Coordenaccedilatildeo editorialjorge schwartz e gecircnese andrade
Uma perspectiva criacutetica sobre Oswald de Andradedeacutecio de almeida prado
O Rei da Velarenato borghi
O Rei da Vela Manifesto do Oficinajoseacute celso martinez correcirca
Copyright copy 2017 by herdeiros de Oswald de Andrade
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortograacutefico da Liacutengua Portuguesa de 1990
que entrou em vigor no Brasil em 2009
pesquisa revisatildeo e estabelecimento do texto oswaldiano Gecircnese Andrade
cronologia Orna Messer Levin
capa e projeto graacutefico Elisa von Randow
caricatura do autor Loredano Oswald de Andrade 2015 Nanquim sobre papel 21 x 297 cm
publicada em O Estado de S Paulo Satildeo Paulo 28 jan 2017
quarta capa Nonecirc (Oswald de Andrade Filho) Retrato de Oswald de Andrade deacutecada de 1960
Capa da segunda ediccedilatildeo de O Rei da Vela Satildeo Paulo Difusatildeo Europeia do Livro 1967
preparaccedilatildeo Maria Fernanda Alvares
revisatildeo Ana Maria Barbosa e Adriana Bairrada
[2017]Todos os direitos desta ediccedilatildeo reservados agraveeditora schwarcz saRua Bandeira Paulista 702 cj 3204532-002 ndash Satildeo Paulo ndash spTelefone (11) 3707-3500wwwcompanhiadasletrascombrwwwblogdacompanhiacombrfacebookcomcompanhiadasletrasinstagramcomcompanhiadasletrastwittercomcialetras
Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (cip)(Cacircmara Brasileira do Livro sp Brasil)
Andrade Oswald de 1890-1954O Rei da Vela Oswald de Andrade mdash 1a ed mdash Satildeo Paulo
Com pa nhia das Letras 2017
Inclui Uma perspectiva criacutetica sobre Oswald de Andrade Deacutecio de Almeida Prado O Rei da Vela Renato Borghi O Rei da Vela Manifesto do Oficina Joseacute Celso Martinez Correcirca
isbn 978 -85 -359 -2929-4
1 Teatro brasileiro i Prado Deacutecio de Almeida ii Borghi Renato iii Correcirca Joseacute Celso Martinez
17-03900 cdd -8692 Iacutendice para cataacutelogo sistemaacutetico1 Teatro Literatura brasileira 8692
o rei da vela 15 1o Ato 38 2o Ato 60 3o Ato
73 nota sobre o estabelecimento de texto
fortuna criacutetica 77 Uma perspectiva criacutetica sobre Oswald de Andrade Deacutecio de Almeida Prado 82 Posfaacutecio mdashO Rei da Vela Renato Borghi
91 O Rei da Vela Manifesto do Oficina Joseacute Celso Martinez Correcirca
105 Leituras recomendadas 107 Cronologia
O Ei DA
VLAPEccedila M trecircS aToS
A Aacutelvaro Moreyrae
Eugecircnia Aacutelvaro Moreyra
na dura criaccedilatildeode um enjeitado mdash o teatro
nacionalO A
Satildeo Paulo junho 1937
Personagens dramaacuteticos
abelardo iabelardo iiheloiacutesa de lesbosjoana conhecida por joatildeo dos divatildestotoacute fruta-do-condecoronel belarminod cesarinad poloquinhaperdigotoo americanoo clienteo intelectual pinotea secretaacuteriadevedores devedoraso ponto
15
1o ATO
em satildeo paulo Escritoacuterio de usura de Abelardo amp Abelardo Um retrato da Gioconda Caixas amontoadas Um divatilde futurista Uma secretaacuteria Luiacutes XV Um casticcedilal de latatildeo Um telefone Sinal de alar-ma Um mostruaacuterio de velas de todos os tamanhos e de todas as cores Porta enorme de ferro agrave direita correndo sobre rodas hori-zontalmente e deixando ver no interior as grades de uma jaula O Prontuaacuterio peccedila de gavetas com os seguintes roacutetulos malan1049730dros mdash impontuais mdash prontos mdash protestados mdash Na outra divisatildeo penhoras mdash liquidaccedilotildees mdash suiciacutedios mdash tangas
Pela ampla janela entra o barulho da manhatilde na cidade e sai o das maacutequinas de escrever da antessala
16
Abelardo i Abelardo ii e o Cliente
abelardo i (sentado em conversa com o Cliente Aperta um bo-tatildeo ouve-se um forte barulho de campainha) Vamos verhellip
abelardo ii (veste botas e um completo de domador de feras Usa pastinha e enormes bigodes retorcidos Monoacuteculo Um revoacutelver agrave cinta) Pronto seu Abelardo
abelardo i Traga o dossiecirc desse homemabelardo ii Pois natildeo O seu nomeo cliente (embaraccedilado o chapeacuteu na matildeo uma gravata de cor-
da no pescoccedilo magro) Manoel Pitanga de Moraesabelardo ii Profissatildeoo cliente Eu era proprietaacuterio quando vim aqui pela primeira
vez Depois fui dois anos funcionaacuterio da Estrada de Ferro So-rocabana O empreacutestimo o primeiro creio que foi feito para o parto Quando nasceu a meninahellip
abelardo ii Jaacute sei Estaacute nos impontuais (entrega o dossiecirc reclamado e sai)
abelardo i (examina) Veja Isto natildeo eacute comercial seu Pitanga O senhor fez o primeiro empreacutestimo em fins de 29 Liquidou em maio de 1931 Fez outro em junho de 31 estamos em 1933 Reformou sempre Haacute dois meses suspendeu o serviccedilo de ju-roshellip Natildeo eacute comercialhellip
o cliente Exatamente Procurei o senhor a segunda vez por causa da demora de pagamento na Estrada com a Revoluccedilatildeo de 30 A primeira foi para o parto A crianccedila jaacute tinha dois anos E a Revoluccedilatildeo em 30hellip Foi um mau sucesso que complicou tudohellip
abelardo i O senhor sabe o sistema da casa eacute reformar Mas natildeo podemos trabalhar com quem natildeo paga juroshellip Vivemos disso O senhor cometeu a maior falta contra a seguranccedila do nosso negoacutecio e o sistema da casahellip
17
o cliente Haacute dois meses somente que natildeo posso pagar jurosabelardo i Dois meses O senhor acha que eacute poucoo cliente Por isso mesmo eacute que eu quero liquidar Entrar num
acordo A fim de natildeo ser penhorado Que diabo O senhor tem auxiliado tanta gente Eacute o amigo de todo mundohellip Por que co-migo natildeo haacute de fazer um acordo
abelardo i Aqui natildeo haacute acordo meu amigo Haacute pagamentoo cliente Mas eu me acho numa situaccedilatildeo triste Natildeo posso pa-
gar tudo seu Abelardo Talvez consiga um adiantamento para liquidarhellip
abelardo i Apesar da sua impontualidade examinaremos as suas propostashellip
o cliente Mas eu fui pontual dois anos e meio Paguei enquanto pude A minha diacutevida era de um conto de reacuteis Soacute de juros eu lhe trouxe aqui nesta sala mais de dois contos e quinhentos E ateacute agora natildeo me utilizei da lei contra a usurahellip
abelardo i (interrompendo-o brutal) Ah meu amigo Utilize--se dessa coisa imoral e iniacutequa Se fala de lei de usura estamos com as negociaccedilotildees rotashellip Saia daqui
o cliente Ora seu Abelardo O senhor me conhece Eu sou incapaz
abelardo i Natildeo me fale nessa monstruosidade porque eu o mando executar hoje mesmo Tomo-lhe ateacute a roupa ouviu A camisa do corpo
o cliente Eu natildeo vou me aproveitar seu Abelardo Quero lhe pagar Mas quero tambeacutem lhe propor um acordo A minha situaccedilatildeo eacute tristehellip Natildeo tenho culpa de ter sido dispensado Empreguei-me outra vez Despediram-me por economia Natildeo ponho minha filhinha na escola porque natildeo posso comprar sapatos para ela Natildeo hei de morrer de fome tambeacutem Agraves vezes natildeo temos o que comer em casa Minha mulher agora caiu doente No entanto sou um homem habilitado Tenho
18
procurado inutilmente emprego por toda a parte Soacute tenho recebido natildeos enormes Do tamanho do ceacuteu Agora aprendi escrituraccedilatildeo estou fazendo umas escritas Uns biscates Hei de arribarhellip Quero ver se adiantam para lhe pagar
abelardo i Mas enfim o que eacute que o senhor me propotildeeo cliente Uma pequena reduccedilatildeo no capitalabelardo i No capital O senhor estaacute maluco Reduzir o capital
Nuncao cliente Mas eu jaacute paguei mais do dobro do que levei daquihellipabelardo i Me diga uma coisa seu Pitanga Fui eu que fui pro-
curaacute-lo para assinar este papagaio Foi o meu automoacutevel que parou diante do seu casebre para pedir que aceitasse o meu dinheiro Com que direito o senhor me propotildee uma reduccedilatildeo no capital que eu lhe emprestei
o cliente (desnorteado) Eu jaacute paguei duas vezeshellipabelardo i Suma-se daqui (levanta-se) Saia ou chamo a po-
liacutecia Eacute soacute dar o sinal de crime neste aparelho A poliacutecia ainda existehellip
o cliente Para defender os capitalistas E os seus crimesabelardo i Para defender o meu dinheiro Seraacute executado hoje
mesmo (toca a campainha) Abelardo Decirc ordens para executaacute--lo Rua Vamos Fuzile-o Eacute o sistema da casa
o cliente Eu sou um covarde (vai chorando) O senhor abusa de um fraco de um covarde
Menos o Cliente
abelardo i Natildeo faccedila entrar mais ningueacutem hoje Abelardoabelardo ii A jaula estaacute cheiahellip seu Abelardoabelardo i Mas esta cena basta para nos identificar perante
o puacuteblico Natildeo preciso mais falar com nenhum dos meus
19
clientes Satildeo todos iguais Sobretudo natildeo me traga pais que natildeo podem comprar sapatos para os filhoshellip
abelardo ii Esse estaacute se queixando de barriga cheia Natildeo tem prole numerosa Soacute uma filhahellip Famiacutelia pequena
abelardo i Natildeo confunda seu Abelardo Famiacutelia eacute uma coisa distinta Prole eacute de proletaacuterio A famiacutelia requer a propriedade e vice-versa Quem natildeo tem propriedades deve ter prole Para trabalhar os filhos satildeo a fortuna do pobrehellip
abelardo ii Mas hoje ningueacutem mais vai nissohellipabelardo i Eacute a desordem social o desemprego a Ruacutessia Esse
homem possuiacutea uma casinha Tinha o direito de ter uma fa-miacutelia Perdeu a casa Cavasse prole Seu Abelardo a famiacutelia e a propriedade satildeo duas garotas que frequentam a mesma gar-ccedilonniegravere a mesma farrahellip quando o patildeo sobrahellip Mas quando o patildeo falta uma sai pela porta e a outra voa pela janelahellip
abelardo ii A famiacutelia eacute o ideal do homem A propriedade tam-beacutem E d Heloiacutesa eacute um anjo
abelardo i Vocecirc sabe que natildeo haacute outro gecircnero no mercado Eu natildeo ia me casar com a irmatilde mais moccedila que chamam por aiacute de garota da crise e de Joatildeo dos Divatildes Nem com o irmatildeo menor que todo mundo conhece por Totoacute Fruta-do-Conde
abelardo ii Um degeneradohellipabelardo i Coisas que se compreendem e relevam numa velha
famiacutelia Heloiacutesa apesar dos viacutecios que lhe apontamhellip Vocecirc sabe toda a gente sabe Heloiacutesa de Lesbos Fizeram piada quando comprei uma ilha no Rio para nos casarmos Disseram que era na Greacutecia Apesar disso ela ainda eacute a flor mais decente dessa velha aacutervore bandeirante Uma das famiacutelias fundamentais do Impeacuterio
abelardo ii O velho estaacute de tanga Entregou tudo aos credoresabelardo i Que importa Para noacutes homens adiantados que soacute
conhecemos uma coisa fria o valor do dinheiro comprar esses
20
restos de brasatildeo ainda eacute negoacutecio faz vista num paiacutes medieval como o nosso O senhor sabe que Satildeo Paulo soacute tem dez famiacutelias
abelardo ii E o resto da populaccedilatildeoabelardo i O resto eacute prole O que eu estou fazendo o que o se-
nhor quer fazer eacute deixar de ser prole para ser famiacutelia comprar os velhos brasotildees isso ateacute parece teatro do seacuteculo xix Mas no Brasil ainda eacute novo
abelardo ii Se eacute A burguesia soacute produziu um teatro de classe A apresentaccedilatildeo da classe Hoje evoluiacutemos Chegamos agrave espi-nafraccedilatildeo
abelardo i Bem Veja o bordereauhellip O Banco devolveu muita coisa
abelardo ii Xu Um colosso Estamos no vinagre seu Abelardoabelardo i Vamoshellipabelardo ii (lendo) Cinco contos setecentos e setenta Dr Car-
los Magalhatildees de Moraes Benevides Fonseca Chapa uacutenicahellip Reforma-se Natildeo paga juros haacute dois meses
abelardo i Reforma-seabelardo ii Antunes amp Lapahellip trecircs contoshellip jaacute protestei Man-
gionihellip Luiz O bicheirohellip Dr Joatildeo Carlos de Menezes Rochahellip dois contoshellip
abelardo i Pro protestoabelardo ii Baratildeo de Gama Lima quinhentos mil-reacuteishellipabelardo i Pro protestoabelardo ii Moura Melohellip setecentos mil-reacuteisabelardo i Pro protestoabelardo ii Abraatildeo Calimeacuteriohellip dez contosabelardo i Pro protestoabelardo ii Carlos Pereshellip Esta jaacute foi pro pau ontemhellipabelardo i Ele natildeo pediu reformaabelardo ii Natildeoabelardo i E por quecirc
21
abelardo ii Tomou dois copos de limonada com iodo Estaacute aqui no jornal (procura) Diz que estaacute em estado de coma na Santa Casahellip
abelardo i Mande o Benvindo fazer a penhora Depressa Antes que ele morra e a venda fechehellip
abelardo ii Estaacute certo Esta eacutehellip daquele funcionaacuterio puacuteblico o Pires Limpohellip Ele estaacute limpo e de pires Mandou a filha aqui
abelardo i Bonitaabelardo ii Pancadatildeo Dezoito anoshellip Cada dente deste tama-
nhoabelardo i Mandou a filha O mecircs passado veio a mulherabelardo ii Eu vi Jeitosahellip Mas muito faladeira Queria saber
onde eacute que o senhor morava falou na compra da ilha no Rio onde o senhor vai se casar Que ia levar de aviatildeo uma porccedilatildeo de gente de Satildeo Paulo
abelardo i (batendo o peacute numa grande caixa de papelatildeo) Que eacute isto aqui
abelardo ii Focircrmas de chapeacuteu (mostra o casticcedilal de latatildeo) A penhora de Mme Lanale Soacute tinha isso e aquele candelabro Quase que natildeo daacute para pagar os tiras que ajudaram
abelardo i E os moacuteveishellipabelardo ii Ficaram despedaccedilados na rua Eram duas peccedilas
velhas de ferro Foi um escacircndalo O estado-maior teve que agir duro O povo queria se opor Juntou gentehellip
abelardo i Que estado-maiorabelardo ii Os oficiais de justiccedilahellipabelardo i Mas o exemplo ficouabelardo ii E frutificaraacuteabelardo i A rua inteira sabe que penhorei porque natildeo me
pagaram 200$000 A cidade inteira sabe Talvez gastasse mais nissohellip Que importa Dura Lex aprendi isso na Faculdade de Direito
22
abelardo ii Queria que o senhor visse a choradeira A viuacuteva berrava na janela mdash Gli orfani Gli orfani Non abiamo piu lavoro
abelardo i O quecircabelardo ii Ela queria dizer que os oacuterfatildeos natildeo tinham mais o
que comer Tiramos os instrumentos de trabalhoabelardo i Manhosahellipabelardo ii Soacute se pode prosperar agrave custa de muita desgraccedila
Mas de muita mesmohellipabelardo i Se natildeo for assim como garantirei os meus deposi-
tantes Se natildeo tiro do outro lado Ofereccedilo juros que os bancos natildeo pagam Os juros que soacute alguns pagavam nos bons tempos Quatro e ateacute cinco por cento ao ano
abelardo ii Tambeacutem o dinheiro corre para aquihellip Laacute embaixo a seccedilatildeo bancaacuteria estaacute assim
abelardo i Ofereccedilo boas garantias E tambeacutem exijo boas ga-rantias quando emprestohellip
abelardo ii A cinco e dez por cento ao mecircshellip Por filantropia (o telefone) Eacute seu irmatildeo
abelardo i Meu advogadoabelardo ii (no fone) Sim senhor Estaacute (para Abelardo) Diz
que entrou no Foacuterum com trecircs executivos Estaacute chamando o senhorhellip
abelardo i (ao fone) Como Sou euhellip Abelardo O Teodoro Quer se prevalecer da lei de usura Grande besta E pede reforma Linche esse camarada Ponha flite nele e acenda um foacutesforo (bate o fone) Pro pau com esse bandido Lei contra a usura Miseraacuteveis Bolchevistas Por isso eacute que o paiacutes se arruiacutena E haacute um miseraacutevel que quer se aproveitar dessa iniquidade
abelardo ii Leis sociaishellipabelardo i Suacutecia de desonestos Intervir nos juros Cercear
o sagrado direito de emprestar o meu dinheiro agrave taxa que eu
23
quiser E que todos aceitam Mais Que vecircm implorar aqui Sou eu que vou buscaacute-los para assinar papagaios Ou satildeo eles que todos os dias enchem a minha sala de espera Abra a jaula
Abelardo ii obedece de chicote em punho A porta de ferro corre pesadamente
Mais clientes
Os clientes aparecem atropeladamente nas grades Eacute uma coleccedilatildeo de crise variada expectante Homens e mulheres mantecircm-se quietos ante o enorme chicote de Abelardo ii
abelardo i Rua Nem mais um negoacutecio Vou fechar esta bagun-ccedila
as vozes (da jaula) Pelo amor de Deus Por caridade Eu natildeo posso pagar o aluguel Reforme Vou agrave falecircncia
abelardo i Rua Ningueacutem mais pode trabalhar num paiacutes des-tes Com leis monstruosas
as vozes Eu tenho que fechar a faacutebrica Natildeo poderei pagar os duzentos operaacuterios que ficaratildeo sem patildeo Tenha piedade Inclua os juros no capital Damos excelentes garantias
abelardo i (a Abelardo ii) Feche esta porta Natildeo atendo nin-gueacutem
Abelardo ii faz estalar o chicote de domador
as vozes Blefaremos o governo Me salve Me salveabelardo i Rua Canalhas Laacute fora sei como vocecircs me tratam
Abelardo ii faacute-los recuar das grades brandindo o chicote e amea-ccedilando com o revoacutelver
24
uma voz de mulher Ai Jesus Natildeo temos o que comer Eu natildeo saio daqui Espero ateacute agrave noite Estou arruinada
as vozes irritadas (Abelardo ii procura fechar a porta de fer-ro) Canalha Sujo Tirou o nosso sangue Ladratildeo Natildeo saiacutemos daqui
um italiano Pamarona Momanjo isto capitalistauma francesa Sale cochon Si crsquoest possible Conum russo branco Svolochum turco Joacutege paga bateacuteca Non izacuta Joacutegehellipas vozes (em coro) Assassinoabelardo i Feche Atire
Abelardo ii daacute um tiro para o ar Os clientes recuam gritando Ele corre a porta de ferro ruidosamente
as vozes (abafadas) Catildeo Rei da Vela Patildeo-durouma voz de mulher (gritando do outro lado da porta) Meu
marido bebeu estricninaoutra Minha matildee tomou lisoloutra Meu pai se jogou do viadutoabelardo i Lisol Estricnina Viaduto Eacute do que vocecircs precisam
canalhas
Menos o Cliente
Telefone
abelardo ii (atendendo) Alocirc Eacute o padre Aquele da entrevista Estaacute reverendo Vem jaacutehellip
abelardo i Mas vocecirc marcouabelardo ii Natildeo marquei nada
25
abelardo i (toma o fone) Bom dia reverendo Sou eu mesmo Abelardohellip Ah Com muitiacutessima honrahellip Esperarei vossa reve-rendiacutessima Pode ser agraves quatro horas Entatildeohellip sem duacutevidahellip Beijo-lhe as matildeos Sempre agraves suas ordens (depotildee o fone) Este padre eacute engraccediladohellip Natildeo me largahellip Eu natildeo sou eleitorhellip Ele natildeo quer dinheirohellip
abelardo ii Quer a sua almahellipabelardo i Evidentemente eacute um caso raro Um homem preo-
cupar-se comigo sem ser logo agrave vistahellip Quantoabelardo ii Ele prefere tratar desde jaacute do seu testamentoabelardo i Inuacutetil Eu morro ateu e casadoabelardo ii Eacute isso mesmo que ele quer A viuacuteva cuidaraacute bas-
tante de sua alma que teraacute idohellip para o purgatoacuteriohellipabelardo i Diga-me uma coisa seu Abelardo vocecirc eacute socialistaabelardo ii Sou o primeiro socialista que aparece no Teatro
Brasileiroabelardo i E o que eacute que vocecirc querabelardo ii Sucedecirc-lo nessa mesaabelardo i Pelo que vejo o socialismo nos paiacuteses atrasados co-
meccedila logo assimhellip Entrando num acordo com a propriedadehellipabelardo ii De fatohellip Estamos num paiacutes semicolonialhellipabelardo i Onde a gente pode ter ideias mas natildeo eacute de ferroabelardo ii Sim Sem quebrar a tradiccedilatildeoabelardo i Se for preciso o padre leva a sua alma tambeacutemhellip
Estaacute certohellip Vamos examinar aquelas propostas (senta-se e lecirc) Carmo Belatinehellip
abelardo ii Eacute aquele da faacutebrica de salsichashellip O frigoriacuteficohellip Que comprou o terreno da Lapa
abelardo i Idadeabelardo ii Trinta e nove anosabelardo i Niacutevel de vida
26
abelardo ii Niacutevel baixo ainda Faz a barba na terrina da sopa com sabatildeo de cozinha e gilete de segunda matildeohellip
abelardo i Jaacute fala o portuguecircsabelardo ii Ainda atrapalhaabelardo i Gasta menos do que tira dos trabalhadoresabelardo ii Muito menosabelardo i Tem filhos grandesabelardo ii Pequenos aindaabelardo i Em bons coleacutegiosabelardo ii Sim Oiseaux Sion Satildeo Bentoabelardo i Bem Tome nota Emprestamos enquanto os peque-
nos estudarem Quando as filhas comeccedilarem o serviccedilo militar nas garccedilonniegraveres e o pequeno tiver barata e Madame souber se vestir emprestaremos entatildeo de preferecircncia agrave costureira de Madame O velho aiacute teraacute mudado de niacutevel Possuiraacute automoacutevel casa no Jardim Ameacuterica Cessaremos pouco a pouco todo o creacute-dito Nem mais um papagaio Ele viraacute aqui caucionar os tiacutetulos dos comerciantes a quem fornece Executarei tudo um dia Le-varei a faacutebrica os capitais imobilizados e o ferro-velho agrave praccedila
abelardo ii E a mulher diraacute que foram os operaacuterios que os arruinaram
abelardo i E foram de fato Eu conto como fator essencial dessas coisas as exigecircncias atuais do operariado O salaacuterio miacutenimo As feacuterias Que diabo As tais leis sociais natildeo hatildeo de ser soacute contra o capitalhellip
abelardo ii Natildeo satildeo natildeo Descanse Eu entendo de socialismo Olhe A lei de feacuterias soacute deu um resultado Natildeo haacute mais salaacuterio de semana ou de mecircs Eacute por dia de trabalho ou por contrato Somando bem os domingos feriados e dias de doenccedila eram mais que as feacuterias de hoje
27
abelardo i Bem Guarde esta ficha nos Firmes Feche o negoacute-cio A mesma taxa O sistema da casa Chame a Secretaacuteria no 3 Quero ditar uma carta
Abelardo ii sai
Abelardo i e a Secretaacuteria no 3
a secretaacuteria (eacute uma moccedila longa de oacuteculos e tranccedilas enormes e loiras Veste-se pudicamente Traz laacutepis e blocknotes na matildeo) Eacute para bater agrave maacutequina seu Abelardo
abelardo i Natildeo Para estenografar Nem isso A senhora sabe redigir Melhor do que eu Faccedila uma carta Sente-se aiacute (sentam-se perto um do outro) D Aiacutedahellip Aiacuteda loirahellip Aiacuteda de Wagner Como eacute Natildeo precisa de um Radameacutes
a secretaacuteria Preciso que o senhor melhore o meu ordenado O custo da vida aumentou no Brasil de trinta por cento
abelardo i Tenho todo interesse pelo custo de sua vidahellip Mas a senhora sabehellip As vidas hoje estatildeo difiacuteceis para todoshellip Natildeo eacute mais como antigamentehellip Que tranccedilashellip Eu acabo me enfor-cando nessas tranccedilashellip Deixa (procura tocar-lhe os cabelos)
a secretaacuteria Tenha modos seu Abelardoabelardo i Deixa Malvadaa secretaacuteria Nunca Eu sou romacircntica Natildeo vendo o meu
amorabelardo i Vamos fazer um piqueniquehellip (aponta o divatilde sob a
Gioconda) Debaixo daquela mangueiraa secretaacuteria Eu sou noivaabelardo i Eu tambeacutema secretaacuteria Mas eu sou fielhellipabelardo i Bem Depois natildeo venha fazer vales aqui hein Eu
tambeacutem sei ser fiel ao sistema da casa Vaacute laacute Redija Natildeo
28
Tome nota Olhe Eacute uma carta confidencial A um tal Cristiano de Bensauacutede Industrial no Rio Metido a escritor Redija sem erros de portuguecircs O homem foi criacutetico literaacuterio e avanccedilado quando era prontohellip Ele me escreveu propondo frente uacutenica contra os operaacuterios Responda em tese (a secretaacuteria toma nota) insinue que eacute melhor ele ser um puro policial Manter vigilacircncia rigorosa nas faacutebricas Evitar a propaganda comunis-ta Denunciar e perseguir os agitadores Prender Esse negoacutecio de escrever livros de sociologia com anjos eacute contraproducente Ningueacutem mais crecirc Fica ridiacuteculo para noacutes industriais avanccedila-dos Diante dos americanos e dos ingleses Olhe diga isto Que a burguesia morre sem Deus Recusa a extrema-unccedilatildeo Cite o exemplo do proacuteprio Vaticano Coisas concretas A adesatildeo poliacute-tica da igreja contra um bilhatildeo e setecentos milhotildees de liras o ensino religioso e a lei contra o divoacutercio Toma laacute daacute caacute Natildeo vecirc que um alpinista como Pio xi potildee anjos em negoacutecios Vaacute redigir e traga logo Para seguir hojehellip Ver se esse homem deixa de atrapalhar Um sujeito feudal Viacutetima do seu proacuteprio sistema Paga um salaacuterio medieval 20$000 por quinzena
a secretaacuteria (voltando-se da porta) Ga-ra-nhatildeo (sai esbar-rando em Heloiacutesa de Lesbos que vestida de homem entra como a manhatilde laacute de fora)
Menos a Secretaacuteria mais Heloiacutesa
abelardo i (rindo) Vocecirc Meu amor Na hora do expedienteheloiacutesa O nosso casamento eacute um negoacuteciohellipabelardo i Por isso vieste de Marleneheloiacutesa Mas natildeo haacute de ser um negoacutecio como esses que vocecirc
faz com esse bando de desesperados que saiu daiacute vociferandohellip Estatildeo ainda muitos laacute embaixo Haacute mulheres idosas moccedilas turcos italianos russos de prestaccedilatildeo uma fauna de hospiacuteciohellip
29
abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute
Mais Abelardo ii
abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo
abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer
fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso
abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo
Mais o Intelectual Pinote
pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre
heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-
-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui
pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-
fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute
uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-
guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i
senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as
Uma perspectiva criacutetica sobre Oswald de Andradedeacutecio de almeida prado
O Rei da Velarenato borghi
O Rei da Vela Manifesto do Oficinajoseacute celso martinez correcirca
Copyright copy 2017 by herdeiros de Oswald de Andrade
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortograacutefico da Liacutengua Portuguesa de 1990
que entrou em vigor no Brasil em 2009
pesquisa revisatildeo e estabelecimento do texto oswaldiano Gecircnese Andrade
cronologia Orna Messer Levin
capa e projeto graacutefico Elisa von Randow
caricatura do autor Loredano Oswald de Andrade 2015 Nanquim sobre papel 21 x 297 cm
publicada em O Estado de S Paulo Satildeo Paulo 28 jan 2017
quarta capa Nonecirc (Oswald de Andrade Filho) Retrato de Oswald de Andrade deacutecada de 1960
Capa da segunda ediccedilatildeo de O Rei da Vela Satildeo Paulo Difusatildeo Europeia do Livro 1967
preparaccedilatildeo Maria Fernanda Alvares
revisatildeo Ana Maria Barbosa e Adriana Bairrada
[2017]Todos os direitos desta ediccedilatildeo reservados agraveeditora schwarcz saRua Bandeira Paulista 702 cj 3204532-002 ndash Satildeo Paulo ndash spTelefone (11) 3707-3500wwwcompanhiadasletrascombrwwwblogdacompanhiacombrfacebookcomcompanhiadasletrasinstagramcomcompanhiadasletrastwittercomcialetras
Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (cip)(Cacircmara Brasileira do Livro sp Brasil)
Andrade Oswald de 1890-1954O Rei da Vela Oswald de Andrade mdash 1a ed mdash Satildeo Paulo
Com pa nhia das Letras 2017
Inclui Uma perspectiva criacutetica sobre Oswald de Andrade Deacutecio de Almeida Prado O Rei da Vela Renato Borghi O Rei da Vela Manifesto do Oficina Joseacute Celso Martinez Correcirca
isbn 978 -85 -359 -2929-4
1 Teatro brasileiro i Prado Deacutecio de Almeida ii Borghi Renato iii Correcirca Joseacute Celso Martinez
17-03900 cdd -8692 Iacutendice para cataacutelogo sistemaacutetico1 Teatro Literatura brasileira 8692
o rei da vela 15 1o Ato 38 2o Ato 60 3o Ato
73 nota sobre o estabelecimento de texto
fortuna criacutetica 77 Uma perspectiva criacutetica sobre Oswald de Andrade Deacutecio de Almeida Prado 82 Posfaacutecio mdashO Rei da Vela Renato Borghi
91 O Rei da Vela Manifesto do Oficina Joseacute Celso Martinez Correcirca
105 Leituras recomendadas 107 Cronologia
O Ei DA
VLAPEccedila M trecircS aToS
A Aacutelvaro Moreyrae
Eugecircnia Aacutelvaro Moreyra
na dura criaccedilatildeode um enjeitado mdash o teatro
nacionalO A
Satildeo Paulo junho 1937
Personagens dramaacuteticos
abelardo iabelardo iiheloiacutesa de lesbosjoana conhecida por joatildeo dos divatildestotoacute fruta-do-condecoronel belarminod cesarinad poloquinhaperdigotoo americanoo clienteo intelectual pinotea secretaacuteriadevedores devedoraso ponto
15
1o ATO
em satildeo paulo Escritoacuterio de usura de Abelardo amp Abelardo Um retrato da Gioconda Caixas amontoadas Um divatilde futurista Uma secretaacuteria Luiacutes XV Um casticcedilal de latatildeo Um telefone Sinal de alar-ma Um mostruaacuterio de velas de todos os tamanhos e de todas as cores Porta enorme de ferro agrave direita correndo sobre rodas hori-zontalmente e deixando ver no interior as grades de uma jaula O Prontuaacuterio peccedila de gavetas com os seguintes roacutetulos malan1049730dros mdash impontuais mdash prontos mdash protestados mdash Na outra divisatildeo penhoras mdash liquidaccedilotildees mdash suiciacutedios mdash tangas
Pela ampla janela entra o barulho da manhatilde na cidade e sai o das maacutequinas de escrever da antessala
16
Abelardo i Abelardo ii e o Cliente
abelardo i (sentado em conversa com o Cliente Aperta um bo-tatildeo ouve-se um forte barulho de campainha) Vamos verhellip
abelardo ii (veste botas e um completo de domador de feras Usa pastinha e enormes bigodes retorcidos Monoacuteculo Um revoacutelver agrave cinta) Pronto seu Abelardo
abelardo i Traga o dossiecirc desse homemabelardo ii Pois natildeo O seu nomeo cliente (embaraccedilado o chapeacuteu na matildeo uma gravata de cor-
da no pescoccedilo magro) Manoel Pitanga de Moraesabelardo ii Profissatildeoo cliente Eu era proprietaacuterio quando vim aqui pela primeira
vez Depois fui dois anos funcionaacuterio da Estrada de Ferro So-rocabana O empreacutestimo o primeiro creio que foi feito para o parto Quando nasceu a meninahellip
abelardo ii Jaacute sei Estaacute nos impontuais (entrega o dossiecirc reclamado e sai)
abelardo i (examina) Veja Isto natildeo eacute comercial seu Pitanga O senhor fez o primeiro empreacutestimo em fins de 29 Liquidou em maio de 1931 Fez outro em junho de 31 estamos em 1933 Reformou sempre Haacute dois meses suspendeu o serviccedilo de ju-roshellip Natildeo eacute comercialhellip
o cliente Exatamente Procurei o senhor a segunda vez por causa da demora de pagamento na Estrada com a Revoluccedilatildeo de 30 A primeira foi para o parto A crianccedila jaacute tinha dois anos E a Revoluccedilatildeo em 30hellip Foi um mau sucesso que complicou tudohellip
abelardo i O senhor sabe o sistema da casa eacute reformar Mas natildeo podemos trabalhar com quem natildeo paga juroshellip Vivemos disso O senhor cometeu a maior falta contra a seguranccedila do nosso negoacutecio e o sistema da casahellip
17
o cliente Haacute dois meses somente que natildeo posso pagar jurosabelardo i Dois meses O senhor acha que eacute poucoo cliente Por isso mesmo eacute que eu quero liquidar Entrar num
acordo A fim de natildeo ser penhorado Que diabo O senhor tem auxiliado tanta gente Eacute o amigo de todo mundohellip Por que co-migo natildeo haacute de fazer um acordo
abelardo i Aqui natildeo haacute acordo meu amigo Haacute pagamentoo cliente Mas eu me acho numa situaccedilatildeo triste Natildeo posso pa-
gar tudo seu Abelardo Talvez consiga um adiantamento para liquidarhellip
abelardo i Apesar da sua impontualidade examinaremos as suas propostashellip
o cliente Mas eu fui pontual dois anos e meio Paguei enquanto pude A minha diacutevida era de um conto de reacuteis Soacute de juros eu lhe trouxe aqui nesta sala mais de dois contos e quinhentos E ateacute agora natildeo me utilizei da lei contra a usurahellip
abelardo i (interrompendo-o brutal) Ah meu amigo Utilize--se dessa coisa imoral e iniacutequa Se fala de lei de usura estamos com as negociaccedilotildees rotashellip Saia daqui
o cliente Ora seu Abelardo O senhor me conhece Eu sou incapaz
abelardo i Natildeo me fale nessa monstruosidade porque eu o mando executar hoje mesmo Tomo-lhe ateacute a roupa ouviu A camisa do corpo
o cliente Eu natildeo vou me aproveitar seu Abelardo Quero lhe pagar Mas quero tambeacutem lhe propor um acordo A minha situaccedilatildeo eacute tristehellip Natildeo tenho culpa de ter sido dispensado Empreguei-me outra vez Despediram-me por economia Natildeo ponho minha filhinha na escola porque natildeo posso comprar sapatos para ela Natildeo hei de morrer de fome tambeacutem Agraves vezes natildeo temos o que comer em casa Minha mulher agora caiu doente No entanto sou um homem habilitado Tenho
18
procurado inutilmente emprego por toda a parte Soacute tenho recebido natildeos enormes Do tamanho do ceacuteu Agora aprendi escrituraccedilatildeo estou fazendo umas escritas Uns biscates Hei de arribarhellip Quero ver se adiantam para lhe pagar
abelardo i Mas enfim o que eacute que o senhor me propotildeeo cliente Uma pequena reduccedilatildeo no capitalabelardo i No capital O senhor estaacute maluco Reduzir o capital
Nuncao cliente Mas eu jaacute paguei mais do dobro do que levei daquihellipabelardo i Me diga uma coisa seu Pitanga Fui eu que fui pro-
curaacute-lo para assinar este papagaio Foi o meu automoacutevel que parou diante do seu casebre para pedir que aceitasse o meu dinheiro Com que direito o senhor me propotildee uma reduccedilatildeo no capital que eu lhe emprestei
o cliente (desnorteado) Eu jaacute paguei duas vezeshellipabelardo i Suma-se daqui (levanta-se) Saia ou chamo a po-
liacutecia Eacute soacute dar o sinal de crime neste aparelho A poliacutecia ainda existehellip
o cliente Para defender os capitalistas E os seus crimesabelardo i Para defender o meu dinheiro Seraacute executado hoje
mesmo (toca a campainha) Abelardo Decirc ordens para executaacute--lo Rua Vamos Fuzile-o Eacute o sistema da casa
o cliente Eu sou um covarde (vai chorando) O senhor abusa de um fraco de um covarde
Menos o Cliente
abelardo i Natildeo faccedila entrar mais ningueacutem hoje Abelardoabelardo ii A jaula estaacute cheiahellip seu Abelardoabelardo i Mas esta cena basta para nos identificar perante
o puacuteblico Natildeo preciso mais falar com nenhum dos meus
19
clientes Satildeo todos iguais Sobretudo natildeo me traga pais que natildeo podem comprar sapatos para os filhoshellip
abelardo ii Esse estaacute se queixando de barriga cheia Natildeo tem prole numerosa Soacute uma filhahellip Famiacutelia pequena
abelardo i Natildeo confunda seu Abelardo Famiacutelia eacute uma coisa distinta Prole eacute de proletaacuterio A famiacutelia requer a propriedade e vice-versa Quem natildeo tem propriedades deve ter prole Para trabalhar os filhos satildeo a fortuna do pobrehellip
abelardo ii Mas hoje ningueacutem mais vai nissohellipabelardo i Eacute a desordem social o desemprego a Ruacutessia Esse
homem possuiacutea uma casinha Tinha o direito de ter uma fa-miacutelia Perdeu a casa Cavasse prole Seu Abelardo a famiacutelia e a propriedade satildeo duas garotas que frequentam a mesma gar-ccedilonniegravere a mesma farrahellip quando o patildeo sobrahellip Mas quando o patildeo falta uma sai pela porta e a outra voa pela janelahellip
abelardo ii A famiacutelia eacute o ideal do homem A propriedade tam-beacutem E d Heloiacutesa eacute um anjo
abelardo i Vocecirc sabe que natildeo haacute outro gecircnero no mercado Eu natildeo ia me casar com a irmatilde mais moccedila que chamam por aiacute de garota da crise e de Joatildeo dos Divatildes Nem com o irmatildeo menor que todo mundo conhece por Totoacute Fruta-do-Conde
abelardo ii Um degeneradohellipabelardo i Coisas que se compreendem e relevam numa velha
famiacutelia Heloiacutesa apesar dos viacutecios que lhe apontamhellip Vocecirc sabe toda a gente sabe Heloiacutesa de Lesbos Fizeram piada quando comprei uma ilha no Rio para nos casarmos Disseram que era na Greacutecia Apesar disso ela ainda eacute a flor mais decente dessa velha aacutervore bandeirante Uma das famiacutelias fundamentais do Impeacuterio
abelardo ii O velho estaacute de tanga Entregou tudo aos credoresabelardo i Que importa Para noacutes homens adiantados que soacute
conhecemos uma coisa fria o valor do dinheiro comprar esses
20
restos de brasatildeo ainda eacute negoacutecio faz vista num paiacutes medieval como o nosso O senhor sabe que Satildeo Paulo soacute tem dez famiacutelias
abelardo ii E o resto da populaccedilatildeoabelardo i O resto eacute prole O que eu estou fazendo o que o se-
nhor quer fazer eacute deixar de ser prole para ser famiacutelia comprar os velhos brasotildees isso ateacute parece teatro do seacuteculo xix Mas no Brasil ainda eacute novo
abelardo ii Se eacute A burguesia soacute produziu um teatro de classe A apresentaccedilatildeo da classe Hoje evoluiacutemos Chegamos agrave espi-nafraccedilatildeo
abelardo i Bem Veja o bordereauhellip O Banco devolveu muita coisa
abelardo ii Xu Um colosso Estamos no vinagre seu Abelardoabelardo i Vamoshellipabelardo ii (lendo) Cinco contos setecentos e setenta Dr Car-
los Magalhatildees de Moraes Benevides Fonseca Chapa uacutenicahellip Reforma-se Natildeo paga juros haacute dois meses
abelardo i Reforma-seabelardo ii Antunes amp Lapahellip trecircs contoshellip jaacute protestei Man-
gionihellip Luiz O bicheirohellip Dr Joatildeo Carlos de Menezes Rochahellip dois contoshellip
abelardo i Pro protestoabelardo ii Baratildeo de Gama Lima quinhentos mil-reacuteishellipabelardo i Pro protestoabelardo ii Moura Melohellip setecentos mil-reacuteisabelardo i Pro protestoabelardo ii Abraatildeo Calimeacuteriohellip dez contosabelardo i Pro protestoabelardo ii Carlos Pereshellip Esta jaacute foi pro pau ontemhellipabelardo i Ele natildeo pediu reformaabelardo ii Natildeoabelardo i E por quecirc
21
abelardo ii Tomou dois copos de limonada com iodo Estaacute aqui no jornal (procura) Diz que estaacute em estado de coma na Santa Casahellip
abelardo i Mande o Benvindo fazer a penhora Depressa Antes que ele morra e a venda fechehellip
abelardo ii Estaacute certo Esta eacutehellip daquele funcionaacuterio puacuteblico o Pires Limpohellip Ele estaacute limpo e de pires Mandou a filha aqui
abelardo i Bonitaabelardo ii Pancadatildeo Dezoito anoshellip Cada dente deste tama-
nhoabelardo i Mandou a filha O mecircs passado veio a mulherabelardo ii Eu vi Jeitosahellip Mas muito faladeira Queria saber
onde eacute que o senhor morava falou na compra da ilha no Rio onde o senhor vai se casar Que ia levar de aviatildeo uma porccedilatildeo de gente de Satildeo Paulo
abelardo i (batendo o peacute numa grande caixa de papelatildeo) Que eacute isto aqui
abelardo ii Focircrmas de chapeacuteu (mostra o casticcedilal de latatildeo) A penhora de Mme Lanale Soacute tinha isso e aquele candelabro Quase que natildeo daacute para pagar os tiras que ajudaram
abelardo i E os moacuteveishellipabelardo ii Ficaram despedaccedilados na rua Eram duas peccedilas
velhas de ferro Foi um escacircndalo O estado-maior teve que agir duro O povo queria se opor Juntou gentehellip
abelardo i Que estado-maiorabelardo ii Os oficiais de justiccedilahellipabelardo i Mas o exemplo ficouabelardo ii E frutificaraacuteabelardo i A rua inteira sabe que penhorei porque natildeo me
pagaram 200$000 A cidade inteira sabe Talvez gastasse mais nissohellip Que importa Dura Lex aprendi isso na Faculdade de Direito
22
abelardo ii Queria que o senhor visse a choradeira A viuacuteva berrava na janela mdash Gli orfani Gli orfani Non abiamo piu lavoro
abelardo i O quecircabelardo ii Ela queria dizer que os oacuterfatildeos natildeo tinham mais o
que comer Tiramos os instrumentos de trabalhoabelardo i Manhosahellipabelardo ii Soacute se pode prosperar agrave custa de muita desgraccedila
Mas de muita mesmohellipabelardo i Se natildeo for assim como garantirei os meus deposi-
tantes Se natildeo tiro do outro lado Ofereccedilo juros que os bancos natildeo pagam Os juros que soacute alguns pagavam nos bons tempos Quatro e ateacute cinco por cento ao ano
abelardo ii Tambeacutem o dinheiro corre para aquihellip Laacute embaixo a seccedilatildeo bancaacuteria estaacute assim
abelardo i Ofereccedilo boas garantias E tambeacutem exijo boas ga-rantias quando emprestohellip
abelardo ii A cinco e dez por cento ao mecircshellip Por filantropia (o telefone) Eacute seu irmatildeo
abelardo i Meu advogadoabelardo ii (no fone) Sim senhor Estaacute (para Abelardo) Diz
que entrou no Foacuterum com trecircs executivos Estaacute chamando o senhorhellip
abelardo i (ao fone) Como Sou euhellip Abelardo O Teodoro Quer se prevalecer da lei de usura Grande besta E pede reforma Linche esse camarada Ponha flite nele e acenda um foacutesforo (bate o fone) Pro pau com esse bandido Lei contra a usura Miseraacuteveis Bolchevistas Por isso eacute que o paiacutes se arruiacutena E haacute um miseraacutevel que quer se aproveitar dessa iniquidade
abelardo ii Leis sociaishellipabelardo i Suacutecia de desonestos Intervir nos juros Cercear
o sagrado direito de emprestar o meu dinheiro agrave taxa que eu
23
quiser E que todos aceitam Mais Que vecircm implorar aqui Sou eu que vou buscaacute-los para assinar papagaios Ou satildeo eles que todos os dias enchem a minha sala de espera Abra a jaula
Abelardo ii obedece de chicote em punho A porta de ferro corre pesadamente
Mais clientes
Os clientes aparecem atropeladamente nas grades Eacute uma coleccedilatildeo de crise variada expectante Homens e mulheres mantecircm-se quietos ante o enorme chicote de Abelardo ii
abelardo i Rua Nem mais um negoacutecio Vou fechar esta bagun-ccedila
as vozes (da jaula) Pelo amor de Deus Por caridade Eu natildeo posso pagar o aluguel Reforme Vou agrave falecircncia
abelardo i Rua Ningueacutem mais pode trabalhar num paiacutes des-tes Com leis monstruosas
as vozes Eu tenho que fechar a faacutebrica Natildeo poderei pagar os duzentos operaacuterios que ficaratildeo sem patildeo Tenha piedade Inclua os juros no capital Damos excelentes garantias
abelardo i (a Abelardo ii) Feche esta porta Natildeo atendo nin-gueacutem
Abelardo ii faz estalar o chicote de domador
as vozes Blefaremos o governo Me salve Me salveabelardo i Rua Canalhas Laacute fora sei como vocecircs me tratam
Abelardo ii faacute-los recuar das grades brandindo o chicote e amea-ccedilando com o revoacutelver
24
uma voz de mulher Ai Jesus Natildeo temos o que comer Eu natildeo saio daqui Espero ateacute agrave noite Estou arruinada
as vozes irritadas (Abelardo ii procura fechar a porta de fer-ro) Canalha Sujo Tirou o nosso sangue Ladratildeo Natildeo saiacutemos daqui
um italiano Pamarona Momanjo isto capitalistauma francesa Sale cochon Si crsquoest possible Conum russo branco Svolochum turco Joacutege paga bateacuteca Non izacuta Joacutegehellipas vozes (em coro) Assassinoabelardo i Feche Atire
Abelardo ii daacute um tiro para o ar Os clientes recuam gritando Ele corre a porta de ferro ruidosamente
as vozes (abafadas) Catildeo Rei da Vela Patildeo-durouma voz de mulher (gritando do outro lado da porta) Meu
marido bebeu estricninaoutra Minha matildee tomou lisoloutra Meu pai se jogou do viadutoabelardo i Lisol Estricnina Viaduto Eacute do que vocecircs precisam
canalhas
Menos o Cliente
Telefone
abelardo ii (atendendo) Alocirc Eacute o padre Aquele da entrevista Estaacute reverendo Vem jaacutehellip
abelardo i Mas vocecirc marcouabelardo ii Natildeo marquei nada
25
abelardo i (toma o fone) Bom dia reverendo Sou eu mesmo Abelardohellip Ah Com muitiacutessima honrahellip Esperarei vossa reve-rendiacutessima Pode ser agraves quatro horas Entatildeohellip sem duacutevidahellip Beijo-lhe as matildeos Sempre agraves suas ordens (depotildee o fone) Este padre eacute engraccediladohellip Natildeo me largahellip Eu natildeo sou eleitorhellip Ele natildeo quer dinheirohellip
abelardo ii Quer a sua almahellipabelardo i Evidentemente eacute um caso raro Um homem preo-
