57, ao se disciplinar o fideicomisso na Lei n.
24.441/95, expressamente estabeleceu-se em seus artigos 14 e 15 a afetao
patrimonial dos bens transmitidos ao fiducirio a uma finalidade especfica, no
respondendo por dvidas tanto do fiducirio como do fiduciante, a menos que a
transferncia realizada por este tenha ocorrido para fraudar credores. Prev-se,
ainda, que o credor do beneficirio do fideicomisso poder exercer direitos sobre
os frutos dos bens fideicomitidos ou se subrogar em seus direitos.
A segregao patrimonial tambm pode ser observada no
fideicomisso mexicano58, mais precisamente da anlise conjunta dos artigos 351,
381 e 386 da Lei Geral de Ttulos e Operaes de Crdito, de 27 de agosto de
1932, reformada em 20 de agosto de 2008, da qual se depreende a afetao do 57 Artculo 14. Los bienes fideicomitidos constituyen un patrimonio separado del patrimonio del fiduciario y del fiduciante. La responsabilidad objetiva del fiduciario emergente del artculo 1113 del Cdigo Civil se limita al valor de la cosa fideicomitida cuyo riesgo o vicio fuese causa del dao si el fiduciario no pudo razonablemente haberse asegurado. Artculo 15. Los bienes fideicomitidos quedarn exentos de la accin singular o colectiva de los acreedores del fiduciario. Tampoco podrn agredir los bienes fideicomitidos los acreedores del fiduciante, quedando a salvo la accin de fraude. Los acreedores del beneficiario podrn ejercer sus derechos sobre los frutos de los bienes fideicomitidos y subrogarse en sus derechos. 58 Artculo 351. En caso de concurso o quiebra del deudor, los bienes objeto de prenda sin transmisin de posesin que existan en la masa, podrn ser ejecutados por el acreedor prendario, mediante la accin que corresponda conforme a la ley de la materia, ante el juez concursal, el cual deber decretar, sin ms trmite, la ejecucin solicitada. Si hubiera oposicin, el litigio se resolver por la va incidental. La resolucin que el juez dicte, haya habido o no litigio, slo ser apelable en el efecto devolutivo. Artculo 381. En virtud del fideicomiso, el fideicomitente transmite a una institucin fiduciaria la propiedad o la titularidad de uno o ms bienes o derechos, segn sea el caso, para ser destinados a fines lcitos y determinados, encomendando la realizacin de dichos fines a la propia institucin fiduciaria. Artculo 386. Pueden ser objeto del fideicomiso toda clase de bienes y derechos, salvo aquellos que, conforme a la ley, sean estrictamente personales de su titular. Los bienes que se den en fideicomiso se considerarn afectos al fin a que se destinan y, en consecuencia, slo podrn ejercitarse respecto a ellos los derechos y acciones que al mencionado fin se refieran, salvo los que expresamente se reserve el fideicomitente, los que para l deriven del fideicomiso mismo o los adquiridos legalmente respecto de tales bienes, con anterioridad a la constitucin del fideicomiso, por el fideicomisario o por terceros. La institucin fiduciaria deber registrar contablemente dichos bienes o derechos y mantenerlos en forma separada de sus activos de libre disponibilidad.El fideicomiso constituido en fraude de terceros, podr en todo tiempo ser atacado de nulidad por los interesados.
24
bem alienado a uma finalidade determinada, devendo ser registrada
contabilmente de modo separado, somente podendo ser destinado ao objetivo da
contratao, estando claro que tambm no so sofrem os efeitos da insolvncia
ou falncia do devedor, ressalvando-se a nulidade do negcio quando perpetrado
em fraude contra credores.
O Cdigo de Comrcio da Colmbia59, em seu artigo 1.233,
tambm faz meno ao patrimnio separado no fideicomisso, a exemplo do que
estabelecido pelo Cdigo de Comrcio da Costa Rica60, em seu artigo 634.
