UFSC – UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
RICARDO AUGUSTO ROCHA
Corpo, mímesis e imaginação: o clown como possibilidade de
trabalho pedagógico no âmbito da Educação Infantil
Florianópolis, SC
2014
RICARDO AUGUSTO ROCHA
Corpo, mímesis e imaginação: o clown como possibilidade de
trabalho pedagógico no âmbito da Educação Infantil
Trabalho de Conclusão de Curso submetido ao Curso de
Especialização em Docência na Educação Infantil – CEDEI
2014 da Universidade Federal de Santa Catarina, em parceria
com o CED – Centro de Ciências da Educação e com o NDI
– Núcleo de Desenvolvimento Infantil para obtenção do Grau
de Especialista em Educação Infantil. Orientador: Prof. Dr.
Jaison José Bassani
Florianópolis, SC
2014
RICARDO AUGUSTO ROCHA
Corpo, mímesis e imaginação: o clown como possibilidade de
trabalho pedagógico no âmbito da Educação Infantil
Este Trabalho de Conclusão de Curso foi julgado adequado para a obtenção do Título de
Especialista em Educação Infantil, e aprovado em sua forma final pelo ao Curso de
Especialização em Docência na Educação Infantil – CEDEI 2014 da Universidade Federal de
Santa Catarina, em parceria com o CED – Centro de Ciências da Educação e com o NDI –
Núcleo de Desenvolvimento Infantil.
Florianópolis, ____ de _____________________ de __________.
______________________________________
Prof. Dra. Soraya Franzoni Conde
Coordenadora do CEDEI 2014
Banca examinadora:
______________________________________
Profª. Drª. Ana Cristina Richter
PPGE – Universidade Federal de Santa Catarina
______________________________________
Prof. Msc. Filipe Ferreira Ghidetti
PPGE – Universidade Federal de Santa Catarina
______________________________________
Prof. Dr. Jaison José Bassani – Orientador
PPGE – Universidade Federal de Santa Catarina
______________________________________
Profª. Msc. Adriana Maria Pereira Wendhausen (suplente)
SME – Prefeitura Municipal de Florianópolis
Dedico este trabalho a João Batista Alves Rocha (in memorian).
AGRADECIMENTOS
Aos colegas da árdua profissão que, nas unidades educativas de Educação Infantil em
que atuo e atuei, disponibilizaram seu tempo e boa vontade para que se tornasse possível este
trabalho. Desde as auxiliares de sala, que diretamente contribuíram para a caminhada,
passando pelas Direções, Supervisões e chegando às cozinheiras e auxiliares de serviços
gerais.
À Trupe da Alegria, no nome do Prof. Ms. Diego de Medeiros, grupo de teatro em
Educação Infantil que atua na Rede Municipal de Florianópolis em que me reencontrei com as
Artes Cênicas na Educação.
Aos amados palhaços da Traço, do LUME e do Barracão Teatro que, nos palcos ou
nos livros, embelezaram o caminho desta pesquisa: Paula Bittencourt da Silva (Malagueta),
Egon Seidler (Jubi), Debora Matos (Romana), Taís Dassoler (Super Pop), Elenice
Nascimento, Oberdan Piantino, Janine Schmitz (Fada Punk), Isabella Spigolon, Esio
Magalhães (Zabobrim), Ricardo Pucceti (Teotonio) e tantos outros!
Aos fiéis escudeiros, amigos, parceiros, irmãos por escolha, sempre ao lado, lendo,
acompanhando, sugerindo, caminhando junto e inspirando o sentido da existência: Renato
Cabral Rezende, Rogério Ferreira Antunes, Otávio Moser Prado, Leonardo Costa Pereira,
Eduardo Maia, Wellington Avelino Amaral, André Kazuo, Estevon Nagumo, Ricardo Perez
Pombal, Rodrigo Tonin Mantovani, Peterson Rigato.
A Celso Dellia, que dispensa apresentações simplesmente por ocupar o sagrado.
Aos colegas e mestres do OLHO – Laboratório de Estudos Áudio-Visuais, da
UNICAMP, grupo onde esbocei minhas primeiras experimentações de pesquisa acadêmica
pela via da Estética e da Cultura, e que certamente estão impregnados na pele deste que hoje
se pretende um pouco palhaço: Prof. Dr. Carlos Eduardo de Albuquerque Miranda (meu
primeiro e eterno orientador, como a voz do grilo falante!), Fernando Catani, Nádia
Massagardi, Beatriz Sampaio, André Baptistella, Prof. Dr. Gabriela Rigotti, Prof. Dr. Gabriela
Copolla e Prof. Dr. Milton José de Almeida (in memorian).
Aos mestres do curso de graduação em Pedagogia da UNICAMP, notadamente
aqueles que me sensibilizaram em relação à problemática da Educação, da Estética e do
Corpo.
Aos guerreiros da cultura do distrito de Barão Geraldo, em especial ao companheiro e
produtor cultural Álvaro Tucunduva (o Tucun!), a quem muito devo o apreço pelas
manifestações culturais, e em quem, apesar de a ele não fazer referência no texto acadêmico,
muito identifico elementos da palhaçaria!
A Jaison José Bassani, professor doutor orientador deste trabalho, com quem, num
processo desafiador, prazeroso e profundamente formativo, teci os encontros e desencontros
da Pedagogia e do Riso. E aos demais professores e colegas do CEDEI 2012/2014.
À Dona Iracema da Silva Rocha, ‘cigana’, mística, forte, com quem tive minhas
primeiras experiências no mundo mágico que escancara as mazelas da racionalidade
extremada, ao lado de Antonio Martinez Rocha (o Tostinez!), Carlos Eduardo Rocha (o
Musula!) e Julio Cesar Rocha (o Catatau!).
À Dona Rosalina Lúcia Gomes (a Dona Rosa!), a quem devo grande parte da paixão
pela ancestralidade.
A Eliete de Assis Schmitt, Valdir Carlos Schmitt e Thiago Schmitt (o Casinha do
TEM!), que me acolheram em sua morada justamente nos meses de elaboração dessa escrita.
E à palhaça mais palhaça, amada e bela de todas... A Xuxu!
“Ocidental
A missa
A miss
O míssil”
José Paulo Paes
RESUMO
Neste trabalho buscamos problematizar as possibilidades de inserção
do tipo cômico clown na perspectiva de um fazer pedagógico com
crianças de uma creche da Educação Infantil do município de
Florianópolis que questione a perspectiva instrumental e utilitária de
suas experiências e expressões corporais. Para tanto, recorremos a
referenciais frankfurtianos e da teoria histórico-cultural, além de
outros concernentes ao campo das Artes Cênicas e da educação do
corpo, construindo e analisando, a partir de categorias de análises que
emergem do próprio trabalho, uma série de episódios planejados
sempre em torno do universo das palhaçarias.
Palavras-chave: clown, Educação Infantil, mímesis, imaginação.
ABSTRACT
In this work we discuss the possibilities of entering the comic clown
type in the practices with children in a daycare from Kindergarten in
Florianópolis that questions the instrumental and utilitarian
perspective of their experiences and bodily expressions. For that, we
turn to the Frankfurt benchmarks and cultural-historical theory, and
other pertaining to the field of Performing Arts and the education of
the body, building and analyzing, from analytical categories that
emerge from the work itself, a series of planned episodes always
around the universe of clowns.
Keywords: clown, early childhood education, mimesis, imagination.
Sumário
1. INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 19
1.1. Apresentação............................................................................................................................ 19
1.2. Da gênese do desejo e da relação com a palhaçaria ................................................................ 20
1.3. 1º Cenário: Campinas ............................................................................................................... 21
1.4. 2º Cenário: Florianópolis .......................................................................................................... 24
1.5. 3º Cenário: organização do trabalho pedagógico na Educação Infantil da RMF e a possibilidade de fundamentação conceitual a partir do conceito de mímesis ........................ 26
2. CAPÍTULO I – MÍMESIS, IMAGINAÇÃO, CORPO E EDUCAÇÃO INFANTIL ............................. 30
3. CAPÍTULO II – EIS O PALHAÇO! ........................................................................................ 41
3.1. O palhaço e a mímesis .............................................................................................................. 41
3.2. Sobre o tornar-se professor-palhaço... .................................................................................... 42
4. CAPÍTULO III – SOBRE O PLANEJAMENTO DAS PALHAÇARIAS ........................................... 49
4.1. Episódio I – O que é o palhaço? E o que é do palhaço? ........................................................... 53
4.2. Episódio II – Esquete ................................................................................................................ 55
4.3. Episódio III – E agora? Como é o meu palhaço? ....................................................................... 57
4.4. Episódio IV – Experimentando encontros e estados ................................................................ 58
4.5. Episódio V – O encontro com a menor máscara do mundo: o nariz vermelho ....................... 59
4.6. Episódios VI – Vivendo como palhaço ...................................................................................... 61
4.7. Episódio VII – Criança-palhaço e o jogo cênico ........................................................................ 62
4.8. As palhaçarias e o magistério: o que se sucedeu, risos e angústias ........................................ 63
5. CAPÍTULO IV – ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS EPISÓDIOS ..................................................... 66
5.1. O planejado, o vivido e das especificidades das apropriações por crianças e adultos do universo da palhaçaria ............................................................................................................. 67
5.2. Professor-palhaço, ora mais professor, ora mais palhaço, e das manifestações transgressoras das crianças-palhaças ............................................................................................................... 78
6. FECHAM-SE AS CORTINAS... ............................................................................................ 90
REFERÊNCIAS ......................................................................................................................................... 95
Corpo, mímesis e imaginação: o clown como possibilidade de trabalho pedagógico no âmbito da Educação Infantil 19
1. INTRODUÇÃO
1.1. Apresentação
A presente pesquisa objetivou analisar as potencialidades formativas do trabalho com
o clown na Educação Infantil, considerando a relação entre corpo, mímesis e imaginação
como possibilidade de uma educação estética. Nesse sentido, planejamos, desenvolvemos e
analisamos uma experiência pedagógica com um grupo de 18 crianças de 4 e 5 anos de idade,
integrante de uma creche da Rede Municipal de Florianópolis, localizada em bairro urbano
próximo a região central da cidade. A partir de registros escritos, fotográficos, fílmicos e em
áudio dessa intervenção, os dados produzidos foram analisados qualitativamente por meio de
categorias de análise constituídas a partir do cruzamento entre o objetivo da investigação, o
referencial teórico e as expressões próprias das intervenções com as crianças.
São quatro os pressupostos teórico-metodológicos que estão na origem desta pesquisa:
1º) que o corpo é objeto de intervenção em todos os tempos e espaços que compõem rotina
pedagógica de instituições de Educação Infantil (RICHTER; VAZ, 2005); 2º) que a
multivocalidade do corpo e suas expressões exigem uma abordagem interdisciplinar, de modo
que o trabalho educacional com as “coisas do corpo” não deveria ficar restrito a uma área de
saber, a Educação Física, como geralmente ocorre nas instituições que atendem crianças de 0
a 6 anos de idade; 3º) que uma formação humana que prescinda de adjetivação deve estar
comprometida com a desbarbarização da educação (ADORNO, 1995) e, por meio da auto-
reflexão crítica, revele nos “gestos de aproximação corporal e estética, outras possibilidades
de ação, de comunicação consigo, com o mundo, com o outro” (RICHTER; VAZ, 2005, p.
92); 4ª) que a pesquisa-ação, que inspira metodologicamente esta investigação, é uma
alternativa possível para analisar e avaliar práticas docentes, tanto no sentido da produção do
conhecimento quanto da formação e autoformação.
O texto que segue está organizado da seguinte forma: na continuidade desta
introdução, delineio minha trajetória de formação acadêmica e “cultural”, bem como minha
inserção profissional como professor de crianças pequenas, buscando apresentar meu encontro
com o tema do clown/palhaço e a gênese do desejo de trabalhar com palhaçarias no âmbito da
Educação Infantil. Na sequência, no primeiro capítulo, busco construir, ainda que de forma
incipiente e algo tateante, pelo menos para este momento, uma fundamentação conceitual, a
partir de Walter Benjamin (conceito de mímesis) e de Lev Semenovich Vigotski (conceito de
imaginação), para o trabalho pedagógico com o palhaço na Educação Infantil. Os dois
capítulos seguintes são destinados à descrição do planejamento da intervenção, em que
20 CEDEI 2014 – UFSC – Ricardo Augusto Rocha
buscou-se abordar o palhaço no âmbito de uma fundamentação teórica e de uma experiência
pedagógica na Educação Infantil na perspectiva da superação de sentidos e significados
associados à dimensão recreativa frequentemente atribuída a esta figura, e à análise dos dados
produzidos por meio de registros escritos, fotográficos, fílmicos e em áudio decorrentes da
intervenção com as crianças, que, para fins de apresentação e discussão, estão organizados em
duas categorias articuladoras, a saber: O planejado, o vivido e das especificidades das
apropriações por crianças e adultos do universo da palhaçaria; e Professor-palhaço, ora
mais professor, ora mais palhaço, e das manifestações transgressoras das crianças-palhaças.
Por fim, a título de fechamento – embora não de encerramento das perguntas que ganham
uma forma aqui neste trabalho – elaboramos algumas reflexões sobre a dimensão formativa e
política desta pesquisa-ação.
1.2. Da gênese do desejo e da relação com a palhaçaria
“ – Pa-lha-ço! Pa-lha-ço! Pa-lha-ço!..”
Foi a expressão cantarolada, cada sílaba acompanhada de uma palma, que ouvi das
crianças do Grupo IV A, então denominado Grupo Naja, de um Núcleo de Educação Infantil
da rede pública municipal de Florianópolis, ao me levantar do tapete naquela manhã de 2013
que marcou minha memória de professor1. Alguém havia aberto a porta da sala enquanto
conversávamos na roda. Aos sermos interrompidos, levantei-me e caminhei em direção à
porta, aborrecido. Mas... Ao invés de simplesmente exteriorizar aquele estado de espírito,
num movimento interno, em que minha racionalidade, intencionalidade e um impulso para
transformar aquilo em brincadeira agiram amalgamados, lá estava meu corpo, tropeçando em
objetos que encontrava pelo caminho, experimentando estados internos, atrapalhado,
assustado, fisionomia de raiva e constrangimento, suspiros, até chegar à porta e... Ufa!
Finalmente conseguir fechá-la! Como que numa esquete ensaiada, mas num jogo que tirou
daquele momento o insumo para a bobagem, o barulho da porta se cerrando ao estalar do
trinco da fechadura foi a centelha na pólvora para que o riso instalado nas crianças se
transformasse no coro que inicia o relato.
Não havia figurino, maquiagem ou ambientação cênica estruturada que pudesse levar
o imaginário das crianças a esperar por alguma intervenção do gênero. Vestia uma ‘roupa
convencional de professor’ ou, para não cairmos em estereótipos, uma roupa do dia-a-dia, de
1 Professor Efetivo de Educação Infantil da Rede Municipal de Florianópolis, Santa
Catarina.
Corpo, mímesis e imaginação: o clown como possibilidade de trabalho pedagógico no âmbito da Educação Infantil 21
trabalho: camisa de malha, calça jeans, tênis, meia. A reflexão sobre o ocorrido,
principalmente pelo fato de o momento ter sido imprevisto, remeteu-me mais uma vez – há
algum tempo já que vinha alimentando o desejo de pensar este tema – à problemática da
figura do clown/palhaço2 na Educação Infantil. O que levou as crianças a entoarem a saudação
ao palhaço? Sim, a brincadeira com elementos clownescos (tropeços, gestos, caretas, olhares,
sons, pausas etc.) foi intencional, apesar de não ter sido prevista no planejamento. Mas...
Como elas reconheceram ou significaram esses elementos? Destarte, foram esses os
questionamentos, os quais, talvez inevitavelmente, trouxeram à baila reflexões sobre a
questão da educação do corpo e da expressão desses elementos de palhaçaria3 que levaram as
crianças ao riso e à celebração.
Se as indagações sobre a presença do palhaço na Educação Infantil povoam minhas
inquietações no fazer pedagógico já há algum tempo, e se situações como a relatada acima
ocorrem não sem intencionalidade formativa, a ponto de isso tudo convergir em um projeto de
pesquisa acadêmica no âmbito da Especialização em Docência na Educação Infantil
(NDI/CED/UFSC), faz-se necessário aqui uma contextualização da minha relação com o
teatro, com as Artes Cênicas e mais especificamente com a figura do palhaço.
1.3. 1º Cenário: Campinas
Esta paixão, digamos assim, remonta ao período de graduação em Pedagogia, na
Universidade (UNICAMP) e na cidade de Campinas, interior de São Paulo. Na verdade, é
provável que haja elementos de meu histórico de vida que afetem essas relações sem que eu
tenha clareza. Mas... Como trata-se aqui de trabalho científico, e devido à necessidade de
certa objetivação e contextualização de informações, atenhamo-nos àquilo que é possível
vasculhar neste baú e que contribui para a revelação deste quadro. Foi durante a graduação,
entre 2001 e 2005, que tive sistemática aproximação com o circuito cultural de Campinas,
notadamente do distrito de Barão Geraldo. O distrito, considerado efervescente artisticamente
por muitos estudantes e moradores de Campinas, contava àquela época com inúmeros espaços
culturais, mantidos, em alguns poucos casos, por moradores do bairro e, na maior parte deles,
por estudantes, pesquisadores ou ex-estudantes de Artes Cênicas, Música, Educação Física e
2 Durante este trabalho, os termos clown e palhaço aparecerão com frequência, haja
vista a temática de que trata a pesquisa. Mais à frente, quando apresentarmos
sistematicamente nossas fundamentações teóricas, elucidaremos quais são as
matizes a partir das quais enxergamos o entendimento deste tipo cômico. Por hora
importa apenas sabermos sobre a presença constante dos termos no texto. 3 Faremos referência constantemente às palhaçarias ao abordarmos o conjunto de
elementos e práticas que constituem o universo e o ser palhaço, considerando o
mesmo percurso histórico indicado por Matos (2009, p. 40).
22 CEDEI 2014 – UFSC – Ricardo Augusto Rocha
outros cursos da Universidade Estadual de Campinas. Dentre os espaços que costumava
frequentar, podemos citar: Espaço Cultural Semente, Barracão Teatro, Companhia Sarau,
Casarão de Barão, Boa Companhia Teatro e LUME4, espaço que é mantido por pesquisadores
das Artes Cênicas tido como referência na área, e que é objeto de pesquisa de um dos
trabalhos referenciados (KASPER, 2004) nesta monografia. Para além desses, há também
outros espaços culturais na cidade, como o SESC Campinas, Centro de Convivência, Cine
Paradiso, Cine Jaraguá e os espaços da própria universidade estadual em que se apresentavam
peças de formandos em Artes Cênicas. Meus encontros de espectador com os palhaços que
estavam no palco aconteciam normalmente no Barracão Teatro, com os palhaços de Esio
Magalhães5, no LUME, com palhaços de Ricardo Pucetti
6 e outros integrantes do grupo, e no
4 O LUME Teatro (Prêmio Shell 2012) é um coletivo de pesquisa formado por sete
atores-criadores e possui repertório diversificado que inclui teatro físico/visual,
montagens em grupo, solos, clown, espetáculos de grandes dimensões ao ar livre e
com a participação da comunidade. Toda essa extensa variedade de trabalho mantém
sua coesão através do marcante e rigoroso método de treinamento
desenvolvido pelos atores. O grupo estreou em 2012 “Os Bem-Intencionados”, o
mais recente dos 14 espetáculos atualmente em repertório. O LUME conta com o
apoio institucional da Unicamp – Universidade Estadual de Campinas, com a qual é
vinculado desde sua fundação em 1985. Ao longo de quase 30 anos, tornou-se
conhecido em mais de 26 países, tendo atravessado quatro continentes,
desenvolvendo parcerias especiais com mestres da cena artística mundial. Com sede
em Barão Geraldo, Distrito de Campinas (SP), o grupo difunde sua arte e
metodologia por meio de oficinas, demonstrações técnicas, intercâmbios de trabalho,
trocas culturais, assessorias, reflexões teóricas e projetos itinerantes, que celebram o
teatro como a arte do encontro. Disponível em
https://www.facebook.com/lume.teatro/info?ref=page_internal. Acesso em 30 de
agosto de 2014. 5 Esio Magalhães começa sua formação em Belo Horizonte no Teatro Universitário da
UFMG. Em 1996, forma-se na Escola de Arte Dramática EAD/ECA/USP. Fez
cursos de: Clown, Dança Moderna , Mímica, Dramaturgia Específica para Teatro de
Rua, Teatro de Rua e Técnicas Circenses. Fez curso de Teatro Popular com Antônio
Nóbrega, Máscara e Commedia dell’Arte com Tiche Vianna. Foi integrante do
grupo de atores dos Doutores da Alegria, organização que leva a arte do palhaço
para Hospitais. É ator, produtor e coordenador financeiro do Barracão Teatro –
espaço de investigação e criação teatral, que fundou ao lado de Tiche Vianna, em
1998. Tem apresentado os espetáculos do repertório do Barracão Teatro: “O Pintor”,
“Circo do Só eu!!!”, “WWW para Freedom”, “Freguesia da Fênix”, “A Julieta e o
Romeu”, com o qual concorreu ao Prêmio SHELL 2007, na categoria de Melhor
Ator e “Encruzilhados entre a barbárie e o sonho” com o qual concorreu ao Prêmio
SHELL 2008, na categoria de Melhor Ator. Ministra cursos de formação nas
linguagens de máscara, palhaço e teatro de rua. Disponível em
<http://www.barracaoteatro.com.br/index.php?option=com_content&view=article&i
d=77:esio-magalhaes&catid=43:artistas&Itemid=71>. Acesso em 30 de agosto de
2014. 6 Ricardo Puccetti é ator, palhaço, pesquisador, orientador de atores e diretor nascido
em Espírito Santo do Pinhal, interior de São Paulo. Entrou para o Lume em 1988,
ajudando a constituir o grupo enquanto núcleo de pesquisa ao lado de Luís Otávio
Burnier e Carlos Simioni. Traduziu para o português, em parceria com Burnier e
Simioni, os livros “Além das Ilhas Flutuantes” e “A Arte Secreta do Ator”, ambos
de Eugenio Barba. É coordenador artístico do Lume, membro do Conselho Editorial
da Revista do LUME e do Conselho Científico do grupo. Referência internacional
na arte do palhaço, responde pela sistematização da pesquisa do Lume na utilização
cômica do corpo, desenvolvendo uma metodologia própria de trabalho. Também faz
orientação contínua de palhaços e ministra workshops dessa arte em diversas partes
do Brasil e do Exterior. Junto de Simioni, foi responsável pela iniciação e supervisão
do trabalho de mais de 120 palhaços, e orienta a pesquisa e o trabalho técnico dos
Corpo, mímesis e imaginação: o clown como possibilidade de trabalho pedagógico no âmbito da Educação Infantil 23
Espaço Cultural Semente, com palhaços diversos. Brincando com as palavras e com a
história, talvez tenha sido ali plantada a Semente deste trabalho!
Na mesma época (em 2003), eu e o grande amigo Ricardo Perez Pombal, hoje também
pedagogo e escritor de literatura infantil, nos conhecemos no curso de Pedagogia. Ricardo já
trazia uma bagagem de alguém a quem a poesia e os espaços culturais, inclusive os chamados
“alternativos” que constituem o circuito cultural de Barão Geraldo mencionado acima, não
eram estranhos. Essa minha ligação com a poesia e com a Arte deve-se muito a esta amizade
também, e seria injusto não citar isso aqui. Até porque as minhas primeiras explorações de
elementos clownescos se deram justamente durante o curso de Pedagogia na companhia do
hoje escritor. Com o intuito inicial de “rompermos com a mesmice das aulas e com a rotina”,
bolávamos, nos intervalos das aulas, intervenções cênicas ou esquetes que eram apresentadas
durante as aulas, muitas vezes sem o consentimento de professores (nossos ou de outros
cursos). Fazíamos isso de forma amadora, eu principalmente sem muito entendimento teórico
do que ali ocorria, mas um “entendimento” muito mais visceral. Formávamos uma dupla a
que demos o nome de “Polenta Frita” e, ao menos uma vez por semestre, idealizávamos e
estruturávamos alguma intervenção. Foi ele, Ricardo, que me levou pela primeira vez ao
Espaço Cultural Semente. E foi lá que, certa feita, numa deixa do palhaço Augusto7 que fazia
os intervalos entre um e outro número, nos entreolhamos, tomamos o palco, subimos nas duas
únicas cadeiras do cenário, abrimos os braços e entoamos versos do poeta Mário Quintana
(1978):
Todos estes que aí estão
Atravancando meu caminho
Eles, passarão...
Eu, passarinho!
demais integrantes do grupo. Entre 1988 e 1995, orientado por Burnier, desenvolveu
pesquisas nas áreas da “Antropologia Teatral e Cultura Brasileira”, elaborando
técnicas corpóreas e vocais de representação e técnicas de palhaço; e da “Dança
Pessoal”, na busca de uma técnica corpórea e vocal pessoal de representação.
Atualmente, desenvolve pesquisas nos campos da “Arte do Palhaço”; da
“Teatralização de Espaços Não-Convencionais” (cujo foco principal é a pesquisa
sobre as especificidades do ator na rua e em espaços abertos); do “Treinamento
Técnico e Energético do Ator”; e da “Construção da Cena a partir da Dança do
Ator”. Disponível em <http://www.teatropedia.com/wiki/Ricardo_Puccetti>. Acesso
em 30 de agosto de 2014. 7 “De acordo com Gilberto Icle, certamente uma figura desse gênero popular (que foi
a commedia dell’arte) se desenvolveria no palhaço moderno: o zanni (o servo). Da
dupla de servos o palhaço herda os confrontos de dois tipos contrastantes. O
palhaço branco simboliza o dominador, a elegância, a moral, a astúcia. O palhaço
augusto representa o dominado, o estúpido, o desajustado, aquele que embora
sucumba ao encanto da perfeição [do palhaço branco] frequentemente a ela se
rebela. Assim, o palhaço branco em contraposição ao palhaço augusto representam
juntos “microestruturalmente as relações de toda a sociedade contemporânea.””
