Título:ContosdeAndersen
Autor:HansChristianAndersen
Ilustrações:EdnaF.HarteEdmundDulace
Edição:AgrupamentodeEscolasdeRiodeMouro
Coleção:ClássicosInfantojuvenis
Seleção,paginaçãoeprojetográfico:CarlosPinheiro
Imagemdacapa:AChristmasGreeting,byHansChristianAndersen
1.ªedição:outubrode2013
ISBN:978-989-8671-14-1
EdiçãosegundoasregrasdoAcordoOrtográficodaLínguaPortuguesade1990.
AdaptaçãodoebookempdfOscontosdeHansChristianAndersen,disponiblizado
pela DGARQ (http://dgarq.gov.pt/files/2013/09/Os-Contos-H-C-Andersen.pdf),
cominclusãodealgunsoutroscontos.
Origemdasilustrações:
http://www.gutenberg.org/files/32571/32571-h/32571-h.htm
http://www.gutenberg.org/files/32572/32572-h/32572-h.htm
http://www.gutenberg.org/files/17860/17860-h/17860-h.htm
http://www.gutenberg.org/files/27000/27000-h/27000-h.htm
ÍndiceOPatinhoFeioODuendeemCasadoMerceeiroOMontedasSílfidesOPapílioAGotadeÁguaAsVelasOElfodaRosaÉabsolutamentecerto!IbeCristininhaOAnjoOsDiasdaSemanaOJardineiroeoSenhorAPastoraeoLimpa-ChaminésOsSapatosVermelhosACasaAntigaOAbetoAFamíliaFelizAVestimentaNovadoImperadorHistóriasdoBrilhodoSolOsCisnesSelvagensAArcaVoadoraOlavinhoFecha-os-OlhosASereiazinhaAPolegarzinhaAsFloresdeIdinhaOHomemdosFantochesOSinoOLivroMudoASombraSaltadoresARapariguinhadosFósforosORouxinolOFuzilOColarinhoPostiçoOValenteSoldadinhodeChumboOPequenoClauseoGrandeClausSoboSalgueiroJoãoPatetaOSapoNoPátiodosPatosARainhadasNevesUmcontocomsetehistórias
Primeirahistória—quetratadoespelhoedosseusfragmentosSegundahistória—UmrapazinhoeumameninaTerceirahistória—OjardimdamulherquesabiafazerfeitiçosQuartahistória—PríncipeeprincesaQuintahistória—ApequenasalteadoraSextahistória—AmulherdaLapóniaeamulherdaFinlândia
Sétimahistória—OqueaconteceunopaláciodaRainhadasNeveseoquesepassoudepoisAHistóriadeUmaMãeAPrincesaeaErvilhaABorboletaOBuleOCaracoleaRoseiraOHomemdeNeveOsVerdinhos
OPatinhoFeio
Estavatãobonitoocampo!
Eraverão,otrigoeradourado,aaveiaverdeeofenoamontoadoemmedasnos
pradosverdes.Poraíandavaacegonhacomassuaslongaspernasvermelhasfalando
egípcio, uma língua que aprendeu com a sua mãe. Em redor dos campos e dos
prados havia grandes bosques e no meio deles profundos lagos. Sim, estava tão
bonitoocampo!
No meio, iluminado pelo Sol, via-se um velho solar rodeado por profundos
canais.Dosmuroseparabaixo,atéàágua,cresciamgrandesfolhasdebardanas,tão
altasqueascriançaspodiampôr-sedepéporbaixodasmaiores.Eratãointricadoaí
comonobosquemaisespessoe,lánomeio,encontrava-seumapatanoseuninho.
Deviachocarosovos,poisesperavapatinhos,masestavacansadaporquedemorava
muito tempoe raramente recebiavisitas.Asoutraspatasgostavammaisdenadar
nos canais do que correr lá acima e sentarem-se sob uma folha de bardana para
grasnaremcomela.
Por fim rebentou um ovo após outro. Pi! Pi! — diziam os patinhos recém-
nascidos.Todasasgemasdeovosetornaramcriaturasvivas,malpunhamacabeça
defora.
—Vá!Vá!—disseela,eospatinhosapressaram-sequantopodiameolhavam
para todos os lados sob as folhas verdes. E amãe deixava-os olhar, as vezes que
quisessem,poisoverdeébomparaosolhos.
— Como o mundo é tão grande! — disseram os filhotes. Pois, na verdade,
tinhamagorabemmaisespaçodoquequandoseencontravamdentrodoovo.
—Nãojulguemqueistoéomundotodo!—disseamãe.—Estende-semuito
paraalémdooutroladodojardim,bemparadentrodaquintadoPadre!Masnunca
estive aí!… Estais pois todos juntos!— disse, levantando-se.—Não, não estão
todos!Oovomaioraindaestáali!Quantotempovaidemorar?Estouacomeçara
ficarcansada!—Evoltouadeitar-se.
—Então,comovaiisso?—perguntouumavelhapataquevinhafazer-lheuma
visita.
—Estátãodemoradoesteovo!—disseapataquechocava.—Nãohámeiode
furá-lo!Masvêosoutros!Sãoospatinhosmaisbonitosquevi!Parecem-setodos
comopai,essemalvadoquenemvemvisitar-me.
—Deixa-meveroovoquenãoquerrebentar!—pediuavelha.—Podescrer
que é um ovo de peru! Também fui enganada uma vez e tive muitos
aborrecimentos com osmeus filhotes, pois, devo dizer-te, ficaram commedo da
água!Nãoconseguilevá-losatélá!Eugrasneiedei-lhesbicadas,masnãoserviude
nada!…Deixa-meveroovo!Érealmenteumovodeperu!Deixa-oficaraíeensina
osoutrosfilhotesanadar!
—Quero ainda chocá-lo umbocado!Estive deitada tanto tempoque nãome
custanadadescontarumpoucodomeulazer!
—Comoquiseres!—afirmouavelhapata,efoi-seembora.Finalmenteoovo
granderebentou.
—Pi!Pi!—disseofilhote,deixando-setombarparafora.
Eratãograndeetãofeio!Apataolhouparaele:
— Mas é um patinho terrivelmente grande! — exclamou. — Nenhum dos
outrossepareceassim!Esperoquenãovenhaaserumperuzinho!
—Bem,embrevevamosver isso!Paraaáguateráde ir,nemqueeutenhade
arrastá-loàsbicadas!
No dia seguinte fazia um tempo maravilhoso. O Sol brilhava sobre todas as
bardanas verdes.Amãe dos patinhos, com toda a família, avançoupara baixo em
direçãoaocanal.Chape!,e saltouparaaágua.Vá!Vá!—disseela,eospatinhos
deixaram-secairunsatrásdosoutros.Ficaramcomacabeçadebaixodeágua,mas
vieram logo ao de cima e flutuaram deliciosamente. As pernas andavam por si
própriasetodosláestavam.Ofilhotefeioecinzentotambémnadava.
—Não, não é nenhum peru!— exclamou ela.—Vê comomexe tão bem as
pernas,comosemantémdireito!Émesmomeufilho!Nofundo,ébastantebonito,
quandoseobservabem!Vá!Vá!Venhamagoratodoscomigo.Voulevá-losparao
mundoeapresentá-losnopátiodospatos,masandemsempreaopédemim,para
queninguémospiseetenhammuitocuidadocomogato!
E entraram assim no pátio dos patos. Havia um barulho terrível lá dentro,
porque duas famílias lutavam pela posse de uma cabeça de enguia, mas,
aproveitandoaconfusão,foiomatreirodogatoqueaapanhou.
— Vejam como se passam as coisas no mundo!— disse a mãe dos patinhos,
lambendoobico,poistambémlheapeteciaacabeçadeenguia.—Mexamagoraas
pernas!—continuouela.—Vejamsepodemgrasnarefazerumacortesiacomo
pescoço diante daquela pata velha!É amais distinta de todas aqui.É de sangue
espanhol, portanto, é pesada. Vejam como tem um trapo vermelho em volta da
perna!Éalgodeextraordinariamentebeloeamaiordistinçãoqueumapatapode
receber. Significa muito, que não se querem desembaraçar dela e que deve ser
reconhecidaporanimaisehomens.Mexam-se!…Nãocomaspernasparadentro!
Umpatinhobem-criadopõeaspernasbemafastadasumadaoutracomoopaiea
mãe!Assim!Façamumacortesiacomacabeçaedigam:quá!
Eassimfizeram.Masasoutraspatasàvoltaolharamparaelesedisserambem
alto:
— Vejam! Vamos ter agora mais aquela ninhada! Como se não fôssemos já
bastantes!Hui!Queaspeto temaquelepatinho!Nãopodemos tolerar isso!—E
logoesvoaçaram,umapataatrásdaoutra,paraomordernanuca.
—Deixem-no!—disseamãe.—Nãofezmalnenhumaninguém!
—Sim,mas é demasiado grande e demasiado estranho!—disse a pata que o
mordeu.—Eporissotemdesertosado!
—Sãobonitososfilhotesqueamãetem!—disseapatavelhacomotrapona
perna.—Todosbonitos,excetoum,quenãoteveêxito!Gostariaqueelapudesse
refazê-lo!
—Nãoservedenada,VossaMercê!—disseamãedospatinhos.—Elenãoé
bonito,mas tem bom feitio e nada tão bem como qualquer um dos outros. Sim,
ouso mesmo dizer, um pouco melhor! Penso que vai tornar-se bonito e com o
tempoficarámaispequeno!Ficoudemasiadotemponoovoeporissonãorecebeua
formacorretanocorpo!—Epassou-lheobiconanucaalisando-lheaspenas.—
Alémdissoéumpato—disseela—,porissonãotemmuitaimportância!Confio
quevenhaaterboasforçasevaivencerdecerteza!
—Osoutrospatinhossãoengraçadinhos!—ripostouavelha.—Façamcomose
estivessememcasa,eseencontraremumacabeçadeenguia,podemtrazer-ma!
Sentiam-secomoseestivessememsuacasa.Masopobrepatinho,quesaíraem
último lugar do ovo e que tinha um aspeto tão feio, foimordido, tosado, e dele
escarneceram.Tantoaspatascomoasgalinhas.—Édemasiadogrande!—diziam
todos, e o peru, que nasceu com esporas e que julgava por isso ser imperador,
inchou todo como um barco de velas enfunadas, foi direito a ele e gorgolejou,
ficandotodovermelhonacabeça.Opobrepatinhonãosabiaondehaviademeter-
se.Estavamuitodesoladoporterassimumaspetotãofeioeservirdeescárniopara
todoopátiodospatos.
Assim se passou no primeiro dia e depois tornou-se cada vez pior. O pobre
patinho era perseguido por todos, até mesmo os irmãos eram maus para ele e
diziam sempre: — Se ao menos o gato te levasse, feia criatura! — E a mãe
acrescentava:—Quemmederaquefossesparalonge!—Easpatasmordiam-no,
asgalinhaspicavam-noea raparigaquedistribuíaa comidaaosanimaisdava-lhe
pontapés.
Entãoelevou-seevoouparaforadasebe.Ospassarinhosnosarbustosfugiram
espavoridos. «É porque sou feio!», pensou o patinho e fechou os olhos, mas
continuoua correr até chegar aograndepântanoondemoravamospatos-bravos.
Alificoutodaanoite.Estavamuitocansadoeaflito!
Demanhã,ospatos-bravoslevantaramvooeolharamparaonovocamarada.
—Dequeespécieéstu?—perguntarameles,eopatinhovoltou-separatodos
osladosesaudou-osomelhorquesabia.
—Éextraordinariamentefeio!—disseramospatos-bravos.—Masparanóséo
mesmo,desdequenãocasesnanossafamília!
Pobrezinho! Não pensava, de certeza, em casar-se. Pudesse apenas ter
autorizaçãoparasedeitarnosjuncosebeberumpoucodeáguadopântano!
Ali ficou durante dois dias inteiros. Então vieram dois gansos-bravos, dois
machos.Nãoforahámuitoquehaviamsaídodoovoeporissoeramtãoatrevidos.
—Ouve, camarada!— disseram eles.—Tu és tão feio, que até gosto de ti!
Queres vir connosco e ser avede arribação?Numoutropântanoháumaspatas-
bravasencantadoras,todasmeninas,quesabemdizer:quá!Estásemcondiçõesde
fazeratuafelicidade,tãofeioés!…
— Pum! Pum! — ouviu-se naquele momento, os dois gansos-bravos caíram
mortosnosjuncoseaáguatornou-severmelhadesangue.Pum!Pum!—voltoua
ouvir-se.Todoobandodegansos-bravosvooudosjuncos.Troouaindamaisuma
vez.Eraumagrandecaçada.Oscaçadoresestavamàvoltadopântano.Sim,alguns
encontravam-semesmosentadosnosramosdasárvoresqueseestendiamsobreos
juncos.Ofumoazul subiacomonuvensentreas árvores sombriase suspendia-se
sobre a água. Pelo lodo vieram os cães de caça, platch, platch. Juncos e canas
abanavamportodososlados.Eraterrívelparaopobrepatinho,quevirouacabeça
paraapôrdebaixodaasa eprecisamentenessemomentoapareceu juntodeleum
cãoterrivelmentegrande,comalínguapendendoforadabocaeosolhosabrilhar,
horríveis.Pôsofocinhomesmocontraopatinho,mostrouosdentesaguçadose…
platch,platch,lásefoisempegarnele.
—Deussejalouvado!—sussurrouopatinho.—Soutãofeioquenemmesmoo
cãoquermorder-me!
E assim ficou completamente quieto, enquanto as chumbadas sibilavam nos
juncoseestoiravamtiroapóstiro.
Sómaisparaofimdodiaéquesefezsilêncio,masopobrepatinhonãoousou
levantar-se.Esperoualgumashorasmais,antesdeolharàvoltaedepoisapressou-
se a sair do pântano o mais rápido que pôde. Havia vento forte e teve grandes
dificuldadesparasairdali.
Perto da noite chegou a uma pequena e pobre casa de camponeses. Era tão
miserávelqueelapróprianãosabiaparaqueladohaviadecair.Tantoassimqueera
melhorficardepé.Oventosibilavadetalmodoàvoltadopatinhoqueestetinhade
apoiar-se na cauda para o enfrentar e cada vez soprava com mais força. Então
observouqueaportatinhasaídodeumdosgonzoseficadosuspensaparaumdos
lados,permitindoqueelesepudesseintroduzirpelaabertura.Foioquefez.
Na casamorava uma velha senhora como seu gato e a sua galinha.O gato, a
quemelachamavaFilhinho, sabiacorcovaraespinhaebufar.Quandoseeriçava,
até fazia faísca, sendo então necessário passar-lhe a mão pelo pelo em sentido
contrário.Agalinhatinhaumaspernaspequenasmuitobaixaseporissosechamava
Franganinha PernaCurtinha. Punha bons ovos e a mulher gostava dela como se
fossesuafilha.
Demanhã,logoquesedeupelapresençadoestranhopatinho,ogatocomeçoua
corcovaraespinhaeagalinhaacacarejar.
—Queéisto?—disseavelhaolhandoàvolta,mas,comonãoviabem,julgou
queopatinhoeraumapatagordaqueseperdera.—Éumachado!—continuou.
—Agorapossoterovosdepata,senãoforumpato!Temosdeverisso!
E o patinho foi posto à experiência durante três semanas. Mas não apareceu
nenhum ovo. O gato, que era o senhor da casa, e a galinha, a senhora, diziam
sempre:
—Nós e omundo!— pois acreditavam que erammetades deste e a melhor
parte.Aopatinhoparecia-lhequesepodiateroutraopinião,masissonãosuportava
agalinha.
—Sabespôrovos?—perguntouela.
—Não.
—Bem,entãocalaobico!
Eogatodizia:
—Sabescorcovaraespinha,bufarefazerfaíscas?
—Não.
—Entãonãodevesteropiniõesquandofalagenterazoável!
Opatinhosentava-seaumcantoeficavadeprimido.Entãosucedeu-lhepensar
noarlivreenaluzdoSol.Ficoucomumtalanseiomaravilhosodeflutuarnaágua
que,porfim,nãopodiaaguentar.Tinhadedizê-loàgalinha.
—Quesepassacontigo?—perguntouela.—Nãotensnadaparafazer,porisso
tevêmessasfantasiasàcabeça!Põeovosoubufaqueassimtepassarão.
—Masétãobeloflutuarnaágua!—disseopatinho.—Tãobelopôracabeça
debaixodelaemergulharatéaofundo!
— Sim, é um grande prazer!— disse a galinha.— Ficaste bastante maluco!
Perguntaaogato—éomaisinteligentequeconheço—segostadeflutuarnaágua
oumergulharnela.Nãoquerofalardemim…Perguntamesmoànossadona,que
maisinteligentedoqueelanãohánomundo!Crêsquetemvontadedeflutuarna
águaoudepôracabeçadebaixodela?
—Nãomecompreendem—disseopatinho.
— Bem, se não te compreendemos, quem te compreenderá? Certamente não
pretendessermaisinteligentequeogatoeamulher,paranãofalardemim!Não
sejaspresunçoso,criança!EagradeceaoCriadorportudodebomquefezporti!
Não vieste para uma casa quente e não tens um ambiente onde podes aprender
alguma coisa?Tu és umdisparatado e não é divertido falar contigo!Acredita!É
parateubemquetedigoestascoisasdesagradáveiseénissoquesereconhecemos
verdadeirosamigos!Vêapenasseconseguespôrovoseaprendesabufarouafazer
faíscas!
—Creioquemevouembora,poressemundofora!—disseopatinho.
—Vaipois!—retorquiuagalinha.
Eopatinhofoi.Flutuounaágua,mergulhounela,masportodososanimaisfoi
desdenhado,pelasuafealdade.
Chegouentãoooutono.As folhasnosbosques ficaramamarelasecastanhas,o
ventopegounelas,detalmodoquedançavamàrodae láemcimanocéuparecia
fazerfrio.Asnuvenssuspendiam-sepesadas,carregadasdegranizoedegeadaena
sebe estava o corvo que gritava: ai!, ai!, transido de frio. Podia-se ficar
completamente enregelado só de pensar nisso.O pobre patinho, na verdade, não
passavanadabem.