cupar-se comigo sem ser logo agrave vistahellip Quantoabelardo ii Ele prefere tratar desde jaacute do seu testamentoabelardo i Inuacutetil Eu morro ateu e casadoabelardo ii Eacute isso mesmo que ele quer A viuacuteva cuidaraacute bas-
tante de sua alma que teraacute idohellip para o purgatoacuteriohellipabelardo i Diga-me uma coisa seu Abelardo vocecirc eacute socialistaabelardo ii Sou o primeiro socialista que aparece no Teatro
Brasileiroabelardo i E o que eacute que vocecirc querabelardo ii Sucedecirc-lo nessa mesaabelardo i Pelo que vejo o socialismo nos paiacuteses atrasados co-
meccedila logo assimhellip Entrando num acordo com a propriedadehellipabelardo ii De fatohellip Estamos num paiacutes semicolonialhellipabelardo i Onde a gente pode ter ideias mas natildeo eacute de ferroabelardo ii Sim Sem quebrar a tradiccedilatildeoabelardo i Se for preciso o padre leva a sua alma tambeacutemhellip
Estaacute certohellip Vamos examinar aquelas propostas (senta-se e lecirc) Carmo Belatinehellip
abelardo ii Eacute aquele da faacutebrica de salsichashellip O frigoriacuteficohellip Que comprou o terreno da Lapa
abelardo i Idadeabelardo ii Trinta e nove anosabelardo i Niacutevel de vida
26
abelardo ii Niacutevel baixo ainda Faz a barba na terrina da sopa com sabatildeo de cozinha e gilete de segunda matildeohellip
abelardo i Jaacute fala o portuguecircsabelardo ii Ainda atrapalhaabelardo i Gasta menos do que tira dos trabalhadoresabelardo ii Muito menosabelardo i Tem filhos grandesabelardo ii Pequenos aindaabelardo i Em bons coleacutegiosabelardo ii Sim Oiseaux Sion Satildeo Bentoabelardo i Bem Tome nota Emprestamos enquanto os peque-
nos estudarem Quando as filhas comeccedilarem o serviccedilo militar nas garccedilonniegraveres e o pequeno tiver barata e Madame souber se vestir emprestaremos entatildeo de preferecircncia agrave costureira de Madame O velho aiacute teraacute mudado de niacutevel Possuiraacute automoacutevel casa no Jardim Ameacuterica Cessaremos pouco a pouco todo o creacute-dito Nem mais um papagaio Ele viraacute aqui caucionar os tiacutetulos dos comerciantes a quem fornece Executarei tudo um dia Le-varei a faacutebrica os capitais imobilizados e o ferro-velho agrave praccedila
abelardo ii E a mulher diraacute que foram os operaacuterios que os arruinaram
abelardo i E foram de fato Eu conto como fator essencial dessas coisas as exigecircncias atuais do operariado O salaacuterio miacutenimo As feacuterias Que diabo As tais leis sociais natildeo hatildeo de ser soacute contra o capitalhellip
abelardo ii Natildeo satildeo natildeo Descanse Eu entendo de socialismo Olhe A lei de feacuterias soacute deu um resultado Natildeo haacute mais salaacuterio de semana ou de mecircs Eacute por dia de trabalho ou por contrato Somando bem os domingos feriados e dias de doenccedila eram mais que as feacuterias de hoje
27
abelardo i Bem Guarde esta ficha nos Firmes Feche o negoacute-cio A mesma taxa O sistema da casa Chame a Secretaacuteria no 3 Quero ditar uma carta
Abelardo ii sai
Abelardo i e a Secretaacuteria no 3
a secretaacuteria (eacute uma moccedila longa de oacuteculos e tranccedilas enormes e loiras Veste-se pudicamente Traz laacutepis e blocknotes na matildeo) Eacute para bater agrave maacutequina seu Abelardo
abelardo i Natildeo Para estenografar Nem isso A senhora sabe redigir Melhor do que eu Faccedila uma carta Sente-se aiacute (sentam-se perto um do outro) D Aiacutedahellip Aiacuteda loirahellip Aiacuteda de Wagner Como eacute Natildeo precisa de um Radameacutes
a secretaacuteria Preciso que o senhor melhore o meu ordenado O custo da vida aumentou no Brasil de trinta por cento
abelardo i Tenho todo interesse pelo custo de sua vidahellip Mas a senhora sabehellip As vidas hoje estatildeo difiacuteceis para todoshellip Natildeo eacute mais como antigamentehellip Que tranccedilashellip Eu acabo me enfor-cando nessas tranccedilashellip Deixa (procura tocar-lhe os cabelos)
a secretaacuteria Tenha modos seu Abelardoabelardo i Deixa Malvadaa secretaacuteria Nunca Eu sou romacircntica Natildeo vendo o meu
amorabelardo i Vamos fazer um piqueniquehellip (aponta o divatilde sob a
Gioconda) Debaixo daquela mangueiraa secretaacuteria Eu sou noivaabelardo i Eu tambeacutema secretaacuteria Mas eu sou fielhellipabelardo i Bem Depois natildeo venha fazer vales aqui hein Eu
tambeacutem sei ser fiel ao sistema da casa Vaacute laacute Redija Natildeo
28
Tome nota Olhe Eacute uma carta confidencial A um tal Cristiano de Bensauacutede Industrial no Rio Metido a escritor Redija sem erros de portuguecircs O homem foi criacutetico literaacuterio e avanccedilado quando era prontohellip Ele me escreveu propondo frente uacutenica contra os operaacuterios Responda em tese (a secretaacuteria toma nota) insinue que eacute melhor ele ser um puro policial Manter vigilacircncia rigorosa nas faacutebricas Evitar a propaganda comunis-ta Denunciar e perseguir os agitadores Prender Esse negoacutecio de escrever livros de sociologia com anjos eacute contraproducente Ningueacutem mais crecirc Fica ridiacuteculo para noacutes industriais avanccedila-dos Diante dos americanos e dos ingleses Olhe diga isto Que a burguesia morre sem Deus Recusa a extrema-unccedilatildeo Cite o exemplo do proacuteprio Vaticano Coisas concretas A adesatildeo poliacute-tica da igreja contra um bilhatildeo e setecentos milhotildees de liras o ensino religioso e a lei contra o divoacutercio Toma laacute daacute caacute Natildeo vecirc que um alpinista como Pio xi potildee anjos em negoacutecios Vaacute redigir e traga logo Para seguir hojehellip Ver se esse homem deixa de atrapalhar Um sujeito feudal Viacutetima do seu proacuteprio sistema Paga um salaacuterio medieval 20$000 por quinzena
a secretaacuteria (voltando-se da porta) Ga-ra-nhatildeo (sai esbar-rando em Heloiacutesa de Lesbos que vestida de homem entra como a manhatilde laacute de fora)
Menos a Secretaacuteria mais Heloiacutesa
abelardo i (rindo) Vocecirc Meu amor Na hora do expedienteheloiacutesa O nosso casamento eacute um negoacuteciohellipabelardo i Por isso vieste de Marleneheloiacutesa Mas natildeo haacute de ser um negoacutecio como esses que vocecirc
faz com esse bando de desesperados que saiu daiacute vociferandohellip Estatildeo ainda muitos laacute embaixo Haacute mulheres idosas moccedilas turcos italianos russos de prestaccedilatildeo uma fauna de hospiacuteciohellip
29
abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute
Mais Abelardo ii
abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo
abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer
fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso
abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo
Mais o Intelectual Pinote
pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre
heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-
-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui
pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-
fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute
uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-
guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i
senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as
Copyright copy 2017 by herdeiros de Oswald de Andrade
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortograacutefico da Liacutengua Portuguesa de 1990
que entrou em vigor no Brasil em 2009
pesquisa revisatildeo e estabelecimento do texto oswaldiano Gecircnese Andrade
cronologia Orna Messer Levin
capa e projeto graacutefico Elisa von Randow
caricatura do autor Loredano Oswald de Andrade 2015 Nanquim sobre papel 21 x 297 cm
publicada em O Estado de S Paulo Satildeo Paulo 28 jan 2017
quarta capa Nonecirc (Oswald de Andrade Filho) Retrato de Oswald de Andrade deacutecada de 1960
Capa da segunda ediccedilatildeo de O Rei da Vela Satildeo Paulo Difusatildeo Europeia do Livro 1967
preparaccedilatildeo Maria Fernanda Alvares
revisatildeo Ana Maria Barbosa e Adriana Bairrada
[2017]Todos os direitos desta ediccedilatildeo reservados agraveeditora schwarcz saRua Bandeira Paulista 702 cj 3204532-002 ndash Satildeo Paulo ndash spTelefone (11) 3707-3500wwwcompanhiadasletrascombrwwwblogdacompanhiacombrfacebookcomcompanhiadasletrasinstagramcomcompanhiadasletrastwittercomcialetras
Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (cip)(Cacircmara Brasileira do Livro sp Brasil)
Andrade Oswald de 1890-1954O Rei da Vela Oswald de Andrade mdash 1a ed mdash Satildeo Paulo
Com pa nhia das Letras 2017
Inclui Uma perspectiva criacutetica sobre Oswald de Andrade Deacutecio de Almeida Prado O Rei da Vela Renato Borghi O Rei da Vela Manifesto do Oficina Joseacute Celso Martinez Correcirca
isbn 978 -85 -359 -2929-4
1 Teatro brasileiro i Prado Deacutecio de Almeida ii Borghi Renato iii Correcirca Joseacute Celso Martinez
17-03900 cdd -8692 Iacutendice para cataacutelogo sistemaacutetico1 Teatro Literatura brasileira 8692
o rei da vela 15 1o Ato 38 2o Ato 60 3o Ato
73 nota sobre o estabelecimento de texto
fortuna criacutetica 77 Uma perspectiva criacutetica sobre Oswald de Andrade Deacutecio de Almeida Prado 82 Posfaacutecio mdashO Rei da Vela Renato Borghi
91 O Rei da Vela Manifesto do Oficina Joseacute Celso Martinez Correcirca
105 Leituras recomendadas 107 Cronologia
O Ei DA
VLAPEccedila M trecircS aToS
A Aacutelvaro Moreyrae
Eugecircnia Aacutelvaro Moreyra
na dura criaccedilatildeode um enjeitado mdash o teatro
nacionalO A
Satildeo Paulo junho 1937
Personagens dramaacuteticos
abelardo iabelardo iiheloiacutesa de lesbosjoana conhecida por joatildeo dos divatildestotoacute fruta-do-condecoronel belarminod cesarinad poloquinhaperdigotoo americanoo clienteo intelectual pinotea secretaacuteriadevedores devedoraso ponto
15
1o ATO
em satildeo paulo Escritoacuterio de usura de Abelardo amp Abelardo Um retrato da Gioconda Caixas amontoadas Um divatilde futurista Uma secretaacuteria Luiacutes XV Um casticcedilal de latatildeo Um telefone Sinal de alar-ma Um mostruaacuterio de velas de todos os tamanhos e de todas as cores Porta enorme de ferro agrave direita correndo sobre rodas hori-zontalmente e deixando ver no interior as grades de uma jaula O Prontuaacuterio peccedila de gavetas com os seguintes roacutetulos malan1049730dros mdash impontuais mdash prontos mdash protestados mdash Na outra divisatildeo penhoras mdash liquidaccedilotildees mdash suiciacutedios mdash tangas
Pela ampla janela entra o barulho da manhatilde na cidade e sai o das maacutequinas de escrever da antessala
16
Abelardo i Abelardo ii e o Cliente
abelardo i (sentado em conversa com o Cliente Aperta um bo-tatildeo ouve-se um forte barulho de campainha) Vamos verhellip
abelardo ii (veste botas e um completo de domador de feras Usa pastinha e enormes bigodes retorcidos Monoacuteculo Um revoacutelver agrave cinta) Pronto seu Abelardo
abelardo i Traga o dossiecirc desse homemabelardo ii Pois natildeo O seu nomeo cliente (embaraccedilado o chapeacuteu na matildeo uma gravata de cor-
da no pescoccedilo magro) Manoel Pitanga de Moraesabelardo ii Profissatildeoo cliente Eu era proprietaacuterio quando vim aqui pela primeira
vez Depois fui dois anos funcionaacuterio da Estrada de Ferro So-rocabana O empreacutestimo o primeiro creio que foi feito para o parto Quando nasceu a meninahellip
abelardo ii Jaacute sei Estaacute nos impontuais (entrega o dossiecirc reclamado e sai)
abelardo i (examina) Veja Isto natildeo eacute comercial seu Pitanga O senhor fez o primeiro empreacutestimo em fins de 29 Liquidou em maio de 1931 Fez outro em junho de 31 estamos em 1933 Reformou sempre Haacute dois meses suspendeu o serviccedilo de ju-roshellip Natildeo eacute comercialhellip
o cliente Exatamente Procurei o senhor a segunda vez por causa da demora de pagamento na Estrada com a Revoluccedilatildeo de 30 A primeira foi para o parto A crianccedila jaacute tinha dois anos E a Revoluccedilatildeo em 30hellip Foi um mau sucesso que complicou tudohellip
abelardo i O senhor sabe o sistema da casa eacute reformar Mas natildeo podemos trabalhar com quem natildeo paga juroshellip Vivemos disso O senhor cometeu a maior falta contra a seguranccedila do nosso negoacutecio e o sistema da casahellip
17
o cliente Haacute dois meses somente que natildeo posso pagar jurosabelardo i Dois meses O senhor acha que eacute poucoo cliente Por isso mesmo eacute que eu quero liquidar Entrar num
acordo A fim de natildeo ser penhorado Que diabo O senhor tem auxiliado tanta gente Eacute o amigo de todo mundohellip Por que co-migo natildeo haacute de fazer um acordo
abelardo i Aqui natildeo haacute acordo meu amigo Haacute pagamentoo cliente Mas eu me acho numa situaccedilatildeo triste Natildeo posso pa-
gar tudo seu Abelardo Talvez consiga um adiantamento para liquidarhellip
abelardo i Apesar da sua impontualidade examinaremos as suas propostashellip
o cliente Mas eu fui pontual dois anos e meio Paguei enquanto pude A minha diacutevida era de um conto de reacuteis Soacute de juros eu lhe trouxe aqui nesta sala mais de dois contos e quinhentos E ateacute agora natildeo me utilizei da lei contra a usurahellip
abelardo i (interrompendo-o brutal) Ah meu amigo Utilize--se dessa coisa imoral e iniacutequa Se fala de lei de usura estamos com as negociaccedilotildees rotashellip Saia daqui
o cliente Ora seu Abelardo O senhor me conhece Eu sou incapaz
abelardo i Natildeo me fale nessa monstruosidade porque eu o mando executar hoje mesmo Tomo-lhe ateacute a roupa ouviu A camisa do corpo
o cliente Eu natildeo vou me aproveitar seu Abelardo Quero lhe pagar Mas quero tambeacutem lhe propor um acordo A minha situaccedilatildeo eacute tristehellip Natildeo tenho culpa de ter sido dispensado Empreguei-me outra vez Despediram-me por economia Natildeo ponho minha filhinha na escola porque natildeo posso comprar sapatos para ela Natildeo hei de morrer de fome tambeacutem Agraves vezes natildeo temos o que comer em casa Minha mulher agora caiu doente No entanto sou um homem habilitado Tenho
18
procurado inutilmente emprego por toda a parte Soacute tenho recebido natildeos enormes Do tamanho do ceacuteu Agora aprendi escrituraccedilatildeo estou fazendo umas escritas Uns biscates Hei de arribarhellip Quero ver se adiantam para lhe pagar
abelardo i Mas enfim o que eacute que o senhor me propotildeeo cliente Uma pequena reduccedilatildeo no capitalabelardo i No capital O senhor estaacute maluco Reduzir o capital
Nuncao cliente Mas eu jaacute paguei mais do dobro do que levei daquihellipabelardo i Me diga uma coisa seu Pitanga Fui eu que fui pro-
curaacute-lo para assinar este papagaio Foi o meu automoacutevel que parou diante do seu casebre para pedir que aceitasse o meu dinheiro Com que direito o senhor me propotildee uma reduccedilatildeo no capital que eu lhe emprestei
o cliente (desnorteado) Eu jaacute paguei duas vezeshellipabelardo i Suma-se daqui (levanta-se) Saia ou chamo a po-
liacutecia Eacute soacute dar o sinal de crime neste aparelho A poliacutecia ainda existehellip
o cliente Para defender os capitalistas E os seus crimesabelardo i Para defender o meu dinheiro Seraacute executado hoje
mesmo (toca a campainha) Abelardo Decirc ordens para executaacute--lo Rua Vamos Fuzile-o Eacute o sistema da casa
o cliente Eu sou um covarde (vai chorando) O senhor abusa de um fraco de um covarde
Menos o Cliente
abelardo i Natildeo faccedila entrar mais ningueacutem hoje Abelardoabelardo ii A jaula estaacute cheiahellip seu Abelardoabelardo i Mas esta cena basta para nos identificar perante
o puacuteblico Natildeo preciso mais falar com nenhum dos meus
19
clientes Satildeo todos iguais Sobretudo natildeo me traga pais que natildeo podem comprar sapatos para os filhoshellip
abelardo ii Esse estaacute se queixando de barriga cheia Natildeo tem prole numerosa Soacute uma filhahellip Famiacutelia pequena
abelardo i Natildeo confunda seu Abelardo Famiacutelia eacute uma coisa distinta Prole eacute de proletaacuterio A famiacutelia requer a propriedade e vice-versa Quem natildeo tem propriedades deve ter prole Para trabalhar os filhos satildeo a fortuna do pobrehellip
abelardo ii Mas hoje ningueacutem mais vai nissohellipabelardo i Eacute a desordem social o desemprego a Ruacutessia Esse
homem possuiacutea uma casinha Tinha o direito de ter uma fa-miacutelia Perdeu a casa Cavasse prole Seu Abelardo a famiacutelia e a propriedade satildeo duas garotas que frequentam a mesma gar-ccedilonniegravere a mesma farrahellip quando o patildeo sobrahellip Mas quando o patildeo falta uma sai pela porta e a outra voa pela janelahellip
abelardo ii A famiacutelia eacute o ideal do homem A propriedade tam-beacutem E d Heloiacutesa eacute um anjo
abelardo i Vocecirc sabe que natildeo haacute outro gecircnero no mercado Eu natildeo ia me casar com a irmatilde mais moccedila que chamam por aiacute de garota da crise e de Joatildeo dos Divatildes Nem com o irmatildeo menor que todo mundo conhece por Totoacute Fruta-do-Conde
abelardo ii Um degeneradohellipabelardo i Coisas que se compreendem e relevam numa velha
famiacutelia Heloiacutesa apesar dos viacutecios que lhe apontamhellip Vocecirc sabe toda a gente sabe Heloiacutesa de Lesbos Fizeram piada quando comprei uma ilha no Rio para nos casarmos Disseram que era na Greacutecia Apesar disso ela ainda eacute a flor mais decente dessa velha aacutervore bandeirante Uma das famiacutelias fundamentais do Impeacuterio
abelardo ii O velho estaacute de tanga Entregou tudo aos credoresabelardo i Que importa Para noacutes homens adiantados que soacute
conhecemos uma coisa fria o valor do dinheiro comprar esses
20
restos de brasatildeo ainda eacute negoacutecio faz vista num paiacutes medieval como o nosso O senhor sabe que Satildeo Paulo soacute tem dez famiacutelias
abelardo ii E o resto da populaccedilatildeoabelardo i O resto eacute prole O que eu estou fazendo o que o se-
nhor quer fazer eacute deixar de ser prole para ser famiacutelia comprar os velhos brasotildees isso ateacute parece teatro do seacuteculo xix Mas no Brasil ainda eacute novo
abelardo ii Se eacute A burguesia soacute produziu um teatro de classe A apresentaccedilatildeo da classe Hoje evoluiacutemos Chegamos agrave espi-nafraccedilatildeo
abelardo i Bem Veja o bordereauhellip O Banco devolveu muita coisa
abelardo ii Xu Um colosso Estamos no vinagre seu Abelardoabelardo i Vamoshellipabelardo ii (lendo) Cinco contos setecentos e setenta Dr Car-
los Magalhatildees de Moraes Benevides Fonseca Chapa uacutenicahellip Reforma-se Natildeo paga juros haacute dois meses
abelardo i Reforma-seabelardo ii Antunes amp Lapahellip trecircs contoshellip jaacute protestei Man-
gionihellip Luiz O bicheirohellip Dr Joatildeo Carlos de Menezes Rochahellip dois contoshellip
abelardo i Pro protestoabelardo ii Baratildeo de Gama Lima quinhentos mil-reacuteishellipabelardo i Pro protestoabelardo ii Moura Melohellip setecentos mil-reacuteisabelardo i Pro protestoabelardo ii Abraatildeo Calimeacuteriohellip dez contosabelardo i Pro protestoabelardo ii Carlos Pereshellip Esta jaacute foi pro pau ontemhellipabelardo i Ele natildeo pediu reformaabelardo ii Natildeoabelardo i E por quecirc
21
abelardo ii Tomou dois copos de limonada com iodo Estaacute aqui no jornal (procura) Diz que estaacute em estado de coma na Santa Casahellip
abelardo i Mande o Benvindo fazer a penhora Depressa Antes que ele morra e a venda fechehellip
abelardo ii Estaacute certo Esta eacutehellip daquele funcionaacuterio puacuteblico o Pires Limpohellip Ele estaacute limpo e de pires Mandou a filha aqui
abelardo i Bonitaabelardo ii Pancadatildeo Dezoito anoshellip Cada dente deste tama-
nhoabelardo i Mandou a filha O mecircs passado veio a mulherabelardo ii Eu vi Jeitosahellip Mas muito faladeira Queria saber
onde eacute que o senhor morava falou na compra da ilha no Rio onde o senhor vai se casar Que ia levar de aviatildeo uma porccedilatildeo de gente de Satildeo Paulo
abelardo i (batendo o peacute numa grande caixa de papelatildeo) Que eacute isto aqui
abelardo ii Focircrmas de chapeacuteu (mostra o casticcedilal de latatildeo) A penhora de Mme Lanale Soacute tinha isso e aquele candelabro Quase que natildeo daacute para pagar os tiras que ajudaram
abelardo i E os moacuteveishellipabelardo ii Ficaram despedaccedilados na rua Eram duas peccedilas
velhas de ferro Foi um escacircndalo O estado-maior teve que agir duro O povo queria se opor Juntou gentehellip
abelardo i Que estado-maiorabelardo ii Os oficiais de justiccedilahellipabelardo i Mas o exemplo ficouabelardo ii E frutificaraacuteabelardo i A rua inteira sabe que penhorei porque natildeo me
pagaram 200$000 A cidade inteira sabe Talvez gastasse mais nissohellip Que importa Dura Lex aprendi isso na Faculdade de Direito
22
abelardo ii Queria que o senhor visse a choradeira A viuacuteva berrava na janela mdash Gli orfani Gli orfani Non abiamo piu lavoro
abelardo i O quecircabelardo ii Ela queria dizer que os oacuterfatildeos natildeo tinham mais o
que comer Tiramos os instrumentos de trabalhoabelardo i Manhosahellipabelardo ii Soacute se pode prosperar agrave custa de muita desgraccedila
Mas de muita mesmohellipabelardo i Se natildeo for assim como garantirei os meus deposi-
tantes Se natildeo tiro do outro lado Ofereccedilo juros que os bancos natildeo pagam Os juros que soacute alguns pagavam nos bons tempos Quatro e ateacute cinco por cento ao ano
abelardo ii Tambeacutem o dinheiro corre para aquihellip Laacute embaixo a seccedilatildeo bancaacuteria estaacute assim
abelardo i Ofereccedilo boas garantias E tambeacutem exijo boas ga-rantias quando emprestohellip
abelardo ii A cinco e dez por cento ao mecircshellip Por filantropia (o telefone) Eacute seu irmatildeo
abelardo i Meu advogadoabelardo ii (no fone) Sim senhor Estaacute (para Abelardo) Diz
que entrou no Foacuterum com trecircs executivos Estaacute chamando o senhorhellip
abelardo i (ao fone) Como Sou euhellip Abelardo O Teodoro Quer se prevalecer da lei de usura Grande besta E pede reforma Linche esse camarada Ponha flite nele e acenda um foacutesforo (bate o fone) Pro pau com esse bandido Lei contra a usura Miseraacuteveis Bolchevistas Por isso eacute que o paiacutes se arruiacutena E haacute um miseraacutevel que quer se aproveitar dessa iniquidade
abelardo ii Leis sociaishellipabelardo i Suacutecia de desonestos Intervir nos juros Cercear
o sagrado direito de emprestar o meu dinheiro agrave taxa que eu
23
quiser E que todos aceitam Mais Que vecircm implorar aqui Sou eu que vou buscaacute-los para assinar papagaios Ou satildeo eles que todos os dias enchem a minha sala de espera Abra a jaula
Abelardo ii obedece de chicote em punho A porta de ferro corre pesadamente
Mais clientes
Os clientes aparecem atropeladamente nas grades Eacute uma coleccedilatildeo de crise variada expectante Homens e mulheres mantecircm-se quietos ante o enorme chicote de Abelardo ii
abelardo i Rua Nem mais um negoacutecio Vou fechar esta bagun-ccedila
as vozes (da jaula) Pelo amor de Deus Por caridade Eu natildeo posso pagar o aluguel Reforme Vou agrave falecircncia
abelardo i Rua Ningueacutem mais pode trabalhar num paiacutes des-tes Com leis monstruosas
as vozes Eu tenho que fechar a faacutebrica Natildeo poderei pagar os duzentos operaacuterios que ficaratildeo sem patildeo Tenha piedade Inclua os juros no capital Damos excelentes garantias
abelardo i (a Abelardo ii) Feche esta porta Natildeo atendo nin-gueacutem
Abelardo ii faz estalar o chicote de domador
as vozes Blefaremos o governo Me salve Me salveabelardo i Rua Canalhas Laacute fora sei como vocecircs me tratam
Abelardo ii faacute-los recuar das grades brandindo o chicote e amea-ccedilando com o revoacutelver
24
uma voz de mulher Ai Jesus Natildeo temos o que comer Eu natildeo saio daqui Espero ateacute agrave noite Estou arruinada
as vozes irritadas (Abelardo ii procura fechar a porta de fer-ro) Canalha Sujo Tirou o nosso sangue Ladratildeo Natildeo saiacutemos daqui
um italiano Pamarona Momanjo isto capitalistauma francesa Sale cochon Si crsquoest possible Conum russo branco Svolochum turco Joacutege paga bateacuteca Non izacuta Joacutegehellipas vozes (em coro) Assassinoabelardo i Feche Atire
Abelardo ii daacute um tiro para o ar Os clientes recuam gritando Ele corre a porta de ferro ruidosamente
as vozes (abafadas) Catildeo Rei da Vela Patildeo-durouma voz de mulher (gritando do outro lado da porta) Meu
marido bebeu estricninaoutra Minha matildee tomou lisoloutra Meu pai se jogou do viadutoabelardo i Lisol Estricnina Viaduto Eacute do que vocecircs precisam
canalhas
Menos o Cliente
Telefone
abelardo ii (atendendo) Alocirc Eacute o padre Aquele da entrevista Estaacute reverendo Vem jaacutehellip
abelardo i Mas vocecirc marcouabelardo ii Natildeo marquei nada
25
abelardo i (toma o fone) Bom dia reverendo Sou eu mesmo Abelardohellip Ah Com muitiacutessima honrahellip Esperarei vossa reve-rendiacutessima Pode ser agraves quatro horas Entatildeohellip sem duacutevidahellip Beijo-lhe as matildeos Sempre agraves suas ordens (depotildee o fone) Este padre eacute engraccediladohellip Natildeo me largahellip Eu natildeo sou eleitorhellip Ele natildeo quer dinheirohellip
abelardo ii Quer a sua almahellipabelardo i Evidentemente eacute um caso raro Um homem preo-
cupar-se comigo sem ser logo agrave vistahellip Quantoabelardo ii Ele prefere tratar desde jaacute do seu testamentoabelardo i Inuacutetil Eu morro ateu e casadoabelardo ii Eacute isso mesmo que ele quer A viuacuteva cuidaraacute bas-
tante de sua alma que teraacute idohellip para o purgatoacuteriohellipabelardo i Diga-me uma coisa seu Abelardo vocecirc eacute socialistaabelardo ii Sou o primeiro socialista que aparece no Teatro
Brasileiroabelardo i E o que eacute que vocecirc querabelardo ii Sucedecirc-lo nessa mesaabelardo i Pelo que vejo o socialismo nos paiacuteses atrasados co-
meccedila logo assimhellip Entrando num acordo com a propriedadehellipabelardo ii De fatohellip Estamos num paiacutes semicolonialhellipabelardo i Onde a gente pode ter ideias mas natildeo eacute de ferroabelardo ii Sim Sem quebrar a tradiccedilatildeoabelardo i Se for preciso o padre leva a sua alma tambeacutemhellip
Estaacute certohellip Vamos examinar aquelas propostas (senta-se e lecirc) Carmo Belatinehellip
abelardo ii Eacute aquele da faacutebrica de salsichashellip O frigoriacuteficohellip Que comprou o terreno da Lapa
abelardo i Idadeabelardo ii Trinta e nove anosabelardo i Niacutevel de vida
26
abelardo ii Niacutevel baixo ainda Faz a barba na terrina da sopa com sabatildeo de cozinha e gilete de segunda matildeohellip
abelardo i Jaacute fala o portuguecircsabelardo ii Ainda atrapalhaabelardo i Gasta menos do que tira dos trabalhadoresabelardo ii Muito menosabelardo i Tem filhos grandesabelardo ii Pequenos aindaabelardo i Em bons coleacutegiosabelardo ii Sim Oiseaux Sion Satildeo Bentoabelardo i Bem Tome nota Emprestamos enquanto os peque-
nos estudarem Quando as filhas comeccedilarem o serviccedilo militar nas garccedilonniegraveres e o pequeno tiver barata e Madame souber se vestir emprestaremos entatildeo de preferecircncia agrave costureira de Madame O velho aiacute teraacute mudado de niacutevel Possuiraacute automoacutevel casa no Jardim Ameacuterica Cessaremos pouco a pouco todo o creacute-dito Nem mais um papagaio Ele viraacute aqui caucionar os tiacutetulos dos comerciantes a quem fornece Executarei tudo um dia Le-varei a faacutebrica os capitais imobilizados e o ferro-velho agrave praccedila
abelardo ii E a mulher diraacute que foram os operaacuterios que os arruinaram
abelardo i E foram de fato Eu conto como fator essencial dessas coisas as exigecircncias atuais do operariado O salaacuterio miacutenimo As feacuterias Que diabo As tais leis sociais natildeo hatildeo de ser soacute contra o capitalhellip
abelardo ii Natildeo satildeo natildeo Descanse Eu entendo de socialismo Olhe A lei de feacuterias soacute deu um resultado Natildeo haacute mais salaacuterio de semana ou de mecircs Eacute por dia de trabalho ou por contrato Somando bem os domingos feriados e dias de doenccedila eram mais que as feacuterias de hoje
27
abelardo i Bem Guarde esta ficha nos Firmes Feche o negoacute-cio A mesma taxa O sistema da casa Chame a Secretaacuteria no 3 Quero ditar uma carta
Abelardo ii sai
Abelardo i e a Secretaacuteria no 3
a secretaacuteria (eacute uma moccedila longa de oacuteculos e tranccedilas enormes e loiras Veste-se pudicamente Traz laacutepis e blocknotes na matildeo) Eacute para bater agrave maacutequina seu Abelardo
abelardo i Natildeo Para estenografar Nem isso A senhora sabe redigir Melhor do que eu Faccedila uma carta Sente-se aiacute (sentam-se perto um do outro) D Aiacutedahellip Aiacuteda loirahellip Aiacuteda de Wagner Como eacute Natildeo precisa de um Radameacutes
a secretaacuteria Preciso que o senhor melhore o meu ordenado O custo da vida aumentou no Brasil de trinta por cento
abelardo i Tenho todo interesse pelo custo de sua vidahellip Mas a senhora sabehellip As vidas hoje estatildeo difiacuteceis para todoshellip Natildeo eacute mais como antigamentehellip Que tranccedilashellip Eu acabo me enfor-cando nessas tranccedilashellip Deixa (procura tocar-lhe os cabelos)
a secretaacuteria Tenha modos seu Abelardoabelardo i Deixa Malvadaa secretaacuteria Nunca Eu sou romacircntica Natildeo vendo o meu
amorabelardo i Vamos fazer um piqueniquehellip (aponta o divatilde sob a
Gioconda) Debaixo daquela mangueiraa secretaacuteria Eu sou noivaabelardo i Eu tambeacutema secretaacuteria Mas eu sou fielhellipabelardo i Bem Depois natildeo venha fazer vales aqui hein Eu
tambeacutem sei ser fiel ao sistema da casa Vaacute laacute Redija Natildeo
28
Tome nota Olhe Eacute uma carta confidencial A um tal Cristiano de Bensauacutede Industrial no Rio Metido a escritor Redija sem erros de portuguecircs O homem foi criacutetico literaacuterio e avanccedilado quando era prontohellip Ele me escreveu propondo frente uacutenica contra os operaacuterios Responda em tese (a secretaacuteria toma nota) insinue que eacute melhor ele ser um puro policial Manter vigilacircncia rigorosa nas faacutebricas Evitar a propaganda comunis-ta Denunciar e perseguir os agitadores Prender Esse negoacutecio de escrever livros de sociologia com anjos eacute contraproducente Ningueacutem mais crecirc Fica ridiacuteculo para noacutes industriais avanccedila-dos Diante dos americanos e dos ingleses Olhe diga isto Que a burguesia morre sem Deus Recusa a extrema-unccedilatildeo Cite o exemplo do proacuteprio Vaticano Coisas concretas A adesatildeo poliacute-tica da igreja contra um bilhatildeo e setecentos milhotildees de liras o ensino religioso e a lei contra o divoacutercio Toma laacute daacute caacute Natildeo vecirc que um alpinista como Pio xi potildee anjos em negoacutecios Vaacute redigir e traga logo Para seguir hojehellip Ver se esse homem deixa de atrapalhar Um sujeito feudal Viacutetima do seu proacuteprio sistema Paga um salaacuterio medieval 20$000 por quinzena
a secretaacuteria (voltando-se da porta) Ga-ra-nhatildeo (sai esbar-rando em Heloiacutesa de Lesbos que vestida de homem entra como a manhatilde laacute de fora)
Menos a Secretaacuteria mais Heloiacutesa
abelardo i (rindo) Vocecirc Meu amor Na hora do expedienteheloiacutesa O nosso casamento eacute um negoacuteciohellipabelardo i Por isso vieste de Marleneheloiacutesa Mas natildeo haacute de ser um negoacutecio como esses que vocecirc
faz com esse bando de desesperados que saiu daiacute vociferandohellip Estatildeo ainda muitos laacute embaixo Haacute mulheres idosas moccedilas turcos italianos russos de prestaccedilatildeo uma fauna de hospiacuteciohellip
29
abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute
Mais Abelardo ii
abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo
abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer
fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso
abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo
Mais o Intelectual Pinote
pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre
heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-
-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui
pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-
fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute
uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-
guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i
senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as
o rei da vela 15 1o Ato 38 2o Ato 60 3o Ato
73 nota sobre o estabelecimento de texto
fortuna criacutetica 77 Uma perspectiva criacutetica sobre Oswald de Andrade Deacutecio de Almeida Prado 82 Posfaacutecio mdashO Rei da Vela Renato Borghi
91 O Rei da Vela Manifesto do Oficina Joseacute Celso Martinez Correcirca
105 Leituras recomendadas 107 Cronologia
O Ei DA
VLAPEccedila M trecircS aToS
A Aacutelvaro Moreyrae
Eugecircnia Aacutelvaro Moreyra
na dura criaccedilatildeode um enjeitado mdash o teatro
nacionalO A
Satildeo Paulo junho 1937
Personagens dramaacuteticos
abelardo iabelardo iiheloiacutesa de lesbosjoana conhecida por joatildeo dos divatildestotoacute fruta-do-condecoronel belarminod cesarinad poloquinhaperdigotoo americanoo clienteo intelectual pinotea secretaacuteriadevedores devedoraso ponto
15
1o ATO
em satildeo paulo Escritoacuterio de usura de Abelardo amp Abelardo Um retrato da Gioconda Caixas amontoadas Um divatilde futurista Uma secretaacuteria Luiacutes XV Um casticcedilal de latatildeo Um telefone Sinal de alar-ma Um mostruaacuterio de velas de todos os tamanhos e de todas as cores Porta enorme de ferro agrave direita correndo sobre rodas hori-zontalmente e deixando ver no interior as grades de uma jaula O Prontuaacuterio peccedila de gavetas com os seguintes roacutetulos malan1049730dros mdash impontuais mdash prontos mdash protestados mdash Na outra divisatildeo penhoras mdash liquidaccedilotildees mdash suiciacutedios mdash tangas
Pela ampla janela entra o barulho da manhatilde na cidade e sai o das maacutequinas de escrever da antessala
16
Abelardo i Abelardo ii e o Cliente
abelardo i (sentado em conversa com o Cliente Aperta um bo-tatildeo ouve-se um forte barulho de campainha) Vamos verhellip
abelardo ii (veste botas e um completo de domador de feras Usa pastinha e enormes bigodes retorcidos Monoacuteculo Um revoacutelver agrave cinta) Pronto seu Abelardo
abelardo i Traga o dossiecirc desse homemabelardo ii Pois natildeo O seu nomeo cliente (embaraccedilado o chapeacuteu na matildeo uma gravata de cor-
da no pescoccedilo magro) Manoel Pitanga de Moraesabelardo ii Profissatildeoo cliente Eu era proprietaacuterio quando vim aqui pela primeira
vez Depois fui dois anos funcionaacuterio da Estrada de Ferro So-rocabana O empreacutestimo o primeiro creio que foi feito para o parto Quando nasceu a meninahellip
abelardo ii Jaacute sei Estaacute nos impontuais (entrega o dossiecirc reclamado e sai)
abelardo i (examina) Veja Isto natildeo eacute comercial seu Pitanga O senhor fez o primeiro empreacutestimo em fins de 29 Liquidou em maio de 1931 Fez outro em junho de 31 estamos em 1933 Reformou sempre Haacute dois meses suspendeu o serviccedilo de ju-roshellip Natildeo eacute comercialhellip
o cliente Exatamente Procurei o senhor a segunda vez por causa da demora de pagamento na Estrada com a Revoluccedilatildeo de 30 A primeira foi para o parto A crianccedila jaacute tinha dois anos E a Revoluccedilatildeo em 30hellip Foi um mau sucesso que complicou tudohellip
abelardo i O senhor sabe o sistema da casa eacute reformar Mas natildeo podemos trabalhar com quem natildeo paga juroshellip Vivemos disso O senhor cometeu a maior falta contra a seguranccedila do nosso negoacutecio e o sistema da casahellip
17
o cliente Haacute dois meses somente que natildeo posso pagar jurosabelardo i Dois meses O senhor acha que eacute poucoo cliente Por isso mesmo eacute que eu quero liquidar Entrar num
acordo A fim de natildeo ser penhorado Que diabo O senhor tem auxiliado tanta gente Eacute o amigo de todo mundohellip Por que co-migo natildeo haacute de fazer um acordo
abelardo i Aqui natildeo haacute acordo meu amigo Haacute pagamentoo cliente Mas eu me acho numa situaccedilatildeo triste Natildeo posso pa-
gar tudo seu Abelardo Talvez consiga um adiantamento para liquidarhellip
abelardo i Apesar da sua impontualidade examinaremos as suas propostashellip
o cliente Mas eu fui pontual dois anos e meio Paguei enquanto pude A minha diacutevida era de um conto de reacuteis Soacute de juros eu lhe trouxe aqui nesta sala mais de dois contos e quinhentos E ateacute agora natildeo me utilizei da lei contra a usurahellip
abelardo i (interrompendo-o brutal) Ah meu amigo Utilize--se dessa coisa imoral e iniacutequa Se fala de lei de usura estamos com as negociaccedilotildees rotashellip Saia daqui
o cliente Ora seu Abelardo O senhor me conhece Eu sou incapaz
abelardo i Natildeo me fale nessa monstruosidade porque eu o mando executar hoje mesmo Tomo-lhe ateacute a roupa ouviu A camisa do corpo
o cliente Eu natildeo vou me aproveitar seu Abelardo Quero lhe pagar Mas quero tambeacutem lhe propor um acordo A minha situaccedilatildeo eacute tristehellip Natildeo tenho culpa de ter sido dispensado Empreguei-me outra vez Despediram-me por economia Natildeo ponho minha filhinha na escola porque natildeo posso comprar sapatos para ela Natildeo hei de morrer de fome tambeacutem Agraves vezes natildeo temos o que comer em casa Minha mulher agora caiu doente No entanto sou um homem habilitado Tenho
18
procurado inutilmente emprego por toda a parte Soacute tenho recebido natildeos enormes Do tamanho do ceacuteu Agora aprendi escrituraccedilatildeo estou fazendo umas escritas Uns biscates Hei de arribarhellip Quero ver se adiantam para lhe pagar
abelardo i Mas enfim o que eacute que o senhor me propotildeeo cliente Uma pequena reduccedilatildeo no capitalabelardo i No capital O senhor estaacute maluco Reduzir o capital
Nuncao cliente Mas eu jaacute paguei mais do dobro do que levei daquihellipabelardo i Me diga uma coisa seu Pitanga Fui eu que fui pro-
curaacute-lo para assinar este papagaio Foi o meu automoacutevel que parou diante do seu casebre para pedir que aceitasse o meu dinheiro Com que direito o senhor me propotildee uma reduccedilatildeo no capital que eu lhe emprestei
o cliente (desnorteado) Eu jaacute paguei duas vezeshellipabelardo i Suma-se daqui (levanta-se) Saia ou chamo a po-
liacutecia Eacute soacute dar o sinal de crime neste aparelho A poliacutecia ainda existehellip
o cliente Para defender os capitalistas E os seus crimesabelardo i Para defender o meu dinheiro Seraacute executado hoje
mesmo (toca a campainha) Abelardo Decirc ordens para executaacute--lo Rua Vamos Fuzile-o Eacute o sistema da casa
o cliente Eu sou um covarde (vai chorando) O senhor abusa de um fraco de um covarde
Menos o Cliente
abelardo i Natildeo faccedila entrar mais ningueacutem hoje Abelardoabelardo ii A jaula estaacute cheiahellip seu Abelardoabelardo i Mas esta cena basta para nos identificar perante
o puacuteblico Natildeo preciso mais falar com nenhum dos meus
19
clientes Satildeo todos iguais Sobretudo natildeo me traga pais que natildeo podem comprar sapatos para os filhoshellip
abelardo ii Esse estaacute se queixando de barriga cheia Natildeo tem prole numerosa Soacute uma filhahellip Famiacutelia pequena
abelardo i Natildeo confunda seu Abelardo Famiacutelia eacute uma coisa distinta Prole eacute de proletaacuterio A famiacutelia requer a propriedade e vice-versa Quem natildeo tem propriedades deve ter prole Para trabalhar os filhos satildeo a fortuna do pobrehellip
abelardo ii Mas hoje ningueacutem mais vai nissohellipabelardo i Eacute a desordem social o desemprego a Ruacutessia Esse
homem possuiacutea uma casinha Tinha o direito de ter uma fa-miacutelia Perdeu a casa Cavasse prole Seu Abelardo a famiacutelia e a propriedade satildeo duas garotas que frequentam a mesma gar-ccedilonniegravere a mesma farrahellip quando o patildeo sobrahellip Mas quando o patildeo falta uma sai pela porta e a outra voa pela janelahellip
abelardo ii A famiacutelia eacute o ideal do homem A propriedade tam-beacutem E d Heloiacutesa eacute um anjo
abelardo i Vocecirc sabe que natildeo haacute outro gecircnero no mercado Eu natildeo ia me casar com a irmatilde mais moccedila que chamam por aiacute de garota da crise e de Joatildeo dos Divatildes Nem com o irmatildeo menor que todo mundo conhece por Totoacute Fruta-do-Conde
abelardo ii Um degeneradohellipabelardo i Coisas que se compreendem e relevam numa velha
famiacutelia Heloiacutesa apesar dos viacutecios que lhe apontamhellip Vocecirc sabe toda a gente sabe Heloiacutesa de Lesbos Fizeram piada quando comprei uma ilha no Rio para nos casarmos Disseram que era na Greacutecia Apesar disso ela ainda eacute a flor mais decente dessa velha aacutervore bandeirante Uma das famiacutelias fundamentais do Impeacuterio
abelardo ii O velho estaacute de tanga Entregou tudo aos credoresabelardo i Que importa Para noacutes homens adiantados que soacute
conhecemos uma coisa fria o valor do dinheiro comprar esses
20
restos de brasatildeo ainda eacute negoacutecio faz vista num paiacutes medieval como o nosso O senhor sabe que Satildeo Paulo soacute tem dez famiacutelias
abelardo ii E o resto da populaccedilatildeoabelardo i O resto eacute prole O que eu estou fazendo o que o se-
nhor quer fazer eacute deixar de ser prole para ser famiacutelia comprar os velhos brasotildees isso ateacute parece teatro do seacuteculo xix Mas no Brasil ainda eacute novo
abelardo ii Se eacute A burguesia soacute produziu um teatro de classe A apresentaccedilatildeo da classe Hoje evoluiacutemos Chegamos agrave espi-nafraccedilatildeo
abelardo i Bem Veja o bordereauhellip O Banco devolveu muita coisa
abelardo ii Xu Um colosso Estamos no vinagre seu Abelardoabelardo i Vamoshellipabelardo ii (lendo) Cinco contos setecentos e setenta Dr Car-
los Magalhatildees de Moraes Benevides Fonseca Chapa uacutenicahellip Reforma-se Natildeo paga juros haacute dois meses
abelardo i Reforma-seabelardo ii Antunes amp Lapahellip trecircs contoshellip jaacute protestei Man-
gionihellip Luiz O bicheirohellip Dr Joatildeo Carlos de Menezes Rochahellip dois contoshellip
abelardo i Pro protestoabelardo ii Baratildeo de Gama Lima quinhentos mil-reacuteishellipabelardo i Pro protestoabelardo ii Moura Melohellip setecentos mil-reacuteisabelardo i Pro protestoabelardo ii Abraatildeo Calimeacuteriohellip dez contosabelardo i Pro protestoabelardo ii Carlos Pereshellip Esta jaacute foi pro pau ontemhellipabelardo i Ele natildeo pediu reformaabelardo ii Natildeoabelardo i E por quecirc
21
abelardo ii Tomou dois copos de limonada com iodo Estaacute aqui no jornal (procura) Diz que estaacute em estado de coma na Santa Casahellip
abelardo i Mande o Benvindo fazer a penhora Depressa Antes que ele morra e a venda fechehellip
abelardo ii Estaacute certo Esta eacutehellip daquele funcionaacuterio puacuteblico o Pires Limpohellip Ele estaacute limpo e de pires Mandou a filha aqui
abelardo i Bonitaabelardo ii Pancadatildeo Dezoito anoshellip Cada dente deste tama-
nhoabelardo i Mandou a filha O mecircs passado veio a mulherabelardo ii Eu vi Jeitosahellip Mas muito faladeira Queria saber
onde eacute que o senhor morava falou na compra da ilha no Rio onde o senhor vai se casar Que ia levar de aviatildeo uma porccedilatildeo de gente de Satildeo Paulo
abelardo i (batendo o peacute numa grande caixa de papelatildeo) Que eacute isto aqui
abelardo ii Focircrmas de chapeacuteu (mostra o casticcedilal de latatildeo) A penhora de Mme Lanale Soacute tinha isso e aquele candelabro Quase que natildeo daacute para pagar os tiras que ajudaram
abelardo i E os moacuteveishellipabelardo ii Ficaram despedaccedilados na rua Eram duas peccedilas