Diversamente do que ocorre nesses pases das Amricas do Sul e
Central, o fideicomisso brasileiro aplica-se somente no mbito do direito das
sucesses, nos termos dos artigos 1.951 e seguintes do Cdigo Civil, pelo qual o
testador pode estabelecer que, por ocasio de sua morte, a herana ou o legado
se transmita ao fiducirio, resolvendo-se o direito deste, por morte, implemento
de condio ou transcurso de certo tempo, em favor do fideicomissrio, cabendo
quele uma propriedade restrita e resolvel, basicamente para fruio e
administrao do patrimnio. Nossa legislao, ademais, no permite a
substituio fideicomissria em benefcio daqueles j nascidos ao tempo do
bito do testador. Nesse caso, o fideicomissrio adquiriria desde logo a
propriedade, convertendo-se o direito do fiducirio em usufruto.
Alguns pases do velho continente, mesmo aqueles de tradio
romanista, estudam nos ltimos anos formas de instituir figuras semelhantes ao
trust anglo-saxo, em razo de sua maleabilidade e utilizao em diversas gamas
negociais.
59 Artculo 1233. Para todos los efectos legales, los bienes fideicomitidos debern mantenerse separados del resto del activo del fiduciario y de los que correspondan a otros negocios fiduciarios, y forman un patrimonio autnomo afecto a la finalidad contemplada en el acto constitutivo. 60 Artculo 634. Pueden ser objeto de fideicomiso toda clase de bienes o derechos que legalmente estn dentro del comercio. Los bienes fideicometidos constituirn un patrimonio autnomo apartado para los propsitos del fideicomiso.
25
Com esse propsito, a Frana, por meio da Lei n. 211, de 19 de
fevereiro de 2007, introduziu o contrato61 de fiducie nos artigos 2.011 e
seguintes de seu Cdigo Civil, deixando expressa a afetao62 do patrimnio
transferido a uma finalidade especfica em proveito de um ou mais beneficirios,
que no atingido em caso de abertura de processo de concordada, recuperao
judicial ou liquidao do fiducirio, podendo ser transcritos, quanto ao tema, os
seguintes dispositivos de referido Codex:
Article 2011. La fiducie est l'opration par laquelle un ou plusieurs constituants transfrent des biens, des droits ou des srets, ou un ensemble de biens, de droits ou de srets, prsents ou futurs, un ou plusieurs fiduciaires qui, les tenant spars de leur patrimoine propre, agissent dans un but dtermin au profit d'un ou plusieurs bnficiaires63.
Article 2024.L'ouverture d'une procdure de sauvegarde, de redressement judiciaire ou de liquidation judiciaire au profit du fiduciaire n'affecte pas le patrimoine fiduciaire64.
O direito italiano igualmente viu inserido nos ltimos anos em seu
ordenamento jurdico nova modalidade negocial, denominada contrato de
destinazione, com a introduo a seu Cdigo Civil do art. 2645-ter pela Lei de
Conveno n. 51, de 23 de fevereiro de 2006. Assim agindo, o legislador
italiano, alm de disciplinar espcie contratual assemelhada a uma das
modalidades do trust e com expressa previso de patrimnio separado para a
61 Jos Alberto Gonzlez (Direitos reais e direito registral imobilirio. 4. ed. Lisboa: Quid Juris, 2009, p. 88) considera que essa nova modalidade contratual aproxima-se mais do trust anglo-saxnico do que da fidcia concebida no direito romano, diferenciando-se, contudo, daquele pelos elementos formais de transmisso da propriedade. 62 Alain Cerles (Le contrat fiduciaire et ss applications bancaires: present et avenir. Direito Bancrio. Suplemento. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 97) salienta que a nova lei sinaliza para o incio de um patrimnio de afetao, fortalecendo a posio do credor fiducirio em relao s garantias do penhor e hipoteca. 63 Artigo 2011. A fidcia o negcio pelo qual um ou mais constituintes transferem bens, direitos ou garantias, ou um conjunto de bens, de direitos ou de garantias, a um ou mais fiducirios, que os mantero separados de seu patrimnio prprio, agindo segundo um fim determinado em proveito de um ou mais beneficirios. 64 Artigo 2024. A abertura de um processo de concordata, de recuperao judicial ou de liquidao judicial do fiducirio no afeta o patrimnio fiducirio.