Umatardinha,emquehouveumlindopôrdoSol,saiudasmoitasumbandode
aves grandes e belas. O patinho nunca vira nenhumas tão bonitas. Eram de um
brancobrilhante,compescoçoslongoseflexíveis.Eramcisnes.Lançaramumsom
estranhamentebonito,abriramasasaslargasebelasevoaramparaforadasregiões
frias, para terrasmais quentes, para os lagos abertos. Subiram alto, bem alto e o
patinho feio sentiu-semuito esquisito.Pôs-se a andar à voltana água comouma
roda,estendeuopescoçograndeparaoarnadireçãodeles,lançouumgritotãoalto
eestranhoqueelepróprioficoucommedo.Oh!Nãopodiaesquecerasbelasaves,
as aves felizes, e assim que as deixou de ver,mergulhou até ao fundo, e quando
voltou,estavacomoforadesi.Nãosabiacomosechamavamasaves,nemparaonde
voavam, mas ficou a gostar delas como nunca tinha gostado de alguém.Não as
invejavademodoalgum,poiscomopodiadesejarumatalbeleza!Jásecontentaria
sefossetoleradoentreospatos!…opobreanimalzinhofeio!
Eoinvernoficoutãofrio,tãofrio.Opatinhotinhadenadaràvoltanaáguapara
evitarqueestagelassecompletamente.Mascadanoitequepassavaoburacoemque
elenadava tornava-se cadavezvaispequeno.Geloude talmodoque até a crosta
estalava.Opatinhotinhadeestarsempreamexeraspernasparaqueaáguanãose
fechasse.Porfim,extenuado,paroueficoucompletamentecoladoaogelo.
Demanhã cedo passou um camponês. Viu-o e foi direito a ele. Bateu com o
tamanconogelopartindo-oempedaçoselevou-oparacasa,paraamulher.Voltou
depoisàvida.
Ascriançasqueriambrincarcomele,masopatinhojulgouquelhequeriamfazer
malefugiu,commedo,paradentrodamalgadoleite,detalformaqueestesalpicou
asparedesdacasa.Amulhergritoueagitouosbraçosnoar.Entãovooudalipara
dentroda selhaondeestavaamanteiga,depoisparadentrodobarrilda farinhae
seguidamente veio para cima.Ui! Como ele estava! E amulher gritava e corria
atrásdeleparalhebatercomatenazdofogão,eascriançascorriamatrásumada
outra atropelando-se para apanhar o patinho e riam e gritavam…Foi bomque a
portaestivesseaberta!Correuparafora,porentreosarbustos,paraaneverecém-
caída…eaíficou,comoqueentorpecido.
Mas seria demasiado triste contar todas as necessidades e misérias por que
passou, no inverno rigoroso… Estava no pântano, entre as canas, quando o Sol
começou a brilhar quente de novo. As cotovias cantavam… como era bela a
primavera.
Entãoergueuasasas,queseagitaramfortementecomonuncaantesacontecerae
elevaram-no comgrande impulso.E antesquedessepor isso, encontrou-senum
grande jardim onde as macieiras floriam, os lilases perfumavam o ar e se
suspendiamnos longos ramos verdes que acompanhavam as curvas serpenteantes
dos canais.Oh!Ali era tão belo, deuma frescura tão primaveril!Emesmo à sua
frentesurgiram,vindosdasmoitas, trêsbeloscisnesbrancos.Armavamaspenase
flutuavam tão levemente na água...O patinho reconheceu os belos animais e foi
tomadoporumaestranhatristeza.
—Vouvoarparajuntodeles,osanimaisreais!Picar-me-ãodemorteporqueeu,
que sou tão feio, ouso aproximar-medeles!Masque importa!Melhor sermorto
porelesdoqueserbicadopelaspatas,espicaçadopelasgalinhas,levarpontapésda
raparigaquetratadogalinheiroesofrerdesgraçasnoinverno!Voouparaaáguae
nadou ao encontro dos belos cisnes. Estes viram-no e nadaram ao seu encontro,
agitando as asas.—Vá,matem-me!— disse o pobre animal, curvando a cabeça
paraasuperfíciedaáguaàesperadamorte…masoqueviuelenaáguaclara?Viua
suaprópria imagem. Jánão eramais uma ave desajeitada, cinzento-escura, feia e
horrível.
Eraumcisne.
Nãotemimportâncianascernumpátiodepatos,sesefoichocadonumovode
cisne!
Sentiu-se recompensado pelas misérias e privações por que passara. Agora
apreciavaafelicidadeetodaabelezaquelhesorria…Eoscisnesgrandesnadavamà
suavoltaeacariciavam-nocomobico.
Chegaram criancinhas ao jardim, lançaram pão e trigo para a água e a mais
pequenagritou:
—Háumnovo!—Easoutrascriançasalegraram-secomisso.—Sim,chegou
umnovo!—Batiam palmas e dançavam à roda.Correram a buscar os pais, que
lançarampãoebolosàágua.Etodosdisseram:—Onovoéomaisbonitodetodos!
Tãojovemetãobelo!—Eoscisnesvelhoscurvaram-sereverenciando-o.
Sentiu-se entãomuito envergonhado e escondeu a cabeçadebaixoda asa.Não
sabiaoquefazer!Estavaextraordinariamentefeliz,masdemodoalgumorgulhoso,
poisumbomcoraçãonuncaficaorgulhoso!
Pensavacomoforaperseguidoeofendidoeouviaagoratodosdizeremqueeraa
maisbeladetodasasavesbelas.Oslilasescurvavamosramosparaaágua.Paraele.
O Sol brilhava tão quente e tão agradável! Então agitou as asas e esticou o seu
elegantepescoçoealegrou-sedetodoocoração:
—Tantafelicidadenuncasonhei,quandoeraopatinhofeio!
ODuendeemCasadoMerceeiro
Haviaumestudante,dosautênticos,quevivianumaágua-furtadaenadapossuía.
Haviaummerceeiro,dosautênticos,queviviaemváriasdivisõesepossuía todaa
casa.NelaseinstalaratambémumduendeporquerecebianasnoitesdeNatalum
bom prato de papas com um grande pedaço demanteiga nomeio. Bem podia o
merceeirooferecê-lo.Oduendeficavanaloja,porqueotinhaescolhidoetambém
eramuitoinstrutivo.
Uma noite o estudante entrou pela porta das traseiras para comprar velas e
queijo.Comonãotinhaninguémaquemmandar, foielepróprio.Recebeuoque
pretendia,pagou-oeomerceeiroeamulheracenaram-lhecomacabeçadizendo
«boa noite».A patroa era umamulher que sabia bemmais do que acenar com a
cabeça,tinhaodomdapalavra!Eoestudanteacenoutambém,masficoualiparado
no meio da leitura da folha de papel que embrulhava o queijo. Era uma folha
arrancada de um velho livro, que nãomerecia ser rasgado empedaços, um velho
livrocheiodepoesia.
—Háalimais—disseomerceeiro.—Deiaumavelhaalgunsgrãosdecafépor
ele.Sequerdar-meoitoxelins,podelevarorestodolivro.
—Obrigado—disseoestudante.—Dê-moemvezdoqueijo!Possocomersó
pão!Seriapecadorasgartodoesse livroempedaçosepedacinhos.Osenhoréum
excelente homem, um homem prático, mas de poesia não entende mais do que
aquelaselha.
Foi feio dizer aquilo, especialmente para a selha, mas o merceeiro riu e o
estudantetambém.Foiditoassimàlaiadebrincadeira.Porém,oduendeirritou-se
poralguémteraousadiadedizertalcoisaaummerceeiro,queeraproprietárioe
vendiaamelhormanteiga.
Quando se fez noite, a loja fechou e todos foram para a cama, à exceção do
estudante.Oduendeentrouelevoualínguasoltadapatroa,poisestanãoprecisava
delaquandodormia.E fossequal fosse o objetoondeoduendepusesse a língua,
este recebia voz e fala, podendo exprimir os seus pensamentos e sentimentos tão
bemcomoapatroa,cadaumnasuavez.Issoeraumacoisaboa,senãodesatariama
falartodosaomesmotempoeninguémseentendia.
Eoduendepôsalínguasoltanaselha,ondeestavamosjornaisvelhos.
—Érealmenteverdade—perguntouele—quenãosabeisoqueépoesia?
—Claroquesei—disseaselha.—Éalgoqueestánapartedebaixodosjornais
eérecortado!Creioquetenhomaispoesiadentrodemimdoqueoestudanteesou
apenasumasimplesselhanumamercearia.
Depois,oduendepôsalínguasoltanomoinhodecafé.Oh!,comofalava!Epô-
lanacubadamanteigaenacaixadodinheiro…todostinhamaopiniãodaselha.E
quandoasopiniõesestãodeacordocomamaioriatêmdeserrespeitadas.
—Agoravaiveroestudante!
Então, o duende subiu devagarinho as escadas da cozinha que davam para a
água-furtadaondeviviaoestudante.Havialuzládentro,oduendeespreitoupelo
buracoda fechaduraeviuqueesteestavaa lero livrorasgado.Havia tanta luz lá
dentro!Do livro saía um raio luminoso que se transformava num tronco, numa
árvorepossantequeseerguiabemaltoeestendiaamplamenteosseusramossobreo
estudante.Todasasfolhaseramfrescasecadafloreraumabelacabeçaderapariga.
Umas tinham os olhos escuros e faiscantes e outras azuis e maravilhosamente
claros. Cada fruto era uma estrela brilhante e ouvia-se um canto e umamúsica
extraordinariamentebelos!
Em tal magnificência nunca tinha pensado o duende, muito menos visto e
sentido.Eassimficounaspontasdospés,aespreitar,aespreitar,atéquea luzse
extinguiu. O estudante soprou o candeeiro e foi para a cama. O duendezinho
deixou-se ficar, pois ainda se ouvia aquele canto suave e belo.Era uma deleitosa
cançãoparaembalaroestudante,quesedeitarapararepousar.
—Éincomparável!—disseoduendezinho.—Nãoesperavaisto!…Creioque
vouficarcomoestudante!—Epensou,epensousensatamente,esuspirou:—O
estudantenãotempapas!—Efoi-seembora.Sim!Voltouparaomerceeiro.
Foibomtervoltado,poisaselhatinhagastoalínguasoltadapatroaapronunciar
tudooqueemsicontinhadeumlado.Agorajáestavacomaideiadesevirarpara
reproduziromesmodooutro lado,quandooduendechegouedevolveua língua
soltaàmulherdomerceeiro.Mastodaaloja,desdeacaixadodinheiroatéàlenha
emfeixes,foidaopiniãodaselhaeconsiderou-aemtãoaltograueconfioutanto
nelaque,quandodepoisomerceeiro,ànoite,liaa«CrónicadoTeatroedasArtes»
doseu«jornal»,acreditavaquetalleituravinhadaselha.
Masoduendezinhojánãoficavatranquilamentesentadoaescutarládoaltotoda
asabedoriaecompreensãoquevinhacádebaixo.Não!Logoquesaíaluzdaágua-
furtada, era como se os raios fossem fortes cabos de âncoraque opuxassempara
cimaetinhadepartirparairespreitarpeloburacodafechadura.Aímovia-oentão
agrandeza,quesentimosnomarrevoluteante,quandoDeuspassaemtempestade
sobre ele. E rompia em lágrimas, ele próprio não sabendo porque chorava, mas
havianaquelaslágrimasalgoabençoado!…Comodeviaserincomparavelmentebelo
estar sentado com o estudante sob aquela árvore.Mas isso não podia acontecer.
Contentava-secomoburacodafechadura.Aindaestavanocorredorfrio,quandoo
vento outonal soprou pelas frestas do sótão. Fazia tanto frio!Tanto frio!Mas o
duendezinhosóosentiaquandoaluzseapagavadentrodaágua-furtadaeossons
morriamperanteovento.Ui!Entãoregelavaearrastava-senovamenteparaoseu
cantinho.Comoeraconfortáveleagradável!…EquandovinhamaspapasdoNatal
comumgrandepedaçodemanteiga…ah!,sim!,entãoomerceeiroeraomelhorde
todos!
Nomeiodeumanoiteoduendeacordoucomumbarulhoterrívelnaspersianas
dasjanelas.Láfora,estavagenteabaterestrondosamentenelas.Oguarda-noturno
apitava porque havia um grande incêndio. Toda a rua estava iluminada pelas
chamas.Era ali em casa ou na do vizinho?Onde?Era um horror! Amulher do
merceeiroficoutãoperturbadaquetirouosbrincosdeourodasorelhasemeteu-os
naalgibeiraparaassimsalvaralgumacoisa.Omerceeirocorreuabuscarospapéis
decréditoeacriadaasuamantilhadeseda,quesetinhadadoaoluxodecomprar.
Todosqueriamsalvaromelhorquepossuíametambémoqueriaoduendezinho.
Empoucospulospôs-senocimodasescadaseentrounoquartodoestudante,que
estava per feitamente tranquilo, com as janelas abertas, a olhar para o fogo
assolando o pátio do vizinho da frente. O duendezinho agarrou no livro
maravilhoso que estava em cima da mesa, meteu-o no seu carapuço vermelho e
segurou-o com ambas asmãos.Omelhor tesouro da casa estava a salvo!Depois
raspou-seefoiparaotelhado,paracimadachaminé,eaísesentou,iluminadopelas
chamasdacasaaardermesmoemfrente,segurandocomambasasmãosocarapuço
vermelho, onde guardava o tesouro.Disse-lhe então o sentimento a quem ele, o
duende,naverdade,pertencia.
Masquandoofogoseextinguiueficoumaiscalmo…sim:
—Vou reparti-lo entre os dois!— exclamou.—Não posso abandonar assim
simplesmente o merceeiro, por causa das papas! E foi perfeitamente humano!…
Nós,osoutros,tambémvamosaomerceeiro.Porcausadaspapas.
OMontedasSílfides1
De um lado para o outro, nas fendas de uma velha árvore, corriam lagartos.
Entendiam-sebemunsaosoutros,poisfalavamalínguadoslagartos.
—Olha!Comorolaezunenovelhomontedassílfides!—disseum.—Eunão
consigofecharosolhosjáháduasnoitesporcausadobarulho.Bempodiater-me
deitadocomdoresdedentesporqueassimtambémnãodormia.
—Alguma coisa se está a passar lá em cima— disse um segundo lagarto.—
Colocaram o monte sobre quatro estacas vermelhas, para o arejarem
convenientemente,atéaocantodogalo,eassilfidezinhasaprenderamnovasdanças,
emformadesapateado.Algumacoisaseprepara.
— Sim, falei com uma minhoca do meu conhecimento — disse o terceiro
lagarto.—Vinhadiretamentedomonte,onde,noiteedia,tinharemexidonaterra.
Ouviuumagrande parte da azáfama, que ela não pode ver, o pobre animal,mas
colher informações e escutar, disso percebe ela.Esperam-se visitas nomonte das
sílfides, estranhos distintos, mas quem, não quis a minhoca dizer, ou então não
sabia.Atodosos lygtemænd2foiditoparafazeremumcortejodearchotes,comoé
vulgarmente chamado, e aprata eouro,quehá em farturanomonte, estão a ser
polidoseexpostosaoluar.
—Quemserão,portanto,osestranhos?—disseramtodosos lagartos.—Que
seráqueseestáapreparar?Ouvecomozumbe!Ouvecomozune!
Precisamentenessemomentoabriu-seomontedas sílfideseumavelha sílfide,
que não tinha costas, mas que fora, apesar disso, vestida muito decentemente,
chegou com passinhos pequenos. Era a velha governanta do rei das sílfides. Era
uma parente afastada da família do rei e tinha um coração de âmbar na testa.
Andava tão bem com as pernas! Tripe, tripe! Arre! Como ela sabia andar com
passinhos pequenos. E foi diretamente para baixo, para o pântano, falar com o
Natravn3.
— Está convidado para o monte das sílfides, esta noite— disse ela.—Mas
gostavaquenosfizesseograndeserviçodetomarcontadosconvites!Tornar-se-á
útil, porque não tem casa a convidar! Recebemos visitas altamente distintas,
feiticeirosquesãoimportantese,porisso,ovelhoreidassílfidesquerexibir-se!
—Quemvoueuconvidar?—perguntouoNatravn.
—Paraograndebailepodevir todoomundo,mesmooshumanos,desdeque
saibamfalaralto,emsonhos,oufazerumpoucodaquiloquedizrespeitoànossa
espécie.Masparaoprimeirofestimtemdehaverumaseleçãorigorosa.Queremos
terapenasosmaisdistintosdetodos.Discuticomoreidassílfides,porquesouda
opiniãodequenãodevemospermitirspøgelser4.OHavmand5easfilhastêmdeser
osprimeiros convidados.Nãogostamdevirpara a terra seca,mas cadaumdeles
teráumapedrahúmidaparasesentaroualgomelhore,assim,pensoquedestavez
nãovãodizerquenão.Todososvelhosfeiticeirosdeprimeiraclassecomcaudas,o
Åmand6 e os nisser7, podem ser convidados. Também penso que não podemos
deixarde ladooGravso8,oHelhest9eoKirkegrim10.Pertencem, na verdade, aos
eclesiásticos,quenãosãodonossopovo,massãoosseuscargos.Estãopróximosde
nós,emfamília,efazem-nosvisitasconstantes!
—Bra!—disseoNatravn,edepoispartiuavoarparairfazerosconvites.
As sílfides já dançavam no monte. Dançavam com véus de longos tecidos de
névoaeluar.Encantador,paraaquelesquegostamdogénero.Nomeiodomonte
dassílfides,asalagrandeestavabrilhantementedecorada.Ochãoforalavadocomo
brilho do luar e as paredes esfregadas com gordura de feiticeira, resplandecendo
comopétalasdetúlipas,emcontraluz.Acozinhaestavarecheadaderãsnoespeto,
peles de cobra com pequenos dedos de criança dentro e saladas de sementes de
cogumelosvenenosos.Focinhosmolhadosderatinhosecicuta,cervejada lavrade
Mosekone11, vinho brilhante de salitre das caves das covas.Tudomuito nutritivo.