velhas de ferro Foi um escacircndalo O estado-maior teve que agir duro O povo queria se opor Juntou gentehellip
abelardo i Que estado-maiorabelardo ii Os oficiais de justiccedilahellipabelardo i Mas o exemplo ficouabelardo ii E frutificaraacuteabelardo i A rua inteira sabe que penhorei porque natildeo me
pagaram 200$000 A cidade inteira sabe Talvez gastasse mais nissohellip Que importa Dura Lex aprendi isso na Faculdade de Direito
22
abelardo ii Queria que o senhor visse a choradeira A viuacuteva berrava na janela mdash Gli orfani Gli orfani Non abiamo piu lavoro
abelardo i O quecircabelardo ii Ela queria dizer que os oacuterfatildeos natildeo tinham mais o
que comer Tiramos os instrumentos de trabalhoabelardo i Manhosahellipabelardo ii Soacute se pode prosperar agrave custa de muita desgraccedila
Mas de muita mesmohellipabelardo i Se natildeo for assim como garantirei os meus deposi-
tantes Se natildeo tiro do outro lado Ofereccedilo juros que os bancos natildeo pagam Os juros que soacute alguns pagavam nos bons tempos Quatro e ateacute cinco por cento ao ano
abelardo ii Tambeacutem o dinheiro corre para aquihellip Laacute embaixo a seccedilatildeo bancaacuteria estaacute assim
abelardo i Ofereccedilo boas garantias E tambeacutem exijo boas ga-rantias quando emprestohellip
abelardo ii A cinco e dez por cento ao mecircshellip Por filantropia (o telefone) Eacute seu irmatildeo
abelardo i Meu advogadoabelardo ii (no fone) Sim senhor Estaacute (para Abelardo) Diz
que entrou no Foacuterum com trecircs executivos Estaacute chamando o senhorhellip
abelardo i (ao fone) Como Sou euhellip Abelardo O Teodoro Quer se prevalecer da lei de usura Grande besta E pede reforma Linche esse camarada Ponha flite nele e acenda um foacutesforo (bate o fone) Pro pau com esse bandido Lei contra a usura Miseraacuteveis Bolchevistas Por isso eacute que o paiacutes se arruiacutena E haacute um miseraacutevel que quer se aproveitar dessa iniquidade
abelardo ii Leis sociaishellipabelardo i Suacutecia de desonestos Intervir nos juros Cercear
o sagrado direito de emprestar o meu dinheiro agrave taxa que eu
23
quiser E que todos aceitam Mais Que vecircm implorar aqui Sou eu que vou buscaacute-los para assinar papagaios Ou satildeo eles que todos os dias enchem a minha sala de espera Abra a jaula
Abelardo ii obedece de chicote em punho A porta de ferro corre pesadamente
Mais clientes
Os clientes aparecem atropeladamente nas grades Eacute uma coleccedilatildeo de crise variada expectante Homens e mulheres mantecircm-se quietos ante o enorme chicote de Abelardo ii
abelardo i Rua Nem mais um negoacutecio Vou fechar esta bagun-ccedila
as vozes (da jaula) Pelo amor de Deus Por caridade Eu natildeo posso pagar o aluguel Reforme Vou agrave falecircncia
abelardo i Rua Ningueacutem mais pode trabalhar num paiacutes des-tes Com leis monstruosas
as vozes Eu tenho que fechar a faacutebrica Natildeo poderei pagar os duzentos operaacuterios que ficaratildeo sem patildeo Tenha piedade Inclua os juros no capital Damos excelentes garantias
abelardo i (a Abelardo ii) Feche esta porta Natildeo atendo nin-gueacutem
Abelardo ii faz estalar o chicote de domador
as vozes Blefaremos o governo Me salve Me salveabelardo i Rua Canalhas Laacute fora sei como vocecircs me tratam
Abelardo ii faacute-los recuar das grades brandindo o chicote e amea-ccedilando com o revoacutelver
24
uma voz de mulher Ai Jesus Natildeo temos o que comer Eu natildeo saio daqui Espero ateacute agrave noite Estou arruinada
as vozes irritadas (Abelardo ii procura fechar a porta de fer-ro) Canalha Sujo Tirou o nosso sangue Ladratildeo Natildeo saiacutemos daqui
um italiano Pamarona Momanjo isto capitalistauma francesa Sale cochon Si crsquoest possible Conum russo branco Svolochum turco Joacutege paga bateacuteca Non izacuta Joacutegehellipas vozes (em coro) Assassinoabelardo i Feche Atire
Abelardo ii daacute um tiro para o ar Os clientes recuam gritando Ele corre a porta de ferro ruidosamente
as vozes (abafadas) Catildeo Rei da Vela Patildeo-durouma voz de mulher (gritando do outro lado da porta) Meu
marido bebeu estricninaoutra Minha matildee tomou lisoloutra Meu pai se jogou do viadutoabelardo i Lisol Estricnina Viaduto Eacute do que vocecircs precisam
canalhas
Menos o Cliente
Telefone
abelardo ii (atendendo) Alocirc Eacute o padre Aquele da entrevista Estaacute reverendo Vem jaacutehellip
abelardo i Mas vocecirc marcouabelardo ii Natildeo marquei nada
25
abelardo i (toma o fone) Bom dia reverendo Sou eu mesmo Abelardohellip Ah Com muitiacutessima honrahellip Esperarei vossa reve-rendiacutessima Pode ser agraves quatro horas Entatildeohellip sem duacutevidahellip Beijo-lhe as matildeos Sempre agraves suas ordens (depotildee o fone) Este padre eacute engraccediladohellip Natildeo me largahellip Eu natildeo sou eleitorhellip Ele natildeo quer dinheirohellip
abelardo ii Quer a sua almahellipabelardo i Evidentemente eacute um caso raro Um homem preo-
cupar-se comigo sem ser logo agrave vistahellip Quantoabelardo ii Ele prefere tratar desde jaacute do seu testamentoabelardo i Inuacutetil Eu morro ateu e casadoabelardo ii Eacute isso mesmo que ele quer A viuacuteva cuidaraacute bas-
tante de sua alma que teraacute idohellip para o purgatoacuteriohellipabelardo i Diga-me uma coisa seu Abelardo vocecirc eacute socialistaabelardo ii Sou o primeiro socialista que aparece no Teatro
Brasileiroabelardo i E o que eacute que vocecirc querabelardo ii Sucedecirc-lo nessa mesaabelardo i Pelo que vejo o socialismo nos paiacuteses atrasados co-
meccedila logo assimhellip Entrando num acordo com a propriedadehellipabelardo ii De fatohellip Estamos num paiacutes semicolonialhellipabelardo i Onde a gente pode ter ideias mas natildeo eacute de ferroabelardo ii Sim Sem quebrar a tradiccedilatildeoabelardo i Se for preciso o padre leva a sua alma tambeacutemhellip
Estaacute certohellip Vamos examinar aquelas propostas (senta-se e lecirc) Carmo Belatinehellip
abelardo ii Eacute aquele da faacutebrica de salsichashellip O frigoriacuteficohellip Que comprou o terreno da Lapa
abelardo i Idadeabelardo ii Trinta e nove anosabelardo i Niacutevel de vida
26
abelardo ii Niacutevel baixo ainda Faz a barba na terrina da sopa com sabatildeo de cozinha e gilete de segunda matildeohellip
abelardo i Jaacute fala o portuguecircsabelardo ii Ainda atrapalhaabelardo i Gasta menos do que tira dos trabalhadoresabelardo ii Muito menosabelardo i Tem filhos grandesabelardo ii Pequenos aindaabelardo i Em bons coleacutegiosabelardo ii Sim Oiseaux Sion Satildeo Bentoabelardo i Bem Tome nota Emprestamos enquanto os peque-
nos estudarem Quando as filhas comeccedilarem o serviccedilo militar nas garccedilonniegraveres e o pequeno tiver barata e Madame souber se vestir emprestaremos entatildeo de preferecircncia agrave costureira de Madame O velho aiacute teraacute mudado de niacutevel Possuiraacute automoacutevel casa no Jardim Ameacuterica Cessaremos pouco a pouco todo o creacute-dito Nem mais um papagaio Ele viraacute aqui caucionar os tiacutetulos dos comerciantes a quem fornece Executarei tudo um dia Le-varei a faacutebrica os capitais imobilizados e o ferro-velho agrave praccedila
abelardo ii E a mulher diraacute que foram os operaacuterios que os arruinaram
abelardo i E foram de fato Eu conto como fator essencial dessas coisas as exigecircncias atuais do operariado O salaacuterio miacutenimo As feacuterias Que diabo As tais leis sociais natildeo hatildeo de ser soacute contra o capitalhellip
abelardo ii Natildeo satildeo natildeo Descanse Eu entendo de socialismo Olhe A lei de feacuterias soacute deu um resultado Natildeo haacute mais salaacuterio de semana ou de mecircs Eacute por dia de trabalho ou por contrato Somando bem os domingos feriados e dias de doenccedila eram mais que as feacuterias de hoje
27
abelardo i Bem Guarde esta ficha nos Firmes Feche o negoacute-cio A mesma taxa O sistema da casa Chame a Secretaacuteria no 3 Quero ditar uma carta
Abelardo ii sai
Abelardo i e a Secretaacuteria no 3
a secretaacuteria (eacute uma moccedila longa de oacuteculos e tranccedilas enormes e loiras Veste-se pudicamente Traz laacutepis e blocknotes na matildeo) Eacute para bater agrave maacutequina seu Abelardo
abelardo i Natildeo Para estenografar Nem isso A senhora sabe redigir Melhor do que eu Faccedila uma carta Sente-se aiacute (sentam-se perto um do outro) D Aiacutedahellip Aiacuteda loirahellip Aiacuteda de Wagner Como eacute Natildeo precisa de um Radameacutes
a secretaacuteria Preciso que o senhor melhore o meu ordenado O custo da vida aumentou no Brasil de trinta por cento
abelardo i Tenho todo interesse pelo custo de sua vidahellip Mas a senhora sabehellip As vidas hoje estatildeo difiacuteceis para todoshellip Natildeo eacute mais como antigamentehellip Que tranccedilashellip Eu acabo me enfor-cando nessas tranccedilashellip Deixa (procura tocar-lhe os cabelos)
a secretaacuteria Tenha modos seu Abelardoabelardo i Deixa Malvadaa secretaacuteria Nunca Eu sou romacircntica Natildeo vendo o meu
amorabelardo i Vamos fazer um piqueniquehellip (aponta o divatilde sob a
Gioconda) Debaixo daquela mangueiraa secretaacuteria Eu sou noivaabelardo i Eu tambeacutema secretaacuteria Mas eu sou fielhellipabelardo i Bem Depois natildeo venha fazer vales aqui hein Eu
tambeacutem sei ser fiel ao sistema da casa Vaacute laacute Redija Natildeo
28
Tome nota Olhe Eacute uma carta confidencial A um tal Cristiano de Bensauacutede Industrial no Rio Metido a escritor Redija sem erros de portuguecircs O homem foi criacutetico literaacuterio e avanccedilado quando era prontohellip Ele me escreveu propondo frente uacutenica contra os operaacuterios Responda em tese (a secretaacuteria toma nota) insinue que eacute melhor ele ser um puro policial Manter vigilacircncia rigorosa nas faacutebricas Evitar a propaganda comunis-ta Denunciar e perseguir os agitadores Prender Esse negoacutecio de escrever livros de sociologia com anjos eacute contraproducente Ningueacutem mais crecirc Fica ridiacuteculo para noacutes industriais avanccedila-dos Diante dos americanos e dos ingleses Olhe diga isto Que a burguesia morre sem Deus Recusa a extrema-unccedilatildeo Cite o exemplo do proacuteprio Vaticano Coisas concretas A adesatildeo poliacute-tica da igreja contra um bilhatildeo e setecentos milhotildees de liras o ensino religioso e a lei contra o divoacutercio Toma laacute daacute caacute Natildeo vecirc que um alpinista como Pio xi potildee anjos em negoacutecios Vaacute redigir e traga logo Para seguir hojehellip Ver se esse homem deixa de atrapalhar Um sujeito feudal Viacutetima do seu proacuteprio sistema Paga um salaacuterio medieval 20$000 por quinzena
a secretaacuteria (voltando-se da porta) Ga-ra-nhatildeo (sai esbar-rando em Heloiacutesa de Lesbos que vestida de homem entra como a manhatilde laacute de fora)
Menos a Secretaacuteria mais Heloiacutesa
abelardo i (rindo) Vocecirc Meu amor Na hora do expedienteheloiacutesa O nosso casamento eacute um negoacuteciohellipabelardo i Por isso vieste de Marleneheloiacutesa Mas natildeo haacute de ser um negoacutecio como esses que vocecirc
faz com esse bando de desesperados que saiu daiacute vociferandohellip Estatildeo ainda muitos laacute embaixo Haacute mulheres idosas moccedilas turcos italianos russos de prestaccedilatildeo uma fauna de hospiacuteciohellip
29
abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute
Mais Abelardo ii
abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo
abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer
fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso
abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo
Mais o Intelectual Pinote
pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre
heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-
-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui
pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-
fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute
uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-
guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i
senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as
O Ei DA
VLAPEccedila M trecircS aToS
A Aacutelvaro Moreyrae
Eugecircnia Aacutelvaro Moreyra
na dura criaccedilatildeode um enjeitado mdash o teatro
nacionalO A
Satildeo Paulo junho 1937
Personagens dramaacuteticos
abelardo iabelardo iiheloiacutesa de lesbosjoana conhecida por joatildeo dos divatildestotoacute fruta-do-condecoronel belarminod cesarinad poloquinhaperdigotoo americanoo clienteo intelectual pinotea secretaacuteriadevedores devedoraso ponto
15
1o ATO
em satildeo paulo Escritoacuterio de usura de Abelardo amp Abelardo Um retrato da Gioconda Caixas amontoadas Um divatilde futurista Uma secretaacuteria Luiacutes XV Um casticcedilal de latatildeo Um telefone Sinal de alar-ma Um mostruaacuterio de velas de todos os tamanhos e de todas as cores Porta enorme de ferro agrave direita correndo sobre rodas hori-zontalmente e deixando ver no interior as grades de uma jaula O Prontuaacuterio peccedila de gavetas com os seguintes roacutetulos malan1049730dros mdash impontuais mdash prontos mdash protestados mdash Na outra divisatildeo penhoras mdash liquidaccedilotildees mdash suiciacutedios mdash tangas
Pela ampla janela entra o barulho da manhatilde na cidade e sai o das maacutequinas de escrever da antessala
16
Abelardo i Abelardo ii e o Cliente
abelardo i (sentado em conversa com o Cliente Aperta um bo-tatildeo ouve-se um forte barulho de campainha) Vamos verhellip
abelardo ii (veste botas e um completo de domador de feras Usa pastinha e enormes bigodes retorcidos Monoacuteculo Um revoacutelver agrave cinta) Pronto seu Abelardo
abelardo i Traga o dossiecirc desse homemabelardo ii Pois natildeo O seu nomeo cliente (embaraccedilado o chapeacuteu na matildeo uma gravata de cor-
da no pescoccedilo magro) Manoel Pitanga de Moraesabelardo ii Profissatildeoo cliente Eu era proprietaacuterio quando vim aqui pela primeira
vez Depois fui dois anos funcionaacuterio da Estrada de Ferro So-rocabana O empreacutestimo o primeiro creio que foi feito para o parto Quando nasceu a meninahellip
abelardo ii Jaacute sei Estaacute nos impontuais (entrega o dossiecirc reclamado e sai)
abelardo i (examina) Veja Isto natildeo eacute comercial seu Pitanga O senhor fez o primeiro empreacutestimo em fins de 29 Liquidou em maio de 1931 Fez outro em junho de 31 estamos em 1933 Reformou sempre Haacute dois meses suspendeu o serviccedilo de ju-roshellip Natildeo eacute comercialhellip
o cliente Exatamente Procurei o senhor a segunda vez por causa da demora de pagamento na Estrada com a Revoluccedilatildeo de 30 A primeira foi para o parto A crianccedila jaacute tinha dois anos E a Revoluccedilatildeo em 30hellip Foi um mau sucesso que complicou tudohellip
abelardo i O senhor sabe o sistema da casa eacute reformar Mas natildeo podemos trabalhar com quem natildeo paga juroshellip Vivemos disso O senhor cometeu a maior falta contra a seguranccedila do nosso negoacutecio e o sistema da casahellip
17
o cliente Haacute dois meses somente que natildeo posso pagar jurosabelardo i Dois meses O senhor acha que eacute poucoo cliente Por isso mesmo eacute que eu quero liquidar Entrar num
acordo A fim de natildeo ser penhorado Que diabo O senhor tem auxiliado tanta gente Eacute o amigo de todo mundohellip Por que co-migo natildeo haacute de fazer um acordo
abelardo i Aqui natildeo haacute acordo meu amigo Haacute pagamentoo cliente Mas eu me acho numa situaccedilatildeo triste Natildeo posso pa-
gar tudo seu Abelardo Talvez consiga um adiantamento para liquidarhellip
abelardo i Apesar da sua impontualidade examinaremos as suas propostashellip
o cliente Mas eu fui pontual dois anos e meio Paguei enquanto pude A minha diacutevida era de um conto de reacuteis Soacute de juros eu lhe trouxe aqui nesta sala mais de dois contos e quinhentos E ateacute agora natildeo me utilizei da lei contra a usurahellip
abelardo i (interrompendo-o brutal) Ah meu amigo Utilize--se dessa coisa imoral e iniacutequa Se fala de lei de usura estamos com as negociaccedilotildees rotashellip Saia daqui
o cliente Ora seu Abelardo O senhor me conhece Eu sou incapaz
abelardo i Natildeo me fale nessa monstruosidade porque eu o mando executar hoje mesmo Tomo-lhe ateacute a roupa ouviu A camisa do corpo
o cliente Eu natildeo vou me aproveitar seu Abelardo Quero lhe pagar Mas quero tambeacutem lhe propor um acordo A minha situaccedilatildeo eacute tristehellip Natildeo tenho culpa de ter sido dispensado Empreguei-me outra vez Despediram-me por economia Natildeo ponho minha filhinha na escola porque natildeo posso comprar sapatos para ela Natildeo hei de morrer de fome tambeacutem Agraves vezes natildeo temos o que comer em casa Minha mulher agora caiu doente No entanto sou um homem habilitado Tenho
18
procurado inutilmente emprego por toda a parte Soacute tenho recebido natildeos enormes Do tamanho do ceacuteu Agora aprendi escrituraccedilatildeo estou fazendo umas escritas Uns biscates Hei de arribarhellip Quero ver se adiantam para lhe pagar
abelardo i Mas enfim o que eacute que o senhor me propotildeeo cliente Uma pequena reduccedilatildeo no capitalabelardo i No capital O senhor estaacute maluco Reduzir o capital
Nuncao cliente Mas eu jaacute paguei mais do dobro do que levei daquihellipabelardo i Me diga uma coisa seu Pitanga Fui eu que fui pro-
curaacute-lo para assinar este papagaio Foi o meu automoacutevel que parou diante do seu casebre para pedir que aceitasse o meu dinheiro Com que direito o senhor me propotildee uma reduccedilatildeo no capital que eu lhe emprestei
o cliente (desnorteado) Eu jaacute paguei duas vezeshellipabelardo i Suma-se daqui (levanta-se) Saia ou chamo a po-
liacutecia Eacute soacute dar o sinal de crime neste aparelho A poliacutecia ainda existehellip
o cliente Para defender os capitalistas E os seus crimesabelardo i Para defender o meu dinheiro Seraacute executado hoje
mesmo (toca a campainha) Abelardo Decirc ordens para executaacute--lo Rua Vamos Fuzile-o Eacute o sistema da casa
o cliente Eu sou um covarde (vai chorando) O senhor abusa de um fraco de um covarde
Menos o Cliente
abelardo i Natildeo faccedila entrar mais ningueacutem hoje Abelardoabelardo ii A jaula estaacute cheiahellip seu Abelardoabelardo i Mas esta cena basta para nos identificar perante
o puacuteblico Natildeo preciso mais falar com nenhum dos meus
19
clientes Satildeo todos iguais Sobretudo natildeo me traga pais que natildeo podem comprar sapatos para os filhoshellip
abelardo ii Esse estaacute se queixando de barriga cheia Natildeo tem prole numerosa Soacute uma filhahellip Famiacutelia pequena
abelardo i Natildeo confunda seu Abelardo Famiacutelia eacute uma coisa distinta Prole eacute de proletaacuterio A famiacutelia requer a propriedade e vice-versa Quem natildeo tem propriedades deve ter prole Para trabalhar os filhos satildeo a fortuna do pobrehellip
abelardo ii Mas hoje ningueacutem mais vai nissohellipabelardo i Eacute a desordem social o desemprego a Ruacutessia Esse
homem possuiacutea uma casinha Tinha o direito de ter uma fa-miacutelia Perdeu a casa Cavasse prole Seu Abelardo a famiacutelia e a propriedade satildeo duas garotas que frequentam a mesma gar-ccedilonniegravere a mesma farrahellip quando o patildeo sobrahellip Mas quando o patildeo falta uma sai pela porta e a outra voa pela janelahellip
abelardo ii A famiacutelia eacute o ideal do homem A propriedade tam-beacutem E d Heloiacutesa eacute um anjo
abelardo i Vocecirc sabe que natildeo haacute outro gecircnero no mercado Eu natildeo ia me casar com a irmatilde mais moccedila que chamam por aiacute de garota da crise e de Joatildeo dos Divatildes Nem com o irmatildeo menor que todo mundo conhece por Totoacute Fruta-do-Conde
abelardo ii Um degeneradohellipabelardo i Coisas que se compreendem e relevam numa velha
famiacutelia Heloiacutesa apesar dos viacutecios que lhe apontamhellip Vocecirc sabe toda a gente sabe Heloiacutesa de Lesbos Fizeram piada quando comprei uma ilha no Rio para nos casarmos Disseram que era na Greacutecia Apesar disso ela ainda eacute a flor mais decente dessa velha aacutervore bandeirante Uma das famiacutelias fundamentais do Impeacuterio
abelardo ii O velho estaacute de tanga Entregou tudo aos credoresabelardo i Que importa Para noacutes homens adiantados que soacute
conhecemos uma coisa fria o valor do dinheiro comprar esses
20
restos de brasatildeo ainda eacute negoacutecio faz vista num paiacutes medieval como o nosso O senhor sabe que Satildeo Paulo soacute tem dez famiacutelias
abelardo ii E o resto da populaccedilatildeoabelardo i O resto eacute prole O que eu estou fazendo o que o se-
nhor quer fazer eacute deixar de ser prole para ser famiacutelia comprar os velhos brasotildees isso ateacute parece teatro do seacuteculo xix Mas no Brasil ainda eacute novo
abelardo ii Se eacute A burguesia soacute produziu um teatro de classe A apresentaccedilatildeo da classe Hoje evoluiacutemos Chegamos agrave espi-nafraccedilatildeo
abelardo i Bem Veja o bordereauhellip O Banco devolveu muita coisa
abelardo ii Xu Um colosso Estamos no vinagre seu Abelardoabelardo i Vamoshellipabelardo ii (lendo) Cinco contos setecentos e setenta Dr Car-
los Magalhatildees de Moraes Benevides Fonseca Chapa uacutenicahellip Reforma-se Natildeo paga juros haacute dois meses
abelardo i Reforma-seabelardo ii Antunes amp Lapahellip trecircs contoshellip jaacute protestei Man-
gionihellip Luiz O bicheirohellip Dr Joatildeo Carlos de Menezes Rochahellip dois contoshellip
abelardo i Pro protestoabelardo ii Baratildeo de Gama Lima quinhentos mil-reacuteishellipabelardo i Pro protestoabelardo ii Moura Melohellip setecentos mil-reacuteisabelardo i Pro protestoabelardo ii Abraatildeo Calimeacuteriohellip dez contosabelardo i Pro protestoabelardo ii Carlos Pereshellip Esta jaacute foi pro pau ontemhellipabelardo i Ele natildeo pediu reformaabelardo ii Natildeoabelardo i E por quecirc
21
abelardo ii Tomou dois copos de limonada com iodo Estaacute aqui no jornal (procura) Diz que estaacute em estado de coma na Santa Casahellip
abelardo i Mande o Benvindo fazer a penhora Depressa Antes que ele morra e a venda fechehellip
abelardo ii Estaacute certo Esta eacutehellip daquele funcionaacuterio puacuteblico o Pires Limpohellip Ele estaacute limpo e de pires Mandou a filha aqui
abelardo i Bonitaabelardo ii Pancadatildeo Dezoito anoshellip Cada dente deste tama-
nhoabelardo i Mandou a filha O mecircs passado veio a mulherabelardo ii Eu vi Jeitosahellip Mas muito faladeira Queria saber
onde eacute que o senhor morava falou na compra da ilha no Rio onde o senhor vai se casar Que ia levar de aviatildeo uma porccedilatildeo de gente de Satildeo Paulo
abelardo i (batendo o peacute numa grande caixa de papelatildeo) Que eacute isto aqui
abelardo ii Focircrmas de chapeacuteu (mostra o casticcedilal de latatildeo) A penhora de Mme Lanale Soacute tinha isso e aquele candelabro Quase que natildeo daacute para pagar os tiras que ajudaram
abelardo i E os moacuteveishellipabelardo ii Ficaram despedaccedilados na rua Eram duas peccedilas
velhas de ferro Foi um escacircndalo O estado-maior teve que agir duro O povo queria se opor Juntou gentehellip
abelardo i Que estado-maiorabelardo ii Os oficiais de justiccedilahellipabelardo i Mas o exemplo ficouabelardo ii E frutificaraacuteabelardo i A rua inteira sabe que penhorei porque natildeo me
pagaram 200$000 A cidade inteira sabe Talvez gastasse mais nissohellip Que importa Dura Lex aprendi isso na Faculdade de Direito
22
abelardo ii Queria que o senhor visse a choradeira A viuacuteva berrava na janela mdash Gli orfani Gli orfani Non abiamo piu lavoro
abelardo i O quecircabelardo ii Ela queria dizer que os oacuterfatildeos natildeo tinham mais o
que comer Tiramos os instrumentos de trabalhoabelardo i Manhosahellipabelardo ii Soacute se pode prosperar agrave custa de muita desgraccedila
Mas de muita mesmohellipabelardo i Se natildeo for assim como garantirei os meus deposi-
tantes Se natildeo tiro do outro lado Ofereccedilo juros que os bancos natildeo pagam Os juros que soacute alguns pagavam nos bons tempos Quatro e ateacute cinco por cento ao ano
abelardo ii Tambeacutem o dinheiro corre para aquihellip Laacute embaixo a seccedilatildeo bancaacuteria estaacute assim
abelardo i Ofereccedilo boas garantias E tambeacutem exijo boas ga-rantias quando emprestohellip
abelardo ii A cinco e dez por cento ao mecircshellip Por filantropia (o telefone) Eacute seu irmatildeo
abelardo i Meu advogadoabelardo ii (no fone) Sim senhor Estaacute (para Abelardo) Diz
que entrou no Foacuterum com trecircs executivos Estaacute chamando o senhorhellip
abelardo i (ao fone) Como Sou euhellip Abelardo O Teodoro Quer se prevalecer da lei de usura Grande besta E pede reforma Linche esse camarada Ponha flite nele e acenda um foacutesforo (bate o fone) Pro pau com esse bandido Lei contra a usura Miseraacuteveis Bolchevistas Por isso eacute que o paiacutes se arruiacutena E haacute um miseraacutevel que quer se aproveitar dessa iniquidade
abelardo ii Leis sociaishellipabelardo i Suacutecia de desonestos Intervir nos juros Cercear
o sagrado direito de emprestar o meu dinheiro agrave taxa que eu
23
quiser E que todos aceitam Mais Que vecircm implorar aqui Sou eu que vou buscaacute-los para assinar papagaios Ou satildeo eles que todos os dias enchem a minha sala de espera Abra a jaula
Abelardo ii obedece de chicote em punho A porta de ferro corre pesadamente
Mais clientes
Os clientes aparecem atropeladamente nas grades Eacute uma coleccedilatildeo de crise variada expectante Homens e mulheres mantecircm-se quietos ante o enorme chicote de Abelardo ii
abelardo i Rua Nem mais um negoacutecio Vou fechar esta bagun-ccedila
as vozes (da jaula) Pelo amor de Deus Por caridade Eu natildeo posso pagar o aluguel Reforme Vou agrave falecircncia
abelardo i Rua Ningueacutem mais pode trabalhar num paiacutes des-tes Com leis monstruosas
as vozes Eu tenho que fechar a faacutebrica Natildeo poderei pagar os duzentos operaacuterios que ficaratildeo sem patildeo Tenha piedade Inclua os juros no capital Damos excelentes garantias
abelardo i (a Abelardo ii) Feche esta porta Natildeo atendo nin-gueacutem
Abelardo ii faz estalar o chicote de domador
as vozes Blefaremos o governo Me salve Me salveabelardo i Rua Canalhas Laacute fora sei como vocecircs me tratam
Abelardo ii faacute-los recuar das grades brandindo o chicote e amea-ccedilando com o revoacutelver
24
uma voz de mulher Ai Jesus Natildeo temos o que comer Eu natildeo saio daqui Espero ateacute agrave noite Estou arruinada
as vozes irritadas (Abelardo ii procura fechar a porta de fer-ro) Canalha Sujo Tirou o nosso sangue Ladratildeo Natildeo saiacutemos daqui
um italiano Pamarona Momanjo isto capitalistauma francesa Sale cochon Si crsquoest possible Conum russo branco Svolochum turco Joacutege paga bateacuteca Non izacuta Joacutegehellipas vozes (em coro) Assassinoabelardo i Feche Atire
Abelardo ii daacute um tiro para o ar Os clientes recuam gritando Ele corre a porta de ferro ruidosamente
as vozes (abafadas) Catildeo Rei da Vela Patildeo-durouma voz de mulher (gritando do outro lado da porta) Meu
marido bebeu estricninaoutra Minha matildee tomou lisoloutra Meu pai se jogou do viadutoabelardo i Lisol Estricnina Viaduto Eacute do que vocecircs precisam
canalhas
Menos o Cliente
Telefone
abelardo ii (atendendo) Alocirc Eacute o padre Aquele da entrevista Estaacute reverendo Vem jaacutehellip
abelardo i Mas vocecirc marcouabelardo ii Natildeo marquei nada
25
abelardo i (toma o fone) Bom dia reverendo Sou eu mesmo Abelardohellip Ah Com muitiacutessima honrahellip Esperarei vossa reve-rendiacutessima Pode ser agraves quatro horas Entatildeohellip sem duacutevidahellip Beijo-lhe as matildeos Sempre agraves suas ordens (depotildee o fone) Este padre eacute engraccediladohellip Natildeo me largahellip Eu natildeo sou eleitorhellip Ele natildeo quer dinheirohellip
abelardo ii Quer a sua almahellipabelardo i Evidentemente eacute um caso raro Um homem preo-
cupar-se comigo sem ser logo agrave vistahellip Quantoabelardo ii Ele prefere tratar desde jaacute do seu testamentoabelardo i Inuacutetil Eu morro ateu e casadoabelardo ii Eacute isso mesmo que ele quer A viuacuteva cuidaraacute bas-
tante de sua alma que teraacute idohellip para o purgatoacuteriohellipabelardo i Diga-me uma coisa seu Abelardo vocecirc eacute socialistaabelardo ii Sou o primeiro socialista que aparece no Teatro
Brasileiroabelardo i E o que eacute que vocecirc querabelardo ii Sucedecirc-lo nessa mesaabelardo i Pelo que vejo o socialismo nos paiacuteses atrasados co-
meccedila logo assimhellip Entrando num acordo com a propriedadehellipabelardo ii De fatohellip Estamos num paiacutes semicolonialhellipabelardo i Onde a gente pode ter ideias mas natildeo eacute de ferroabelardo ii Sim Sem quebrar a tradiccedilatildeoabelardo i Se for preciso o padre leva a sua alma tambeacutemhellip
Estaacute certohellip Vamos examinar aquelas propostas (senta-se e lecirc) Carmo Belatinehellip
abelardo ii Eacute aquele da faacutebrica de salsichashellip O frigoriacuteficohellip Que comprou o terreno da Lapa
abelardo i Idadeabelardo ii Trinta e nove anosabelardo i Niacutevel de vida
26
abelardo ii Niacutevel baixo ainda Faz a barba na terrina da sopa com sabatildeo de cozinha e gilete de segunda matildeohellip
abelardo i Jaacute fala o portuguecircsabelardo ii Ainda atrapalhaabelardo i Gasta menos do que tira dos trabalhadoresabelardo ii Muito menosabelardo i Tem filhos grandesabelardo ii Pequenos aindaabelardo i Em bons coleacutegiosabelardo ii Sim Oiseaux Sion Satildeo Bentoabelardo i Bem Tome nota Emprestamos enquanto os peque-
nos estudarem Quando as filhas comeccedilarem o serviccedilo militar nas garccedilonniegraveres e o pequeno tiver barata e Madame souber se vestir emprestaremos entatildeo de preferecircncia agrave costureira de Madame O velho aiacute teraacute mudado de niacutevel Possuiraacute automoacutevel casa no Jardim Ameacuterica Cessaremos pouco a pouco todo o creacute-dito Nem mais um papagaio Ele viraacute aqui caucionar os tiacutetulos dos comerciantes a quem fornece Executarei tudo um dia Le-varei a faacutebrica os capitais imobilizados e o ferro-velho agrave praccedila
abelardo ii E a mulher diraacute que foram os operaacuterios que os arruinaram
abelardo i E foram de fato Eu conto como fator essencial dessas coisas as exigecircncias atuais do operariado O salaacuterio miacutenimo As feacuterias Que diabo As tais leis sociais natildeo hatildeo de ser soacute contra o capitalhellip
abelardo ii Natildeo satildeo natildeo Descanse Eu entendo de socialismo Olhe A lei de feacuterias soacute deu um resultado Natildeo haacute mais salaacuterio de semana ou de mecircs Eacute por dia de trabalho ou por contrato Somando bem os domingos feriados e dias de doenccedila eram mais que as feacuterias de hoje
27
abelardo i Bem Guarde esta ficha nos Firmes Feche o negoacute-cio A mesma taxa O sistema da casa Chame a Secretaacuteria no 3 Quero ditar uma carta
Abelardo ii sai
Abelardo i e a Secretaacuteria no 3
a secretaacuteria (eacute uma moccedila longa de oacuteculos e tranccedilas enormes e loiras Veste-se pudicamente Traz laacutepis e blocknotes na matildeo) Eacute para bater agrave maacutequina seu Abelardo
abelardo i Natildeo Para estenografar Nem isso A senhora sabe redigir Melhor do que eu Faccedila uma carta Sente-se aiacute (sentam-se perto um do outro) D Aiacutedahellip Aiacuteda loirahellip Aiacuteda de Wagner Como eacute Natildeo precisa de um Radameacutes
a secretaacuteria Preciso que o senhor melhore o meu ordenado O custo da vida aumentou no Brasil de trinta por cento
abelardo i Tenho todo interesse pelo custo de sua vidahellip Mas a senhora sabehellip As vidas hoje estatildeo difiacuteceis para todoshellip Natildeo eacute mais como antigamentehellip Que tranccedilashellip Eu acabo me enfor-cando nessas tranccedilashellip Deixa (procura tocar-lhe os cabelos)
a secretaacuteria Tenha modos seu Abelardoabelardo i Deixa Malvadaa secretaacuteria Nunca Eu sou romacircntica Natildeo vendo o meu
amorabelardo i Vamos fazer um piqueniquehellip (aponta o divatilde sob a
Gioconda) Debaixo daquela mangueiraa secretaacuteria Eu sou noivaabelardo i Eu tambeacutema secretaacuteria Mas eu sou fielhellipabelardo i Bem Depois natildeo venha fazer vales aqui hein Eu
tambeacutem sei ser fiel ao sistema da casa Vaacute laacute Redija Natildeo
28
Tome nota Olhe Eacute uma carta confidencial A um tal Cristiano de Bensauacutede Industrial no Rio Metido a escritor Redija sem erros de portuguecircs O homem foi criacutetico literaacuterio e avanccedilado quando era prontohellip Ele me escreveu propondo frente uacutenica contra os operaacuterios Responda em tese (a secretaacuteria toma nota) insinue que eacute melhor ele ser um puro policial Manter vigilacircncia rigorosa nas faacutebricas Evitar a propaganda comunis-ta Denunciar e perseguir os agitadores Prender Esse negoacutecio de escrever livros de sociologia com anjos eacute contraproducente Ningueacutem mais crecirc Fica ridiacuteculo para noacutes industriais avanccedila-dos Diante dos americanos e dos ingleses Olhe diga isto Que a burguesia morre sem Deus Recusa a extrema-unccedilatildeo Cite o exemplo do proacuteprio Vaticano Coisas concretas A adesatildeo poliacute-tica da igreja contra um bilhatildeo e setecentos milhotildees de liras o ensino religioso e a lei contra o divoacutercio Toma laacute daacute caacute Natildeo vecirc que um alpinista como Pio xi potildee anjos em negoacutecios Vaacute redigir e traga logo Para seguir hojehellip Ver se esse homem deixa de atrapalhar Um sujeito feudal Viacutetima do seu proacuteprio sistema Paga um salaacuterio medieval 20$000 por quinzena
a secretaacuteria (voltando-se da porta) Ga-ra-nhatildeo (sai esbar-rando em Heloiacutesa de Lesbos que vestida de homem entra como a manhatilde laacute de fora)
Menos a Secretaacuteria mais Heloiacutesa
abelardo i (rindo) Vocecirc Meu amor Na hora do expedienteheloiacutesa O nosso casamento eacute um negoacuteciohellipabelardo i Por isso vieste de Marleneheloiacutesa Mas natildeo haacute de ser um negoacutecio como esses que vocecirc
faz com esse bando de desesperados que saiu daiacute vociferandohellip Estatildeo ainda muitos laacute embaixo Haacute mulheres idosas moccedilas turcos italianos russos de prestaccedilatildeo uma fauna de hospiacuteciohellip
29
abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute
Mais Abelardo ii
abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo
abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer
fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso
abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo
Mais o Intelectual Pinote
pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre
heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-
-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui
pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-
fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute
uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-
guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i
senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as
A Aacutelvaro Moreyrae
Eugecircnia Aacutelvaro Moreyra
na dura criaccedilatildeode um enjeitado mdash o teatro
nacionalO A
Satildeo Paulo junho 1937
Personagens dramaacuteticos
abelardo iabelardo iiheloiacutesa de lesbosjoana conhecida por joatildeo dos divatildestotoacute fruta-do-condecoronel belarminod cesarinad poloquinhaperdigotoo americanoo clienteo intelectual pinotea secretaacuteriadevedores devedoraso ponto
15
1o ATO
em satildeo paulo Escritoacuterio de usura de Abelardo amp Abelardo Um retrato da Gioconda Caixas amontoadas Um divatilde futurista Uma secretaacuteria Luiacutes XV Um casticcedilal de latatildeo Um telefone Sinal de alar-ma Um mostruaacuterio de velas de todos os tamanhos e de todas as cores Porta enorme de ferro agrave direita correndo sobre rodas hori-zontalmente e deixando ver no interior as grades de uma jaula O Prontuaacuterio peccedila de gavetas com os seguintes roacutetulos malan1049730dros mdash impontuais mdash prontos mdash protestados mdash Na outra divisatildeo penhoras mdash liquidaccedilotildees mdash suiciacutedios mdash tangas
Pela ampla janela entra o barulho da manhatilde na cidade e sai o das maacutequinas de escrever da antessala
16
Abelardo i Abelardo ii e o Cliente
abelardo i (sentado em conversa com o Cliente Aperta um bo-tatildeo ouve-se um forte barulho de campainha) Vamos verhellip
abelardo ii (veste botas e um completo de domador de feras Usa pastinha e enormes bigodes retorcidos Monoacuteculo Um revoacutelver agrave cinta) Pronto seu Abelardo
abelardo i Traga o dossiecirc desse homemabelardo ii Pois natildeo O seu nomeo cliente (embaraccedilado o chapeacuteu na matildeo uma gravata de cor-
da no pescoccedilo magro) Manoel Pitanga de Moraesabelardo ii Profissatildeoo cliente Eu era proprietaacuterio quando vim aqui pela primeira
vez Depois fui dois anos funcionaacuterio da Estrada de Ferro So-rocabana O empreacutestimo o primeiro creio que foi feito para o parto Quando nasceu a meninahellip
abelardo ii Jaacute sei Estaacute nos impontuais (entrega o dossiecirc reclamado e sai)
abelardo i (examina) Veja Isto natildeo eacute comercial seu Pitanga O senhor fez o primeiro empreacutestimo em fins de 29 Liquidou em maio de 1931 Fez outro em junho de 31 estamos em 1933 Reformou sempre Haacute dois meses suspendeu o serviccedilo de ju-roshellip Natildeo eacute comercialhellip
o cliente Exatamente Procurei o senhor a segunda vez por causa da demora de pagamento na Estrada com a Revoluccedilatildeo de 30 A primeira foi para o parto A crianccedila jaacute tinha dois anos E a Revoluccedilatildeo em 30hellip Foi um mau sucesso que complicou tudohellip
abelardo i O senhor sabe o sistema da casa eacute reformar Mas natildeo podemos trabalhar com quem natildeo paga juroshellip Vivemos disso O senhor cometeu a maior falta contra a seguranccedila do nosso negoacutecio e o sistema da casahellip
17
o cliente Haacute dois meses somente que natildeo posso pagar jurosabelardo i Dois meses O senhor acha que eacute poucoo cliente Por isso mesmo eacute que eu quero liquidar Entrar num
acordo A fim de natildeo ser penhorado Que diabo O senhor tem auxiliado tanta gente Eacute o amigo de todo mundohellip Por que co-migo natildeo haacute de fazer um acordo
abelardo i Aqui natildeo haacute acordo meu amigo Haacute pagamentoo cliente Mas eu me acho numa situaccedilatildeo triste Natildeo posso pa-
gar tudo seu Abelardo Talvez consiga um adiantamento para liquidarhellip
abelardo i Apesar da sua impontualidade examinaremos as suas propostashellip
o cliente Mas eu fui pontual dois anos e meio Paguei enquanto pude A minha diacutevida era de um conto de reacuteis Soacute de juros eu lhe trouxe aqui nesta sala mais de dois contos e quinhentos E ateacute agora natildeo me utilizei da lei contra a usurahellip
abelardo i (interrompendo-o brutal) Ah meu amigo Utilize--se dessa coisa imoral e iniacutequa Se fala de lei de usura estamos com as negociaccedilotildees rotashellip Saia daqui
o cliente Ora seu Abelardo O senhor me conhece Eu sou incapaz
abelardo i Natildeo me fale nessa monstruosidade porque eu o mando executar hoje mesmo Tomo-lhe ateacute a roupa ouviu A camisa do corpo
o cliente Eu natildeo vou me aproveitar seu Abelardo Quero lhe pagar Mas quero tambeacutem lhe propor um acordo A minha situaccedilatildeo eacute tristehellip Natildeo tenho culpa de ter sido dispensado Empreguei-me outra vez Despediram-me por economia Natildeo ponho minha filhinha na escola porque natildeo posso comprar sapatos para ela Natildeo hei de morrer de fome tambeacutem Agraves vezes natildeo temos o que comer em casa Minha mulher agora caiu doente No entanto sou um homem habilitado Tenho
18
procurado inutilmente emprego por toda a parte Soacute tenho recebido natildeos enormes Do tamanho do ceacuteu Agora aprendi escrituraccedilatildeo estou fazendo umas escritas Uns biscates Hei de arribarhellip Quero ver se adiantam para lhe pagar
abelardo i Mas enfim o que eacute que o senhor me propotildeeo cliente Uma pequena reduccedilatildeo no capitalabelardo i No capital O senhor estaacute maluco Reduzir o capital
Nuncao cliente Mas eu jaacute paguei mais do dobro do que levei daquihellipabelardo i Me diga uma coisa seu Pitanga Fui eu que fui pro-
curaacute-lo para assinar este papagaio Foi o meu automoacutevel que parou diante do seu casebre para pedir que aceitasse o meu dinheiro Com que direito o senhor me propotildee uma reduccedilatildeo no capital que eu lhe emprestei
o cliente (desnorteado) Eu jaacute paguei duas vezeshellipabelardo i Suma-se daqui (levanta-se) Saia ou chamo a po-
liacutecia Eacute soacute dar o sinal de crime neste aparelho A poliacutecia ainda existehellip
o cliente Para defender os capitalistas E os seus crimesabelardo i Para defender o meu dinheiro Seraacute executado hoje
mesmo (toca a campainha) Abelardo Decirc ordens para executaacute--lo Rua Vamos Fuzile-o Eacute o sistema da casa
o cliente Eu sou um covarde (vai chorando) O senhor abusa de um fraco de um covarde
Menos o Cliente
abelardo i Natildeo faccedila entrar mais ningueacutem hoje Abelardoabelardo ii A jaula estaacute cheiahellip seu Abelardoabelardo i Mas esta cena basta para nos identificar perante
o puacuteblico Natildeo preciso mais falar com nenhum dos meus
19
clientes Satildeo todos iguais Sobretudo natildeo me traga pais que natildeo podem comprar sapatos para os filhoshellip
abelardo ii Esse estaacute se queixando de barriga cheia Natildeo tem prole numerosa Soacute uma filhahellip Famiacutelia pequena
abelardo i Natildeo confunda seu Abelardo Famiacutelia eacute uma coisa distinta Prole eacute de proletaacuterio A famiacutelia requer a propriedade e vice-versa Quem natildeo tem propriedades deve ter prole Para trabalhar os filhos satildeo a fortuna do pobrehellip
abelardo ii Mas hoje ningueacutem mais vai nissohellipabelardo i Eacute a desordem social o desemprego a Ruacutessia Esse
homem possuiacutea uma casinha Tinha o direito de ter uma fa-miacutelia Perdeu a casa Cavasse prole Seu Abelardo a famiacutelia e a propriedade satildeo duas garotas que frequentam a mesma gar-ccedilonniegravere a mesma farrahellip quando o patildeo sobrahellip Mas quando o patildeo falta uma sai pela porta e a outra voa pela janelahellip
abelardo ii A famiacutelia eacute o ideal do homem A propriedade tam-beacutem E d Heloiacutesa eacute um anjo
abelardo i Vocecirc sabe que natildeo haacute outro gecircnero no mercado Eu natildeo ia me casar com a irmatilde mais moccedila que chamam por aiacute de garota da crise e de Joatildeo dos Divatildes Nem com o irmatildeo menor que todo mundo conhece por Totoacute Fruta-do-Conde
abelardo ii Um degeneradohellipabelardo i Coisas que se compreendem e relevam numa velha
famiacutelia Heloiacutesa apesar dos viacutecios que lhe apontamhellip Vocecirc sabe toda a gente sabe Heloiacutesa de Lesbos Fizeram piada quando comprei uma ilha no Rio para nos casarmos Disseram que era na Greacutecia Apesar disso ela ainda eacute a flor mais decente dessa velha aacutervore bandeirante Uma das famiacutelias fundamentais do Impeacuterio
abelardo ii O velho estaacute de tanga Entregou tudo aos credoresabelardo i Que importa Para noacutes homens adiantados que soacute
conhecemos uma coisa fria o valor do dinheiro comprar esses
20
restos de brasatildeo ainda eacute negoacutecio faz vista num paiacutes medieval como o nosso O senhor sabe que Satildeo Paulo soacute tem dez famiacutelias