(ICLE, 2006, p. 14- 15, apud. MATOS, 2009, p. 32).
24 CEDEI 2014 – UFSC – Ricardo Augusto Rocha
E sumimos, voando a partir das cadeiras com as asas abertas, por de trás das cortinas...
A partir desta época e destas experiências, a convivência com o teatro e palhaços
passou a ser algo presente em minha vida, seja na condição de espectador assíduo, seja nas
relações de amizades e rodas de conversa com colegas.
1.4. 2º Cenário: Florianópolis
Em Florianópolis, morando desde maio de 2009, inicio os trabalhos como professor de
Educação Infantil na Rede Municipal em 10 de fevereiro de 2011, após aprovação em
concurso e efetivação como servidor público. Desde lá, o trânsito por espaços culturais, agora
na capital catarinense, não deixou de fazer parte de minhas escolhas para o tempo livre, dentre
eles: SESC Centro, Sol da Terra, Teatro Álvaro de Carvalho, Teatro da UBRO, Teatro da
UFSC, CIC – Centro Integrado de Cultura, Teatro Pedro Ivo, Casa das Máquinas e mais
recentemente o Circo da Dona Bilica, além de festivais com apresentações em outros locais e
mesmo em espaços abertos, na rua.
Assim como acontecera em relação ao período em que vivi em Campinas, essa
dimensão que, grosso modo, poderíamos denominar de “formação cultural” – para além
daquela estritamente profissional –, atravessou meu modo de pensar e atuar como professor.
Mesmo antes da sistematização desta pesquisa, mas já com o intuito, na condição de professor
de Educação Infantil, de incrementar minha formação corporal e entender mais sobre o clown
e teatro para o trabalho com as crianças, ansiava por participar de algum processo formativo
com profissionais de Artes Cênicas, palhaços, aberto àquilo que o cosmo ofertasse a mim
nesta busca.
Em 2011, quando ainda era professor no Núcleo de Educação Infantil mencionado no
relato inicial, soube, por uma colega professora da mesma unidade, de um processo seletivo
para a ‘Trupe da Alegria’. O grupo, coordenado pelo ator, diretor, dançarino e Prof. Ms.
Diego Di Medeiros, reúne pouco mais de vinte profissionais da Educação Infantil da Rede
Municipal de Florianópolis em torno de um projeto de formação teatral para atuação nas
unidades educativas. O trabalho envolve estudos práticos e teóricos sobre o binômio Teatro e
Educação Infantil, bem como a proposição de brincadeiras, atividades e principalmente
processos de dramatização desenvolvidos com as crianças.
Na Trupe, conheci Veronica Bergero, professora de Educação Física da Rede
Municipal de Educação Infantil de Florianópolis. E foi então que, em abril de 2012, ao assistir
Corpo, mímesis e imaginação: o clown como possibilidade de trabalho pedagógico no âmbito da Educação Infantil 25
o espetáculo Noite de Palhaços na Casa das Máquinas8, conheci, por intermédio de Veronica,
a atriz Paula Bittencourt Faria, ou melhor, a palhaça Malagueta, que se apresentou naquela
noite e integra a Companhia Traço Cia de Teatro9. Soube também de uma oficina de clown
que seria realizada dali a poucos dias pela Companhia. Contatos e datas anotados, aguardei
com bastante expectativa o início dos encontros. Além da edição de 2012, também participei
da edição de 2014 da oficina oferecida pela Companhia Traço Cia de Teatro. O conteúdo e
um pouco da dinâmica da formação de palhaços a partir dessas oficinas serão detalhados mais
adiante, na primeira parte do capítulo 2.
Em 2013, quando ingressei no Curso de Especialização em Docência na Educação
Infantil e, ao longo das reflexões produzidas nas disciplinas do curso, especialmente na de
“Corpo e movimento na Educação Infantil”, vislumbrei a possibilidade de articular essas duas
dimensões, formação cultural e formação profissional, ou, dito de outra forma, das Artes
Cênicas (palhaço) e da Educação (professor), considerando a possibilidade de materializar um
duplo pressuposto apresentado e debatido naquela disciplina, a saber: o de que o corpo é
objeto de intervenção em todos os momentos que compõem a rotina pedagógica das
instituições de Educação Infantil, como nos momentos de entrada, alimentação, atividade
orientada, sono, parque, higiene, saída, e não apenas no de Educação Física (RICHTER;
VAZ, 2005), como frequentemente se supõe; e de que os conhecimentos na Educação Infantil
– inclusive aqueles que dizem respeito diretamente ao corpo – devem ser abordados desde
uma perspectiva interdisciplinar, considerando a educação do corpo como uma problemática
institucional. Para dar conta desses pressupostos, seria necessário romper com pelo menos
parte das fronteiras disciplinares na formulação de projetos de trabalho, promovendo uma
intersecção entre Pedagogia, Educação Física e outras áreas do saber. De certa forma, esses
pressupostos encontram acolhimento no modo como a Educação Infantil em Florianópolis,
em consonância com as diretrizes nacionais produzidas pelo Ministério da Educação para essa
8 Espaço cultural localizado no ‘centro’ da Lagoa da Conceição, Florianópolis/SC.
9 A Traço Cia. de Teatro foi fundada no ano de 2001. Em sua trajetória artística, a
técnica do palhaço configura-se como principal recurso pedagógico de formação,
treinamento e criação. Junto a esta técnica, investigações sobre o teatro de rua e o
teatro cômico popular colaboram à pesquisa cênica da companhia. Elas
instrumentalizam seus artistas para a criação de um repertório pessoal, preparando-
os para uma relação livre, direta e potencialmente transformadora para com o
público. A Companhia, atualmente, possui três espetáculos em repertório (As Três
Irmãs, Fulaninha e Dona Coisa e Estardalhaço), ministra oficinas sobre Palhaço e
Teatro de Rua, coordena o projeto(A)Gentes do Riso e a Mostra Traço de Bolso - o
riso corre solto....
Disponível em: < http://tracoteatro.blogspot.com.br/p/companhia.html>. Acesso em
21 de setembro de 2014.
26 CEDEI 2014 – UFSC – Ricardo Augusto Rocha
etapa da Educação Básica (BRASIL, 2009), propõe o trabalho pedagógico com crianças de 0
a 5 anos.
1.5. 3º Cenário: organização do trabalho pedagógico na Educação Infantil da RMF e a
possibilidade de fundamentação conceitual a partir do conceito de mímesis
A Educação Infantil em Florianópolis está orientada, no âmbito municipal, pelas
Diretrizes Educacionais Pedagógicas para a Educação Infantil (DEPEIs) da Secretaria
Municipal de Educação – SME (FLORIANÓPOLIS, 2010) e Orientações Curriculares para a
Educação Infantil da Rede Municipal (FLORIANÓPOLIS, 2012). As DEPEIs, de 2010, estão
estruturadas em duas partes: na primeira, textos de referência que embasam a prática
pedagógica quanto às estratégias, ações, formação de leitores e produtores de textos, estética e
artes, cultural corporal, supervisão e organização do trabalho. Os Núcleos de Ação
Pedagógica (NAPs), elaborados após as Diretrizes, em 2011, constituíram-se na forma como a
Secretaria Municipal de Educação e demais atores que participaram deste processo de
construção, como os próprios profissionais da Educação Infantil e pesquisadores acadêmicos
que prestaram assessoria à SME, encontraram para sistematizar aquilo que podemos entender
como os conteúdos deste segmento educacional. Grosso modo, os NAPs contemplam:
Relações com a natureza (nisso incluída a “Linguagem Matemática”); Relações Sociais e
Culturais; e as Linguagens, subdividas em Visual, Sonoro-Corporal e Oral e Escrita. O
trabalho com os NAPs, que devem fundamentar o fazer pedagógico com as crianças, deve se
estruturar seguindo as recomendações contidas em diretrizes e programas de caráter
referencial ou mandatório publicados pela Secretaria da Educação Básica do MEC, a partir de
dois eixos: a brincadeira e as interações (ROCHA, 2009, apud FLORIANÓPOLIS, 2009, p.
13).
Em ambos os documentos, a tônica é a busca pela constituição de fundamentos que se
convertam em práticas com as crianças na perspectiva de solidificação de princípios que
respeitem especificidades da Educação Infantil, entendida como processo educativo formal da
Educação Básica, mas que deve ser construído com as crianças, num processo participativo e
com peculiaridades que não devem se confundir com aquelas pertinentes a outros segmentos
educacionais, notadamente as séries iniciais do Ensino Fundamental. Nessa tessitura
conceitual e metodológica, entrecruzam-se elementos da pedagogia da infância, da teoria
histórico-cultural (a qual aparece no documento anteriormente mencionado como psicologia
histórico-cultural) e outros presentes nos textos de referência das Diretrizes, nos próprios
NAPs e resgatados de documentos oficiais da esfera nacional.
Corpo, mímesis e imaginação: o clown como possibilidade de trabalho pedagógico no âmbito da Educação Infantil 27
Para os fins a que se destina este trabalho, e já com o intuito de ir socializando aos
poucos com o leitor as nossas modestas intenções aqui, nos interessa problematizar, a partir
dos referenciais municipais de Florianópolis, questões referentes à compreensão de
conhecimento na Educação Infantil e sua relação com o corpo, além, é claro, de aspectos que
digam respeito à figura do palhaço (ainda que não explicitamente) e ao que mais estiver
diretamente relacionado aos elementos elencados, como em certa medida a questão da
estética, das Artes Cênicas e da imaginação na infância.
No texto “Educação Infantil, arte e criação: ensaios para transver o mundo”, Ostetto
(2008, apud FLORIANÓPOLIS, 2010, p. 54) faz oportunas provocações quanto ao que
chama de “A Educação do ser poético”:
Seria possível ensinar a transver o mundo? A pergunta inicial serve-me de
base para delinear um caminho que é, mais do que uma procura de resposta,
um convite para pensar sobre certos automatismos pedagógicos. Do que
estou falando? Do ato quase corriqueiro, na educação infantil, de oferecer
uma folha em branco para as crianças desenharem, revistas para recortarem
ou rasgarem, massinha para modelarem, tinta para pintarem e, ao final,
guardar o que foi feito na pasta de trabalhinhos; de ler histórias para depois
fazer atividades; de ensaiar uma dancinha, ou teatrinho, para apresentação
aos pais; de confeccionar lembrancinhas para datas comemorativas. Estaria a
arte presente nestas práticas? Qual o sentido das propostas encaminhadas e
dos produtos resultantes?
[...] Nos processos de apropriação, produção e expressão de linguagens das
crianças há muitos componentes envolvidos, tais como imaginação, busca,
experimentação, invenção, encantamento e entrega, os quais facilmente são
encobertos por uma série de “encaminhamentos pedagógicos” costumeiros,
centrados na realização da atividade e não naquele que a realiza.
As crianças são novidadeiras, relacionam-se com o mundo inventando
mundos; experimentando e elaborando formas, buscando e inventando cores,
construindo enredos.
Esse tipo de questionamento, presente nos referenciais municipais, certamente coloca
em xeque uma certa (e importante) tradição escolástica ocidental que, ao longo do tempo, e
por isso mesmo muitas vezes questionada, priorizou o legado racional, iluminista, polarizando
as dimensões sensível/corporal e cognitiva/racional do conhecimento, tendo a última
claramente assumindo lugar privilegiado. Em Florianópolis, a Educação Infantil,
acompanhando as políticas nacionais educacionais para esta etapa da Educação Básica, vem
buscando, ao menos na formulação de seus referenciais, instituir uma proposta regular que de
certa forma questione esta faceta da tradição escolar e retome algo da relação com o
conhecimento (inclusive do corpo!?) que o ocidente produziu ao longo do tempo.
28 CEDEI 2014 – UFSC – Ricardo Augusto Rocha
De forma análoga a essa perspectiva, mas anterior a ele e que nos ajuda então a melhor
compreendê-lo na História, encontramos em Momm (2006) um resgate crítico de elaborações
de integrantes da Escola de Frankfurt. A autora faz um estudo sobre a infância a partir de
Walter Benjamin, filósofo e literato alemão que escreveu sua obra na primeira metade do
século XX, e para quem a infância era tema recorrente e importante em seus escritos. A
derrocada da dimensão sensível no processo formativo e como forma de conhecimento é
compreendida no contexto das transformações econômicas, sociais e culturais trazidas pelo
avanço da produção industrial ao longo do século XIX e início do XX:
[...] a memória, o tempo e a rememoração são liquidados pela sociedade
burguesa em seu desenvolvimento, como se fossem uma espécie de resto
irracional (ADORNO, 1995b). Os novos modos de produção industrial, em
sua racionalização progressiva, eliminam, junto com a atividade artesanal,
categorias como a aprendizagem, ou seja, o tempo de aquisição na
experiência do ofício e o que a ele está associado. O homem não cultiva mais
o que não pode ser abreviado.
Dessa forma, para Benjamin [...] a experiência (Erfahrung) é abreviada pela
vivência (Erlebnis). No lugar da primeira, coloca-se um outro modo de
percepção e relação com o mundo, vivida individualizadamente, substituindo
a narrativa pela informação. A narrativa não se entrega; a informação não
deixa marcas. A experiência ultrapassa o tempo vivido; a vivência é o
efêmero, a novidade, ela se consome, se gasta no momento em que é
realizada.
Os modos de produção da subjetividade se alteram: não nos é permitida
relação outra que não seja pela reflexão racional endurecida e identificadora,
acarretando um processo de danificação dos sentidos, ou seja, a capacidade
de (re)conhecer e (re)apresentar similitudes e (re)produzir o novo está
condenada ao desaparecimento. Isso nos sugere, então, um comentário que
retome o tema da mimesis. (MOMM, 2006, p. 34; grifos nossos).
Ainda a partir de Momm (2011), mas tratando agora do que a pesquisadora elabora em
sua tese de doutorado, parece-nos bastante oportuno para o que pretendemos desenvolver aqui
neste trabalho nos debruçarmos então sobre o conceito de mímesis em Benjamin.
Entendida como a capacidade de reconhecer e reproduzir esteticamente semelhanças
(MOMM, 2011, p. 90), a mímesis em Benjamin contém um germe transformador,
revolucionário, justamente por se constituir como possibilidade de questionamento de uma
perspectiva determinista, positivista da História e de uma dimensão hegemonicamente
racional da subjetivação humana, oferecendo-nos “a possibilidade de pensar/construir uma
história aberta” (MOMM, 2006, p. 27), em que
O narrador, ao recorrer ao acervo de toda uma vida, que não inclui apenas a
própria experiência, mas, em grande parte, a do mais velho, da memória
coletiva, do alheio, do que permanece como caco, como resto, nos oferece a
Corpo, mímesis e imaginação: o clown como possibilidade de trabalho pedagógico no âmbito da Educação Infantil 29
possibilidade de uma relação outra que, ao invés de aprisionar o(s) objeto(s)
em um conceito – mas ao autorizar que este potencialize e liberte aquele(s) –
permite inúmeras possibilidades de interpretação, de contar de novo, de
contar o novo, de inserir a experiência do ouvinte. Uma relação de
deliberada diluição, de perder-se, de permitir-se impregnar pelo outro. Uma
relação aberta e dialógica e, portanto, dialética. Relação essa que Benjamin
caracterizará de mimética. A experiência narrativa – no sentido pleno –
sugere a prevalência de uma dimensão da razão que não seja instrumental:
de pensar o pensamento, de (re)elaboração do conceito para além de suas
fronteiras, na tentativa de superar um impulso de enrijecimento que dele faz
parte. (MOMM, 2006, p. 27).10
Se Ostetto (2008, apud FLORIANÓPOLIS, 2010), ao contribuir na elaboração dos
referenciais municipais, nos alerta quanto aos automatismos pedagógicos, aos processos
pedagógicos que rebaixam as experiências sensíveis e que já determinam começo, meio e fim
de narrativas, e se encontramos em Benjamin uma crítica àquilo que a sociedade burguesa
produziu em termos de formação humana, em que a técnica ligada aos processos industriais
suprimiu outras dimensões do conhecimento que a ela não servem e a ameaçam, é possível
então identificar aproximações entre o que se pretende fomentar enquanto política pública
educacional para as crianças de 0 a 5 anos em Florianópolis e o legado que o frankfurtiano
nos deixou sobre a infância, notadamente a partir de sua abordagem da mímesis.
No próximo capítulo, aprofundaremos a reflexão acerca da abordagem benjaminiana
deste conceito. Faremos também imersões no campo da teoria histórico-cultural ao tratarmos
da dimensão da imaginação e da brincadeira de papéis sociais, buscando convergências entre
os aportes teóricos que sustentarão grande parte das reflexões. Os elementos do campo
artístico que tratam da figura do clown serão elucidados em seguida, no segundo capítulo,
num movimento textual similar ao que foi feito nesta introdução, em que avançamos e
retrocedemos no tempo, transitamos entre a formalidade acadêmica e uma prosa mais poética
e estabelecemos o diálogo entre a trajetória cultural formativa de um professor para além-
muros e o conhecimento científico.
10
A reflexão elaborada por Momm em sua dissertação se dá a partir da análise que faz
sobre um importante ensaio de Nikolai Leskov.
30 CEDEI 2014 – UFSC – Ricardo Augusto Rocha
2. CAPÍTULO I – MÍMESIS, IMAGINAÇÃO, CORPO E EDUCAÇÃO INFANTIL
Em “A doutrina das semelhanças”, Walter Benjamin (1994a) trata com a maestria e
potência literária que lhes são familiares do conceito de mímesis (ou faculdade mimética).
Esse conceito é elemento importante na teoria da linguagem do filósofo berlinense e aparece
também como dimensão fundamental das brincadeiras infantis em seus escritos sobre
infância, brinquedos e literatura infantil, bem como sobre pedagogia. O autor compreende a
mímesis como a ‘capacidade de reconhecer e reproduzir semelhanças’, identificando um
aspecto histórico (filogenético) da mímesis e outro corporal, sensível, subjetivo
(ontogenético), sendo o jogo estabelecido pela criança a expressão mais autêntica deste
último.
Um olhar lançado à esfera do semelhante é de importância fundamental para
a compreensão de grandes setores do saber oculto. Porém esse olhar deve
consistir menos no registro de semelhanças encontradas que na reprodução
dos processos que engendram tais semelhanças: basta pensar na mímica.
Mas é o homem que tem a capacidade suprema de produzir semelhanças. Na
verdade, talvez não haja nenhuma de suas funções superiores que não seja
decisivamente co-determinada pela faculdade mimética. Essa faculdade tem
uma história, tanto no sentido filogenético como ontogenético. No que diz
respeito ao último, a brincadeira infantil constitui a escola dessa faculdade.
Os jogos infantis são impregnados de comportamentos miméticos, que não
se limitam de modo algum à imitação de pessoas. A criança não brinca
apenas de ser comerciante ou professor, mas também moinho de vento e
trem. A questão importante, contudo, é saber qual a utilidade para a criança
desse adestramento da atitude mimética. (BENJAMIN, 1994a, p.108).
Benjamin refaz o percurso histórico (filogenético) da mímesis para indagar: ao longo
do tempo, a “energia mimética” estaria num caminho de derrocada, numa curva descendente?
Ou estariam as forças e coisas miméticas apenas mudando de lugar?
As transformações no campo da mímesis, para Benjamin, certamente estão ligadas aos
processos históricos de transformação da sociedade e as concepções historiográficas que
fundamentam estes processos. Para ele, as concepções burguesas e progressistas de história
desaguam num problema de compreensão da trajetória da humanidade, como se fosse esta
linear, pré-determinada, inevitável.
A teoria e, mais ainda, a prática da social-democracia foram determinadas
por um conceito dogmático de progresso sem qualquer vínculo com a
realidade. Segundo os social-democratas, o progresso era, em primeiro lugar,
um progresso da humanidade em si, e não das suas capacidades e
conhecimentos. Em segundo lugar, era um processo sem limites, idéia
correspondente à da perfectibilidade infinita do gênero humano. Em terceiro
Corpo, mímesis e imaginação: o clown como possibilidade de trabalho pedagógico no âmbito da Educação Infantil 31
lugar, era um processo essencialmente automático, percorrendo, irresistível,
uma trajetória em flecha ou em espiral. Cada um desses atributos é
controvertido e poderia ser criticado. Mas, para ser rigorosa, a crítica precisa
ir além deles e concentrar-se no que lhes é comum. A idéia de um progresso
da humanidade na história é inseparável da idéia de sua marcha no interior
de um tempo vazio e homogêneo. A crítica da idéia do progresso tem como
pressuposto a crítica da idéia dessa marcha.
[...] A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo
homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’. (BENJAMIN,
1994d, p. 229).
Essa dimensão homogênea e vazia do tempo e do progresso, decorrente das críticas de
Benjamin à concepção burguesa de história, também aparece na interpretação que o autor faz
de um quadro do pintor Paul Klee, chamado “Angelus Novus”, no texto “Sobre o conceito de
história” (BENJAMIN, 1994d). Para Benjamin, o anjo retratado por Klee teria a aparência
semelhante àquela do “anjo da história”:
Existe um quadro de Klee intitulado “Angelus Novus”. Nele está
representado um anjo, que parece estar a ponto de afastar-se de algo em que
crava o seu olhar. Seus olhos estão arregalados, sua boca está aberta e suas
asas estão estiradas. O anjo da história tem de parecer assim. Ele tem seu
rosto voltado para o passado. Onde uma cadeia de eventos aparece diante de
nós, ele enxerga uma única catástrofe, que sem cessar amontoa escombros e
os arremessa a seus pés. Ele bem que gostaria de demorar-se, de despertar
os mortos e juntar os destroços. Mas do paraíso sopra uma tempestade que
se emaranhou em suas asas e é tão forte que o anjo não pode fechá-las. Essa
tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, para o qual dá as
costas, enquanto o amontoado de escombros diante dele cresce até o céu. O
que nos chamamos de progresso é essa tempestade. (BENJAMIN, 1994d, p.
226).
Essas ruínas da história, resultantes, de acordo com o filósofo alemão, de uma
sucessão de catástrofes – e que a concepção de história burguesa vê apenas como um caminho
ascendente em direção ao progresso –, deixam também sobre o corpo e suas expressões, como
a educação, os seus destroços. De certa forma, é dessa história homogênea e vazia de
dominação sobre a natureza externa e interna do humano a que se referem Adorno e
Horkheimer (1985, p. 215-216) no aforismo “Interesse pelo corpo”, presente na parte final do
livro Dialética do esclarecimento. Horkheimer e Adorno apontam a existência de uma contra-
história, paralela à oficial, que, subterrânea, emerge nos momentos fronteiriços, limítrofes da
humanidade. Essa história clandestina localizar-se-ia no corpo, vítima preferencial de uma
civilização que o dilacera, desfigura e recalca seus instintos e paixões, tornando-o objeto de
controle e manipulação.
32 CEDEI 2014 – UFSC – Ricardo Augusto Rocha
Para os frankfurtianos, parte dos esforços que a civilização empreendeu para
dominação do corpo tem origem no gradativo solapamento da mímesis em favor de
procedimentos mais eficazes no controle, no sentido forte de domínio, da natureza que nos é
assustadora, inclusive nossa corporalidade, cujas virtualidades precisam ser conhecidas e
controladas. Nesse sentido, e de modo semelhante à Benjamin, eles dirão que o progresso
cultural como um todo, incluindo também a educação, reproduz – não sem violência e
sofrimento – filogenética e ontogeneticamente o processo de conversão do comportamento
mimético em atitudes racionais. Nas palavras de Horkheimer e Adorno (1985, p. 169):
O rigor com que os dominadores impediram no curso dos séculos a seus
próprios descendentes, bem como às massas dominadas, a recaída em
modos de vida miméticos – começando pela proibição de imagens na
religião, passando pela proscrição social dos atores e dos ciganos e
chegando, enfim, a uma pedagogia que desacostuma as crianças de serem
infantis – é a própria condição da civilização. A educação social e
individual reforça nos homens seu comportamento objetivamente enquanto
trabalhadores e impede-os de se perderem nas flutuações da natureza
ambiente. Toda diversão, todo abandono tem algo de mimetismo. Foi se
enrijecendo contra isso que o ego se forjou. É através da sua constituição
que se realiza a passagem da mimese refletora para a reflexão controlada.
[...] Da assimilação à natureza resta apenas o enrijecimento contra ela.
(grifos nossos).
De volta à Benjamin, encontramos no texto “O Narrador” (BENJAMIN, 1994c, p.
197-198) mais elementos desta análise crítica que ele faz de episódios, como os decorrentes
da 1ª Guerra Mundial, que produzem rupturas nos modos de vidas das pessoas – e que, com o
avanço da tecnologia, deixam de ser episódicos e passam a ser cada vez mais frequentes,
tornando-se ordinários –, com fortes implicações sobre as formas expressivas, relacionais,
artísticas e culturais produzidas pela humanidade:
[...] a arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as
pessoas que sabem narrar devidamente. Quando se pede num grupo que
alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se
estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e
inalienável: a faculdade de intercambiar experiências.
Uma das causas desse fenômeno é óbvia: as ações da experiência estão em
baixa, e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de
todo.
[...] nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a
experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela guerra de
material e a experiência ética pelos governantes. Uma geração que ainda fora
à escola num bonde puxado por cavalos se encontrou ao ar livre numa
paisagem em que nada permanecera inalterado, exceto as nuvens, e debaixo
delas, num campo de forças de torrentes e explosões, o frágil e minúsculo
corpo humano.
Corpo, mímesis e imaginação: o clown como possibilidade de trabalho pedagógico no âmbito da Educação Infantil 33
Da mesma forma, Benjamin identifica nas transformações das forças produtivas do
final do século XIX e início do século XX razões para o empobrecimento da experiência:
A arte de narrar está definhando porque a sabedoria – o lado épico da
verdade – está em extinção. Porém esse processo vem de longe. Nada seria
mais tolo que ver nele um ‘sintoma de decadência’ ou uma característica
‘moderna’. Na realidade, esse processo, que expulsa gradualmente a
narrativa da esfera do discurso vivo e ao mesmo tempo dá uma nova beleza
ao que está desaparecendo, tem se desenvolvido concomitantemente com
toda uma evolução secular das forças produtivas. (BENJAMIN, 1994c, p.