26
consecuo de um fim especfico, far diminuir provavelmente a controvrsia
existente na doutrina daquele pas quanto utilizao do trust interno aps a
ratificao da Conveno de Haia de 1985, efetivada pela Lei n. 364, de 16 de
outubro de 1989. O novo dispositivo introduzido ao Cdigo Civil daquele pas
estabelece que:
Art. 2645-ter. Trascrizione di atti di destinazione per la realizzazione di interessi meritevoli di tutela riferibili a persona con disabilit, a pubbliche amministrazioni, o ad altri enti o persone fisiche. Gli atti in forma pubblica con cui beni immobili o beni mobili iscritti in pubblici registri sono destinati, per un periodo non superiore a novanta anni o per la durata della vita della persona fisica beneficiaria, alla realizzazione di interessi meritevoli di tutela riferibili a persona con disabilit, a pubbliche amministrazioni, o ad altri enti o persone fisiche ai sensi dellarticolo 1322, secondo comma, possono essere trascritti al fine di rendere opponibile ai terzi il vincolo di destinazione; per la realizzazione di tali interessi pu agire, oltre al conferente, qualsiasi interessato anche durante la vita del conferente stesso. i beni conferiti e i loro frutti possono essere impiegati solo per la realizzazione del fine di destinazione e possono costituire oggetto di esecuzione, salvo quanto previsto dallarticolo 2915, primo comma, solo per debiti contratti per tale scopo65.
Muito se debate atualmente na doutrina italiana sobre o significado
da expresso interesses merecedores de tutela constante como requisito de
validade do novo negcio jurdico. Questiona-se se o novo dispositivo legal
65 Art. 2645-ter. Transcrio de atos de destinao para a realizao de interesses merecedores de tutela referentes a pessoas incapazes, a administraes pblicas, ou a outros entes ou pessoas fsicas. Os atos em forma pblica com os quais bens imveis ou bens mveis inscritos em registros pblicos so destinados, por um perodo no superior a noventa anos ou pela durao da vida da pessoa fsica beneficiria, realizao de interesses merecedores de tutela referentes a pessoas incapazes, a administraes pblicas, ou a outros entes ou pessoas fsicas nos termos do artigo 1322, segundo pargrafo, podem ser transcritos a fim de ser oponvel a terceiros o vnculo de destinao; para a realizao de tais interesses pode agir, alm do proprietrio, qualquer interessado mesmo durante a vida daquele. Os bens atribudos e seus frutos podem ser empregados somente para a realizao do fim da destinao e podem constituir objeto de execuo, salvo o quanto previsto no artigo 2915, primeiro pargrafo, somente por dbitos contrados por tal escopo.
27
refere-se somente legalidade ou licitude do ato de destinao66, que ter
validade desde que no infrinja norma cogente, a ordem pblica e os bons
costumes, ou se o objetivo do legislador foi privilegiar somente interesses
socialmente relevantes e de utilidade pblica. A primeira tese67 funda-se no
princpio da autonomia privada68. Os defensores da segunda tese argumentam,
por outro lado, que a lei no precisaria prever que o ato de destinao somente
seria vlido se fosse lcito69. Defendem os autores dessa corrente que se faa um
exame causal do ato e de seus provveis efeitos para que, s ento, este seja
registrado e tenha validade, uma vez que a segregao patrimonial70 com efeitos
66 Nesse sentido posicionam-se: Carlo Fratta Pasini (Il nuovo articolo 2645-ter del codice civile: le preoccupazioni del mondo bancario. Negozio di destinazione: percorsi verso unespressione sicura della autonomia privata. Fondazione Italiana per Il Notariato. Milano: Il Sole 24 Ore, 2007, p. 62), Paolo DellAnna (Patrimoni destinati e fondo patrimoniale. Torino: UTET Giuridica, 2009, p. 81) e Paolo Spada (Articolazione del patrimonio da destinazione iscritta. Negozio di destinazione, cit. p. 126). 67 Eliana Morandi (Gli atti di destinazione nellesperienza degli Stati Uniti dAmerica. Negozio di destinazione, cit. p. 47) denomina de liberal a tese que defende o simples exame da licitude do ato de destinao, limitando-se o notrio a verificar no momento de seu registro se o ato no contraria norma imperativa, a ordem pblica e os bons costumes, e de sistemtica a tese que atribui ao notrio e, posteriormente, ao juiz a competncia para analisar comparativamente os interesses pretendidos com o ato de destinao e aqueles protegidos pelos princpios da responsabilidade geral do patrimnio do devedor, da par conditio creditorum e dos numerus clausus dos direitos reais. 