abelardo ii E o resto da populaccedilatildeoabelardo i O resto eacute prole O que eu estou fazendo o que o se-
nhor quer fazer eacute deixar de ser prole para ser famiacutelia comprar os velhos brasotildees isso ateacute parece teatro do seacuteculo xix Mas no Brasil ainda eacute novo
abelardo ii Se eacute A burguesia soacute produziu um teatro de classe A apresentaccedilatildeo da classe Hoje evoluiacutemos Chegamos agrave espi-nafraccedilatildeo
abelardo i Bem Veja o bordereauhellip O Banco devolveu muita coisa
abelardo ii Xu Um colosso Estamos no vinagre seu Abelardoabelardo i Vamoshellipabelardo ii (lendo) Cinco contos setecentos e setenta Dr Car-
los Magalhatildees de Moraes Benevides Fonseca Chapa uacutenicahellip Reforma-se Natildeo paga juros haacute dois meses
abelardo i Reforma-seabelardo ii Antunes amp Lapahellip trecircs contoshellip jaacute protestei Man-
gionihellip Luiz O bicheirohellip Dr Joatildeo Carlos de Menezes Rochahellip dois contoshellip
abelardo i Pro protestoabelardo ii Baratildeo de Gama Lima quinhentos mil-reacuteishellipabelardo i Pro protestoabelardo ii Moura Melohellip setecentos mil-reacuteisabelardo i Pro protestoabelardo ii Abraatildeo Calimeacuteriohellip dez contosabelardo i Pro protestoabelardo ii Carlos Pereshellip Esta jaacute foi pro pau ontemhellipabelardo i Ele natildeo pediu reformaabelardo ii Natildeoabelardo i E por quecirc
21
abelardo ii Tomou dois copos de limonada com iodo Estaacute aqui no jornal (procura) Diz que estaacute em estado de coma na Santa Casahellip
abelardo i Mande o Benvindo fazer a penhora Depressa Antes que ele morra e a venda fechehellip
abelardo ii Estaacute certo Esta eacutehellip daquele funcionaacuterio puacuteblico o Pires Limpohellip Ele estaacute limpo e de pires Mandou a filha aqui
abelardo i Bonitaabelardo ii Pancadatildeo Dezoito anoshellip Cada dente deste tama-
nhoabelardo i Mandou a filha O mecircs passado veio a mulherabelardo ii Eu vi Jeitosahellip Mas muito faladeira Queria saber
onde eacute que o senhor morava falou na compra da ilha no Rio onde o senhor vai se casar Que ia levar de aviatildeo uma porccedilatildeo de gente de Satildeo Paulo
abelardo i (batendo o peacute numa grande caixa de papelatildeo) Que eacute isto aqui
abelardo ii Focircrmas de chapeacuteu (mostra o casticcedilal de latatildeo) A penhora de Mme Lanale Soacute tinha isso e aquele candelabro Quase que natildeo daacute para pagar os tiras que ajudaram
abelardo i E os moacuteveishellipabelardo ii Ficaram despedaccedilados na rua Eram duas peccedilas
velhas de ferro Foi um escacircndalo O estado-maior teve que agir duro O povo queria se opor Juntou gentehellip
abelardo i Que estado-maiorabelardo ii Os oficiais de justiccedilahellipabelardo i Mas o exemplo ficouabelardo ii E frutificaraacuteabelardo i A rua inteira sabe que penhorei porque natildeo me
pagaram 200$000 A cidade inteira sabe Talvez gastasse mais nissohellip Que importa Dura Lex aprendi isso na Faculdade de Direito
22
abelardo ii Queria que o senhor visse a choradeira A viuacuteva berrava na janela mdash Gli orfani Gli orfani Non abiamo piu lavoro
abelardo i O quecircabelardo ii Ela queria dizer que os oacuterfatildeos natildeo tinham mais o
que comer Tiramos os instrumentos de trabalhoabelardo i Manhosahellipabelardo ii Soacute se pode prosperar agrave custa de muita desgraccedila
Mas de muita mesmohellipabelardo i Se natildeo for assim como garantirei os meus deposi-
tantes Se natildeo tiro do outro lado Ofereccedilo juros que os bancos natildeo pagam Os juros que soacute alguns pagavam nos bons tempos Quatro e ateacute cinco por cento ao ano
abelardo ii Tambeacutem o dinheiro corre para aquihellip Laacute embaixo a seccedilatildeo bancaacuteria estaacute assim
abelardo i Ofereccedilo boas garantias E tambeacutem exijo boas ga-rantias quando emprestohellip
abelardo ii A cinco e dez por cento ao mecircshellip Por filantropia (o telefone) Eacute seu irmatildeo
abelardo i Meu advogadoabelardo ii (no fone) Sim senhor Estaacute (para Abelardo) Diz
que entrou no Foacuterum com trecircs executivos Estaacute chamando o senhorhellip
abelardo i (ao fone) Como Sou euhellip Abelardo O Teodoro Quer se prevalecer da lei de usura Grande besta E pede reforma Linche esse camarada Ponha flite nele e acenda um foacutesforo (bate o fone) Pro pau com esse bandido Lei contra a usura Miseraacuteveis Bolchevistas Por isso eacute que o paiacutes se arruiacutena E haacute um miseraacutevel que quer se aproveitar dessa iniquidade
abelardo ii Leis sociaishellipabelardo i Suacutecia de desonestos Intervir nos juros Cercear
o sagrado direito de emprestar o meu dinheiro agrave taxa que eu
23
quiser E que todos aceitam Mais Que vecircm implorar aqui Sou eu que vou buscaacute-los para assinar papagaios Ou satildeo eles que todos os dias enchem a minha sala de espera Abra a jaula
Abelardo ii obedece de chicote em punho A porta de ferro corre pesadamente
Mais clientes
Os clientes aparecem atropeladamente nas grades Eacute uma coleccedilatildeo de crise variada expectante Homens e mulheres mantecircm-se quietos ante o enorme chicote de Abelardo ii
abelardo i Rua Nem mais um negoacutecio Vou fechar esta bagun-ccedila
as vozes (da jaula) Pelo amor de Deus Por caridade Eu natildeo posso pagar o aluguel Reforme Vou agrave falecircncia
abelardo i Rua Ningueacutem mais pode trabalhar num paiacutes des-tes Com leis monstruosas
as vozes Eu tenho que fechar a faacutebrica Natildeo poderei pagar os duzentos operaacuterios que ficaratildeo sem patildeo Tenha piedade Inclua os juros no capital Damos excelentes garantias
abelardo i (a Abelardo ii) Feche esta porta Natildeo atendo nin-gueacutem
Abelardo ii faz estalar o chicote de domador
as vozes Blefaremos o governo Me salve Me salveabelardo i Rua Canalhas Laacute fora sei como vocecircs me tratam
Abelardo ii faacute-los recuar das grades brandindo o chicote e amea-ccedilando com o revoacutelver
24
uma voz de mulher Ai Jesus Natildeo temos o que comer Eu natildeo saio daqui Espero ateacute agrave noite Estou arruinada
as vozes irritadas (Abelardo ii procura fechar a porta de fer-ro) Canalha Sujo Tirou o nosso sangue Ladratildeo Natildeo saiacutemos daqui
um italiano Pamarona Momanjo isto capitalistauma francesa Sale cochon Si crsquoest possible Conum russo branco Svolochum turco Joacutege paga bateacuteca Non izacuta Joacutegehellipas vozes (em coro) Assassinoabelardo i Feche Atire
Abelardo ii daacute um tiro para o ar Os clientes recuam gritando Ele corre a porta de ferro ruidosamente
as vozes (abafadas) Catildeo Rei da Vela Patildeo-durouma voz de mulher (gritando do outro lado da porta) Meu
marido bebeu estricninaoutra Minha matildee tomou lisoloutra Meu pai se jogou do viadutoabelardo i Lisol Estricnina Viaduto Eacute do que vocecircs precisam
canalhas
Menos o Cliente
Telefone
abelardo ii (atendendo) Alocirc Eacute o padre Aquele da entrevista Estaacute reverendo Vem jaacutehellip
abelardo i Mas vocecirc marcouabelardo ii Natildeo marquei nada
25
abelardo i (toma o fone) Bom dia reverendo Sou eu mesmo Abelardohellip Ah Com muitiacutessima honrahellip Esperarei vossa reve-rendiacutessima Pode ser agraves quatro horas Entatildeohellip sem duacutevidahellip Beijo-lhe as matildeos Sempre agraves suas ordens (depotildee o fone) Este padre eacute engraccediladohellip Natildeo me largahellip Eu natildeo sou eleitorhellip Ele natildeo quer dinheirohellip
abelardo ii Quer a sua almahellipabelardo i Evidentemente eacute um caso raro Um homem preo-
cupar-se comigo sem ser logo agrave vistahellip Quantoabelardo ii Ele prefere tratar desde jaacute do seu testamentoabelardo i Inuacutetil Eu morro ateu e casadoabelardo ii Eacute isso mesmo que ele quer A viuacuteva cuidaraacute bas-
tante de sua alma que teraacute idohellip para o purgatoacuteriohellipabelardo i Diga-me uma coisa seu Abelardo vocecirc eacute socialistaabelardo ii Sou o primeiro socialista que aparece no Teatro
Brasileiroabelardo i E o que eacute que vocecirc querabelardo ii Sucedecirc-lo nessa mesaabelardo i Pelo que vejo o socialismo nos paiacuteses atrasados co-
meccedila logo assimhellip Entrando num acordo com a propriedadehellipabelardo ii De fatohellip Estamos num paiacutes semicolonialhellipabelardo i Onde a gente pode ter ideias mas natildeo eacute de ferroabelardo ii Sim Sem quebrar a tradiccedilatildeoabelardo i Se for preciso o padre leva a sua alma tambeacutemhellip
Estaacute certohellip Vamos examinar aquelas propostas (senta-se e lecirc) Carmo Belatinehellip
abelardo ii Eacute aquele da faacutebrica de salsichashellip O frigoriacuteficohellip Que comprou o terreno da Lapa
abelardo i Idadeabelardo ii Trinta e nove anosabelardo i Niacutevel de vida
26
abelardo ii Niacutevel baixo ainda Faz a barba na terrina da sopa com sabatildeo de cozinha e gilete de segunda matildeohellip
abelardo i Jaacute fala o portuguecircsabelardo ii Ainda atrapalhaabelardo i Gasta menos do que tira dos trabalhadoresabelardo ii Muito menosabelardo i Tem filhos grandesabelardo ii Pequenos aindaabelardo i Em bons coleacutegiosabelardo ii Sim Oiseaux Sion Satildeo Bentoabelardo i Bem Tome nota Emprestamos enquanto os peque-
nos estudarem Quando as filhas comeccedilarem o serviccedilo militar nas garccedilonniegraveres e o pequeno tiver barata e Madame souber se vestir emprestaremos entatildeo de preferecircncia agrave costureira de Madame O velho aiacute teraacute mudado de niacutevel Possuiraacute automoacutevel casa no Jardim Ameacuterica Cessaremos pouco a pouco todo o creacute-dito Nem mais um papagaio Ele viraacute aqui caucionar os tiacutetulos dos comerciantes a quem fornece Executarei tudo um dia Le-varei a faacutebrica os capitais imobilizados e o ferro-velho agrave praccedila
abelardo ii E a mulher diraacute que foram os operaacuterios que os arruinaram
abelardo i E foram de fato Eu conto como fator essencial dessas coisas as exigecircncias atuais do operariado O salaacuterio miacutenimo As feacuterias Que diabo As tais leis sociais natildeo hatildeo de ser soacute contra o capitalhellip
abelardo ii Natildeo satildeo natildeo Descanse Eu entendo de socialismo Olhe A lei de feacuterias soacute deu um resultado Natildeo haacute mais salaacuterio de semana ou de mecircs Eacute por dia de trabalho ou por contrato Somando bem os domingos feriados e dias de doenccedila eram mais que as feacuterias de hoje
27
abelardo i Bem Guarde esta ficha nos Firmes Feche o negoacute-cio A mesma taxa O sistema da casa Chame a Secretaacuteria no 3 Quero ditar uma carta
Abelardo ii sai
Abelardo i e a Secretaacuteria no 3
a secretaacuteria (eacute uma moccedila longa de oacuteculos e tranccedilas enormes e loiras Veste-se pudicamente Traz laacutepis e blocknotes na matildeo) Eacute para bater agrave maacutequina seu Abelardo
abelardo i Natildeo Para estenografar Nem isso A senhora sabe redigir Melhor do que eu Faccedila uma carta Sente-se aiacute (sentam-se perto um do outro) D Aiacutedahellip Aiacuteda loirahellip Aiacuteda de Wagner Como eacute Natildeo precisa de um Radameacutes
a secretaacuteria Preciso que o senhor melhore o meu ordenado O custo da vida aumentou no Brasil de trinta por cento
abelardo i Tenho todo interesse pelo custo de sua vidahellip Mas a senhora sabehellip As vidas hoje estatildeo difiacuteceis para todoshellip Natildeo eacute mais como antigamentehellip Que tranccedilashellip Eu acabo me enfor-cando nessas tranccedilashellip Deixa (procura tocar-lhe os cabelos)
a secretaacuteria Tenha modos seu Abelardoabelardo i Deixa Malvadaa secretaacuteria Nunca Eu sou romacircntica Natildeo vendo o meu
amorabelardo i Vamos fazer um piqueniquehellip (aponta o divatilde sob a
Gioconda) Debaixo daquela mangueiraa secretaacuteria Eu sou noivaabelardo i Eu tambeacutema secretaacuteria Mas eu sou fielhellipabelardo i Bem Depois natildeo venha fazer vales aqui hein Eu
tambeacutem sei ser fiel ao sistema da casa Vaacute laacute Redija Natildeo
28
Tome nota Olhe Eacute uma carta confidencial A um tal Cristiano de Bensauacutede Industrial no Rio Metido a escritor Redija sem erros de portuguecircs O homem foi criacutetico literaacuterio e avanccedilado quando era prontohellip Ele me escreveu propondo frente uacutenica contra os operaacuterios Responda em tese (a secretaacuteria toma nota) insinue que eacute melhor ele ser um puro policial Manter vigilacircncia rigorosa nas faacutebricas Evitar a propaganda comunis-ta Denunciar e perseguir os agitadores Prender Esse negoacutecio de escrever livros de sociologia com anjos eacute contraproducente Ningueacutem mais crecirc Fica ridiacuteculo para noacutes industriais avanccedila-dos Diante dos americanos e dos ingleses Olhe diga isto Que a burguesia morre sem Deus Recusa a extrema-unccedilatildeo Cite o exemplo do proacuteprio Vaticano Coisas concretas A adesatildeo poliacute-tica da igreja contra um bilhatildeo e setecentos milhotildees de liras o ensino religioso e a lei contra o divoacutercio Toma laacute daacute caacute Natildeo vecirc que um alpinista como Pio xi potildee anjos em negoacutecios Vaacute redigir e traga logo Para seguir hojehellip Ver se esse homem deixa de atrapalhar Um sujeito feudal Viacutetima do seu proacuteprio sistema Paga um salaacuterio medieval 20$000 por quinzena
a secretaacuteria (voltando-se da porta) Ga-ra-nhatildeo (sai esbar-rando em Heloiacutesa de Lesbos que vestida de homem entra como a manhatilde laacute de fora)
Menos a Secretaacuteria mais Heloiacutesa
abelardo i (rindo) Vocecirc Meu amor Na hora do expedienteheloiacutesa O nosso casamento eacute um negoacuteciohellipabelardo i Por isso vieste de Marleneheloiacutesa Mas natildeo haacute de ser um negoacutecio como esses que vocecirc
faz com esse bando de desesperados que saiu daiacute vociferandohellip Estatildeo ainda muitos laacute embaixo Haacute mulheres idosas moccedilas turcos italianos russos de prestaccedilatildeo uma fauna de hospiacuteciohellip
29
abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute
Mais Abelardo ii
abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo
abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer
fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso
abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo
Mais o Intelectual Pinote
pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre
heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-
-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui
pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-
fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute
uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-
guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i
senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as
Personagens dramaacuteticos
abelardo iabelardo iiheloiacutesa de lesbosjoana conhecida por joatildeo dos divatildestotoacute fruta-do-condecoronel belarminod cesarinad poloquinhaperdigotoo americanoo clienteo intelectual pinotea secretaacuteriadevedores devedoraso ponto
15
1o ATO
em satildeo paulo Escritoacuterio de usura de Abelardo amp Abelardo Um retrato da Gioconda Caixas amontoadas Um divatilde futurista Uma secretaacuteria Luiacutes XV Um casticcedilal de latatildeo Um telefone Sinal de alar-ma Um mostruaacuterio de velas de todos os tamanhos e de todas as cores Porta enorme de ferro agrave direita correndo sobre rodas hori-zontalmente e deixando ver no interior as grades de uma jaula O Prontuaacuterio peccedila de gavetas com os seguintes roacutetulos malan1049730dros mdash impontuais mdash prontos mdash protestados mdash Na outra divisatildeo penhoras mdash liquidaccedilotildees mdash suiciacutedios mdash tangas
Pela ampla janela entra o barulho da manhatilde na cidade e sai o das maacutequinas de escrever da antessala
16
Abelardo i Abelardo ii e o Cliente
abelardo i (sentado em conversa com o Cliente Aperta um bo-tatildeo ouve-se um forte barulho de campainha) Vamos verhellip
abelardo ii (veste botas e um completo de domador de feras Usa pastinha e enormes bigodes retorcidos Monoacuteculo Um revoacutelver agrave cinta) Pronto seu Abelardo
abelardo i Traga o dossiecirc desse homemabelardo ii Pois natildeo O seu nomeo cliente (embaraccedilado o chapeacuteu na matildeo uma gravata de cor-
da no pescoccedilo magro) Manoel Pitanga de Moraesabelardo ii Profissatildeoo cliente Eu era proprietaacuterio quando vim aqui pela primeira
vez Depois fui dois anos funcionaacuterio da Estrada de Ferro So-rocabana O empreacutestimo o primeiro creio que foi feito para o parto Quando nasceu a meninahellip
abelardo ii Jaacute sei Estaacute nos impontuais (entrega o dossiecirc reclamado e sai)
abelardo i (examina) Veja Isto natildeo eacute comercial seu Pitanga O senhor fez o primeiro empreacutestimo em fins de 29 Liquidou em maio de 1931 Fez outro em junho de 31 estamos em 1933 Reformou sempre Haacute dois meses suspendeu o serviccedilo de ju-roshellip Natildeo eacute comercialhellip
o cliente Exatamente Procurei o senhor a segunda vez por causa da demora de pagamento na Estrada com a Revoluccedilatildeo de 30 A primeira foi para o parto A crianccedila jaacute tinha dois anos E a Revoluccedilatildeo em 30hellip Foi um mau sucesso que complicou tudohellip
abelardo i O senhor sabe o sistema da casa eacute reformar Mas natildeo podemos trabalhar com quem natildeo paga juroshellip Vivemos disso O senhor cometeu a maior falta contra a seguranccedila do nosso negoacutecio e o sistema da casahellip
17
o cliente Haacute dois meses somente que natildeo posso pagar jurosabelardo i Dois meses O senhor acha que eacute poucoo cliente Por isso mesmo eacute que eu quero liquidar Entrar num
acordo A fim de natildeo ser penhorado Que diabo O senhor tem auxiliado tanta gente Eacute o amigo de todo mundohellip Por que co-migo natildeo haacute de fazer um acordo
abelardo i Aqui natildeo haacute acordo meu amigo Haacute pagamentoo cliente Mas eu me acho numa situaccedilatildeo triste Natildeo posso pa-
gar tudo seu Abelardo Talvez consiga um adiantamento para liquidarhellip
abelardo i Apesar da sua impontualidade examinaremos as suas propostashellip
o cliente Mas eu fui pontual dois anos e meio Paguei enquanto pude A minha diacutevida era de um conto de reacuteis Soacute de juros eu lhe trouxe aqui nesta sala mais de dois contos e quinhentos E ateacute agora natildeo me utilizei da lei contra a usurahellip
abelardo i (interrompendo-o brutal) Ah meu amigo Utilize--se dessa coisa imoral e iniacutequa Se fala de lei de usura estamos com as negociaccedilotildees rotashellip Saia daqui
o cliente Ora seu Abelardo O senhor me conhece Eu sou incapaz
abelardo i Natildeo me fale nessa monstruosidade porque eu o mando executar hoje mesmo Tomo-lhe ateacute a roupa ouviu A camisa do corpo
o cliente Eu natildeo vou me aproveitar seu Abelardo Quero lhe pagar Mas quero tambeacutem lhe propor um acordo A minha situaccedilatildeo eacute tristehellip Natildeo tenho culpa de ter sido dispensado Empreguei-me outra vez Despediram-me por economia Natildeo ponho minha filhinha na escola porque natildeo posso comprar sapatos para ela Natildeo hei de morrer de fome tambeacutem Agraves vezes natildeo temos o que comer em casa Minha mulher agora caiu doente No entanto sou um homem habilitado Tenho
18
procurado inutilmente emprego por toda a parte Soacute tenho recebido natildeos enormes Do tamanho do ceacuteu Agora aprendi escrituraccedilatildeo estou fazendo umas escritas Uns biscates Hei de arribarhellip Quero ver se adiantam para lhe pagar
abelardo i Mas enfim o que eacute que o senhor me propotildeeo cliente Uma pequena reduccedilatildeo no capitalabelardo i No capital O senhor estaacute maluco Reduzir o capital
Nuncao cliente Mas eu jaacute paguei mais do dobro do que levei daquihellipabelardo i Me diga uma coisa seu Pitanga Fui eu que fui pro-
curaacute-lo para assinar este papagaio Foi o meu automoacutevel que parou diante do seu casebre para pedir que aceitasse o meu dinheiro Com que direito o senhor me propotildee uma reduccedilatildeo no capital que eu lhe emprestei
o cliente (desnorteado) Eu jaacute paguei duas vezeshellipabelardo i Suma-se daqui (levanta-se) Saia ou chamo a po-
liacutecia Eacute soacute dar o sinal de crime neste aparelho A poliacutecia ainda existehellip
o cliente Para defender os capitalistas E os seus crimesabelardo i Para defender o meu dinheiro Seraacute executado hoje
mesmo (toca a campainha) Abelardo Decirc ordens para executaacute--lo Rua Vamos Fuzile-o Eacute o sistema da casa
o cliente Eu sou um covarde (vai chorando) O senhor abusa de um fraco de um covarde
Menos o Cliente
abelardo i Natildeo faccedila entrar mais ningueacutem hoje Abelardoabelardo ii A jaula estaacute cheiahellip seu Abelardoabelardo i Mas esta cena basta para nos identificar perante
o puacuteblico Natildeo preciso mais falar com nenhum dos meus
19
clientes Satildeo todos iguais Sobretudo natildeo me traga pais que natildeo podem comprar sapatos para os filhoshellip
abelardo ii Esse estaacute se queixando de barriga cheia Natildeo tem prole numerosa Soacute uma filhahellip Famiacutelia pequena
abelardo i Natildeo confunda seu Abelardo Famiacutelia eacute uma coisa distinta Prole eacute de proletaacuterio A famiacutelia requer a propriedade e vice-versa Quem natildeo tem propriedades deve ter prole Para trabalhar os filhos satildeo a fortuna do pobrehellip
abelardo ii Mas hoje ningueacutem mais vai nissohellipabelardo i Eacute a desordem social o desemprego a Ruacutessia Esse
homem possuiacutea uma casinha Tinha o direito de ter uma fa-miacutelia Perdeu a casa Cavasse prole Seu Abelardo a famiacutelia e a propriedade satildeo duas garotas que frequentam a mesma gar-ccedilonniegravere a mesma farrahellip quando o patildeo sobrahellip Mas quando o patildeo falta uma sai pela porta e a outra voa pela janelahellip
abelardo ii A famiacutelia eacute o ideal do homem A propriedade tam-beacutem E d Heloiacutesa eacute um anjo
abelardo i Vocecirc sabe que natildeo haacute outro gecircnero no mercado Eu natildeo ia me casar com a irmatilde mais moccedila que chamam por aiacute de garota da crise e de Joatildeo dos Divatildes Nem com o irmatildeo menor que todo mundo conhece por Totoacute Fruta-do-Conde
abelardo ii Um degeneradohellipabelardo i Coisas que se compreendem e relevam numa velha
famiacutelia Heloiacutesa apesar dos viacutecios que lhe apontamhellip Vocecirc sabe toda a gente sabe Heloiacutesa de Lesbos Fizeram piada quando comprei uma ilha no Rio para nos casarmos Disseram que era na Greacutecia Apesar disso ela ainda eacute a flor mais decente dessa velha aacutervore bandeirante Uma das famiacutelias fundamentais do Impeacuterio
abelardo ii O velho estaacute de tanga Entregou tudo aos credoresabelardo i Que importa Para noacutes homens adiantados que soacute
conhecemos uma coisa fria o valor do dinheiro comprar esses
20
restos de brasatildeo ainda eacute negoacutecio faz vista num paiacutes medieval como o nosso O senhor sabe que Satildeo Paulo soacute tem dez famiacutelias
abelardo ii E o resto da populaccedilatildeoabelardo i O resto eacute prole O que eu estou fazendo o que o se-
nhor quer fazer eacute deixar de ser prole para ser famiacutelia comprar os velhos brasotildees isso ateacute parece teatro do seacuteculo xix Mas no Brasil ainda eacute novo
abelardo ii Se eacute A burguesia soacute produziu um teatro de classe A apresentaccedilatildeo da classe Hoje evoluiacutemos Chegamos agrave espi-nafraccedilatildeo
abelardo i Bem Veja o bordereauhellip O Banco devolveu muita coisa
abelardo ii Xu Um colosso Estamos no vinagre seu Abelardoabelardo i Vamoshellipabelardo ii (lendo) Cinco contos setecentos e setenta Dr Car-
los Magalhatildees de Moraes Benevides Fonseca Chapa uacutenicahellip Reforma-se Natildeo paga juros haacute dois meses
abelardo i Reforma-seabelardo ii Antunes amp Lapahellip trecircs contoshellip jaacute protestei Man-
gionihellip Luiz O bicheirohellip Dr Joatildeo Carlos de Menezes Rochahellip dois contoshellip
abelardo i Pro protestoabelardo ii Baratildeo de Gama Lima quinhentos mil-reacuteishellipabelardo i Pro protestoabelardo ii Moura Melohellip setecentos mil-reacuteisabelardo i Pro protestoabelardo ii Abraatildeo Calimeacuteriohellip dez contosabelardo i Pro protestoabelardo ii Carlos Pereshellip Esta jaacute foi pro pau ontemhellipabelardo i Ele natildeo pediu reformaabelardo ii Natildeoabelardo i E por quecirc
21
abelardo ii Tomou dois copos de limonada com iodo Estaacute aqui no jornal (procura) Diz que estaacute em estado de coma na Santa Casahellip
abelardo i Mande o Benvindo fazer a penhora Depressa Antes que ele morra e a venda fechehellip
abelardo ii Estaacute certo Esta eacutehellip daquele funcionaacuterio puacuteblico o Pires Limpohellip Ele estaacute limpo e de pires Mandou a filha aqui
abelardo i Bonitaabelardo ii Pancadatildeo Dezoito anoshellip Cada dente deste tama-
nhoabelardo i Mandou a filha O mecircs passado veio a mulherabelardo ii Eu vi Jeitosahellip Mas muito faladeira Queria saber
onde eacute que o senhor morava falou na compra da ilha no Rio onde o senhor vai se casar Que ia levar de aviatildeo uma porccedilatildeo de gente de Satildeo Paulo
abelardo i (batendo o peacute numa grande caixa de papelatildeo) Que eacute isto aqui
abelardo ii Focircrmas de chapeacuteu (mostra o casticcedilal de latatildeo) A penhora de Mme Lanale Soacute tinha isso e aquele candelabro Quase que natildeo daacute para pagar os tiras que ajudaram
abelardo i E os moacuteveishellipabelardo ii Ficaram despedaccedilados na rua Eram duas peccedilas
velhas de ferro Foi um escacircndalo O estado-maior teve que agir duro O povo queria se opor Juntou gentehellip
abelardo i Que estado-maiorabelardo ii Os oficiais de justiccedilahellipabelardo i Mas o exemplo ficouabelardo ii E frutificaraacuteabelardo i A rua inteira sabe que penhorei porque natildeo me
pagaram 200$000 A cidade inteira sabe Talvez gastasse mais nissohellip Que importa Dura Lex aprendi isso na Faculdade de Direito
22
abelardo ii Queria que o senhor visse a choradeira A viuacuteva berrava na janela mdash Gli orfani Gli orfani Non abiamo piu lavoro
abelardo i O quecircabelardo ii Ela queria dizer que os oacuterfatildeos natildeo tinham mais o
que comer Tiramos os instrumentos de trabalhoabelardo i Manhosahellipabelardo ii Soacute se pode prosperar agrave custa de muita desgraccedila
Mas de muita mesmohellipabelardo i Se natildeo for assim como garantirei os meus deposi-
tantes Se natildeo tiro do outro lado Ofereccedilo juros que os bancos natildeo pagam Os juros que soacute alguns pagavam nos bons tempos Quatro e ateacute cinco por cento ao ano
abelardo ii Tambeacutem o dinheiro corre para aquihellip Laacute embaixo a seccedilatildeo bancaacuteria estaacute assim
abelardo i Ofereccedilo boas garantias E tambeacutem exijo boas ga-rantias quando emprestohellip
abelardo ii A cinco e dez por cento ao mecircshellip Por filantropia (o telefone) Eacute seu irmatildeo
abelardo i Meu advogadoabelardo ii (no fone) Sim senhor Estaacute (para Abelardo) Diz
que entrou no Foacuterum com trecircs executivos Estaacute chamando o senhorhellip
abelardo i (ao fone) Como Sou euhellip Abelardo O Teodoro Quer se prevalecer da lei de usura Grande besta E pede reforma Linche esse camarada Ponha flite nele e acenda um foacutesforo (bate o fone) Pro pau com esse bandido Lei contra a usura Miseraacuteveis Bolchevistas Por isso eacute que o paiacutes se arruiacutena E haacute um miseraacutevel que quer se aproveitar dessa iniquidade
abelardo ii Leis sociaishellipabelardo i Suacutecia de desonestos Intervir nos juros Cercear
o sagrado direito de emprestar o meu dinheiro agrave taxa que eu
23
quiser E que todos aceitam Mais Que vecircm implorar aqui Sou eu que vou buscaacute-los para assinar papagaios Ou satildeo eles que todos os dias enchem a minha sala de espera Abra a jaula
Abelardo ii obedece de chicote em punho A porta de ferro corre pesadamente
Mais clientes
Os clientes aparecem atropeladamente nas grades Eacute uma coleccedilatildeo de crise variada expectante Homens e mulheres mantecircm-se quietos ante o enorme chicote de Abelardo ii
abelardo i Rua Nem mais um negoacutecio Vou fechar esta bagun-ccedila
as vozes (da jaula) Pelo amor de Deus Por caridade Eu natildeo posso pagar o aluguel Reforme Vou agrave falecircncia
abelardo i Rua Ningueacutem mais pode trabalhar num paiacutes des-tes Com leis monstruosas
as vozes Eu tenho que fechar a faacutebrica Natildeo poderei pagar os duzentos operaacuterios que ficaratildeo sem patildeo Tenha piedade Inclua os juros no capital Damos excelentes garantias
abelardo i (a Abelardo ii) Feche esta porta Natildeo atendo nin-gueacutem
Abelardo ii faz estalar o chicote de domador
as vozes Blefaremos o governo Me salve Me salveabelardo i Rua Canalhas Laacute fora sei como vocecircs me tratam
Abelardo ii faacute-los recuar das grades brandindo o chicote e amea-ccedilando com o revoacutelver
24
uma voz de mulher Ai Jesus Natildeo temos o que comer Eu natildeo saio daqui Espero ateacute agrave noite Estou arruinada
as vozes irritadas (Abelardo ii procura fechar a porta de fer-ro) Canalha Sujo Tirou o nosso sangue Ladratildeo Natildeo saiacutemos daqui
um italiano Pamarona Momanjo isto capitalistauma francesa Sale cochon Si crsquoest possible Conum russo branco Svolochum turco Joacutege paga bateacuteca Non izacuta Joacutegehellipas vozes (em coro) Assassinoabelardo i Feche Atire
Abelardo ii daacute um tiro para o ar Os clientes recuam gritando Ele corre a porta de ferro ruidosamente
as vozes (abafadas) Catildeo Rei da Vela Patildeo-durouma voz de mulher (gritando do outro lado da porta) Meu
marido bebeu estricninaoutra Minha matildee tomou lisoloutra Meu pai se jogou do viadutoabelardo i Lisol Estricnina Viaduto Eacute do que vocecircs precisam
canalhas
Menos o Cliente
Telefone
abelardo ii (atendendo) Alocirc Eacute o padre Aquele da entrevista Estaacute reverendo Vem jaacutehellip
abelardo i Mas vocecirc marcouabelardo ii Natildeo marquei nada
25
abelardo i (toma o fone) Bom dia reverendo Sou eu mesmo Abelardohellip Ah Com muitiacutessima honrahellip Esperarei vossa reve-rendiacutessima Pode ser agraves quatro horas Entatildeohellip sem duacutevidahellip Beijo-lhe as matildeos Sempre agraves suas ordens (depotildee o fone) Este padre eacute engraccediladohellip Natildeo me largahellip Eu natildeo sou eleitorhellip Ele natildeo quer dinheirohellip
abelardo ii Quer a sua almahellipabelardo i Evidentemente eacute um caso raro Um homem preo-
cupar-se comigo sem ser logo agrave vistahellip Quantoabelardo ii Ele prefere tratar desde jaacute do seu testamentoabelardo i Inuacutetil Eu morro ateu e casadoabelardo ii Eacute isso mesmo que ele quer A viuacuteva cuidaraacute bas-
tante de sua alma que teraacute idohellip para o purgatoacuteriohellipabelardo i Diga-me uma coisa seu Abelardo vocecirc eacute socialistaabelardo ii Sou o primeiro socialista que aparece no Teatro
Brasileiroabelardo i E o que eacute que vocecirc querabelardo ii Sucedecirc-lo nessa mesaabelardo i Pelo que vejo o socialismo nos paiacuteses atrasados co-
meccedila logo assimhellip Entrando num acordo com a propriedadehellipabelardo ii De fatohellip Estamos num paiacutes semicolonialhellipabelardo i Onde a gente pode ter ideias mas natildeo eacute de ferroabelardo ii Sim Sem quebrar a tradiccedilatildeoabelardo i Se for preciso o padre leva a sua alma tambeacutemhellip
Estaacute certohellip Vamos examinar aquelas propostas (senta-se e lecirc) Carmo Belatinehellip
abelardo ii Eacute aquele da faacutebrica de salsichashellip O frigoriacuteficohellip Que comprou o terreno da Lapa
abelardo i Idadeabelardo ii Trinta e nove anosabelardo i Niacutevel de vida
26
abelardo ii Niacutevel baixo ainda Faz a barba na terrina da sopa com sabatildeo de cozinha e gilete de segunda matildeohellip
abelardo i Jaacute fala o portuguecircsabelardo ii Ainda atrapalhaabelardo i Gasta menos do que tira dos trabalhadoresabelardo ii Muito menosabelardo i Tem filhos grandesabelardo ii Pequenos aindaabelardo i Em bons coleacutegiosabelardo ii Sim Oiseaux Sion Satildeo Bentoabelardo i Bem Tome nota Emprestamos enquanto os peque-
nos estudarem Quando as filhas comeccedilarem o serviccedilo militar nas garccedilonniegraveres e o pequeno tiver barata e Madame souber se vestir emprestaremos entatildeo de preferecircncia agrave costureira de Madame O velho aiacute teraacute mudado de niacutevel Possuiraacute automoacutevel casa no Jardim Ameacuterica Cessaremos pouco a pouco todo o creacute-dito Nem mais um papagaio Ele viraacute aqui caucionar os tiacutetulos dos comerciantes a quem fornece Executarei tudo um dia Le-varei a faacutebrica os capitais imobilizados e o ferro-velho agrave praccedila
abelardo ii E a mulher diraacute que foram os operaacuterios que os arruinaram
abelardo i E foram de fato Eu conto como fator essencial dessas coisas as exigecircncias atuais do operariado O salaacuterio miacutenimo As feacuterias Que diabo As tais leis sociais natildeo hatildeo de ser soacute contra o capitalhellip
abelardo ii Natildeo satildeo natildeo Descanse Eu entendo de socialismo Olhe A lei de feacuterias soacute deu um resultado Natildeo haacute mais salaacuterio de semana ou de mecircs Eacute por dia de trabalho ou por contrato Somando bem os domingos feriados e dias de doenccedila eram mais que as feacuterias de hoje
27
abelardo i Bem Guarde esta ficha nos Firmes Feche o negoacute-cio A mesma taxa O sistema da casa Chame a Secretaacuteria no 3 Quero ditar uma carta
Abelardo ii sai
Abelardo i e a Secretaacuteria no 3
a secretaacuteria (eacute uma moccedila longa de oacuteculos e tranccedilas enormes e loiras Veste-se pudicamente Traz laacutepis e blocknotes na matildeo) Eacute para bater agrave maacutequina seu Abelardo
abelardo i Natildeo Para estenografar Nem isso A senhora sabe redigir Melhor do que eu Faccedila uma carta Sente-se aiacute (sentam-se perto um do outro) D Aiacutedahellip Aiacuteda loirahellip Aiacuteda de Wagner Como eacute Natildeo precisa de um Radameacutes
a secretaacuteria Preciso que o senhor melhore o meu ordenado O custo da vida aumentou no Brasil de trinta por cento
abelardo i Tenho todo interesse pelo custo de sua vidahellip Mas a senhora sabehellip As vidas hoje estatildeo difiacuteceis para todoshellip Natildeo eacute mais como antigamentehellip Que tranccedilashellip Eu acabo me enfor-cando nessas tranccedilashellip Deixa (procura tocar-lhe os cabelos)
a secretaacuteria Tenha modos seu Abelardoabelardo i Deixa Malvadaa secretaacuteria Nunca Eu sou romacircntica Natildeo vendo o meu
amorabelardo i Vamos fazer um piqueniquehellip (aponta o divatilde sob a
Gioconda) Debaixo daquela mangueiraa secretaacuteria Eu sou noivaabelardo i Eu tambeacutema secretaacuteria Mas eu sou fielhellipabelardo i Bem Depois natildeo venha fazer vales aqui hein Eu
tambeacutem sei ser fiel ao sistema da casa Vaacute laacute Redija Natildeo
28
Tome nota Olhe Eacute uma carta confidencial A um tal Cristiano de Bensauacutede Industrial no Rio Metido a escritor Redija sem erros de portuguecircs O homem foi criacutetico literaacuterio e avanccedilado quando era prontohellip Ele me escreveu propondo frente uacutenica contra os operaacuterios Responda em tese (a secretaacuteria toma nota) insinue que eacute melhor ele ser um puro policial Manter vigilacircncia rigorosa nas faacutebricas Evitar a propaganda comunis-ta Denunciar e perseguir os agitadores Prender Esse negoacutecio de escrever livros de sociologia com anjos eacute contraproducente Ningueacutem mais crecirc Fica ridiacuteculo para noacutes industriais avanccedila-dos Diante dos americanos e dos ingleses Olhe diga isto Que a burguesia morre sem Deus Recusa a extrema-unccedilatildeo Cite o exemplo do proacuteprio Vaticano Coisas concretas A adesatildeo poliacute-tica da igreja contra um bilhatildeo e setecentos milhotildees de liras o ensino religioso e a lei contra o divoacutercio Toma laacute daacute caacute Natildeo vecirc que um alpinista como Pio xi potildee anjos em negoacutecios Vaacute redigir e traga logo Para seguir hojehellip Ver se esse homem deixa de atrapalhar Um sujeito feudal Viacutetima do seu proacuteprio sistema Paga um salaacuterio medieval 20$000 por quinzena
a secretaacuteria (voltando-se da porta) Ga-ra-nhatildeo (sai esbar-rando em Heloiacutesa de Lesbos que vestida de homem entra como a manhatilde laacute de fora)
Menos a Secretaacuteria mais Heloiacutesa
abelardo i (rindo) Vocecirc Meu amor Na hora do expedienteheloiacutesa O nosso casamento eacute um negoacuteciohellipabelardo i Por isso vieste de Marleneheloiacutesa Mas natildeo haacute de ser um negoacutecio como esses que vocecirc
faz com esse bando de desesperados que saiu daiacute vociferandohellip Estatildeo ainda muitos laacute embaixo Haacute mulheres idosas moccedilas turcos italianos russos de prestaccedilatildeo uma fauna de hospiacuteciohellip
29
abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute
Mais Abelardo ii
abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo
abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer
fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso
abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo
Mais o Intelectual Pinote
pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre
heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-
-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui
pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-
fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute
uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-
guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i
senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as
15
1o ATO
em satildeo paulo Escritoacuterio de usura de Abelardo amp Abelardo Um retrato da Gioconda Caixas amontoadas Um divatilde futurista Uma secretaacuteria Luiacutes XV Um casticcedilal de latatildeo Um telefone Sinal de alar-ma Um mostruaacuterio de velas de todos os tamanhos e de todas as cores Porta enorme de ferro agrave direita correndo sobre rodas hori-zontalmente e deixando ver no interior as grades de uma jaula O Prontuaacuterio peccedila de gavetas com os seguintes roacutetulos malan1049730dros mdash impontuais mdash prontos mdash protestados mdash Na outra divisatildeo penhoras mdash liquidaccedilotildees mdash suiciacutedios mdash tangas
Pela ampla janela entra o barulho da manhatilde na cidade e sai o das maacutequinas de escrever da antessala
16
Abelardo i Abelardo ii e o Cliente
abelardo i (sentado em conversa com o Cliente Aperta um bo-tatildeo ouve-se um forte barulho de campainha) Vamos verhellip
abelardo ii (veste botas e um completo de domador de feras Usa pastinha e enormes bigodes retorcidos Monoacuteculo Um revoacutelver agrave cinta) Pronto seu Abelardo
abelardo i Traga o dossiecirc desse homemabelardo ii Pois natildeo O seu nomeo cliente (embaraccedilado o chapeacuteu na matildeo uma gravata de cor-
da no pescoccedilo magro) Manoel Pitanga de Moraesabelardo ii Profissatildeoo cliente Eu era proprietaacuterio quando vim aqui pela primeira
vez Depois fui dois anos funcionaacuterio da Estrada de Ferro So-rocabana O empreacutestimo o primeiro creio que foi feito para o parto Quando nasceu a meninahellip
abelardo ii Jaacute sei Estaacute nos impontuais (entrega o dossiecirc reclamado e sai)
abelardo i (examina) Veja Isto natildeo eacute comercial seu Pitanga O senhor fez o primeiro empreacutestimo em fins de 29 Liquidou em maio de 1931 Fez outro em junho de 31 estamos em 1933 Reformou sempre Haacute dois meses suspendeu o serviccedilo de ju-roshellip Natildeo eacute comercialhellip
o cliente Exatamente Procurei o senhor a segunda vez por causa da demora de pagamento na Estrada com a Revoluccedilatildeo de 30 A primeira foi para o parto A crianccedila jaacute tinha dois anos E a Revoluccedilatildeo em 30hellip Foi um mau sucesso que complicou tudohellip
abelardo i O senhor sabe o sistema da casa eacute reformar Mas natildeo podemos trabalhar com quem natildeo paga juroshellip Vivemos disso O senhor cometeu a maior falta contra a seguranccedila do nosso negoacutecio e o sistema da casahellip
17
o cliente Haacute dois meses somente que natildeo posso pagar jurosabelardo i Dois meses O senhor acha que eacute poucoo cliente Por isso mesmo eacute que eu quero liquidar Entrar num
acordo A fim de natildeo ser penhorado Que diabo O senhor tem auxiliado tanta gente Eacute o amigo de todo mundohellip Por que co-migo natildeo haacute de fazer um acordo
abelardo i Aqui natildeo haacute acordo meu amigo Haacute pagamentoo cliente Mas eu me acho numa situaccedilatildeo triste Natildeo posso pa-
gar tudo seu Abelardo Talvez consiga um adiantamento para liquidarhellip
abelardo i Apesar da sua impontualidade examinaremos as suas propostashellip
o cliente Mas eu fui pontual dois anos e meio Paguei enquanto pude A minha diacutevida era de um conto de reacuteis Soacute de juros eu lhe trouxe aqui nesta sala mais de dois contos e quinhentos E ateacute agora natildeo me utilizei da lei contra a usurahellip
abelardo i (interrompendo-o brutal) Ah meu amigo Utilize--se dessa coisa imoral e iniacutequa Se fala de lei de usura estamos com as negociaccedilotildees rotashellip Saia daqui
o cliente Ora seu Abelardo O senhor me conhece Eu sou incapaz
abelardo i Natildeo me fale nessa monstruosidade porque eu o mando executar hoje mesmo Tomo-lhe ateacute a roupa ouviu A camisa do corpo
o cliente Eu natildeo vou me aproveitar seu Abelardo Quero lhe pagar Mas quero tambeacutem lhe propor um acordo A minha situaccedilatildeo eacute tristehellip Natildeo tenho culpa de ter sido dispensado Empreguei-me outra vez Despediram-me por economia Natildeo ponho minha filhinha na escola porque natildeo posso comprar sapatos para ela Natildeo hei de morrer de fome tambeacutem Agraves vezes natildeo temos o que comer em casa Minha mulher agora caiu doente No entanto sou um homem habilitado Tenho
18
procurado inutilmente emprego por toda a parte Soacute tenho recebido natildeos enormes Do tamanho do ceacuteu Agora aprendi escrituraccedilatildeo estou fazendo umas escritas Uns biscates Hei de arribarhellip Quero ver se adiantam para lhe pagar
abelardo i Mas enfim o que eacute que o senhor me propotildeeo cliente Uma pequena reduccedilatildeo no capitalabelardo i No capital O senhor estaacute maluco Reduzir o capital
Nuncao cliente Mas eu jaacute paguei mais do dobro do que levei daquihellipabelardo i Me diga uma coisa seu Pitanga Fui eu que fui pro-
curaacute-lo para assinar este papagaio Foi o meu automoacutevel que parou diante do seu casebre para pedir que aceitasse o meu dinheiro Com que direito o senhor me propotildee uma reduccedilatildeo no capital que eu lhe emprestei
o cliente (desnorteado) Eu jaacute paguei duas vezeshellipabelardo i Suma-se daqui (levanta-se) Saia ou chamo a po-
liacutecia Eacute soacute dar o sinal de crime neste aparelho A poliacutecia ainda existehellip
o cliente Para defender os capitalistas E os seus crimesabelardo i Para defender o meu dinheiro Seraacute executado hoje
mesmo (toca a campainha) Abelardo Decirc ordens para executaacute--lo Rua Vamos Fuzile-o Eacute o sistema da casa
o cliente Eu sou um covarde (vai chorando) O senhor abusa de um fraco de um covarde
Menos o Cliente
abelardo i Natildeo faccedila entrar mais ningueacutem hoje Abelardoabelardo ii A jaula estaacute cheiahellip seu Abelardoabelardo i Mas esta cena basta para nos identificar perante
o puacuteblico Natildeo preciso mais falar com nenhum dos meus
19
clientes Satildeo todos iguais Sobretudo natildeo me traga pais que natildeo podem comprar sapatos para os filhoshellip
abelardo ii Esse estaacute se queixando de barriga cheia Natildeo tem prole numerosa Soacute uma filhahellip Famiacutelia pequena