200-201).
A partir de Benjamin, podemos entender que as mudanças no campo produtivo e os
episódios históricos pelos quais passou e passa a sociedade ocidental afetam as formas
artísticas, expressivas e de conhecimento.
Se a mímesis é a forma de conhecer a partir das semelhanças e se dá necessariamente
por dimensões sensíveis/corporais, e se o processo de industrialização e as tensões sociais
interferem significativamente nas forças e elementos miméticos, um primeiro questionamento
se coloca à frente dos educadores que buscam o enriquecimento das experiências educativas
das crianças é: quais as possibilidades de, por dentro dos processos de degradação da
experiência e da mímesis, tal como diagnosticado pelos frankfurtianos, pensarmos nas
possibilidades de uma educação estética, por meio do trabalho com o palhaço, em que seja
possível refletir sobre essa pedagogia do corpo de caráter instrumental e disciplinador que
“desacostuma as crianças de serem infantis”?
Retomando as Orientações Curriculares do município de Florianópolis (2012), o texto
que trata da Linguagem Corporal problematiza as práticas historicamente ligadas ao corpo,
apontando que, ao invés de possibilitar a expansão das expressões das crianças, essas práticas
muitas vezes serviram (e servem) para a adequação das crianças a hábitos e comportamentos
disciplinadores, controladores do corpo.
[...] historicamente ‘as atividades ligadas ao corpo, à higiene, alimentação,
sono das crianças eram desvalorizadas e diferenciadas das atividades
consideradas pedagógicas, estas sim entendidas como sérias e merecedoras
de atenção e valor’. E mesmo a música, a dança, o teatro, as brincadeiras e
jogos, as artes circenses e tantos outros temas da cultura, aparecem
inicialmente nos programas e propostas formais de educação da infância não
como formas de fortalecer e expandir a expressão e a cultura das crianças,
“mas como mais um instrumento de adequação a hábitos e comportamentos
considerados necessários à educação das crianças” ou como livre expressão,
sem a necessidade de uma orientação pedagógica por parte das professoras.
Embora muito se tenha discutido e escrito sobre inadequação da proposição
dessas com objetivos como o controle e a disciplina, avançar na elaboração
34 CEDEI 2014 – UFSC – Ricardo Augusto Rocha
de práticas que as superem ainda se coloca como um desafio, possível de ser
ressignificado. (FLORIANÓPOLIS, 2012, p. 161).
E por que o palhaço surge como possibilidade? Vale destacar que, assim como já
indica e nos alerta para a reflexão o referencial curricular de Florianópolis, mesmo as artes
circenses, dependendo da abordagem podem na verdade revestir o velho com o novo, isto é,
reproduzir práticas disciplinadoras com um caráter supostamente inovador se não houver, na
raiz da proposição pedagógica, uma compreensão crítica da figura do palhaço e
consequentemente de sua potência pedagógica. Veremos isso mais à frente, bem como as
possíveis relações deste tipo cômico que é o palhaço com a mímesis em Benjamin e a
imaginação em Vigotski.
Voltando ao problema da mímesis, encontramos no trabalho de doutoramento de
Momm (2011, p. 96) uma compreensão bastante elucidativa do caráter ambíguo – adaptativo
e transgressor – da mímesis a partir de Benjamin e outros referenciais frankfurtianos:
Na experiência mimética a criança, como o adulto, aprende a assimilar-se e
conduzir-se de acordo. Porém, exercita também toda a potência mágica
(mímesis) por ter como aliada a força da imaginação, que permite que
extrapole os significados sociais atribuídos aos objetos (imitação),
(re)significando-os pela representação. Ela desveste as coisas de seu
significado aparente, dado socialmente, para revesti-las de inúmeros outros
sentidos. Ela ultrapassa a imitação, reapresentando aquilo que vê.
Podemos dizer então que a mímesis é uma forma de conhecimento pré-subjetiva,
corporal, sensível, pelo fato de que
Quanto mais as crianças arriscam-se, na brincadeira, à perda do controle dos
limites claros do eu, maior a satisfação no (re)encontro consigo mesmas,
mais vão alcançando domínio sobre si mesmas. Ao se furtarem à realização
imediata do desejo e ao se permitirem transformar/misturar-se em qualquer
coisa, na brincadeira constituem uma experiência para a autonomia, um
exercício para o domínio de si.
A repetição, o fazer sempre de novo, é um elemento importante dessa
atividade infantil. Incessantemente a criança experimenta, com renovada
intensidade, seus triunfos, transformando as experiências mais comoventes
em hábito: ‘Pois é o jogo, e nada mais, que dá à luz todo hábito. [...] Formas
petrificadas e irreconhecíveis de nossa primeira felicidade, de nosso primeiro
terror, eis os hábitos’. [...] Tal repetição nas brincadeiras permite a
incorporação das experiências, num processo de progressiva autonomia.
É nesse sentido que podemos afirmar que na brincadeira a criança
(ontogênese) repete o percurso humano (filogênese) de constituição da
autonomia e de afirmação do sujeito sobre a natureza. (MOMM, 2011, p.
103).
Corpo, mímesis e imaginação: o clown como possibilidade de trabalho pedagógico no âmbito da Educação Infantil 35
Concepção semelhante a essa sobre o processo de constituição das subjetividades e do
conhecimento pelo corpo é encontrada no referencial curricular de Florianópolis
(FLORIANÓPOLIS, 2012, p. 176):
A brincadeira tem um lugar importante na vida das crianças... que fazem de
conta que são heróis e heroínas, sereias e piratas, ladrão e policial, mamãe,
papai e filhinhos, pescadores e marinheiros, bombeiros e astronautas, bruxas
e magos... seus cavalos falam, suas vassouras voam, os bonecos e bonecas
ganham vida em suas mãos! Adoram encenar histórias de livros e aquelas
que inventam! Ao mesmo tempo, ficam maravilhadas quando encenam para
elas histórias como “Era uma vez...”, “Pedro e o Lobo”, “As aventuras da
Bruxa Onilda”, “Pluft, o fantasminha” e tantas outras histórias de uma lista
que parece não ter fim! Mas onde começa essa história?
Bem, pode-se dizer que “essa história” tem seu início lá nas descobertas do
corpo e do movimento. Começa lá nos gestos infantis, nas percepções e
criações sonoras dos bebês, das suas interações lúdicas no espaço-tempo, nas
relações construídas com adultos e crianças. Percorre a imitação de sons,
movimentos, expressões e ações dos adultos realizadas pelos pequenininhos,
também constituem os passos iniciais do aprendizado e desenvolvimento do
brincar de faz-de-conta ou das brincadeiras simbólicas, do domínio da
linguagem cênica. Um percurso simultaneamente cultural, sensível, lúdico,
estético, cognitivo, afetivo e construído com o desenvolvimento e
fortalecimento dos processos de imaginação e criação das crianças. (Grifos
no original... Mas que poderiam ser nossos!).
É nesta dobra entre o papel da brincadeira e a psicogênese da imaginação e brincadeira
de papéis sociais no desenvolvimento infantil que nos parece bastante oportuno convidar para
o dialogo teórico as proposições da teoria histórico-cultural, de modo que possamos tratar de
questões como a imaginação e o papel do professor no processo formativo das crianças.
Em um dos textos (resultado de uma palestra proferida em 1933 em Leningrado) que
ainda hoje é tido como uma das principais referências quando o assunto é a brincadeira e sua
importância para o desenvolvimento infantil, Vigotski (2008) discorre com tamanho vigor
sobre a problemática que é difícil saber quais parágrafos podem ser deixados de lado nas
citações de qualquer trabalho científico.
Já de início, o intelectual russo confere à brincadeira um status privilegiado no
desenvolvimento das crianças, entendida não como a “forma predominante de atividade”, mas
como “a linha principal do desenvolvimento na idade pré-escolar” (VIGOTSKI, 2008, p. 23).
O autor também problematiza questões referentes à cognição e afetividade no
desenvolvimento infantil e na realização das atividades/brincadeiras pelas crianças. Se, por
um lado, Vigotski rejeita a ideia de que é apenas pela satisfação que a criança se mobiliza
para uma brincadeira, exemplificando seu argumento ao comentar sobre as brincadeiras em
que não necessariamente a criança terá uma satisfação ao final (como os jogos esportivos, em
36 CEDEI 2014 – UFSC – Ricardo Augusto Rocha
que mesmo a frustração pode se fazer presente), por outro, evita a compreensão da brincadeira
apenas de modo racional, pois “significaria intelectualizá-la extremamente recursa-se a
admitir o modo como nela as necessidades da criança se realizam, os impulsos para sua
atividade, isto é, seus impulsos afetivos” (VIGOTSKI, 2008, p. 24). Ainda nas palavras do
autor:
Particularmente, não há como ignorar que a criança satisfaz certas
necessidades, certos impulsos, na brincadeira. Sem a compreensão da
peculiaridade desses impulsos, não é possível imaginar que a brincadeira
seja um tipo específico de atividade.
Na idade pré-escolar, surgem necessidades específicas, impulsos específicos
que são muito importantes para o desenvolvimento da criança e que
conduzem diretamente à brincadeira. Isso ocorre porque, na criança dessa
idade, emerge uma série de tendências irrealizáveis, de desejos não-
realizáveis imediatamente. Na primeira infância, a criança manifesta a
tendência para a resolução e a satisfação imediata de seus desejos. [...]
Estudos demonstram que a brincadeira não se desenvolve apenas quando o
desenvolvimento intelectual das crianças é insatisfatório, mas também
quando o é a esfera afetiva.
Do ponto de vista da esfera afetiva, parece-me que a brincadeira organiza-se
justamente na situação de desenvolvimento em que surgem as tendências
irrealizáveis. (VIGOTSKI, 2008, p. 24-25).
Mais a frente, o autor elaborará a argumentação que responde à pergunta “por que a
criança brinca?”, além de apresentar uma primeira compreensão sobre o conceito de
imaginação:
[...] numa criança com mais de três anos, emergem tendências específicas e
contraditórias, de um modo diferente; por um lado, surge uma série de
necessidades e de desejos não-realizáveis imediatamente, mas que, ao
mesmo tempo, não se extinguem como desejos; por outro lado, conserva-se,
quase por completo, a tendência para a realização imediata dos desejos.
É disso que surge a brincadeira, que deve ser sempre entendida como uma
realização imaginária e ilusória de desejos irrealizáveis, diante da pergunta
“por que a criança brinca?”. A imaginação é o novo que está ausente na
consciência da criança na primeira infância, absolutamente ausente nos
animais, e representa uma forma especificamente humana de atividade da
consciência; e, como todas as funções da consciência, forma-se
originalmente na ação. (VIGOTSKI, 2008, p. 25).
Na contramão de outras compreensões de desenvolvimento contestadas pelo autor, não
é a imaginação que antecede a brincadeira, mas sim o contrário. É na brincadeira que a
criança cria uma situação imaginária, e não é necessário para isso uma situação intelectual ou
afetiva ideais, senão os próprios impulsos, as próprias necessidades da criança, necessidades
que não necessariamente implicam em satisfação. A problemática dos impulsos, necessidades,
Corpo, mímesis e imaginação: o clown como possibilidade de trabalho pedagógico no âmbito da Educação Infantil 37
da dimensão afetiva que mobiliza a criança para a brincadeira é certamente um ponto de
encontro entre essa especificidade do desenvolvimento infantil e a tipologia cômica do
palhaço, como poderá ser observado no momento em que, no próximo capítulo, nos
remetermos aos conceitos pertinentes às palhaçarias.
Ainda sobre essa questão do “ponto de encontro” entre a brincadeira na criança e a
condição do palhaço, podemos mais uma vez aludir a Vigotski (2008, p. 26):
A presença de tais afetos generalizados na brincadeira não significa que a
criança entenda por si mesma os motivos pelos quais a brincadeira é
inventada e também não quer dizer que ela faça conscientemente. Portanto,
ela brinca sem ter a consciência dos motivos da atividade da brincadeira.
Nota-se aqui também os fundamentos daquilo que irá se denominar como a
brincadeira de papéis sociais no bojo da teoria histórico-cultural, justamente pelas
especificidades que Vigostki aponta, como a de que, além do que já problematizamos, a
brincadeira de crianças a partir dos 3 anos começa a se diferenciar da brincadeira de crianças
na primeira infância, período em que aquelas ainda estão condicionadas às amarras
situacionais, às atividades que realizam e diretamente aos objetos com os quais se relacionam.
[...] na brincadeira (de papéis sociais), a criança aprende a agir em função do
que tem em mente e não do que vê. Parece-me que essa fórmula transmite
com precisão aquilo que ocorre na brincadeira (de papéis sociais): a criança
aprende a agir em função do que tem em mente, ou seja, do que está
pensando, mas não está visível, apoiando-se nas tendências e nos motivos
internos, e não nos motivos e impulsos provenientes das coisas.”
(VIGOTSKI, 2008, p. 29, grifos nossos).
Um cabo de vassoura que se transforma em cavalo... Em violão...
Pedaços de massa de modelar que viram carne, bolo, peixe, chocolate...
Crianças que se transformam em palhaços a partir da menor máscara do mundo (o
nariz vermelho) e desenvolvem, na condição de palhaços, relações, expressões corporais e
brincadeiras diversas com os objetos e situações que a elas se apresentam?
Qual o papel do “professor-palhaço” nas proposições pedagógicas (entre elas as
brincadeiras) que serão desenvolvidas com as crianças nesta pesquisa de caráter também
prático?
Para tentarmos ensaiar respostas, ainda provisórias e tateantes para essas e tantas
outras perguntas, novamente recorreremos ao notável pesquisador russo e outras elaborações
ainda sobre a imaginação:
38 CEDEI 2014 – UFSC – Ricardo Augusto Rocha
[...] a imaginação não é um divertimento ocioso da mente, uma atividade
suspensa no ar, mas uma função vital necessária.
A primeira forma de relação entre imaginação e realidade consiste no fato de
que toda obra da imaginação constrói-se sempre de elementos tomados da
realidade e presentes na experiência anterior da pessoa. Seria um milagre se
a imaginação inventasse do nada ou tivesse outras fontes para suas criações
que não a experiência anterior. Somente as representações religiosas e
místicas sobre a natureza humana atribuem a origem das obras da fantasia a
uma força estranha, sobrenatural, e não à nossa experiência.
[...] Dessa forma, a imaginação sempre constrói de materiais hauridos da
realidade. (VIGOTSKI, 2009b, p. 20).
Parte-se, portanto, da ideia de que a criança se insere num mundo já repleto de
elementos culturais construídos e acumulados historicamente. Veremos, inclusive, que o
mesmo se dá quanto à própria figura do palhaço, resultado de acúmulos históricos e contextos
sociais, culturais, temporais, espaciais. Isso tem implicação direta no papel que o professor,
ou mesmo o “professor-palhaço” irá desempenhar nas proposições com as crianças. Quais as
compreensões que as crianças apresentam acerca da figura do palhaço? E quais ainda se
encontram distantes de seu repertório? Como apresentar novos elementos a elas? Como
proporcionar momentos de exploração, de experimentação da condição de palhaço, ampliando
as possibilidades expressivas e corporais para além daquilo que a indústria cultural
(HORRKHEIMER; ADORNO, 1985) oferece e massifica? São perguntas que se edificam à
nossa frente partindo-se do princípio que o “professor-palhaço” terá papel fundamental na
mediação destes elementos culturais que antecedem a presença das crianças no mundo, o que
não significa que não possam ser atribuídos novos significados a eles. Em síntese, é dizer que
não podemos cair no erro de concepções espontaneístas que apregoam unilateralmente a
participação ativa das crianças na construção de conceitos, fazendo recair sobre suas costas
uma responsabilidade que beira a insanidade, como se fossem exclusivamente as crianças os
sujeitos produtores de cultura em nossa sociedade11
; mas é dizer também que o professor,
11
Aqui fazemos uma crítica à Pedagogia da Infância como afirmada nas Orientações
Curriculares de Florianópolis (ROCHA, E. A. C., 2009., apud FLORIANÓPOLIS,
2009, p. 19), que traz a ideia de culturas infantis, a qual remete à condição da
criança como produtora de cultura. Faremos a opção, quando necessário, de
empregarmos os termos expressões e manifestações das crianças. Como veremos
adiante, a teoria histórico-cultural irá problematizar a questão das experiências
vividas e narradas como repertório para o enriquecimento da imaginação. Neste
sentido, preferimos optar por um entendimento mais próximo a este, do que afirmar
que as crianças também participam da mesma forma que os adultos da produção
cultural. Os defensores da Pedagogia da Infância poderiam também apontar lacunas
em nosso posicionamento ao fazermos estas escolhas, alegando que então a
produção de cultura é algo que, como num clique, passaria a acontecer somente a
partir de um determinado instante. Entretanto, para este argumento, diríamos que a
cultura antecede a chegada das crianças ao mundo, e o que primeiro ocorre são
relações das crianças, diretas ou mediadas, com elementos desta cultura.
Corpo, mímesis e imaginação: o clown como possibilidade de trabalho pedagógico no âmbito da Educação Infantil 39
responsável maior pela socialização e sistematização destes constructos culturais e pela
organização e planejamento das proposições a serem realizadas com as crianças, deve,
intencionalmente, prever a apropriação crítica, ativa e expressiva por parte das crianças de
elementos culturais (no caso a condição de palhaço e aspectos correlatos), justamente na
perspectiva dialética de perpetuação e transformação de nossa sociabilidade. Nas palavras de
Vigotski (2009a, p. 14),
Se a atividade do homem se restringisse à mera reprodução do velho, ele
seria um ser voltado somente para o passado, adaptando-se ao futuro apenas
na medida em que este reproduzisse aquele. É exatamente a atividade
criadora (um dos tipos de atividade humana) que faz do homem um ser que
se volta para o futuro, erigindo-o e modificando o seu presente.
Vigotski (2009b, p. 22-23) sintetiza o que ele chama de primeira forma de relação
entre imaginação e realidade da seguinte forma:
Deparamo-nos, então, com a primeira e a mais importante lei a que se
subordina a atividade da imaginação. Essa lei pode ser formulada assim: a
atividade criadora da imaginação depende diretamente da riqueza e da
diversidade da experiência anterior da pessoa, porque essa experiência
constitui o material com que se criam as construções da fantasia.
[...] A conclusão pedagógica a que se pode chegar com base nisso consiste
na afirmação da necessidade de ampliar a experiência da criança, caso se
queira criar bases suficientemente sólidas para a sua atividade de criação.
Quanto mais a criança viu, ouviu e vivenciou, mais ela sabe e assimilou;
quanto maior a quantidade de elementos da realidade de que ela dispõe em
sua experiência – sendo as demais circunstâncias as mesmas -, mais
significativa e produtiva será a atividade de sua imaginação. Por essa
primeira forma de relação entre fantasia e realidade, já é fácil perceber o
quanto é equivocado contrapô-las.
Ainda, contestando as concepções que contrapõe imaginação e realidade, o pensador
complementa a formulação anterior e pontua um dos aspectos que conferem à imaginação um
elevado grau de importância nas relações sociais, na produção de conhecimento, tecnologias,
inventos etc.:
A psicologia denomina de imaginação ou fantasia essa atividade criadora
baseada na capacidade de combinação do nosso cérebro (corpo?).
Comumente, entende-se por imaginação ou fantasia algo diferente do que a
ciência denomina com essas palavras. No cotidiano, designa-se como
imaginação ou fantasia tudo o que não é real, que não corresponde à
realidade e, portanto, não pode ter nenhum significado prático sério. Na
verdade, a imaginação, base de toda atividade criadora, manifesta-se, sem
dúvida, em todos os campos da vida cultural, tornando também possível a
criação artística, a científica e a técnica. Nesse sentido, necessariamente,
tudo o que nos cerca e foi feito pelas mãos do homem, todo o mundo da
40 CEDEI 2014 – UFSC – Ricardo Augusto Rocha
cultura, diferentemente do mundo da natureza, tudo isso é produto da
imaginação e da criação humana que nela se baseia. (VIGOTSKI, 2009a, p.
14; grifos nossos).
Ao corroborarmos com a proposição de uma perspectiva curricular para a Educação
Infantil que propicie significativas situações de conhecimento, contemplando uma diversidade
de experiências sensíveis/corporais e opondo-se a um viés predominantemente racionalista; ao
buscarmos um recordo do processo de dominação da natureza no humano em oposição ao
projeto predominantemente iluminista que, por razões várias que não são o foco deste
trabalho, acabou por privilegiar determinadas formas de conhecimento, de possibilidades de
existência, de relações com o mundo, intra e interpessoais, coloca-se à nossa frente o desafio
de encontrar e experimentar formas de atuação pedagógica, formas de conhecer que permitam
a consecução destes anseios. E é a partir daqui que convidamos então para participar deste
diálogo uma das objetivações que constituem o legado do mundo das Artes Cênicas, das
expressões artístico-culturais acumuladas pela humanidade: o palhaço.
Corpo, mímesis e imaginação: o clown como possibilidade de trabalho pedagógico no âmbito da Educação Infantil 41
3. CAPÍTULO II – EIS O PALHAÇO!
3.1. O palhaço e a mímesis
No relato descrito ao início do texto sobre a palhaçaria que levou o grupo de crianças
da Educação Infantil daquela unidade educativa aos risos e saudação, é possível, a partir do
que referenciamos até aqui, pensar que o episódio pode ser compreendido pela ideia de
mímesis em Benjamin. Senão vejamos: não havia, naquele momento, elementos externos
claramente clownescos que permitissem uma identificação imediata da figura do palhaço, a
não ser a expressão corporal disparada na brincadeira. Só aí, a partir da identificação de certos
elementos, é que as crianças, reconhecendo as semelhanças (mímesis), manifestarem-se de
forma simpática quanto ao evento. Num primeiro sentido, a partir de uma situação advinda da
prática com as crianças, é possível identificarmos esta relação entre a capacidade mimética e a
presença da figura do palhaço. E isto nos remete também a um importante aspecto da
mímesis, qual seja, sua dimensão temporal. Benjamin, ao exemplificar os processos
miméticos a partir da Astrologia, discorre sobre esta questão.
[...] Isso evoca outra particularidade na esfera do semelhante. Sua percepção,
em todos os casos, dá-se num relampejar. Ela perpassa, veloz, e, embora
talvez possa ser recuperada, não pode ser fixada, ao contrário de outras
percepções. Ela se oferece ao olhar de modo tão efêmero e transitório como
uma constelação de astros. A percepção das semelhanças, portanto, parece
estar vinculada a uma dimensão temporal. A conjunção de dois astros, que
só pode ser vista num momento específico, é observada por um terceiro
protagonista, o astrólogo. Apesar de toda precisão dos seus instrumentos de
observação, o astrônomo não consegue igual resultado. (BENJAMIN, 1994a,
p. 109)
E é por isso que, segundo Momm (2011, p. 83),
[...] o dom de despertar toda a força mágica da linguagem exige atenção. [...]
Esse relampejar indica uma correspondência mágica. O ritual que desperta a
semelhança exige um ritmo – que permite que o espírito participe do mesmo
fluxo temporal no qual as semelhanças irrompem (uma temporalidade
saturada de agoridade, não uma temporalidade linear). Somente esse ritmo
ultrapassa a camada de leitura profana (reconhecimento do signo), como a
realizada pelo colegial que lê o abecedário, alcançando uma camada mágica
que revela o sentido inscrito na palavra que desperta toda sua potência
redentora.
Que corpo é este que propicia a experiência mágica?
Que tempo? Ou: qual o tempo deste corpo?
42 CEDEI 2014 – UFSC – Ricardo Augusto Rocha
Que lugar de encontro é esse, forjado nesta temporalidade? Questões que constituem
as camadas interiores deste trabalho.
Até aí temos o apreço do pesquisador que aqui escreve pela figura do palhaço, a partir
de um histórico de formação estética, política e cultural que constitui toda sua subjetividade,
não apenas como frequentador de eventos culturais, mas que atravessam suas concepções
também no que tange ao seu trabalho como formador de crianças. Eis que, além deste
acúmulo, a prática lhe revela situações como a que foi relatada, provocando-lhe quanto ao
sentido de sua atividade profissional e a relevância ou possibilidades que um mergulho mais
profundo no universo clownesco e em outras esferas de conhecimento que porventura
fornecessem ferramentas para a práxis pedagógica.
Mais questões...
Por que o clown?
Clown ou palhaço?
Qual o sentido do Patati e do Patatá12
, e de outros da mesma natureza, na Educação
Infantil?
O clown, ou o palhaço, tem apenas uma dimensão recreativa ou de fruição estética na
formação das crianças? Ou será possível pensá-lo e propô-lo como algo que vá além disso, e
toque as entranhas das crianças de forma não apenas efêmera?
O que é mesmo o clown?
3.2. Sobre o tornar-se professor-palhaço...
Como relatado na introdução, em 2012 e 2014 participei de duas oficinas de palhaço
com a Traço Cia de Teatro. Gostaria, nas próximas linhas, de descrever e refletir um pouco
sobre este processo – não isento de indeterminações e vicissitudes – de constituir-se palhaço
e, o que pode ser ainda mais angustiante e complexo, em professor-palhaço...
Formar-se palhaço é algo que não é passível de, acredito, ser entendido como
titulação. A coisa se imbrica na tua subjetividade, no teu jeito de ver o mundo, no estômago.
Se você racionalizar, está lascado. Se o chicote da culpa estiver em punho, lascou-se
também. Mas, se achar que é só espontaneísmo, que não tem técnica, ih, que lasca! Se achar,
12
Patati e Patatá são dois palhaços bastante conhecidos pelas crianças, por se tratarem
de palhaços que têm ampla divulgação de seus produtos nas unidades de Educação
Infantil da Rede Municipal de Florianópolis e mesmo nas TVs abertas. No Episódio
I, quase todas as crianças do grupo mencionam os palhaços quando são perguntados
sobre quais palhaços que elas conhecem.