Pregosferrugentosevidrosdejanelasdeigrejaspertenciamàsguloseimas.
Ovelhoreidassílfidesmandoupolirasuacoroadeourocomopódogizcom
queseescrevenaardósia,ogizdosalunosmaisespertos,eémuitodifícilparaorei
dassílfidesobteressepó!Noquartodedormirestavamsuspensascortinasfixadas
comvomitadodecobras.Sim,eraverdadeiramenteumzumbidoeumbramido!
—Agoratudovaiserdesinfetadocomfumodecrinadecavaloepelodeporco.
Creioquetenhocumpridobemomeudever—disseavelhasílfide.
—Docepai!—exclamouamaisjovemdasfilhas.—Possoagorasaberquemsão
asvisitasdistintas?
Claro!—disseele.—Bemtaspossorevelar!Duasdevós,minhasfilhas,têmde
sepreparar para o casamento.Duasque, certamente, casarão e partirão.O velho
Trold12, lá de cima, daNoruega, aqueleque vivena velhamontanhadeDovre e
temmuitospaláciosfeitosdeenormespedregulhosdegranitoeumaminadeouro,
que émelhor do que se crê, vai descer com os seus dois rapazes, que procuram
mulher. OTrold é um genuíno, velho e honesto norueguês, divertido e franco.
Conheço-o de tempos passados, quando bebemos juntos a tratar-nos por tu.Ele
esteveaquiembaixoparaarranjarmulher,que,entretanto,jámorreu.Erafilhados
reisdasescarpasdeMøen.Arranjouasuamulherdegiz13,comosecostumadizer!
Oh!ComotenhosaudadesdovelhoTroldnorueguês!Osrapazes,diz-se,devemser
unsjovensmalcriadoseirreverentes,maspodemosestaraserinjustos.Tornar-se-
ão,certamente,bons,quandoforemmaismaduros.Deveisservós,assimoespero,a
ensinar-lhesasboasmaneiras!
—Equandovêmeles?—perguntouumadasfilhas.
—Depende do vento e do tempo!— respondeu o rei das sílfides.—Viajam
economicamente!Vêmpara aquidenavio.EuqueriaquepassassempelaSuécia,
masovelhonãoseinclinaaindaparaesselado!Nãoacompanhaostempos,edisso
eunãogosto!
Nessemomento,chegaramdoislygtemændaospulos,ummaisdepressadoqueo
outro,que,porisso,chegouprimeiro.
—Vêmaí!Vêmaí!—gritarameles.
—Dai-meaminhacoroaedeixai-meficarnomeiodo luar!—disseoreidas
sílfides.
Asfilhaslevantaramosxaileslongoseinclinaram-se,numavénia,atéaochão.Ali
estavaovelhoTrolddeDovrecomacoroadeestalactitesdegeloepinhaspolidas.
Traziavestidaumapeledeursoecalçavabotasdetrenó.Osfilhos,pelocontrário,
vinham de pescoço descoberto e sem suspensórios, pois erammoços novos e de
força.
—É istoummonte?—perguntouomaisnovo, apontandoparaomontedas
sílfides.—Chama-seaisso,láemcima,naNoruega,umburaco.
—Rapazes!— disse o velho.—O buraco vai para dentro, omonte vai para
cima!Nãotêmolhosnacara?
Aúnicacoisaquenosadmiraaqui—disserameles—é,assimsemmaisnada,
podermoscompreenderalíngua.
—Não se façamde palermas!—disse o velho.—Podia pensar-se que vocês
aindanãoestãoamadurecidos.
E,depois,entraramnomontedassílfides,ondeestava,verdadeiramente,a fina
sociedade,ecomumaprecipitaçãotalquesejulgariaquetinhamsidoempurrados
pelovento.Equebonitasedelicadaseramas instalaçõesdestinadasa cadaum.A
gente domar estava sentada àmesa em grandes selhas de água.Diziam que era
comoestaremcasa.Todosguardavamosbonscostumesnasrefeições,comexceção
dosdoisjovenstroldenoruegueses.Puseramlogoospésnamesa.Julgavamquetudo
lhesficavabem.
—Ospésparaforadagamela—disseovelhoTrold.Obedeceram,masnãologo.
Antes, ainda fizeramcócegas comaspinhasque tinhamconsigonas algibeiras às
suasdamasdemesa.Depoistiraramasbotasparaficaremàvontadeederam-lhas
paraassegurarem.
Opaideles,ovelhoTrolddeDovre,eraverdadeiramentedeoutraestirpe.Falou
tão bem sobre os orgulhosos rochedos noruegueses e sobre as cascatas que se
precipitavam,brancasdeespumaecomestrondo,comoo trovãoe somdoórgão.
Contoudossalmões,quesaltavamcontraacorrente,enquantoaNøkken14tocava
na suaharpadeouro.Contoudasnoitesde invernobrilhantes,quandoosguizos
dos trenós soavam e os moços cor riam com tochas ardentes, ali, sobre o gelo
reluzente,tãotransparentequeospeixesseatemorizavamporbaixodosseuspés.
Sim!Sabiacontartãobemque,aoouvi-lo,seimaginavatudooqueeledizia.Era
comoseouvissemasserraçõesdemadeiraagirardeformaininterrupta,ouveros
rapazes e as raparigas a cantar canções e a dançar as danças deHallinge.Hurra!
Inesperadamente,ovelhoTrolddeuàvelhasílfideumagrandebeijoca,quefoium
perfeitobeijo,emboraelanãotomassepartenosatosdafamíliadoreidassílfides.
As silfidezinhas tiveram agora de dançar.Tanto demaneira simples como em
formadesapateadoeficava-lhesmuitobem.Depois,veioadançaartísticaoucomo
se diz: «Dar passos fora da dança.» Caramba! Como esticavam a perna! De tal
formaquenãosesabiaondeestavaoprincípioeondeestavaofim.Nãosesabiao
que era braço e o que era perna.Entre eles, era como se fossem aparas a voar, e
rodopiaramdetalmodoqueoHelhestsesentiumaletevedesairdamesa.
—Prrrr!—disse o velhoTrold.— Isto é uma loucura de pernas!Mas, para
alémdedançar,quesabemelasfazersenãoesticarpernasegerarredemoinhosde
vento?
—Éoquevaissaber!—respondeuoreidassílfides.Echamouamaisnovadas
filhas.Eratãodelgadaeclaracomooluar,amaisdelicadadetodasasirmãs.Meteu
umpauzinhobranconabocaedesapareceusimplesmente.Eraasuaarte.
MasovelhoTrolddissequenãogostariadeveressaartenasuamulheretambém
nãoacreditavaqueosseusrapazesviessemagostardisso.
Aoutrasabiaandaraoladodesiprópria,talcomosetivessesombra,esombraé
coisaqueostroldenãotêm.
A terceira era inteiramente de outro tipo. Tinha aprendido na cervejaria da
mulher do pântano como se faziam espetos nos pauzinhos de amieiro, com os
vermesdeSãoJoão.
— Será uma boa dona de casa!— disse o velhoTrold, saudando-a com uma
piscadeladeolhos,poisnãoqueriabeberdemais.
Veio então a quarta rapariga das sílfides.Tinha uma grande harpa de ouro, e
quandoelatocounaprimeiracorda,levantaramtodosapernaesquerda,porqueos
troldesãocanhotosdaspernas,equandoelatocouaoutracorda,tiveramtodosde
fazeroqueelaqueria.
—Umamulherperigosa!—afirmouovelhoTrold.
Entretanto,osdoisfilhossaíramdomonte,poisjáestavamaficarfartos.
—Quesabeapróximafilha?—perguntoudenovoovelhoTrold.
—Aprendiagostardosnoruegueses!—disseela.—Enuncameheidecasarse
nãopuderirparaaNoruega.
MasamaisnovadasirmãssegredouaovelhoTrold:
—É simplesmente porque ouviu, de uma canção norueguesa, que, quando o
mundo se afundar, apenas restarão os pedregulhos noruegueses, comomarcos e,
portanto,querficarláemcima,poistemmuitomedodeseafogar.
—Oh!Oh!—disseovelhoTrold.—Deixa-tedisso.Masoquesabeasétimae
última?
—Asextavemantesdasétima!—continuouoreidassílfides,quesabiacontar,
masasexta,emboaverdade,nãoqueriaaparecer.
—Euseiapenasdizeraverdade!—retorquiuela.—Ninguémgostademim.
Portanto,játenhosuficientesafazeresaprepararaminhamortalha.
Depoisveioasétimaeúltima.Equesabiaela?Elasabiacontarcontos.Tantos
quantosqueria.
—Aquiestãotodososmeuscincodedos?—disseovelhoTrold.—Sobrecada
umdeles,conta-meumconto.
Eamoçasílfidetomou-opelopulso.Eleriutanto,quequaseseescangalhava.E,
quandoelachegouaoanelar,rodeadoporumaneldeouro,odedoquaseadivinhou
queaquiloiriaacabaremnoivado.Disse-lheentãoovelhoTrold:
—Segurabemoque tensnamão.Elaé tua!—Atiquero,eupróprio,como
mulher!
E a moça sílfide respondeu que tinham ficado ainda por contar os contos do
Anelar(Guldbrand)edomínimo(PeerSpillemand)!
—Essesvamosouvi-losparaoinverno!—disseovelhoTrold.—Evamosouvir
odopinheiroedabétulaedospresentesdaHuldre15dogelosoante!Bem!Tensde
sertuacontá-los,poisissoninguémofaztãobemcomotu,láemcima!—Eentão
sentar-nos-emos na Sala de Pedra onde ardem aparas de pinheiro. Beberemos
hidromeldos cornosdeourodos velhos reisnoruegueses.ANøkken ofereceu-me
algunse,quandoláestivermos,viráoGarbo16fazerumavisitaecantarparatitodas
ascançõesdamoçadospastos.Vaiserdivertido!Osalmãosaltaráparadentrodas
cascatas e baterá contra as paredes de pedra,masnão conseguirá entrar!—Sim,
podescrer,ébomvivernaqueridaevelhaNoruega!Masondeestãoosrapazes?
Sim!Ondeestavameles?Corriamàvolta,noscampos,esopravamparaapagaras
luzesdoslygtemænd,quevinham,tãohonestamente,fazeroseucortejodetochas.
—Issoévagabundear!—disseovelhoTrold.—Agoraquearranjeiumamãe
paravocês,podemescolherumatia!
Masosrapazesdisseramquepreferiamcriaramizadesebeber.Decasar-se,não
tinhamvontadenenhuma!Eassimfizeramdiscursos,beberamepassaramatratar-
seportu.Equilibraramocoponasunhas,paramostrarquetinhambebidoatéao
fim. Tiraram depois os casacos e deitaram-se na mesa para dormir, não se
incomodando com isso. Mas o velhoTrold dançava na Sala Grande, com a sua
jovemnoivaetrocouasbotascomela,porqueissoémaisfinodoquetrocaranéis.
—Eisquecantaogalo!—disseavelhasílfide,quecuidavadacasa.—Agora
temosdefecharosferrolhosdasjanelasparaqueoSol,aoentrar,nãonosqueime!
Efechou-seomonte.
Láfora,corriamoslagartosparacimaeparabaixo,nasfendasdavelhaárvore.
Umdisseparaooutro:
—Oh!GosteitantodovelhoTroldnorueguês!
—Eugostomaisdosrapazes!—disseaminhoca.
Masvê-losnãopodia,opobreanimal!
Figurasfantásticasdaantigacrençapopularnórdica
1 - Elver-Sylfide. Seres em forma humana que atraem os homens para os
montes,pântanosebosques,cobiçandoassuasvidas.(Voltar)
2-Lygtemand. Seres luminosos em formahumana, que vivemnos pântanos e
terras húmidas. Fogo fátuo: labareda de hidrogénio fosforado, proveniente de
matériaanimalemdecomposição.(Voltar)
3-Natravn.Demónioesconjuradoepresoàterraporumaestaca.Esteespírito
excomungadoélibertadoàmeia-noitecomogrito«Solta-o»e,quandoretiradaa
estaca, o espírito voa na forma de um corvo, com um buraco na sua asa
esquerda.(Voltar)
4-Spøgelse.Fantasma.(Voltar)
5 - Havmand; Havfrue. Sereias (masculino e feminino) — seres em forma
humanaepeixe.Soberanosdomarquecobiçamasvidasdoshomens.(Voltar)
6-Åmand.Seresemformahumanaepeixe.Soberanosdosriosquecobiçamas
vidasdoshomens.(Voltar)
7 - Nisse. Duende — seres em forma humana de muito baixa estatura;
sedentáriosnasquintaseigrejasdoshomens—espíritoprotetorcontraodireitoà
alimentação(Dinamarca).(Voltar)
8-Gravso.Espíritodeporco,sepultadovivo,nasfundaçõesdasigrejas;serem
forma de porco, com olhos de fogo e pelos compridos— anuncia a morte dos
homens.(Voltar)
9-Helhest.Espíritodecavalo,sepultadovivo,atrásdasigrejas;sercomforma
de cavalo com três pernas, que, à noite, coxeia para a casa onde alguém vai
morrer.(Voltar)
10 - Kirkegrim. Espírito de animal sacrificado em cerimónia pagã. Ser com
formasfantásticasquediferemconformeaimaginação.(Voltar)
11 -Mosekone. Ser em forma de mulher, que vive no fundo do pântano. As
neblinas que pairam sobre lagos, pântanos e terras húmidas confirmam a sua
presençaeatividade.(Voltar)
12-Trold.Feiticeiro.(Voltar)
13-Mulher de giz. Jogo de palavras; um local:MøensKlint (escarpas de giz
branco)eumamulher:Mø(jovemdetezbranca).(Voltar)
14-Nøkke.Seremformahumanafemininaque,nosrios,atraiecobiçaavida
doshomenscomoseucantoemúsicadeharpa(Noruega).(Voltar)
15 -Huldre. Ser em forma humana feminina, que atrai e cobiça a vida dos
homensemviagem(Noruega).(Voltar)
16-Garbo.Duende— seres em formahumanadebaixa estatura; sedentários
nasquintaseigrejasdoshomens—espíritoprotetorcontraodireitoàalimentação
(Noruega).(Voltar)
Notasdetraduçãoerevisãoliteráriadotexto.
OPapílio1
O papílio queria ter uma namorada. Como era natural, queria arranjar uma
pequena e gentil flor. Olhou para elas. Cada uma estava sentada, sossegada e
discretanoseucaule,comoumameninadeveestarquandosenãoénoiva!Masaqui
havia tantas a escolher entre elas, que a escolha, para ele, se tornava uma
dificuldade. Era uma dificuldade que pareceu ao papílio não merecer a pena, e
assimvoouparaamargarida,queaestachamamosfrancesesdeMarguerite.Sabem
quepodeprofetizar,eé issoquefazquandoosnamorados lhecolhempétalapor
pétalae,porcadauma,fazemumaperguntaacercadoseuquerido:
— Do coração?… Com mágoa?… Gosta muito?… Um pouquinho?… Mesmo
nada?—ouqualquercoisaassim.
Cadapétalarespondenasualíngua.Opapíliotambémveioparaperguntar.Não
arrancouaspétalas,masbeijoucadaumadelas,comaideiadequesevaimaislonge
usandodegentileza.
—DoceMarguerite—disseele.—Soisasenhoramais inteligentedetodasas
flores!Percebeis dessa coisadeprofetizar!Dizei-me, vou ter esta ou aquela!Ou
quemvouter?Seosouber,possoimediatamentevoarparaelaepedir-lheamão!
Mas a Margarida nem lhe respondeu. Não podia admitir que lhe tivesse
chamado senhora, pois era ainda menina e, desta maneira, não se é senhora.
Perguntouumasegundavezeperguntouumaterceira,opapílio.
Comonãoconseguiuarrancarumaúnicapalavradela,achouquenãomereciaa
penavoltarafazerperguntasevoou,semdemora,afazerasuacorte.
Eranoprincípiodaprimavera.Os campos estavamcheiosde campânulas2.—
Sãomuitodelicadas—disseopapílio.—Encantadoras confirmantezinhas!Mas
umtantoverdinhas!—Ele,comotodososjovens,aspiravaamoçasmaismaduras.
Voou depois para as anémonas.Eram demasiado amargas; as violetas, demasiado
exaltadas; as tulipas, demasiado berrantes; as narcíseas, demasiado burguesas; as
flores de tília, demasiado pequenas e, ainda por cima, tinhamuma famíliamuito
grande;asfloresdamacieiraeramcomoasrosasquandoasolhava,masbrotavam
hojeetombavamamanhã, logoqueoventonelassoprava.Seriaumcasamentode
muito pouca dura, parecia-lhe. A flor da ervilha era a que mais lhe agradava,
vermelhaebranca,purae fina.Pertenciaàscaseiras,que têmboaaparênciae são
boasparaacozinha.Estavaquaseapedir-lheamão,masnessemomentoviu,por
ali,suspensa,umavagemdeervilhacomumaflormurchanaponta.
—Queméesta?—perguntouele.
—Aminhairmã—respondeuaflordaervilha.
—Ah!Sim!Éassimquevireisaparecer-vosmaistarde!
—Issoassustouopapílioevooudaliparalonge.Madressilvaspendiamsobreo
muro. Estava cheio destas meninas, de rosto comprido e amarelas de tez. Esse
géneronãolheagradou.Sim,masoquelheagradou,então?
Perguntai-lhe!
A primavera foi-se, o verão foi-se e assim chegou o outono; e ele estava na
mesma.
Eas flores vieramcomosmaisbonitos vestidos.Masdeque lhes servia?Aqui
nãoseencontravaadisposiçãofrescaeoperfumedajuventude.Aoperfumeaspira
precisamenteocoração,comaidade,eperfumenãohá,especialmentenasdáliase
nasrosasmalvas.Assimprocurouopapílio,embaixo,ahortelã-pimenta.
—Nãotemmesmonenhumaflor,mastodaelaéumaflor,deitacheirodaraiz
aoalto.Temperfumedefloremcadapétala.Éestaquequero!