abelardo i Natildeo confunda seu Abelardo Famiacutelia eacute uma coisa distinta Prole eacute de proletaacuterio A famiacutelia requer a propriedade e vice-versa Quem natildeo tem propriedades deve ter prole Para trabalhar os filhos satildeo a fortuna do pobrehellip
abelardo ii Mas hoje ningueacutem mais vai nissohellipabelardo i Eacute a desordem social o desemprego a Ruacutessia Esse
homem possuiacutea uma casinha Tinha o direito de ter uma fa-miacutelia Perdeu a casa Cavasse prole Seu Abelardo a famiacutelia e a propriedade satildeo duas garotas que frequentam a mesma gar-ccedilonniegravere a mesma farrahellip quando o patildeo sobrahellip Mas quando o patildeo falta uma sai pela porta e a outra voa pela janelahellip
abelardo ii A famiacutelia eacute o ideal do homem A propriedade tam-beacutem E d Heloiacutesa eacute um anjo
abelardo i Vocecirc sabe que natildeo haacute outro gecircnero no mercado Eu natildeo ia me casar com a irmatilde mais moccedila que chamam por aiacute de garota da crise e de Joatildeo dos Divatildes Nem com o irmatildeo menor que todo mundo conhece por Totoacute Fruta-do-Conde
abelardo ii Um degeneradohellipabelardo i Coisas que se compreendem e relevam numa velha
famiacutelia Heloiacutesa apesar dos viacutecios que lhe apontamhellip Vocecirc sabe toda a gente sabe Heloiacutesa de Lesbos Fizeram piada quando comprei uma ilha no Rio para nos casarmos Disseram que era na Greacutecia Apesar disso ela ainda eacute a flor mais decente dessa velha aacutervore bandeirante Uma das famiacutelias fundamentais do Impeacuterio
abelardo ii O velho estaacute de tanga Entregou tudo aos credoresabelardo i Que importa Para noacutes homens adiantados que soacute
conhecemos uma coisa fria o valor do dinheiro comprar esses
20
restos de brasatildeo ainda eacute negoacutecio faz vista num paiacutes medieval como o nosso O senhor sabe que Satildeo Paulo soacute tem dez famiacutelias
abelardo ii E o resto da populaccedilatildeoabelardo i O resto eacute prole O que eu estou fazendo o que o se-
nhor quer fazer eacute deixar de ser prole para ser famiacutelia comprar os velhos brasotildees isso ateacute parece teatro do seacuteculo xix Mas no Brasil ainda eacute novo
abelardo ii Se eacute A burguesia soacute produziu um teatro de classe A apresentaccedilatildeo da classe Hoje evoluiacutemos Chegamos agrave espi-nafraccedilatildeo
abelardo i Bem Veja o bordereauhellip O Banco devolveu muita coisa
abelardo ii Xu Um colosso Estamos no vinagre seu Abelardoabelardo i Vamoshellipabelardo ii (lendo) Cinco contos setecentos e setenta Dr Car-
los Magalhatildees de Moraes Benevides Fonseca Chapa uacutenicahellip Reforma-se Natildeo paga juros haacute dois meses
abelardo i Reforma-seabelardo ii Antunes amp Lapahellip trecircs contoshellip jaacute protestei Man-
gionihellip Luiz O bicheirohellip Dr Joatildeo Carlos de Menezes Rochahellip dois contoshellip
abelardo i Pro protestoabelardo ii Baratildeo de Gama Lima quinhentos mil-reacuteishellipabelardo i Pro protestoabelardo ii Moura Melohellip setecentos mil-reacuteisabelardo i Pro protestoabelardo ii Abraatildeo Calimeacuteriohellip dez contosabelardo i Pro protestoabelardo ii Carlos Pereshellip Esta jaacute foi pro pau ontemhellipabelardo i Ele natildeo pediu reformaabelardo ii Natildeoabelardo i E por quecirc
21
abelardo ii Tomou dois copos de limonada com iodo Estaacute aqui no jornal (procura) Diz que estaacute em estado de coma na Santa Casahellip
abelardo i Mande o Benvindo fazer a penhora Depressa Antes que ele morra e a venda fechehellip
abelardo ii Estaacute certo Esta eacutehellip daquele funcionaacuterio puacuteblico o Pires Limpohellip Ele estaacute limpo e de pires Mandou a filha aqui
abelardo i Bonitaabelardo ii Pancadatildeo Dezoito anoshellip Cada dente deste tama-
nhoabelardo i Mandou a filha O mecircs passado veio a mulherabelardo ii Eu vi Jeitosahellip Mas muito faladeira Queria saber
onde eacute que o senhor morava falou na compra da ilha no Rio onde o senhor vai se casar Que ia levar de aviatildeo uma porccedilatildeo de gente de Satildeo Paulo
abelardo i (batendo o peacute numa grande caixa de papelatildeo) Que eacute isto aqui
abelardo ii Focircrmas de chapeacuteu (mostra o casticcedilal de latatildeo) A penhora de Mme Lanale Soacute tinha isso e aquele candelabro Quase que natildeo daacute para pagar os tiras que ajudaram
abelardo i E os moacuteveishellipabelardo ii Ficaram despedaccedilados na rua Eram duas peccedilas
velhas de ferro Foi um escacircndalo O estado-maior teve que agir duro O povo queria se opor Juntou gentehellip
abelardo i Que estado-maiorabelardo ii Os oficiais de justiccedilahellipabelardo i Mas o exemplo ficouabelardo ii E frutificaraacuteabelardo i A rua inteira sabe que penhorei porque natildeo me
pagaram 200$000 A cidade inteira sabe Talvez gastasse mais nissohellip Que importa Dura Lex aprendi isso na Faculdade de Direito
22
abelardo ii Queria que o senhor visse a choradeira A viuacuteva berrava na janela mdash Gli orfani Gli orfani Non abiamo piu lavoro
abelardo i O quecircabelardo ii Ela queria dizer que os oacuterfatildeos natildeo tinham mais o
que comer Tiramos os instrumentos de trabalhoabelardo i Manhosahellipabelardo ii Soacute se pode prosperar agrave custa de muita desgraccedila
Mas de muita mesmohellipabelardo i Se natildeo for assim como garantirei os meus deposi-
tantes Se natildeo tiro do outro lado Ofereccedilo juros que os bancos natildeo pagam Os juros que soacute alguns pagavam nos bons tempos Quatro e ateacute cinco por cento ao ano
abelardo ii Tambeacutem o dinheiro corre para aquihellip Laacute embaixo a seccedilatildeo bancaacuteria estaacute assim
abelardo i Ofereccedilo boas garantias E tambeacutem exijo boas ga-rantias quando emprestohellip
abelardo ii A cinco e dez por cento ao mecircshellip Por filantropia (o telefone) Eacute seu irmatildeo
abelardo i Meu advogadoabelardo ii (no fone) Sim senhor Estaacute (para Abelardo) Diz
que entrou no Foacuterum com trecircs executivos Estaacute chamando o senhorhellip
abelardo i (ao fone) Como Sou euhellip Abelardo O Teodoro Quer se prevalecer da lei de usura Grande besta E pede reforma Linche esse camarada Ponha flite nele e acenda um foacutesforo (bate o fone) Pro pau com esse bandido Lei contra a usura Miseraacuteveis Bolchevistas Por isso eacute que o paiacutes se arruiacutena E haacute um miseraacutevel que quer se aproveitar dessa iniquidade
abelardo ii Leis sociaishellipabelardo i Suacutecia de desonestos Intervir nos juros Cercear
o sagrado direito de emprestar o meu dinheiro agrave taxa que eu
23
quiser E que todos aceitam Mais Que vecircm implorar aqui Sou eu que vou buscaacute-los para assinar papagaios Ou satildeo eles que todos os dias enchem a minha sala de espera Abra a jaula
Abelardo ii obedece de chicote em punho A porta de ferro corre pesadamente
Mais clientes
Os clientes aparecem atropeladamente nas grades Eacute uma coleccedilatildeo de crise variada expectante Homens e mulheres mantecircm-se quietos ante o enorme chicote de Abelardo ii
abelardo i Rua Nem mais um negoacutecio Vou fechar esta bagun-ccedila
as vozes (da jaula) Pelo amor de Deus Por caridade Eu natildeo posso pagar o aluguel Reforme Vou agrave falecircncia
abelardo i Rua Ningueacutem mais pode trabalhar num paiacutes des-tes Com leis monstruosas
as vozes Eu tenho que fechar a faacutebrica Natildeo poderei pagar os duzentos operaacuterios que ficaratildeo sem patildeo Tenha piedade Inclua os juros no capital Damos excelentes garantias
abelardo i (a Abelardo ii) Feche esta porta Natildeo atendo nin-gueacutem
Abelardo ii faz estalar o chicote de domador
as vozes Blefaremos o governo Me salve Me salveabelardo i Rua Canalhas Laacute fora sei como vocecircs me tratam
Abelardo ii faacute-los recuar das grades brandindo o chicote e amea-ccedilando com o revoacutelver
24
uma voz de mulher Ai Jesus Natildeo temos o que comer Eu natildeo saio daqui Espero ateacute agrave noite Estou arruinada
as vozes irritadas (Abelardo ii procura fechar a porta de fer-ro) Canalha Sujo Tirou o nosso sangue Ladratildeo Natildeo saiacutemos daqui
um italiano Pamarona Momanjo isto capitalistauma francesa Sale cochon Si crsquoest possible Conum russo branco Svolochum turco Joacutege paga bateacuteca Non izacuta Joacutegehellipas vozes (em coro) Assassinoabelardo i Feche Atire
Abelardo ii daacute um tiro para o ar Os clientes recuam gritando Ele corre a porta de ferro ruidosamente
as vozes (abafadas) Catildeo Rei da Vela Patildeo-durouma voz de mulher (gritando do outro lado da porta) Meu
marido bebeu estricninaoutra Minha matildee tomou lisoloutra Meu pai se jogou do viadutoabelardo i Lisol Estricnina Viaduto Eacute do que vocecircs precisam
canalhas
Menos o Cliente
Telefone
abelardo ii (atendendo) Alocirc Eacute o padre Aquele da entrevista Estaacute reverendo Vem jaacutehellip
abelardo i Mas vocecirc marcouabelardo ii Natildeo marquei nada
25
abelardo i (toma o fone) Bom dia reverendo Sou eu mesmo Abelardohellip Ah Com muitiacutessima honrahellip Esperarei vossa reve-rendiacutessima Pode ser agraves quatro horas Entatildeohellip sem duacutevidahellip Beijo-lhe as matildeos Sempre agraves suas ordens (depotildee o fone) Este padre eacute engraccediladohellip Natildeo me largahellip Eu natildeo sou eleitorhellip Ele natildeo quer dinheirohellip
abelardo ii Quer a sua almahellipabelardo i Evidentemente eacute um caso raro Um homem preo-
cupar-se comigo sem ser logo agrave vistahellip Quantoabelardo ii Ele prefere tratar desde jaacute do seu testamentoabelardo i Inuacutetil Eu morro ateu e casadoabelardo ii Eacute isso mesmo que ele quer A viuacuteva cuidaraacute bas-
tante de sua alma que teraacute idohellip para o purgatoacuteriohellipabelardo i Diga-me uma coisa seu Abelardo vocecirc eacute socialistaabelardo ii Sou o primeiro socialista que aparece no Teatro
Brasileiroabelardo i E o que eacute que vocecirc querabelardo ii Sucedecirc-lo nessa mesaabelardo i Pelo que vejo o socialismo nos paiacuteses atrasados co-
meccedila logo assimhellip Entrando num acordo com a propriedadehellipabelardo ii De fatohellip Estamos num paiacutes semicolonialhellipabelardo i Onde a gente pode ter ideias mas natildeo eacute de ferroabelardo ii Sim Sem quebrar a tradiccedilatildeoabelardo i Se for preciso o padre leva a sua alma tambeacutemhellip
Estaacute certohellip Vamos examinar aquelas propostas (senta-se e lecirc) Carmo Belatinehellip
abelardo ii Eacute aquele da faacutebrica de salsichashellip O frigoriacuteficohellip Que comprou o terreno da Lapa
abelardo i Idadeabelardo ii Trinta e nove anosabelardo i Niacutevel de vida
26
abelardo ii Niacutevel baixo ainda Faz a barba na terrina da sopa com sabatildeo de cozinha e gilete de segunda matildeohellip
abelardo i Jaacute fala o portuguecircsabelardo ii Ainda atrapalhaabelardo i Gasta menos do que tira dos trabalhadoresabelardo ii Muito menosabelardo i Tem filhos grandesabelardo ii Pequenos aindaabelardo i Em bons coleacutegiosabelardo ii Sim Oiseaux Sion Satildeo Bentoabelardo i Bem Tome nota Emprestamos enquanto os peque-
nos estudarem Quando as filhas comeccedilarem o serviccedilo militar nas garccedilonniegraveres e o pequeno tiver barata e Madame souber se vestir emprestaremos entatildeo de preferecircncia agrave costureira de Madame O velho aiacute teraacute mudado de niacutevel Possuiraacute automoacutevel casa no Jardim Ameacuterica Cessaremos pouco a pouco todo o creacute-dito Nem mais um papagaio Ele viraacute aqui caucionar os tiacutetulos dos comerciantes a quem fornece Executarei tudo um dia Le-varei a faacutebrica os capitais imobilizados e o ferro-velho agrave praccedila
abelardo ii E a mulher diraacute que foram os operaacuterios que os arruinaram
abelardo i E foram de fato Eu conto como fator essencial dessas coisas as exigecircncias atuais do operariado O salaacuterio miacutenimo As feacuterias Que diabo As tais leis sociais natildeo hatildeo de ser soacute contra o capitalhellip
abelardo ii Natildeo satildeo natildeo Descanse Eu entendo de socialismo Olhe A lei de feacuterias soacute deu um resultado Natildeo haacute mais salaacuterio de semana ou de mecircs Eacute por dia de trabalho ou por contrato Somando bem os domingos feriados e dias de doenccedila eram mais que as feacuterias de hoje
27
abelardo i Bem Guarde esta ficha nos Firmes Feche o negoacute-cio A mesma taxa O sistema da casa Chame a Secretaacuteria no 3 Quero ditar uma carta
Abelardo ii sai
Abelardo i e a Secretaacuteria no 3
a secretaacuteria (eacute uma moccedila longa de oacuteculos e tranccedilas enormes e loiras Veste-se pudicamente Traz laacutepis e blocknotes na matildeo) Eacute para bater agrave maacutequina seu Abelardo
abelardo i Natildeo Para estenografar Nem isso A senhora sabe redigir Melhor do que eu Faccedila uma carta Sente-se aiacute (sentam-se perto um do outro) D Aiacutedahellip Aiacuteda loirahellip Aiacuteda de Wagner Como eacute Natildeo precisa de um Radameacutes
a secretaacuteria Preciso que o senhor melhore o meu ordenado O custo da vida aumentou no Brasil de trinta por cento
abelardo i Tenho todo interesse pelo custo de sua vidahellip Mas a senhora sabehellip As vidas hoje estatildeo difiacuteceis para todoshellip Natildeo eacute mais como antigamentehellip Que tranccedilashellip Eu acabo me enfor-cando nessas tranccedilashellip Deixa (procura tocar-lhe os cabelos)
a secretaacuteria Tenha modos seu Abelardoabelardo i Deixa Malvadaa secretaacuteria Nunca Eu sou romacircntica Natildeo vendo o meu
amorabelardo i Vamos fazer um piqueniquehellip (aponta o divatilde sob a
Gioconda) Debaixo daquela mangueiraa secretaacuteria Eu sou noivaabelardo i Eu tambeacutema secretaacuteria Mas eu sou fielhellipabelardo i Bem Depois natildeo venha fazer vales aqui hein Eu
tambeacutem sei ser fiel ao sistema da casa Vaacute laacute Redija Natildeo
28
Tome nota Olhe Eacute uma carta confidencial A um tal Cristiano de Bensauacutede Industrial no Rio Metido a escritor Redija sem erros de portuguecircs O homem foi criacutetico literaacuterio e avanccedilado quando era prontohellip Ele me escreveu propondo frente uacutenica contra os operaacuterios Responda em tese (a secretaacuteria toma nota) insinue que eacute melhor ele ser um puro policial Manter vigilacircncia rigorosa nas faacutebricas Evitar a propaganda comunis-ta Denunciar e perseguir os agitadores Prender Esse negoacutecio de escrever livros de sociologia com anjos eacute contraproducente Ningueacutem mais crecirc Fica ridiacuteculo para noacutes industriais avanccedila-dos Diante dos americanos e dos ingleses Olhe diga isto Que a burguesia morre sem Deus Recusa a extrema-unccedilatildeo Cite o exemplo do proacuteprio Vaticano Coisas concretas A adesatildeo poliacute-tica da igreja contra um bilhatildeo e setecentos milhotildees de liras o ensino religioso e a lei contra o divoacutercio Toma laacute daacute caacute Natildeo vecirc que um alpinista como Pio xi potildee anjos em negoacutecios Vaacute redigir e traga logo Para seguir hojehellip Ver se esse homem deixa de atrapalhar Um sujeito feudal Viacutetima do seu proacuteprio sistema Paga um salaacuterio medieval 20$000 por quinzena
a secretaacuteria (voltando-se da porta) Ga-ra-nhatildeo (sai esbar-rando em Heloiacutesa de Lesbos que vestida de homem entra como a manhatilde laacute de fora)
Menos a Secretaacuteria mais Heloiacutesa
abelardo i (rindo) Vocecirc Meu amor Na hora do expedienteheloiacutesa O nosso casamento eacute um negoacuteciohellipabelardo i Por isso vieste de Marleneheloiacutesa Mas natildeo haacute de ser um negoacutecio como esses que vocecirc
faz com esse bando de desesperados que saiu daiacute vociferandohellip Estatildeo ainda muitos laacute embaixo Haacute mulheres idosas moccedilas turcos italianos russos de prestaccedilatildeo uma fauna de hospiacuteciohellip
29
abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute
Mais Abelardo ii
abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo
abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer
fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso
abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo
Mais o Intelectual Pinote
pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre
heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-
-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui
pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-
fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute
uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-
guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i
senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as
16
Abelardo i Abelardo ii e o Cliente
abelardo i (sentado em conversa com o Cliente Aperta um bo-tatildeo ouve-se um forte barulho de campainha) Vamos verhellip
abelardo ii (veste botas e um completo de domador de feras Usa pastinha e enormes bigodes retorcidos Monoacuteculo Um revoacutelver agrave cinta) Pronto seu Abelardo
abelardo i Traga o dossiecirc desse homemabelardo ii Pois natildeo O seu nomeo cliente (embaraccedilado o chapeacuteu na matildeo uma gravata de cor-
da no pescoccedilo magro) Manoel Pitanga de Moraesabelardo ii Profissatildeoo cliente Eu era proprietaacuterio quando vim aqui pela primeira
vez Depois fui dois anos funcionaacuterio da Estrada de Ferro So-rocabana O empreacutestimo o primeiro creio que foi feito para o parto Quando nasceu a meninahellip
abelardo ii Jaacute sei Estaacute nos impontuais (entrega o dossiecirc reclamado e sai)
abelardo i (examina) Veja Isto natildeo eacute comercial seu Pitanga O senhor fez o primeiro empreacutestimo em fins de 29 Liquidou em maio de 1931 Fez outro em junho de 31 estamos em 1933 Reformou sempre Haacute dois meses suspendeu o serviccedilo de ju-roshellip Natildeo eacute comercialhellip
o cliente Exatamente Procurei o senhor a segunda vez por causa da demora de pagamento na Estrada com a Revoluccedilatildeo de 30 A primeira foi para o parto A crianccedila jaacute tinha dois anos E a Revoluccedilatildeo em 30hellip Foi um mau sucesso que complicou tudohellip
abelardo i O senhor sabe o sistema da casa eacute reformar Mas natildeo podemos trabalhar com quem natildeo paga juroshellip Vivemos disso O senhor cometeu a maior falta contra a seguranccedila do nosso negoacutecio e o sistema da casahellip
17
o cliente Haacute dois meses somente que natildeo posso pagar jurosabelardo i Dois meses O senhor acha que eacute poucoo cliente Por isso mesmo eacute que eu quero liquidar Entrar num
acordo A fim de natildeo ser penhorado Que diabo O senhor tem auxiliado tanta gente Eacute o amigo de todo mundohellip Por que co-migo natildeo haacute de fazer um acordo
abelardo i Aqui natildeo haacute acordo meu amigo Haacute pagamentoo cliente Mas eu me acho numa situaccedilatildeo triste Natildeo posso pa-
gar tudo seu Abelardo Talvez consiga um adiantamento para liquidarhellip
abelardo i Apesar da sua impontualidade examinaremos as suas propostashellip
o cliente Mas eu fui pontual dois anos e meio Paguei enquanto pude A minha diacutevida era de um conto de reacuteis Soacute de juros eu lhe trouxe aqui nesta sala mais de dois contos e quinhentos E ateacute agora natildeo me utilizei da lei contra a usurahellip
abelardo i (interrompendo-o brutal) Ah meu amigo Utilize--se dessa coisa imoral e iniacutequa Se fala de lei de usura estamos com as negociaccedilotildees rotashellip Saia daqui
o cliente Ora seu Abelardo O senhor me conhece Eu sou incapaz
abelardo i Natildeo me fale nessa monstruosidade porque eu o mando executar hoje mesmo Tomo-lhe ateacute a roupa ouviu A camisa do corpo
o cliente Eu natildeo vou me aproveitar seu Abelardo Quero lhe pagar Mas quero tambeacutem lhe propor um acordo A minha situaccedilatildeo eacute tristehellip Natildeo tenho culpa de ter sido dispensado Empreguei-me outra vez Despediram-me por economia Natildeo ponho minha filhinha na escola porque natildeo posso comprar sapatos para ela Natildeo hei de morrer de fome tambeacutem Agraves vezes natildeo temos o que comer em casa Minha mulher agora caiu doente No entanto sou um homem habilitado Tenho
18
procurado inutilmente emprego por toda a parte Soacute tenho recebido natildeos enormes Do tamanho do ceacuteu Agora aprendi escrituraccedilatildeo estou fazendo umas escritas Uns biscates Hei de arribarhellip Quero ver se adiantam para lhe pagar
abelardo i Mas enfim o que eacute que o senhor me propotildeeo cliente Uma pequena reduccedilatildeo no capitalabelardo i No capital O senhor estaacute maluco Reduzir o capital
Nuncao cliente Mas eu jaacute paguei mais do dobro do que levei daquihellipabelardo i Me diga uma coisa seu Pitanga Fui eu que fui pro-
curaacute-lo para assinar este papagaio Foi o meu automoacutevel que parou diante do seu casebre para pedir que aceitasse o meu dinheiro Com que direito o senhor me propotildee uma reduccedilatildeo no capital que eu lhe emprestei
o cliente (desnorteado) Eu jaacute paguei duas vezeshellipabelardo i Suma-se daqui (levanta-se) Saia ou chamo a po-
liacutecia Eacute soacute dar o sinal de crime neste aparelho A poliacutecia ainda existehellip
o cliente Para defender os capitalistas E os seus crimesabelardo i Para defender o meu dinheiro Seraacute executado hoje
mesmo (toca a campainha) Abelardo Decirc ordens para executaacute--lo Rua Vamos Fuzile-o Eacute o sistema da casa
o cliente Eu sou um covarde (vai chorando) O senhor abusa de um fraco de um covarde
Menos o Cliente
abelardo i Natildeo faccedila entrar mais ningueacutem hoje Abelardoabelardo ii A jaula estaacute cheiahellip seu Abelardoabelardo i Mas esta cena basta para nos identificar perante
o puacuteblico Natildeo preciso mais falar com nenhum dos meus
19
clientes Satildeo todos iguais Sobretudo natildeo me traga pais que natildeo podem comprar sapatos para os filhoshellip
abelardo ii Esse estaacute se queixando de barriga cheia Natildeo tem prole numerosa Soacute uma filhahellip Famiacutelia pequena
abelardo i Natildeo confunda seu Abelardo Famiacutelia eacute uma coisa distinta Prole eacute de proletaacuterio A famiacutelia requer a propriedade e vice-versa Quem natildeo tem propriedades deve ter prole Para trabalhar os filhos satildeo a fortuna do pobrehellip
abelardo ii Mas hoje ningueacutem mais vai nissohellipabelardo i Eacute a desordem social o desemprego a Ruacutessia Esse
homem possuiacutea uma casinha Tinha o direito de ter uma fa-miacutelia Perdeu a casa Cavasse prole Seu Abelardo a famiacutelia e a propriedade satildeo duas garotas que frequentam a mesma gar-ccedilonniegravere a mesma farrahellip quando o patildeo sobrahellip Mas quando o patildeo falta uma sai pela porta e a outra voa pela janelahellip
abelardo ii A famiacutelia eacute o ideal do homem A propriedade tam-beacutem E d Heloiacutesa eacute um anjo
abelardo i Vocecirc sabe que natildeo haacute outro gecircnero no mercado Eu natildeo ia me casar com a irmatilde mais moccedila que chamam por aiacute de garota da crise e de Joatildeo dos Divatildes Nem com o irmatildeo menor que todo mundo conhece por Totoacute Fruta-do-Conde
abelardo ii Um degeneradohellipabelardo i Coisas que se compreendem e relevam numa velha
famiacutelia Heloiacutesa apesar dos viacutecios que lhe apontamhellip Vocecirc sabe toda a gente sabe Heloiacutesa de Lesbos Fizeram piada quando comprei uma ilha no Rio para nos casarmos Disseram que era na Greacutecia Apesar disso ela ainda eacute a flor mais decente dessa velha aacutervore bandeirante Uma das famiacutelias fundamentais do Impeacuterio
abelardo ii O velho estaacute de tanga Entregou tudo aos credoresabelardo i Que importa Para noacutes homens adiantados que soacute
conhecemos uma coisa fria o valor do dinheiro comprar esses
20
restos de brasatildeo ainda eacute negoacutecio faz vista num paiacutes medieval como o nosso O senhor sabe que Satildeo Paulo soacute tem dez famiacutelias
abelardo ii E o resto da populaccedilatildeoabelardo i O resto eacute prole O que eu estou fazendo o que o se-
nhor quer fazer eacute deixar de ser prole para ser famiacutelia comprar os velhos brasotildees isso ateacute parece teatro do seacuteculo xix Mas no Brasil ainda eacute novo
abelardo ii Se eacute A burguesia soacute produziu um teatro de classe A apresentaccedilatildeo da classe Hoje evoluiacutemos Chegamos agrave espi-nafraccedilatildeo
abelardo i Bem Veja o bordereauhellip O Banco devolveu muita coisa
abelardo ii Xu Um colosso Estamos no vinagre seu Abelardoabelardo i Vamoshellipabelardo ii (lendo) Cinco contos setecentos e setenta Dr Car-
los Magalhatildees de Moraes Benevides Fonseca Chapa uacutenicahellip Reforma-se Natildeo paga juros haacute dois meses
abelardo i Reforma-seabelardo ii Antunes amp Lapahellip trecircs contoshellip jaacute protestei Man-
gionihellip Luiz O bicheirohellip Dr Joatildeo Carlos de Menezes Rochahellip dois contoshellip
abelardo i Pro protestoabelardo ii Baratildeo de Gama Lima quinhentos mil-reacuteishellipabelardo i Pro protestoabelardo ii Moura Melohellip setecentos mil-reacuteisabelardo i Pro protestoabelardo ii Abraatildeo Calimeacuteriohellip dez contosabelardo i Pro protestoabelardo ii Carlos Pereshellip Esta jaacute foi pro pau ontemhellipabelardo i Ele natildeo pediu reformaabelardo ii Natildeoabelardo i E por quecirc
21
abelardo ii Tomou dois copos de limonada com iodo Estaacute aqui no jornal (procura) Diz que estaacute em estado de coma na Santa Casahellip
abelardo i Mande o Benvindo fazer a penhora Depressa Antes que ele morra e a venda fechehellip
abelardo ii Estaacute certo Esta eacutehellip daquele funcionaacuterio puacuteblico o Pires Limpohellip Ele estaacute limpo e de pires Mandou a filha aqui
abelardo i Bonitaabelardo ii Pancadatildeo Dezoito anoshellip Cada dente deste tama-
nhoabelardo i Mandou a filha O mecircs passado veio a mulherabelardo ii Eu vi Jeitosahellip Mas muito faladeira Queria saber
onde eacute que o senhor morava falou na compra da ilha no Rio onde o senhor vai se casar Que ia levar de aviatildeo uma porccedilatildeo de gente de Satildeo Paulo
abelardo i (batendo o peacute numa grande caixa de papelatildeo) Que eacute isto aqui
abelardo ii Focircrmas de chapeacuteu (mostra o casticcedilal de latatildeo) A penhora de Mme Lanale Soacute tinha isso e aquele candelabro Quase que natildeo daacute para pagar os tiras que ajudaram
abelardo i E os moacuteveishellipabelardo ii Ficaram despedaccedilados na rua Eram duas peccedilas
velhas de ferro Foi um escacircndalo O estado-maior teve que agir duro O povo queria se opor Juntou gentehellip
abelardo i Que estado-maiorabelardo ii Os oficiais de justiccedilahellipabelardo i Mas o exemplo ficouabelardo ii E frutificaraacuteabelardo i A rua inteira sabe que penhorei porque natildeo me
pagaram 200$000 A cidade inteira sabe Talvez gastasse mais nissohellip Que importa Dura Lex aprendi isso na Faculdade de Direito
22
abelardo ii Queria que o senhor visse a choradeira A viuacuteva berrava na janela mdash Gli orfani Gli orfani Non abiamo piu lavoro
abelardo i O quecircabelardo ii Ela queria dizer que os oacuterfatildeos natildeo tinham mais o
que comer Tiramos os instrumentos de trabalhoabelardo i Manhosahellipabelardo ii Soacute se pode prosperar agrave custa de muita desgraccedila
Mas de muita mesmohellipabelardo i Se natildeo for assim como garantirei os meus deposi-
tantes Se natildeo tiro do outro lado Ofereccedilo juros que os bancos natildeo pagam Os juros que soacute alguns pagavam nos bons tempos Quatro e ateacute cinco por cento ao ano
abelardo ii Tambeacutem o dinheiro corre para aquihellip Laacute embaixo a seccedilatildeo bancaacuteria estaacute assim
abelardo i Ofereccedilo boas garantias E tambeacutem exijo boas ga-rantias quando emprestohellip
abelardo ii A cinco e dez por cento ao mecircshellip Por filantropia (o telefone) Eacute seu irmatildeo
abelardo i Meu advogadoabelardo ii (no fone) Sim senhor Estaacute (para Abelardo) Diz
que entrou no Foacuterum com trecircs executivos Estaacute chamando o senhorhellip
abelardo i (ao fone) Como Sou euhellip Abelardo O Teodoro Quer se prevalecer da lei de usura Grande besta E pede reforma Linche esse camarada Ponha flite nele e acenda um foacutesforo (bate o fone) Pro pau com esse bandido Lei contra a usura Miseraacuteveis Bolchevistas Por isso eacute que o paiacutes se arruiacutena E haacute um miseraacutevel que quer se aproveitar dessa iniquidade
abelardo ii Leis sociaishellipabelardo i Suacutecia de desonestos Intervir nos juros Cercear
o sagrado direito de emprestar o meu dinheiro agrave taxa que eu
23
quiser E que todos aceitam Mais Que vecircm implorar aqui Sou eu que vou buscaacute-los para assinar papagaios Ou satildeo eles que todos os dias enchem a minha sala de espera Abra a jaula
Abelardo ii obedece de chicote em punho A porta de ferro corre pesadamente
Mais clientes
Os clientes aparecem atropeladamente nas grades Eacute uma coleccedilatildeo de crise variada expectante Homens e mulheres mantecircm-se quietos ante o enorme chicote de Abelardo ii
abelardo i Rua Nem mais um negoacutecio Vou fechar esta bagun-ccedila
as vozes (da jaula) Pelo amor de Deus Por caridade Eu natildeo posso pagar o aluguel Reforme Vou agrave falecircncia
abelardo i Rua Ningueacutem mais pode trabalhar num paiacutes des-tes Com leis monstruosas
as vozes Eu tenho que fechar a faacutebrica Natildeo poderei pagar os duzentos operaacuterios que ficaratildeo sem patildeo Tenha piedade Inclua os juros no capital Damos excelentes garantias
abelardo i (a Abelardo ii) Feche esta porta Natildeo atendo nin-gueacutem
Abelardo ii faz estalar o chicote de domador
as vozes Blefaremos o governo Me salve Me salveabelardo i Rua Canalhas Laacute fora sei como vocecircs me tratam
Abelardo ii faacute-los recuar das grades brandindo o chicote e amea-ccedilando com o revoacutelver
24
uma voz de mulher Ai Jesus Natildeo temos o que comer Eu natildeo saio daqui Espero ateacute agrave noite Estou arruinada
as vozes irritadas (Abelardo ii procura fechar a porta de fer-ro) Canalha Sujo Tirou o nosso sangue Ladratildeo Natildeo saiacutemos daqui
um italiano Pamarona Momanjo isto capitalistauma francesa Sale cochon Si crsquoest possible Conum russo branco Svolochum turco Joacutege paga bateacuteca Non izacuta Joacutegehellipas vozes (em coro) Assassinoabelardo i Feche Atire
Abelardo ii daacute um tiro para o ar Os clientes recuam gritando Ele corre a porta de ferro ruidosamente
as vozes (abafadas) Catildeo Rei da Vela Patildeo-durouma voz de mulher (gritando do outro lado da porta) Meu
marido bebeu estricninaoutra Minha matildee tomou lisoloutra Meu pai se jogou do viadutoabelardo i Lisol Estricnina Viaduto Eacute do que vocecircs precisam
canalhas
Menos o Cliente
Telefone
abelardo ii (atendendo) Alocirc Eacute o padre Aquele da entrevista Estaacute reverendo Vem jaacutehellip
abelardo i Mas vocecirc marcouabelardo ii Natildeo marquei nada
25
abelardo i (toma o fone) Bom dia reverendo Sou eu mesmo Abelardohellip Ah Com muitiacutessima honrahellip Esperarei vossa reve-rendiacutessima Pode ser agraves quatro horas Entatildeohellip sem duacutevidahellip Beijo-lhe as matildeos Sempre agraves suas ordens (depotildee o fone) Este padre eacute engraccediladohellip Natildeo me largahellip Eu natildeo sou eleitorhellip Ele natildeo quer dinheirohellip
abelardo ii Quer a sua almahellipabelardo i Evidentemente eacute um caso raro Um homem preo-
cupar-se comigo sem ser logo agrave vistahellip Quantoabelardo ii Ele prefere tratar desde jaacute do seu testamentoabelardo i Inuacutetil Eu morro ateu e casadoabelardo ii Eacute isso mesmo que ele quer A viuacuteva cuidaraacute bas-
tante de sua alma que teraacute idohellip para o purgatoacuteriohellipabelardo i Diga-me uma coisa seu Abelardo vocecirc eacute socialistaabelardo ii Sou o primeiro socialista que aparece no Teatro
Brasileiroabelardo i E o que eacute que vocecirc querabelardo ii Sucedecirc-lo nessa mesaabelardo i Pelo que vejo o socialismo nos paiacuteses atrasados co-
meccedila logo assimhellip Entrando num acordo com a propriedadehellipabelardo ii De fatohellip Estamos num paiacutes semicolonialhellipabelardo i Onde a gente pode ter ideias mas natildeo eacute de ferroabelardo ii Sim Sem quebrar a tradiccedilatildeoabelardo i Se for preciso o padre leva a sua alma tambeacutemhellip
Estaacute certohellip Vamos examinar aquelas propostas (senta-se e lecirc) Carmo Belatinehellip
abelardo ii Eacute aquele da faacutebrica de salsichashellip O frigoriacuteficohellip Que comprou o terreno da Lapa
abelardo i Idadeabelardo ii Trinta e nove anosabelardo i Niacutevel de vida
26
abelardo ii Niacutevel baixo ainda Faz a barba na terrina da sopa com sabatildeo de cozinha e gilete de segunda matildeohellip
abelardo i Jaacute fala o portuguecircsabelardo ii Ainda atrapalhaabelardo i Gasta menos do que tira dos trabalhadoresabelardo ii Muito menosabelardo i Tem filhos grandesabelardo ii Pequenos aindaabelardo i Em bons coleacutegiosabelardo ii Sim Oiseaux Sion Satildeo Bentoabelardo i Bem Tome nota Emprestamos enquanto os peque-
nos estudarem Quando as filhas comeccedilarem o serviccedilo militar nas garccedilonniegraveres e o pequeno tiver barata e Madame souber se vestir emprestaremos entatildeo de preferecircncia agrave costureira de Madame O velho aiacute teraacute mudado de niacutevel Possuiraacute automoacutevel casa no Jardim Ameacuterica Cessaremos pouco a pouco todo o creacute-dito Nem mais um papagaio Ele viraacute aqui caucionar os tiacutetulos dos comerciantes a quem fornece Executarei tudo um dia Le-varei a faacutebrica os capitais imobilizados e o ferro-velho agrave praccedila
abelardo ii E a mulher diraacute que foram os operaacuterios que os arruinaram
abelardo i E foram de fato Eu conto como fator essencial dessas coisas as exigecircncias atuais do operariado O salaacuterio miacutenimo As feacuterias Que diabo As tais leis sociais natildeo hatildeo de ser soacute contra o capitalhellip
abelardo ii Natildeo satildeo natildeo Descanse Eu entendo de socialismo Olhe A lei de feacuterias soacute deu um resultado Natildeo haacute mais salaacuterio de semana ou de mecircs Eacute por dia de trabalho ou por contrato Somando bem os domingos feriados e dias de doenccedila eram mais que as feacuterias de hoje
27
abelardo i Bem Guarde esta ficha nos Firmes Feche o negoacute-cio A mesma taxa O sistema da casa Chame a Secretaacuteria no 3 Quero ditar uma carta
Abelardo ii sai
Abelardo i e a Secretaacuteria no 3
a secretaacuteria (eacute uma moccedila longa de oacuteculos e tranccedilas enormes e loiras Veste-se pudicamente Traz laacutepis e blocknotes na matildeo) Eacute para bater agrave maacutequina seu Abelardo
abelardo i Natildeo Para estenografar Nem isso A senhora sabe redigir Melhor do que eu Faccedila uma carta Sente-se aiacute (sentam-se perto um do outro) D Aiacutedahellip Aiacuteda loirahellip Aiacuteda de Wagner Como eacute Natildeo precisa de um Radameacutes
a secretaacuteria Preciso que o senhor melhore o meu ordenado O custo da vida aumentou no Brasil de trinta por cento
abelardo i Tenho todo interesse pelo custo de sua vidahellip Mas a senhora sabehellip As vidas hoje estatildeo difiacuteceis para todoshellip Natildeo eacute mais como antigamentehellip Que tranccedilashellip Eu acabo me enfor-cando nessas tranccedilashellip Deixa (procura tocar-lhe os cabelos)
a secretaacuteria Tenha modos seu Abelardoabelardo i Deixa Malvadaa secretaacuteria Nunca Eu sou romacircntica Natildeo vendo o meu
amorabelardo i Vamos fazer um piqueniquehellip (aponta o divatilde sob a
Gioconda) Debaixo daquela mangueiraa secretaacuteria Eu sou noivaabelardo i Eu tambeacutema secretaacuteria Mas eu sou fielhellipabelardo i Bem Depois natildeo venha fazer vales aqui hein Eu
tambeacutem sei ser fiel ao sistema da casa Vaacute laacute Redija Natildeo
28
Tome nota Olhe Eacute uma carta confidencial A um tal Cristiano de Bensauacutede Industrial no Rio Metido a escritor Redija sem erros de portuguecircs O homem foi criacutetico literaacuterio e avanccedilado quando era prontohellip Ele me escreveu propondo frente uacutenica contra os operaacuterios Responda em tese (a secretaacuteria toma nota) insinue que eacute melhor ele ser um puro policial Manter vigilacircncia rigorosa nas faacutebricas Evitar a propaganda comunis-ta Denunciar e perseguir os agitadores Prender Esse negoacutecio de escrever livros de sociologia com anjos eacute contraproducente Ningueacutem mais crecirc Fica ridiacuteculo para noacutes industriais avanccedila-dos Diante dos americanos e dos ingleses Olhe diga isto Que a burguesia morre sem Deus Recusa a extrema-unccedilatildeo Cite o exemplo do proacuteprio Vaticano Coisas concretas A adesatildeo poliacute-tica da igreja contra um bilhatildeo e setecentos milhotildees de liras o ensino religioso e a lei contra o divoacutercio Toma laacute daacute caacute Natildeo vecirc que um alpinista como Pio xi potildee anjos em negoacutecios Vaacute redigir e traga logo Para seguir hojehellip Ver se esse homem deixa de atrapalhar Um sujeito feudal Viacutetima do seu proacuteprio sistema Paga um salaacuterio medieval 20$000 por quinzena
a secretaacuteria (voltando-se da porta) Ga-ra-nhatildeo (sai esbar-rando em Heloiacutesa de Lesbos que vestida de homem entra como a manhatilde laacute de fora)
Menos a Secretaacuteria mais Heloiacutesa
abelardo i (rindo) Vocecirc Meu amor Na hora do expedienteheloiacutesa O nosso casamento eacute um negoacuteciohellipabelardo i Por isso vieste de Marleneheloiacutesa Mas natildeo haacute de ser um negoacutecio como esses que vocecirc
faz com esse bando de desesperados que saiu daiacute vociferandohellip Estatildeo ainda muitos laacute embaixo Haacute mulheres idosas moccedilas turcos italianos russos de prestaccedilatildeo uma fauna de hospiacuteciohellip
29
abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute
Mais Abelardo ii
abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo
abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer
fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso
abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo
Mais o Intelectual Pinote
pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre
heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-
-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui
pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-
fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute
uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-
guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i
senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as
17
o cliente Haacute dois meses somente que natildeo posso pagar jurosabelardo i Dois meses O senhor acha que eacute poucoo cliente Por isso mesmo eacute que eu quero liquidar Entrar num
acordo A fim de natildeo ser penhorado Que diabo O senhor tem auxiliado tanta gente Eacute o amigo de todo mundohellip Por que co-migo natildeo haacute de fazer um acordo
abelardo i Aqui natildeo haacute acordo meu amigo Haacute pagamentoo cliente Mas eu me acho numa situaccedilatildeo triste Natildeo posso pa-
gar tudo seu Abelardo Talvez consiga um adiantamento para liquidarhellip
abelardo i Apesar da sua impontualidade examinaremos as suas propostashellip
o cliente Mas eu fui pontual dois anos e meio Paguei enquanto pude A minha diacutevida era de um conto de reacuteis Soacute de juros eu lhe trouxe aqui nesta sala mais de dois contos e quinhentos E ateacute agora natildeo me utilizei da lei contra a usurahellip
abelardo i (interrompendo-o brutal) Ah meu amigo Utilize--se dessa coisa imoral e iniacutequa Se fala de lei de usura estamos com as negociaccedilotildees rotashellip Saia daqui
o cliente Ora seu Abelardo O senhor me conhece Eu sou incapaz
abelardo i Natildeo me fale nessa monstruosidade porque eu o mando executar hoje mesmo Tomo-lhe ateacute a roupa ouviu A camisa do corpo
o cliente Eu natildeo vou me aproveitar seu Abelardo Quero lhe pagar Mas quero tambeacutem lhe propor um acordo A minha situaccedilatildeo eacute tristehellip Natildeo tenho culpa de ter sido dispensado Empreguei-me outra vez Despediram-me por economia Natildeo ponho minha filhinha na escola porque natildeo posso comprar sapatos para ela Natildeo hei de morrer de fome tambeacutem Agraves vezes natildeo temos o que comer em casa Minha mulher agora caiu doente No entanto sou um homem habilitado Tenho
18
procurado inutilmente emprego por toda a parte Soacute tenho recebido natildeos enormes Do tamanho do ceacuteu Agora aprendi escrituraccedilatildeo estou fazendo umas escritas Uns biscates Hei de arribarhellip Quero ver se adiantam para lhe pagar
abelardo i Mas enfim o que eacute que o senhor me propotildeeo cliente Uma pequena reduccedilatildeo no capitalabelardo i No capital O senhor estaacute maluco Reduzir o capital
Nuncao cliente Mas eu jaacute paguei mais do dobro do que levei daquihellipabelardo i Me diga uma coisa seu Pitanga Fui eu que fui pro-
curaacute-lo para assinar este papagaio Foi o meu automoacutevel que parou diante do seu casebre para pedir que aceitasse o meu dinheiro Com que direito o senhor me propotildee uma reduccedilatildeo no capital que eu lhe emprestei
o cliente (desnorteado) Eu jaacute paguei duas vezeshellipabelardo i Suma-se daqui (levanta-se) Saia ou chamo a po-
liacutecia Eacute soacute dar o sinal de crime neste aparelho A poliacutecia ainda existehellip
o cliente Para defender os capitalistas E os seus crimesabelardo i Para defender o meu dinheiro Seraacute executado hoje
mesmo (toca a campainha) Abelardo Decirc ordens para executaacute--lo Rua Vamos Fuzile-o Eacute o sistema da casa
o cliente Eu sou um covarde (vai chorando) O senhor abusa de um fraco de um covarde
Menos o Cliente
abelardo i Natildeo faccedila entrar mais ningueacutem hoje Abelardoabelardo ii A jaula estaacute cheiahellip seu Abelardoabelardo i Mas esta cena basta para nos identificar perante
o puacuteblico Natildeo preciso mais falar com nenhum dos meus
19
clientes Satildeo todos iguais Sobretudo natildeo me traga pais que natildeo podem comprar sapatos para os filhoshellip
abelardo ii Esse estaacute se queixando de barriga cheia Natildeo tem prole numerosa Soacute uma filhahellip Famiacutelia pequena
abelardo i Natildeo confunda seu Abelardo Famiacutelia eacute uma coisa distinta Prole eacute de proletaacuterio A famiacutelia requer a propriedade e vice-versa Quem natildeo tem propriedades deve ter prole Para trabalhar os filhos satildeo a fortuna do pobrehellip
abelardo ii Mas hoje ningueacutem mais vai nissohellipabelardo i Eacute a desordem social o desemprego a Ruacutessia Esse
homem possuiacutea uma casinha Tinha o direito de ter uma fa-miacutelia Perdeu a casa Cavasse prole Seu Abelardo a famiacutelia e a propriedade satildeo duas garotas que frequentam a mesma gar-ccedilonniegravere a mesma farrahellip quando o patildeo sobrahellip Mas quando o patildeo falta uma sai pela porta e a outra voa pela janelahellip
abelardo ii A famiacutelia eacute o ideal do homem A propriedade tam-beacutem E d Heloiacutesa eacute um anjo
abelardo i Vocecirc sabe que natildeo haacute outro gecircnero no mercado Eu natildeo ia me casar com a irmatilde mais moccedila que chamam por aiacute de garota da crise e de Joatildeo dos Divatildes Nem com o irmatildeo menor que todo mundo conhece por Totoacute Fruta-do-Conde
abelardo ii Um degeneradohellipabelardo i Coisas que se compreendem e relevam numa velha
famiacutelia Heloiacutesa apesar dos viacutecios que lhe apontamhellip Vocecirc sabe toda a gente sabe Heloiacutesa de Lesbos Fizeram piada quando comprei uma ilha no Rio para nos casarmos Disseram que era na Greacutecia Apesar disso ela ainda eacute a flor mais decente dessa velha aacutervore bandeirante Uma das famiacutelias fundamentais do Impeacuterio