Corpo, mímesis e imaginação: o clown como possibilidade de trabalho pedagógico no âmbito da Educação Infantil 43
provavelmente se lasque. E, se não achar, também. Porque ser palhaço talvez seja a própria
lasca. E outra lasca é escrever sobre o palhaço. Que lasca...
***
Nesse tempo com a Traço Cia de Teatro, os mergulhos para dentro, os exercícios, as
dinâmicas, as técnicas e (talvez principalmente) o jogo têm recheado e rechearam em 2012
nossos encontros semanais. As duas oficinas tiveram duração similar: cerca de 2 meses, em 8
encontros. São 12 os aprendizes de clown. Nas palavras de um dos professores da oficina, “a
formação do palhaço é como uma cebola’, ‘pensem em cebola, em camadas...”.
Faz parte do formar-se palhaço lidar, sempre na dimensão prática e corporal (o que
não exclui as orientações professorais, mas sempre visando a dimensão sensível e menos a
dicotomia “pensar e fazer”), com a questão do olhar. Para a palhaçaria, é mister o encontro. O
encontro de olhares. Em muitas dinâmicas, simplesmente nos prostramos de fronte ao público
(neste caso, os próprios oficineiros e aprendizes de clown), com uma atitude corporal (nosso
todo), mas singela, sem representações. O encontro é pelo olhar. É dispor-se ao olhar, é ser
espelho e refletir, tudo junto. Nada de estereótipos. É ir para dentro... Mas também não é se
apagar, desde que não se defenda. A “aprendizagem cebolística” do ser palhaço é aprender a
ver o seu próprio ridículo, a fraqueza e o fracasso, lidando com isso e rindo.
Outra dimensão do palhaço é a quebra das regras a todo tempo. O palhaço é o avesso,
o anti, o não-convencional, o “a” dos prefixos, o desaburguesado. E ele joga, improvisa, para,
é potência, sustenta, vai ao limite, repete, deixa-se atravessar por estados diversos: vai da
raiva à compaixão; da euforia à melancolia; da paixão ao medo. Na relação com objetos e
com o público, experimenta, brinca com estes estados. Em inúmeros exercícios, exploramos
também situações envolvendo as dimensões de espaço (como lugar) e tempo.
Como pedagogo, também tive (e tenho) que lidar com fraquezas e fantasmas nesta
busca, neste processo formativo. Ao fazer alusão logo acima ao chicote empunhado, refiro-me
a um processo provavelmente de autoflagelação que me persegue (agora talvez um pouco
menos) nas oficinas, e que se origina no fato de não ter formação em Artes Cênicas. Neste
sentido, sempre me senti “menos” perante os oficineiros e pares aprendizes, por formular
sempre ideias de que, corporalmente e subjetivamente, estava aquém daquilo que, sem que
ninguém cobrasse efetivamente, seria o “ideal para um aprendiz de clown”: alguém
proveniente das Artes Cênicas, ou com conhecimentos mais aprofundados sobre teatro etc.
Fantasmas... E fantasmas aos quais eu passei a mostrar mais a língua a partir das próprias
imersões nos dias, ou melhor, nas noites de Oficina, a partir da ideia da aprendizagem em
44 CEDEI 2014 – UFSC – Ricardo Augusto Rocha
camadas de cebola (e daí se eu fosse uma Cebolinha?) e principalmente da forma humana e
acolhedora com que sempre fui abraçado pelos “traceiros” e aprendizes.
Para falarmos um pouco mais sobre a natureza do processo formativo de um clown, e
que também nos ajudará na compreensão de alguns conceitos, faremos menção ao trabalho de
pesquisa de Kátia Maria Kasper (2004) em sua tese de doutoramento. Kasper acompanha um
processo de formação do clown pessoal desenvolvido no LUME. Em seu trabalho, a autora
aborda a história de diversos palhaços contemporâneos, analisa o papel político do palhaço e
retoma, a partir de Espinosa, a dimensão política da alegria. A escolha desta nova referência
para a elucidação de questões aqui colocadas deve-se não somente à pertinência temática e à
riqueza teórica e metodológica que salta do material investigado, mas também pelo fato de
que as elaborações da autora dialogam quase que diretamente com o processo de subjetivação
a que venho me disponibilizando na Oficina da Traço Cia de Teatro. A cada parágrafo,
proposição, questionamento e resposta à perguntas de suas entrevistas, é como se aquele
arcabouço, num camada mais externa da cebola, conseguisse explicitar teoricamente as
impressões sensíveis de um aprendiz de clown que agora busca investigá-lo não mais pelo
corpo apenas, mas pelo estado da arte acadêmico.
No relato da entrevista que faz com uma atriz, de forma bastante sintética e por demais
arrebatadora, nos deparamos com uma compreensão da importância política do palhaço que
congrega, como se presenteasse nossos esforços até aqui, a crise da experiência, da mímesis e
da tradição escolar da sociedade burguesa, ao mesmo tempo em que atribui ao palhaço um
papel que define-se, senão como revolucionário, mas minimamente como transgressor,
contestatório.
Conversando, em outra região do planeta, com uma atriz que saiu de
Genebra e foi ao Canadá fazer um workshop – também na linha de clown
pessoal -, perguntei-lhe a que ela atribuía o sucesso do clown nos últimos
anos. Busca pelo clown que ocorre em todos os lugares de que temos
notícias. Barbara Firla disse que, em um mundo que só apelas para a
eficácia, a única solução é o clown. (KASPER, 2004, p. 68; grifos no
original).
Ora, é justamente a primazia da eficácia, isto é, da racionalidade e da técnica burguesa,
industrial, discutida por Momm (2011) a partir de Benjamin e que suprime a experiência e a
mímesis de que Barbara Firla, a atriz entrevistada acima, está falando. O palhaço, como é
possível constatar nesse e em outros relatos presentes na tese, é compreendido pelos próprios
autores das palhaçarias como um ponto de resistência, questionamento, crítica e (por que
não?) via de implosão da realidade e da sociabilidade postas.
Corpo, mímesis e imaginação: o clown como possibilidade de trabalho pedagógico no âmbito da Educação Infantil 45
A importância (que talvez possamos entender também como potência) política do
palhaço, a qual nos espeta quando pensamos nos “patatis” e “patatás” com suas narrativas
prontas e acabadas, seus figurinos espalhafatosos impregnados de uma estética
mercadológica, é recorrente nos depoimentos e fornece massa energética para que apostemos
no caráter transgressor do trabalho com clown na Educação Infantil.
Antes de continuarmos com estas incursões pelo trabalho de Kasper, é importante que
façamos uma pausa ainda sob o guarda-chuva da pesquisadora. Da mesma forma que se
questiona nesta pesquisa, a autora também indaga: “o que é um clown?” (KASPER, 2004,
69). Na busca pela resposta, Kasper revela que tentar aprisionar o clown dentro de um
conceito é arriscado, pois podemos reduzir as possibilidades de compreensão do que é o
palhaço, afirmando aquilo que ele é e também o que não pode ser, opção que “pode ser
limitante e restritiva”. A autora também discorre sobre a diversidade de escolas que trabalham
o clown, além dos vários estilos pessoais e explana suas opções metodológicas de fazer um
recorte de algumas destas escolas, o que, segundo a autora, não deve ser compreendido como
uma invalidação das demais. Na sequência, apresenta alguns dos principais aspectos de três
abordagens a respeito do clown por ela selecionadas: a do escritor Henry Miller, a de Federico
Fellini e a de Dario Fo.
Ao se debruçar sobre a compreensão de Henry Miller acerca do clown, Kasper (2004,
p. 70) encontra alguns elementos que nos interessam:
Miller pensava o clown filosoficamente, existencialmente, poeticamente.
Afirma que, para os clowns, o mundo não é o que nos parece, pois eles o
veem com outros olhos.
“O clown é o poeta ação. Ele é a história que representa. E é sempre a
mesma história retomada: adoração, devoção, crucificação.”
Ainda:
A alegria parece um rio: nada para seu curso. Parece-me que essa é a
mensagem que o clown se esforça para nos transmitir: que devemos nos
misturar ao fluxo incessante, ao movimento, não parar para pensar,
comparar, analisar, possuir, mas fluir sem trégua e sem fim, como uma
inesgotável música. (KASPER, 2004, p. 70).
Clown como possibilidade de existência, como magia e negação de parte da tradição
iluminista – já que ele é também, pelo menos até certo ponto, herdeiro dela –, negação das
relações conceituais com os objetos... Aqui vale retornar às percepções de Benjamin por
46 CEDEI 2014 – UFSC – Ricardo Augusto Rocha
Momm (2011, p. 104), quando a autora analisa um dos ensaios de Benjamin e discorre sobre a
relação do sujeito com o objeto.
Em Fellini, Kasper (2004, p. 71) identificará aspectos relacionados à rebeldia e
irracionalidade presentes no clown.
O clown “encarna os traços da criatura fantástica, que exprime o lado
irracional do homem, a parte do instinto, o rebelde a contestar a ordem
superior que há em cada um de nós.” Segundo Fellini, é uma “caricatura do
homem como animal e criança, como enganado e enganador. É um espelho
em que o homem se reflete de maneira grotesca, deformada e vê sua imagem
torpe. É a sombra.” (grifos no original).
Podemos identificar aqui aproximações com a problemática levantada por Richter e
Vaz (2010, p. 122) a partir de uma pesquisa de campo realizada entre 2005 e 2010 numa
parceria entre universidades (UFRJ, UFPR, UFSC e UNLP, esta última na Argentina) e as
redes públicas de Educação Infantil das respectivas cidades. Os autores, imbuídos da
preocupação de contribuir com a construção de práticas e saberes que impliquem em novas e
significativas possibilidades de formação corporal, contextualizam o estado da arte da
produção acadêmica que trata da compreensão do corpo no campo da Educação Infantil. Ao
mesmo tempo em que reconhecem o esforço de pesquisadores em formular ideias e propostas
que deem outros significados às práticas corporais com crianças deste segmento educacional,
alertam para o fato de que, a despeito destes louváveis esforços, o modelo educacional para o
corpo permanece compreendido como
[...] um modelo biopolítico, que tem como preocupação a vida da população:
saúde, bem-estar, qualidade de vida, segurança etc., mas que não deixa de
lado o corpo individual a fim de eliminar os comportamentos miméticos
arcaicos, ou, de outro modo, para moldar e asseverar hábitos por meio de
processos operacionalizantes, frutos de uma racionalidade que procura
dominar e controlar tanto a natureza externa como interna, reprimindo tudo
aquilo que a ela foge.
Ao analisarem as práticas corporais realizadas junto às crianças em instituições de
Educação Infantil, Richter e Vaz (2010, p. 127) levantam questionamentos quanto à primazia
da racionalidade e da assepsia, o “esforço em remover cheiros, sujeiras, detritos – e, assim,
arquivar elementos que caracterizam um passado disforme -, ao lado [...] dos programas de
dominação em que o corpo é visto como objeto, como coisa a se possuir”. E ponderam que
Talvez pudéssemos considerar a hipótese de uma racionalidade que procura,
a todo custo, evitar ou dominar os contatos, as expressões não
Corpo, mímesis e imaginação: o clown como possibilidade de trabalho pedagógico no âmbito da Educação Infantil 47
convencionadas, os gestos e comportamentos “inconvenientes” das crianças,
tudo o que diz respeito a uma “natureza” não totalmente dominada, como
uma atitude de fuga, de esquecimento ou, ainda, movida pelo esforço em não
se deixar misturar ao universo lúdico, indeterminado, confuso, não soberano:
que faz recordar não apenas nossa natureza não racional, mas que revela
também que tudo o que está aí pode ser outra coisa. (RICHTER; VAZ, 2010,
p. 129)
A partir dessas reflexões e dialogando com o que Kasper (2004) vem nos apresentando
acerca dos significados e possibilidades a partir das palhaçarias, parece-nos ficar cada vez
mais evidente as potencialidades de proposições pedagógicas com as crianças que tematizem
o tipo cômico do palhaço.
Voltemos aos referenciais pesquisados pela autora para a elucidação dos
entendimentos sobre clown/palhaço.
Analisando as contribuições de Dario Fo (KASPER, 2004, p. 73), a autora verificará
que “o clown é um conjunto de elementos que é muito difícil definir com precisão”, além de
perceber importantes aspectos estéticos e políticos:
Dario Fo aponta a necessidade de resgatar o aspecto político subversivo do
clown e lembrar que, na origem, ele era também um ser diabólico, vicioso,
maldoso. Diz que o clown tornou-se nos dias de hoje um personagem para
divertir as crianças, perdendo “sua capacidade de provocação, seu
engajamento daqui.
Segundo a autora, para Fo, “os clowns sempre falam da fome: fome de alimento, de
sexo, de dignidade, de identidade, de poder” (KASPER, 2004, p. 73). Trata-se de “fome”
semelhante a que Vigotski alude ao tratar da afetividade, dos impulsos e necessidades das
crianças quando formula sobre a brincadeira e a imaginação? Seriam “diabólicas” também as
necessidades e impulsos mais primários das crianças na relação com o novo, os objetos, o
mundo à sua volta?
Mas é ao nos revelar o clown Slava Polunin, considerado um dos maiores palhaços
russos da contemporaneidade, que Kasper (2004, p. 86) traz proposições as quais parecem
dialogar de forma aproximada com o aporte teórico que temos até aqui delineado:
Para Slava, conhecido mundialmente por seu espetáculo SnowShow e
considerado – para quem gosta de rankings – como o maior clown russo da
contemporaneidade, o clown tem três bases: a poesia, a filosofia e a crítica
social.
Para ele, um clown é uma outra versão do ser humano, ou talvez um
anti-humano. Ele coloca-se contra o ordinário – ele expressa essas coisas
que o ser humano normal esconde. Um clown é um segundo eu. (Grifos no
original).
48 CEDEI 2014 – UFSC – Ricardo Augusto Rocha
Poesia, diluição do sujeito com o objeto, subversão, possibilidades de existência,
magia, filosofia e crítica social. A partir deste mosaico de categorias que, evitando o
aprisionamento de conceitos, pode sustentar certo entendimento sobre clown, e considerando
as indagações colocadas até aqui, chegamos à pergunta que acreditamos sintetizar as
elucubrações conceituais para então balizar o desenvolvimento de práticas com crianças da
Educação Infantil a partir de palhaçarias: como abordar o clown no âmbito de uma
experiência pedagógica na Educação Infantil na perspectiva da superação de sentidos e
significados associados à dimensão recreativa frequentemente atribuída a esta figura?
Corpo, mímesis e imaginação: o clown como possibilidade de trabalho pedagógico no âmbito da Educação Infantil 49
4. CAPÍTULO III – SOBRE O PLANEJAMENTO DAS PALHAÇARIAS
Com o objetivo de analisar as potencialidades formativas do trabalho com o clown na
Educação Infantil, planejamos, desenvolvemos e acompanhamos uma experiência pedagógica
no âmbito da Educação Infantil da Rede Municipal de Florianópolis, cujo projeto
descreveremos, tal como ele foi “idealizado”, a seguir. Posteriormente, no capítulo seguinte, a
partir dos registros escritos, fotográficos, fílmicos e em áudio dessa proposição, procederemos
a análise qualitativa dos dados por meio de categorias de análise constituídas a partir do
cruzamento entre os objetivos da investigação, o referencial teórico e os dados produzidos
durante as intervenções com as crianças.
Em sua dimensão metodológica, a pesquisa se inspira nos referenciais da pesquisa-
ação, como alternativa possível para analisar e avaliar práticas docentes. Segundo Thiollent
(1997, p. 36), a pesquisa-ação pressupõe uma concepção de ação, que “requer, no mínimo, a
definição de vários elementos: um agente (ou ator), um objeto sobre o qual se aplica a ação,
um evento ou ato, um objetivo, um ou vários meios, um campo ou domínio delimitado”.
Ainda de acordo com Thiollent (1985), outra especificidade da pesquisa-ação diz respeito ao
relacionamento de dois tipos de objetivos: o objetivo prático, que se direciona ao melhor
equacionamento possível do problema considerado central na pesquisa, com levantamento de
soluções e proposta de ações correspondentes às soluções para auxiliar o agente na sua
atividade transformadora de uma dada situação. No nosso caso particular, esse objetivo está
estreitamente vinculado à possibilidade de problematizar o trabalho pedagógico com o
palhaço no âmbito da Educação Infantil, no sentido de pensar uma educação estética que
reflita sobre a própria pedagogia do corpo desenvolvida nas instituições de educação de
atendimento à crianças de 0 a 5 anos. E o objetivo de conhecimento, relacionado ao esforço de
obter informações que seriam de difícil acesso por meio de outros procedimentos ou, como no
nosso caso, de aumentar o conhecimento de determinadas situações (reivindicações,
representações, capacidades de ação ou de mobilização etc.).
A intervenção pedagógica, cujo planejamento descreveremos em seguida, foi
desenvolvida com o Grupo V de 2014 de uma creche da Rede Municipal de Florianópolis,
localizada em bairro urbano próximo ao centro da cidade, e na qual atuo diretamente como
professor de Educação Infantil. A instituição atende em período integral cerca de 130 crianças
entre 6 meses e 5 anos de idade, divididas em 7 grupos organizados por faixa etária, e conta
com 33 profissionais, incluindo direção, supervisão pedagógica, professores, auxiliares de
sala, cozinheiras e serviços gerais. O Grupo V é constituído por 18 crianças que têm entre 4 e
50 CEDEI 2014 – UFSC – Ricardo Augusto Rocha
5 anos de idade. É importante pontuar que a escolha desse grupo por parte do professor se deu
no início do ano, quando a creche, conforme calendário da Secretaria Municipal de Educação,
iniciou suas atividades, já considerando o desejo de realizar uma pesquisa-ação com o tema
do palhaço por conta da finalização do Curso de Especialização em Docência na Educação
Infantil, que vinha se delineando desde o final do ano de 2013. A escolha foi intencional,
considerando aquilo que nos indica a teoria histórico-cultural a respeito da brincadeira de
papéis sociais13
e nossa experiência na Educação Infantil, por já termos atuado com as mais
variadas faixas etárias, ainda que devamos perceber os aspectos do desenvolvimento infantil
tentando fugir de definições muito estanques quanto às faixas etárias.
Planejamos proposições para um período de duas a quatro semanas, dependendo das
contingências decorrentes do caráter não totalmente previsível da práxis pedagógica, com o
intuito de tematizar a figura do clown e os aspectos mais fundamentais de sua constituição,
fazendo alusão aqui ao que Matos (2009, p. 45) elenca, não como um manual que limite a
compreensão das dimensões abordadas, senão como um inventário de “bons conselhos” (nas
palavras da autora), como alguns pilares ou dimensões bastante relevantes na formação do
palhaço14
. Dentre eles, a máscara ou, a menor máscara do mundo, a “que menos esconde e
portanto, a que mais revela”, isto é, o nariz vermelho. Para a pesquisadora,
A máscara na linguagem do palhaço não é apenas um dispositivo simbólico
utilizado com o estrito fim de ilustrar a presença de um palhaço. Quando
usada com consciência, a máscara é um instrumento didático e estético,
técnico e ideológico capaz de colocar o artista em contato com dinâmicas
que lhe auxiliam no trabalho sobre um dos principais alicerces do trabalho
desta linguagem: o estado de palhaço (ou estado de clown). (MATOS, 2009,
p. 48).
As implicações que a máscara traz (ou pode trazer, dependendo de seu uso) para a
exposição do ator, no nosso caso para o que propomos aqui como o “professor-palhaço” e
para a “criança-palhaço”, são entendidas por Matos (2009., p. 47) como o estado de palhaço,
13
Facci (2006) nos dá alguns indicativos a respeito da brincadeira de papéis sociais.
Acompanhando as elaborações de Vigotski e outros expoentes da teoria histórico-
cultural, como Leontiev, Elkonin e Davidov, a autora parte do conceito de atividade
principal para tratar da periodização do desenvolvimento infantil e as
especificidades de cada faixa etária. Referindo-se à Elkonin (1987, apud FACCI,
2006, p. 13), a autora defende que ‘os principais estágios de desenvolvimento pelos
quais os sujeitos passam são: comunicação emocional do bebê; atividade objetal
manipulatória; jogo de papéis; atividade de estudo; comunicação íntima pessoal e
atividade profissional/estudo’. Para cada um dos estágios do desenvolvimento, na
linha do que já postulou Vigotski, há uma atividade principal, isto é, a atividade que
é a principal responsável pelos saltos de desenvolvimento da criança, o que não
significa única nem mesmo predominante. 14
A artista e pesquisadora realiza um trabalho de investigação acerca do percurso de
três renomados palhaços e elabora algumas proposições conceituais e metodológicas
na busca de subsidiar o trabalho formativo de novos clowns.
Corpo, mímesis e imaginação: o clown como possibilidade de trabalho pedagógico no âmbito da Educação Infantil 51
outro pilar ou dimensão da formação do palhaço e diretamente relacionado à máscara,
sustentado por ela.
Numa perspectiva didática, o nariz vermelho contribui [...] na formação de
uma lógica própria de ação e relação, dada pelo confronto que o artista
vivencia entre seu universo interior e os estímulos externos. A máscara no
processo de formação do palhaço colabora com o acionamento de uma
atitude de liberdade voltada à brincadeira e ao prazer de estar em cena, bem
como com a compreensão e manutenção do seu estado de palhaço, além do
exercício sistemático da comunicação e a exposição de características
corpóreas e dialógicas de cada artista. (MATOS, 2009, p. 47).
Outro aspecto indicado pela autora como indispensável na formação do palhaço, e,
portanto, no desenrolar das palhaçarias, é o que poderíamos chamar de encontro, de relação:
relação do palhaço com seu público, encontro de olhares. Obviamente, por se tratar de uma
dentre tantas outras variações de tipologias teatrais, a atuação clownesca não prescinde da
relação com o público. Quanto a isso, nenhuma novidade. A questão se coloca no campo das
peculiaridades desta relação “palhaço e público”, notadamente pelo fato de que é justamente
na dimensão da relação do palhaço com o público e com o mundo que se distingue palhaçaria
de outros gêneros teatrais/cênicos. Como bem ilustra Matos (2009, p. 53-54),
Na linguagem do palhaço, bem como na manifestação do tipo cômico, a
participação do público mostra-se ativa e, por vezes, indispensável. O artista
dispõe de uma percepção aguçada, atenta aos movimentos e elementos
acidentais presentes no meio, em especial aqueles advindos da plateia. O
repertório de um artista cumpre importante função na “conversação” que ele
estabelece com seu público e é, frequentemente, enriquecido pelos diálogos
travados durante os encontros (artista e plateia). O contato com o público
possibilita ao artista aprofundar seu repertório técnico, transformando e
sofisticando, ao longo dos anos, seu arsenal criativo.
A manifestação do palhaço sustenta-se no princípio da relação, uma vez que
a presença do palhaço se valida na presença do outro, no confronto do artista
com o outro e com o mundo. Partindo da diferenciação e da confrontação
vivida pelo contato com o outro, o palhaço expõe sua forma própria de estar
e de olhar o mundo.
Complementando, e encerrando as categorias do universo da palhaçaria que somarão
subsídios para a construção, desenvolvimento e análise das proposições com as crianças,
Matos trata de dois aspectos: um de caráter mais coletivo, histórico e universal, mas também
ligado à individualidade do palhaço, e que diz respeito ao conjunto de códigos construído e
reinventado ao longo do tempo no âmbito das tipologias cômicas próximas ou própria do
palhaço; e outro de âmbito mais pessoal, referente às formas mais peculiares e únicas que
52 CEDEI 2014 – UFSC – Ricardo Augusto Rocha
cada palhaço vai encontrando ao longo do tempo para imprimir ao seu próprio palhaço (ou
palhaços).
Neste sentido, podemos dizer que a autora compreende a construção desta tipologia
cômica (a do palhaço) a partir de um processo histórico ligado às manifestações teatrais
populares, a outros tipos cômicos e arquétipos, como os bufões, bobos, jogral e o louco, além
de ter relação e ser também derivado de tipos da commedia dell’arte italiana (MATOS, 2009,
p. 17-18).
Sobre esse conjunto de códigos e essa construção do palhaço que transita entre os
âmbitos coletivo e individual, diz a pesquisadora:
Na linguagem do palhaço, o texto dramático, em geral, não é organizado por
uma escrita literária. Tal condição auxilia o artista na maleabilidade de ação
e interação com as situações reais que se apresentam a sua frente. O texto,
quando presente, comumente não adota uma forma final. Assume
desempenho semelhante aos canovaccio da commedia dell’arte: roteiros que
servem de guia ao artista como forma de firmar sua sequência de jogos de
cena. Como uma partitura composta por pontos de referências, orienta a
interatividade do palhaço com o público durante suas performances.
Ainda que estruturado e codificado, os roteiros – definidos pela sucessão de
jogos que o palhaço utiliza em sua performance – apresentam constantes
modificações, embora sutis na maioria das vezes. Isso ocorre inclusive com
o trabalho de artistas que apresentam um mesmo espetáculo ao longo de toda
sua trajetória. Os motivos que guiam o artista a criar e representar um
determinado número são, por ele habitualmente transformados e
(re)significados no decorrer de seu percurso artístico. Com isso, modificam
aspectos de intencionalidades em suas ações (mesmo que as ações
aparentemente não se modifiquem).
Observamos, também, que os textos/roteiros são, frequentemente
organizados de forma a conferir flexibilidade ao artista em seu diálogo com
o público. Inserem espaços de abertura por ele preenchidos pelos imprevistos
que surgem no contato com o público.
O trabalho de improvisação, em geral, desenvolve-se por meio de
“imprevistos” não tão inesperados. A estrutura dramática na linguagem do
palhaço comporta espaços de fissuras que permitem ao artista recheá-los
com elementos “repentinos” decorridos do contato com a plateia e com o
meio. Uma vez codificadas às sequências de ações, essas fissuras são, em
geral, agenciadas pelo próprio artista que articula esses espaços de interação.