68 Francesco Santamaria (Il negozio di destinazione. Milano: Giuffr, 2009, p. 29-38) argumenta que os contratantes que devem decidir se o ato que pretendem praticar merecedor de tutela, fugindo da competncia do notrio e, posteriormente, do juiz, sob pena de se prestigiar indevidamente o dirigismo contratual frente ao princpio da autonomia da vontade. 69 Defendem o juzo de valorao de interesses pblicos e socialmente relevantes do ato de destinao para que seja registrado e considerado vlido: Alessandro De Donato (Gli interessi riferibili a soggetti socialmente vulnerabili. Negozio di destinazione, cit. p. 253), Giacomo Rojas Elgueta (Il rapporto tra lart. 2645-ter c.c. e lart. 2740 c.c.: unanalisi economica della nuova disciplina. Negozio di destinazione, cit. p. 72-73), Giorgio Baralis (Prime riflessioni in tema di art. 2645-ter c.c. Negozio di destinazione, cit. p. 131-132), Giuseppe Antonio Michele Trimarchi (Gli interessi riferibili a persone fisiche. Negozio di destinazione, cit. p. 267-269), Mirzia Bianca (La categoria dellatto negoziale di destinazione: vecchie e nuove prospettive. Negozio di destinazione, cit. p. 177-179), Serena Meucci (La destinazione di beni tra atto e rimedi. Milano: Giuffr, 2009, p. 260-265) e Vincenzo Scaduto (Gli interessi meritevoli di tutela: autonomia privata delle opportunit o autonomia privata della solidariet. Negozio di destinazione, cit. p. 110). 70 Marco Maltoni (Il problema delleffettivit della destinazione. Negozio di destinazione, cit. p. 82) ressalta que, de acordo com o ordenamento jurdico italiano, a separao de parte do
28
reais para a realizao de uma determinada finalidade, autorizada pelo novo
dispositivo legal, e a consequente impossibilidade de excusso de referidos bens
por dbitos no contrados na execuo do contrato de destinao representam
exceo a diversos princpios do ordenamento jurdico italiano, tais como:
princpio dos numerus clausus dos direitos reais (art. 1379 c.c.), pelo qual no se
pode atribuir limitao real ao direito de propriedade por conveno das partes,
princpio da responsabilidade geral do patrimnio do devedor para a garantia de
seus credores (art. 2470 c.c.) e da par conditio creditorum.
Em razo de o ato de destinao ter sido inserido sistematicamente
na parte do Cdigo Civil italiano que disciplina atos de registro, controverte-se,
ainda, na doutrina se a inteno do legislador foi a de introduzir uma nova
modalidade contratual, atpica e de carter geral71, ou se somente pretendeu
estabelecer norma meramente procedimental de natureza registrria para
autorizar o registro de negcios inominados j existentes ou mesmo figuras do
denominado trust interno72, que parte dos autores considera ter sido adotado na
Itlia aps a ratificao da Conveno de Haia sobre o tema.
Apresentadas as questes controvertidas pela doutrina italiana,
cumpre apresentar os elementos principais desta nova modalidade contratual.
Trata-se de contrato atpico, celebrado em forma pblica, pelo qual uma pessoa
pode separar de seu patrimnio bens imveis ou mveis registrados, por um
patrimnio de uma pessoa, que no mais respondero por seus dbitos, somente pode corresponder ao efeito de um vnculo de destinao e nunca a causa desse ato, sob pena de violao do princpio da responsabilidade patrimonial universal e dos interesses dos credores. No mesmo sentido o posicionamento de Francesco Santamaria (Il negozio, cit. p. 11-12). 71 Andrea Fusaro (Le posizioni dellaccademia nei primi commenti dellart. 2645-ter c.c. Negozio di destinazione, cit. p. 32), Luca Egiziano (Separazione patrimoniale e tutela dei creditori. I patrimoni destinati ad uno specifico affare. Torino: G. Giappichelli, 2009, p. 35-38) e Paolo DellAnna (Patrimoni destinati, cit. p. 26-29) defendem ter sido criada uma nova modalidade contratual e no simplesmente um procedimento registral. 72 Laura Santoro (Il trust in Italia. 2. ed. Milano: Giuffr, 2009, p. 277-283) e Daniele Muritano (Il c.d. trust interno prima e dopo lart. 2645-ter c.c. Negozio di destinazione, cit. p. 23) reputam a nova norma como meramente procedimental. Stefania Cervelli (I diritti reali. Milano: Giuffr, 2007, p. 66) considera que o legislador finalmente legitimou com o art. 2645-ter uma forma de trust de direito italiano.
