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Filosofia radical e utopia: inapropriabilidade, an-arquia, a-nomia
Andityas Soares de Moura Costa Matos
Belo Horizonte: Via Vrita, 2014.
Elogio do intempestivo
Murilo Duarte Costa Corra
Filosofia Radical e Utopia, de Andityas Soares de Moura Costa Matos,
talvez o primeiro livro de filosofia poltica escrito por um jurista h muito tempo no
Brasil. A filosofia que esse texto seminal prope simultaneamente radical e utpica
porque, sombra de um s gesto, esboa tanto os elementos de recusa quanto os signos
genuinamente positivos de uma outra filosofia do direito, pensada a partir de seus
vetores polticos e das formas de vida que estes engendram. O amplo campo de jogo
conceitual que Andityas mobiliza, junto notvel pliade de leituras a cada vez
cerzidas, forjadas e articuladas, tensiona uma linha de ruptura em direo ao Fora e, a
um s tempo, manifesta o desejo candente de rasurar de maneira indelvel os
referenciais cmodos que constituem o senso comum jusfilosfico brasileiro.
O texto assume o corajoso projeto de constituir uma filosofia de ruptura no
interior dos quadros universitrios. Eis o que faz deste livro mais que uma vibrante
experincia de tessitura de horizontes pr, anti e metaconceituais, mas o movimento
constituinte de um gesto filosfico original. A filosofia jurdica brasileira, a exemplo da
filosofia do direito cosidetta universal (anglo-saxnica e europeia continental),
permaneceu por muito tempo presa das redues epistemolgicas que a consideravam
ora como um apndice da Teoria Geral do Direito, ora como um departamento de
discusses metafsicas especializadas de Teoria da Justia; agora, encontra em
Filosofia Radical e Utopia uma proposta amadurada, embora sempre e j a caminho,
de ler a ontologia dos fenmenos jurdicos sob a chave de sua constitutividade
inerentemente poltica.
Se boa parte da tradio metafsica contempornea ocupa-se do missing link
entre ontologia e poltica, o advento de uma Filosofia Radical no se furta a reconhecer
e a assumir em termos contrahegelianos, antidialticos e ps-marxistas a precisa tarefa
de seu tempo: pensar, nas fendas de um horizonte temporal irreconciliavelmente
fraturado, uma filosofia radicalmente atrelada ao tempo-de-agora, mas que no deixa
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de nutrir-se das cinzas da memria imensa e extempornea das lutas, nem ignora a
tarefa de constituir-se na indeterminao e na virt de uma filosofia que vem.
Toda a multiplicidade de que o livro se compe pontilhada por ensaios
relativamente autnomos entre si e povoada por categorias multitudinrias, move-se em
um solo unvoco de sentido: o questionamento aberto e radical das estruturas ocidentais
modernas de pensamento. Se, como quisera Giorgio Agamben (2008 : 111), toda
cultura uma experincia do tempo, e uma nova cultura no possvel sem uma
transformao desta experincia, atravs das potncias revolucionrias da recusa que
as relaes duracionais e polticas impostas pelo trabalho, pelo espetculo e pela
especulao podem ser transformadas. Grande linha de fuga no imenso quadro
dissolvido do Sein und Sollen (Ser e Dever-Ser), a utopia no assinala o lugar do sonho
ou do possvel, sem relao com o real; antes, define os mltiplos campos diferenciais
em que o por vir como uma memria que nunca foi presente, na feliz expresso de
David Lapoujade irrompe na atualidade sob o signo ingovernvel do intempestivo.
A dialtica , sobretudo, um modo de se relacionar com a temporalidade e com
os eventos que nela se produzem. No possvel descentrar essa lgica na direo da
imanncia, da singularidade e da diferena penetradas de multiplicidades seno por
meio de um gesto negativo inaugural que recusa os efeitos metafsicos unificadores e
totalizantes da Aufhebung hegeliana. Henri Bergson, e mais tarde Gilles Deleuze,
criticaram a dialtica por no enxergarem nela mais do que um falso movimento
(Deleuze 1966 : 44; Hardt 1996 : 39 ). contra as pretenses de concretude
pressupostas por este falso movimento que uma Filosofia Radical se erige, em funo
dos movimentos reais e de sua pluralidade desconcertante de
racionalidades/irracionalidades. Ocupaes, manifestaes, aes diretas, greves gerais,
desobedincia civil e toda forma encarnada de recusa do sequestro das potncias
constituem o corpo teso, mas jamais o fundo, capaz de abrigar multides e efetuar a
lgica do acontecimento que uma Filosofia Radical deve produzir como antidialtica.
da emergncia das aes de contestao e das contracondutas que se deduz
que uma Filosofia Radical s pode viver na dimenso da utopia (Matos 2014 : 64).