Os estímulos externos, sejam provocados ou inesperados, são utilizados e
aproveitados pelo artista. Após revelá-los à plateia, o palhaço responde aos
estímulos e reorganiza sua sequência de ações.
Muitos jogos surgem, de forma inusitada, durante o encontro do palhaço
com o público. Devido à resposta positiva da plateia, são codificados pelo
artista e integrados a sua sequência de ações. O processo de repetição e
sistematização desses jogos o instrumentaliza a descobrir diferentes modos
de “manusear” seu jogo e sua plateia. O palhaço (re)cria sua escrita
dramática, tornando sua ações, aos olhos de quem assiste, repletas de
vivacidade e espontaneidade. (MATOS, 2009, p. 56).
Corpo, mímesis e imaginação: o clown como possibilidade de trabalho pedagógico no âmbito da Educação Infantil 53
E, relacionado a essa dimensão de apropriação dos elementos clownescos que é
significada e reconstruída por cada palhaço, Matos faz referência a outro grande pesquisador
da arte da palhaçaria para ilustrar esta dimensão pessoal e subjetiva da construção ou do “ser
palhaço”:
Um avanço importante [...] é quando o ator encontra o modo de pensar de
seu clown. É o modo de ser e pensar do clown que determina todas as suas
ações e reações, sua dinâmica, seu ritmo. Não se trata de um pensar racional,
mas de um pensar corpóreo, muscular, físico [...]. É um pensar também
afetivo e emotivo. Mas, sobretudo, o aspecto corpóreo desta afetividade e
emocionalidade. (BURNIER, 2001 apud MATOS, 2009., p. 62-63).
É óbvio que nossa intenção não é a de formar clowns no trabalho com as crianças, mas
tematizar esta herança cultural no trabalho pedagógico na Educação Infantil, socializando e
problematizando elementos que constituem o palhaço, entendido, a partir do que expusemos
até aqui, como uma forma de se relacionar com o mundo, uma possibilidade de existência que
tem implicações estéticas, sensíveis, subjetivas, corporais. As categorias descritas acima
contribuiram para a orientação do planejamento e reflexão acerca das proposições. Ao mesmo
tempo em que levamos as crianças a terem contato com um inventário de objetos e situações
que povoam o universo da palhaçaria, observamos como se deram as apropriações das
crianças a partir deste (re)encontro.
Para as proposições desenvolvidas ao longo do período definido com o Grupo V da
creche em questão, foram pensados episódios. Utilizamos esse termo a fim de facilitar a
sistematização do planejamento e provocarmos em nós mesmos e nas crianças a imersão no
mundo da dramatização. Pensamos também em cenas, mas entendemos que, ainda que não
esteja previsto no planejamento, um mesmo episódio poderá contemplar mais de uma cena. A
princípio, cada proposição pensada para determinado dia da semana foi então chamada de
episódio. Cada episódio está estruturado em: título, objetivo, roteiro, recursos, organização de
espaço e tempo e formas de registro.
4.1. Episódio I – O que é o palhaço? E o que é do palhaço?
O objetivo deste primeiro episódio é captar os significados e impressões que as
crianças inicialmente atribuem à figura do palhaço.
54 CEDEI 2014 – UFSC – Ricardo Augusto Rocha
Roteiro
Socializar, com todo o grupo de crianças simultaneamente, imagens de palhaços
através de mídia eletrônica, a partir de pesquisa na Internet. Na escolha das imagens,
selecionar e disponibilizar figuras de palhaços muito conhecidos por crianças da Educação
Infantil, como o Patati-Patatá, e que já adquiriram um caráter mais mercadológico em sua
apropriação ou criação pela indústria cultural; e figuras de palhaços que sejam distantes do
universo das crianças, com o intuito de provocar um estranhamento e confrontar as
impressões das crianças entre o que já lhes é comum e o que se apresenta de novo, a partir de
uma outra estética.
Após a socialização das imagens, formar dois grupos de 4 a 5 crianças para uma
atividade de recorte e colagem. As demais podem se organizar em outros cantos de
brincadeiras por elas escolhidas. As crianças dos dois grupos são orientadas a pesquisarem em
revistas e outros materiais impressos objetos, indumentária e demais elementos que
componham a figura do palhaço. O material selecionado e recortado por cada criança será
colado em uma folha individual. Posteriormente, dispor as folhas individuais em um painel
coletivo que será exposto na sala e problematizado com o coletivo.
Recursos
Notebook para projeção das imagens em arquivos digitais a serem selecionados a
partir da Internet e salvos no notebook para a socialização com as crianças; revistas, livros e
outros materiais que possam ser recortados e que contenham uma diversidade de elementos
que possam vir a ser associados à figura do palhaço; tesouras, sendo 1 tesoura pequena para
cada criança que estiver nos pequenos grupos de pesquisa, recorte e colagem; cola branca;
folhas A3 coloridas; papel pardo; mesas para suporte dos materiais.
Organização de espaço e tempo
A proposição deve ocorrer na Sala de Referência do Grupo V, no período da manhã,
no intervalo entre o lanche matinal e o almoço.
Formas de registro
Fazer, além do recorte e colagem das crianças, registro fotográfico, fílmico, áudio e
escrito.
Corpo, mímesis e imaginação: o clown como possibilidade de trabalho pedagógico no âmbito da Educação Infantil 55
A análise da produção das crianças, bem como a análise das outras formas de registro,
deve subsidiar a reflexão para a construção do próximo episódio.
4.2. Episódio II – Esquete
O objetivo deste episódio é o encontro do próprio palhaço com as crianças do Grupo
V, em uma esquete estruturada criticamente a partir das manifestações e produção das
crianças no episódio I.
Roteiro
O professor, na condição de “professor-palhaço”, constrói um palhaço que dialoga
criticamente com as “pré-impressões” das crianças sobre a figura do palhaço, a partir dos
referenciais até aqui apresentados (KASPER, 2004; MATOS, 2009) e na perspectiva
benjaminiana do estabelecimento de uma relação mimética com os objetos que constituírem o
momento cênico.
A estética presente no corpo e na indumentária deste palhaço confronta ou dialoga
com as concepções reveladas pelas crianças no Episódio I e relativiza os padrões comumente
atribuídos à figura dos palhaços mercantilizados pela indústria cultural e esvaziados de sua
potência política.
O palhaço traz consigo uma mala e entra sem o nariz vermelho. Nesta mala estão
alguns objetos com os quais o palhaço irá interagir, brincar, explorar situações, sensações,
estados etc. Antes da brincadeira com o conteúdo da mala, o primeiro objeto que é alvo do
estabelecimento da relação mimética é o próprio nariz vermelho. Por entrar em cena sem o
nariz, expressa estado de tristeza e ansiedade, até que o encontra (o nariz estará escondido em
algum lugar previamente definido pelo professor-palhaço). O encontro e o jogo com as
crianças ainda é comedido neste momento, pois ele está fragilizado, acuado, até mesmo
envergonhado... Até que encontra o nariz e toda sua potência explode em seu corpo,
músculos, entranhas, fisionomia... E o encontro, de fato, acontece! Começa o jogo!
Além disso, deve-se combinar previamente com as crianças que tragam objetos,
brinquedos de casa no dia da esquete. Elas devem manter a informação em segredo! Na
montagem do palco, estes objetos são escondidos por elas e pela auxiliar de sala (sem que o
professor-palhaço saiba o que são e onde estão) em caixas, ou cobertos com algum pano,
tecido. A relação mimética também se dará com os objetos até então desconhecidos e que
deverão trazer surpresa para o palhaço.
56 CEDEI 2014 – UFSC – Ricardo Augusto Rocha
Recursos
A menor máscara do mundo, isto é, o nariz vermelho; figurino e maquiagem, que são
pensados a partir da análise dos registros do Episódio I, mas, a priori, que questione
concepções estéticas mercadológicas, padronizadas e, portanto, reducionistas; objetos que
constituam o espaço de jogo cênico e com os quais o palhaço estabelece relações; cadeiras,
almofadas, cortinas, iluminação e o que mais se fizer necessário para a montagem do espaço
teatral; mala de viagem.
Organização de espaço e tempo
A esquete é apresentada no refeitório da Creche, pois é o espaço com melhores
condições de abrigar uma proposição como essa em termos de organização do palco,
iluminação e acomodação das crianças. Além disso, por conta do próprio histórico de práticas
na Creche e do/com o Grupo, o refeitório é o espaço reconhecido como o local para as
contações de história, apresentações teatrais etc.
Enquanto as crianças brincam em cantos na Sala de Referência com a auxiliar de sala,
o “professor-palhaço”, com o auxílio de funcionárias da creche, organiza o refeitório para a
esquete. Quando o espaço está pronto, ainda são necessários 20 minutos para que o professor
organize seus materiais, figurino e maquiagem e coloque-se na condição de palhaço.
Com tudo pronto, as crianças são convidadas para a apresentação no “refeitório-teatro”
e para esconderem os objetos e brinquedos que trouxeram de casa.
Por conta do tempo necessário para a organização do espaço, da dinâmica da creche,
do tempo para apresentação e da disponibilidade mais frequente das crianças, a esquete é
realizada no período matutino, entre o lanche e o almoço.
Formas de registro
Registro fotográfico, fílmico e escrito.
O registro fotográfico e fílmico da esquete é socializado e problematizado com as
crianças posteriormente, num outro dia, constituindo outro episódio.
Corpo, mímesis e imaginação: o clown como possibilidade de trabalho pedagógico no âmbito da Educação Infantil 57
4.3. Episódio III – E agora? Como é o meu palhaço?
O objetivo deste episódio é retomarmos os significados e impressões que as crianças
agora atribuem à figura do palhaço, a partir de expressão artística.
Roteiro
Neste episódio, as crianças produzem um registro artístico a partir da pergunta “Como
é o meu palhaço?”. Cada uma expressa em uma produção artística a figura de um palhaço, ou
melhor, do seu palhaço.
Antes do desenho e pintura, as crianças entram na brinquedoteca da creche junto com
o professor. Neste ambiente, são orientadas a sentarem ou deitarem em almofadas e ficarem
de olhos fechados (poderemos utilizar vendas). Há uma trilha sonora, isto é, uma ambientação
sonora e que tem por objetivo criar um clima que favoreça a introspecção. Quando as crianças
estão prontas e dispostas, o professor lança provocações à imaginação: “como é o meu
palhaço?”, “que roupa ele está usando?”, “usa peruca, chapéu?”, ‘e o sapato, como é?”, “tem
alguma coisa engraçada nele?”, “e o rosto dele, como é?”, “está com o nariz?”, “usa
maquiagem?”, “ele ou ela está rindo?”, “o que ele está fazendo?”, “está brincando?”, “está
experimentando alguma coisa?”, “e o corpo dele, como é?”, “ele se mexe muito?”, “onde ele
está, que lugar é esse?”.
Após este primeiro momento do episódio, as crianças são conduzidas ao refeitório,
espaço em que são organizados e disponibilizados em mesas os seguintes materiais artísticos:
carvão, tinta hidrocor diluída em álcool e folhas de papel cartão cortadas em tamanho A3.
A atividade é realizada em três momentos, em que cada um deles um terço do grupo é
convidado pelo professor para o espaço da atividade, enquanto as demais crianças
permanecem na Sala de Referência brincando, ou na Educação Física, combinado que pode
ser feito com a professora também, de modo a não sobrecarregar a auxiliar de sala que ficará
com dois terços do grupo caso fique sozinha na sala. A organização da atividade em grupos
menores tem por objetivo uma maior proximidade e atenção do professor no momento da
atividade. É provável que o episódio se estenda por mais de um dia, de modo que o façamos
sem pressa, respeitando o tempo das crianças.
58 CEDEI 2014 – UFSC – Ricardo Augusto Rocha
Recursos
Equipamento para ambientação sonora; música em formato digital; vendas para os
olhos; almofadas; carvão; tintas diversas de hidrocor em álcool; pincéis; papel cartão branco
cortado em formato A3, papel pardo para forrar as mesas.
Organização de espaço e tempo
O episódio acontece na brinquedoteca e no refeitório, conforme descrito no roteiro.
Formas de registro
As próprias produções das crianças, que devem ser fotografadas uma a uma. Registro
fílmico do momento na Brinquedoteca. Registro escrito de cada um dos 3 momentos.
4.4. Episódio IV – Experimentando encontros e estados
O objetivo deste episódio é levar as crianças a brincarem com duas das dimensões
formação (ou do universo) do palhaço, quais sejam: o encontro (a relação) e o estado de
palhaço.
Roteiro
O grupo é organizado em roda.
A elas é explicado que, neste momento, nós começaremos a “brincar de ser palhaços”
mesmo... No nosso corpo, nos nossos sentimentos, no nosso rosto, no nosso “jeito de ser, de
conhecer as coisas novas”. Todas as dinâmicas são realizadas com metade do grupo
realizando e outra assistindo.
Primeiro momento: pulsar, velocidade. As crianças são convidadas a se
movimentarem pela sala. A caminhada é regulada pela numeração de 1 a 5, isto é, o número 1
é o caminhar mais lento e o 5 o mais rápido, praticamente de fuga. Enquanto caminham, as
crianças são orientadas a sempre terem um foco.
Segundo momento: o encontro. Ao caminharem (mais lentamente), devem buscar
encontros de olhares. Neste momento, começa-se também a explorar os estados de palhaço:
“estamos alegres”, “estamos felizes por estar aqui”, “meu corpo está feliz, animado,
sorrindo!”, são chaves que o professor-palhaço pode fazer uso para mediar a dinâmica. Ao
som do apito, as crianças devem congelar e sustentar a troca de olhares, até que, novamente,
Corpo, mímesis e imaginação: o clown como possibilidade de trabalho pedagógico no âmbito da Educação Infantil 59
voltem a caminhar novamente e se despeçam daquele olhar sem verbalizar, apenas com o
corpo. Sucessivamente, ao som do apito, novos encontros devem ocorrer.
Terceiro momento: salvamento. Caminhando para o final da dinâmica, agora o
encontro de olhares não é um simples encontro, mas uma relação da qual depende a
sobrevivência. Enquanto se caminha, o corpo vai caindo caso não se estabeleça a troca de
olhar, até que haja um novo encontro e a caminhada continue. Se for o caso, o corpo deve
repousar completamente sobre o chão no caso do não estabelecimento da troca de olhares.
Uma ideia para o encerramento é que os olhos se fechem e as “crianças-palhaços”
deitem, silenciem e respirem profundamente 3 vezes para então abrirem os olhos.
O outro grupo, que assistia, é chamado para a dinâmica.
Recursos
Pedir para que as crianças tirem os calçados e fiquem com uma roupa bem à vontade.
Pensar em alguma ambientação sonora.
Organização de espaço e tempo
A sala de referência, com as mesas e mobiliário bastante afastado, brinquedos coberto
e amplo espaço livre.
Formas de registro
Fotográfico, fílmico e registro em áudio da fala das crianças em roda ao final da
dinâmica, além do registro escrito do professor.
4.5. Episódio V – O encontro com a menor máscara do mundo: o nariz vermelho
O objetivo deste episódio é levar as crianças a mergulharem na condição e nos estados
de palhaço proporcionados pela máscara do nariz vermelho.
Roteiro
O grupo é organizado em roda.
A elas é explicado que agora, assim como na brincadeira de encontro de olhares,
mergulharemos ainda mais no mundo da palhaçaria: seremos palhaços! Todas as dinâmicas
são realizadas com metade do grupo realizando e outra assistindo.
60 CEDEI 2014 – UFSC – Ricardo Augusto Rocha
O primeiro grupo de crianças que irá brincar com a máscara é convidado a deitar-se
pelo chão da sala com certa distância dos colegas para que tenha liberdade de movimentos.
Há um nariz para cada criança, os quais são colocados quando as crianças estiverem já
disponíveis para a atividade. O ambiente conta com trilha sonora. O professor-palhaço passa
por cada criança que, com os olhos fechados, é “vestida” com o nariz vermelho ainda deitada
no chão. Quando todas estão com os narizes, novamente o professor passa por cada uma
delas, posiciona um espelho em frente ao rosto da criança, diz “Oi, palhaço(a)!”, espera que
ela abra os olhos, se veja e estabelece um encontro de olhares. Fala rapidamente com o
palhaço, pedindo para que continue deitado um pouco, pois irá acordar os amigos palhaços.
Quando todos estão com os narizes e são despertados, o professor-palhaço, que
também estará de nariz, inicia uma brincadeira de exploração de estados de palhaço. As
“crianças-palhaços” devem transitar por diversos estados: da tristeza à euforia, do medo à
raiva e assim sucessivamente. A mesma regra da caminhada a partir de números vale para esta
brincadeira. Para a exploração dos estados, o professor-palhaço pode verbalizar situações
como: “nossa, agora eu encontrei alguém de quem gosto muito, mas muito!”, “nossa, agora
estou num lugar que me dá medo, muito medo... Agora parece que estou sendo seguido por
alguma coisa!”... Etc.
Para finalizar, a caminhada é trazida de volta para o nível 1 (mais lento) e para um
estado de tranquilidade. As crianças devem deitar novamente, fechar os olhos, respirar 3
vezes profundamente, tirar os narizes e abrir olhos.
Recursos
Pedir para que as crianças tirem os calçados e fiquem com uma roupa bem à vontade.
Pensar em alguma ambientação sonora.
Dez narizes vermelhos.
Organização de espaço e tempo
A sala de referência, com as mesas e mobiliário bastante afastados, brinquedos coberto
e amplo espaço livre.
Formas de registro
Fotográfico, fílmico e registro em áudio da fala das crianças em roda ao final da
dinâmica, além do registro escrito do professor.
Corpo, mímesis e imaginação: o clown como possibilidade de trabalho pedagógico no âmbito da Educação Infantil 61
4.6. Episódios VI – Vivendo como palhaço
O objetivo destes episódios é relativizar práticas comumente realizadas com as
crianças durante os diferentes momentos que compõem a rotina pedagógica da instituição,
colocando-as na condição de crianças-palhaços.
Roteiro
Em situações da rotina, combinar previamente com as crianças que aquela situação é
vivenciada por todos, ou seja, por elas e professor, colocados na condição de palhaços. As
crianças são “crianças-palhaças” e o professor será “professor-palhaço”.
Em momentos como a refeição, a escovação de dentes, o Parque, entrada e saída, sono
etc, sempre que for combinado, os narizes, figurinos e maquiagem devem estar disponíveis.
Pensar sempre na possibilidade de relativização ou de novas relações com objetos,
situações, hábitos, processos de controle do corpo. Como uma “criança-palhaço” escova os
dentes? Como ela se alimenta? O corpo é apenas instrumento ou também expressão?
Como estas dinâmicas não têm um texto dramático pré-definido, mas se propõe a
desvelar justamente como se expressarão as “crianças-palhaços”, o roteiro não prevê muito do
que acontece, justamente por se tratarem dos momentos em que buscamos captar as
expressões e apropriações das crianças da tipologia do palhaço. Aqui, talvez mais do que em
outras situações, são de grande valia os registros.
Recursos
Figurino, nariz vermelho e maquiagem para as crianças-palhaços e para o professor-
palhaço.
Demais recursos que se fizerem necessários naquela situação da rotina e que serão
relatados nos registros.
Organização de espaço e tempo
De acordo com cada momento a ser vivenciado e relatado nos registros.
Formas de registro
Fotográfico, fílmico e escrito do professor.
62 CEDEI 2014 – UFSC – Ricardo Augusto Rocha
4.7. Episódio VII – Criança-palhaço e o jogo cênico
O objetivo deste episódio é colocar as crianças na condição de “criança-palhaço” em
um jogo cênico e observar as apropriações e expressões corporais das crianças ao serem
palhaços.
Roteiro
Criar uma “câmara de transformação” em palhaço, isto é, um espaço com o nariz
vermelho, maquiagem e figurinos em que a criança possa se caracterizar como palhaço.
Realizar um jogo cênico entre dois palhaços, um deles o próprio “professor-palhaço”,
outro a ‘criança-palhaço’. É interessante que o professor faça o papel de um palhaço Augusto,
fazendo com que a criança possa tomar a frente do jogo cênico.
Os objetos do cenário e a trilha sonora para a brincadeira são organizados a partir de
propostas e escolhas da própria criança que faz o jogo cênico.
As demais crianças assistem. Esta proposição depende muito da disponibilidade das
crianças em participar, ficando verdadeiramente na condição de um convite.
Enquanto a “criança-palhaço” se organiza para o jogo cênico, as demais brincam em
outro espaço.
Recursos
Figurino, nariz vermelho e maquiagem para as crianças-palhaços e para o professor-
palhaços.
Demais recursos e trilha sonora que se fizerem necessários naquele jogo cênico.
Organização de espaço e tempo
São utilizados o refeitório e a brinquedoteca para esta proposição. No refeitório estará
organizado o palco e brinquedos nas mesas enquanto a criança-palhaço se prepara.
Formas de registro
Fotográfico, fílmico e escrito do professor.
Corpo, mímesis e imaginação: o clown como possibilidade de trabalho pedagógico no âmbito da Educação Infantil 63
4.8. As palhaçarias e o magistério: o que se sucedeu, risos e angústias
Dentre os dias 16 de maio e 18 de junho de 2014, foram realizados 9 episódios
envolvendo atividades que tratam do universo das palhaçarias, a partir dos episódios
objetivados e organizados conforme o planejamento descrito anteriormente. Apresentando
esquematicamente, temos:
Episódio Data e período Referência
Episódio I 16 de maio – matutino O que é o palhaço? E do que é o palhaço?
Socialização de imagens de palhaços
Episódio II 20 de maio – vespertino Esquete: ‘A viagem do Palhaço Spoletta’
Episódio III 23 de maio – matutino
4 de junho – vespertino
E agora? Como é o meu palhaço?
Episódio IV 21 de maio – matutino Experimentando encontros e estados
Episódio V 27 de maio – matutino O encontro com a máscara (nariz vermelho)
Episódio VI A 22 de maio – matutino Vivendo como Palhaço
Episódio VI B 27 de maio – vespertino Vivendo como Palhaço
Episódio VII A 11 de junho – matutino A criança-palhaço e o jogo cênico
Episódio VII B 18 de junho – matutino A criança-palhaço e o jogo cênico
Cronologicamente, tivemos duas inversões na sequência dos episódios, como pode ser
observado quanto aos episódios III e VI A. Em relação ao primeiro, que envolvia a produção
artística de imagens de palhaço, o “atraso” decorreu da necessidade de preparação das tintas à
base de refil de hidrocor e álcool. Sobre o segundo, que acabou se antecipando em relação aos
subsequentes, o episódio registrado, apesar de estar previsto no planejamento, foi forjado
pelas crianças numa situação não previamente organizada pelos professores. A partir de
manifestações delas, disponibilizamos os materiais e sistematizamos aquele momento como
sendo um dos episódios, percebendo que o movimento delas ia em direção àquilo que
tínhamos como intencionalidade, e acreditando também que nos deparávamos com expressões
que eram resultado do trabalho com as palhaçarias que vimos desenvolvendo até então.
Ao acessarmos os registros imagéticos, fílmicos e fonográficos dos episódios
realizados com as crianças para análise dos dados produzidos, a primeira preocupação que se
colocou à nossa frente se refere ao desenvolvimento dos episódios: conseguimos realizar
aquilo que foi planejado? De que forma aconteceram os episódios? Ficamos muito distantes
do que foi projetado, ou nos aproximamos das proposições previstas?
64 CEDEI 2014 – UFSC – Ricardo Augusto Rocha
Faremos o relato das situações em que observamos disparidades entre aquilo que foi
planejado e o que de fato ocorreu. Os nomes das crianças serão preservados e empregaremos
nomes fictícios para preservação da identidade dos sujeitos. Ainda assim, manteremos a
fidedignidade quanto ao gênero das crianças, expressa nos nomes fictícios.
Com relação ao Episódio II, a esquete do Palhaço Spoletta (vide na sequência, na
segunda categoria) constatamos que havia algo no roteiro que acabou não acontecendo na
apresentação. Estava previsto que as crianças trariam objetos que seriam escondidos pelo
palco, com a ajuda da Auxiliar de Sala, de modo que Spoletta interagisse em cena com estes
objetos. Avaliamos que isto acabou limitando um pouco as possibilidades da intervenção
cênica, que tinha, dentre seus objetivos, a participação das crianças (ainda que indireta) nas
palhaçarias e a criação de situações de improviso que possibilitassem o engendramento de
situações em que a mímesis entrasse em cena (pensando na relação de Spoletta com estes
novos objetos).
O Episódio III (Como é o meu palhaço?) não contou com aquele momento inicial de
sensibilização, imaginação, projeção... Havíamos previsto que as crianças, antes de
elaborarem a arte de seus palhaços, pudessem relaxar e serem convidadas a imaginar uma
figura de palhaço. Da forma como aconteceu, em que organizamos os materiais e espaços,
convidamos as crianças para as pinturas individuais e fomos jogando as perguntas para que
elas compusessem seus palhaços, talvez tenhamos perdido a oportunidade de potencializar
ainda mais a dimensão imaginativa e criativa das crianças. Apesar disso, vale registrar que,
antes deste episódio, as crianças tiveram acesso a um livro (SILMAN, 2011) que foi edição
especial dos 25 anos do LUME, com muitas fotos e ilustrações de palhaços, de modo que
diferentes concepções estéticas do clown puderam ser apresentadas a elas.
Sobre o Episódio VI, o planejamento previa que fossem algumas situações da rotina
com as crianças que pudessem ser vividas a partir dos objetivos ali definidos. Em nossos
registros, localizamos apenas duas delas, o que, em nossa avaliação, poderia ter sido
ampliado. O fato deste episódio não ter ocorrido em um número maior de oportunidades de
certa forma já antecipa a problemática que será tratada em uma das categorias de análise a
serem apresentadas a seguir, qual seja, a que aborda a postura do professor-palhaço, ora mais
professor, ora mais palhaço. Teceremos mais considerações a respeito disso nas reflexões
sobre as categorias de análise.