abelardo ii O velho estaacute de tanga Entregou tudo aos credoresabelardo i Que importa Para noacutes homens adiantados que soacute
conhecemos uma coisa fria o valor do dinheiro comprar esses
20
restos de brasatildeo ainda eacute negoacutecio faz vista num paiacutes medieval como o nosso O senhor sabe que Satildeo Paulo soacute tem dez famiacutelias
abelardo ii E o resto da populaccedilatildeoabelardo i O resto eacute prole O que eu estou fazendo o que o se-
nhor quer fazer eacute deixar de ser prole para ser famiacutelia comprar os velhos brasotildees isso ateacute parece teatro do seacuteculo xix Mas no Brasil ainda eacute novo
abelardo ii Se eacute A burguesia soacute produziu um teatro de classe A apresentaccedilatildeo da classe Hoje evoluiacutemos Chegamos agrave espi-nafraccedilatildeo
abelardo i Bem Veja o bordereauhellip O Banco devolveu muita coisa
abelardo ii Xu Um colosso Estamos no vinagre seu Abelardoabelardo i Vamoshellipabelardo ii (lendo) Cinco contos setecentos e setenta Dr Car-
los Magalhatildees de Moraes Benevides Fonseca Chapa uacutenicahellip Reforma-se Natildeo paga juros haacute dois meses
abelardo i Reforma-seabelardo ii Antunes amp Lapahellip trecircs contoshellip jaacute protestei Man-
gionihellip Luiz O bicheirohellip Dr Joatildeo Carlos de Menezes Rochahellip dois contoshellip
abelardo i Pro protestoabelardo ii Baratildeo de Gama Lima quinhentos mil-reacuteishellipabelardo i Pro protestoabelardo ii Moura Melohellip setecentos mil-reacuteisabelardo i Pro protestoabelardo ii Abraatildeo Calimeacuteriohellip dez contosabelardo i Pro protestoabelardo ii Carlos Pereshellip Esta jaacute foi pro pau ontemhellipabelardo i Ele natildeo pediu reformaabelardo ii Natildeoabelardo i E por quecirc
21
abelardo ii Tomou dois copos de limonada com iodo Estaacute aqui no jornal (procura) Diz que estaacute em estado de coma na Santa Casahellip
abelardo i Mande o Benvindo fazer a penhora Depressa Antes que ele morra e a venda fechehellip
abelardo ii Estaacute certo Esta eacutehellip daquele funcionaacuterio puacuteblico o Pires Limpohellip Ele estaacute limpo e de pires Mandou a filha aqui
abelardo i Bonitaabelardo ii Pancadatildeo Dezoito anoshellip Cada dente deste tama-
nhoabelardo i Mandou a filha O mecircs passado veio a mulherabelardo ii Eu vi Jeitosahellip Mas muito faladeira Queria saber
onde eacute que o senhor morava falou na compra da ilha no Rio onde o senhor vai se casar Que ia levar de aviatildeo uma porccedilatildeo de gente de Satildeo Paulo
abelardo i (batendo o peacute numa grande caixa de papelatildeo) Que eacute isto aqui
abelardo ii Focircrmas de chapeacuteu (mostra o casticcedilal de latatildeo) A penhora de Mme Lanale Soacute tinha isso e aquele candelabro Quase que natildeo daacute para pagar os tiras que ajudaram
abelardo i E os moacuteveishellipabelardo ii Ficaram despedaccedilados na rua Eram duas peccedilas
velhas de ferro Foi um escacircndalo O estado-maior teve que agir duro O povo queria se opor Juntou gentehellip
abelardo i Que estado-maiorabelardo ii Os oficiais de justiccedilahellipabelardo i Mas o exemplo ficouabelardo ii E frutificaraacuteabelardo i A rua inteira sabe que penhorei porque natildeo me
pagaram 200$000 A cidade inteira sabe Talvez gastasse mais nissohellip Que importa Dura Lex aprendi isso na Faculdade de Direito
22
abelardo ii Queria que o senhor visse a choradeira A viuacuteva berrava na janela mdash Gli orfani Gli orfani Non abiamo piu lavoro
abelardo i O quecircabelardo ii Ela queria dizer que os oacuterfatildeos natildeo tinham mais o
que comer Tiramos os instrumentos de trabalhoabelardo i Manhosahellipabelardo ii Soacute se pode prosperar agrave custa de muita desgraccedila
Mas de muita mesmohellipabelardo i Se natildeo for assim como garantirei os meus deposi-
tantes Se natildeo tiro do outro lado Ofereccedilo juros que os bancos natildeo pagam Os juros que soacute alguns pagavam nos bons tempos Quatro e ateacute cinco por cento ao ano
abelardo ii Tambeacutem o dinheiro corre para aquihellip Laacute embaixo a seccedilatildeo bancaacuteria estaacute assim
abelardo i Ofereccedilo boas garantias E tambeacutem exijo boas ga-rantias quando emprestohellip
abelardo ii A cinco e dez por cento ao mecircshellip Por filantropia (o telefone) Eacute seu irmatildeo
abelardo i Meu advogadoabelardo ii (no fone) Sim senhor Estaacute (para Abelardo) Diz
que entrou no Foacuterum com trecircs executivos Estaacute chamando o senhorhellip
abelardo i (ao fone) Como Sou euhellip Abelardo O Teodoro Quer se prevalecer da lei de usura Grande besta E pede reforma Linche esse camarada Ponha flite nele e acenda um foacutesforo (bate o fone) Pro pau com esse bandido Lei contra a usura Miseraacuteveis Bolchevistas Por isso eacute que o paiacutes se arruiacutena E haacute um miseraacutevel que quer se aproveitar dessa iniquidade
abelardo ii Leis sociaishellipabelardo i Suacutecia de desonestos Intervir nos juros Cercear
o sagrado direito de emprestar o meu dinheiro agrave taxa que eu
23
quiser E que todos aceitam Mais Que vecircm implorar aqui Sou eu que vou buscaacute-los para assinar papagaios Ou satildeo eles que todos os dias enchem a minha sala de espera Abra a jaula
Abelardo ii obedece de chicote em punho A porta de ferro corre pesadamente
Mais clientes
Os clientes aparecem atropeladamente nas grades Eacute uma coleccedilatildeo de crise variada expectante Homens e mulheres mantecircm-se quietos ante o enorme chicote de Abelardo ii
abelardo i Rua Nem mais um negoacutecio Vou fechar esta bagun-ccedila
as vozes (da jaula) Pelo amor de Deus Por caridade Eu natildeo posso pagar o aluguel Reforme Vou agrave falecircncia
abelardo i Rua Ningueacutem mais pode trabalhar num paiacutes des-tes Com leis monstruosas
as vozes Eu tenho que fechar a faacutebrica Natildeo poderei pagar os duzentos operaacuterios que ficaratildeo sem patildeo Tenha piedade Inclua os juros no capital Damos excelentes garantias
abelardo i (a Abelardo ii) Feche esta porta Natildeo atendo nin-gueacutem
Abelardo ii faz estalar o chicote de domador
as vozes Blefaremos o governo Me salve Me salveabelardo i Rua Canalhas Laacute fora sei como vocecircs me tratam
Abelardo ii faacute-los recuar das grades brandindo o chicote e amea-ccedilando com o revoacutelver
24
uma voz de mulher Ai Jesus Natildeo temos o que comer Eu natildeo saio daqui Espero ateacute agrave noite Estou arruinada
as vozes irritadas (Abelardo ii procura fechar a porta de fer-ro) Canalha Sujo Tirou o nosso sangue Ladratildeo Natildeo saiacutemos daqui
um italiano Pamarona Momanjo isto capitalistauma francesa Sale cochon Si crsquoest possible Conum russo branco Svolochum turco Joacutege paga bateacuteca Non izacuta Joacutegehellipas vozes (em coro) Assassinoabelardo i Feche Atire
Abelardo ii daacute um tiro para o ar Os clientes recuam gritando Ele corre a porta de ferro ruidosamente
as vozes (abafadas) Catildeo Rei da Vela Patildeo-durouma voz de mulher (gritando do outro lado da porta) Meu
marido bebeu estricninaoutra Minha matildee tomou lisoloutra Meu pai se jogou do viadutoabelardo i Lisol Estricnina Viaduto Eacute do que vocecircs precisam
canalhas
Menos o Cliente
Telefone
abelardo ii (atendendo) Alocirc Eacute o padre Aquele da entrevista Estaacute reverendo Vem jaacutehellip
abelardo i Mas vocecirc marcouabelardo ii Natildeo marquei nada
25
abelardo i (toma o fone) Bom dia reverendo Sou eu mesmo Abelardohellip Ah Com muitiacutessima honrahellip Esperarei vossa reve-rendiacutessima Pode ser agraves quatro horas Entatildeohellip sem duacutevidahellip Beijo-lhe as matildeos Sempre agraves suas ordens (depotildee o fone) Este padre eacute engraccediladohellip Natildeo me largahellip Eu natildeo sou eleitorhellip Ele natildeo quer dinheirohellip
abelardo ii Quer a sua almahellipabelardo i Evidentemente eacute um caso raro Um homem preo-
cupar-se comigo sem ser logo agrave vistahellip Quantoabelardo ii Ele prefere tratar desde jaacute do seu testamentoabelardo i Inuacutetil Eu morro ateu e casadoabelardo ii Eacute isso mesmo que ele quer A viuacuteva cuidaraacute bas-
tante de sua alma que teraacute idohellip para o purgatoacuteriohellipabelardo i Diga-me uma coisa seu Abelardo vocecirc eacute socialistaabelardo ii Sou o primeiro socialista que aparece no Teatro
Brasileiroabelardo i E o que eacute que vocecirc querabelardo ii Sucedecirc-lo nessa mesaabelardo i Pelo que vejo o socialismo nos paiacuteses atrasados co-
meccedila logo assimhellip Entrando num acordo com a propriedadehellipabelardo ii De fatohellip Estamos num paiacutes semicolonialhellipabelardo i Onde a gente pode ter ideias mas natildeo eacute de ferroabelardo ii Sim Sem quebrar a tradiccedilatildeoabelardo i Se for preciso o padre leva a sua alma tambeacutemhellip
Estaacute certohellip Vamos examinar aquelas propostas (senta-se e lecirc) Carmo Belatinehellip
abelardo ii Eacute aquele da faacutebrica de salsichashellip O frigoriacuteficohellip Que comprou o terreno da Lapa
abelardo i Idadeabelardo ii Trinta e nove anosabelardo i Niacutevel de vida
26
abelardo ii Niacutevel baixo ainda Faz a barba na terrina da sopa com sabatildeo de cozinha e gilete de segunda matildeohellip
abelardo i Jaacute fala o portuguecircsabelardo ii Ainda atrapalhaabelardo i Gasta menos do que tira dos trabalhadoresabelardo ii Muito menosabelardo i Tem filhos grandesabelardo ii Pequenos aindaabelardo i Em bons coleacutegiosabelardo ii Sim Oiseaux Sion Satildeo Bentoabelardo i Bem Tome nota Emprestamos enquanto os peque-
nos estudarem Quando as filhas comeccedilarem o serviccedilo militar nas garccedilonniegraveres e o pequeno tiver barata e Madame souber se vestir emprestaremos entatildeo de preferecircncia agrave costureira de Madame O velho aiacute teraacute mudado de niacutevel Possuiraacute automoacutevel casa no Jardim Ameacuterica Cessaremos pouco a pouco todo o creacute-dito Nem mais um papagaio Ele viraacute aqui caucionar os tiacutetulos dos comerciantes a quem fornece Executarei tudo um dia Le-varei a faacutebrica os capitais imobilizados e o ferro-velho agrave praccedila
abelardo ii E a mulher diraacute que foram os operaacuterios que os arruinaram
abelardo i E foram de fato Eu conto como fator essencial dessas coisas as exigecircncias atuais do operariado O salaacuterio miacutenimo As feacuterias Que diabo As tais leis sociais natildeo hatildeo de ser soacute contra o capitalhellip
abelardo ii Natildeo satildeo natildeo Descanse Eu entendo de socialismo Olhe A lei de feacuterias soacute deu um resultado Natildeo haacute mais salaacuterio de semana ou de mecircs Eacute por dia de trabalho ou por contrato Somando bem os domingos feriados e dias de doenccedila eram mais que as feacuterias de hoje
27
abelardo i Bem Guarde esta ficha nos Firmes Feche o negoacute-cio A mesma taxa O sistema da casa Chame a Secretaacuteria no 3 Quero ditar uma carta
Abelardo ii sai
Abelardo i e a Secretaacuteria no 3
a secretaacuteria (eacute uma moccedila longa de oacuteculos e tranccedilas enormes e loiras Veste-se pudicamente Traz laacutepis e blocknotes na matildeo) Eacute para bater agrave maacutequina seu Abelardo
abelardo i Natildeo Para estenografar Nem isso A senhora sabe redigir Melhor do que eu Faccedila uma carta Sente-se aiacute (sentam-se perto um do outro) D Aiacutedahellip Aiacuteda loirahellip Aiacuteda de Wagner Como eacute Natildeo precisa de um Radameacutes
a secretaacuteria Preciso que o senhor melhore o meu ordenado O custo da vida aumentou no Brasil de trinta por cento
abelardo i Tenho todo interesse pelo custo de sua vidahellip Mas a senhora sabehellip As vidas hoje estatildeo difiacuteceis para todoshellip Natildeo eacute mais como antigamentehellip Que tranccedilashellip Eu acabo me enfor-cando nessas tranccedilashellip Deixa (procura tocar-lhe os cabelos)
a secretaacuteria Tenha modos seu Abelardoabelardo i Deixa Malvadaa secretaacuteria Nunca Eu sou romacircntica Natildeo vendo o meu
amorabelardo i Vamos fazer um piqueniquehellip (aponta o divatilde sob a
Gioconda) Debaixo daquela mangueiraa secretaacuteria Eu sou noivaabelardo i Eu tambeacutema secretaacuteria Mas eu sou fielhellipabelardo i Bem Depois natildeo venha fazer vales aqui hein Eu
tambeacutem sei ser fiel ao sistema da casa Vaacute laacute Redija Natildeo
28
Tome nota Olhe Eacute uma carta confidencial A um tal Cristiano de Bensauacutede Industrial no Rio Metido a escritor Redija sem erros de portuguecircs O homem foi criacutetico literaacuterio e avanccedilado quando era prontohellip Ele me escreveu propondo frente uacutenica contra os operaacuterios Responda em tese (a secretaacuteria toma nota) insinue que eacute melhor ele ser um puro policial Manter vigilacircncia rigorosa nas faacutebricas Evitar a propaganda comunis-ta Denunciar e perseguir os agitadores Prender Esse negoacutecio de escrever livros de sociologia com anjos eacute contraproducente Ningueacutem mais crecirc Fica ridiacuteculo para noacutes industriais avanccedila-dos Diante dos americanos e dos ingleses Olhe diga isto Que a burguesia morre sem Deus Recusa a extrema-unccedilatildeo Cite o exemplo do proacuteprio Vaticano Coisas concretas A adesatildeo poliacute-tica da igreja contra um bilhatildeo e setecentos milhotildees de liras o ensino religioso e a lei contra o divoacutercio Toma laacute daacute caacute Natildeo vecirc que um alpinista como Pio xi potildee anjos em negoacutecios Vaacute redigir e traga logo Para seguir hojehellip Ver se esse homem deixa de atrapalhar Um sujeito feudal Viacutetima do seu proacuteprio sistema Paga um salaacuterio medieval 20$000 por quinzena
a secretaacuteria (voltando-se da porta) Ga-ra-nhatildeo (sai esbar-rando em Heloiacutesa de Lesbos que vestida de homem entra como a manhatilde laacute de fora)
Menos a Secretaacuteria mais Heloiacutesa
abelardo i (rindo) Vocecirc Meu amor Na hora do expedienteheloiacutesa O nosso casamento eacute um negoacuteciohellipabelardo i Por isso vieste de Marleneheloiacutesa Mas natildeo haacute de ser um negoacutecio como esses que vocecirc
faz com esse bando de desesperados que saiu daiacute vociferandohellip Estatildeo ainda muitos laacute embaixo Haacute mulheres idosas moccedilas turcos italianos russos de prestaccedilatildeo uma fauna de hospiacuteciohellip
29
abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute
Mais Abelardo ii
abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo
abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer
fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso
abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo
Mais o Intelectual Pinote
pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre
heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-
-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui
pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-
fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute
uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-
guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i
senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as
18
procurado inutilmente emprego por toda a parte Soacute tenho recebido natildeos enormes Do tamanho do ceacuteu Agora aprendi escrituraccedilatildeo estou fazendo umas escritas Uns biscates Hei de arribarhellip Quero ver se adiantam para lhe pagar
abelardo i Mas enfim o que eacute que o senhor me propotildeeo cliente Uma pequena reduccedilatildeo no capitalabelardo i No capital O senhor estaacute maluco Reduzir o capital
Nuncao cliente Mas eu jaacute paguei mais do dobro do que levei daquihellipabelardo i Me diga uma coisa seu Pitanga Fui eu que fui pro-
curaacute-lo para assinar este papagaio Foi o meu automoacutevel que parou diante do seu casebre para pedir que aceitasse o meu dinheiro Com que direito o senhor me propotildee uma reduccedilatildeo no capital que eu lhe emprestei
o cliente (desnorteado) Eu jaacute paguei duas vezeshellipabelardo i Suma-se daqui (levanta-se) Saia ou chamo a po-
liacutecia Eacute soacute dar o sinal de crime neste aparelho A poliacutecia ainda existehellip
o cliente Para defender os capitalistas E os seus crimesabelardo i Para defender o meu dinheiro Seraacute executado hoje
mesmo (toca a campainha) Abelardo Decirc ordens para executaacute--lo Rua Vamos Fuzile-o Eacute o sistema da casa
o cliente Eu sou um covarde (vai chorando) O senhor abusa de um fraco de um covarde
Menos o Cliente
abelardo i Natildeo faccedila entrar mais ningueacutem hoje Abelardoabelardo ii A jaula estaacute cheiahellip seu Abelardoabelardo i Mas esta cena basta para nos identificar perante
o puacuteblico Natildeo preciso mais falar com nenhum dos meus
19
clientes Satildeo todos iguais Sobretudo natildeo me traga pais que natildeo podem comprar sapatos para os filhoshellip
abelardo ii Esse estaacute se queixando de barriga cheia Natildeo tem prole numerosa Soacute uma filhahellip Famiacutelia pequena
abelardo i Natildeo confunda seu Abelardo Famiacutelia eacute uma coisa distinta Prole eacute de proletaacuterio A famiacutelia requer a propriedade e vice-versa Quem natildeo tem propriedades deve ter prole Para trabalhar os filhos satildeo a fortuna do pobrehellip
abelardo ii Mas hoje ningueacutem mais vai nissohellipabelardo i Eacute a desordem social o desemprego a Ruacutessia Esse
homem possuiacutea uma casinha Tinha o direito de ter uma fa-miacutelia Perdeu a casa Cavasse prole Seu Abelardo a famiacutelia e a propriedade satildeo duas garotas que frequentam a mesma gar-ccedilonniegravere a mesma farrahellip quando o patildeo sobrahellip Mas quando o patildeo falta uma sai pela porta e a outra voa pela janelahellip
abelardo ii A famiacutelia eacute o ideal do homem A propriedade tam-beacutem E d Heloiacutesa eacute um anjo
abelardo i Vocecirc sabe que natildeo haacute outro gecircnero no mercado Eu natildeo ia me casar com a irmatilde mais moccedila que chamam por aiacute de garota da crise e de Joatildeo dos Divatildes Nem com o irmatildeo menor que todo mundo conhece por Totoacute Fruta-do-Conde
abelardo ii Um degeneradohellipabelardo i Coisas que se compreendem e relevam numa velha
famiacutelia Heloiacutesa apesar dos viacutecios que lhe apontamhellip Vocecirc sabe toda a gente sabe Heloiacutesa de Lesbos Fizeram piada quando comprei uma ilha no Rio para nos casarmos Disseram que era na Greacutecia Apesar disso ela ainda eacute a flor mais decente dessa velha aacutervore bandeirante Uma das famiacutelias fundamentais do Impeacuterio
abelardo ii O velho estaacute de tanga Entregou tudo aos credoresabelardo i Que importa Para noacutes homens adiantados que soacute
conhecemos uma coisa fria o valor do dinheiro comprar esses
20
restos de brasatildeo ainda eacute negoacutecio faz vista num paiacutes medieval como o nosso O senhor sabe que Satildeo Paulo soacute tem dez famiacutelias
abelardo ii E o resto da populaccedilatildeoabelardo i O resto eacute prole O que eu estou fazendo o que o se-
nhor quer fazer eacute deixar de ser prole para ser famiacutelia comprar os velhos brasotildees isso ateacute parece teatro do seacuteculo xix Mas no Brasil ainda eacute novo
abelardo ii Se eacute A burguesia soacute produziu um teatro de classe A apresentaccedilatildeo da classe Hoje evoluiacutemos Chegamos agrave espi-nafraccedilatildeo
abelardo i Bem Veja o bordereauhellip O Banco devolveu muita coisa
abelardo ii Xu Um colosso Estamos no vinagre seu Abelardoabelardo i Vamoshellipabelardo ii (lendo) Cinco contos setecentos e setenta Dr Car-
los Magalhatildees de Moraes Benevides Fonseca Chapa uacutenicahellip Reforma-se Natildeo paga juros haacute dois meses
abelardo i Reforma-seabelardo ii Antunes amp Lapahellip trecircs contoshellip jaacute protestei Man-
gionihellip Luiz O bicheirohellip Dr Joatildeo Carlos de Menezes Rochahellip dois contoshellip
abelardo i Pro protestoabelardo ii Baratildeo de Gama Lima quinhentos mil-reacuteishellipabelardo i Pro protestoabelardo ii Moura Melohellip setecentos mil-reacuteisabelardo i Pro protestoabelardo ii Abraatildeo Calimeacuteriohellip dez contosabelardo i Pro protestoabelardo ii Carlos Pereshellip Esta jaacute foi pro pau ontemhellipabelardo i Ele natildeo pediu reformaabelardo ii Natildeoabelardo i E por quecirc
21
abelardo ii Tomou dois copos de limonada com iodo Estaacute aqui no jornal (procura) Diz que estaacute em estado de coma na Santa Casahellip
abelardo i Mande o Benvindo fazer a penhora Depressa Antes que ele morra e a venda fechehellip
abelardo ii Estaacute certo Esta eacutehellip daquele funcionaacuterio puacuteblico o Pires Limpohellip Ele estaacute limpo e de pires Mandou a filha aqui
abelardo i Bonitaabelardo ii Pancadatildeo Dezoito anoshellip Cada dente deste tama-
nhoabelardo i Mandou a filha O mecircs passado veio a mulherabelardo ii Eu vi Jeitosahellip Mas muito faladeira Queria saber
onde eacute que o senhor morava falou na compra da ilha no Rio onde o senhor vai se casar Que ia levar de aviatildeo uma porccedilatildeo de gente de Satildeo Paulo
abelardo i (batendo o peacute numa grande caixa de papelatildeo) Que eacute isto aqui
abelardo ii Focircrmas de chapeacuteu (mostra o casticcedilal de latatildeo) A penhora de Mme Lanale Soacute tinha isso e aquele candelabro Quase que natildeo daacute para pagar os tiras que ajudaram
abelardo i E os moacuteveishellipabelardo ii Ficaram despedaccedilados na rua Eram duas peccedilas
velhas de ferro Foi um escacircndalo O estado-maior teve que agir duro O povo queria se opor Juntou gentehellip
abelardo i Que estado-maiorabelardo ii Os oficiais de justiccedilahellipabelardo i Mas o exemplo ficouabelardo ii E frutificaraacuteabelardo i A rua inteira sabe que penhorei porque natildeo me
pagaram 200$000 A cidade inteira sabe Talvez gastasse mais nissohellip Que importa Dura Lex aprendi isso na Faculdade de Direito
22
abelardo ii Queria que o senhor visse a choradeira A viuacuteva berrava na janela mdash Gli orfani Gli orfani Non abiamo piu lavoro
abelardo i O quecircabelardo ii Ela queria dizer que os oacuterfatildeos natildeo tinham mais o
que comer Tiramos os instrumentos de trabalhoabelardo i Manhosahellipabelardo ii Soacute se pode prosperar agrave custa de muita desgraccedila
Mas de muita mesmohellipabelardo i Se natildeo for assim como garantirei os meus deposi-
tantes Se natildeo tiro do outro lado Ofereccedilo juros que os bancos natildeo pagam Os juros que soacute alguns pagavam nos bons tempos Quatro e ateacute cinco por cento ao ano
abelardo ii Tambeacutem o dinheiro corre para aquihellip Laacute embaixo a seccedilatildeo bancaacuteria estaacute assim
abelardo i Ofereccedilo boas garantias E tambeacutem exijo boas ga-rantias quando emprestohellip
abelardo ii A cinco e dez por cento ao mecircshellip Por filantropia (o telefone) Eacute seu irmatildeo
abelardo i Meu advogadoabelardo ii (no fone) Sim senhor Estaacute (para Abelardo) Diz
que entrou no Foacuterum com trecircs executivos Estaacute chamando o senhorhellip
abelardo i (ao fone) Como Sou euhellip Abelardo O Teodoro Quer se prevalecer da lei de usura Grande besta E pede reforma Linche esse camarada Ponha flite nele e acenda um foacutesforo (bate o fone) Pro pau com esse bandido Lei contra a usura Miseraacuteveis Bolchevistas Por isso eacute que o paiacutes se arruiacutena E haacute um miseraacutevel que quer se aproveitar dessa iniquidade
abelardo ii Leis sociaishellipabelardo i Suacutecia de desonestos Intervir nos juros Cercear
o sagrado direito de emprestar o meu dinheiro agrave taxa que eu
23
quiser E que todos aceitam Mais Que vecircm implorar aqui Sou eu que vou buscaacute-los para assinar papagaios Ou satildeo eles que todos os dias enchem a minha sala de espera Abra a jaula
Abelardo ii obedece de chicote em punho A porta de ferro corre pesadamente
Mais clientes
Os clientes aparecem atropeladamente nas grades Eacute uma coleccedilatildeo de crise variada expectante Homens e mulheres mantecircm-se quietos ante o enorme chicote de Abelardo ii
abelardo i Rua Nem mais um negoacutecio Vou fechar esta bagun-ccedila
as vozes (da jaula) Pelo amor de Deus Por caridade Eu natildeo posso pagar o aluguel Reforme Vou agrave falecircncia
abelardo i Rua Ningueacutem mais pode trabalhar num paiacutes des-tes Com leis monstruosas
as vozes Eu tenho que fechar a faacutebrica Natildeo poderei pagar os duzentos operaacuterios que ficaratildeo sem patildeo Tenha piedade Inclua os juros no capital Damos excelentes garantias
abelardo i (a Abelardo ii) Feche esta porta Natildeo atendo nin-gueacutem
Abelardo ii faz estalar o chicote de domador
as vozes Blefaremos o governo Me salve Me salveabelardo i Rua Canalhas Laacute fora sei como vocecircs me tratam
Abelardo ii faacute-los recuar das grades brandindo o chicote e amea-ccedilando com o revoacutelver
24
uma voz de mulher Ai Jesus Natildeo temos o que comer Eu natildeo saio daqui Espero ateacute agrave noite Estou arruinada
as vozes irritadas (Abelardo ii procura fechar a porta de fer-ro) Canalha Sujo Tirou o nosso sangue Ladratildeo Natildeo saiacutemos daqui
um italiano Pamarona Momanjo isto capitalistauma francesa Sale cochon Si crsquoest possible Conum russo branco Svolochum turco Joacutege paga bateacuteca Non izacuta Joacutegehellipas vozes (em coro) Assassinoabelardo i Feche Atire
Abelardo ii daacute um tiro para o ar Os clientes recuam gritando Ele corre a porta de ferro ruidosamente
as vozes (abafadas) Catildeo Rei da Vela Patildeo-durouma voz de mulher (gritando do outro lado da porta) Meu
marido bebeu estricninaoutra Minha matildee tomou lisoloutra Meu pai se jogou do viadutoabelardo i Lisol Estricnina Viaduto Eacute do que vocecircs precisam
canalhas
Menos o Cliente
Telefone
abelardo ii (atendendo) Alocirc Eacute o padre Aquele da entrevista Estaacute reverendo Vem jaacutehellip
abelardo i Mas vocecirc marcouabelardo ii Natildeo marquei nada
25
abelardo i (toma o fone) Bom dia reverendo Sou eu mesmo Abelardohellip Ah Com muitiacutessima honrahellip Esperarei vossa reve-rendiacutessima Pode ser agraves quatro horas Entatildeohellip sem duacutevidahellip Beijo-lhe as matildeos Sempre agraves suas ordens (depotildee o fone) Este padre eacute engraccediladohellip Natildeo me largahellip Eu natildeo sou eleitorhellip Ele natildeo quer dinheirohellip
abelardo ii Quer a sua almahellipabelardo i Evidentemente eacute um caso raro Um homem preo-
cupar-se comigo sem ser logo agrave vistahellip Quantoabelardo ii Ele prefere tratar desde jaacute do seu testamentoabelardo i Inuacutetil Eu morro ateu e casadoabelardo ii Eacute isso mesmo que ele quer A viuacuteva cuidaraacute bas-
tante de sua alma que teraacute idohellip para o purgatoacuteriohellipabelardo i Diga-me uma coisa seu Abelardo vocecirc eacute socialistaabelardo ii Sou o primeiro socialista que aparece no Teatro
Brasileiroabelardo i E o que eacute que vocecirc querabelardo ii Sucedecirc-lo nessa mesaabelardo i Pelo que vejo o socialismo nos paiacuteses atrasados co-
meccedila logo assimhellip Entrando num acordo com a propriedadehellipabelardo ii De fatohellip Estamos num paiacutes semicolonialhellipabelardo i Onde a gente pode ter ideias mas natildeo eacute de ferroabelardo ii Sim Sem quebrar a tradiccedilatildeoabelardo i Se for preciso o padre leva a sua alma tambeacutemhellip
Estaacute certohellip Vamos examinar aquelas propostas (senta-se e lecirc) Carmo Belatinehellip
abelardo ii Eacute aquele da faacutebrica de salsichashellip O frigoriacuteficohellip Que comprou o terreno da Lapa
abelardo i Idadeabelardo ii Trinta e nove anosabelardo i Niacutevel de vida
26
abelardo ii Niacutevel baixo ainda Faz a barba na terrina da sopa com sabatildeo de cozinha e gilete de segunda matildeohellip
abelardo i Jaacute fala o portuguecircsabelardo ii Ainda atrapalhaabelardo i Gasta menos do que tira dos trabalhadoresabelardo ii Muito menosabelardo i Tem filhos grandesabelardo ii Pequenos aindaabelardo i Em bons coleacutegiosabelardo ii Sim Oiseaux Sion Satildeo Bentoabelardo i Bem Tome nota Emprestamos enquanto os peque-
nos estudarem Quando as filhas comeccedilarem o serviccedilo militar nas garccedilonniegraveres e o pequeno tiver barata e Madame souber se vestir emprestaremos entatildeo de preferecircncia agrave costureira de Madame O velho aiacute teraacute mudado de niacutevel Possuiraacute automoacutevel casa no Jardim Ameacuterica Cessaremos pouco a pouco todo o creacute-dito Nem mais um papagaio Ele viraacute aqui caucionar os tiacutetulos dos comerciantes a quem fornece Executarei tudo um dia Le-varei a faacutebrica os capitais imobilizados e o ferro-velho agrave praccedila
abelardo ii E a mulher diraacute que foram os operaacuterios que os arruinaram
abelardo i E foram de fato Eu conto como fator essencial dessas coisas as exigecircncias atuais do operariado O salaacuterio miacutenimo As feacuterias Que diabo As tais leis sociais natildeo hatildeo de ser soacute contra o capitalhellip
abelardo ii Natildeo satildeo natildeo Descanse Eu entendo de socialismo Olhe A lei de feacuterias soacute deu um resultado Natildeo haacute mais salaacuterio de semana ou de mecircs Eacute por dia de trabalho ou por contrato Somando bem os domingos feriados e dias de doenccedila eram mais que as feacuterias de hoje
27
abelardo i Bem Guarde esta ficha nos Firmes Feche o negoacute-cio A mesma taxa O sistema da casa Chame a Secretaacuteria no 3 Quero ditar uma carta
Abelardo ii sai
Abelardo i e a Secretaacuteria no 3
a secretaacuteria (eacute uma moccedila longa de oacuteculos e tranccedilas enormes e loiras Veste-se pudicamente Traz laacutepis e blocknotes na matildeo) Eacute para bater agrave maacutequina seu Abelardo
abelardo i Natildeo Para estenografar Nem isso A senhora sabe redigir Melhor do que eu Faccedila uma carta Sente-se aiacute (sentam-se perto um do outro) D Aiacutedahellip Aiacuteda loirahellip Aiacuteda de Wagner Como eacute Natildeo precisa de um Radameacutes
a secretaacuteria Preciso que o senhor melhore o meu ordenado O custo da vida aumentou no Brasil de trinta por cento
abelardo i Tenho todo interesse pelo custo de sua vidahellip Mas a senhora sabehellip As vidas hoje estatildeo difiacuteceis para todoshellip Natildeo eacute mais como antigamentehellip Que tranccedilashellip Eu acabo me enfor-cando nessas tranccedilashellip Deixa (procura tocar-lhe os cabelos)
a secretaacuteria Tenha modos seu Abelardoabelardo i Deixa Malvadaa secretaacuteria Nunca Eu sou romacircntica Natildeo vendo o meu
amorabelardo i Vamos fazer um piqueniquehellip (aponta o divatilde sob a
Gioconda) Debaixo daquela mangueiraa secretaacuteria Eu sou noivaabelardo i Eu tambeacutema secretaacuteria Mas eu sou fielhellipabelardo i Bem Depois natildeo venha fazer vales aqui hein Eu
tambeacutem sei ser fiel ao sistema da casa Vaacute laacute Redija Natildeo
28
Tome nota Olhe Eacute uma carta confidencial A um tal Cristiano de Bensauacutede Industrial no Rio Metido a escritor Redija sem erros de portuguecircs O homem foi criacutetico literaacuterio e avanccedilado quando era prontohellip Ele me escreveu propondo frente uacutenica contra os operaacuterios Responda em tese (a secretaacuteria toma nota) insinue que eacute melhor ele ser um puro policial Manter vigilacircncia rigorosa nas faacutebricas Evitar a propaganda comunis-ta Denunciar e perseguir os agitadores Prender Esse negoacutecio de escrever livros de sociologia com anjos eacute contraproducente Ningueacutem mais crecirc Fica ridiacuteculo para noacutes industriais avanccedila-dos Diante dos americanos e dos ingleses Olhe diga isto Que a burguesia morre sem Deus Recusa a extrema-unccedilatildeo Cite o exemplo do proacuteprio Vaticano Coisas concretas A adesatildeo poliacute-tica da igreja contra um bilhatildeo e setecentos milhotildees de liras o ensino religioso e a lei contra o divoacutercio Toma laacute daacute caacute Natildeo vecirc que um alpinista como Pio xi potildee anjos em negoacutecios Vaacute redigir e traga logo Para seguir hojehellip Ver se esse homem deixa de atrapalhar Um sujeito feudal Viacutetima do seu proacuteprio sistema Paga um salaacuterio medieval 20$000 por quinzena
a secretaacuteria (voltando-se da porta) Ga-ra-nhatildeo (sai esbar-rando em Heloiacutesa de Lesbos que vestida de homem entra como a manhatilde laacute de fora)
Menos a Secretaacuteria mais Heloiacutesa
abelardo i (rindo) Vocecirc Meu amor Na hora do expedienteheloiacutesa O nosso casamento eacute um negoacuteciohellipabelardo i Por isso vieste de Marleneheloiacutesa Mas natildeo haacute de ser um negoacutecio como esses que vocecirc
faz com esse bando de desesperados que saiu daiacute vociferandohellip Estatildeo ainda muitos laacute embaixo Haacute mulheres idosas moccedilas turcos italianos russos de prestaccedilatildeo uma fauna de hospiacuteciohellip
29
abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute
Mais Abelardo ii
abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo
abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer
fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso
abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo
Mais o Intelectual Pinote
pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre
heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-
-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui
pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-
fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute
uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-
guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i
senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as
19
clientes Satildeo todos iguais Sobretudo natildeo me traga pais que natildeo podem comprar sapatos para os filhoshellip
abelardo ii Esse estaacute se queixando de barriga cheia Natildeo tem prole numerosa Soacute uma filhahellip Famiacutelia pequena
abelardo i Natildeo confunda seu Abelardo Famiacutelia eacute uma coisa distinta Prole eacute de proletaacuterio A famiacutelia requer a propriedade e vice-versa Quem natildeo tem propriedades deve ter prole Para trabalhar os filhos satildeo a fortuna do pobrehellip
abelardo ii Mas hoje ningueacutem mais vai nissohellipabelardo i Eacute a desordem social o desemprego a Ruacutessia Esse
homem possuiacutea uma casinha Tinha o direito de ter uma fa-miacutelia Perdeu a casa Cavasse prole Seu Abelardo a famiacutelia e a propriedade satildeo duas garotas que frequentam a mesma gar-ccedilonniegravere a mesma farrahellip quando o patildeo sobrahellip Mas quando o patildeo falta uma sai pela porta e a outra voa pela janelahellip
abelardo ii A famiacutelia eacute o ideal do homem A propriedade tam-beacutem E d Heloiacutesa eacute um anjo
abelardo i Vocecirc sabe que natildeo haacute outro gecircnero no mercado Eu natildeo ia me casar com a irmatilde mais moccedila que chamam por aiacute de garota da crise e de Joatildeo dos Divatildes Nem com o irmatildeo menor que todo mundo conhece por Totoacute Fruta-do-Conde
abelardo ii Um degeneradohellipabelardo i Coisas que se compreendem e relevam numa velha
famiacutelia Heloiacutesa apesar dos viacutecios que lhe apontamhellip Vocecirc sabe toda a gente sabe Heloiacutesa de Lesbos Fizeram piada quando comprei uma ilha no Rio para nos casarmos Disseram que era na Greacutecia Apesar disso ela ainda eacute a flor mais decente dessa velha aacutervore bandeirante Uma das famiacutelias fundamentais do Impeacuterio
abelardo ii O velho estaacute de tanga Entregou tudo aos credoresabelardo i Que importa Para noacutes homens adiantados que soacute
conhecemos uma coisa fria o valor do dinheiro comprar esses
20
restos de brasatildeo ainda eacute negoacutecio faz vista num paiacutes medieval como o nosso O senhor sabe que Satildeo Paulo soacute tem dez famiacutelias
abelardo ii E o resto da populaccedilatildeoabelardo i O resto eacute prole O que eu estou fazendo o que o se-
nhor quer fazer eacute deixar de ser prole para ser famiacutelia comprar os velhos brasotildees isso ateacute parece teatro do seacuteculo xix Mas no Brasil ainda eacute novo
abelardo ii Se eacute A burguesia soacute produziu um teatro de classe A apresentaccedilatildeo da classe Hoje evoluiacutemos Chegamos agrave espi-nafraccedilatildeo
abelardo i Bem Veja o bordereauhellip O Banco devolveu muita coisa
abelardo ii Xu Um colosso Estamos no vinagre seu Abelardoabelardo i Vamoshellipabelardo ii (lendo) Cinco contos setecentos e setenta Dr Car-
los Magalhatildees de Moraes Benevides Fonseca Chapa uacutenicahellip Reforma-se Natildeo paga juros haacute dois meses
abelardo i Reforma-seabelardo ii Antunes amp Lapahellip trecircs contoshellip jaacute protestei Man-
gionihellip Luiz O bicheirohellip Dr Joatildeo Carlos de Menezes Rochahellip dois contoshellip
abelardo i Pro protestoabelardo ii Baratildeo de Gama Lima quinhentos mil-reacuteishellipabelardo i Pro protestoabelardo ii Moura Melohellip setecentos mil-reacuteisabelardo i Pro protestoabelardo ii Abraatildeo Calimeacuteriohellip dez contosabelardo i Pro protestoabelardo ii Carlos Pereshellip Esta jaacute foi pro pau ontemhellipabelardo i Ele natildeo pediu reformaabelardo ii Natildeoabelardo i E por quecirc
21
abelardo ii Tomou dois copos de limonada com iodo Estaacute aqui no jornal (procura) Diz que estaacute em estado de coma na Santa Casahellip
abelardo i Mande o Benvindo fazer a penhora Depressa Antes que ele morra e a venda fechehellip
abelardo ii Estaacute certo Esta eacutehellip daquele funcionaacuterio puacuteblico o Pires Limpohellip Ele estaacute limpo e de pires Mandou a filha aqui
abelardo i Bonitaabelardo ii Pancadatildeo Dezoito anoshellip Cada dente deste tama-
nhoabelardo i Mandou a filha O mecircs passado veio a mulherabelardo ii Eu vi Jeitosahellip Mas muito faladeira Queria saber
onde eacute que o senhor morava falou na compra da ilha no Rio onde o senhor vai se casar Que ia levar de aviatildeo uma porccedilatildeo de gente de Satildeo Paulo
abelardo i (batendo o peacute numa grande caixa de papelatildeo) Que eacute isto aqui
abelardo ii Focircrmas de chapeacuteu (mostra o casticcedilal de latatildeo) A penhora de Mme Lanale Soacute tinha isso e aquele candelabro Quase que natildeo daacute para pagar os tiras que ajudaram
abelardo i E os moacuteveishellipabelardo ii Ficaram despedaccedilados na rua Eram duas peccedilas
velhas de ferro Foi um escacircndalo O estado-maior teve que agir duro O povo queria se opor Juntou gentehellip
abelardo i Que estado-maiorabelardo ii Os oficiais de justiccedilahellipabelardo i Mas o exemplo ficouabelardo ii E frutificaraacuteabelardo i A rua inteira sabe que penhorei porque natildeo me
pagaram 200$000 A cidade inteira sabe Talvez gastasse mais nissohellip Que importa Dura Lex aprendi isso na Faculdade de Direito
22
abelardo ii Queria que o senhor visse a choradeira A viuacuteva berrava na janela mdash Gli orfani Gli orfani Non abiamo piu lavoro
abelardo i O quecircabelardo ii Ela queria dizer que os oacuterfatildeos natildeo tinham mais o
que comer Tiramos os instrumentos de trabalhoabelardo i Manhosahellipabelardo ii Soacute se pode prosperar agrave custa de muita desgraccedila
Mas de muita mesmohellipabelardo i Se natildeo for assim como garantirei os meus deposi-
tantes Se natildeo tiro do outro lado Ofereccedilo juros que os bancos natildeo pagam Os juros que soacute alguns pagavam nos bons tempos Quatro e ateacute cinco por cento ao ano
abelardo ii Tambeacutem o dinheiro corre para aquihellip Laacute embaixo a seccedilatildeo bancaacuteria estaacute assim
abelardo i Ofereccedilo boas garantias E tambeacutem exijo boas ga-rantias quando emprestohellip
abelardo ii A cinco e dez por cento ao mecircshellip Por filantropia (o telefone) Eacute seu irmatildeo
abelardo i Meu advogadoabelardo ii (no fone) Sim senhor Estaacute (para Abelardo) Diz
que entrou no Foacuterum com trecircs executivos Estaacute chamando o senhorhellip
abelardo i (ao fone) Como Sou euhellip Abelardo O Teodoro Quer se prevalecer da lei de usura Grande besta E pede reforma Linche esse camarada Ponha flite nele e acenda um foacutesforo (bate o fone) Pro pau com esse bandido Lei contra a usura Miseraacuteveis Bolchevistas Por isso eacute que o paiacutes se arruiacutena E haacute um miseraacutevel que quer se aproveitar dessa iniquidade
abelardo ii Leis sociaishellipabelardo i Suacutecia de desonestos Intervir nos juros Cercear
o sagrado direito de emprestar o meu dinheiro agrave taxa que eu
23
quiser E que todos aceitam Mais Que vecircm implorar aqui Sou eu que vou buscaacute-los para assinar papagaios Ou satildeo eles que todos os dias enchem a minha sala de espera Abra a jaula
Abelardo ii obedece de chicote em punho A porta de ferro corre pesadamente
Mais clientes
Os clientes aparecem atropeladamente nas grades Eacute uma coleccedilatildeo de crise variada expectante Homens e mulheres mantecircm-se quietos ante o enorme chicote de Abelardo ii
abelardo i Rua Nem mais um negoacutecio Vou fechar esta bagun-ccedila
as vozes (da jaula) Pelo amor de Deus Por caridade Eu natildeo posso pagar o aluguel Reforme Vou agrave falecircncia
abelardo i Rua Ningueacutem mais pode trabalhar num paiacutes des-tes Com leis monstruosas
as vozes Eu tenho que fechar a faacutebrica Natildeo poderei pagar os duzentos operaacuterios que ficaratildeo sem patildeo Tenha piedade Inclua os juros no capital Damos excelentes garantias
abelardo i (a Abelardo ii) Feche esta porta Natildeo atendo nin-gueacutem
Abelardo ii faz estalar o chicote de domador
as vozes Blefaremos o governo Me salve Me salveabelardo i Rua Canalhas Laacute fora sei como vocecircs me tratam
Abelardo ii faacute-los recuar das grades brandindo o chicote e amea-ccedilando com o revoacutelver
24
uma voz de mulher Ai Jesus Natildeo temos o que comer Eu natildeo saio daqui Espero ateacute agrave noite Estou arruinada
as vozes irritadas (Abelardo ii procura fechar a porta de fer-ro) Canalha Sujo Tirou o nosso sangue Ladratildeo Natildeo saiacutemos daqui
um italiano Pamarona Momanjo isto capitalistauma francesa Sale cochon Si crsquoest possible Conum russo branco Svolochum turco Joacutege paga bateacuteca Non izacuta Joacutegehellipas vozes (em coro) Assassinoabelardo i Feche Atire
Abelardo ii daacute um tiro para o ar Os clientes recuam gritando Ele corre a porta de ferro ruidosamente
as vozes (abafadas) Catildeo Rei da Vela Patildeo-durouma voz de mulher (gritando do outro lado da porta) Meu
marido bebeu estricninaoutra Minha matildee tomou lisoloutra Meu pai se jogou do viadutoabelardo i Lisol Estricnina Viaduto Eacute do que vocecircs precisam
canalhas
Menos o Cliente
Telefone
abelardo ii (atendendo) Alocirc Eacute o padre Aquele da entrevista Estaacute reverendo Vem jaacutehellip
abelardo i Mas vocecirc marcouabelardo ii Natildeo marquei nada
25
abelardo i (toma o fone) Bom dia reverendo Sou eu mesmo Abelardohellip Ah Com muitiacutessima honrahellip Esperarei vossa reve-rendiacutessima Pode ser agraves quatro horas Entatildeohellip sem duacutevidahellip Beijo-lhe as matildeos Sempre agraves suas ordens (depotildee o fone) Este padre eacute engraccediladohellip Natildeo me largahellip Eu natildeo sou eleitorhellip Ele natildeo quer dinheirohellip
abelardo ii Quer a sua almahellipabelardo i Evidentemente eacute um caso raro Um homem preo-
cupar-se comigo sem ser logo agrave vistahellip Quantoabelardo ii Ele prefere tratar desde jaacute do seu testamentoabelardo i Inuacutetil Eu morro ateu e casadoabelardo ii Eacute isso mesmo que ele quer A viuacuteva cuidaraacute bas-
tante de sua alma que teraacute idohellip para o purgatoacuteriohellipabelardo i Diga-me uma coisa seu Abelardo vocecirc eacute socialistaabelardo ii Sou o primeiro socialista que aparece no Teatro
Brasileiroabelardo i E o que eacute que vocecirc querabelardo ii Sucedecirc-lo nessa mesaabelardo i Pelo que vejo o socialismo nos paiacuteses atrasados co-