Entretanto, jamais poderemos compreend-la, a contrapelo de seu significado
etimolgico, como o lugar to obscuro quanto para sempre aberto, penetrado de perigos
e de promessas, sem operar reverses na prpria ontologia; preciso pensar a negao
com a mesma dignidade ontolgica reservada afirmao (Matos 2014 : 69),
deslocando o referencial aristotlico da concepo de potncia. Ponto luminoso em que
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a potncia de no, de Agamben, encontra um Marx antidialtico e um Debord ontlogo,
assume e rasura as iluses do tempo-de-agora, rejeita as razes da crise e suas
medidas opressoras travestidas pela necessidade, exerce uma funo contraideolgica e,
a um s tempo, capaz de gerar anticampos: esses lugares fsicos e reais que renem
os no-lugares da impossibilidade, os excessos de sentido que convocam a outros
mundos monstruosos e possveis suturados pelos modos de vida para a servido e o
capital. O anticampo uma geografia da revolta traada em oposio ao capital, mas
tambm voltada contra as armadilhas do marxismo progressista, incapaz de pensar a
revoluo exceto sob o tecido cerrado das teleologias histrico-dialticas unificao
conservadora superior que a Filosofia Radical rejeita por princpio.
no seio dos anticampos que se avaliam os potenciais de transformao das
novas formas de imaginao social e poltica para alm do Estado e dos modos de vida
para o trabalho, o espetculo, a especulao. O endividado, o midiatizado, o
securitizado e o representado encarnam as formaes subjetivas efeitos da reproduo
em bloco dos referenciais polticos, sociais, econmicos e ideolgicos operados pela
nova temporalidade que o espetculo implicaria, segundo a chave ontolgico-poltica
segundo a qual Andityas rel as principais teses de Debord.
O que nos impede de compreender adequadamente as iluses que emanam dos
centros difusos de poder? Nada como um puro efeito ideolgico, nem uma falsa
conscincia geral, mas os efeitos polticos de uma ontologia curto-circuitados com os
efeitos nticos de uma poltica; isto , o fato de nos encontrarmos presos ao circuito
que unifica repartio social, trabalho e violncia (Matos 2014 : 122), na medida em
que permanecemos expostos temporalidade do espetculo contnuo, permanente e
irreflexivo. No se trata de um tempo circular ou linear, mas progressivo, sem incio ou
fim, cujo desenrolar permanece integralmente condicionado pelo poder do capital, que
dispe de uma infinita capacidade de reconfigurar e modular o passado e fechar
qualquer possibilidade de tempo futuro em um presente de repetio nua: resta apenas
um tempo presente amorfo e artificialmente estendido diante de si mesmo [...] (Matos
2014 : 152).
Eis o que explica por que as novas dinmicas das manifestaes e protestos
populares foram capazes de abrir anticampos em espaos e por duraes limitadas, mas
os eventos foram logo reconfigurados e desacreditados pelas massmedia. Sob esse
aspecto, uma das teses encriptadas em Filosofia Radical e Utopia poderia ser
enunciada diretamente: Toda metafsica uma poltica. O que a temporalidade do
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espetculo d a ver que as capacidades de sequestrar, modular e controlar a
temporalidade dos eventos surgem como instrumentos definidores de um tempo-de-
agora contra o qual resistir, pensar e lutar. Todavia, no possvel resistir ou lutar de
modo eficaz sem pens-lo nem coagido por sua lgica insidiosa.
O que a Filosofia Radical recusa, em cada um de seus aspectos, a lgica
intrassistmica. Nesse sentido, ela se aproxima de um pensamento do Fora absoluto,
segundo o qual mesmo os direitos humanos e fundamentais garantidos em documentos
formais serviriam mais mistificao, enodada a um processo irrepetvel de afirmao
poltico-econmica burguesa, que liberao de contingentes oprimidos pelas mltiplas
formas de violncia sistmica. No se poderia fazer uma revoluo anticapitalista nos
moldes das revolues burguesas. Seria preciso inventar um anticampo como
singularidade absolutamente nova, produzir em comum o verdadeiro estado de
exceo, a que Benjamin aludia em suas Teses sobre o conceito de histria.