O Episódio VII desdobrou-se em duas cenas distintas, uma no dia 11 de junho e a
outra em 18 do mesmo mês. Para as cenas deste episódio, estava pré-definido que o professor-
palhaço participaria da brincadeira com as crianças também como um palhaço. Certamente
Corpo, mímesis e imaginação: o clown como possibilidade de trabalho pedagógico no âmbito da Educação Infantil 65
pela falta de uma retomada do planejamento antes de realizar a atividade foi que, no momento
das apresentações das crianças, fiquei registrando e simplesmente esqueci deste trabalho de
palhaço Augusto que havia planejado. Esse “esquecimento” se deve também a um fator sobre
o qual deveria ter refletido mais ao planejar: nem sempre eu teria a parceria de outra colega
Auxiliar de Sala durante os episódios. Por conta dos horários de café dos professores e
funcionários, que são comuns nas unidades educativas, no decorrer de uma atividade com as
crianças o professor pode ficar sozinho com elas, o que dificulta a participação em um
episódio atuando como palhaço. Outro fator que, no caso do Grupo V, atrapalhou o
andamento não só dos episódios de palhaçarias, mas de todo trabalho com este grupo, reside
na frequente mudança da profissional Auxiliar de Sala do período matutino que vinha
trabalhar com este grupo. Desde o início do ano, a primeira profissional afastou-se por
problemas de saúde, foi readaptada, isto é, alocada em outra função na Rede Municipal de
Florianópolis que não seja a atuação com crianças. De lá prá cá, não houve uma Auxiliar de
Sala que permanecesse com o Grupo V no período matutino. Durante bastante tempo,
trabalhou-se com a ampliação de carga horária de profissionais que atuam no período
vespertino, o que na prática significa que a cada dia uma profissional diferente estava ao meu
lado e com as crianças para o trabalho pedagógico. Sem dúvida, nenhum professor gostaria de
passar por uma situação como essa, considerando a continuidade e progressão – mas também
as dissonâncias e as descontinuidades – de um processo educativo, sem tantas rupturas,
desgastes e recomeços.
66 CEDEI 2014 – UFSC – Ricardo Augusto Rocha
5. CAPÍTULO IV – ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS EPISÓDIOS
Saindo um pouco do aspecto mais organizacional dos episódios e debruçando-nos
sobre dimensões que nos parecem mais caras a este trabalho, alguns questionamentos que
colocamos a nós mesmos vão se constituindo conforme avançamos na observação crítica e
análise dos registros.
No rol destas indagações, encontramos algumas que, já no início da elaboração do
planejamento, povoando inclusive nossas angústias enquanto apenas pensávamos sobre a
proposição de um trabalho que envolvesse a tematização de palhaçarias com crianças da
Educação Infantil, tratam qualitativamente daquilo que foi planejado e do que de fato
materializou-se com as crianças na abordagem dos elementos clownescos na perspectiva do
que fundamentamos e objetivamos. Questões como: quais as possibilidades e limitações da
tematização das palhaçarias e da forma como organizamos os episódios com as crianças? De
que forma as crianças se apropriam destes elementos? O que são as palhaçarias para os
adultos e para as crianças, e como estas se relacionam com os elementos do mundo
clownesco? Existem essas especificidades? As crianças realizam a brincadeira de papéis
sociais ao serem palhaças? Ou, assim como buscam os adultos, “esvaziam-se” de convenções
e subvertem a ordem de forma consciente? Sobre esses dois últimos questionamentos,
poderíamos sintetizar: ao expressarem-se como palhaças, questionando regras e extrapolando
possibilidades, estariam as crianças mimetizando as referências das quais se apropriaram no
contato com as palhaçarias e brincando de palhaço como um faz-de-conta, ou teria a condição
de palhaço tornado-se uma objetivação internalizada, consciente e corporeificada das
crianças, como parece ocorrer com os adultos-palhaços? A partir desses questionamentos,
elaboramos a seguinte categoria de análise: O planejado, o vivido e das especificidades das
apropriações por crianças e adultos do universo da palhaçaria.
As perguntas acima até então nos deixam sem respostas, mas os registros apontam
situações que provocam ao menos reflexões e quiçá caminhos para o aprofundamento sobre o
tema. A proposição da categoria indica que já fazemos algumas escolhas: ao definirmos já em
seu título as especificidades das apropriações por crianças e adultos do universo da
palhaçaria, partimos do princípio de que sim, existem diferentes apropriações, mas talvez isto
esteja mais ligado ao aporte teórico que fundamenta este trabalho, neste caso a abordagem da
imaginação a partir da teoria histórico-cultural, do que de fato possamos constatar ao
transcrevermos áudio, observarmos imagens e registros fílmicos das situações vividas, que
talvez nos levem inclusive a enfrentar este ponto de vista.
Corpo, mímesis e imaginação: o clown como possibilidade de trabalho pedagógico no âmbito da Educação Infantil 67
Senão vejamos.
5.1. O planejado, o vivido e das especificidades das apropriações por crianças e adultos do universo da palhaçaria
Nos registros do Episódio IV, assistimos os registros fílmicos e elaboramos uma
sequência de relatos e reflexões:
O professor tenta preparar o grupo para o desenvolvimento do episódio. As
crianças são divididas em 2 grupos: um que participará observando, outro
que realizará primeiro a atividade.
O primeiro grupo é convidado a se deitar no chão e fechar os olhos.
Enquanto isso, o professor conversa com as crianças para se acalmarem,
relaxarem e se prepararem para o que virá, caminhando até o aparelho de
som para a execução da música e chamando a atenção de crianças que abrem
os olhos, se mexem, riem. (Transcrição de trecho do vídeo 01, Episódio IV).
Observando as crianças deitadas ao chão, aguardando o início da música, rindo,
abrindo os olhos, relaxando, questiono: o que essas crianças estão aprendendo com isso? O
sentido que eu atribuí ao planejar as atividades é o mesmo que as crianças atribuíram ao
participarem?
Após o momento de relaxamento, o professor passa por cada uma das
crianças e vai lentamente retirando a venda dos olhos de cada uma delas.
Pede para que levantem vagarosamente, o que é feito por quase a totalidade
das crianças (são 6). Neste momento, as crianças foram convidadas, no
âmbito da imaginação, a se locomoverem por um local do qual gostam
muito. (Transcrição de trecho do vídeo 02, Episódio IV).
Busca-se ativar a dimensão da imaginação nas crianças. As crianças se locomovem
pelo espaço. A pergunta é: o objetivo foi atingido?
É importante retomar que alguns episódios, como neste caso, são resultado de
adaptações das atividades de que participamos nas oficinas de palhaçaria da Traço Cia de
Teatro, ministrada para adultos.
As crianças continuam caminhando por este lugar imaginário. O professor
diz: ‘ai, o chão agora está quente! Então eu vou caminhar nº 2.’ [do 1 ao 5,
os números significavam progressão da velocidade, conforme acordado com
as crianças no início da brincadeira]
As crianças aceleram, o professor diz: ‘é só um pouquinho, é só um
pouquinho’, tentando conter a velocidade das crianças e fazer com que elas
caminhem apenas um pouco mais rápido do que no estágio anterior.
(Transcrição de trecho do vídeo 02, Episódio IV. Grifos nossos).
68 CEDEI 2014 – UFSC – Ricardo Augusto Rocha
Pensando nos episódios que aconteceram posteriormente, e considerando que a
metodologia previa que eles fossem inter-relacionados, surge a questão: os conteúdos
trabalhados neste episódio contribuíram de alguma forma para as expressões das crianças nos
episódios subsequentes?
A brincadeira continua:
O lugar imaginário está com o chão bem quente! As crianças já estão na
velocidade 5, pois o calor do chão é tanto que queima os pés. Há sombras no
local, e quem as encontrar pode se refugiar em alguma delas. (Transcrição de
trecho do vídeo 02, Episódio IV).
As crianças acompanham a mediação do professor que vai interferindo na caminhada,
inserindo elementos, modificando o ambiente. Quando sugere que as crianças se refugiem em
uma sombra encontrada, elas prontamente o fazem. E, além de se refugiarem, respiram de
forma ofegante, nitidamente num movimento corporal em que expressam não somente o
estado físico naquele momento, mas a brincadeira de faz-de-conta como se de fato estivessem
bastante afetadas pela situação imaginária do solo incandescente, pois em outras situações, em
que teriam corrido ou se movimentado muito mais e durante muito mais tempo, esse “corpo
ofegante” não teria se manifestado desta forma.
A provocação agora é para que as crianças, no lugar imaginário e sentindo-se
ameaçadas por algo que se aproxima, expressem medo. O professor vai
criando uma situação imaginária, como se algum ser se aproximasse delas, a
ponto delas ouvirem a respiração fungando no pescoço.
Não são todas as crianças que manifestam expressões corporais deste
sentimento. É importante também destacar que o professor vai ele mesmo
interpretando sensações, manifestando-as corporalmente, com o intuito de
que as crianças se apropriem e possam também manifestar.
As expressões são muito mais intensas quando a situação torna-se
extremamente perigosa e as crianças devem então correr.
As crianças se esconderam daquilo que as perseguia, estão sãs e salvas. No
entanto, diz o professor, aquela ‘coisa’ fez um feitiço. A partir deste
momento, quando as crianças forem se levantar para andar, terão sempre que
estar olhando para alguém, ou então cairão no chão. O olhar do outro é que
manterá as crianças salvas.
Elas topam a brincadeira, começam a se locomover na velocidade 1 pelo
espaço da sala, que na verdade é ainda aquele lugar imaginário (as mesas,
cadeiras e móveis foram todas afastadas).
[...]
As crianças andam pelo lugar, mas ainda não caem ao ficarem sem a troca
do olhar. O professor chama a atenção, e aí alguns começam a cair quando
ninguém os olha nos olhos. Começa então a brincadeira de salvamento dos
amigos, a troca de olhares. Percebe-se que as crianças querem elevar a
Corpo, mímesis e imaginação: o clown como possibilidade de trabalho pedagógico no âmbito da Educação Infantil 69
velocidade da movimentação para os níveis 2, 3, 4 e 5. O riso se faz presente.
(Transcrição de trecho do vídeo 03, Episódio IV).
O que as motiva a participar?
É a imersão neste faz-de-conta, é este mergulho interior que os adultos fazem ao
despertarem o processo de construção do palhaço? Ou é simplesmente a vontade de brincar,
talvez chegando a uma brincadeira de papéis sociais em algumas situações?
Destacamos esse excerto dos registros não só por nele encontrarmos elementos que
relacionam a dimensão da imaginação com a tematização das palhaçarias (estados de palhaço,
encontro de olhares), mas também por localizarmos algo que parece dialogar com a mímesis:
não podemos afirmar que as crianças se apropriam desta ou daquela forma da cultura corporal
manifesta pelo professor, mas ela se faz presente, e intencionalmente.
Ao final do episódio, mais uma situação que nos levou a refletir sobre a dimensão da
imaginação:
O primeiro grupo vai se despedindo da atividade. As crianças estão deitadas,
o professor orienta o processo de despedida: ‘vão dizendo tchau, abram os
olhos bem devagar e, ao abrirem, olhem para o amigo... olhem para o
palhaço que está do teu lado...’. Neste momento, as crianças vão se
levantando, trocando olhares e, sem que isso tenha sido solicitado, Emanuele
e Natasha trocam um abraço grande (de braços bem abertos) e sorridente. As
demais crianças, observando, juntam-se ao abraço. (Transcrição de trecho do
vídeo 04, Episódio IV).
Ao se abraçarem, estariam as crianças apenas trocando afeto ou brincando? Ou seria o
abraço a celebração por terem saído daquele lugar “sãs e salvas”, após os encontros, a fuga, os
novos encontros e os olhares?
Na ocorrência do Episódio VI A que, como já elucidamos anteriormente, foi
sistematizado a partir de manifestações das crianças e por isso antecipou-se cronologicamente
ao que vínhamos planejando, temos outro relato que remete à questão da imaginação e das
palhaçarias:
Uma das crianças, a que primeiro derrubou a comida na mesa, e uma das
últimas a terminar a refeição, continua brincando muito, mesmo sozinha.
Com o prato em uma das mãos, faz movimentos rápidos como se ainda
ingerisse alimentos, mas o prato já está vazio. Ela ri! Vai até o balcão da
cozinha, onde normalmente as crianças deixam a louça e os talheres sujos
quanto terminam uma refeição. Esconde-se debaixo da soleira do balcão,
lambe o prato e o deposita sobre o balcão. Eis que começa a lamber o
próprio corpo, como se ainda saboreasse a comida. Pega uma banana, vai
70 CEDEI 2014 – UFSC – Ricardo Augusto Rocha
pulando até a lixeira. Descasca. Vai rumo à escada que dá acesso à sala do
grupo V. No meio da subida, para, segura no corrimão, levanta uma perna e
a estica para o lado, abaixa a cabeça, gira, faz pose para a câmera, ri e sobe.
(Transcrição de trecho do vídeo 09, Episódio VI A).
A criança, assim como outros colegas, parece brincar explorando elementos
clownescos. A questão é: ela joga com o personagem, numa brincadeira de papéis sociais? Ou
aquilo é de fato um estado de palhaço que a leva a transgredir, como ocorre com adultos?
Já o Episódio VI B se deu a partir de nossa organização para mais uma abordagem das
palhaçarias com as crianças. Elas viveriam mais uma vez “experiências de palhaço”. Neste
caso, puderam explorar dimensões como os figurinos, a maquiagem, o nariz vermelho e, indo
além do que prevíamos (felizmente!), brincadeiras circenses e um, digamos... “jantar
clownesco”, que já fazia parte de nossas intenções.
Nesta oportunidade, organizamos a sala de forma que lembrássemos o ambiente
circense, teatral. Tecidos... Almofadas... Materiais como figurinos, maquiagem, narizes...
Decoração colorida... Camarim... Palco etc. As crianças retornavam do Parque com a Auxiliar
de Sala enquanto o professor organizava o espaço e materiais. Ao chegarem, são recebidas e
orientadas para que se sentem um pouco nas cadeiras e almofadas, e assim o fazem. Falamos
sobre a proposta, de que hoje elas poderão construir o seu palhaço, com o seu figurino, sua
maquiagem, o nariz vermelho e com o jeito do palhaço de cada um, seu corpo, seu jeito de
andar etc.
No relato, encontramos:
Uma das situações que mais nos tocou durante o trabalho aconteceu
justamente neste dia. Dentre os materiais trazidos para a ambientação
circense estava a ‘arara’ dos figurinos, que normalmente fica na
Brinquedoteca da Creche. Quanto mais as crianças iam compondo e vestindo
seus figurinos, menos eles se mantinham pendurados na arara pelos cabides.
Eis que, ao me levantar para atender o pedido de uma criança, vejo 3 ou 4
crianças penduradas na arara vazia pelo braço e pernas, o que imediatamente
me remeteu aos trapezistas. Palhaços-trapezistas! Crianças-palhaças
trapezistas! Era o que eu enxergava ali, e o que eu celebrava! (Extraído do
registro escrito do Episódio VI B).
Em alguma outra situação, o olhar do professor seria o mesmo? O quanto ele se deixou
contaminar, ou se fez contaminar pelos estados de palhaço, de modo que mediações mais
permissivas e libertárias se fizessem presentes naquele tempo e espaço? Questões sobre as
quais discutiremos mais na próxima categoria de análise. A iniciativa das crianças em se
dirigirem ao objeto e transformarem-no num trapézio circense, bem como outras situações já
Corpo, mímesis e imaginação: o clown como possibilidade de trabalho pedagógico no âmbito da Educação Infantil 71
mencionadas nas transcrições e excertos acima, remete-nos a alguns apontamentos teóricos
que definimos mais ao início do trabalho. Vigotski, ao tratar da brincadeira e sua importância
no desenvolvimento psíquico da criança, oferece grande importância à dimensão afetiva como
constituinte dos impulsos que levam a criança a brincar (o que para o autor não tem a ver
necessariamente com satisfação, mas muito mais com a realização de desejos, de tendências
irrealizáveis), e observa que a presença do que ele chama de “afetos generalizados” não
significa que a criança tenha consciência do porquê brinca, de forma consciente.
Simplesmente brinca. E aí voltamos a outro aspecto importante das formulações da teoria
histórico-cultural, que coloca a brincadeira como anterior à construção da imaginação, e não o
contrário. As crianças-palhaças foram até o objeto, buscando a realização de um impulso
afetivo, e transformaram-no num brinquedo. Sabiam elas que aquilo assemelhava-se a um
trapézio circense? Não sabemos. Ao observarmos o evento, imediatamente atribuímos a ele
este significado, porque nós, adultos, temos essa consciência ou, como diria Duarte15
(2007),
que partilha dos referenciais deste escopo teórico, já nos apropriamos desta objetivação,
estabelecemos com ela uma relação de “indivíduo para-si”, consciente da função social
daquele brinquedo que se constitui a partir da manifestação afetiva das crianças. O olhar para
as palhaçarias a partir dessas fundamentações parece reforçar a ideia de que as apropriações e
relações que as crianças estabelecem com os conteúdos das palhaçarias têm de fato
especificidades pertinentes ao aspecto geracional da infância. Mas... Se dentre nossos
objetivos tínhamos a intenção de propiciar experiências corporais diversas a partir da
tematização dos elementos clownescos, ufa! Ao menos as crianças, mesmo que ainda não
tenham consciência disso, “trapezearam”! E mais: mimetizaram? Provavelmente, ao
observarmos que mais crianças-palhaças iam se dirigindo ao novo brinquedo à medida que os
15
Duarte (2007., p. 27-28) propõe que, bebendo na fonte do materialismo-dialético, a
formação da individualidade se constitui por duas categorias de relação do
indivíduo com as objetivações (produções históricas e culturais) humanas. Nas
palavras do autor, “[...] Pode-se dizer que a formação da individualidade começa no
âmbito do em-si, ou seja, sem que haja uma relação consciente para com esta
individualidade. O indivíduo, quando criança, apropria-se da linguagem oral sem
que seja necessária nenhuma forma de relação consciente com essa linguagem. No
entanto, essa linguagem não deixa de assumir contornos individuais, ou seja, a
forma como cada pessoa utiliza a linguagem não é totalmente igual à forma de
nenhuma outra pessoa. [...] Mas, usando um exemplo completamente oposto, a
mesma atitude de utilização espontânea da linguagem não pode ocorrer quando não
se tratar mais de uma atividade cotidiana, mas sim de uma atividade científica,
artística, filosófica ou política. Pensemos no caso da atividade do professor, isto é,
pensemos na utilização da linguagem numa aula. Nesse caso, é evidente que o
professor não pode deixar de refletir sobre a linguagem que utiliza, não pode deixar
de manter uma relação consciente com essa linguagem. [...] Trata-se já de uma
linguagem para-si. [...] Já não se trata mais, então, de uma individualidade
assumida espontaneamente, mas sim de uma individualidade em constante e
consciente processo de construção.”
72 CEDEI 2014 – UFSC – Ricardo Augusto Rocha
primeiros se dependuravam e faziam suas estripulias. O entendimento da mímesis a partir de
Benjamin, os aspectos filogenético e ontogenético e sua potência transformadora no campo da
brincadeira das crianças (ontogênese mimética), como mencionamos anteriormente, ganha
sentido material, prático, objetivo quando observarmos o que é relatado, e dialoga com os
entendimentos apresentados pela teoria histórico-cultural. E, referindo-nos a ambas tradições
de pensamento, é certo também que o papel do professor, neste caso o professor-palhaço, é de
potencializar as possibilidades de vivências e experiências das crianças, oferecendo substratos
extraídos da realidade mesma e perpetuando (ou reconstruindo) dimensões do conhecimento
humano de modo a, num ato de resistência quanto aos condicionantes econômicos, sociais e
culturais de nossa contemporaneidade, enriquecer o acervo estético, sensível, afetivo e
corporal das crianças para que maiores sejam as condições de seus processos criativos,
imaginativos.
Ainda neste episódio, o relato nos apresenta:
Logo em seguida apareceu o ‘Palhaço Dofo’ (Breno), que depois se
chamaria ‘Palhaço Boto’. De repente, algumas ‘crianças-palhaço’ começam
a dizer: ‘eu troquei de nome!’, ‘eu troquei de nome!’... Mas são tantos nomes
que é difícil registrar.
A partir daí, passo a tratar as crianças pelo nome do palhaço, isto é, como
‘crianças-palhaço’.
A brincadeira continua, a mediação do ‘professor-palhaço’ também e as
crianças interagem. Observo o Palhaço Peruco dançando e provoco: ‘como é
que o Palhaço dança? Como é que o Palhaço dança?’,
“ – Oh, cada palhaço dança do seu jeito”, fala o professor.
E saem Peruco e Carangue dançando de um jeito que não é comum vê-los
fazendo em outros momentos de música e dança, com o sorriso no rosto,
postura diferenciada. Peruco estava sem o nariz, e peço que coloque.
A Palhaça Jane para em frente à câmera e mostra a língua durante um bom
tempo, arrancado risos do professor.
As crianças estão bastante envolvidas na brincadeira. Uma delas, reclamando
com a outra colega-palhaça que não a deixava pendurar-se no trapézio para
brincar também, é abordada pelo professor-palhaço. Este lhe pergunta qual
seu nome agora. Ela responde: ‘Palhaça Princesa’, e sem seguida abre um
sorriso. Volta a pedir para a amiga para se pendurar, mas agora com outro
humor. O palhaço Carangue passa por trás do trapézio, olha para o
professor-palhaço (que filma) e aumenta o volume da música. O Palhaço Paz
(ou Paes?) faz o mesmo, e o professor-palhaço o orienta quanto ao volume
ideal. [...]
Um fator interessante a ser observado é que a Auxiliar de Sala não se refere
às crianças-palhaças pelo nome do palhaço, mas pelo nome próprio.
(Transcrição de trecho do vídeo 03, Episódio VI B).
E, durante o jantar, mais uma brincadeira do gênero:
Corpo, mímesis e imaginação: o clown como possibilidade de trabalho pedagógico no âmbito da Educação Infantil 73
“ – Ai, Breno! Como estás lindo, Breno!”, diz a Professora Auxiliar de Ensino que
estava no refeitório, na mesa em que vão se sentando as crianças-palhaças do Grupo
V.
“ – Eu sou o Palhaço Boto!”, logo em seguida caindo do banco num acidente que, ao
invés de machucar a criança ou causar a braveza do professor e professores ao redor
como de costume, arranca risos do professor-palhaço que, ao se aproximar de Breno,
ops, de Boto para auxiliá-lo, novamente ouve: ‘eu sou o Palhaço Boto!’
Durante o jantar, que vai sendo registrado pelo professor-palhaço, Boto muda de
nome: ‘eu sou o Palhaço Xereta!’. E Garangue acompanha Boto: ‘eu sou o Palhaço
Espoletaaaaaaaaaa!’.
(transcrição do vídeo 07, Episódio VI B)
Estes momentos do episódio VI B são bastante elucidativos, ou ao menos
provocativos, para que façamos a reflexão sobre as formas de apropriação, quiçá diversas,
realizadas por crianças e por adultos no contato com elementos do universo da palhaçaria.
Ao verbalizarem de forma tão enfática que estão trocando de nome, estariam as
crianças indicando que, ao serem crianças-palhaças, ou simplesmente palhaços, estão
explorando uma objetivação humana da qual vão se apropriando, que para elas é a
personagem palhaço, e interpretam este papel? A mudança de nome, verbalizada junto aos
colegas, é impulso afetivo? Ou já é possível pensarmos na hipótese que, a partir de tudo que
lhes foi apresentado até então, já vivem esta condição numa outra condição de consciência,
criadora imaginativa? Elas vão repetindo, repetindo... A troca de nomes é também
brincadeira? A partir do que nos apresenta Momm (2011), remetemo-nos ao caráter libertador
e constituidor da autonomia da criança sobre esse “fazer de novo e de novo” ao brincarem. E
encontramos algo que talvez nos revele o caráter ao mesmo conservador e transgressor da
mímesis, apontado também pela autora: conservador por perpetuar as palhaçarias na
corporeidade das crianças como elemento de construção humana, com suas convenções,
princípio etc.; e transgressor, por não sabermos (não são palhaçarias?) quais as relações que se
estabelecem nesses devires.
Para caminharmos em direção ao final das reflexões em torno desta categoria,
trataremos agora de algumas dentre tantas situações registradas que se situam exatamente...
Nas palhaçarias! E agora pedimos licença e perdão aos referenciais teóricos a que vimos
aludindo mais frequentemente até agora, pois queremos nos reencontrar com o riso, com os
clowns, com este universo de que tanto vimos falando aqui, abordando-o a partir deste ou
daquele referencial. Parece-nos oportuno dedicarmos algum espaço nesta categoria para
escaparmos um pouco de abordagens que já nos são mais familiares para embelezarmos este
texto com imagens (mesmo que em palavras) das crianças-palhaças, do imprevisível, do ‘anti-
humano’, do subversivo, do riso (muitas vezes) instalado. É claro que, ao tecermos as
próximas narrativas e reflexões, não estaremos distantes de Kasper (2004), Matos (2009) e os
74 CEDEI 2014 – UFSC – Ricardo Augusto Rocha
referenciais por ela trazidos, como já demarcamos ao princípio do trabalho... Mas nos parece
que não seria tão rico o desfecho dessa etapa do trabalho, ou melhor, desta categoria se, mais
uma vez, o poético não se fizesse presente.
Não foram poucas as eventualidades em que, como nos aponta Matos (2009), um dos
pilares da constituição do ser-palhaço, qual seja, o nariz vermelho (a menor máscara do
mundo!), foi para nós motivo de muita reflexão, angústia, surpresas e... Risos! Seja nos
episódios de estados de palhaço, seja nos números (esquetes, brincadeiras) de crianças-
palhaças, a máscara do palhaço percorreu as mãos, testas e narizes das crianças, que ora
pediam para colocar, ora para tirar, em outros momentos mostravam uma relação afetiva, de
cuidado e em outros transformavam também a máscara. Se até agora temos refletido sobre as
apropriações e expressões das crianças na relação com o universo clownesco a partir de
Benjamin e da teoria histórico-cultural, parece muito apropriado dedicarmos atenção também
ao que pudermos elaborar tendo como perspectiva conceitos que materializam aspectos do
tipo cômico, do “ser palhaço”, e os quais buscamos brevemente elucidar.