Masahortelã-pimentaficoutesaequieta.Porfim,disse:
—Apenasamizadeenadamais.Estouvelhaesoisvelho!Podemosmuitobem
viver umpara o outro,mas casar-nos… não!Não sejamos loucos, na nossa idade
avançada!
Eassimopapílionãoencontrounenhumanoiva.Procuroupormuito tempoe
issoécoisaquenãosedevefazer.Opapílioficousolteirão,comosecostumadizer.
Tardeeraagora,outono,comchuvaemautempo.Oventosoprava,frio,sobreas
costasdosvelhossalgueiros,fazendo-osranger.Nãoerabomandaravoarcáfora
com roupa de verão. Ainda se vai ser apanhado pelo amor, como se diz.Mas o
papílionãovoavaaoarlivrepoistinhavindo,poracaso,paradentrodeportas,onde
havia lumeno fogão de azulejos. Sim, estava quente comono verão.Podia viver.
Masvivernãoébastante—disseele.—Sol,liberdadeeumaflorzinhatemquese
ter!
Evoouparaumajanela.Foivisto,admiradoepostonumalfinetenumacaixade
curiosidades.Maisnãosepodiafazerporele.
—Agora estou tambémsentadono caule comoas flores—disseopapílio.—
Contudo,nãoénadaagradável!Écomoestarcasado.Está-sesentadoeamarrado!
—Eassimseconsolou.
—Éumamáconsolação!—disseramasfloresdovasoqueestavanasala.
—Masnasfloresdovasonãosepodeinteiramenteconfiar—foiaopiniãodo
papílio.—Lidamdemasiadocomoshomens!
1 - Espécie de borboleta do género de insetos lepidópteros, Sommerfuglen
borboleta emdinamarquês, émasculino, dando sentido ao conto.Manteve-se, na
tradução,osubstantivomasculino,deidênticosignificado,paramanteradistinção
doautor,entreosgéneros.(N.doT.)(Voltar)
2-Ecrocosnotexto,queseeliminouporseremmasculinos.(N.doT.)(Voltar)
AGotadeÁgua
Tu conheces, com certeza, uma lupa de aumentar, assim como uma lente
redondadeóculosquetornatudocemvezesmaiordoqueé?Quandosepeganelae
seapõediantedavistaeseobservaumagotadeáguadolago,veem-semilharesde
animaisestranhos,comonuncaseveemnaágua,masestão láe issoéreal.Parece
quasecomoumpratocheiodecamarões.Saltamunsentreosoutrosesãovorazes,
arrancam braços e pernas, pontas e bicos uns aos outros e assim estão alegres e
contentes,àsuamaneira.
Pois era uma vez um velho homem a quem toda a gente conhecia como
Comichão-Coceira,porqueeraassimquesechamava.Queriasempretiraromaior
proveitodequalquercoisa,equandonãooconseguia,obtinha-oporfeitiço.
Estava um dia sentado, segurando a sua lupa de aumentar diante dos olhos, a
observar umagota de águaque fora tirada de uma valeta.Oh!Que comichões e
coceirasaíhavia!Todososmilharesdeanimaizinhospulavamesaltavam,puxavam
unspelosoutrosecomiam-seunsaosoutros.
—Masistoéhorrível!—disseovelhoComichão-Coceira.—Nãoseconsegue
levá-losaviveremempazesossegoedeixaracadaumoqueéseu!—Epensou,e
pensou,masnãodavaresultado,eassimtevedefazerumfeitiço.—Tenhodelhes
darcorparaquesetornemmaisdistinguíveis!—disseele.Então,verteucomoque
umagotadevinhotintonagotadeágua,masqueerasanguedebruxa,domaisfino,
adois xelins.Eassim se tornaram todosos estranhos animais, rosados em todoo
corpo.Pareciaumacidadedeselvagensnus.
—Quetenstuaí?—perguntouumoutrofeiticeirovelhoquenãotinhanome,e
eraissoqueotornavafino.
—Seconseguiresadivinharoquê—disseoComichão-Coceira—,dar-to-eide
presente.Masnãoéfácildedescobrir,quandonãosesabe.
Eo feiticeiroquenão tinhanomeolhouatravésda lupadeaumentar.Parecia,
verdadeiramente, como se fosse toda uma cidade, onde os homens andavam sem
roupa!Erahorrívelmas aindamaishorrível, era ver como cadaumempurrava e
impeliaooutro,comosebeliscavameseagarravam,semordiamunsaosoutrosese
arrastavamunsaosoutros.Oqueestavaporbaixodetudotinhadeirparacimade
tudoeoqueestavaacimade tudo tinhade irparabaixode tudo!Vede!Vede!A
pernadeleémaiordoqueaminha!Baf!Foracomela!Estáaliumquetemuma
borbulhinhapordetrásdaorelha,umaborbulhinhainocente,mastortura-oeassim
aborbulhavaiatormentá-lomais!Ecortaramneleearrastaram-noecomeram-no
porcausadaborbulhinha.Estáalium,sentadotãosossegado,comoumadonzela,e
que só desejava paz e tranquilidade, mas a donzela teve de vir cá para fora e
puxaramporelaerasgaram-naecomeram-na!
—Éextraordinariamentedivertido!—disseofeiticeiro.
—Sim,mas que pensas tu que é?— perguntou oComichão-Coceira.—És
capazdedescobrir?
—Ébemdever!—disseooutro.—ÉcomcertezaCopenhagaououtragrande
cidade,sãoparecidastodasumascomasoutras.Éumagrandecidade!
—Éáguadocharco!—respondeuoComichão-Coceira.
AsVelas
Eraumagrandeveladeceraquesabiaexatamenteoquevalia.
—Nasciemceraevazadaemmolde!—disseela.—Euiluminomelhoreardo
pormais tempodoque todas as outras velas.Omeu lugar énum lustre ounum
candelabro!
—Deveserumalindaexistência!—disseaveladesebo.—Eusousódesebo,só
veladeimersão,masconsolo-mecomofactodequeésempreumpoucomelhordo
que um mero pavio que é mergulhado apenas duas vezes, enquanto eu sou
mergulhada oito vezes para obter aminha espessura decente.Estou satisfeita!É
certamentemaisfinoefica-sefelizporternascidodeceraenãodesebo,mas,neste
mundo,ninguémescolheasuaprópriacondição.Vocêvemparaasalaparaolustre.
Eu ficonacozinha,que tambéméumbom lugar.Daívemacomidapara todaa
casa!
—Mas existe algoque émais importantedoque a comida!—disse a velade
cera:—A sociedade!Brilhampara ver, e elesprópriosbrilham.Hoje ànoite,há
baile,embrevevirãobuscar-nos.Amimetodaaminhafamília.
Malistofoidito,todasasvelasdeceraforamlevadas,etambémaveladesebofoi
comelas.Adonadacasatomou-anasuamãofinaelevou-aparaacozinha.
Aliestavaumpobrerapazcomumcesto,queseencheudebatatasetambémum
pardemaçãs.Tudoistodeuaboadamaaorapazinho.
—Aítenstambémumavela,meupequenoamigo!—disseela.—Atuamãeestá
sentadapelanoitedentroatrabalhar,podeprecisardela!
Afilhapequenadacasaestavaalipróximo,equandoouviuaspalavras«pelanoite
dentro»,dissecomíntimaalegria:
— Ficarei levantada também pela noite dentro! Teremos um baile e eu irei
receberosgrandeslaçosvermelhos!
Comolhebrilhavaorosto!Eraumaalegria!Nenhumaveladecerapodebrilhar
comodoisolhosdecriança!
«É abençoado ver!», pensou a vela de sebo, «nunca o esquecerei, e isto
certamentequenuncamaisverei!»
Eentãoavelaviuocestotapar-secomatampaeorapazfoi-seemboracomela.
«Para onde vou agora!», pensou a vela, «irei para gente pobre, não terei nem
mesmoumcastiçaldelatão,masaveladeceraécolocadaemprataevêagentemais
fina.Comodeveserbonitoluzirparaagentefina!Éomeudestinoserdeseboe
nãodecera!»
Eavelaveioparaagentepobre.Umaviúvacomtrêsfilhosnumacasabaixinha,
mesmoemfrentedacasarica.
—QueDeus abençoe a boa senhora, por aquilo que nos ofereceu!—disse a
mãe.—Éumavelamaravilhosa!Podebrilharpelanoitefora.
E acendeu-se a vela.—Pff!—Ui!—disse esta.—Mas foi comumpau de
enxofre a cheirarmalque elame acendeu!Tal coisanão se faz comumavelade
cera,nacasarica.
Elá,nacasarica,tambémseacenderamoscandeeirosquebrilhavamparaarua.
Láfora,ascarruagenschegavam,trazendoosvisitantes,aperaltadosparaobaile.A
músicatocava.
—Agoracomeçamelesdooutrolado!—apercebeu-seaveladesebo.Epensou
norostoradiantedapequenameninarica,maisbrilhantedoquetodasasvelasde
cera.—Estavisãonãoavereinuncamais!
Veio então amais pequena das crianças na casa pobre.Era uma rapariguinha.
Lançou os braços à volta do pescoço do irmão e da irmã. Tinha algo muito
importanteacontar.Tinhadeseremsegredo.
— Vamos ter hoje à noite— imaginem!— Vamos ter hoje à noite, batatas
quentes!
E o seu rosto brilhava de felicidade. A luz brilhava mesmo dentro dela, uma
alegria,umafelicidadetãograndecomonacasarica,ondeameninatinhadito:—
Vamosterbaileestanoiteeeuvoureceberosgrandeslaçosvermelhos.
«Terbatatasquenteséassimtanto?»,pensouavela.«Háumatãograndealegria
nospequenos!»Eespirrou,querdizer, crepitou,porquemaisnão consegueuma
veladesebofazer.
Amesa foi posta e as batatas foram comidas. Oh! Como souberam bem! Foi
realmente uma refeição festiva, e, ainda por cima, cada um teve uma maçã. A
criançamaispequenarecitouumpequenoverso:
TubomDeus,muitotetenhoaagradecer,queumavezmaismetenhasdadodecomer!
Ámen.
—Nãofoibemdito,mãe?—exclamouapequenina.
—Issonãodevesperguntaroudizer!—disseamãe.—Devespensarsónobom
Deus,quetedeudecomer!
Os pequenos foram para a cama, receberam um beijo e adormeceram
imediatamente, Amãe ficou a coser até noite adiante para ganhar a subsistência
paraeleseparasi.Eemfrente,nacasarica,brilhavamluzesesoavaamúsica.As
estrelas brilhavam sobre todas as casas, as dos ricos e as dos pobres, igualmente
claras,igualmenteabençoadas.
—Foi,nofundo,umanoiteagradável!—segundoaopiniãodaveladesebo.—
Tiveram-namelhorasvelasdeceranoscastiçaisdeprata?Gostariabemdesaber,
antesdeardercompletamente!
Epensounasduascriançasigualmentefelizes,umailuminadapelaveladecerae
aoutraporumaveladesebo!
Sim,étodaahistória!
OElfodaRosa
Nomeiodeumjardimcresciaumaroseirarecheadaderosasenumadelasvivia
umelfo.Era tão pequeninoquenenhuns olhoshumanos o podiamver.Atrás de
cada pétala tinha um quarto de dormir. Era tão bem constituído e bonito como
qualquercriançaopodeseretinhaasasdosombrosmesmoatéaospés.Oh!Que
perfume havia nos seus aposentos e como as paredes eram claras e bonitas!
Naturalmente,poisasparedeseramfeitasdepétalasfinasdecorvermelho-pálido.
Todoodia,oelfosedivertiunaluzquentedoSol.Vooudefloremflor,dançou
nas asas da borboleta esvoaçante e mediu quantos passos tinha de andar para
percorrertodasasestradaseatalhosquehavianumafolhadetília.Eraaquiloaque
chamamososveiosdafolha,queeleconsideravacomoestradaseatalhos.Sim,era
umcaminhareternoparaele!Aindanãotinhaterminadoasuatarefa,quandooSol
sepôs.Tambémnãohaviacomeçadomuitocedo!
Faziamuitofrio.Tombavaoorvalhoeoventosoprava.Eramelhorvoltarpara
casa. Apressou-se tanto quanto pôde, mas, quando chegou, as rosas tinham-se
fechado.Nãopodiaentrar,poisnemumaúnicaestavaaberta.Nuncaantes ficara
fora, durante a noite e o pobre elfozinho assustou-se muito. Sempre dormira
docemente,resguardado,atrásdaspétalasderosa.
Oh!Seriacertamenteasuamorte!
No outro extremo do jardim, sabia que havia um caramanchão, com lindas
madressilvas. As flores pareciam grandes cornos pintados. Desceria numa delas,
paradormiratédemanhã.
Voouparalá.Psiu!
Lá dentro, encontravam-se dois seres humanos. Um belo jovem e uma bela
donzelaestavamsentados,muitojuntinhos,formulandodesejosdenunca,portoda
a eternidade, se separarem.Gostavam tanto um do outro,mais do que amelhor
criançapodegostardasuamãeedoseupai!
—Mastemosdenosseparar!—disseojovem!—Oteuirmãonãoébompara
nósepor issovaimandar-meemmissãopara longe,pormontes emares!Adeus,
minhadocenoiva,poisnoivaésparamim!
Beijaram-se e a donzela chorou e ofereceu-lhe uma rosa mas, antes de lha
entregar,deu-lheumbeijo,tãoforteesentidoqueaflorseabriu.Então,vendoa
rosa a abrir-se, o elfozinho voou para dentro dela e encostou a cabeça às finas
paredesodorosas.Masouviubemcomodiziamadeus,adeus!Esentiuquea rosa
tomava lugarnopeitodo jovem…Oh!Comobatiaocoraçãoaí!Oelfozinhomal
conseguiuadormecer,tantobatiaele!
A rosa não ficou muito tempo no peito do jovem. Enquanto ia pelo bosque
escuro,tirou-aparaforaebeijou-a.Oh!Foramtantasvezesetãofortementequeo
elfozinho quase ia morrendo esmagado. Podia sentir como ardiam os lábios do
jovemnaspétalasdarosaeestaabriu-secomosecostumaabrir,nocalordoSoldo
meio-dia.
Chegouentãoumoutrohomem, sombrio e irado.Erao irmãomaudabonita
donzela. Puxoupor uma faca bem afiada e grande e, enquanto o jovembeijava a
rosa, espetou-lha e cortou-lhe a cabeça.Enterrou-a, juntamente como corpona
terramacia,porbaixodatília.
«Agoraestáesquecidoe longe»,pensouo irmãomau.«Nãovoltamais.Numa
longa viagem,pormontes emares, podeperder-se facilmente a vida, eperdeu-a.
Nãovoltamaiseamimnãoousaaminhairmãperguntarporele.»
Então, comospés, cobriucomfolhas secas a terraescavadae,nanoite escura,
voltouparacasa.
Masnãofoisozinho,comoqueria.
O elfozinho estava com ele, sentado numa folha de tília seca e enrolada, que
tinhacaídonocabelodohomemmau,quandoabriuacova.Ohomemcolocouo
chapéunacabeçaeoelfoficouládentro,noescuro,atremerdemedoedeirapor
causadohorrívelfeitoquetinhapresenciado.
Às primeiras horas damanhã chegou o homemmau a casa.Tirou o chapéu e
entrou no quarto de dormir da irmã. Lá estava a donzela de beleza radiante,
deitada,asonharcomaqueledequemtantogostavaequeacreditavairpormontes
e por lagos. O irmãomau curvou-se sobre ela e riu terrivelmente, como só um
diabosaberir.Então,afolhasecacaiudocabeloparacimadacobertadacama,mas
elenãodeuporissoefoi-seemboraparairaindadormirumpouco,nessamanhã.O
elfosaiudafolhaseca,entrounoouvidodadonzelaadormecidaecontou-lhe,como
num sonho, o assassínio horrível. Descreveu-lhe o lugar onde o irmão o tinha
assassinado e enterrado; falou-lhe da tília em flor e disse-lhe:— Para que não
julguesqueéapenasumsonhoquetecontei,vaisencontrarumafolhasecanatua
cama!Eela,quandoacordou,encontrou-a.
Oh!Comochoroulágrimassalgadas!Aninguémpodiafalardasuador.Ajanela
ficou todoodia abertaeoelfozinhopodia facilmente sairparaas rosas eparaas
outras floresdo jardim,masnão tevecoragemdedeixara jovemaflita.Na janela
haviaumaárvore comrosasdomês.Sentou-senumadelas e ficouaolharpara a
pobre donzela. O seu irmão, que estava tão alegre e mau, veio muitas vezes ao
quarto, mas a jovem donzela não ousou dizer-lhe uma palavra sobre a grande
tristezaquetinhanocoração.
Assimquese feznoite,escapou-sedecasaedirigiu-seaobosque,parao lugar
ondeestavaatília.Afastouasfolhasdaterra,escavoueencontrouojovemmorto.
Oh!ComochorouepediuaDeusquetambémlhedesseamorte.
Bemqueria levar o cadáverpara casa,masnãoopodia fazer.Assim,pegouna
cabeçapálidacomosseusolhosfechadosebeijou-lheabocafria,tirando-lheaterra
dobelocabelo.—Queroguardá-laparamim!—disseela,edepoisdeterposto,de
novo,aterraeasfolhassobreocorpomorto,pegounacabeçaelevou-a,juntocom
umraminhodejasmim,queflorianobosque,ondeeletinhasidoassassinado.
Assim que entrou nos seus aposentos, pegou no maior vaso de flores que ali
havia,pôsacabeçadomortoládentro,comterraporcimaeplantouoraminhode
jasmim.
— Adeus! Adeus! — sussurrou o elfozinho. Já não podia suportar ver toda
aquela dor e voou para o jardim, para a sua rosa. Mas estava desfolhada,
suspendiam-seapenasalgumaspétalaspálidas,juntodabagaverde.
— Ai! Como é breve tudo o que é belo e bom!— suspirou o elfo. Por fim
encontrouumaoutrarosa,queficouaserasuacasa.Pôdeinstalar-sepordetrásdas
suaspétalasodorosas.