Porm, o que podemos encontrar do outro lado? Em que consiste o lugar da
utopia que o tempo presente marca com o signo ilusrio do impossvel e que maio de
68 j havia desafiado com seu Soyez ralistes! Demandez l'impossible!? A
possibilidade de constituio de uma comunidade humanas sem divises entre
oprimidos e opressores. Uma nova configurao para o princpio de imanncia do poder
no corpo social, que Clastres havia descoberto nas sociedades primitivas, cuja nica lei
constitui a prpria ontologia do ser social selvagem: no cair de amores pelo poder, nem
se tornar presa de seus apelos. Assim como entre os ndios, cuja antropologia poltica
antimoderna Clastres soube compreender com precedncia, e que Deleuze e Guattari
estenderiam pouco tempo depois, uma pulso igualitria e anrquica percorre a
totalidade do corpo social de uma comunidade que vem.
No entanto, torna-se impossvel estimar o plural de que esse devir feito sem
conjurar os referenciais estatalistas que interditam a poltica e as vias ativas e passivas
de uma violncia criadora. Eis o que Clastres havia percebido: muito antes de
incorporar-se aos aparelhos militares de Estado, a mquina de guerra primitiva voltava-
se contra a prpria formao do Estado, cuja emergncia poltica assinalava
virtualmente o aparecimento contnuo apenas no imaginrio etnolgico impreciso da
modernidade ocidental das sociedades divididas entre governantes e governados,
opressores e oprimidos. Disso, derivam duas distenses capitais: (1) ao contrrio do que
afirmaram Marx e Engels, a dominao econmica no precede a dominao poltica
nenhum homem seria obrigado a trabalhar mais do que o necessrio para bem viver
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seno por um efeito de poder e de sujeio o que implica que o Estado no um efeito
da dominao econmica, mas que a dominao econmica e o prprio advento do
Estado so efeitos da gnese da hierarquia; (2) o monoplio estatal da violncia,
celebrado como marco inaugural das civilizaes ocidentais modernas, no apenas um
instrumento de conservao da ordem jurdico-poltica. Seu advento assinala o mau
encontro absoluto, o instante em que o poder abandona a imanncia do corpo social e
constitui um poder separado e uma sociedade dividida. A violncia e o poder que
transcendem o corpo social constituem a origem da diviso entre senhores e escravos.
Se os modernos idealizaram o Estado como o agente monopolista de uma
violncia sagrada subtrada ao uso comum dos homens, segundo uma inventiva
definio de Agamben , uma Filosofia Radical assume a tarefa contramoderna de
dessacralizar a violncia e inventar para ela um uso comum, inaproprivel e novo.
Assim como a poltica j no pode ser confinada ao Estado, tampouco as violncias
poderiam s-lo.
No se trata de fazer da violncia a dimenso privilegiada da poltica, nem de
descurar do Direito e da lei, mas de perceber, como Andityas registra, que o direito no
est na lei, mas em alguma dimenso que a antecede e a suspende []. O segredo do
nmos passa pela violncia que os juristas contemporneos cinicamente tentam
esconder sob as formas e os ritos de uma racionalidade comunicativa j esgotada
(Matos 2014 : 261).
Descrever que a condio contempornea de exerccio de poder consiste em um
estado de exceo como paradigma de governo significa precisamente que a fora da
lei denodou-se de sua forma; que esta fora informe produz efeitos normativos puros. A
outra lei funda-se na imanncia radical do poder ao corpo social, na pulso igualitria
utpica e na intempestiva guerra declarada contra as divises que interdita, por meio de
um gesto unvoco, o desejo de poder e a servido voluntria. Limiar em que Clastres
encontra Agamben; em que a lei da selva lanada no ecmeno e no por vir que os
limiares de positividade de uma potncia de no descerra: A marca sobre o corpo,
igual sobre todos os corpos, enuncia: 'Tu no ters o desejo de poder, nem desejars ser
submisso'. Elogio da imanncia intempestiva do desejo: nica lei do mundo.
Murilo Duarte Costa Corra doutor (USP) e mestre (UFSC) em filosofia e teoria
geral do direito. Professor de filosofia poltica de Direito da UEPG. Autor de Direito e ruptura: ensaios para uma filosofia do direito na imanncia (Juru, 2013) e de Filosofia Black Bloc, no prelo.
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