O excerto abaixo, que narra parte do episódio em que trabalhamos sistematicamente o
encontro com o nariz vermelho, foi escolhido, dentre vários outros registros, por relatar de
forma eloquente um dos momentos em que parece se fazer presente uma notável força
mágica. A sala, apertada e mal planejada arquitetonicamente para o trabalho pedagógico com
crianças da Educação Infantil, não foi obstáculo para que se estabelecessem a relações e
expressões da maneira como o fora. Eram muitas crianças neste dia. Elas poderiam não ter se
aventurado na proposta levada pelo professor, solicitado outra brincadeira, mostrado
desinteresse, enfim. Mas...
O professor procura criar uma ambiência para o encontro com o nariz
vermelho, dialogando com as crianças que já estão deitadas e ao som do
Grupo Ânima – Álbum Espelho, mesma trilha sonora utilizada no Episódio
4.
As crianças estão com os olhos fechados, aguardando a colocação do nariz
vermelho. O professor passa por todas elas e coloca o nariz, elas
permanecem de olhos fechados.
A primeira a ser convidada a abrir os olhos é Emanuele. O professor-palhaço
também usa seu nariz vermelho. O professor-palhaço leva a palhaça
Emanuele até o espelho para que ela se veja nesta condição. Convida alguém
dos que estão sentados observando para acompanhar Emanuele neste
passeio, nesta descoberta do mundo que é novidade. Wellington se dispõe,
estende a mão para Emanuele e lá vão eles passeando.
A próxima é Kalinde. Quando é ‘despertada’, Wellington e a Palhaça
Emanuele estão passando ao seu lado. Wellington prontamente dá a outra
mão a Kalinde, e lá vão os três! O professor-palhaço vai junto. Os 4 param
em frente ao espelho, e o riso toma conta! Um riso sem som, mas expressivo.
Corpo, mímesis e imaginação: o clown como possibilidade de trabalho pedagógico no âmbito da Educação Infantil 75
Quem primeiro e de maneira mais intensa propõe o riso é o professor-
palhaço. Wellington, mesmo sem o nariz, parece reproduzir as expressões do
professor-palhaço, o mesmo modo de rir. As palhaças acompanham a
imitação.
O professor-palhaço convida Laís para acompanhar Kalinde. Wellington
continua com Emanuele e vai até os amigos que estão sentados. Há
interações, eles brincam, sem quase fazer ruídos, respeitando a ambiência e
os demais palhaços que ainda não despertaram. O riso agora já não está mais
apenas entre o primeiro grupo de crianças, mas também entre o grupo que
assiste.
O professor-palhaço desperta mais uma criança-palhaço, Tales. Eles trocam
olhares, o professor-palhaço diz algo a Tales e ambos saem rindo em direção
ao espelho. Laís e Kalinde (que usa o nariz) vão novamente até o espelho.
O professor-palhaço para em frente à plateia e convida Isaías para
acompanhar o palhaço Tales. O riso permanece presente no público.
Wellington e Emanuele (com nariz) param bem no meio da sala. Wellington
quer dançar! Os dois riem.
As palhaças Heloísa e Natasha, que ainda não haviam sido ‘despertadas’
pelo professor-palhaço, levantam e parecem estar ansiosas para que alguém
as acompanhe também. O mesmo acontece com Renzo.
Wellington e Emanuele vão até o professor-palhaço e brincam com o nariz
dele, tocando-o. Não fica claro se a intenção deles é apenas tocar, ou se
queriam talvez retirá-lo. Eles ainda riem.
Logo em seguida, enquanto o professor-palhaço dá a mão à palhaça Natasha
e a leva até o espelho, Wellington vem atrás com Emanuele e pede para
colocar o nariz utilizado pelo professor-palhaço. Este pede que ele aguarde.
O professor-palhaço e Natasha param em frente ao espelho, olham seus
reflexos, riem, Natasha mais contida. Entreolham-se, e Natasha aperta o
nariz vermelho do professor-palhaço, numa clara manifestação de
brincadeira.
Katia vem até os dois, pois quer acompanhar Natasha. Laís e Kalinde
dançam no centro da sala. Apesar de toda movimentação, os ruídos são bem
poucos: ouve-se a música e pequenos barulhos de movimentação das
crianças-palhaças e seus parceiros.
Pedro e Leo Rocha, os dois que ainda estão na plateia, cochicham algo sobre
o que observam. Pedro continua sorrindo. (Transcrição do vídeo 02,
Episódio V).
Quando nos debruçamos sobre os registros, há aqueles que provocam sentimentos de
dúvida, alguns mesmo angústia, sentimentos de desconforto – acreditamos – constituintes de
um trabalho de pesquisa que irá inevitavelmente revelar limitações, mais ainda quando se
trata de enveredar por territórios ainda não amplamente explorados. A despeito disso, há
também aqueles em que um estado de celebração toma conta do pesquisador-professor-
palhaço, celebração manifesta pelo riso mesmo que se instala ao revisitar o Episódio, agora
como observador, ou até, poderíamos dizer, como espectador. E é disso que se trata assistir o
registro fílmico fonte de transcrição deste relato. Talvez isto seja uma “irresponsabilidade
metodológica”, mas, ao observarmos a ida das crianças ao espelho, o apertar de narizes, as
manifestações espontâneas de dança ao meio da caminhada e, claro, o riso que toma conta
76 CEDEI 2014 – UFSC – Ricardo Augusto Rocha
daquele tempo e espaço, um riso quase silencioso, mas que revela outras potências expressas
nas fisionomias, nos corpos, nos tempos e nas relações, já não nos importa tanto de que forma
foram realizadas as apropriações ou a tentativa de avaliar qualquer processo de
desenvolvimento e aprendizagem, mas sim de apenas rir e estar junto das crianças naquele
momento, naquele estado.16
Outro excerto nos permite falar também da relação das crianças com o nariz vermelho.
Situações do gênero eram mais esporádicas, mas nos indicam fatores referentes ao aspecto
mais técnico das condições disponibilizadas para as palhaçarias, ao passo que também
revelam a presença de uma relação estabelecida com a máscara pelas crianças:
As palhaças já estão quase prontas! Já escolheram inclusive a música que
tocará no momento da entrada.
A Palhaça Pop pinta o nariz de vermelho e não coloca nariz. O professor
insiste para que ela use o nariz vermelho. Ela diz que não, que já pintou o
seu nariz. A pendenga continua, e ouve-se a Palhaça Barbie dizer à Pop:
‘ – Aí eles vão desconfiar que você é a palhaça!’, caso ela coloque o nariz
vermelho. Depois de muita insistência, acabo permitindo que ela fique
apenas com o nariz pintado.
Novamente, aos 23 minutos e 25 segundos do registro em áudio, uma
mediação que demonstra a persistência do professor para que a Palhaça Pop
coloque o nariz.
Ela aborda o professor e tem início um diálogo:
‘ – Professor, tu acha que assim ficou bom?’
‘ – Ótimo, linda, Heloísa! Muito engraçada! Mas acho que tu tem que botar
o nariz...’
‘ – Ahhhhh...’
‘ – Olha no espelho prá você ver, faz assim oh... Olha assim no espelho, aí tu
olha como é que tá. Aí tu bota o nariz e olha no espelho de novo. A palhaça
tem que ficar engraçada, Heloísa?! Olha lá, vê se acha que vai ficar legal
sem o nariz ou com o nariz. Experimenta, experimenta! Eu acho que vai
ficar legal com o nariz, vai ficar engraçado. Mas... Se tu não quiser
colocar...’
‘ – Ficou engraçado assim mesmo!”, sem o nariz.’ (Transcrição do registro
em áudio do Episódio VII A).
Quando falamos do aspecto mais técnico, referimo-nos ao material de que eram feitos
os narizes vermelhos disponibilizados às crianças. Eles eram de espuma vermelha, foi o que
mais engraçado, diferente e apropriado avaliamos ter encontrado nas lojas de Florianópolis
16 Falamos aqui dos estados de palhaço a que alude Matos (2009.), conforme
apontado nas fundamentações teóricas. A atmosfera captada na observação nos leva
novamente na direção não só da autora, mas também de Benjamin, quando discorre
sobre a dimensão temporal e efêmera da percepção das semelhanças. Neste caso,
semelhança reproduzida pelas crianças que vão se constituindo palhaças e pelo
pesquisador que, na condição de observador do pós-episódio, reconhece a força
mimética e a efemeridade do evento.
Corpo, mímesis e imaginação: o clown como possibilidade de trabalho pedagógico no âmbito da Educação Infantil 77
para o desenrolar dos episódios. No entanto, parece que algumas crianças sentiam-se um
pouco incomodadas ao colocarem o nariz: ele tem uma fenda cortada na espuma, que é aberta
e encaixada no nariz do palhaço, pressionando as narinas. Ainda que não tenha sido este o
caso, é algo que devemos considerar. De toda forma, Heloísa tem a máscara de palhaço no
rosto, pois, ao optar por não colocar o nariz de espuma, registra na ponta de seu nariz uma
marca de tinta vermelha.
E, concluindo esta categoria de análise, escolhemos um excerto e uma imagem que
revelam uma dimensão mais afetiva da relação das crianças com o nariz vermelho.
No episódio VI B, descemos ao Refeitório para o jantar com as crianças ainda
caracterizadas de palhaço. O Palhaço Paes (ou Paz? Ou Pais?), vivido por Wellington, nos
surpreendeu com um gesto de cuidado que não é comum em outras situações vividas pela
mesma criança. Algumas crianças pedem para tirar o nariz, notadamente pelo motivo da
ingestão do alimento...
[...] Outras crianças pedem para tirar o nariz, e peço apenas para que cada
um cuide do seu. Ou que prendam na testa, ou deixem ao lado do prato na
mesa. O jantar segue. Wellington, que vivia o Palhaço Paz, limpa o espaço
ao redor do prato, que tinha um pouco de arroz e feijão derrubados durante a
refeição e deposita novamente o nariz sobre a mesa, agora limpa por ele.
(Transcrição do vídeo 07, Episódio VI B).
Ele remove os grãos de arroz, de feijão e, cuidadosamente, coloca o nariz na área
limpa.
Concluindo, no dia em que realizamos o Episódio V (27 de maio), fomos
surpreendidos pela cena abaixo no momento de descanso.
Imagem 1
Crianças-palhaças permanecem com o nariz no momento do descanso
17. (Arquivo pessoal)
78 CEDEI 2014 – UFSC – Ricardo Augusto Rocha
5.2. Professor-palhaço, ora mais professor, ora mais palhaço, e das manifestações transgressoras das crianças-palhaças
Episódio 2: A viagem do Palhaço Spoletta
O Palhaço Spoletta sai para uma viagem com sua grande mala. Nela leva bergamotas,
bananas, utensílios de cozinha, secador de cabelo, brinquedos, água, detergente, bacias,
borrifador, extensão, escova de sapato, pasta de dente, pente, pincel, roupa de nadador,
sanfona e a letra do forró “Hit do Spoletta”. E, com toda essa bagagem, irá aprontar
inesperadas palhaçarias. Mas há um grave problema: ao iniciar sua viagem, percebe que está
sem o seu nariz vermelho...
Ao final da esquete, a sensação é de que há muito o que escrever e que é
difícil até organizar o que se deseja registrar. Consideramos este registro
importante, pois ele trata não só da quantidade (e talvez qualidade) de
elementos que podem ser objeto de análise, mas de uma dimensão não
racional ou verbal do episódio, senão uma dimensão justamente
corporal/sensível deste espaço de tempo em que ocorreram as palhaçarias.
Pois esta denúncia de uma intensidade que se fez presente durante a ‘viagem
de Spoletta’ vem do corpo do professor-palhaço, da sensação de tensão e
apreensão que se manifestava nos músculos por conta provavelmente da
‘preocupação professoral’ com o êxito da ‘atividade’ e que agora se
transforma em leveza, alívio, resignação, mesmo regalo. O figurino que
esteve grudado ao corpo durante o número está encharcado de suor. O corpo
está mais leve, move-se com menos resistência no espaço, parece que pode ir
muito mais longe, fazer o que antes não podia. Há uma serenidade... E um
riso, não necessariamente manifestado no rosto, mas instalado no corpo do
professor-palhaço. As preocupações sobre os resultados de um processo
pedagógico que normalmente afligem um professor em sua labuta
permanecem... Mas cedem espaço também a outras sensações.
O Spoletta entrou com sua mala, interagiu com o público, que era
formado por cerca de pouco mais de 60 crianças da Creche Anjo da Guarda.
Tentou estabelecer o encontro (pelo olhar) com as crianças e adultos
(professores e funcionários que também assistiam), mas teve um pouco de
dificuldade neste primeiro momento, certamente pela tensão que percorria o
17
Esta e outras imagens ao longo do trabalho foram intencionalmente desfocadas para
preservar a identidade das crianças e dos sujeitos envolvidos na pesquisa.
Corpo, mímesis e imaginação: o clown como possibilidade de trabalho pedagógico no âmbito da Educação Infantil 79
corpo e que Spoletta, tivesse entrado em cena com menos pressa, teria
desmontado com um ‘Yupi’18
. A procura pelo nariz mobilizou o público, que
acompanhava solidariamente a busca que Spoletta, comovido, fazia pelo
olfato de seu estimado e imprescindível nariz vermelho. A professora Maria,
com quem estava o nariz, encontrava-se lá atrás da plateia, e praticamente
todas as crianças viravam o pescoço ou mesmo se levantavam e olhavam
para onde ia Spoletta até encontrar o nariz. De posse dele, Spoletta retorna à
frente do palco, vai até o trocador que foi ali montado e veste-se com a
pequena e poderosa máscara.
Ao retornar, um dos momentos mais tensos acontece. Spoletta,
arriscando-se demais, diz:
“ – Ah, agora que já estou com o meu nariz, já posso seguir minha
viagem, né?!..”
Levanta sua mala e começa a se retirar.
Uma grande parte das crianças manifesta-se:
“ – Nããããããaão!”
Mas eis que vem outro manifesto:
“ – Pode!”, isto é, pode ir embora sim...
Uma tristeza afeta o professor-palhaço... E a apreensão por ter que
encerrar ali mesmo a esquete. Ele fita o público e tenta expressar essa
angústia corporalmente.
A manifestação das crianças agora divide-se: parte defende a saída
do palhaço, mas uma outra parte, que agora equilibra o jogo, diz que não,
que o palhaço deve continuar.
Spoletta então pergunta:
“ – Vocês querem ver o que eu levo na mala?”
E, ufa! A resposta mais forte, e bem mais forte, é:
“ – Sim!”
18
“Yupi” é uma técnica que foi trabalhada com os oficineiros da Traço Cia de Teatro.
Trata-se de uma preparação corporal e espiritual (sem caráter religioso), que deve
ser realizada no instante da pré-cena, de modo a colocar o palhaço na condição
mesma de palhaço, na perspectiva daquilo que vimos estabelecendo como alguns
princípios do “ser palhaço” conforme aponta Matos com seus estados de palhaço e
Kasper (2004.) com os elementos que constituem a força política, estética e
subjetiva a partir de referenciais históricos do palhaço. Deve-se despojar da
racionalidade, despir-se mesmo, e levar o corpo ao estado de palhaço, num outro
tempo, numa outra relação com o mundo e consigo mesmo. Sem representações.
Simplesmente “Yuuuupiiii”!
80 CEDEI 2014 – UFSC – Ricardo Augusto Rocha
Spoletta coloca a mala sobre o chão e começa os ‘encontros com os
objetos’. A primeira revelação é de uma toalha de mesa, com a qual Spoletta
interage junto às crianças produzindo vento e sons, para depois coloca-la
sobre a mesa que estava no palco. Ele volta à mala, acha a bergamota e os
utensílios para se fazer um suco: jarra, pote, socador, peneira, garrafa d’água
e borrifador. O palhaço coloca todos os objetos sobre a mesa (agora
decorada), senta-se, pega a bergamota, vai até as crianças que estavam mais
próximas a ele e oferece-a para que sintam o cheiro. Volta à cadeira e,
levantando a bergamota para que todos a vejam, sente o cheiro ruim que é
exalado de suas axilas. Risos. Começa a descascá-la. Descasca... Descasca...
E, eis que come um pedaço da casca. Neste momento ouve-se um: “ – Ele
comeu a casca! Ui!”, manifestavam algumas crianças. Spoletta prossegue,
até bem ter descascado a bergamota, sentir o cheiro, comer mais alguns
pedaços de casca, gomos, os quais, conforme mastiga, devolve à mão para
coloca-lo num pode transparente de plástico que estava sobre a mesa. A
atitude causa repulsa, principalmente nos adultos. O palhaço insiste, sendo
ainda mais... Digamos... Visceral na relação com a bergamota. Mastiga,
arranca pedaços da fruta, tira pedaços da boca, coloca-os sem muita
delicadeza no pote, cospe alguns restos que ficaram na boca, com semeste,
casca, bagaço... Grunhidos de asco são ouvidos da plateia.
Tem início então o processo de esmagamento dos restos da
bergamota. Ouve-se manifestações como: ‘o que será que ele tá fazendo?’...
Burburinho na plateia. O palhaço adiciona água à mistura. ‘ – É suco, é
suco!’. Mistura feita, Spoletta apanha o borrifador, retira a tampa e enche o
vasilhame com a mistura. Fecha. Leva o borrifador até debaixo da axila
direita e... Pronto, agora está perfumado! Risos na plateia. O palhaço
levanta-se e, adivinhem? Lá vai perfume no público. As crianças ficam
muito eufóricas! Alguns adultos também! Spoletta chama algumas crianças
para brincarem com ele no palco: contando 1, 2, 3 e já com a ajuda do
público, o palhaço, ao invés de no final da contagem borrifar o perfume na
axila da criança, espirra a mistura na boca aberta da vítima depois do
jááááááááá!
De volta à mala: Spoletta coloca o ‘perfume’ sobre a mesa, vai
novamente até a mala e, olhando para a plateia, diz: ‘ainda estou com
fome...’. Encontra duas bananas. Retira os objetos que estavam na mesa,
coloca as bananas, senta-se. Silêncio na plateia. Descasca vagarosamente
Corpo, mímesis e imaginação: o clown como possibilidade de trabalho pedagógico no âmbito da Educação Infantil 81
uma das bananas. E come. Tudo. Não sobra nada. Novamente: “ – Ui, ele
comeu a casca!”.
Outra revelação: agora o secador de cabelo, que na mão de Spoletta
vira objeto para se colocar na boca, arma... O que chama a atenção neste
momento: as crianças, de forma muito intensa, gritam com o palhaço quando
ele leva o secador à boca, dizendo que ‘é de cabelo! É de cabelo!’. Spoletta
repete o gesto de levar o secador à boca e novamente as crianças exclamam:
“ – Não! É de cabelo! É de secar cabelo!”. Elas também pedem para que ele
ligue o secador, e ele assim o faz, mas colocando-o na boca e brincando com
a reação no corpo. Risos. Spoletta encontra e revela outros objetos da mala:
detergente, uma forma de gelo perfurada, uma bacia e uma raquete. O
palhaço prepara uma mistura e bolha de sabão. Com a mistura pronta, brinca
um pouco com a plateia, ligando o secador, para então mergulhar o forma de
gelo perfurada na mistura e fazer bolhas de sabão com o vento quente do
secador. As crianças mais à frente levantam-se para apanhar as bolhas.
Spoletta dirige-se à mala para guardar o secador de cabelo e sente
algo preso entre os dentes: será um pedaço da casca da bergamota ou da
casca de banana? E dirige-se à plateia: ‘banana... banana presa aqui nos
dentes...’. Vai até a mala, procura alguma coisa que o ajude... Revela para a
plateia um pincel, que diz: ‘não!’; depois, um pente de cabelo, e novamente:
‘não!’; por último, uma escova de lustrar sapato, e ouve: ‘é muito grande!’.
Retira uma pasta de dente do bolso e, como auxílio de uma das crianças,
coloca a pasta de dente na escova e... Lá está o palhaço escovando os dentes!
Esse foi um dos momentos em que a plateia manifestou de forma mais
acentuada um sentimento de repulsa, estranhamento (principalmente os
adultos).
Depois da escovação, Spoletta está pronto para um dos momentos
mais marcantes da esquetes: a troca de roupa atrás do trocador! O palhaço
vai até a mala e encontra sua roupa de nadador. Revelando-a parcialmente ao
público, vai para trás do trocador. Neste momento é executada a única trilha
sonora da esquete. Enquanto se troca, Spoletta vai revelando pelo lado do
trocador as peças de roupa que vai tirando, inclusive a cueca. Risos! A
trocação acaba por demorar um pouco. Neste momento há algo de
interessante, além da própria trocação. O ‘professor-palhaço’, não mais de
fronte à plateia, parece fugir um pouco agora da exposição ao público e
encontra-se sozinho, protegido. O cansaço revela-se de forma mais intensa, o
82 CEDEI 2014 – UFSC – Ricardo Augusto Rocha
corpo parece não conseguir sequer virar a nova camisa que está do avesso
para vesti-la. Tensão.
Imagem 2
O Palhaço Spoletta sai de trás do trocador, agora com outro figurino. (Arquivo pessoal)
Com a roupa de nadador, Spoletta apresenta-se novamente ao público
e seu novo figurino arranca muitos risos da plateia! A escada que está ao
lado do palco é apanhada e disposta para algo que se anuncia. O ‘palhaço-
atleta’ vai até a mala e encontra outro objeto de importância para este
momento: a pequena bacia de vidro azulado que é transformada então em
piscina, preenchida de água aos pés da escada. Spoletta começa a subir: tem
início seu ‘mergulho’. O corpo é grande, pesado... A escada é franzina,
pequena... Tudo balança, o palhaço tem medo. “ – Sobe mais!”, “ –
Mergulha!”, “ – Mais alto!”, é o que se ouve. O público faz a contagem para
o mergulho de Spoletta que... Não acontece. Spoletta brinca com o corpo
grande, pesado e desajeitado, levantando a perna já quase no degrau mais
alto da escada, quase caindo... E não mergulha. O palhaço, sabendo que
decepcionou o público, desce as escadas, coloca-se diante os espectadores,
apanha a bacia de vidro e derrama a água sobre o corpo. Ouve-se um coro: “
– Bem feito! Bem feito!”.
Agora a última revelação dos segredos de viagem: o Palhaço vai até
a mala e revela a sanfona e a letra da música ‘Hit do Spoletta’. Com a ajuda
de uma menina do Grupo VI, pendura a letra da música na escada de modo
que todos possam acompanhar os versos do forró que será entoado. Spoletta
primeiro explora um pouco os acordes e o ritmo na sanfona, arrancando
palmas ritmadas da plateia. Então cantarola, brincando principalmente com o
último verso da segunda estrofe:
Corpo, mímesis e imaginação: o clown como possibilidade de trabalho pedagógico no âmbito da Educação Infantil 83
Hit do Spoletta
(letra e arranjo: Ricardo Augusto Rocha)
Os segredos da viagem
Na mala estavam guardados
Mas agora todo mundo
Já sabe de salteado
Na Creche Anjo da Guarda
A palhaçada se achego
A banana com a casca
Depois vai virar ...
As crianças muito lindas
Que gostam de uma pipoca
O palhaço Spoletta
Agora se vai embora
E vai saindo de cena! Um fato inesperado: ao tentar sair por uma das
portas do refeitório, a mesma estava trancada. Uma professora, que auxiliava
Spoletta durante a apresentação, abre a porta ao lado, da Sala de Professores,
e o palhaço tenta sair por ali, mas a professora não percebe e fecha a porta na
cara do palhaço. Ele permanece em cena, cantarolando, tocando e tentando
ainda sair... Até que outra professora que está na plateia percebe e abre a
porta finalmente. Ufa!
Aplausos. (Extraído do registro escrito do Episódio II)
Talvez com muito mais força sensibilizadora do que quaisquer grandes elucubrações,
o relato possa pintar o quadro da categoria a ser pincelada agora, em que aparecerão as figuras
do professor e do palhaço. Não sabemos ainda se são duas figuras distintas, ou se aparecem
personificadas num só corpo e, se quando não estão amalgamadas, mais guerrilham do que
brincam. Notaremos que as cores deste quadro nem sempre denotam sabores mais palatáveis.
Na verdade, nos parece precisamente que há que se pintar outros e outros quadros, de modo a
aprimorar técnicas, evitar manchas e compor outros mosaicos.
A segunda categoria de análise é aquela que, sem dúvida, nos provoca mais dor na
escrita, pois trata de tema espinhoso: espinhoso não apenas para este trabalho, mas para o
Magistério em geral.
É que, observando os próximos registros, com bastante frequência estivemos diante de
uma contradição, pertinente não somente a este trabalho, mas à condição mesma do professor,
e que fica acentuada aqui justamente por aproximarmos ao universo da docência o tipo
84 CEDEI 2014 – UFSC – Ricardo Augusto Rocha
cômico do palhaço. Em muitos momentos, as duas figuras parecem realmente se divorciarem,
se é que estiveram em matrimônio.
Discorreremos sobre situações em que as crianças, palhaças ou não, manifestaram
movimentos que transgrediam as convenções ou as expectativas do professor, também
palhaço ou não, e de que forma este reagiu. Os relatos e reflexões denunciam a postura ora
mais clownesca, libertária e permissiva, ora mais controladora, autoritária e mesmo exagerada
(poderíamos dizer injustificada) do professor.
O Episódio IV contém uma cena que fornece subsídios para a tessitura das próximas
reflexões:
As crianças são convidadas a caminharem por este local imaginário e a
procurarem, encontrarem algo de que gostam muito. É curioso o fato de
caminharem e não se entreolharem mas, ao menos aparentemente, buscarem
pelo olhar este ‘tesouro’ imaginário e caminharem pelo local.