meccedila logo assimhellip Entrando num acordo com a propriedadehellipabelardo ii De fatohellip Estamos num paiacutes semicolonialhellipabelardo i Onde a gente pode ter ideias mas natildeo eacute de ferroabelardo ii Sim Sem quebrar a tradiccedilatildeoabelardo i Se for preciso o padre leva a sua alma tambeacutemhellip
Estaacute certohellip Vamos examinar aquelas propostas (senta-se e lecirc) Carmo Belatinehellip
abelardo ii Eacute aquele da faacutebrica de salsichashellip O frigoriacuteficohellip Que comprou o terreno da Lapa
abelardo i Idadeabelardo ii Trinta e nove anosabelardo i Niacutevel de vida
26
abelardo ii Niacutevel baixo ainda Faz a barba na terrina da sopa com sabatildeo de cozinha e gilete de segunda matildeohellip
abelardo i Jaacute fala o portuguecircsabelardo ii Ainda atrapalhaabelardo i Gasta menos do que tira dos trabalhadoresabelardo ii Muito menosabelardo i Tem filhos grandesabelardo ii Pequenos aindaabelardo i Em bons coleacutegiosabelardo ii Sim Oiseaux Sion Satildeo Bentoabelardo i Bem Tome nota Emprestamos enquanto os peque-
nos estudarem Quando as filhas comeccedilarem o serviccedilo militar nas garccedilonniegraveres e o pequeno tiver barata e Madame souber se vestir emprestaremos entatildeo de preferecircncia agrave costureira de Madame O velho aiacute teraacute mudado de niacutevel Possuiraacute automoacutevel casa no Jardim Ameacuterica Cessaremos pouco a pouco todo o creacute-dito Nem mais um papagaio Ele viraacute aqui caucionar os tiacutetulos dos comerciantes a quem fornece Executarei tudo um dia Le-varei a faacutebrica os capitais imobilizados e o ferro-velho agrave praccedila
abelardo ii E a mulher diraacute que foram os operaacuterios que os arruinaram
abelardo i E foram de fato Eu conto como fator essencial dessas coisas as exigecircncias atuais do operariado O salaacuterio miacutenimo As feacuterias Que diabo As tais leis sociais natildeo hatildeo de ser soacute contra o capitalhellip
abelardo ii Natildeo satildeo natildeo Descanse Eu entendo de socialismo Olhe A lei de feacuterias soacute deu um resultado Natildeo haacute mais salaacuterio de semana ou de mecircs Eacute por dia de trabalho ou por contrato Somando bem os domingos feriados e dias de doenccedila eram mais que as feacuterias de hoje
27
abelardo i Bem Guarde esta ficha nos Firmes Feche o negoacute-cio A mesma taxa O sistema da casa Chame a Secretaacuteria no 3 Quero ditar uma carta
Abelardo ii sai
Abelardo i e a Secretaacuteria no 3
a secretaacuteria (eacute uma moccedila longa de oacuteculos e tranccedilas enormes e loiras Veste-se pudicamente Traz laacutepis e blocknotes na matildeo) Eacute para bater agrave maacutequina seu Abelardo
abelardo i Natildeo Para estenografar Nem isso A senhora sabe redigir Melhor do que eu Faccedila uma carta Sente-se aiacute (sentam-se perto um do outro) D Aiacutedahellip Aiacuteda loirahellip Aiacuteda de Wagner Como eacute Natildeo precisa de um Radameacutes
a secretaacuteria Preciso que o senhor melhore o meu ordenado O custo da vida aumentou no Brasil de trinta por cento
abelardo i Tenho todo interesse pelo custo de sua vidahellip Mas a senhora sabehellip As vidas hoje estatildeo difiacuteceis para todoshellip Natildeo eacute mais como antigamentehellip Que tranccedilashellip Eu acabo me enfor-cando nessas tranccedilashellip Deixa (procura tocar-lhe os cabelos)
a secretaacuteria Tenha modos seu Abelardoabelardo i Deixa Malvadaa secretaacuteria Nunca Eu sou romacircntica Natildeo vendo o meu
amorabelardo i Vamos fazer um piqueniquehellip (aponta o divatilde sob a
Gioconda) Debaixo daquela mangueiraa secretaacuteria Eu sou noivaabelardo i Eu tambeacutema secretaacuteria Mas eu sou fielhellipabelardo i Bem Depois natildeo venha fazer vales aqui hein Eu
tambeacutem sei ser fiel ao sistema da casa Vaacute laacute Redija Natildeo
28
Tome nota Olhe Eacute uma carta confidencial A um tal Cristiano de Bensauacutede Industrial no Rio Metido a escritor Redija sem erros de portuguecircs O homem foi criacutetico literaacuterio e avanccedilado quando era prontohellip Ele me escreveu propondo frente uacutenica contra os operaacuterios Responda em tese (a secretaacuteria toma nota) insinue que eacute melhor ele ser um puro policial Manter vigilacircncia rigorosa nas faacutebricas Evitar a propaganda comunis-ta Denunciar e perseguir os agitadores Prender Esse negoacutecio de escrever livros de sociologia com anjos eacute contraproducente Ningueacutem mais crecirc Fica ridiacuteculo para noacutes industriais avanccedila-dos Diante dos americanos e dos ingleses Olhe diga isto Que a burguesia morre sem Deus Recusa a extrema-unccedilatildeo Cite o exemplo do proacuteprio Vaticano Coisas concretas A adesatildeo poliacute-tica da igreja contra um bilhatildeo e setecentos milhotildees de liras o ensino religioso e a lei contra o divoacutercio Toma laacute daacute caacute Natildeo vecirc que um alpinista como Pio xi potildee anjos em negoacutecios Vaacute redigir e traga logo Para seguir hojehellip Ver se esse homem deixa de atrapalhar Um sujeito feudal Viacutetima do seu proacuteprio sistema Paga um salaacuterio medieval 20$000 por quinzena
a secretaacuteria (voltando-se da porta) Ga-ra-nhatildeo (sai esbar-rando em Heloiacutesa de Lesbos que vestida de homem entra como a manhatilde laacute de fora)
Menos a Secretaacuteria mais Heloiacutesa
abelardo i (rindo) Vocecirc Meu amor Na hora do expedienteheloiacutesa O nosso casamento eacute um negoacuteciohellipabelardo i Por isso vieste de Marleneheloiacutesa Mas natildeo haacute de ser um negoacutecio como esses que vocecirc
faz com esse bando de desesperados que saiu daiacute vociferandohellip Estatildeo ainda muitos laacute embaixo Haacute mulheres idosas moccedilas turcos italianos russos de prestaccedilatildeo uma fauna de hospiacuteciohellip
29
abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute
Mais Abelardo ii
abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo
abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer
fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso
abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo
Mais o Intelectual Pinote
pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre
heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-
-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui
pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-
fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute
uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-
guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i
senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as
20
restos de brasatildeo ainda eacute negoacutecio faz vista num paiacutes medieval como o nosso O senhor sabe que Satildeo Paulo soacute tem dez famiacutelias
abelardo ii E o resto da populaccedilatildeoabelardo i O resto eacute prole O que eu estou fazendo o que o se-
nhor quer fazer eacute deixar de ser prole para ser famiacutelia comprar os velhos brasotildees isso ateacute parece teatro do seacuteculo xix Mas no Brasil ainda eacute novo
abelardo ii Se eacute A burguesia soacute produziu um teatro de classe A apresentaccedilatildeo da classe Hoje evoluiacutemos Chegamos agrave espi-nafraccedilatildeo
abelardo i Bem Veja o bordereauhellip O Banco devolveu muita coisa
abelardo ii Xu Um colosso Estamos no vinagre seu Abelardoabelardo i Vamoshellipabelardo ii (lendo) Cinco contos setecentos e setenta Dr Car-
los Magalhatildees de Moraes Benevides Fonseca Chapa uacutenicahellip Reforma-se Natildeo paga juros haacute dois meses
abelardo i Reforma-seabelardo ii Antunes amp Lapahellip trecircs contoshellip jaacute protestei Man-
gionihellip Luiz O bicheirohellip Dr Joatildeo Carlos de Menezes Rochahellip dois contoshellip
abelardo i Pro protestoabelardo ii Baratildeo de Gama Lima quinhentos mil-reacuteishellipabelardo i Pro protestoabelardo ii Moura Melohellip setecentos mil-reacuteisabelardo i Pro protestoabelardo ii Abraatildeo Calimeacuteriohellip dez contosabelardo i Pro protestoabelardo ii Carlos Pereshellip Esta jaacute foi pro pau ontemhellipabelardo i Ele natildeo pediu reformaabelardo ii Natildeoabelardo i E por quecirc
21
abelardo ii Tomou dois copos de limonada com iodo Estaacute aqui no jornal (procura) Diz que estaacute em estado de coma na Santa Casahellip
abelardo i Mande o Benvindo fazer a penhora Depressa Antes que ele morra e a venda fechehellip
abelardo ii Estaacute certo Esta eacutehellip daquele funcionaacuterio puacuteblico o Pires Limpohellip Ele estaacute limpo e de pires Mandou a filha aqui
abelardo i Bonitaabelardo ii Pancadatildeo Dezoito anoshellip Cada dente deste tama-
nhoabelardo i Mandou a filha O mecircs passado veio a mulherabelardo ii Eu vi Jeitosahellip Mas muito faladeira Queria saber
onde eacute que o senhor morava falou na compra da ilha no Rio onde o senhor vai se casar Que ia levar de aviatildeo uma porccedilatildeo de gente de Satildeo Paulo
abelardo i (batendo o peacute numa grande caixa de papelatildeo) Que eacute isto aqui
abelardo ii Focircrmas de chapeacuteu (mostra o casticcedilal de latatildeo) A penhora de Mme Lanale Soacute tinha isso e aquele candelabro Quase que natildeo daacute para pagar os tiras que ajudaram
abelardo i E os moacuteveishellipabelardo ii Ficaram despedaccedilados na rua Eram duas peccedilas
velhas de ferro Foi um escacircndalo O estado-maior teve que agir duro O povo queria se opor Juntou gentehellip
abelardo i Que estado-maiorabelardo ii Os oficiais de justiccedilahellipabelardo i Mas o exemplo ficouabelardo ii E frutificaraacuteabelardo i A rua inteira sabe que penhorei porque natildeo me
pagaram 200$000 A cidade inteira sabe Talvez gastasse mais nissohellip Que importa Dura Lex aprendi isso na Faculdade de Direito
22
abelardo ii Queria que o senhor visse a choradeira A viuacuteva berrava na janela mdash Gli orfani Gli orfani Non abiamo piu lavoro
abelardo i O quecircabelardo ii Ela queria dizer que os oacuterfatildeos natildeo tinham mais o
que comer Tiramos os instrumentos de trabalhoabelardo i Manhosahellipabelardo ii Soacute se pode prosperar agrave custa de muita desgraccedila
Mas de muita mesmohellipabelardo i Se natildeo for assim como garantirei os meus deposi-
tantes Se natildeo tiro do outro lado Ofereccedilo juros que os bancos natildeo pagam Os juros que soacute alguns pagavam nos bons tempos Quatro e ateacute cinco por cento ao ano
abelardo ii Tambeacutem o dinheiro corre para aquihellip Laacute embaixo a seccedilatildeo bancaacuteria estaacute assim
abelardo i Ofereccedilo boas garantias E tambeacutem exijo boas ga-rantias quando emprestohellip
abelardo ii A cinco e dez por cento ao mecircshellip Por filantropia (o telefone) Eacute seu irmatildeo
abelardo i Meu advogadoabelardo ii (no fone) Sim senhor Estaacute (para Abelardo) Diz
que entrou no Foacuterum com trecircs executivos Estaacute chamando o senhorhellip
abelardo i (ao fone) Como Sou euhellip Abelardo O Teodoro Quer se prevalecer da lei de usura Grande besta E pede reforma Linche esse camarada Ponha flite nele e acenda um foacutesforo (bate o fone) Pro pau com esse bandido Lei contra a usura Miseraacuteveis Bolchevistas Por isso eacute que o paiacutes se arruiacutena E haacute um miseraacutevel que quer se aproveitar dessa iniquidade
abelardo ii Leis sociaishellipabelardo i Suacutecia de desonestos Intervir nos juros Cercear
o sagrado direito de emprestar o meu dinheiro agrave taxa que eu
23
quiser E que todos aceitam Mais Que vecircm implorar aqui Sou eu que vou buscaacute-los para assinar papagaios Ou satildeo eles que todos os dias enchem a minha sala de espera Abra a jaula
Abelardo ii obedece de chicote em punho A porta de ferro corre pesadamente
Mais clientes
Os clientes aparecem atropeladamente nas grades Eacute uma coleccedilatildeo de crise variada expectante Homens e mulheres mantecircm-se quietos ante o enorme chicote de Abelardo ii
abelardo i Rua Nem mais um negoacutecio Vou fechar esta bagun-ccedila
as vozes (da jaula) Pelo amor de Deus Por caridade Eu natildeo posso pagar o aluguel Reforme Vou agrave falecircncia
abelardo i Rua Ningueacutem mais pode trabalhar num paiacutes des-tes Com leis monstruosas
as vozes Eu tenho que fechar a faacutebrica Natildeo poderei pagar os duzentos operaacuterios que ficaratildeo sem patildeo Tenha piedade Inclua os juros no capital Damos excelentes garantias
abelardo i (a Abelardo ii) Feche esta porta Natildeo atendo nin-gueacutem
Abelardo ii faz estalar o chicote de domador
as vozes Blefaremos o governo Me salve Me salveabelardo i Rua Canalhas Laacute fora sei como vocecircs me tratam
Abelardo ii faacute-los recuar das grades brandindo o chicote e amea-ccedilando com o revoacutelver
24
uma voz de mulher Ai Jesus Natildeo temos o que comer Eu natildeo saio daqui Espero ateacute agrave noite Estou arruinada
as vozes irritadas (Abelardo ii procura fechar a porta de fer-ro) Canalha Sujo Tirou o nosso sangue Ladratildeo Natildeo saiacutemos daqui
um italiano Pamarona Momanjo isto capitalistauma francesa Sale cochon Si crsquoest possible Conum russo branco Svolochum turco Joacutege paga bateacuteca Non izacuta Joacutegehellipas vozes (em coro) Assassinoabelardo i Feche Atire
Abelardo ii daacute um tiro para o ar Os clientes recuam gritando Ele corre a porta de ferro ruidosamente
as vozes (abafadas) Catildeo Rei da Vela Patildeo-durouma voz de mulher (gritando do outro lado da porta) Meu
marido bebeu estricninaoutra Minha matildee tomou lisoloutra Meu pai se jogou do viadutoabelardo i Lisol Estricnina Viaduto Eacute do que vocecircs precisam
canalhas
Menos o Cliente
Telefone
abelardo ii (atendendo) Alocirc Eacute o padre Aquele da entrevista Estaacute reverendo Vem jaacutehellip
abelardo i Mas vocecirc marcouabelardo ii Natildeo marquei nada
25
abelardo i (toma o fone) Bom dia reverendo Sou eu mesmo Abelardohellip Ah Com muitiacutessima honrahellip Esperarei vossa reve-rendiacutessima Pode ser agraves quatro horas Entatildeohellip sem duacutevidahellip Beijo-lhe as matildeos Sempre agraves suas ordens (depotildee o fone) Este padre eacute engraccediladohellip Natildeo me largahellip Eu natildeo sou eleitorhellip Ele natildeo quer dinheirohellip
abelardo ii Quer a sua almahellipabelardo i Evidentemente eacute um caso raro Um homem preo-
cupar-se comigo sem ser logo agrave vistahellip Quantoabelardo ii Ele prefere tratar desde jaacute do seu testamentoabelardo i Inuacutetil Eu morro ateu e casadoabelardo ii Eacute isso mesmo que ele quer A viuacuteva cuidaraacute bas-
tante de sua alma que teraacute idohellip para o purgatoacuteriohellipabelardo i Diga-me uma coisa seu Abelardo vocecirc eacute socialistaabelardo ii Sou o primeiro socialista que aparece no Teatro
Brasileiroabelardo i E o que eacute que vocecirc querabelardo ii Sucedecirc-lo nessa mesaabelardo i Pelo que vejo o socialismo nos paiacuteses atrasados co-
meccedila logo assimhellip Entrando num acordo com a propriedadehellipabelardo ii De fatohellip Estamos num paiacutes semicolonialhellipabelardo i Onde a gente pode ter ideias mas natildeo eacute de ferroabelardo ii Sim Sem quebrar a tradiccedilatildeoabelardo i Se for preciso o padre leva a sua alma tambeacutemhellip
Estaacute certohellip Vamos examinar aquelas propostas (senta-se e lecirc) Carmo Belatinehellip
abelardo ii Eacute aquele da faacutebrica de salsichashellip O frigoriacuteficohellip Que comprou o terreno da Lapa
abelardo i Idadeabelardo ii Trinta e nove anosabelardo i Niacutevel de vida
26
abelardo ii Niacutevel baixo ainda Faz a barba na terrina da sopa com sabatildeo de cozinha e gilete de segunda matildeohellip
abelardo i Jaacute fala o portuguecircsabelardo ii Ainda atrapalhaabelardo i Gasta menos do que tira dos trabalhadoresabelardo ii Muito menosabelardo i Tem filhos grandesabelardo ii Pequenos aindaabelardo i Em bons coleacutegiosabelardo ii Sim Oiseaux Sion Satildeo Bentoabelardo i Bem Tome nota Emprestamos enquanto os peque-
nos estudarem Quando as filhas comeccedilarem o serviccedilo militar nas garccedilonniegraveres e o pequeno tiver barata e Madame souber se vestir emprestaremos entatildeo de preferecircncia agrave costureira de Madame O velho aiacute teraacute mudado de niacutevel Possuiraacute automoacutevel casa no Jardim Ameacuterica Cessaremos pouco a pouco todo o creacute-dito Nem mais um papagaio Ele viraacute aqui caucionar os tiacutetulos dos comerciantes a quem fornece Executarei tudo um dia Le-varei a faacutebrica os capitais imobilizados e o ferro-velho agrave praccedila
abelardo ii E a mulher diraacute que foram os operaacuterios que os arruinaram
abelardo i E foram de fato Eu conto como fator essencial dessas coisas as exigecircncias atuais do operariado O salaacuterio miacutenimo As feacuterias Que diabo As tais leis sociais natildeo hatildeo de ser soacute contra o capitalhellip
abelardo ii Natildeo satildeo natildeo Descanse Eu entendo de socialismo Olhe A lei de feacuterias soacute deu um resultado Natildeo haacute mais salaacuterio de semana ou de mecircs Eacute por dia de trabalho ou por contrato Somando bem os domingos feriados e dias de doenccedila eram mais que as feacuterias de hoje
27
abelardo i Bem Guarde esta ficha nos Firmes Feche o negoacute-cio A mesma taxa O sistema da casa Chame a Secretaacuteria no 3 Quero ditar uma carta
Abelardo ii sai
Abelardo i e a Secretaacuteria no 3
a secretaacuteria (eacute uma moccedila longa de oacuteculos e tranccedilas enormes e loiras Veste-se pudicamente Traz laacutepis e blocknotes na matildeo) Eacute para bater agrave maacutequina seu Abelardo
abelardo i Natildeo Para estenografar Nem isso A senhora sabe redigir Melhor do que eu Faccedila uma carta Sente-se aiacute (sentam-se perto um do outro) D Aiacutedahellip Aiacuteda loirahellip Aiacuteda de Wagner Como eacute Natildeo precisa de um Radameacutes
a secretaacuteria Preciso que o senhor melhore o meu ordenado O custo da vida aumentou no Brasil de trinta por cento
abelardo i Tenho todo interesse pelo custo de sua vidahellip Mas a senhora sabehellip As vidas hoje estatildeo difiacuteceis para todoshellip Natildeo eacute mais como antigamentehellip Que tranccedilashellip Eu acabo me enfor-cando nessas tranccedilashellip Deixa (procura tocar-lhe os cabelos)
a secretaacuteria Tenha modos seu Abelardoabelardo i Deixa Malvadaa secretaacuteria Nunca Eu sou romacircntica Natildeo vendo o meu
amorabelardo i Vamos fazer um piqueniquehellip (aponta o divatilde sob a
Gioconda) Debaixo daquela mangueiraa secretaacuteria Eu sou noivaabelardo i Eu tambeacutema secretaacuteria Mas eu sou fielhellipabelardo i Bem Depois natildeo venha fazer vales aqui hein Eu
tambeacutem sei ser fiel ao sistema da casa Vaacute laacute Redija Natildeo
28
Tome nota Olhe Eacute uma carta confidencial A um tal Cristiano de Bensauacutede Industrial no Rio Metido a escritor Redija sem erros de portuguecircs O homem foi criacutetico literaacuterio e avanccedilado quando era prontohellip Ele me escreveu propondo frente uacutenica contra os operaacuterios Responda em tese (a secretaacuteria toma nota) insinue que eacute melhor ele ser um puro policial Manter vigilacircncia rigorosa nas faacutebricas Evitar a propaganda comunis-ta Denunciar e perseguir os agitadores Prender Esse negoacutecio de escrever livros de sociologia com anjos eacute contraproducente Ningueacutem mais crecirc Fica ridiacuteculo para noacutes industriais avanccedila-dos Diante dos americanos e dos ingleses Olhe diga isto Que a burguesia morre sem Deus Recusa a extrema-unccedilatildeo Cite o exemplo do proacuteprio Vaticano Coisas concretas A adesatildeo poliacute-tica da igreja contra um bilhatildeo e setecentos milhotildees de liras o ensino religioso e a lei contra o divoacutercio Toma laacute daacute caacute Natildeo vecirc que um alpinista como Pio xi potildee anjos em negoacutecios Vaacute redigir e traga logo Para seguir hojehellip Ver se esse homem deixa de atrapalhar Um sujeito feudal Viacutetima do seu proacuteprio sistema Paga um salaacuterio medieval 20$000 por quinzena
a secretaacuteria (voltando-se da porta) Ga-ra-nhatildeo (sai esbar-rando em Heloiacutesa de Lesbos que vestida de homem entra como a manhatilde laacute de fora)
Menos a Secretaacuteria mais Heloiacutesa
abelardo i (rindo) Vocecirc Meu amor Na hora do expedienteheloiacutesa O nosso casamento eacute um negoacuteciohellipabelardo i Por isso vieste de Marleneheloiacutesa Mas natildeo haacute de ser um negoacutecio como esses que vocecirc
faz com esse bando de desesperados que saiu daiacute vociferandohellip Estatildeo ainda muitos laacute embaixo Haacute mulheres idosas moccedilas turcos italianos russos de prestaccedilatildeo uma fauna de hospiacuteciohellip
29
abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute
Mais Abelardo ii
abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo
abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer
fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso
abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo
Mais o Intelectual Pinote
pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre
heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-
-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui
pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-
fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute
uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-
guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i
senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as
21
abelardo ii Tomou dois copos de limonada com iodo Estaacute aqui no jornal (procura) Diz que estaacute em estado de coma na Santa Casahellip
abelardo i Mande o Benvindo fazer a penhora Depressa Antes que ele morra e a venda fechehellip
abelardo ii Estaacute certo Esta eacutehellip daquele funcionaacuterio puacuteblico o Pires Limpohellip Ele estaacute limpo e de pires Mandou a filha aqui
abelardo i Bonitaabelardo ii Pancadatildeo Dezoito anoshellip Cada dente deste tama-
nhoabelardo i Mandou a filha O mecircs passado veio a mulherabelardo ii Eu vi Jeitosahellip Mas muito faladeira Queria saber
onde eacute que o senhor morava falou na compra da ilha no Rio onde o senhor vai se casar Que ia levar de aviatildeo uma porccedilatildeo de gente de Satildeo Paulo
abelardo i (batendo o peacute numa grande caixa de papelatildeo) Que eacute isto aqui
abelardo ii Focircrmas de chapeacuteu (mostra o casticcedilal de latatildeo) A penhora de Mme Lanale Soacute tinha isso e aquele candelabro Quase que natildeo daacute para pagar os tiras que ajudaram
abelardo i E os moacuteveishellipabelardo ii Ficaram despedaccedilados na rua Eram duas peccedilas
velhas de ferro Foi um escacircndalo O estado-maior teve que agir duro O povo queria se opor Juntou gentehellip
abelardo i Que estado-maiorabelardo ii Os oficiais de justiccedilahellipabelardo i Mas o exemplo ficouabelardo ii E frutificaraacuteabelardo i A rua inteira sabe que penhorei porque natildeo me
pagaram 200$000 A cidade inteira sabe Talvez gastasse mais nissohellip Que importa Dura Lex aprendi isso na Faculdade de Direito
22
abelardo ii Queria que o senhor visse a choradeira A viuacuteva berrava na janela mdash Gli orfani Gli orfani Non abiamo piu lavoro
abelardo i O quecircabelardo ii Ela queria dizer que os oacuterfatildeos natildeo tinham mais o
que comer Tiramos os instrumentos de trabalhoabelardo i Manhosahellipabelardo ii Soacute se pode prosperar agrave custa de muita desgraccedila
Mas de muita mesmohellipabelardo i Se natildeo for assim como garantirei os meus deposi-
tantes Se natildeo tiro do outro lado Ofereccedilo juros que os bancos natildeo pagam Os juros que soacute alguns pagavam nos bons tempos Quatro e ateacute cinco por cento ao ano
abelardo ii Tambeacutem o dinheiro corre para aquihellip Laacute embaixo a seccedilatildeo bancaacuteria estaacute assim
abelardo i Ofereccedilo boas garantias E tambeacutem exijo boas ga-rantias quando emprestohellip
abelardo ii A cinco e dez por cento ao mecircshellip Por filantropia (o telefone) Eacute seu irmatildeo
abelardo i Meu advogadoabelardo ii (no fone) Sim senhor Estaacute (para Abelardo) Diz
que entrou no Foacuterum com trecircs executivos Estaacute chamando o senhorhellip
abelardo i (ao fone) Como Sou euhellip Abelardo O Teodoro Quer se prevalecer da lei de usura Grande besta E pede reforma Linche esse camarada Ponha flite nele e acenda um foacutesforo (bate o fone) Pro pau com esse bandido Lei contra a usura Miseraacuteveis Bolchevistas Por isso eacute que o paiacutes se arruiacutena E haacute um miseraacutevel que quer se aproveitar dessa iniquidade
abelardo ii Leis sociaishellipabelardo i Suacutecia de desonestos Intervir nos juros Cercear
o sagrado direito de emprestar o meu dinheiro agrave taxa que eu
23
quiser E que todos aceitam Mais Que vecircm implorar aqui Sou eu que vou buscaacute-los para assinar papagaios Ou satildeo eles que todos os dias enchem a minha sala de espera Abra a jaula
Abelardo ii obedece de chicote em punho A porta de ferro corre pesadamente
Mais clientes
Os clientes aparecem atropeladamente nas grades Eacute uma coleccedilatildeo de crise variada expectante Homens e mulheres mantecircm-se quietos ante o enorme chicote de Abelardo ii
abelardo i Rua Nem mais um negoacutecio Vou fechar esta bagun-ccedila
as vozes (da jaula) Pelo amor de Deus Por caridade Eu natildeo posso pagar o aluguel Reforme Vou agrave falecircncia
abelardo i Rua Ningueacutem mais pode trabalhar num paiacutes des-tes Com leis monstruosas
as vozes Eu tenho que fechar a faacutebrica Natildeo poderei pagar os duzentos operaacuterios que ficaratildeo sem patildeo Tenha piedade Inclua os juros no capital Damos excelentes garantias
abelardo i (a Abelardo ii) Feche esta porta Natildeo atendo nin-gueacutem
Abelardo ii faz estalar o chicote de domador
as vozes Blefaremos o governo Me salve Me salveabelardo i Rua Canalhas Laacute fora sei como vocecircs me tratam
Abelardo ii faacute-los recuar das grades brandindo o chicote e amea-ccedilando com o revoacutelver
24
uma voz de mulher Ai Jesus Natildeo temos o que comer Eu natildeo saio daqui Espero ateacute agrave noite Estou arruinada
as vozes irritadas (Abelardo ii procura fechar a porta de fer-ro) Canalha Sujo Tirou o nosso sangue Ladratildeo Natildeo saiacutemos daqui
um italiano Pamarona Momanjo isto capitalistauma francesa Sale cochon Si crsquoest possible Conum russo branco Svolochum turco Joacutege paga bateacuteca Non izacuta Joacutegehellipas vozes (em coro) Assassinoabelardo i Feche Atire
Abelardo ii daacute um tiro para o ar Os clientes recuam gritando Ele corre a porta de ferro ruidosamente
as vozes (abafadas) Catildeo Rei da Vela Patildeo-durouma voz de mulher (gritando do outro lado da porta) Meu
marido bebeu estricninaoutra Minha matildee tomou lisoloutra Meu pai se jogou do viadutoabelardo i Lisol Estricnina Viaduto Eacute do que vocecircs precisam
canalhas
Menos o Cliente
Telefone
abelardo ii (atendendo) Alocirc Eacute o padre Aquele da entrevista Estaacute reverendo Vem jaacutehellip
abelardo i Mas vocecirc marcouabelardo ii Natildeo marquei nada
25
abelardo i (toma o fone) Bom dia reverendo Sou eu mesmo Abelardohellip Ah Com muitiacutessima honrahellip Esperarei vossa reve-rendiacutessima Pode ser agraves quatro horas Entatildeohellip sem duacutevidahellip Beijo-lhe as matildeos Sempre agraves suas ordens (depotildee o fone) Este padre eacute engraccediladohellip Natildeo me largahellip Eu natildeo sou eleitorhellip Ele natildeo quer dinheirohellip
abelardo ii Quer a sua almahellipabelardo i Evidentemente eacute um caso raro Um homem preo-
cupar-se comigo sem ser logo agrave vistahellip Quantoabelardo ii Ele prefere tratar desde jaacute do seu testamentoabelardo i Inuacutetil Eu morro ateu e casadoabelardo ii Eacute isso mesmo que ele quer A viuacuteva cuidaraacute bas-
tante de sua alma que teraacute idohellip para o purgatoacuteriohellipabelardo i Diga-me uma coisa seu Abelardo vocecirc eacute socialistaabelardo ii Sou o primeiro socialista que aparece no Teatro
Brasileiroabelardo i E o que eacute que vocecirc querabelardo ii Sucedecirc-lo nessa mesaabelardo i Pelo que vejo o socialismo nos paiacuteses atrasados co-
meccedila logo assimhellip Entrando num acordo com a propriedadehellipabelardo ii De fatohellip Estamos num paiacutes semicolonialhellipabelardo i Onde a gente pode ter ideias mas natildeo eacute de ferroabelardo ii Sim Sem quebrar a tradiccedilatildeoabelardo i Se for preciso o padre leva a sua alma tambeacutemhellip
Estaacute certohellip Vamos examinar aquelas propostas (senta-se e lecirc) Carmo Belatinehellip
abelardo ii Eacute aquele da faacutebrica de salsichashellip O frigoriacuteficohellip Que comprou o terreno da Lapa
abelardo i Idadeabelardo ii Trinta e nove anosabelardo i Niacutevel de vida
26
abelardo ii Niacutevel baixo ainda Faz a barba na terrina da sopa com sabatildeo de cozinha e gilete de segunda matildeohellip
abelardo i Jaacute fala o portuguecircsabelardo ii Ainda atrapalhaabelardo i Gasta menos do que tira dos trabalhadoresabelardo ii Muito menosabelardo i Tem filhos grandesabelardo ii Pequenos aindaabelardo i Em bons coleacutegiosabelardo ii Sim Oiseaux Sion Satildeo Bentoabelardo i Bem Tome nota Emprestamos enquanto os peque-
nos estudarem Quando as filhas comeccedilarem o serviccedilo militar nas garccedilonniegraveres e o pequeno tiver barata e Madame souber se vestir emprestaremos entatildeo de preferecircncia agrave costureira de Madame O velho aiacute teraacute mudado de niacutevel Possuiraacute automoacutevel casa no Jardim Ameacuterica Cessaremos pouco a pouco todo o creacute-dito Nem mais um papagaio Ele viraacute aqui caucionar os tiacutetulos dos comerciantes a quem fornece Executarei tudo um dia Le-varei a faacutebrica os capitais imobilizados e o ferro-velho agrave praccedila
abelardo ii E a mulher diraacute que foram os operaacuterios que os arruinaram
abelardo i E foram de fato Eu conto como fator essencial dessas coisas as exigecircncias atuais do operariado O salaacuterio miacutenimo As feacuterias Que diabo As tais leis sociais natildeo hatildeo de ser soacute contra o capitalhellip
abelardo ii Natildeo satildeo natildeo Descanse Eu entendo de socialismo Olhe A lei de feacuterias soacute deu um resultado Natildeo haacute mais salaacuterio de semana ou de mecircs Eacute por dia de trabalho ou por contrato Somando bem os domingos feriados e dias de doenccedila eram mais que as feacuterias de hoje
27
abelardo i Bem Guarde esta ficha nos Firmes Feche o negoacute-cio A mesma taxa O sistema da casa Chame a Secretaacuteria no 3 Quero ditar uma carta
Abelardo ii sai
Abelardo i e a Secretaacuteria no 3
a secretaacuteria (eacute uma moccedila longa de oacuteculos e tranccedilas enormes e loiras Veste-se pudicamente Traz laacutepis e blocknotes na matildeo) Eacute para bater agrave maacutequina seu Abelardo
abelardo i Natildeo Para estenografar Nem isso A senhora sabe redigir Melhor do que eu Faccedila uma carta Sente-se aiacute (sentam-se perto um do outro) D Aiacutedahellip Aiacuteda loirahellip Aiacuteda de Wagner Como eacute Natildeo precisa de um Radameacutes
a secretaacuteria Preciso que o senhor melhore o meu ordenado O custo da vida aumentou no Brasil de trinta por cento
abelardo i Tenho todo interesse pelo custo de sua vidahellip Mas a senhora sabehellip As vidas hoje estatildeo difiacuteceis para todoshellip Natildeo eacute mais como antigamentehellip Que tranccedilashellip Eu acabo me enfor-cando nessas tranccedilashellip Deixa (procura tocar-lhe os cabelos)
a secretaacuteria Tenha modos seu Abelardoabelardo i Deixa Malvadaa secretaacuteria Nunca Eu sou romacircntica Natildeo vendo o meu
amorabelardo i Vamos fazer um piqueniquehellip (aponta o divatilde sob a
Gioconda) Debaixo daquela mangueiraa secretaacuteria Eu sou noivaabelardo i Eu tambeacutema secretaacuteria Mas eu sou fielhellipabelardo i Bem Depois natildeo venha fazer vales aqui hein Eu
tambeacutem sei ser fiel ao sistema da casa Vaacute laacute Redija Natildeo
28
Tome nota Olhe Eacute uma carta confidencial A um tal Cristiano de Bensauacutede Industrial no Rio Metido a escritor Redija sem erros de portuguecircs O homem foi criacutetico literaacuterio e avanccedilado quando era prontohellip Ele me escreveu propondo frente uacutenica contra os operaacuterios Responda em tese (a secretaacuteria toma nota) insinue que eacute melhor ele ser um puro policial Manter vigilacircncia rigorosa nas faacutebricas Evitar a propaganda comunis-ta Denunciar e perseguir os agitadores Prender Esse negoacutecio de escrever livros de sociologia com anjos eacute contraproducente Ningueacutem mais crecirc Fica ridiacuteculo para noacutes industriais avanccedila-dos Diante dos americanos e dos ingleses Olhe diga isto Que a burguesia morre sem Deus Recusa a extrema-unccedilatildeo Cite o exemplo do proacuteprio Vaticano Coisas concretas A adesatildeo poliacute-tica da igreja contra um bilhatildeo e setecentos milhotildees de liras o ensino religioso e a lei contra o divoacutercio Toma laacute daacute caacute Natildeo vecirc que um alpinista como Pio xi potildee anjos em negoacutecios Vaacute redigir e traga logo Para seguir hojehellip Ver se esse homem deixa de atrapalhar Um sujeito feudal Viacutetima do seu proacuteprio sistema Paga um salaacuterio medieval 20$000 por quinzena
a secretaacuteria (voltando-se da porta) Ga-ra-nhatildeo (sai esbar-rando em Heloiacutesa de Lesbos que vestida de homem entra como a manhatilde laacute de fora)
Menos a Secretaacuteria mais Heloiacutesa
abelardo i (rindo) Vocecirc Meu amor Na hora do expedienteheloiacutesa O nosso casamento eacute um negoacuteciohellipabelardo i Por isso vieste de Marleneheloiacutesa Mas natildeo haacute de ser um negoacutecio como esses que vocecirc
faz com esse bando de desesperados que saiu daiacute vociferandohellip Estatildeo ainda muitos laacute embaixo Haacute mulheres idosas moccedilas turcos italianos russos de prestaccedilatildeo uma fauna de hospiacuteciohellip
29
abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute
Mais Abelardo ii
abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo
abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer
fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso
abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo
Mais o Intelectual Pinote
pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre
heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-
-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui
pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-
fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute
uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-
guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i
senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as
22
abelardo ii Queria que o senhor visse a choradeira A viuacuteva berrava na janela mdash Gli orfani Gli orfani Non abiamo piu lavoro
abelardo i O quecircabelardo ii Ela queria dizer que os oacuterfatildeos natildeo tinham mais o
que comer Tiramos os instrumentos de trabalhoabelardo i Manhosahellipabelardo ii Soacute se pode prosperar agrave custa de muita desgraccedila
Mas de muita mesmohellipabelardo i Se natildeo for assim como garantirei os meus deposi-
tantes Se natildeo tiro do outro lado Ofereccedilo juros que os bancos natildeo pagam Os juros que soacute alguns pagavam nos bons tempos Quatro e ateacute cinco por cento ao ano
abelardo ii Tambeacutem o dinheiro corre para aquihellip Laacute embaixo a seccedilatildeo bancaacuteria estaacute assim
abelardo i Ofereccedilo boas garantias E tambeacutem exijo boas ga-rantias quando emprestohellip
abelardo ii A cinco e dez por cento ao mecircshellip Por filantropia (o telefone) Eacute seu irmatildeo
abelardo i Meu advogadoabelardo ii (no fone) Sim senhor Estaacute (para Abelardo) Diz
que entrou no Foacuterum com trecircs executivos Estaacute chamando o senhorhellip
abelardo i (ao fone) Como Sou euhellip Abelardo O Teodoro Quer se prevalecer da lei de usura Grande besta E pede reforma Linche esse camarada Ponha flite nele e acenda um foacutesforo (bate o fone) Pro pau com esse bandido Lei contra a usura Miseraacuteveis Bolchevistas Por isso eacute que o paiacutes se arruiacutena E haacute um miseraacutevel que quer se aproveitar dessa iniquidade
abelardo ii Leis sociaishellipabelardo i Suacutecia de desonestos Intervir nos juros Cercear
o sagrado direito de emprestar o meu dinheiro agrave taxa que eu
23
quiser E que todos aceitam Mais Que vecircm implorar aqui Sou eu que vou buscaacute-los para assinar papagaios Ou satildeo eles que todos os dias enchem a minha sala de espera Abra a jaula
Abelardo ii obedece de chicote em punho A porta de ferro corre pesadamente
Mais clientes
Os clientes aparecem atropeladamente nas grades Eacute uma coleccedilatildeo de crise variada expectante Homens e mulheres mantecircm-se quietos ante o enorme chicote de Abelardo ii
abelardo i Rua Nem mais um negoacutecio Vou fechar esta bagun-ccedila
as vozes (da jaula) Pelo amor de Deus Por caridade Eu natildeo posso pagar o aluguel Reforme Vou agrave falecircncia
abelardo i Rua Ningueacutem mais pode trabalhar num paiacutes des-tes Com leis monstruosas
as vozes Eu tenho que fechar a faacutebrica Natildeo poderei pagar os duzentos operaacuterios que ficaratildeo sem patildeo Tenha piedade Inclua os juros no capital Damos excelentes garantias
abelardo i (a Abelardo ii) Feche esta porta Natildeo atendo nin-gueacutem
Abelardo ii faz estalar o chicote de domador
as vozes Blefaremos o governo Me salve Me salveabelardo i Rua Canalhas Laacute fora sei como vocecircs me tratam
Abelardo ii faacute-los recuar das grades brandindo o chicote e amea-ccedilando com o revoacutelver
24
uma voz de mulher Ai Jesus Natildeo temos o que comer Eu natildeo saio daqui Espero ateacute agrave noite Estou arruinada
as vozes irritadas (Abelardo ii procura fechar a porta de fer-ro) Canalha Sujo Tirou o nosso sangue Ladratildeo Natildeo saiacutemos daqui
um italiano Pamarona Momanjo isto capitalistauma francesa Sale cochon Si crsquoest possible Conum russo branco Svolochum turco Joacutege paga bateacuteca Non izacuta Joacutegehellipas vozes (em coro) Assassinoabelardo i Feche Atire
Abelardo ii daacute um tiro para o ar Os clientes recuam gritando Ele corre a porta de ferro ruidosamente
as vozes (abafadas) Catildeo Rei da Vela Patildeo-durouma voz de mulher (gritando do outro lado da porta) Meu
marido bebeu estricninaoutra Minha matildee tomou lisoloutra Meu pai se jogou do viadutoabelardo i Lisol Estricnina Viaduto Eacute do que vocecircs precisam
canalhas
Menos o Cliente
Telefone
abelardo ii (atendendo) Alocirc Eacute o padre Aquele da entrevista Estaacute reverendo Vem jaacutehellip
abelardo i Mas vocecirc marcouabelardo ii Natildeo marquei nada
25
abelardo i (toma o fone) Bom dia reverendo Sou eu mesmo Abelardohellip Ah Com muitiacutessima honrahellip Esperarei vossa reve-rendiacutessima Pode ser agraves quatro horas Entatildeohellip sem duacutevidahellip Beijo-lhe as matildeos Sempre agraves suas ordens (depotildee o fone) Este padre eacute engraccediladohellip Natildeo me largahellip Eu natildeo sou eleitorhellip Ele natildeo quer dinheirohellip
abelardo ii Quer a sua almahellipabelardo i Evidentemente eacute um caso raro Um homem preo-
cupar-se comigo sem ser logo agrave vistahellip Quantoabelardo ii Ele prefere tratar desde jaacute do seu testamentoabelardo i Inuacutetil Eu morro ateu e casadoabelardo ii Eacute isso mesmo que ele quer A viuacuteva cuidaraacute bas-
tante de sua alma que teraacute idohellip para o purgatoacuteriohellipabelardo i Diga-me uma coisa seu Abelardo vocecirc eacute socialistaabelardo ii Sou o primeiro socialista que aparece no Teatro
Brasileiroabelardo i E o que eacute que vocecirc querabelardo ii Sucedecirc-lo nessa mesaabelardo i Pelo que vejo o socialismo nos paiacuteses atrasados co-
meccedila logo assimhellip Entrando num acordo com a propriedadehellipabelardo ii De fatohellip Estamos num paiacutes semicolonialhellipabelardo i Onde a gente pode ter ideias mas natildeo eacute de ferroabelardo ii Sim Sem quebrar a tradiccedilatildeoabelardo i Se for preciso o padre leva a sua alma tambeacutemhellip
Estaacute certohellip Vamos examinar aquelas propostas (senta-se e lecirc) Carmo Belatinehellip
abelardo ii Eacute aquele da faacutebrica de salsichashellip O frigoriacuteficohellip Que comprou o terreno da Lapa
abelardo i Idadeabelardo ii Trinta e nove anosabelardo i Niacutevel de vida
26
abelardo ii Niacutevel baixo ainda Faz a barba na terrina da sopa com sabatildeo de cozinha e gilete de segunda matildeohellip
abelardo i Jaacute fala o portuguecircsabelardo ii Ainda atrapalhaabelardo i Gasta menos do que tira dos trabalhadoresabelardo ii Muito menosabelardo i Tem filhos grandesabelardo ii Pequenos aindaabelardo i Em bons coleacutegiosabelardo ii Sim Oiseaux Sion Satildeo Bentoabelardo i Bem Tome nota Emprestamos enquanto os peque-
nos estudarem Quando as filhas comeccedilarem o serviccedilo militar nas garccedilonniegraveres e o pequeno tiver barata e Madame souber se vestir emprestaremos entatildeo de preferecircncia agrave costureira de Madame O velho aiacute teraacute mudado de niacutevel Possuiraacute automoacutevel casa no Jardim Ameacuterica Cessaremos pouco a pouco todo o creacute-dito Nem mais um papagaio Ele viraacute aqui caucionar os tiacutetulos dos comerciantes a quem fornece Executarei tudo um dia Le-varei a faacutebrica os capitais imobilizados e o ferro-velho agrave praccedila
abelardo ii E a mulher diraacute que foram os operaacuterios que os arruinaram
abelardo i E foram de fato Eu conto como fator essencial dessas coisas as exigecircncias atuais do operariado O salaacuterio miacutenimo As feacuterias Que diabo As tais leis sociais natildeo hatildeo de ser soacute contra o capitalhellip
abelardo ii Natildeo satildeo natildeo Descanse Eu entendo de socialismo Olhe A lei de feacuterias soacute deu um resultado Natildeo haacute mais salaacuterio de semana ou de mecircs Eacute por dia de trabalho ou por contrato Somando bem os domingos feriados e dias de doenccedila eram mais que as feacuterias de hoje
27
abelardo i Bem Guarde esta ficha nos Firmes Feche o negoacute-cio A mesma taxa O sistema da casa Chame a Secretaacuteria no 3 Quero ditar uma carta
Abelardo ii sai
Abelardo i e a Secretaacuteria no 3
a secretaacuteria (eacute uma moccedila longa de oacuteculos e tranccedilas enormes e loiras Veste-se pudicamente Traz laacutepis e blocknotes na matildeo) Eacute para bater agrave maacutequina seu Abelardo
abelardo i Natildeo Para estenografar Nem isso A senhora sabe redigir Melhor do que eu Faccedila uma carta Sente-se aiacute (sentam-se perto um do outro) D Aiacutedahellip Aiacuteda loirahellip Aiacuteda de Wagner Como eacute Natildeo precisa de um Radameacutes
a secretaacuteria Preciso que o senhor melhore o meu ordenado O custo da vida aumentou no Brasil de trinta por cento
abelardo i Tenho todo interesse pelo custo de sua vidahellip Mas a senhora sabehellip As vidas hoje estatildeo difiacuteceis para todoshellip Natildeo eacute mais como antigamentehellip Que tranccedilashellip Eu acabo me enfor-cando nessas tranccedilashellip Deixa (procura tocar-lhe os cabelos)
a secretaacuteria Tenha modos seu Abelardoabelardo i Deixa Malvadaa secretaacuteria Nunca Eu sou romacircntica Natildeo vendo o meu
amorabelardo i Vamos fazer um piqueniquehellip (aponta o divatilde sob a
Gioconda) Debaixo daquela mangueiraa secretaacuteria Eu sou noivaabelardo i Eu tambeacutema secretaacuteria Mas eu sou fielhellipabelardo i Bem Depois natildeo venha fazer vales aqui hein Eu
tambeacutem sei ser fiel ao sistema da casa Vaacute laacute Redija Natildeo