29
perodo73 no superior a noventa anos ou enquanto viver o beneficirio, pessoa
natural, para atender aos interesses de incapazes, da administrao pblica ou de
outros entes e pessoas fsicas, devendo ser transcrito74 no registro pblico
competente a fim de ser oponvel a terceiros. O patrimnio afetado somente
responder por dbitos contrados na consecuo da finalidade do ato de
destinao, salvo eventual direito anterior de preferncia de credor pignoratcio,
nos termos do art. 2915 do Diploma Civil Italiano.
O patrimnio de afetao admitido em Portugal de forma bastante
restrita. Isso por autorizar, a partir do Decreto-Lei n. 352-A/88, de 3 de outubro
de 1988, a constituio de trusts, destinados a atividades off shore, somente na
zona franca da Regio Autnoma da Madeira75, e a celebrao de alienao
fiduciria exclusivamente tendo como objeto garantias financeiras76, limitadas a
numerrio e instrumentos financeiros, por fora do Decreto-Lei n. 105/2004, de
8 de maio de 2004, que deu cumprimento Diretiva n. 2002/47/CE, do
Parlamento Europeu e do Conselho da Unio Europia, respeitando-se77, com
73 Luca Egiziano (Separazione patrimoniale, cit. p. 38) esclarece que a razo do limite temporal reside no princpio dos numerus clausus dos direitos reais, que no autoriza que as partes convencionem a limitao do contedo econmico do direito de propriedade por perodo indefinido. 74 Maurizio DErrico. Le modalit della trascrizione ed i possibili conflitti che possono porsi tra beneficiari, creditori ed aventi causa del conferente. Negozio di destinazione, cit. p. 88. 75 Vernica Scriptore Freire e Almeida (A tributao dos trusts. Coimbra: Almedina, 2009, p. 275-278), aps tratar da expressa admissibilidade legal do trust nessa especfica regio, salienta que Portugal ainda no ratificou a Conveno de Haia sobre Trusts. 76 Margarida Costa Andrade (A propriedade fiduciria, cit. p. 64-66). Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte (Garantias de cumprimento. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2006, p. 246-247). Lus Miguel D. P. Pestana de Vasconcelos (A cesso de crditos em garantia e a insolvncia. Em particular da posio do cessionrio na insolvncia do cedente. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 338-345) salienta que nessa especfica hiptese de alienao fiduciria em contratos de garantias financeiras, os bens afetados estariam excludos dos efeitos da decretao de falncia ou declarao de insolvncia tanto do credor fiducirio como do devedor fiduciante, a teor dos artigos 17 e 18 do Decreto-Lei n. 105/2004. 77 Jos Alberto Gonzalez (Direitos reais, cit. p. 90-91) e Isabel Andrade de Matos (O pacto comissrio, cit. p. 10 e 21).
30
isso, o princpio de numerus clausus dos direitos reais constante do art. 1306 do
Cdigo Civil Portugus78.
O ordenamento jurdico espanhol, por seu turno, somente autoriza
afetao patrimonial mediante a constituio de fundaes com interesse pblico
e geral e no em benefcio de seus constituintes. Trata-se de poltica legislativa
com a finalidade de evitar vinculaes de carter duradouro sobre bens,
respeitando com isso os princpios da no perpetuao do direito de propriedade
e da responsabilidade patrimonial universal do devedor em garantia de todos os
seus credores. H uma exceo regional79, tendo sido expressamente instituda a
alienao fiduciria em garantia pela Lei n. 466 da Compilao Foral de
Navarra80.