Todasasmanhãsvoavaparaajaneladapobremeninaeláestavaelasemprejunto
dovasode flores, a chorar.As lágrimas salgadas caíamno ramode jasmime,por
cadadiaquepassava,elaficavamaisemaispálidaeoramomaisfrescoeverde.Um
rebentocresciaatrásdooutro.Romperampequenosbotõesdefloreseelabeijou-
os.Maso irmãomauralhou-lheeperguntouseendoidecera.Nãopodiasuportar
nemcompreenderporqueéqueelachoravasempreemcimadovasodeflores.Não
sabia,naverdade,queolhosestavamalifechadosequelábiosrubrosalisetinham
tornadoterra.
Abeladonzelacurvouacabeçasobreovasodeflores,eaoelfozinho,ládarosa,
pareceu-lhe que estava a dormitar. Entrou-lhe no ouvido, falou-lhe da noite no
caramanchão,doperfumedasrosasedoamordoselfos.Elasonhoudocementee,
enquantosonhava,sumiu-se-lheavida.Estavamorta,deumamortecalma,estava
nocéucomaquelequeamara.
Osjasminsabriramassuasgrandescampânulasbrancas,quedeitavamumodor
tãomaravilhosamentesuave!Choravam,aseumodo,pelamorta.
Oirmãomauolhouparaobeloarbustoflorido.Apoderou-sedelecomoherança
ecolocou-onoseuquarto,juntoàcama,poiserabonitodesevereoperfumeera
muitosuaveedelicioso!Oelfozinhodarosaseguiu-o,voandodefloremflor.Em
cadaumadelasmoravaumapequenaalmaeaestascontou-lheseledojovemmorto,
cujacabeçaeraagoraterrasobreterra.Contou-lhesdoirmãomauedapobreirmã.
—Nóssabemos!—dissecadaumadasalmas,nasflores.
—Nóssabemos!Nãocrescemosnósdosolhosedoslábiosdoassassinado?Nós
sabemos!Nóssabemos!—Eassim,estranhamente,acenaramcomacabeça.
Oelfoda rosanãopodia compreenderporqueéqueas almaseramcapazesde
estartãocalmasevoouàprocuradeconsoloparajuntodasabelhas,quejuntavamo
mel,contando-lhesahistóriadoirmãomau.Asabelhas,porsuavez,contaramàsua
rainha,queordenouque,namanhãseguinte,todasfossemmataroassassino.
Porém, na noite anterior— era a primeira noite depois damorte da irmã—,
quandooirmãodormianasuacama,juntoaojasmimodoroso,abriu-secadacálice
easalmas, invisíveis,armadasde lançasvenenosas, saíramdas flores,entraramno
seu ouvido e contaram-lhe sonhos maus. Depois, voaram sobre os seus lábios e
espetaram-lhealínguacomaslançasvenenosas.
— Agora vingámos o morto!— disseram, e voltaram para trás, para as suas
campânulasbrancasdejasmim.
Quandosefezmanhã,ajaneladoquarto,deummomentoparaooutro,abriu-se
violentamente e, em fúria, o elfo da rosa, a rainha das abelhas e todo o enxame
entraramparaomatar.
Mas jáestavamorto.Haviagenteàvoltadacamaquedizia:—Operfumedo
jasmimmatou-o!
O elfo da rosa compreendeu a vingança das flores e contou-o à rainha das
abelhas.Nãosedeixandoafugentar,arainhazumbiucomtodooseuenxameem
redor do vaso das flores. Um homem levou o vaso para fora e uma das abelhas
picou-lhenamão.Deixoucairovasoeestequebrou-se.
Viramassimacaveirabrancaesouberamqueomortoqueestavanacamaeraum
assassino.
Arainhadasabelhaszuniunoarecantouavingançadasfloresedoelfodarosa.
Équepordetrásdamaispequenapétalamoraumelfoquepodecontarevingar
omal!
Éabsolutamentecerto!
Éumahistóriaterrível!—disseumagalinha,etudoissonumpontodacidade
ondeahistórianuncasetinhapassado.—Éumahistóriaterríveldecapoeira!Não
ouso dormir sozinha esta noite! É bom que sejamos muitas, todas, juntas no
poleiro!—Eentãocontou,ede talmodo,queaspenasse levantaramnasoutras
galinhaseogalodeixoucairacrista.Éabsolutamentecerto!
Mas comecemos pelo princípio, e isto deu-se noutro ponto da cidade, numa
capoeira.OSoldesceueasgalinhassubiramparaopoleiro.Umadelastinhapenas
brancas e pernas curtas, punhaos seus ovos regulamentados e era, comogalinha,
respeitáveldetodososmodos.Quandoveioparaopoleiro,afagou-secomobicoe
assimcaiu-lheumapeninha.
—Lávai!—disseela.—Quantomaismeafago,tantomaisbonitafico!—E
issofoiditoentãoemtomjovial,poiseraelaabrincalhonadeentreasgalinhas,se
bem,comosedisse,muitorespeitável.Edepoisdeixou-sedormir.
Àvoltaestavatudoescuro,galinhaaoladodegalinha,masaquelaqueestavamais
perto dela não dormia.Ouviu e fingiu que não ouviu, como se deve fazer neste
mundoparaseviveremboatranquilidade,masàoutravizinhatevededizê-lo:
—Ouvisteoquesedisse?Nãonomeioninguém,masháumagalinhaquequer
arrancaraspenasparaparecerbem!Seeufosseogalo,desprezava-a!
E diretamente por cima das galinhas estavam a coruja com o corujo e os
corujinhos. Têm ouvidos apurados na família. Ouviram todas as palavras que a
vizinhagalinhadisse.Rebolaramosolhoseacoruja-mãebateuasasas:
—Nãoestejamàescuta!Masouviramcomcertezaoquesedisse!
Ouvi-ocomasminhasprópriasorelhas emuito se temdeouvir antesdeestas
caírem!Háumadasgalinhasque,emtalgrau,esqueceucomosedevecomportar
umagalinha,queestáaarrancartodasaspenasepermitequeogaloavejaassim!
—Prenezgardeauxenfants!—disseocorujo-pai.—Nãoécoisaparacrianças
ouvirem.
— Quero, contudo, contá-lo à coruja vizinha, em frente. É uma coruja tão
estimadanavizinhança!—Elávoouamãe.
—Uh-uh!Uh-uh!—gritaramambasdiretamenteparabaixo,paraaspombas
nopombalvizinho.—Ouviram?Ouviram?Uh-uh!Háumagalinhaquearrancou
todasaspenasporcausadogalo!Estáamorrerdefrio,senãomorreujá,uh-uh!
—Onde?,onde?—arrulharamaspombas.
—Nopátiodovizinho!Vi-acomosmeusprópriosolhos!Équaseumahistória
imprópriaparacontar!Maséabsolutamentecerta!
—Cremos,cremosemcadapalavra!—disseramaspombasearrulharampara
baixo,paraacapoeira:—Háumagalinha,sim,algunsdizemmesmoqueháduas,
que arrancaram todas as penas para não parecerem como as outras, e chamarem
assimaatençãodogalo.Éumjogoarriscado,podeapanhar-seumaconstipaçãoe
morrer-secomfebre,emortasestãoambas!
—Acordem!Acordem!—cantouogaloevoouparaatrave,aindacomosolhos
ensonados,mascantou,mesmoassim:—Hátrêsgalinhasquemorreramdeamores
por um galo que lhes correspondeu! Arrancaram todas as penas!É uma história
desagradável,masnãoqueroguardá-la,façam-nacorrer!
—Façam-nacorrer!—chiaramosmorcegos,asgalinhascacarejarameosgalos
cantaram: — Façam-na correr! — E assim a história correu de capoeira para
capoeirae,porfim,voltouaolugardondetinhapartido.
— Há cinco galinhas — contava-se — que arrancaram todas as penas para
mostrarqual delas tinha emagrecidomais, porpenasde amorpelogalo, edepois
bicaram-seumasàsoutrasatésangraremecaíremmortas,paravergonhaedesonra
dafamília,egrandeprejuízododono!
Eagalinhaquetinhaperdidoapeninhasoltanãoreconheceu,naturalmente,a
suaprópriahistória.Comoeraumagalinharespeitável,disse:
—Desprezo essasgalinhas!Mashámuitasdessegénero!Dessas coisasnão se
deveguardarsegredoeeuvoufazercomqueahistóriavenhanojornalecorratodo
opaís.Éoqueestasgalinhasmerecemeasuafamíliatambém!
Eveionojornal.Foipublicadoeécerto,absolutamentecerto,queumapeninha
podebemtransformar-seemcincogalinhas.
IbeCristininha
Perto do rio Guden, dentro do bosque de Silkeborg, erguia-se uma encosta,
comoumagrandebarreira,aquechamavam«acolina»eporbaixodela,paraoeste,
havia— sim!, ainda há—uma casinha de camponeses demagras terras.A areia
mostrava-sebrilhantenoscamposesparsosdecenteioedecevada.Jálávãoalguns
anos. A gente que lámorava fazia a sua pequena lavoura e tinha, para isso, três
carneiros,umporcoedoisbois.
Resumindo,tinhaosuficienteparacomer,senossentimoscontentescomoque
temos. Sim, podiam também conseguir manter um par de cavalos, mas diziam,
como os outros camponeses de lá: «Os cavalos comem-se a si próprios!»— dão
despesapelobemquefazem.
Jeppe-Jænscultivavaasuapequenaquintaduranteoverãoe,noinverno,eraum
habilidoso tamanqueiro. Tinha um colaborador, um homem que sabia talhar os
tamancos de madeira, que eram tão fortes quanto leves e de bonita forma. Eles
talhavamtamancosecolhereseissodava-lhesosxelins.Nãosepodiaconsideraros
Jeppe-Jæns como gente demasiado pobre.O pequeno Ib, um rapazinho de sete
anos,aúnicacriançadacasa, sentava-seaolhar.Cortavaospedaçosdemadeirae
cortava-se também nos dedos. Um dia cortou dois pedaços de tal modo que
pareciam dois tamanquinhos. Deviam, disse ele, ser dados de presente a
Cristininha, que era a filhinha do barqueiro. Tão fina e tão bonita, como uma
fidalguinha.Tivesseelavestidoscosturadosesecomofidalguinhativessenascido,e
assim fosse educada, ninguém acreditaria que vivia na casa de turfas deurze, em
Seishede.Moravacomopai,queeraviúvoeganhavaavidaatransportarlenhado
bosque,nasuabarca,atéaosviveirosdeenguiasdeSilkeborg.Sim,muitasvezes,
mais longe. Mesmo até Randers. Não tinha ninguém que tomasse conta de
Cristininha, que era um anomais nova do que Ib, e assim o pai levava-a quase
semprecomelenabarca,entreurzesearandosvermelhos.Setinhadefazertodoo
caminhoatéRanders,CristininhaficavacomosJeppe-Jæns.
Ib eCristininha entendiam-sebemnasbrincadeiras e tambémnas travessuras.
Mexiamemtudoeescavavamnaterra.Umdiaaventuraram-seairsozinhosatéao
cimo da «colina» e penetraram no bosque.Uma vez acharam lá ovos de narceja.
Paraeles,foiumgrandeacontecimento.
IbnuncatinhaestadoemSeishede.Nuncahaviaandadodebarcapeloslagosaté
ao rioGuden,mas agora, convidadopelobarqueiro,quena vésperao levoupara
casa,issoiaacontecer.
De manhã cedinho, as duas crianças sentaram-se nos toros com que a barca
estava carregada e aí ficaram a comer pão e framboesas. O barqueiro e o seu
ajudanteimpeliramabarca,comvaras,porentreoslagos,paraacorrenteapressada
dorio.
Pareciam estar cercados pelo bosque e pelos juncos,mas sempre havia alguma
passagem, mesmo quando as árvores velhas se inclinavam completamente e os
carvalhosestendiamparaafrenteramosdescascados,comoseestivessemdemangas
arregaçadasequisessemmostrarosseusbraçosnodososenus.Velhosálamos,quea
corrente desprendera dos declives, seguravam-se pelas raízes ao solo e pareciam
pequenasilhascombosques.Líriosaquáticosembalavam-senaágua.Eraumabela
viagem!…Eassimchegaramaoviveirodasenguias,ondeaáguarugiaporentreas
comportas.Era,paraIbeCristininha,algoparaver!
Aindanãohavia aí nem fábricanem cidade.Existia apenas a velhaquinta e os
seushabitantesnãoerammuitos.Aquedadaáguaatravésdascomportaseograsnar
dospatosselvagenseram,então,osinaldemaiorvivacidade…Quandoa lenhafoi
descarregada,opaideCristininhacomprouummolhodeenguiaseumporquinho
abatido, que foram colocados num cesto, na popa da barca. Navegavam agora
contraacorrente,mashaviaventoe,aoergueravela,foitãobomdever.Comose
estivessemdoiscavalos,àfrente,apuxarabarca.
Quandochegarampertodeumlocalondehaviaapenasumcurtocaminhoatéà
casadoajudante,opaideCristininhadesembarcou, recomendouàs criançaspara
estaremsossegadaseteremcuidado.Nãodurou,porém,muitotempoessesossego.
Lembraram-sedeirverocestoondeestavamasenguiaseoporquinho.Acharam
engraçadolevantaroporquinho,mascomoambosqueriamagarrá-lo,deixaram-no
cairparadentrodeágua.Levou-oacorrenteefoiumterrívelacontecimento.
Ib saltou para terra e correu um bocado, depois veio tambémCristininha.—
Leva-me contigo!— gritou ela, e logo ficaram cercados pelos arbustos. Nunca
maisviramabarcaouorio.Correramaindaumbocado,depoisCristininhacaiue
começouachorar.Iblevantou-a.
—Vemcomigo!—disseele.—Acasaéaliadiante!—Masnãoera.Andarame
andaram sobre folhas murchas e ramos secos caídos, que estalavam sob os seus
pezinhos. Ouviram então forte gritaria. Ficaram quietos e puseram-se à escuta.
Gritouumaáguia.Eraumgritohorrível.Ficaramcompletamente aterrorizados,
masemfrentedeles,dentrodobosque,cresciamosmaislindosarandosemenormes
quantidades.Era demasiado convidativo para não avançar. Pararam e comeram e
ficaramtodosazuisnabocaenasfaces.Entãoouviu-senovamenteoutragritaria.
—Vamosapanharporcausadoporquinho!—disseCristininha.
—Vamos para aminha casa!— disse Ib.—É aqui no bosque!—E foram.
Chegaram a uma estrada. Mas para casa não os levou aquela. Fez-se escuro e
ficaram cheios de medo. O estranho silêncio, à volta, foi cortado pelos gritos
terríveisdograndebufooupor sonsdeoutras avesquenão conheciam.Por fim,
ficaram presos num arbusto. Cristininha chorou e Ib chorou e, depois de terem
choradoumtempo,deitaram-senafolhagemeadormeceram.
O Sol ia alto quando acordaram. Sentiam frio,mas ali em cima, por entre as
árvores,brilhavaoSolquepodiaaquecê-los.Dali,pensouIb,podiamveracasados
pais, no entanto, estavam, na verdade, longe dela e numa outra parte do bosque.
Gatinharamatéaoaltoechegaramaumdeclive,juntoaumlagotransparente.Os
peixesnadavamemcardume, iluminadospelos raiosdeSol.Era tão inesperadoo
queviam.Pertohaviaumaaveleiragrande,desetepés,cheiadeavelãs.Colheram,
partirametiraramosmiolosfinosquetinhamcomeçadoaformar-se…eentãoveio
ainda uma surpresa.Um susto.Dos arbustos apareceu umamulher velha e alta,
como rosto tão escuro e o cabelo brilhantementepreto!Obrancodos seu olhos
luziacomoluzemosdeummouro.Traziaumatrouxaàscostaseumpaunodoso
nasmãos.Eraumacigana.Ascriançasnãocompreenderamlogooquedizia.Eela
tirou trêsgrandes avelãsda algibeira edentrode cadaumadelas estavamasmais
belascoisasescondidas.Eramavelãsdedesejos,contouacigana.
Ibolhou-a.Eratãosimpática!Ganhoucoragemeperguntousepodiaficarcom
asavelãs.Amulherdeu-lhas.Depois,colheu,daaveleira,umaalgibeiracheiapara
si.
EIbeCristininhaolharam,comgrandesolhos,paraastrêsavelãsdosdesejos.
—Nestaavelãháumacarruagemcomcavalos?—perguntouIb.
—Háumacarruagemdeourocomcavalosdeouro!—disseamulher.
—Então dá-ma!— pediu Cristininha. E Ib deu-lha. Amulher meteu-lhe a
avelãnonódolençodopescoço.
—Enestanãohaveráumbonitolencinhodepescoço,comooqueaCristininha
tem?—perguntouIb.
—Hádezlenços!—disseamulher.—Hávestidosfinos,meiasechapéus!
— Então quero também esta! — disse Cristininha, e o pequeno Ib deu-lhe
tambémaquelaavelã.Aterceiraeraumaavelãpequenaepreta.
—Essapodestuter!—disseCristininha.—Étambémbonita.
—Eoquehádentrodela?—perguntouIb.
—Omelhordetudoparati!—respondeuacigana.
EIbagarroubemaavelã.Amulherprometeu levá-losparacasapelocaminho
certo.Masforam,naverdade,emdireçãocompletamenteopostaàquedeviamir.
Não!Nãoseculpeaciganadequererroubarascrianças,porcausadisso.
Nodensobosqueencontraramoguarda-florestalChræn.ConheciaIbe,graças
a ele, Ib e Cristininha puderam voltar para casa, onde estavam todos muito
preocupados.Obtiveramoperdão,sebemqueambosmerecessemumaboatareia,
primeiro porque deixaram cair o porquinho na água e depois porque se tinham
afastadodocaminho.
CristininhavoltouparaacharnecaeIbficounacasinhadobosque.Aprimeira
coisaquefez,ànoite,foitiraraavelãquecontinha«omelhordetudo».Pô-laentre
ovãoeaporta,eapertou-a.Aavelãestalou,masnãohavianenhummioloparaver.