28
Tome nota Olhe Eacute uma carta confidencial A um tal Cristiano de Bensauacutede Industrial no Rio Metido a escritor Redija sem erros de portuguecircs O homem foi criacutetico literaacuterio e avanccedilado quando era prontohellip Ele me escreveu propondo frente uacutenica contra os operaacuterios Responda em tese (a secretaacuteria toma nota) insinue que eacute melhor ele ser um puro policial Manter vigilacircncia rigorosa nas faacutebricas Evitar a propaganda comunis-ta Denunciar e perseguir os agitadores Prender Esse negoacutecio de escrever livros de sociologia com anjos eacute contraproducente Ningueacutem mais crecirc Fica ridiacuteculo para noacutes industriais avanccedila-dos Diante dos americanos e dos ingleses Olhe diga isto Que a burguesia morre sem Deus Recusa a extrema-unccedilatildeo Cite o exemplo do proacuteprio Vaticano Coisas concretas A adesatildeo poliacute-tica da igreja contra um bilhatildeo e setecentos milhotildees de liras o ensino religioso e a lei contra o divoacutercio Toma laacute daacute caacute Natildeo vecirc que um alpinista como Pio xi potildee anjos em negoacutecios Vaacute redigir e traga logo Para seguir hojehellip Ver se esse homem deixa de atrapalhar Um sujeito feudal Viacutetima do seu proacuteprio sistema Paga um salaacuterio medieval 20$000 por quinzena
a secretaacuteria (voltando-se da porta) Ga-ra-nhatildeo (sai esbar-rando em Heloiacutesa de Lesbos que vestida de homem entra como a manhatilde laacute de fora)
Menos a Secretaacuteria mais Heloiacutesa
abelardo i (rindo) Vocecirc Meu amor Na hora do expedienteheloiacutesa O nosso casamento eacute um negoacuteciohellipabelardo i Por isso vieste de Marleneheloiacutesa Mas natildeo haacute de ser um negoacutecio como esses que vocecirc
faz com esse bando de desesperados que saiu daiacute vociferandohellip Estatildeo ainda muitos laacute embaixo Haacute mulheres idosas moccedilas turcos italianos russos de prestaccedilatildeo uma fauna de hospiacuteciohellip
29
abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute
Mais Abelardo ii
abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo
abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer
fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso
abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo
Mais o Intelectual Pinote
pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre
heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-
-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui
pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-
fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute
uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-
guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i
senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as
23
quiser E que todos aceitam Mais Que vecircm implorar aqui Sou eu que vou buscaacute-los para assinar papagaios Ou satildeo eles que todos os dias enchem a minha sala de espera Abra a jaula
Abelardo ii obedece de chicote em punho A porta de ferro corre pesadamente
Mais clientes
Os clientes aparecem atropeladamente nas grades Eacute uma coleccedilatildeo de crise variada expectante Homens e mulheres mantecircm-se quietos ante o enorme chicote de Abelardo ii
abelardo i Rua Nem mais um negoacutecio Vou fechar esta bagun-ccedila
as vozes (da jaula) Pelo amor de Deus Por caridade Eu natildeo posso pagar o aluguel Reforme Vou agrave falecircncia
abelardo i Rua Ningueacutem mais pode trabalhar num paiacutes des-tes Com leis monstruosas
as vozes Eu tenho que fechar a faacutebrica Natildeo poderei pagar os duzentos operaacuterios que ficaratildeo sem patildeo Tenha piedade Inclua os juros no capital Damos excelentes garantias
abelardo i (a Abelardo ii) Feche esta porta Natildeo atendo nin-gueacutem
Abelardo ii faz estalar o chicote de domador
as vozes Blefaremos o governo Me salve Me salveabelardo i Rua Canalhas Laacute fora sei como vocecircs me tratam
Abelardo ii faacute-los recuar das grades brandindo o chicote e amea-ccedilando com o revoacutelver
24
uma voz de mulher Ai Jesus Natildeo temos o que comer Eu natildeo saio daqui Espero ateacute agrave noite Estou arruinada
as vozes irritadas (Abelardo ii procura fechar a porta de fer-ro) Canalha Sujo Tirou o nosso sangue Ladratildeo Natildeo saiacutemos daqui
um italiano Pamarona Momanjo isto capitalistauma francesa Sale cochon Si crsquoest possible Conum russo branco Svolochum turco Joacutege paga bateacuteca Non izacuta Joacutegehellipas vozes (em coro) Assassinoabelardo i Feche Atire
Abelardo ii daacute um tiro para o ar Os clientes recuam gritando Ele corre a porta de ferro ruidosamente
as vozes (abafadas) Catildeo Rei da Vela Patildeo-durouma voz de mulher (gritando do outro lado da porta) Meu
marido bebeu estricninaoutra Minha matildee tomou lisoloutra Meu pai se jogou do viadutoabelardo i Lisol Estricnina Viaduto Eacute do que vocecircs precisam
canalhas
Menos o Cliente
Telefone
abelardo ii (atendendo) Alocirc Eacute o padre Aquele da entrevista Estaacute reverendo Vem jaacutehellip
abelardo i Mas vocecirc marcouabelardo ii Natildeo marquei nada
25
abelardo i (toma o fone) Bom dia reverendo Sou eu mesmo Abelardohellip Ah Com muitiacutessima honrahellip Esperarei vossa reve-rendiacutessima Pode ser agraves quatro horas Entatildeohellip sem duacutevidahellip Beijo-lhe as matildeos Sempre agraves suas ordens (depotildee o fone) Este padre eacute engraccediladohellip Natildeo me largahellip Eu natildeo sou eleitorhellip Ele natildeo quer dinheirohellip
abelardo ii Quer a sua almahellipabelardo i Evidentemente eacute um caso raro Um homem preo-
cupar-se comigo sem ser logo agrave vistahellip Quantoabelardo ii Ele prefere tratar desde jaacute do seu testamentoabelardo i Inuacutetil Eu morro ateu e casadoabelardo ii Eacute isso mesmo que ele quer A viuacuteva cuidaraacute bas-
tante de sua alma que teraacute idohellip para o purgatoacuteriohellipabelardo i Diga-me uma coisa seu Abelardo vocecirc eacute socialistaabelardo ii Sou o primeiro socialista que aparece no Teatro
Brasileiroabelardo i E o que eacute que vocecirc querabelardo ii Sucedecirc-lo nessa mesaabelardo i Pelo que vejo o socialismo nos paiacuteses atrasados co-
meccedila logo assimhellip Entrando num acordo com a propriedadehellipabelardo ii De fatohellip Estamos num paiacutes semicolonialhellipabelardo i Onde a gente pode ter ideias mas natildeo eacute de ferroabelardo ii Sim Sem quebrar a tradiccedilatildeoabelardo i Se for preciso o padre leva a sua alma tambeacutemhellip
Estaacute certohellip Vamos examinar aquelas propostas (senta-se e lecirc) Carmo Belatinehellip
abelardo ii Eacute aquele da faacutebrica de salsichashellip O frigoriacuteficohellip Que comprou o terreno da Lapa
abelardo i Idadeabelardo ii Trinta e nove anosabelardo i Niacutevel de vida
26
abelardo ii Niacutevel baixo ainda Faz a barba na terrina da sopa com sabatildeo de cozinha e gilete de segunda matildeohellip
abelardo i Jaacute fala o portuguecircsabelardo ii Ainda atrapalhaabelardo i Gasta menos do que tira dos trabalhadoresabelardo ii Muito menosabelardo i Tem filhos grandesabelardo ii Pequenos aindaabelardo i Em bons coleacutegiosabelardo ii Sim Oiseaux Sion Satildeo Bentoabelardo i Bem Tome nota Emprestamos enquanto os peque-
nos estudarem Quando as filhas comeccedilarem o serviccedilo militar nas garccedilonniegraveres e o pequeno tiver barata e Madame souber se vestir emprestaremos entatildeo de preferecircncia agrave costureira de Madame O velho aiacute teraacute mudado de niacutevel Possuiraacute automoacutevel casa no Jardim Ameacuterica Cessaremos pouco a pouco todo o creacute-dito Nem mais um papagaio Ele viraacute aqui caucionar os tiacutetulos dos comerciantes a quem fornece Executarei tudo um dia Le-varei a faacutebrica os capitais imobilizados e o ferro-velho agrave praccedila
abelardo ii E a mulher diraacute que foram os operaacuterios que os arruinaram
abelardo i E foram de fato Eu conto como fator essencial dessas coisas as exigecircncias atuais do operariado O salaacuterio miacutenimo As feacuterias Que diabo As tais leis sociais natildeo hatildeo de ser soacute contra o capitalhellip
abelardo ii Natildeo satildeo natildeo Descanse Eu entendo de socialismo Olhe A lei de feacuterias soacute deu um resultado Natildeo haacute mais salaacuterio de semana ou de mecircs Eacute por dia de trabalho ou por contrato Somando bem os domingos feriados e dias de doenccedila eram mais que as feacuterias de hoje
27
abelardo i Bem Guarde esta ficha nos Firmes Feche o negoacute-cio A mesma taxa O sistema da casa Chame a Secretaacuteria no 3 Quero ditar uma carta
Abelardo ii sai
Abelardo i e a Secretaacuteria no 3
a secretaacuteria (eacute uma moccedila longa de oacuteculos e tranccedilas enormes e loiras Veste-se pudicamente Traz laacutepis e blocknotes na matildeo) Eacute para bater agrave maacutequina seu Abelardo
abelardo i Natildeo Para estenografar Nem isso A senhora sabe redigir Melhor do que eu Faccedila uma carta Sente-se aiacute (sentam-se perto um do outro) D Aiacutedahellip Aiacuteda loirahellip Aiacuteda de Wagner Como eacute Natildeo precisa de um Radameacutes
a secretaacuteria Preciso que o senhor melhore o meu ordenado O custo da vida aumentou no Brasil de trinta por cento
abelardo i Tenho todo interesse pelo custo de sua vidahellip Mas a senhora sabehellip As vidas hoje estatildeo difiacuteceis para todoshellip Natildeo eacute mais como antigamentehellip Que tranccedilashellip Eu acabo me enfor-cando nessas tranccedilashellip Deixa (procura tocar-lhe os cabelos)
a secretaacuteria Tenha modos seu Abelardoabelardo i Deixa Malvadaa secretaacuteria Nunca Eu sou romacircntica Natildeo vendo o meu
amorabelardo i Vamos fazer um piqueniquehellip (aponta o divatilde sob a
Gioconda) Debaixo daquela mangueiraa secretaacuteria Eu sou noivaabelardo i Eu tambeacutema secretaacuteria Mas eu sou fielhellipabelardo i Bem Depois natildeo venha fazer vales aqui hein Eu
tambeacutem sei ser fiel ao sistema da casa Vaacute laacute Redija Natildeo
28
Tome nota Olhe Eacute uma carta confidencial A um tal Cristiano de Bensauacutede Industrial no Rio Metido a escritor Redija sem erros de portuguecircs O homem foi criacutetico literaacuterio e avanccedilado quando era prontohellip Ele me escreveu propondo frente uacutenica contra os operaacuterios Responda em tese (a secretaacuteria toma nota) insinue que eacute melhor ele ser um puro policial Manter vigilacircncia rigorosa nas faacutebricas Evitar a propaganda comunis-ta Denunciar e perseguir os agitadores Prender Esse negoacutecio de escrever livros de sociologia com anjos eacute contraproducente Ningueacutem mais crecirc Fica ridiacuteculo para noacutes industriais avanccedila-dos Diante dos americanos e dos ingleses Olhe diga isto Que a burguesia morre sem Deus Recusa a extrema-unccedilatildeo Cite o exemplo do proacuteprio Vaticano Coisas concretas A adesatildeo poliacute-tica da igreja contra um bilhatildeo e setecentos milhotildees de liras o ensino religioso e a lei contra o divoacutercio Toma laacute daacute caacute Natildeo vecirc que um alpinista como Pio xi potildee anjos em negoacutecios Vaacute redigir e traga logo Para seguir hojehellip Ver se esse homem deixa de atrapalhar Um sujeito feudal Viacutetima do seu proacuteprio sistema Paga um salaacuterio medieval 20$000 por quinzena
a secretaacuteria (voltando-se da porta) Ga-ra-nhatildeo (sai esbar-rando em Heloiacutesa de Lesbos que vestida de homem entra como a manhatilde laacute de fora)
Menos a Secretaacuteria mais Heloiacutesa
abelardo i (rindo) Vocecirc Meu amor Na hora do expedienteheloiacutesa O nosso casamento eacute um negoacuteciohellipabelardo i Por isso vieste de Marleneheloiacutesa Mas natildeo haacute de ser um negoacutecio como esses que vocecirc
faz com esse bando de desesperados que saiu daiacute vociferandohellip Estatildeo ainda muitos laacute embaixo Haacute mulheres idosas moccedilas turcos italianos russos de prestaccedilatildeo uma fauna de hospiacuteciohellip
29
abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute
Mais Abelardo ii
abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo
abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer
fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso
abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo
Mais o Intelectual Pinote
pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre
heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-
-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui
pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-
fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute
uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-
guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i
senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as
24
uma voz de mulher Ai Jesus Natildeo temos o que comer Eu natildeo saio daqui Espero ateacute agrave noite Estou arruinada
as vozes irritadas (Abelardo ii procura fechar a porta de fer-ro) Canalha Sujo Tirou o nosso sangue Ladratildeo Natildeo saiacutemos daqui
um italiano Pamarona Momanjo isto capitalistauma francesa Sale cochon Si crsquoest possible Conum russo branco Svolochum turco Joacutege paga bateacuteca Non izacuta Joacutegehellipas vozes (em coro) Assassinoabelardo i Feche Atire
Abelardo ii daacute um tiro para o ar Os clientes recuam gritando Ele corre a porta de ferro ruidosamente
as vozes (abafadas) Catildeo Rei da Vela Patildeo-durouma voz de mulher (gritando do outro lado da porta) Meu
marido bebeu estricninaoutra Minha matildee tomou lisoloutra Meu pai se jogou do viadutoabelardo i Lisol Estricnina Viaduto Eacute do que vocecircs precisam
canalhas
Menos o Cliente
Telefone
abelardo ii (atendendo) Alocirc Eacute o padre Aquele da entrevista Estaacute reverendo Vem jaacutehellip
abelardo i Mas vocecirc marcouabelardo ii Natildeo marquei nada
25
abelardo i (toma o fone) Bom dia reverendo Sou eu mesmo Abelardohellip Ah Com muitiacutessima honrahellip Esperarei vossa reve-rendiacutessima Pode ser agraves quatro horas Entatildeohellip sem duacutevidahellip Beijo-lhe as matildeos Sempre agraves suas ordens (depotildee o fone) Este padre eacute engraccediladohellip Natildeo me largahellip Eu natildeo sou eleitorhellip Ele natildeo quer dinheirohellip
abelardo ii Quer a sua almahellipabelardo i Evidentemente eacute um caso raro Um homem preo-
cupar-se comigo sem ser logo agrave vistahellip Quantoabelardo ii Ele prefere tratar desde jaacute do seu testamentoabelardo i Inuacutetil Eu morro ateu e casadoabelardo ii Eacute isso mesmo que ele quer A viuacuteva cuidaraacute bas-
tante de sua alma que teraacute idohellip para o purgatoacuteriohellipabelardo i Diga-me uma coisa seu Abelardo vocecirc eacute socialistaabelardo ii Sou o primeiro socialista que aparece no Teatro
Brasileiroabelardo i E o que eacute que vocecirc querabelardo ii Sucedecirc-lo nessa mesaabelardo i Pelo que vejo o socialismo nos paiacuteses atrasados co-
meccedila logo assimhellip Entrando num acordo com a propriedadehellipabelardo ii De fatohellip Estamos num paiacutes semicolonialhellipabelardo i Onde a gente pode ter ideias mas natildeo eacute de ferroabelardo ii Sim Sem quebrar a tradiccedilatildeoabelardo i Se for preciso o padre leva a sua alma tambeacutemhellip
Estaacute certohellip Vamos examinar aquelas propostas (senta-se e lecirc) Carmo Belatinehellip
abelardo ii Eacute aquele da faacutebrica de salsichashellip O frigoriacuteficohellip Que comprou o terreno da Lapa
abelardo i Idadeabelardo ii Trinta e nove anosabelardo i Niacutevel de vida
26
abelardo ii Niacutevel baixo ainda Faz a barba na terrina da sopa com sabatildeo de cozinha e gilete de segunda matildeohellip
abelardo i Jaacute fala o portuguecircsabelardo ii Ainda atrapalhaabelardo i Gasta menos do que tira dos trabalhadoresabelardo ii Muito menosabelardo i Tem filhos grandesabelardo ii Pequenos aindaabelardo i Em bons coleacutegiosabelardo ii Sim Oiseaux Sion Satildeo Bentoabelardo i Bem Tome nota Emprestamos enquanto os peque-
nos estudarem Quando as filhas comeccedilarem o serviccedilo militar nas garccedilonniegraveres e o pequeno tiver barata e Madame souber se vestir emprestaremos entatildeo de preferecircncia agrave costureira de Madame O velho aiacute teraacute mudado de niacutevel Possuiraacute automoacutevel casa no Jardim Ameacuterica Cessaremos pouco a pouco todo o creacute-dito Nem mais um papagaio Ele viraacute aqui caucionar os tiacutetulos dos comerciantes a quem fornece Executarei tudo um dia Le-varei a faacutebrica os capitais imobilizados e o ferro-velho agrave praccedila
abelardo ii E a mulher diraacute que foram os operaacuterios que os arruinaram
abelardo i E foram de fato Eu conto como fator essencial dessas coisas as exigecircncias atuais do operariado O salaacuterio miacutenimo As feacuterias Que diabo As tais leis sociais natildeo hatildeo de ser soacute contra o capitalhellip
abelardo ii Natildeo satildeo natildeo Descanse Eu entendo de socialismo Olhe A lei de feacuterias soacute deu um resultado Natildeo haacute mais salaacuterio de semana ou de mecircs Eacute por dia de trabalho ou por contrato Somando bem os domingos feriados e dias de doenccedila eram mais que as feacuterias de hoje
27
abelardo i Bem Guarde esta ficha nos Firmes Feche o negoacute-cio A mesma taxa O sistema da casa Chame a Secretaacuteria no 3 Quero ditar uma carta
Abelardo ii sai
Abelardo i e a Secretaacuteria no 3
a secretaacuteria (eacute uma moccedila longa de oacuteculos e tranccedilas enormes e loiras Veste-se pudicamente Traz laacutepis e blocknotes na matildeo) Eacute para bater agrave maacutequina seu Abelardo
abelardo i Natildeo Para estenografar Nem isso A senhora sabe redigir Melhor do que eu Faccedila uma carta Sente-se aiacute (sentam-se perto um do outro) D Aiacutedahellip Aiacuteda loirahellip Aiacuteda de Wagner Como eacute Natildeo precisa de um Radameacutes
a secretaacuteria Preciso que o senhor melhore o meu ordenado O custo da vida aumentou no Brasil de trinta por cento
abelardo i Tenho todo interesse pelo custo de sua vidahellip Mas a senhora sabehellip As vidas hoje estatildeo difiacuteceis para todoshellip Natildeo eacute mais como antigamentehellip Que tranccedilashellip Eu acabo me enfor-cando nessas tranccedilashellip Deixa (procura tocar-lhe os cabelos)
a secretaacuteria Tenha modos seu Abelardoabelardo i Deixa Malvadaa secretaacuteria Nunca Eu sou romacircntica Natildeo vendo o meu
amorabelardo i Vamos fazer um piqueniquehellip (aponta o divatilde sob a
Gioconda) Debaixo daquela mangueiraa secretaacuteria Eu sou noivaabelardo i Eu tambeacutema secretaacuteria Mas eu sou fielhellipabelardo i Bem Depois natildeo venha fazer vales aqui hein Eu
tambeacutem sei ser fiel ao sistema da casa Vaacute laacute Redija Natildeo
28
Tome nota Olhe Eacute uma carta confidencial A um tal Cristiano de Bensauacutede Industrial no Rio Metido a escritor Redija sem erros de portuguecircs O homem foi criacutetico literaacuterio e avanccedilado quando era prontohellip Ele me escreveu propondo frente uacutenica contra os operaacuterios Responda em tese (a secretaacuteria toma nota) insinue que eacute melhor ele ser um puro policial Manter vigilacircncia rigorosa nas faacutebricas Evitar a propaganda comunis-ta Denunciar e perseguir os agitadores Prender Esse negoacutecio de escrever livros de sociologia com anjos eacute contraproducente Ningueacutem mais crecirc Fica ridiacuteculo para noacutes industriais avanccedila-dos Diante dos americanos e dos ingleses Olhe diga isto Que a burguesia morre sem Deus Recusa a extrema-unccedilatildeo Cite o exemplo do proacuteprio Vaticano Coisas concretas A adesatildeo poliacute-tica da igreja contra um bilhatildeo e setecentos milhotildees de liras o ensino religioso e a lei contra o divoacutercio Toma laacute daacute caacute Natildeo vecirc que um alpinista como Pio xi potildee anjos em negoacutecios Vaacute redigir e traga logo Para seguir hojehellip Ver se esse homem deixa de atrapalhar Um sujeito feudal Viacutetima do seu proacuteprio sistema Paga um salaacuterio medieval 20$000 por quinzena
a secretaacuteria (voltando-se da porta) Ga-ra-nhatildeo (sai esbar-rando em Heloiacutesa de Lesbos que vestida de homem entra como a manhatilde laacute de fora)
Menos a Secretaacuteria mais Heloiacutesa
abelardo i (rindo) Vocecirc Meu amor Na hora do expedienteheloiacutesa O nosso casamento eacute um negoacuteciohellipabelardo i Por isso vieste de Marleneheloiacutesa Mas natildeo haacute de ser um negoacutecio como esses que vocecirc
faz com esse bando de desesperados que saiu daiacute vociferandohellip Estatildeo ainda muitos laacute embaixo Haacute mulheres idosas moccedilas turcos italianos russos de prestaccedilatildeo uma fauna de hospiacuteciohellip
29
abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute
Mais Abelardo ii
abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo
abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer
fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso
abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo
Mais o Intelectual Pinote
pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre
heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-
-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui
pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-
fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute
uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-
guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i
senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as
25
abelardo i (toma o fone) Bom dia reverendo Sou eu mesmo Abelardohellip Ah Com muitiacutessima honrahellip Esperarei vossa reve-rendiacutessima Pode ser agraves quatro horas Entatildeohellip sem duacutevidahellip Beijo-lhe as matildeos Sempre agraves suas ordens (depotildee o fone) Este padre eacute engraccediladohellip Natildeo me largahellip Eu natildeo sou eleitorhellip Ele natildeo quer dinheirohellip
abelardo ii Quer a sua almahellipabelardo i Evidentemente eacute um caso raro Um homem preo-
cupar-se comigo sem ser logo agrave vistahellip Quantoabelardo ii Ele prefere tratar desde jaacute do seu testamentoabelardo i Inuacutetil Eu morro ateu e casadoabelardo ii Eacute isso mesmo que ele quer A viuacuteva cuidaraacute bas-
tante de sua alma que teraacute idohellip para o purgatoacuteriohellipabelardo i Diga-me uma coisa seu Abelardo vocecirc eacute socialistaabelardo ii Sou o primeiro socialista que aparece no Teatro
Brasileiroabelardo i E o que eacute que vocecirc querabelardo ii Sucedecirc-lo nessa mesaabelardo i Pelo que vejo o socialismo nos paiacuteses atrasados co-
meccedila logo assimhellip Entrando num acordo com a propriedadehellipabelardo ii De fatohellip Estamos num paiacutes semicolonialhellipabelardo i Onde a gente pode ter ideias mas natildeo eacute de ferroabelardo ii Sim Sem quebrar a tradiccedilatildeoabelardo i Se for preciso o padre leva a sua alma tambeacutemhellip
Estaacute certohellip Vamos examinar aquelas propostas (senta-se e lecirc) Carmo Belatinehellip
abelardo ii Eacute aquele da faacutebrica de salsichashellip O frigoriacuteficohellip Que comprou o terreno da Lapa
abelardo i Idadeabelardo ii Trinta e nove anosabelardo i Niacutevel de vida
26
abelardo ii Niacutevel baixo ainda Faz a barba na terrina da sopa com sabatildeo de cozinha e gilete de segunda matildeohellip
abelardo i Jaacute fala o portuguecircsabelardo ii Ainda atrapalhaabelardo i Gasta menos do que tira dos trabalhadoresabelardo ii Muito menosabelardo i Tem filhos grandesabelardo ii Pequenos aindaabelardo i Em bons coleacutegiosabelardo ii Sim Oiseaux Sion Satildeo Bentoabelardo i Bem Tome nota Emprestamos enquanto os peque-
nos estudarem Quando as filhas comeccedilarem o serviccedilo militar nas garccedilonniegraveres e o pequeno tiver barata e Madame souber se vestir emprestaremos entatildeo de preferecircncia agrave costureira de Madame O velho aiacute teraacute mudado de niacutevel Possuiraacute automoacutevel casa no Jardim Ameacuterica Cessaremos pouco a pouco todo o creacute-dito Nem mais um papagaio Ele viraacute aqui caucionar os tiacutetulos dos comerciantes a quem fornece Executarei tudo um dia Le-varei a faacutebrica os capitais imobilizados e o ferro-velho agrave praccedila
abelardo ii E a mulher diraacute que foram os operaacuterios que os arruinaram
abelardo i E foram de fato Eu conto como fator essencial dessas coisas as exigecircncias atuais do operariado O salaacuterio miacutenimo As feacuterias Que diabo As tais leis sociais natildeo hatildeo de ser soacute contra o capitalhellip
abelardo ii Natildeo satildeo natildeo Descanse Eu entendo de socialismo Olhe A lei de feacuterias soacute deu um resultado Natildeo haacute mais salaacuterio de semana ou de mecircs Eacute por dia de trabalho ou por contrato Somando bem os domingos feriados e dias de doenccedila eram mais que as feacuterias de hoje
27
abelardo i Bem Guarde esta ficha nos Firmes Feche o negoacute-cio A mesma taxa O sistema da casa Chame a Secretaacuteria no 3 Quero ditar uma carta
Abelardo ii sai
Abelardo i e a Secretaacuteria no 3
a secretaacuteria (eacute uma moccedila longa de oacuteculos e tranccedilas enormes e loiras Veste-se pudicamente Traz laacutepis e blocknotes na matildeo) Eacute para bater agrave maacutequina seu Abelardo
abelardo i Natildeo Para estenografar Nem isso A senhora sabe redigir Melhor do que eu Faccedila uma carta Sente-se aiacute (sentam-se perto um do outro) D Aiacutedahellip Aiacuteda loirahellip Aiacuteda de Wagner Como eacute Natildeo precisa de um Radameacutes
a secretaacuteria Preciso que o senhor melhore o meu ordenado O custo da vida aumentou no Brasil de trinta por cento
abelardo i Tenho todo interesse pelo custo de sua vidahellip Mas a senhora sabehellip As vidas hoje estatildeo difiacuteceis para todoshellip Natildeo eacute mais como antigamentehellip Que tranccedilashellip Eu acabo me enfor-cando nessas tranccedilashellip Deixa (procura tocar-lhe os cabelos)
a secretaacuteria Tenha modos seu Abelardoabelardo i Deixa Malvadaa secretaacuteria Nunca Eu sou romacircntica Natildeo vendo o meu
amorabelardo i Vamos fazer um piqueniquehellip (aponta o divatilde sob a
Gioconda) Debaixo daquela mangueiraa secretaacuteria Eu sou noivaabelardo i Eu tambeacutema secretaacuteria Mas eu sou fielhellipabelardo i Bem Depois natildeo venha fazer vales aqui hein Eu
tambeacutem sei ser fiel ao sistema da casa Vaacute laacute Redija Natildeo
28
Tome nota Olhe Eacute uma carta confidencial A um tal Cristiano de Bensauacutede Industrial no Rio Metido a escritor Redija sem erros de portuguecircs O homem foi criacutetico literaacuterio e avanccedilado quando era prontohellip Ele me escreveu propondo frente uacutenica contra os operaacuterios Responda em tese (a secretaacuteria toma nota) insinue que eacute melhor ele ser um puro policial Manter vigilacircncia rigorosa nas faacutebricas Evitar a propaganda comunis-ta Denunciar e perseguir os agitadores Prender Esse negoacutecio de escrever livros de sociologia com anjos eacute contraproducente Ningueacutem mais crecirc Fica ridiacuteculo para noacutes industriais avanccedila-dos Diante dos americanos e dos ingleses Olhe diga isto Que a burguesia morre sem Deus Recusa a extrema-unccedilatildeo Cite o exemplo do proacuteprio Vaticano Coisas concretas A adesatildeo poliacute-tica da igreja contra um bilhatildeo e setecentos milhotildees de liras o ensino religioso e a lei contra o divoacutercio Toma laacute daacute caacute Natildeo vecirc que um alpinista como Pio xi potildee anjos em negoacutecios Vaacute redigir e traga logo Para seguir hojehellip Ver se esse homem deixa de atrapalhar Um sujeito feudal Viacutetima do seu proacuteprio sistema Paga um salaacuterio medieval 20$000 por quinzena
a secretaacuteria (voltando-se da porta) Ga-ra-nhatildeo (sai esbar-rando em Heloiacutesa de Lesbos que vestida de homem entra como a manhatilde laacute de fora)
Menos a Secretaacuteria mais Heloiacutesa
abelardo i (rindo) Vocecirc Meu amor Na hora do expedienteheloiacutesa O nosso casamento eacute um negoacuteciohellipabelardo i Por isso vieste de Marleneheloiacutesa Mas natildeo haacute de ser um negoacutecio como esses que vocecirc
faz com esse bando de desesperados que saiu daiacute vociferandohellip Estatildeo ainda muitos laacute embaixo Haacute mulheres idosas moccedilas turcos italianos russos de prestaccedilatildeo uma fauna de hospiacuteciohellip
29
abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute
Mais Abelardo ii
abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo
abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer
fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso
abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo
Mais o Intelectual Pinote
pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre
heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-
-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui
pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-
fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute
uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-
guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i
senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as
26
abelardo ii Niacutevel baixo ainda Faz a barba na terrina da sopa com sabatildeo de cozinha e gilete de segunda matildeohellip
abelardo i Jaacute fala o portuguecircsabelardo ii Ainda atrapalhaabelardo i Gasta menos do que tira dos trabalhadoresabelardo ii Muito menosabelardo i Tem filhos grandesabelardo ii Pequenos aindaabelardo i Em bons coleacutegiosabelardo ii Sim Oiseaux Sion Satildeo Bentoabelardo i Bem Tome nota Emprestamos enquanto os peque-
nos estudarem Quando as filhas comeccedilarem o serviccedilo militar nas garccedilonniegraveres e o pequeno tiver barata e Madame souber se vestir emprestaremos entatildeo de preferecircncia agrave costureira de Madame O velho aiacute teraacute mudado de niacutevel Possuiraacute automoacutevel casa no Jardim Ameacuterica Cessaremos pouco a pouco todo o creacute-dito Nem mais um papagaio Ele viraacute aqui caucionar os tiacutetulos dos comerciantes a quem fornece Executarei tudo um dia Le-varei a faacutebrica os capitais imobilizados e o ferro-velho agrave praccedila
abelardo ii E a mulher diraacute que foram os operaacuterios que os arruinaram
abelardo i E foram de fato Eu conto como fator essencial dessas coisas as exigecircncias atuais do operariado O salaacuterio miacutenimo As feacuterias Que diabo As tais leis sociais natildeo hatildeo de ser soacute contra o capitalhellip
abelardo ii Natildeo satildeo natildeo Descanse Eu entendo de socialismo Olhe A lei de feacuterias soacute deu um resultado Natildeo haacute mais salaacuterio de semana ou de mecircs Eacute por dia de trabalho ou por contrato Somando bem os domingos feriados e dias de doenccedila eram mais que as feacuterias de hoje
27
abelardo i Bem Guarde esta ficha nos Firmes Feche o negoacute-cio A mesma taxa O sistema da casa Chame a Secretaacuteria no 3 Quero ditar uma carta
Abelardo ii sai
Abelardo i e a Secretaacuteria no 3
a secretaacuteria (eacute uma moccedila longa de oacuteculos e tranccedilas enormes e loiras Veste-se pudicamente Traz laacutepis e blocknotes na matildeo) Eacute para bater agrave maacutequina seu Abelardo
abelardo i Natildeo Para estenografar Nem isso A senhora sabe redigir Melhor do que eu Faccedila uma carta Sente-se aiacute (sentam-se perto um do outro) D Aiacutedahellip Aiacuteda loirahellip Aiacuteda de Wagner Como eacute Natildeo precisa de um Radameacutes
a secretaacuteria Preciso que o senhor melhore o meu ordenado O custo da vida aumentou no Brasil de trinta por cento
abelardo i Tenho todo interesse pelo custo de sua vidahellip Mas a senhora sabehellip As vidas hoje estatildeo difiacuteceis para todoshellip Natildeo eacute mais como antigamentehellip Que tranccedilashellip Eu acabo me enfor-cando nessas tranccedilashellip Deixa (procura tocar-lhe os cabelos)
a secretaacuteria Tenha modos seu Abelardoabelardo i Deixa Malvadaa secretaacuteria Nunca Eu sou romacircntica Natildeo vendo o meu
amorabelardo i Vamos fazer um piqueniquehellip (aponta o divatilde sob a
Gioconda) Debaixo daquela mangueiraa secretaacuteria Eu sou noivaabelardo i Eu tambeacutema secretaacuteria Mas eu sou fielhellipabelardo i Bem Depois natildeo venha fazer vales aqui hein Eu
tambeacutem sei ser fiel ao sistema da casa Vaacute laacute Redija Natildeo
28
Tome nota Olhe Eacute uma carta confidencial A um tal Cristiano de Bensauacutede Industrial no Rio Metido a escritor Redija sem erros de portuguecircs O homem foi criacutetico literaacuterio e avanccedilado quando era prontohellip Ele me escreveu propondo frente uacutenica contra os operaacuterios Responda em tese (a secretaacuteria toma nota) insinue que eacute melhor ele ser um puro policial Manter vigilacircncia rigorosa nas faacutebricas Evitar a propaganda comunis-ta Denunciar e perseguir os agitadores Prender Esse negoacutecio de escrever livros de sociologia com anjos eacute contraproducente Ningueacutem mais crecirc Fica ridiacuteculo para noacutes industriais avanccedila-dos Diante dos americanos e dos ingleses Olhe diga isto Que a burguesia morre sem Deus Recusa a extrema-unccedilatildeo Cite o exemplo do proacuteprio Vaticano Coisas concretas A adesatildeo poliacute-tica da igreja contra um bilhatildeo e setecentos milhotildees de liras o ensino religioso e a lei contra o divoacutercio Toma laacute daacute caacute Natildeo vecirc que um alpinista como Pio xi potildee anjos em negoacutecios Vaacute redigir e traga logo Para seguir hojehellip Ver se esse homem deixa de atrapalhar Um sujeito feudal Viacutetima do seu proacuteprio sistema Paga um salaacuterio medieval 20$000 por quinzena
a secretaacuteria (voltando-se da porta) Ga-ra-nhatildeo (sai esbar-rando em Heloiacutesa de Lesbos que vestida de homem entra como a manhatilde laacute de fora)
Menos a Secretaacuteria mais Heloiacutesa
abelardo i (rindo) Vocecirc Meu amor Na hora do expedienteheloiacutesa O nosso casamento eacute um negoacuteciohellipabelardo i Por isso vieste de Marleneheloiacutesa Mas natildeo haacute de ser um negoacutecio como esses que vocecirc
faz com esse bando de desesperados que saiu daiacute vociferandohellip Estatildeo ainda muitos laacute embaixo Haacute mulheres idosas moccedilas turcos italianos russos de prestaccedilatildeo uma fauna de hospiacuteciohellip
29
abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute
Mais Abelardo ii
abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo
abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer
fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso
abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo
Mais o Intelectual Pinote
pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre
heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-
-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui
pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-
fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute
uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-
guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i
senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as
27
abelardo i Bem Guarde esta ficha nos Firmes Feche o negoacute-cio A mesma taxa O sistema da casa Chame a Secretaacuteria no 3 Quero ditar uma carta
Abelardo ii sai
Abelardo i e a Secretaacuteria no 3
a secretaacuteria (eacute uma moccedila longa de oacuteculos e tranccedilas enormes e loiras Veste-se pudicamente Traz laacutepis e blocknotes na matildeo) Eacute para bater agrave maacutequina seu Abelardo
abelardo i Natildeo Para estenografar Nem isso A senhora sabe redigir Melhor do que eu Faccedila uma carta Sente-se aiacute (sentam-se perto um do outro) D Aiacutedahellip Aiacuteda loirahellip Aiacuteda de Wagner Como eacute Natildeo precisa de um Radameacutes
a secretaacuteria Preciso que o senhor melhore o meu ordenado O custo da vida aumentou no Brasil de trinta por cento
abelardo i Tenho todo interesse pelo custo de sua vidahellip Mas a senhora sabehellip As vidas hoje estatildeo difiacuteceis para todoshellip Natildeo eacute mais como antigamentehellip Que tranccedilashellip Eu acabo me enfor-cando nessas tranccedilashellip Deixa (procura tocar-lhe os cabelos)
a secretaacuteria Tenha modos seu Abelardoabelardo i Deixa Malvadaa secretaacuteria Nunca Eu sou romacircntica Natildeo vendo o meu
amorabelardo i Vamos fazer um piqueniquehellip (aponta o divatilde sob a
Gioconda) Debaixo daquela mangueiraa secretaacuteria Eu sou noivaabelardo i Eu tambeacutema secretaacuteria Mas eu sou fielhellipabelardo i Bem Depois natildeo venha fazer vales aqui hein Eu
tambeacutem sei ser fiel ao sistema da casa Vaacute laacute Redija Natildeo
28
Tome nota Olhe Eacute uma carta confidencial A um tal Cristiano de Bensauacutede Industrial no Rio Metido a escritor Redija sem erros de portuguecircs O homem foi criacutetico literaacuterio e avanccedilado quando era prontohellip Ele me escreveu propondo frente uacutenica contra os operaacuterios Responda em tese (a secretaacuteria toma nota) insinue que eacute melhor ele ser um puro policial Manter vigilacircncia rigorosa nas faacutebricas Evitar a propaganda comunis-ta Denunciar e perseguir os agitadores Prender Esse negoacutecio de escrever livros de sociologia com anjos eacute contraproducente Ningueacutem mais crecirc Fica ridiacuteculo para noacutes industriais avanccedila-dos Diante dos americanos e dos ingleses Olhe diga isto Que a burguesia morre sem Deus Recusa a extrema-unccedilatildeo Cite o exemplo do proacuteprio Vaticano Coisas concretas A adesatildeo poliacute-tica da igreja contra um bilhatildeo e setecentos milhotildees de liras o ensino religioso e a lei contra o divoacutercio Toma laacute daacute caacute Natildeo vecirc que um alpinista como Pio xi potildee anjos em negoacutecios Vaacute redigir e traga logo Para seguir hojehellip Ver se esse homem deixa de atrapalhar Um sujeito feudal Viacutetima do seu proacuteprio sistema Paga um salaacuterio medieval 20$000 por quinzena
a secretaacuteria (voltando-se da porta) Ga-ra-nhatildeo (sai esbar-rando em Heloiacutesa de Lesbos que vestida de homem entra como a manhatilde laacute de fora)
Menos a Secretaacuteria mais Heloiacutesa
abelardo i (rindo) Vocecirc Meu amor Na hora do expedienteheloiacutesa O nosso casamento eacute um negoacuteciohellipabelardo i Por isso vieste de Marleneheloiacutesa Mas natildeo haacute de ser um negoacutecio como esses que vocecirc
faz com esse bando de desesperados que saiu daiacute vociferandohellip Estatildeo ainda muitos laacute embaixo Haacute mulheres idosas moccedilas turcos italianos russos de prestaccedilatildeo uma fauna de hospiacuteciohellip
29
abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute
Mais Abelardo ii
abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo
abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer
fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso
abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo
Mais o Intelectual Pinote
pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre
heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-
-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui
pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-
fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute
uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-
guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i
senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as
28
Tome nota Olhe Eacute uma carta confidencial A um tal Cristiano de Bensauacutede Industrial no Rio Metido a escritor Redija sem erros de portuguecircs O homem foi criacutetico literaacuterio e avanccedilado quando era prontohellip Ele me escreveu propondo frente uacutenica contra os operaacuterios Responda em tese (a secretaacuteria toma nota) insinue que eacute melhor ele ser um puro policial Manter vigilacircncia rigorosa nas faacutebricas Evitar a propaganda comunis-ta Denunciar e perseguir os agitadores Prender Esse negoacutecio de escrever livros de sociologia com anjos eacute contraproducente Ningueacutem mais crecirc Fica ridiacuteculo para noacutes industriais avanccedila-dos Diante dos americanos e dos ingleses Olhe diga isto Que a burguesia morre sem Deus Recusa a extrema-unccedilatildeo Cite o exemplo do proacuteprio Vaticano Coisas concretas A adesatildeo poliacute-tica da igreja contra um bilhatildeo e setecentos milhotildees de liras o ensino religioso e a lei contra o divoacutercio Toma laacute daacute caacute Natildeo vecirc que um alpinista como Pio xi potildee anjos em negoacutecios Vaacute redigir e traga logo Para seguir hojehellip Ver se esse homem deixa de atrapalhar Um sujeito feudal Viacutetima do seu proacuteprio sistema Paga um salaacuterio medieval 20$000 por quinzena
a secretaacuteria (voltando-se da porta) Ga-ra-nhatildeo (sai esbar-rando em Heloiacutesa de Lesbos que vestida de homem entra como a manhatilde laacute de fora)
Menos a Secretaacuteria mais Heloiacutesa
abelardo i (rindo) Vocecirc Meu amor Na hora do expedienteheloiacutesa O nosso casamento eacute um negoacuteciohellipabelardo i Por isso vieste de Marleneheloiacutesa Mas natildeo haacute de ser um negoacutecio como esses que vocecirc
faz com esse bando de desesperados que saiu daiacute vociferandohellip Estatildeo ainda muitos laacute embaixo Haacute mulheres idosas moccedilas turcos italianos russos de prestaccedilatildeo uma fauna de hospiacuteciohellip
29
abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute
Mais Abelardo ii
abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo
abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer
fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso
abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo
Mais o Intelectual Pinote
pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre
heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-
-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui
pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-
fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute
uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-
guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i
senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as
29
abelardo i Ingratos Matei-lhes a fome Dei-lhes ilusotildeesheloiacutesa E agora os tratas assimabelardo i Para te dar uma ilha Uma ilha para vocecirc soacute
Mais Abelardo ii
abelardo ii (entrando) Haacute um aiacute que natildeo quer sair Estaacute resis-tindo Eacute cliente novo
abelardo i Quem eacuteabelardo ii Um intelectual Diz que natildeo sai sem vecirc-lo Quer
fazer a sua biografia ilustrada Com fotografias Diz que daraacute um bom livro Grosso
abelardo i Mande entrar Quero vecirc-lo
Mais o Intelectual Pinote
pinote (entra de chapeacuteu de poeta na matildeo Uma gravata liacuterica Sorrindo Mesuras Traz uma faca enorme de madeira como bengala) Bom dia mestre
heloiacutesa (daacute um grito lancinante) Ai A facaabelardo i Desarme esse homem Ora essa (Abelardo ii atira-
-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a faca simboacutelica) Deixar entrar gente com armas aqui
pinote (escusando-se humildemente) Eacute inofensivahellip de pauabelardo i Confesse que o senhor planejou um atentado Con-
fessepinote Absolutamente Por quem o senhor estaacute me tomando Eacute
uma faca profissional inofensiva natildeo matahellipabelardo ii (examinando) Estaacute cheia de sanguehellip sangue coa-
guladohellippinote Umas facadinhashellip para comerhellip (a um gesto de Abelardo i
senta-se Abelardo ii permanece ao fundo segurando com as