Constata-se, pois, com a meno a dispositivos legais de diversos
pases de tradio romanista existir uma preocupao comum, a exemplo do que
levou o Brasil a estender a alienao fiduciria a bens imveis, pela introduo e
desenvolvimento de novos institutos que possam substituir as garantias
tradicionais, atendendo s exigncias da sociedade atual e aos negcios feitos
em larga escala, sem, contudo, ferir princpios basilares de seus ordenamentos
jurdicos.
A afetao patrimonial, como visto, traz segurana tanto para
fiduciante como para fiducirio, uma vez que os bens destinam-se a uma
finalidade especfica e, em regra, respondem somente por dbitos decorrentes da 78 Artigo 1306 (Numerus clausus) 1. No permitida a constituio, com carcter real, de restries ao direito de propriedade ou de figuras parcelares deste direito seno nos casos previstos na lei; toda a restrio resultante de negcio jurdico, que no esteja nestas condies, tem natureza obrigacional. 79 Miguel Virgos Soriano. El trust, cit. p. 51, 61-62 e 68-69. 80 Por la fiducia de garanta se transmite al acreedor la propriedad de uma cosa o la titularidad de um derecho mediante uma forma eficaz frente a terceros. Cumplida la obligacin garantizada, el transmitente podr exigir del fiduciario la retransmisin de la propriedad o del derecho cedido; el fiduciario, em su caso, deber restituir y responder com arreglo a lo establecido para el acreedor pignoratcio (...) No obstante, si as se hubiere pactado, podr el acreedor, en caso de mora del deudor, adquirir irrevocablemente la propriedad de la cosa o la titularidad del derecho, y queder extinguida la obligacin garantizada.
31
consecuo de referido objetivo, salvo se configurada fraude contra credores.
Trata-se de elemento essencial da alienao fiduciria em garantia, conforme se
examinar a seguir.
32
III PROPRIEDADE FIDUCIRIA.
3.1 Conceito e elementos caractersticos.
A propriedade fiduciria direito real, disciplinado em lei por fora
do princpio dos numerus clausus dos direitos reais, constitudo mediante o
registro do instrumento de sua instituio com finalidade de garantia do
cumprimento de uma obrigao principal ou para fins de administrao. Trata-
se, pois, de direito real acessrio, limitado e temporrio, que se resolve em favor
do devedor fiduciante com a satisfao da dvida deste ou da consecuo da
finalidade para a qual havia sido destinada e que, em regra, no responde por
dbitos que no sejam diretamente relacionados contratao e no se sujeitam
aos efeitos da decretao de falncia ou declarao de insolvncia de fiduciante
ou fiducirio. Caracteriza-se, pois, pela afetao patrimonial anteriormente
deduzida.
Mostra-se, ainda, necessrio esclarecer que a propriedade
fiduciria, embora tenha como caracterstica a resolubilidade para o fiducirio,
no sinnimo de propriedade resolvel, na medida em que, diferentemente
desta, aquela no surge ou se extingue por vontade das partes, mas de acordo
com os termos da lei que a disciplinou. Alm disso, na propriedade resolvel, o
proprietrio possui todas as faculdades do titular do domnio pleno, limitada
exclusivamente pela condio resolutiva. Implementada a condio, a
propriedade retorna ao anterior proprietrio ou transferida a terceiro, com
efeitos ex tunc, como se nunca tivesse havido essa forma de propriedade. No se
implementando a condio, a propriedade resolvel transforma-se em
propriedade plena, o que no ocorre, em regra, com a propriedade fiduciria,
uma vez que, enquanto durar a obrigao principal de que acessria a garantia,
33
o fiducirio no possui todas as faculdades inerentes ao domnio81, no podendo
se apropriar da bem em caso de inadimplemento, pela vedao legal ao pacto
comissrio, conforme se tratar adiante.
3.2 Propriedade fiduciria no direito comparado.
A propriedade fiduciria introduziu-se praticamente de forma
simultnea a do patrimnio afetado, tanto na legislao brasileira como no
direito aliengena, de que so exemplos as normas anteriormente mencionadas
quando do exame e conceituao da afetao patrimonial, que fazem aluso
propriedade fiduciria, temporria, empregada com finalidade de garantia ou de
administrao.
Pases de tradio romanista tiveram e ainda tm obstculos para a
sua adoo,
Top Related