Estavacheiacommorrãoouterraempó.Tinhabicho,comocostumadizer-se.
— Sim, bemme parecia amim!— disse Ib de si para si.—Como podia aí,
dentrodaavelãzinha,haverlugarparaomelhordetudo!Cristininhatambémnão
vaiternemvestidoschiquesnemcarruagemdeourocomassuasduasavelãs!
Eveiooinvernoeveiooanonovo.
Passaram-semuitosanos.IbandavaagoraaaprenderadoutrinacomoPastore
ele morava bem longe. Um dia, o barqueiro apareceu em casa dos pais de Ib e
contou que a Cristininha ia agora para fora ganhar o seu pão e que era uma
verdadeirafelicidadeparaelairparaacasadequemia.Irservirparacasadegente
tãoboa!Imaginem,genterica,dahospedaria,emHerning,paraooeste.Vaiajudar
a mãe e depois, quando for capaz de fazer tudo e tiver recebido a confirmação
cristã,ficarãocomela.
IbeCristininhadespediram-seumdooutro.Chamavam-lhes«osnamorados».
Eelamostrou-lheàdespedidaqueaindapossuíaasduasavelãsquereceberadele,
quando se perderam no bosque, e disse que no seu baú dos vestidos estavam
guardadosostamanquinhosqueele,quandorapazinho,talharae lheoferecera.E
assimsesepararam.
Ibtambémrecebeuaconfirmaçãocristã,masficouemcasadamãe,poiseraum
tamanqueirohábilecuidavabemdaterra,noverão.Amãesóotinhaaele,poiso
paijámorrera.
Sóraramente—eerapelocorreioouporalgumcamponês—sesabiamnotícias
deCristininha.Passavabememcasadagentericadahospedariaequandorecebeua
sua confirmação escreveu ao pai uma carta com saudações para Ib e para amãe
deste.Na carta falava tambémde seis novas camisas e num lindo vestidoque ela
receberadopatrãoedapatroa.Eramverdadeiramenteboasnotícias.
Na primavera seguinte, num belo dia, bateram à porta de Ib e damãe.Era o
barqueiro,comCristininha.Vinhaemvisitaporumdia.Haviaumaoportunidade
deviajarparaThem.Idaevolta.Elaaproveitara-a.Estavabela,comoumajovem
elegante, e tinha bons vestidos, bem feitos e que lhe ficavam bem. Ela estava
elegante e aperaltada e Ib envergava a velha roupa de todos os dias. Mal podia
articular uma palavra. Pegou-lhe na mão e agarrou-a com força. Sentia-se tão
contente,masnãoconseguiaabriraboca.Cristininhacomeçouafalar,beijandoIb
mesmonoslábios.
—Nãomereconheces?—disseela.Masmesmoquandoestavamsós,osdois,e
eleaindacontinuavaasegurar-lheamão,tudoquantopôdedizerfoiapenasisto:
—Tornaste-te uma senhora fina!E eupareço tão desmazelado!Como tenho
pensadoemti,Cristininha!Enosnossosvelhostempos!
Foramdebraçodadopela colina acima eolharampor cimado rioGuden, até
Seishede,comosseuscamposdeurze.MasIbnãodissenada.Contudo,quandose
separaram, era claro para ele que Cristininha tinha de vir a ser a sua mulher.
Chamavam-lhes,desdepequenos,«osnamorados».Parecia-lheagoraqueeramum
pardenoivos,sebemquenenhumdelestivessefaladonisso.
Só algumas horas ainda podiam estar juntos, pois ela tinha de voltar aThem,
onde, na manhã seguinte, cedo, a carruagem regressava ao oeste. O pai de
Cristininha e Ib acompanharam-na até Them. Estava um belo luar e, quando
chegaram, Ib ainda segurava a mão de Cristininha— não podia largá-la—, os
olhos dele eram bem claros, mas as palavras saíam-lhe poucas. Contudo, eram
palavrasvindasdocoração:
— Se não te habituares demasiado à boa vida — disse ele— e achares que
poderásvivercomigoemcasademinhamãe,entãoviremosasermaridoemulher!
…Maspodemosesperar!
— Sim, dêmo-nos tempo, Ib!— disse ela. E depois apertou-lhe a mão e ele
beijou-anaboca.—Confioemti,Ib!—disseCristininha.—Ecreioquegostode
ti!Masdeixa-mefalarcomotravesseiro!
Eassimsesepararam.IbdisseaobarqueiroqueeleeCristininhaestavammesmo
noivos e o barqueiro achou que estava a suceder o que sempre havia pensado.E
seguiu para casa com Ib e aí dormiu na cama com ele e não falaram mais do
noivado.
Passouumano.IbeCristininhatrocaramduascartas.«Fiéisatéàmorte»,estava
lá,comaassinatura.UmdiaentrouobarqueiroemcasadeIbe trazia saudações
paraele,deCristininha.Oquetinhamaisacontardisse-oumpoucolentamente,
era que Cristininha passava melhor que bem. Era agora uma bonita rapariga,
estimadaequerida.Ofilhodoestalajadeirotinhaestadoemcasa,devisita.Estava
colocado numa empresa grande em Copenhaga, num escritório. Agradou-se de
Cristininha e ela também o achou a seu gosto. Os pais não eram contra, mas
CristininhatinhalánocoraçãoqueIbpensavamuitonelae,assim,estavadecidida
arejeitarafelicidade,disseobarqueiro.
Ib não proferiu, ao princípio, uma palavra.Mas ficou branco como um pano.
Abanouumpoucoacabeçaedepoisdisse:
—Cristininhanãodeverejeitarafelicidade!
—Escreve-lheumaspalavras!—disseobarqueiro.
E Ib escreveu. Mas não conseguia verdadeiramente juntar as palavras como
queriaeriscou-as.Rasgouopapel…noentanto,demanhã,estavaumacartapronta
paraaCristininha.
Eaquiestá!
«Acartaqueescrevesteateupai,li-a.Vejoquepassasbemdetodasasformase
que ainda pode sermelhor!Responde ao teu coração,Cristininha!E pensa bem
paraoquevais,semequiseresamim.Ébempoucooquetenho.Nãopensesem
mimenoque sinto,mas pensano teupróprio bem!Amimnão estás ligadapor
qualquer promessa, e se no coração sentes que me prometeste alguma coisa,
liberto-tedela.Quetodaaalegriadomundosejacontigo,Cristininha!Deusterá
consoloparaomeucoração!Sempreteuamigodetodoocoração,Ib.»
AcartafoienviadaeCristininharecebeu-a.
PeloSãoMartinho,nopúlpitodaigrejadeSeishede,foianunciadoocasamento
deCristininhae,emCopenhaga,ondeestavaonoivo, também.Para lápartiuela
comapatroa,poisonoivo,pelassuasmuitasocupações,nãopodiavir,pormuito
tempo,àJutlândia.Cristininhaencontrou-se,conformefoicombinado,comopaie
como Ib,na aldeiadeFunder,porondepassava a estrada eque,para eles, erao
ponto de encontro mais próximo. Aí se despediram. Sobre estes acontecimentos
vieramadizer-sealgumaspalavras,masIbnãodissenenhuma.
Ficoumuitopensativo,disseavelhamãe.
Sim, ficou pensativo porque andavam-lhe na cabeça as três avelãs que ele,
quando criança, recebera da cigana e dera duas aCristininha.Eram as avelãs de
desejos.Nasdela,numahaviaumacarruagemcomcavalos,naoutra,osmaisbelos
vestidos.Batiacerto!TodoesseesplendortinhaelaagoralánaCopenhagadoRei!
Paraela iacumprir-seodesejo…!ParaIbhavianaavelãsópódeterranegro.«O
melhordetudo»paraele,disseraacigana.Sim,tambémiacumprir-se!Opónegro
deterraeraparaeleomelhor.Agoracompreendiaclaramenteoqueamulhertinha
queridodizer:naterranegra,numasepultura,era,paraele,omelhor!
E passaram anos… nãomuitos,mas parecem longos a Ib.Os velhos donos da
estalagemmorreram,umlogoaseguiraooutro.Todaafortuna,muitosmilhares
de táleres, herdou o filho. Sim, agoraCristininha bempodia ter a carruagem de
ouroevestidosmaravilhosos!
NosdoislongosanosqueseseguiramnãoveiocartadeCristininhaequandoo
pai recebeu uma, não era de nenhum modo escrita em bem-estar e em prazer.
PobreCristininha!Nemelanemomaridotinhamsabidomoderar-senariqueza.
Assim como veio, também foi, não havia bênção nela, pois eles próprios não a
tinhamquerido.
Eaurzefloriueaurzesecou.Anevetinharodopiadomuitosinvernossobrea
charneca de Seishede e sobre a colina onde Ib morava, abrigado. O Sol da
primaverabrilhoue,quandoIblançouoaradoàterra,esteembateunumseixoque
veiocomoumagrandelajenegraaodecima.QuandoIbpegounela,observouque
era ummetal e, onde o arado tinha raspado, ficara brilhante. Era uma pulseira
pesada e grande, de ouro dos tempos pagãos. A campa do gigante dos tempos
passadosforapostaadescobertoeassuaspreciosasjoiasencontradas.Ibmostrou-o
ao Pastor, que lhe disse ser realmente maravilhoso. Então, Ib dirigiu-se ao
governadordaprovíncia,quedeuainformaçãoparaCopenhagaeaconselhouIba
irelepróprioentregaropreciosoachado.
—Achastenaterraomelhorquepodiasachar!—disseogovernador.
—Omelhor!—pensouIb.—Omelhordetudoparamime…naterra!Entãoa
ciganatinharazãoquandodissequeeraomelhor!
IbviajoudevapordeAarhusatéàCopenhagareal.Eracomoumaviagemsobre
ooceanoparaele,quesótinhaandadonorioGuden.EIbchegouaCopenhaga.
Ovalordoouroachadofoi-lhepago.Eraumagrandesoma:seiscentostáleres.
AliandavanagrandeeintricadaCopenhagaoIbdobosquepertodeSeishede!
Foi precisamente na noite anterior ao dia em que queria voltar de barco para
Aarhusque seperdeunas ruas.Tomouumadireção completamentediferenteda
quequeriaeveiopelapontedeKnippelaChristianshavnemvezdeseguirparaa
muralha, juntoàportadooeste.Dirigiu-sebemparaooeste,masnãoparaonde
queriair.Nãoseviaumsernarua.Entãosurgiuumapequenitadeumacasapobre.
Ibfalou-lhedocaminhoqueprocurava.Elaestranhou,olhouparaeleecomeçoua
chorardesalmadamente.Entãofoiavezdeeleperguntaroqueelatinha.Nãodisse
nada, como se não tivesse percebido, e como estavam ambos debaixo de um
candeeirodarua,ea luzdestebrilhavanorostodela, ficoumuitoadmirado,pois
eraaCristininhavivazqueelevia,absolutamente,comodelaselembravadotempo
emqueamboseramcrianças.
Eentroucomapequenitanacasapobreepelaescadaestreitaegastaatéaocimo,
numpequenoquartodedesvão, sobotelhado.Haviaumarpesadoeopressivo lá
dentro. Nenhuma luz acesa. No canto, alguém suspirava e respirava com
dificuldade.Ibacendeuumfósforo.Eraamãedameninaquejazianacamapobre.
—
Possoajudá-laemalgumacoisa?—perguntouIb.—Ameninaencontrou-me,
maseu souestranhonacidade.Háalgumvizinhoouqualquerpessoaaquemeu
possachamar?…elevantou-lheacabeça.
EraaCristininhadeSeishede.
Durante anos em casa na Jutlândia o seu nome não fora pronunciado porque
teriaperturbadoospensamentostranquilosdeIbetambémnãoerabomoqueos
rumores e a verdade diziam, que o muito dinheiro que o marido recebera de
herançadospaisofizeraarroganteevil.Abandonaraolugarseguroeviajoumeio
anopor váriospaíses.Voltou a contrairdívidas e fezmuita asneira.A carruagem
ondeseguiainclinou-seatésevirar.Osmuitosalegresamigosdasuamesadiziam
quemereceraoque lhe sucedeu,pois vivera comoum louco!…Oseucadáver foi
encontradonocanaldojardimdopalácio.
Cristininhaandavacomamorteemsi.Oseufilhomaisnovoviveusóalgumas
semanas.Nascidonaabundânciaecriadonamiséria,jáestavanasepultura.Agoraia
sucederomesmoaCristininha,pois jaziamortalmentedoente, abandonadanum
quartomiserável.Poderiatê-losuportadonosanosdajuventude,emSeishede,mas
agora,acostumadaaomelhor, sentiamaisamiséria.Foiasuapequenita, também
Cristininha,quesofrianecessidadesefomecomoela,quelevouIbláacima.
—Tenhomedodemorreredeixarapobrecriança!—suspirou.—Quevaiser
dela?Emaisnãopôdedizer.
Ib acendeu um novo fósforo e encontrou um coto de vela, que ficou a arder,
iluminandooquartomiserável.
Olhou para a pequenita e pensou em Cristininha nos dias da infância. Por
Cristininha, podia fazer bem àquela criança que não conhecia. A moribunda
olhava-o, os olhos tornaram-se cada vezmaiores…!Reconheceu-o?Não o veio a
saberporquenenhumapalavradelaseouviu.
Eeranobosque,pertodorioGudenepertodeSeishede.Océuestavacinzento.
Asurzessemfloreastempestadesdooeste levaramasfolhasamarelasdobosque
paraorioeparaalémdacharneca,ondeestavaacasadeturfaverdeonde,agora,
gente estranha morava. Mas, abaixo da colina, bem ao abrigo das árvores altas,
estava a casinha caiada epintada.Ládentro,na sala, ardiamna lareira turfas dos
pântanos.EhavialuzdoSolqueirradiavaemdoisolhosdecriança.Otrinadoda
cotovia,naPrimavera,soavanafaladasuabocavermelhaesorridente.Haviavidae
alegria.ACristininhaestava lá.Sentadanos joelhosdeIb,queera,paraela,paie
mãe.Estavalonge,nossonhosdacriança,assimcomonossonhosdeIb.
Ibtinhaumacasaasseadaebonita.Eraumhomemabastado.Amãedapequenita
estavanocemitériodospobresdaCopenhagareal.
Ib tinha dinheiro na arca, diziam.O ouro do pó da terra.E tinha, claro está,
tambémaCristininha.
OAnjo
«Cadavezqueumacriançamorre,desceumanjodeDeusàTerra,toma-anos
braços, abre as grandes asas brancas, voa sobre todos os lugares de que a criança
gostou, e colhe toda umamão-cheia de flores, que leva aDeus, para aí florirem
aindamaisbonitasdoquenaTerra.ObomDeus apertade encontro ao coração
todasasflores,masàqueladequeElegostamaisdáumbeijo.Entãoestarecebevoz
epodecantarjuntamentenagrandebem-aventurança!»
Poisbem,tudoistocontavaumanjodeDeus,enquantolevavaumacriançapara
oCéu.Acriançaouvia-ocomonumsonho,enquanto iampassando sobre jardins
comlindasflores,elugaresonde,emvida,brincara.
—QuaisasfloresquevamoscolhereplantarnoCéu?—perguntouoanjo.
Aliestavaumaroseiraesguiaemagníficaquemãomalévolalhetinhaquebradoo
tronco, de modo que todos os ramos, cheios de botões grandes e meio abertos,
pendiam,murchosemvolta.
—Pobreplanta!—disseacriança.—Leva-aparaquepossaviraflorir láem
cima,juntodeDeus!Oanjocolheu-a,beijandoacriança,eestaentreabriuosolhos.
Colheramasadmiráveisfloresricas,mastomaramtambémodesprezadocravode
defuntoeoamor-perfeitoselvagem.
—Agora temos flores!—disse a criança, e o anjo assentiu comumacenode
cabeça,masnãovoaramaindaparaDeus.Eranoite,tudoestavatranquilo,ficaram
nagrande cidade, pairavamnumadas ruasmais estreitas, ondehaviamontões de
palha,cinzasedesperdícios.Tinhasidodiadedespejodelixo.Haviaaípedaçosde
pratos, fragmentos de estuque, trapos e velhas copas de chapéus, tudo oquenão
pareciabonito.
Oanjoapontou,nomeiodetodaestadesordem,paraalgunscacosdeumpotee
paraumtorrãoquetinhacaídodesteesemantinhajuntoàsraízesdeumagrande
flordocampo,murcha,quenãoserviaparanadae,porisso,tinhasidolançadapara
arua.
—Tomamosaquela!—disseoanjo.—Dir-te-eiporquêenquantovoamos.
Eassimvoarameoanjocontou:
«Aliembaixonaruaestreita,numacave,moravaumrapazinhopobreedoente.
Desde pequenino que estava sempre de cama. Quando se sentia melhor, podia
andardeumladoparaooutro,dentrodoquarto,amparadonasmuletas.Nosdias
deVerão, os raios de Sol penetravam, por umameia hora, na entrada da cave e,
quando o rapazinho se sentava aí, deixando que o Sol quente brilhasse em si,
olhando para o sangue rubro através dos dedos das mãos, que punha diante do
rosto,dizia:
—Hojeestiveláfora!
—Conheciaobosquenasuabelaverduraprimaveril,apenasporqueofilhodo
vizinholhetraziaoprimeiroramodefaiaqueeleseguravaporcimadasuacabeça,
sonhandoestarsobasfaias,ondeoSolbrilhavaeospássaroscantavam.Numdiade
Primavera, o rapaz do vizinho trouxe-lhe também flores do campo e entre estas
encontrava-se,poracaso,umacomraiz,quefoiplantadanumpoteecolocadana
janela,juntoàsuacama.Aflor,quefoiplantadacommãofeliz,cresceu,criounovos
rebentos e todos os anos dava as suas flores. Tornou-se o mais belo jardim do
rapazinhodoente, o seupequeno tesourona terra.Regava-o, tratava-o e cuidava
querecebessetodososraiosdeSol,atéaoúltimo,quepenetravampelajanelabaixa.