Enquanto as crianças caminham, é sugerido também a elas que se
movimentem conforme um valor de velocidade de 1 a 5: 1 para passos lentos
e 5 para fuga em alta velocidade.
Breno deita-se novamente.
[...]
Breno, deitado, responde à fala de uma das amigas que diz: ‘O Breno tá
deitado’, e ele retruca ‘Eu tô acordado’. O professor, notadamente
constrangido, tira Breno da brincadeira e coloca-o sentado em uma da
cadeira.
[...]
As crianças se esconderam daquilo que as perseguia, estão sãs e salvas. No
entanto, diz o professor, aquela ‘coisa’ fez um feitiço. A partir deste
momento, quando as crianças forem se levantar para andar, terão sempre que
estar olhando para alguém, ou então cairão no chão. O olhar do outro é que
manterá as crianças salvas.
Elas topam a brincadeira, começam a se locomover na velocidade 1 pelo
espaço da sala, que na verdade é ainda aquele lugar imaginário (as mesas,
cadeiras e móveis foram todas afastadas).
Mais uma vez, Breno é retirado da brincadeira pelo professor, retornando
logo em seguida, por realizar movimentos que fugiam daquilo que era o
combinado.
As crianças andam pelo lugar, mas ainda não caem ao ficarem sem a troca
do olhar. O professor chama a atenção, e aí alguns começam a cair quando
ninguém os olha nos olhos. Começa então a brincadeira de salvamento dos
amigos, a troca de olhares. Percebe-se que as crianças querem elevar a
velocidade da movimentação para os níveis 2, 3, 4 e 5. O riso se faz
presente. (Transcrição de trechos dos vídeos 02 e 03, Episódio IV).
Da mesma forma, no Episódio VI B, há uma cena forte (e entristecedora) que ilustra o
que pretendemos analisar nesta categoria:
Corpo, mímesis e imaginação: o clown como possibilidade de trabalho pedagógico no âmbito da Educação Infantil 85
O palhaço Carangue passa por trás do trapézio, olha para o professor-
palhaço (que filma) e aumenta o volume da música. O Palhaço Paz (ou
Paes?) faz o mesmo, e o professor-palhaço o orienta quanto ao volume ideal.
Num momento de alteração de humor, o professor-palhaço se exalta com o
Palhaço Boto, interpretado por Breno, pega-o pelo braço e quase que o
arremessa até a cadeira, onde o coloca sentado. Isto porque o Palhaço Boto
também mexeu no controle de volume de som, da mesma forma que os
demais, mas alterou a regulagem que o Palhaço Paes havia definido.
(Transcrição do vídeo 03, Episódio VI B).
Adorno (1995), em seu texto sobre os tabus do magistério, faz ácida e corajosa
problematização acerca da profissão docente e algumas de suas principais mazelas.
Estabelecendo semelhanças entre o fazer pedagógico e heranças do militarismo, o
contemporâneo e colega de Benjamin na Escola de Frankfurt mexe na ferida daquilo que
normalmente procuramos ocultar ou recalcar na lida com os alunos, e que tem a ver com o
papel do professor e a relação que se estabelece entre professor e aluno.
Por trás da imagem negativa do professor encontra-se o homem que castiga
[...].
Mesmo após a proibição dos castigos corporais, continuo considerando este
contexto determinante no que se refere aos tabus acerca do magistério. Esta
imagem representa o professor como sendo aquele que é fisicamente mais
forte e castiga o mais fraco. Nesta função, que continua a ser atribuída ao
professor mesmo depois que oficialmente deixou de existir, e em alguns
outros lugares parece constituir-se em valor permanente e compromisso
autêntico, o docente infringe um antigo código de honra legado
inconscientemente e com certeza conservado por crianças burguesas. Pode-
se dizer que este não é um jogo honesto, limpo, não é um fairplay. Esta
unfairness (desonestidade) – e qualquer docente o percebe, inclusive o
universitário – também afeta a vantagem do saber do professor frente ao
saber de seus alunos, que ele utiliza sem ter direito para tanto, uma vez que a
vantagem é indissociável de sua função, ao mesmo tempo em que sempre lhe
confere uma autoridade de que dificilmente consegue abrir mão. Esta
unfairness existe na ontologia do professor, na medida em que
excepcionalmente posso usar o termo ontologia neste contexto. É só pensar
como o professor universitário pode dispor da cátedra em longas exposições
sem qualquer contestação, para se compartilhar este resultado.
[...] Mas de um certo modo não é somente a profissão do magistério que
impele o professor a unfairness: o fato de saber mais, ter a vantagem e não
poder nega-la. Ele também é impelido nessa direção pela sociedade, e isto
me parece mais profundo. A sociedade permanece baseada na forca física,
conseguindo impor suas determinações quando é necessário somente
mediante a violência física, por mais remota que seja esta possibilidade na
pretensa vida normal. Da mesma maneira as disposições da chamada
integração civilizatória que, conforme a concepção geral, deveriam ser
providenciadas pela educação, podem ser realizadas nas condições vigentes
ainda hoje apenas com o suporte do potencial da violência física. Esta
violência física é delegada pela sociedade e ao mesmo tempo é negada nos
delegados. Os executantes são bodes expiatórios para os mandantes. O
modelo originário negativo – refiro-me a um imaginário de representações
86 CEDEI 2014 – UFSC – Ricardo Augusto Rocha
inconscientemente efetivas, e não a uma realidade, a não ser que esta seja
referida de modo apenas rudimentar – é constituído pelo carcereiro ou,
melhor ainda, o suboficial.
[...] Mas, em decorrência dessa imagem, quem se opõe ao castigo físico
defende o interesse do professor ao menos tanto quanto o interesse do aluno.
Só é possível esperar alguma mudança neste complexo a que me refiro
quando até o último resquício de punição tiver desaparecido da memória
escolar. (ADORNO, 1995, p. 106-107).
Seriam então os professores os carcereiros do magistério? Aos supervisores e
orientadores escolares, que acompanham o trabalho dos professores nas creches e escolas da
Rede Municipal de Florianópolis (quadro que certamente se repete em vários outros sistemas
de ensino municipais, estaduais e federais), fica negado o emprego da violência. Devem
fiscalizar, ainda que numa tentativa de humanização deste trabalho, o fazer pedagógico dos
professores, os quais devem zelar pela integridade física das crianças. Em situações extremas,
o supervisor chega mesmo a absorver os excessos e lamúrias de professores que, esgotados e
solitários em sua condição, têm no ombro do supervisor o muro das lamentações para o seu
“não-saber” e desespero. O mesmo vale para os professores universitários, muitas vezes
formadores dos que atuam no magistério com as crianças. A eles, e em seu discurso pleno de
retórica e muitas vezes vazio da concretude e dos condicionantes que o “chão do cárcere”
impõe aos mestres, a violência presente na relação “professor-soldado” e aluno mais fraco
parece distante. E é. Se não sempre, muitas das vezes. Mais: quem são os mandantes dos
supervisores escolares? Todos, num ambiente escolar como de uma creche, estão certamente
submetidos a condições econômicas, políticas, culturais, profissionais e sociais sobre os quais
lhe foge o controle, este tomado à rédea por secretarias, ministérios, organismos
‘multi’laterais e Bancos Mundiais. O recorte deste trabalho de pesquisa nos impede de
discorrer mais profundamente sobre estas questões de ordem política e estrutural que afetam
diretamente o fazer pedagógico em unidades educativas, mas é óbvio, para não dizer que é um
compromisso ético, que nenhum trabalho de investigação que trate de práticas pedagógicas
pode ignorar essas dimensões extramuros, correndo o risco de se tornar apenas mais um olhar
inocente e romântico, ou até mesmo reprodutor destas contradições, sobre possibilidades de
avanços no campo educacional.
Para que sejamos justos nesta análise, traremos à tona alguns poucos excertos que
contrapõe a faceta pesada e dolorida do “ser-professor”. Se os trechos dos registros relatados
revelam uma dimensão muito mais próxima do que denuncia Adorno a respeito da profissão
docente, o palhaço que constitui o binômio professor-palhaço aparece para desconstruir este
estado de coisas e (por que não?) nos apontar possibilidades outras do fazer pedagógico.
Corpo, mímesis e imaginação: o clown como possibilidade de trabalho pedagógico no âmbito da Educação Infantil 87
Depois de terem ido até a sala do grupo sozinhas com uma mala de viagem
(a mesma utilizada pelo Palhaço Spolleta em sua esquete) para selecionarem
e guardarem nela objetos com os quais brincariam/interagiriam durante o
número, as crianças-palhaças retornam à Brinquedoteca para continuarem
sua produção.
Em um determinado momento, o registro em áudio revela algo que marcaria
profundamente este episódio: a então Palhaça Pop sugere à Palhaça Barbie
(Natasha) que fique só de calcinha. Logo em seguida, me interpela
gaguejando: ‘Ô, professor: é... é... é... é... é... Vamo fica só de calcinha?’.
Após um instante de silêncio, respondo: ‘Pode, pode, vocês que sabem. É do
jeito de vocês hoje’.
Alguns segundos depois, Palhaça Pop, seguida pelas demais, comenta:
‘ – Eu tenho coragem de ficar só de calcinha!
– Eu também!
– Eu também!’ (Transcrição do áudio, Episódio VII A).
Atenhamo-nos ao “instante de silêncio” mencionado na transcrição. Porque é ali,
naquele “instante”, em que um turbilhão de informações, imagens, medos, indignações e
desejos, explodem na consciência e no corpo abalado do professor que deverá fazer uma
escolha. O que as mães poderão pensar se souberem que suas filhas ficaram de calcinha na
frente dos amigos? Posso permitir isso? Por que? Isso está dentro dos objetivos deste
trabalho? Quais são mesmo os objetivos? Por que trouxe o (maldito!) palhaço prá cá? E aqui é
importante fazer um registro: mais do que simplesmente fazer uso técnico-pedagógico de um
tipo cômico, ou melhor, neste caso de um “recurso da linguagem teatral” (como poderiam
dizer alguns), o convite do palhaço não é algo que pretendemos deixar na periferia do
processo com as crianças. Não. Ao menos a intenção é de que o palhaço invada nossas
entranhas, a de professores e crianças, e possibilite modos de existência, de relação com o
mundo, com o corpo, com a educação... Labor formativo que afete visceralmente as
subjetividades.
Mais uma vez, traremos as imagens para irmos em direção ao final da categoria de
análise.
88 CEDEI 2014 – UFSC – Ricardo Augusto Rocha
Imagem 3
Da esquerda para a direita: as Palhaças Pop, Barbie e Amanda, prontas para o espetáculo. (Arquivo pessoal)
Imagem 4
As Palhaças Barbie e Amanda, numa das cenas do Episódio VII A. (Arquivo pessoal)
Muito falamos, a partir de Matos (2009), dos estados de palhaço. Mas... Ao recorrer a
Adorno (1995), e isso nos parece oportuno para expormos as contradições na aproximação
dos universos clownescos e professorais, somos levados a pensar, por outro lado, nos estados
de professor. A ira, a frustração, o esgotamento, a ausência do riso, a solidão, o fracasso, o
absentismo afetivo e erótico... Parece-nos que, se seguíssemos a mesma linha de construção
teórico-metodológica de Matos, talvez chegássemos a essas categorias, a essas dimensões do
que é “ser-professor”. Obviamente seria leviano restringir as características da profissão a
esses elementos, mas quando o palhaço toma conta (conscientemente) do corpo do mestre,
ainda que numa relação tensa, escapando, sendo expulso deste corpo, voltando, saindo, e
voltando... ele denuncia, assim como faz Adorno, as limitações e a construção histórica do
‘ser-professor’ e de sua corporeidade. Mais: para além de denunciar, o palhaço cria
possibilidades, forja novos caminhos. Os estados de palhaço e os estados de professores
Corpo, mímesis e imaginação: o clown como possibilidade de trabalho pedagógico no âmbito da Educação Infantil 89
cruzam-se, dialogam, complementam-se, brigam, quiçá constituindo o que possamos então
chamar de estados de professor-palhaço. O professor ri dele mesmo, ao menos pode rir. Pode
explorar, sem tantos medos ou convenções, suas dimensões afetiva, lúdica, erótica, corporal
enfim. A criança pode rir do professor, rir de si mesma... Ser palhaça! Ou, como parece
indicar Adorno, na esteira de Nietzsche, reconhecer a sua humanidade e a dor e violência
decorrentes desse duro percurso para se constituir em sujeito, em indivíduo.
Apontamos alguns poucos dentre muito registros nestas reflexões. A categoria de
análise certamente não se esgota aqui, seja pela quantidade e variedade de materiais que ainda
podem ser peneirados e analisados nos registros, notadamente os que dizem respeito às
transgressões das crianças (como foi o caso das palhaças de calcinha, escolhido dentre tantos
por avaliarmos ser muito simbólico para a categoria), seja pelas condições da própria
modalidade e sujeitos da pesquisa, que vai se constituindo então como o início de um trabalho
investigativo acerca da temática, aproximando Pedagogia e Palhaçarias, pedagogos e
palhaços.
90 CEDEI 2014 – UFSC – Ricardo Augusto Rocha
6. FECHAM-SE AS CORTINAS...
E vão-se o público, o professor-palhaço, as crianças-palhaças e as palhaçarias.
Vão-se?
Os episódios, espetáculos, esquetes, dinâmicas de encontro de olhares e de estados de
palhaço, a revelação do mundo pela sua menor máscara... Tudo isso se passou.
E o que fica?
Dia desses, estávamos com as crianças do Grupo V na sala. Era hora de descanso –
compulsório na instituição em que esta pesquisa-ação foi desenvolvida –, após o almoço. As
crianças escovavam os dentes, tiravam os calçados, arrumavam seus próprios colchões, como
de costume. Tínhamos também os “ajudantes do dia”, grupo de crianças que são sorteadas a
cada dia para organizarem a escovação de dentes e que, assim como os professores, acalantam
os colegas para que durmam. Em um determinado momento, em que andava pela sala neste
processo de organização para o descanso, deparo-me com Maria Paula colocando o nariz
vermelho. Com Emanuele (a Palhaça Amanda, lembram-se?) ao seu lado, Maria Paula coloca
o nariz vermelho. Ela estava deitada no colchão. Ambas estavam. Maria Paula me olha nos
olhos e ri, com o nariz vermelho. Eu paro, a olho também, e rimos juntos por alguns breves
instantes. O momento de descanso geralmente é um dos mais tensos da rotina da Creche.
Mesmo após conversa com a supervisão, o que nos foi colocado é que não temos outra opção
neste momento a não ser fazer as crianças dormirem, por alguns motivos: por não termos
outras opções na Creche para quem não dorme; e porque devemos evitar que as crianças
fiquem acordadas neste momento, pois as que costumam dormir passarão a não mais fazê-lo
ao saberem que alguns colegas não dormem. Aí, ao dedicar aqueles segundos de riso
clownesco com Maria Paula, é inevitável que algumas perguntas invadam a consciência: e o
“pós”-palhaçarias? O que é hoje o Grupo V, ou melhor, como estão as crianças do Grupo V
após passarem por este processo? Por que raios Maria Paula colocou justamente o nariz? Por
que não foi qualquer outra coisa, mas justamente o nariz? Que motivos ela tem para isso? O
que me comunicava? Sim, pois por mais que o palhaço subverta a racionalidade burguesa
como já apontamos, isto não significa que o tipo cômico não traga em seu bojo aspectos
conceituais. Estes podem não se manifestar oralmente, com a mesma narrativa e lógica de
outras formas de expressão humana, mas há os códigos, valores, ainda que “anti-valores”.
Pode ser que a impressão com que ficamos de que Maria Paula, ao rir com o nariz, ria do
momento do sono e de todas as suas chatices e opressões, seja uma simples interpretação
nossa... Mas pode ser que não.
Corpo, mímesis e imaginação: o clown como possibilidade de trabalho pedagógico no âmbito da Educação Infantil 91
Todo o trabalho não teria sentido se não engendrasse também um processo formativo
não só para as crianças, mas para os docentes envolvidos – inquietação, claro, mais do
professor do que do palhaço. Neste sentido, é interessante pontuarmos aqui sobre um
sentimento que se fez presente enquanto passeávamos pelos registros. Referimo-nos a uma
sensação de saudade ao assistimos cenas em que a mediação feita pelo professor-palhaço
possibilitou processos criativos e experiências corporais significativas, transformadoras, até
mesmo transgressoras num certo sentido, se considerarmos que algumas das manifestações
das crianças extrapolavam aquilo que esperávamos ou prevíamos no planejamento dos
episódios, ou mesmo expressavam bastante similitude (mímesis?) àquelas forjadas por
Spoletta e pelas mediações do professor-palhaço. Aqui é importante problematizarmos uma
das questões que por vários momentos foi suscitada durante o trabalho, notadamente na
categoria de análise que tratou das especificidades quanto às palhaçarias no mundo adulto e
no da infância: em relação à questão da brincadeira de papéis sociais, podemos pensar talvez
que sim, a criança se apropria da objetivação que é a personagem, ou o tipo cômico, do
palhaço; mas compreende que, neste caso, este papel social carrega consigo elementos
subversivos, transgressores, que permitem, dentre outras coisas, que a criança-palhaço possa
rir do professor. Temos indicativos, não certezas, de que a apropriação que a criança faz dos
elementos de palhaçaria passa pela brincadeira de papéis sociais, apesar de que, em certos
instantes (como também já registramos nas categorias), as manifestações das crianças-
palhaças nos levam a pensar que elas exploram as facetas clownescas já com certo grau de
consciência sobre o significado político mesmo destes acervos. Independente da forma, ou do
grau de apropriação e manifestação das palhaçarias pelas crianças, elas riem do professor, de
si mesmas, do mundo... o professor ri de si, do mundo, com a criança. E, quando falamos
daquela saudade ao início do parágrafo, é a que emerge quando percebemos o distanciamento
em que muitas vezes nos encontrávamos daquele professor-palhaço, que “ia embora”, e essa
distância machucava, frustrava. A saudade é então motor para este processo formativo, ao
menos é o que desejamos que seja.
Ainda sobre a dimensão formativa na prática, precisamos demarcar a relevância desta
modalidade de pesquisa para a formação docente. Acessar referenciais teóricos, transitar pelo
modus operandi acadêmico, receber orientação, planejar proposições a serem realizadas em
ambiente de trabalho da Educação Infantil diretamente com as crianças, produzir dados e
analisá-los a partir daqueles referenciais, para então galgar um degrau na titulação acadêmico-
profissional... Sem dúvida é uma modalidade de formação que contribui profundamente para a
qualificação docente e que agrega no cumprimento da função pública, política e social da
92 CEDEI 2014 – UFSC – Ricardo Augusto Rocha
universidade pública brasileira. Neste sentido, agradecemos aos contribuintes brasileiros, às
instâncias estatais que têm em suas atribuições o ensino superior, à coordenação do CEDEI,
ao NDI, à UFSC/CED e ao NEPESC – Núcleo de Pesquisa Educação e Sociedade
Contemporânea, na figura de seus professores e demais servidores. E uma modalidade que,
por isso mesmo, deve receber especial atenção por parte das instâncias e agentes responsáveis
e envolvidos na formação docente. Queremos também aproveitar a oportunidade para
lamentar a postura da Secretaria Municipal de Educação de Florianópolis em relação ao
CEDEI. Mesmo após a solicitação por parte da coordenação do curso e diretamente de alunos,
não foi concedida liberação de ao menos um período de um dos dias da semana para que os
professores de Educação Infantil alunos do curso que atuam na capital pudessem dedicar este
tempo à Especialização, como aconteceu com os alunos do Polo de Araranguá. Se, por um
lado, a Secretaria de Educação coloca-se diante da sociedade e de seus servidores como
defensora de processos de formação continuada de qualidade, o que é bastante questionável se
fizermos um retrocesso sobre o que vem acontecendo com a formação nos últimos anos,
notadamente em 2014,19
por outro, na prática, deixa a desejar ao se posicionar desta forma
com relação ao CEDEI. A luta pela escrita de um trabalho acadêmico, que muitas vezes vara
madrugadas e finais de semana, exigindo resignação, dedicação e escolhas duras muitas
vezes, é a luta de classes também, é a luta contra os interesses econômicos que colocam,
muitas das vezes, a Educação e seus sistemas de ensino em função de uma formação rasa, que
simplesmente contemple algumas noções elementares desta ou daquela área do conhecimento,
de modo que forjemos a mão-de-obra necessária e o parco capital cultural para a perpetuação
das grandes mazelas sociais. É contra isso também que pretende rir debochadamente o
Spoletta.
Quando pensávamos sobre quais seriam as categorias de análise, um outro dado que
pensávamos que poderia se constituir como categoria, mas que por bem decidimos alocar aqui
nas considerações finais, diz respeito aos condicionantes (ou limitadores) institucionais que
afetaram direta ou indiretamente este trabalho. Referimo-nos, por exemplo, a questões
concernentes à formação e postura dos(as) profissionais que também atuam com as crianças,
como as Auxiliares de Sala, às suas perspectivas pedagógicas e entendimento da proposta do
trabalho; as convenções, documentais ou não, trazidas na figura de profissionais como a
Supervisora, que nos questionou em um dos episódios sobre a postura das crianças-palhaças,
19 Como já vem acontecendo nos últimos anos, a Secretaria de Educação cancelou
agendas de formação que estavam previstas para o primeiro semestre de 2014.
Dentre os motivos alegados, está a falta de recursos financeiros.
Corpo, mímesis e imaginação: o clown como possibilidade de trabalho pedagógico no âmbito da Educação Infantil 93
ao vê-las se organizando e se alimentando de forma diversa da esperada pela instituição; ao
espaço físico e aos materiais; dentre outros. Mais especificamente sobre as Auxiliares de Sala,
é importante discorrermos um pouco mais: a situação profissional, econômica e jurídica
destas profissionais em seu enquadramento como servidoras municipais da Educação de
Florianópolis é prá lá de questionável. Com formação mínima no magistério, e com grande
número das profissionais hoje já com graduação em Pedagogia, constata-se tremenda
desvalorização profissional das colegas que atuam com os professores(as) na Educação
Infantil no trabalho direto com as crianças, e muitas vezes não apenas “auxiliando”, termo que
já não mais parece fazer sentido, mas contando histórias, realizando atividades, brincadeiras,
trocando (às vezes muito mais do que a professora) fraldas, etc. Curiosamente, e
absurdamente, estas profissionais, que não têm ainda o direito ao mesmo plano de carreira e
outros direitos dos professores, como hora-atividade e aposentadoria especial,20
podem, por
exemplo, assumir cargo de Direção em unidades educativas da Educação Infantil e chefiar as
professoras que, juridicamente e profissionalmente, estão em outro patamar e enquadramento
profissional, mais elevados sem dúvida. Um contrassenso sem tamanho! Não somente no que
toca o que buscamos realizar neste trabalho, mas no que diz respeito à qualificação da
Educação Infantil e de seus profissionais como um todo, a problemática das Auxiliares de
Sala é pauta com caráter de urgência para a Secretaria de Educação e SINTRASEM –
Sindicato dos Trabalhadores do Serviço Municipal de Florianópolis. Em nosso caso, essa
conjuntura fez com que, no período matutino, tivéssemos várias trocas de profissionais
auxiliares de sala durante o primeiro semestre, o que certamente interferiu na dinâmica dos
episódios. Ao mesmo tempo em que houve certos contratempos, devemos também agradecer
às colegas do período vespertino pela profícua parceria que conseguimos estabelecer e que
contribuíram para a realização dos episódios organizados à tarde.
Antes de nos despedirmos definitivamente, é necessário que retomemos algumas das
limitações deste trabalho. A quantidade de dados produzidos, dentre vídeos, gravações em
áudio, imagens e relatos é considerável. Foi tarefa árdua fazer as escolhas dos excertos que
embasariam as reflexões elaboradas. Ao optarmos, outros valorosos eventos não mais
20
Há uma distinção entre o enquadramento jurídico dos professores e das auxiliares
de sala. Enquanto aqueles têm seus direitos, como o plano de carreira, estabelecidos
pelo Estatuto do Magistério, as auxiliares encontram-se no quadro civil de
servidores da Prefeitura Municipal de Florianópolis, não sendo percebidas
legalmente como profissionais do magistério, ainda que as atribuições definidas nos
editais de concurso público e a prática profissional indiquem justamente o
contrário. A desvalorização deste segmento tem feito com que a própria Secretaria
de Educação se debruce sobre o tema, haja vista que a rotatividade de profissionais
tem sido alta e constante.
94 CEDEI 2014 – UFSC – Ricardo Augusto Rocha
constituíram essa leitura que agora se faz. Para além desta limitação, sempre soubemos
também do desafio que seria adentrar pelo território da palhaçaria, das Artes Cênicas e
circenses, e tentar transitar entre este e o território do fazer pedagógico na Educação Infantil.
Teríamos que buscar referenciais teóricos de áreas que não estiveram sistematicamente
presentes na formação em nível de graduação de Pedagogia. Sabemos que nosso trabalho, se
por um lado tem este caráter de ousadia, por outro se limita a iniciar essas discussões, pincelar
possibilidades de entendimento da temática, deixar alguns indicativos. Novamente tratando da
formação para a atuação na Educação Infantil, e observando as áreas de conhecimento que
escolhemos para o projeto de pesquisa que envolve a prática pedagógica, o currículo de
formação em Pedagogia é outra questão que pode ser problematizada a partir deste trabalho.
A importância política e estética (dentre outras) que a Arte, neste caso as palhaçarias, para a
formação do pedagogo é certamente motivo para grandes discussões entre pesquisadores e
professores. É óbvio que, se fizemos esta opção para o trabalho, é porque já temos uma
posição em relação a isso. E longe de nós defendermos aquelas perspectivas aligeiradas de
formação para o magistério, que relegam à teoria um caráter maçante e desnecessário para o
currículo e privilegiam uma formação de caráter mais “prático”. Um grande equívoco, a não
ser que não haja problema em ficarmos com cara de “palhaço”. Ops...
Corpo, mímesis e imaginação: o clown como possibilidade de trabalho pedagógico no âmbito da Educação Infantil 95
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