E a própria flor crescia nos seus sonhos, pois para ele floria, espalhando o seu
perfumeealegrando-lheavista.Paraelasevolveunamorte,quandoNossoSenhor
ochamou…Fazagoraumanoqueestá juntodeDeus.Tambémumanoestevea
floresquecidanajanela,murchae,portanto,nodiadodespejodolixo,foilançada
paraarua.Éessaflor,apobreflormurcha,quetomámosparaonossoramo,pois
essaflordeumaisalegriadoqueaflormaisrica,numjardimdeumarainha!
—Mascomosabestudoisso?—perguntouacriançaaoanjoquealevavaparao
Céu.
—Sei-o!—disseoanjo.—Eraeupróprioorapazinhodoentequeandavade
muletas!Conheçobemaminhaflor!
Eacriançaabriucompletamenteosolhoseolhouparaorostobeloejubilosodo
anjo. Nesse momento, estavam no Céu de Deus, onde havia júbilo e bem-
aventurança.EDeusapertoua criançadeencontroaocoração,que logo recebeu
asas,comoooutroanjoecomelevoou,demãosdadas.Então,Deusabraçoutodas
as flores contra o coração mas, à pobre flor do campo, murcha, beijou-a e ela
recebeuvozecantoucomtodososanjosquepairavamàvoltadeDeus,algunsbem
perto,outrosàvoltadestes,emgrandescírculos,maisemaislonge,noinfinito,mas
todos igualmente felizes. Todos cantavam, pequenos e grandes, crianças
abençoadas,assimcomoapobreflordocampo,quejazeramurcha,lançadaaolixo,
nadesordemdodiadedespejo,naruaestreitaesombria.
OsDiasdaSemana
Certavez,osDiasdaSemanadecidiramquetambémtinhamdireitoadivertir-
se.Andavamtãoocupadosdurantetodososdiasdoano,quenãoencontravamum
disponível,parasejuntaremefazeremumafesta.Precisavamdedescobrirumque
fosseextra.Nofimdecadaquatroanoshaviasempreodiaintercalarquesepõeno
fim de fevereiro, para trazer ordem à contagem do tempo. Foi nesse dia que
decidiramfazerasuafesta.
Juntar-se-iamentão,nessadata, e como fevereiroéomêsdoCarnaval, viriam
mascaradossegundoavontadeedisposiçãodecadaum.Comeriambem,beberiam
bem, discursariam e diriam uns aos outros coisas agradáveis e desagradáveis, em
camaradagem e sem cerimónias. Os guerreiros dos velhos tempos, durante as
refeições,tinhamohábitodelançaràcabeçaunsdosoutrososossosroídos,masos
Dias da Semana haviam de fazer o contrário. Cumular-se-iam com petiscos de
trocadilhos e ditos sujos, como os que ocorrem nas inocentes brincadeiras
carnavalescas.
Finalmente,chegouodesejadodiaintercalarefoimascaradosdaseguinteforma
quesereuniram.
ODiadeDomingo,presidentedosdiasdasemana,apresentou-secomumacapa
desedapreta.AspessoasreligiosasacreditaramqueestavavestidodePastorparair
àigreja.Asgentesdomundoviramquetambémtraziaumdominóparasedivertir
e que o cravo que flamejava na casa do botão da capa era a pequena lanterna
vermelhadoteatroqueanunciava:estátudoesgotado,trataiagoradevosdivertir!
O Dia de Segunda-Feira, um jovem da família do Dia de Domingo e
especialmentedadoaosprazeres, seguiu-o.Tinhaabandonadoaoficinaquandoa
paradadaguardadesfilavapelarua.
—Vinhama tocar amúsicadeOffenbach,quenãome sobeà cabeçanemme
toca o coração, mas faz-me cócegas nos músculos das pernas. Tenho de dançar,
armarsarilhoeficarcomumolhoazul,paradepoisirdormirevoltaraotrabalho
nodiaseguinte.Souo«luanova»dasemana.
ODiadeTerça-Feira:DiadoTouro1,queéodiadaforça.
—Sim,soueu!—disseoDiadeTerça-Feira.—Vouparaotrabalho,abroas
asasdeMercúrionasbotasdomercador e voupelas fábricaspara ver se as rodas
estãountadasegirambem.Façocomqueoalfaiatesesenteàmesaeocalceteiro
nas pedras da calçada.Cada um com a sua tarefa!Deito o olho a tudo. Por isso,
venhoemuniformedepolíciaechamo-meoTerça-FeiraPolícia(politirsdag).Seé
ummautrocadilho,trataidemearranjaroutroquesejamelhor!
— Agora venho eu! — disse o Dia de Quarta-Feira. — Estou no meio da
semana.Osalemães chamam-meoSr.Mittwoch2.Estoucomoocaixeirona sua
loja.Comoumaflor,nomeiodosoutroshonradosDiasdaSemana!Senospomos
emmarcha,tenhoentãotrêsdiasàminhafrenteetrêsdiasatrásdemim.Écomo
umaguardadehonra.EstouemcrerquesouoDiadaSemanamaisconsiderado!
ODiadeQuinta-Feiraveiovestidodecaldeireiro,munidodemarteloecaldeira
decobre.Eramosseusatributosdenobreza.
—Eusoudomaisaltonascimento!—disseele.—Pagão,divino!Nospaísesdo
NortesoudenominadosegundoTor3enospaísesdoSulsegundoJúpiter,porque
ambosentendemdetrovõeseraios.Ficounafamília!
Ebateunacaldeiradecobre,mostrandooseualtonascimento.
ODiadeSexta-Feira estava vestido comouma rapariga e chamava-seFreia4,
paraserdiferentedeVénus.Dependiadoshábitoslinguísticosdospaísesemquese
apresentava.
Tinha,de resto,umcaráter tranquilo e suave,mashoje estava atrevida e livre.
Eraodiaintercalareessediadáaliberdadeàmulherpara,conformeovelhouso,
serelaapediramãoenãoesperarquelhapeçam.
ODiadeSábadoapresentou-secomoumavelhadonadecasa, comvassourae
outrosartigosdelimpeza.Oseupratofavoritoeraasopadepãocozidoemcerveja.
Nestaocasiãofestiva,asopadeviaserpostanamesaparatodos,contudo,exigiaque
apenaselaativesse.Eteve-a.
AssimsesentaramosDiasdaSemana,reunidosàvoltadamesa.
Eaquiestãodesenhadostodosossetediasdasemana,comosefossemumquadro
vivo, no convívio de família. Podem ser representados tão divertidos como se
desejar.Damo-los aqui apenas como uma brincadeira em fevereiro, o únicomês
quetemumdiaaacrescentar.
1-EmdinamarquêsTirsdag,Tyr—touro.(N.doT.)(Voltar)
2-Mitte—meio.Woche—semana.(N.doT.)(Voltar)
3-EmdinamarquêsTorsdagdodeusTor.(N.doT.)(Voltar)
4-EmdinamarquêsFredagdadeusaFreia.(N.doT.)(Voltar)
OJardineiroeoSenhor
Aumamilhadedistânciada capitalhaviaumvelho solar comgrossasparedes,
torreseempenasentalhadas.
Nelevivia,apenasnaalturadoverão,umafamílianobreerica.Possuíamuitos
solares.Aquele,porém,eraomaisricoeomaisbonitodetodos.Porforaeracomo
sefossenovoe,pordentro,tinhatodooconfortoetodasascomodidades.Obrasão
dafamíliaexibia-se,esculpido,juntoaoportão.Nobalcãodajaneladesacadaeem
redor das armas do brasão enroscavam-se magníficas rosas. Em frente da casa
estendia-se um grande tapete de relva. Também se podiam ver espinheiros
vermelhosebrancoseoutrasfloresraras,eoutrasqueseencontravamnasestufas.
Oproprietáriodosolartinhaumjardineirotãocompetentequedavaprazerver
ojardim,opomareahorta.Umpoucomaisacimahaviaaindaarbustos,aparadose
combinados de modo a formarem coroas e pirâmides. Eram os restos do antigo
domíniosenhorial.Pordetrásdosarbustoserguiam-seduasgrandesárvores,muito
antigas.Estavamquase sempre sem folhas e, ao vê-las, pensava-sequeumvento
tempestuosoouumatromba-d’águaashaviacobertodegrandestorrões,mascada
umdessestorrõesera,nemmaisnemmenos,umninho.Nessasárvoresmoravam,
desde tempos imemoriais, um bando de gralhas e corvos ruidosos. Como se elas
fossemumaverdadeiracidadedeaves.Elaseramasdonas,asproprietáriaseamais
antiga família senhorial. As verdadeiras senhoras do solar. Indiferentes aos seres
humanos, cá embaixo, toleravamessas criaturasque andavampelo chão, embora
entreelashouvessealgumasquedisparavamespingardas,quelhesfaziasentirum
arrepionaespinha,obrigando-asafugircommedo,agritar:crá,crá.
O jardineiro pedira muitas vezes ao seu senhor para mandar deitar abaixo as
velhasárvores.Nãodavambomaspetoe, sendoabatidas,provavelmente livrá-lo-
iamdasbarulhentasaves,que iriamprocuraroutropouso.Osenhor,porém,não
queria desfazer-se nem das árvores nem do bando.Era algo que fazia parte dos
domínios do solar, algo que vinha dos velhos tempos e, portanto, não se devia
destruí-lo.
—Asárvoressãoherançadasaves,deixa-asestar,meubomLarsen!
Larseneraonomedojardineiro,masissonadatemquevercomanossahistória.
—Nãotens,amigoLarsen,camposuficienteparati?Todoojardim,asestufas,
opomareahorta?
Naverdade,tudoissopossuía,edetudobemcuidava,comzeloecompetência,o
queerareconhecidopelosenhor,quenãosecoibia,contudo,delhedizerqueem
casadeoutraspessoashaviacomido frutasevisto floresque superavamasdo seu
domínio,afligindoassimojardineiro,poisestesemprequeriafazermelhorqueos
outros;econseguia-o.Eraumhomemtãobomnocoraçãocomonoofício.
Umdia,osenhormandou-ochamaredisse-lhe,comafáveismodossenhoriais,
que,na véspera, em casadeuns ilustres amigos,haviaprovadomaçãs eperas tão
sumarentas e saborosas que ele e todos os convidados não puderam deixar de
expressarasuaadmiração.Osfrutosnãoeramcertamentedopaís,maspodiamser
importadoseaclimatar-seseascondiçõesopermitissem.Sabia-sequetinhamsido
compradosnamelhorfrutariadacidade;ojardineirodeveriairláeprocurarsaber
dondetinhamvindoaquelasmaçãseperas.Depoismandariavirosenxertos.
O jardineiroconheciabemodonoda frutaria.Eraprecisamenteaeleque,por
contadosenhor,vendiaassobrasdasfrutascultivadasnopomar.
Tomou assim o caminho da cidade para perguntar ao dono da frutaria donde
recebiaaquelasmaçãseperastãoapreciadas.
—Sãodoteuprópriopomar!—declarouodonodafrutaria,quelhasmostrou,
equeelelogoreconheceucomosuas.
Como ficou contente o jardineiro! Correu logo para o solar, para contar ao
senhorquetantoasperascomoasmaçãseramdoseupomar.
Osenhornãoqueriacrer.
—Nãoépossível,Larsen!Poderásarranjarumadeclaraçãoescritadodonoda
frutaria?
Larsenvoltoucomadeclaraçãopedida.
—Éestranho!—exclamouosenhor.
Entãopassaramavirparaamesadosenhor,todososdias,grandesaçafatescom
aquelasbelasperasemaçãs,produtosdoseuprópriopomar,que,àstoneladaseaos
quintais,foramtambémenviadasparaosamigosdacidadeedeforadacidade.Até
mesmoparaoestrangeiro.Eram,narealidade,maravilhosas!Contudo,deveter-se
também em conta que haviam sido dois anos extraordinariamente bons para as
árvoresdefruto.Nãosóalicomonorestodopaís.
Decorreualgumtempo.Umdia,osenhorfoiconvidadoparaumjantarnacorte.
Nodiaseguintechamouo jardineiro.Tinhamservidonacorteunsmelõesmuito
sumarentosesaborosos,dasestufasdeSuaMajestade!
—Tensdeprocurarojardineirodacorte,meubomLarsen,paraquenosarranje
algumassementesdessespreciososmelões!
—Masfoidenósqueeleasrecebeu!—respondeuojardineirotodocontente.
—Então soube tratá-los muito bem para que resultassem assim tão bons—
retorquiuosenhor.—Sãoexcelentesessesmelões!
— Bem posso sentir-me orgulhoso!— disse Larsen.—Devo esclarecer Sua
Excelênciaque o jardineironão teve sorte comosmelões este ano e, quando viu
comoosnossoserambonitoseosprovou,mandouquelheenviássemostrêsparao
palácio!
—Larsen!Nãovásagora imaginarqueeramprecisamenteosmelõesdanossa
quinta!
— Creio bem que sim! — respondeu Larsen, que foi depois procurar o
jardineirodopalácioedelerecebeuumadeclaraçãoescritadandocontadequeos
melõesservidosnamesarealhaviamvindodopomardoseusenhor.
Foi,naturalmente,umasurpresaparaosenhor,quenãoocultouoquesehavia
passado. Exibiu a quem o quis o atestado do jardineiro a quem o quis e assim
passaram a ser enviadas sementes demelão para toda a parte, bem como, no seu
devidotempo,osenxertos.
Receberam notícias de que tinham sido muito apreciados, que haviam dado
magníficos frutos e que haviam tomado o nome do pomar do senhor, que podia
agoraserlidoeminglês,alemãoefrancês.
Nuncaanteshaviapensadonisso.
— Que não vá agora o jardineiro dar-se ares de importância por isso! —
comentouosenhor.
Mas foi de outro modo que o jardineiro aceitou as coisas. O seu desejo era
esforçar-se por ganhar nome como um dos melhores jardineiros do país,
procurando,todososanos,produziramelhordasespéciescultivadasnopomar.E
sempre o conseguiu. Frequentemente, ouvia dizer que, de todos os frutos de
primeira qualidade que havia cultivado, as maçãs e as peras foram realmente os
melhores; todososoutros lhes eram inferiores.Osmelões tinhamsido realmente
bons, mas eram de uma qualidade à parte; os morangos podiam considerar-se
admiráveis, mas, contudo, não foram melhores do que os das outras quintas e,
quantoaosrábanos,houveumanoemquenãoresultarambons.Entãosósefalou
daquelesdesafortunadosrábanosenãodetudoomaisqueforabemproduzido.
Eraquasecomoseosenhorsentisseprazeremdizer:
—Esteanovaisermau,amigoLarsen!—Pareciasentirumagrandealegriaem
exclamar:—Não,esteanonãodánada!
Algumasvezesporsemanaojardineirotraziafloresfrescasparaacasadosenhor,
sempre dispostas commuito gosto, e de tal modo as combinava que as cores se
realçavam.
—Tensbomgosto,Larsen!—diziaosenhor.—Éumdomquenãoveiodeti.
FoiNossoSenhorquetodeu!
Umdiao jardineiro trouxenumagrande taçadecristalumapétaladeaçucena
aquáticabrancaesobreela,comolongoegrossocaulemergulhadonaágua,uma
admirávelflorazul,dotamanhodeumgirassol.
—OlótusdeIndostão!—exclamouosenhor,quandoaviu.
Nuncaviraumaflorassim.DuranteodiafoicolocadaaoSoleànoitesobaluz
refletida de uma lâmpada. Todos os que a observaram acharam-na
extraordinariamentebelaerara.Foiissoquedeclarouumadasprimeirasdamasdo
país,umaprincesainteligenteebondosa.
SuaSenhoriaconsiderouumahonrapresentear-lheafloreestafoientãolevada
paraoPalácioReal.
Desceudepoisosenhoraojardimparaelepróprio,seaindahouvesse,colheruma
outra flor igual. Mas nenhuma encontrou. Chamou então pelo jardineiro e
perguntou-lheondehaviacolhidoolótus-azul:
—Procurámosemvão!—disseele.—Fomosàsestufasepercorremostodoo
jardim!
—Poisnãoestápropriamenteali—respondeuojardineiro.—Éumasimplese
vulgarflordahorta.Masnãoéverdadequeémuitobonita?Pareceumcato-azule,
contudo,outracoisanãoéqueaflordaalcachofra!
—Deviaster-nosditoissologo—retorquiuosenhor.—Pensávamosqueera
umaflorexótica, rara.Obrigaste-nosa fazermá figuradianteda jovemprincesa!
Viuafloremnossacasaeachou-amuitobonita,masnãoareconheceu,emboraseja
excelente embotânica, que é uma ciência, claro está, que nada tem a ver com as
hortaliças.Comoteocorreu,bomLarsen,trazerumaflordessasparaminhacasa?
Obrigaste-nosaserridículos!
Abonita e radiante flor azul apanhadanahorta foi retiradada casado senhor,
onde não era digna. Sua Senhoria apresentou as suas desculpas à princesa,
explicandoqueaflorerasimplesmenteumaplantadahorta,queojardineirohavia
trazidoparamostrarequehaviarecebido,porisso,sériaadmoestação.
—Poisépenaeé injusto!—retorquiuaprincesa.—Abriu-nososolhospara
uma flor magnífica de que não nos tínhamos apercebido.Mostrou-nos a beleza
ondeadevíamosterprocurado!Dareiordemparaqueo jardineirodopaláciome
tragatodososdiasumaflordessasenquantofloriremasalcachofras.
Eassimaconteceu.
Também Sua Senhoria mandou dizer ao jardineiro que lhe podia trazer, de
novo,umaflordealcachofrafresca.
—Nofundo,ébonita!—disseele.—Muitocuriosa!—Efezoseguinteelogio
aojardineiro:
—Larsen ficará contente comisso!— disse Sua Senhoria.—É uma criança
mimalha.
No outono houve uma terrível tempestade. Rebentou de noite e tão
violentamentequemuitasdasgrandesárvores,naorladobosque,foramarrancadas
pelaraiz.ComgrandepesarparaSuaSenhoria (foramassuaspalavras),mascom
alegriaparaojardineiro,poisforamderrubadasasduasgrandesárvorescomtodos
os ninhos. Afirmava a gente da casa que se ouviram, nomeio da tempestade, os
gritos dos corvos e das gralhas, que tinham batido com as asas nas vidraças das
janelas.
—Estássatisfeitoagora,Larsen?—perguntouSuaSenhoria.—Atempestade
derrubouasárvoreseasavesfugiramparaobosque.Osolarjánãotemoaspetodos
velhos tempos. Tudo que os fazia recordar desapareceu! Tive realmente muita
pena!
O jardineiro nada disse, mas logo pensou no que andava magicando há tanto
tempo:utilizarobelocamposoalheirodequeantesnãopodiadisporetransformá-
loemadornodojardimenumobjetodeprazerparaSuaSenhoria.
Asgrandesárvoresderrubadashaviamdestroçadoedespedaçadoasantiquíssimas
sebesdebuxo,talhadasemfiguras.Aíplantouarbustoseplantasdoscamposedos
bosques da região.O que nenhum outro jardineiro pensara fazer, quanto à rica
variedadedeplantasdojardimdosenhor,fê-loele,dispondo-asnaterraadequada,
aoSolouàsombra,conformeasnecessidadesdecadaespécie.Cuidou-ascomtodo
ocarinhoeelascrescerammagníficas.
Os zimbros da Jutlândia desenvolveram-se em forma e cor como se fossem
ciprestes-italianos.Oazevinho,brilhanteeespinhoso,sempreverdecomofriodo
inverno ou comoSol doVerão, era digno de se ver.À sua frente havia fetos de
diversasespécies,algunspareciamfilhosdaspalmeiraseoutrospaisdabelaefina
planta a que chamamos adianto. Estava ali também a bardana desdenhada, tão
bonitanasuafrescuraquepodiasercolhidaparaumramalhete.Abardanaestava
plantadana terra secamasmais funda.Na terrahúmidacresciamas azedas,uma
planta também desprezada e, contudo, tão pitoresca e bonita na sua altura
imponente e comas suas folhas grandes.Esbelta, comvários troncos, flor contra
flor, como um grande candelabro de muitos braços, erguia-se a candelária,
transplantada para aquele local. Ali se encontravam também as aspérulas, as
primaveraseos lírios-do-bosque,oesparto-silvestreeas finasazedas-do-bosque,
detrêsfolhas.Erarealmentedignodesever.Pordetrásdeumavedaçãodearame
cresciam,alinhadas,pequeníssimaspereirasdeprocedênciafrancesa.CombomSol
ebomtratamento,embrevederamfrutosgrandesesucosos,talcomonaterra,de
ondetinhamprovindo.
No lugar das duas velhas árvores desfolhadas foi colocado um alto mastro de
bandeiraondeondeavao«Dannebrog»e,próximo,umoutroonde,noverãoeno
outono,seenroscavamasramadasdolúpulo,comassuasfloresodoríferasemcone.
Tambémnoinverno,seguindoumvelhocostume,erasuspensonomesmomastro
um comedouro com aveia, para que as aves tivessem comida na época festiva do
Natal.
— O bom Larsen está a tornar-se sentimental com a idade! — disse Sua
Senhoria.—Masé-nos,naverdade,muitofieleafeiçoado!
No ano seguinte, uma revista ilustrada da capital publicou uma gravura do
antigosolar.Nelaseviaomastrodabandeiraeocomedourodeaveiaparaasaves.
Comentava-setambéma ideiaexcelentedeovelhocostumetersidopreservadoe
honradodeummodotãosignificativo,precisamentenoantigosolar.
—TudooqueLarsenfaz—declarouSuaSenhoria—éapregoadoatodosos
ventos. É um homem com sorte! Quase me sinto orgulhoso de o ter ao meu
serviço!
Masnãoeraorgulhooquesentia!Sabiaqueeraosenhor,queopodiadespedir,
oquenãofazia,éclaro,porserboapessoa;enestaclassehámuitoboaspessoas,o
queétambémumasorteparatodososLarsens.
Éestaahistóriadojardineiroedosenhor!Pensanelaumpouco!
APastoraeoLimpa-Chaminés
Já viste alguma vez um armário genuinamente antigo, completamente
enegrecido pela antiguidade e trabalhado com floreados e folhagens? Pois era
precisamenteumdessesqueseencontravanumacertasaladeestar.Eraherançada
avó, bem talhadode rosas e tulipasque o cobriamde alto a baixo.Eramosmais
maravilhosos floreados e entre eles emergiam cabeças de pequenos veados com
grandesarmações.Nomeiodoarmárioestavatambémtalhadoumhomem.Seria,
eramuitodivertidovê-loarir,masnãosepodiachamaraissosorrir.Tinhapernas
de bode, uns chifrezinhos na testa e uma longa barba. As crianças da casa
chamavam-lhe o Sargento-general-comandante-chefe-subchefe das pernas de
bode,poiseraumnomedifícildedizerenãohámuitosquetenhamestetítulo.Mas
mandá-lotalhartambémfoicoisacomplicada!Contudo,aliestava!Sempreaolhar
paraamesa,porbaixodoespelho,porquealiseencontravaumalindapastorinhade
porcelana.Ossapatoseramdourados,ovestidolindamentepresoemcimacomuma
rosavermelhaetinhaumchapéudeouroeumbastãodepastor.Eralinda!Mesmo
aoladodelaestavaumpequenolimpa-chaminés,tãopretocomoocarvão,também
deporcelana.Eratãolimpoebonitocomoqualqueroutro.Ofactodeser limpa-
chaminés era só aparência.O fabricante deporcelanas podiamuitobem ter feito
deleumpríncipe.Darianomesmo!
Eratãolindocomasuaescadaetinhaumrostotãobrancoerosadocomouma
rapariga.Issofoi,narealidade,umerro,poisumpoucodepretonãoteriasidomau.
Estava mesmo junto à pastora. Tinham sido colocados ali e, assim colocados,
ficaram noivos. Passavam o tempo um com o outro. Eram gente nova, eram da
mesmaporcelanaeambosigualmentequebráveis.
Perto deles estava outro boneco que era três vezes maior. Um velho chinês,
tambémdeporcelana,quesabiaacenarcomacabeça.Dizia-seavôdapastorinha,
mas issonão opodia ele confirmar.Afirmavaque tinhapoder sobre ela e, assim,
acenava para oSargento-general-comandante-chefe-subchefe de pernas de bode,
quetambémcortejavaapastorinha.
—Vaisterummarido—disseovelhochinês—,ummaridoqueserádemogno,
senãomeengano.Podefazer-teSenhoradoSargento-general-comandante-chefe-
subchefe das pernas de bode.Tem todoo armário cheio de pratas, não contando
comoquepossuinasgavetassecretas.
—Nãoquero irparadentrodoarmário!—disseapastorinha.—Ouvidizer
queguardaládentroonzemulheresdeporcelana!
—E tu podesmuito bem ser a décima segunda!—disse o chinês.—Hoje à
noite,logoqueovelhoarmáriocomecearanger,hãodedar-seasvossasbodas.Tão
verdadecomoeuserchinês!—Acenoucomacabeçaedeixou-seadormecer.
A pastorinha chorou e olhou para o seu mais querido do coração, o limpa-
chaminésdeporcelana.
—Creio que tenho de pedir-te que vás comigo por essemundo fora, porque
aquinãopodemosficar.
—Querooquetuquiseres!Vamosimediatamente!Achoquepossoalimentar-
tecomaminhaprofissão!
—Seaomenosestivéssemossãosesalvos, longedamesa!—disseela.—Não
tereialegriaenquantonãopartirmosporessemundofora!
Eleconsolou-aemostrou-lhecomopodiapôropezinhonasbordastalhadasena
folhagemdouradaedescerpelapernadamesaabaixo.Usoutambémasuaescada
paraaajudaradesceredessemodochegaramaochão;masquandoolharamparao
velho armário, era como se ali houvesse um tumulto. Todos os veados talhados
punham as cabeças aindamais para fora, levantavam as armações e estendiam os
pescoços. O sargento-general-comandante-chefe-subchefe das pernas de bode
saltounoaregritouparaovelhochinês:
—Vãofugir!Vãofugir!
Ficaramumpoucoassustadoseesconderam-se,apressadamente,nasgavetasda
plataforma.
Nessas gavetas encontravam-se três ou quatro baralhos de cartas de jogar,
incompletos,eumpequenoteatrodebonecas,nãomuitobemmontado,mas,ainda
assim,bemimprovisado.Representavam-secomédias,etodasasdamas,tantoasde
ouroscomoasdecopas,asdepauscomoasdeespadas,sentavam-senasprimeiras
filas e abanavam-se com tulipas. Logo por trás delas estavam todos os valetes,
mostrando que tinham cabeças, tanto em cima como em baixo, tal como são as
cartas de jogar.A comédia tratava de dois amantes quenão se podiam ter um ao
outroeapastorachorouporisso,porqueeracomosevisseasuaprópriahistória.
—Nãoaguentoisto!—comentouela.—Tenhodesairdagaveta!
Masquandovieramparaochãoeolharamparaamesa,láestavaovelhochinês
acordadoecomtodooseucorpoaabanar.Eracomoumenormemonte,vistode
baixo!
—Vemaíovelhochinês!—gritouapastorinha,ecaiulogosobreosjoelhosde
porcelana,detãoaflitaqueestava.
—Tenhoumaideia!—disseolimpa-chaminés.—Vamosmeter-nosdentroda
jarradepot-pourriqueestáalinocanto?Podemosdeitar-nossobrerosasealfazema
elançar-lhesalnosolhos,quandoelevier.
— Pode não ser suficiente!— respondeu ela.— Além disso, sei que o velho
chinês e a jarra de pot-pourri estiveram noivos e, quando se têm relações desse
género,restasempreumpoucodesimpatia!Não!Nãohánadaafazersenãopartir
pelomundofora!
— Tens mesmo coragem para ir comigo pelo mundo fora? — perguntou o
limpa-chaminés.— Já pensaste como ele é grande e que nuncamais voltaremos
aqui?
—Tenho!—afirmouapastorinha.
Olimpa-chaminésolhou-afixamenteedisse:
— O caminho faz-se por dentro da chaminé! Tens mesmo coragem para te
arrastares comigo dentro do fogão, tanto pelo tambor como pelo cano? Saímos
depoispelachaminéeaíconheçotudobem!Subiremostãoaltoquenãonospodem
alcançarelábememcimaestáumburacoparaomundo!
Econduziu-aparaaportadofogão.
—Está tudo preto!— disse ela,mas seguiu-o, tanto pelo tambor como pelo
cano,ondeparecianoiteescuracomobreu.
—Estamosagoranachaminé!Vê!Láemcimabrilhaamaislindaestrela!
Eestava,realmente,umaestrelanocéuquebrilhavaparabaixo,paraeles,como
se quisesse mostrar-lhes o caminho. Treparam e rastejaram. Foi uma terrível
caminhada. Tão alto, cada vez mais alto. Ele puxou-a para cima e apoiou-a,
segurou-aemostrou-lheosmelhorespontos,ondepodiapôrosseuspezinhosde
porcelana,atéquealcançaramabordadachaminéenelasesentaram,poisestavam
muitíssimocansadoseboasrazõestinhamparaisso.
Océu,comtodasassuasestrelas,estavaporcimaetodosostelhadosdacidade
porbaixo.Viamatémuitolonge,àsuavolta,mesmoparaalémdomundo.Apobre
pastoranuncao tinha imaginado assim.Pousou a cabecinhanoombrodo limpa-
chaminésechoroutantoqueoourolhesaltoudafitadocorpete.
—É demais!— disse ela.—Não posso suportá-lo!Omundo é demasiado
grande!Quemmederaestaroutraveznamesinhaporbaixodoespelho!Nãoterei
alegriaenquantonãomeencontrarláoutravez!Segui-tepelomundofora,agora
tupodesseguir-meparavoltaracasa,segostaresumbocadinhodemim!
E o limpa-chaminés falou-lhe sensatamente. Falou-lhe do velho chinês e do
Sargento-general-comandante-chefe-subchefedaspernasdebode,maselachorou
tãodesconsoladaebeijouoseuqueridolimpa-chaminésdetalforma,queestenão
pôdefazeroutracoisasenãocondescender,sebemquefosseumaloucura.
Eassimlásearrastaramoutravez,comgrandedificuldade,pelachaminéabaixo,
rastejandoatravéscanoedotambor—oquenãofoinadaagradável—,penetrando
nofogãoescuro.Escutaram,pordetrásdaporta,parasaberemoquesepassavana
sala.Estava tudo em silêncio.Olharam.Ai!Lá estava o velho chinês nomeio do
chão.Tinhacaídodamesa,quandopretenderapersegui-loseestavapartidoemtrês
partes.Todoodorsosedesprenderanumúnicopedaçoeacabeçatinharoladopara
umcanto.
O Sargento-general-comandante-chefe-subchefe das pernas de bode estava
ondesempreestivera,ameditar.
—Éhorrível!—disseapastorinha.—Ovelhoavôestáfeitoemcacoseaculpa
énossa!Nãoconsigosobreviveraisto!—Etorceuasmãozinhasminúsculas.
—Aindapode sergateado—disseo limpa-chaminés.—Podemuitobemser
gateado,desdequenãosejacommuitaforça!Seocolaremnascostaselhepuserem
umbomgatonanuca, ficaráoutravez tãobomcomonovoepoderá continuara
dizer-nosmuitacoisadesagradável!
— Achas que sim?— perguntou ela. E subiram outra vez para a mesa onde
tinhamestadoantes.
—Estásaver!Fomostãolonge!—disseolimpa-chaminés.—Bempodíamos
ter-nospoupadoatodosessesincómodos!
—Seconseguirmosaomenosgatearovelhoavô!—exclamouapastora.—Será
caro?
Foi gateado. A família mandou-o colar nas costas, recebeu um bom gato no
pescoçoeficoutãobomqueparecianovo.Masacenarjánãopodia.
— Tornou-se bastante altivo, desde que se partiu em pedaços! — disse o
Sargento-general-comandante-chefe-subchefe das pernas de bode. — Não me
parece,contudo,quesejarazãoparasertãoterrível!Vouterapastorinhaounão?
O limpa-chaminés e a pastorinha olharam ternamente para o velho chinês.
Tinham receio de que pudesse acenar, mas ele não podia. Era-lhe desagradável
contaraumestranhoquetinhaumgatonanuca.Assimficouopardeporcelana
unido,abençoaramogatodoavôeamaram-seatésefazeremempedaços.
OsSapatosVermelhos
Haviaumarapariguinhatãofinaetãograciosa.Comoerapobre,andavasempre
de pés descalços no verão e de inverno com grandes tamancos de pau. Os
pequeninospeitosdospésficavamtodosvermelhos,oqueerahorroroso.
Nomeiodaaldeiadecamponesesmoravaaidosamãedosapateiro.Sentou-sea
coser, tãobemquanto sabia, umparde sapatinhosdeuns restos velhosde roupa
vermelha, bastante toscos, mas feitos de boa vontade. Foram destinados à
rapariguinha.
Arapariguinhachamava-seKaren.
Foiprecisamentenodiaemqueamãefoiaenterrarqueelarecebeuossapatos
vermelhos,estreando-osnessedia.Nãoerampropriamentealgoausarnoluto,mas
nãotinhaoutroseassim,semmeias,caminhoucomelesatrásdopobrecaixãofeito
depalha.
Nessemomento passou uma carruagem grande e antiga.Nela ia sentada uma
grandedama,tambémdeidade,queviuarapariguinha.Tevepenadelaedisseao
padre:—Oiça,dê-mearapariguinha,quetratareibemdela!Karenjulgouquefoi
tudoporcausadossapatosvermelhos,masasenhoradisse-lhequeeramhorrorosos
e queimou-os. Porém, vestiuKaren dos pés à cabeça.Teve de aprender a ler e a
cosereasgentescomentavamqueelaeramuitograciosa.
Masoespelhodizia-lhe:
—Ésmaisquegraciosa,éslinda!
Umavezarainhafezumaviagematravésdopaísetrouxeconsigoasuafilha.O
povocorreuparadefrontedopalácioeKarentambém.Aprincesinhaestavadepé,
numavaranda,comumfinovestidobranco,paraqueaadmirassem.Nãotinhanem
caudanemcoroadeouro,mascalçavabelossapatosdemarroquimvermelho.Eram
certamentebemmaisbonitosdoqueaquelesqueamãedosapateirocoseraparaa
Karenzinha.Nadanomundosepodiacompararverdadeiramenteàqueles sapatos
vermelhos!
Karen estava agora na idade de receber a sua confirmação de fé. Teve novos
vestidosenovossapatostambém.Oricosapateirodacidadetomouasmedidasdo
seupezinho.Eraconfortável a sua lojaeaíhaviagrandesarmáriosdevidro, com
lindossapatosebotaslustrosasládentro.Tudotinhaumaspetoencantador,masa
velha senhora, que não via bem, disso não tirou grande proveito. No meio dos
sapatos estava um par vermelho, tal e qual o que a princesa calçara.Como eram
bonitos!Osapateirodissequetinhamsidofeitosparaafilhadeumconde,masque
nãolheserviam.
—Édebompolimento!—disseavelhasenhora.
—Brilham!
— Sim, brilham! — respondeu Karen. Como lhe serviam, a velha senhora
comprou-lhos. Mas não sabia que eram vermelhos. Se soubesse, nunca teria
permitidoaKareniràconfirmaçãocomaquelessapatos.Maselafoi.
Toda a gente olhava para os seus pés e quando subiu da nave da igreja para a
entradadocoro,parecia-lhequeatémesmoasvelhasfigurasnassepulturas,aqueles
retratosdepastoresemulheresdepastorescomrígidasgolaselongasvestesnegras,
fixavamosolhosnossapatosvermelhos.Sópensavanelesquandoopastorlhepôsa
mãosobreacabeçaefaloudosantobatismo,dopactocomDeusequeelairiaser
agora um ser cristão crescido. O órgão tocava solenemente, as belas vozes das
criançascantavameovelhochantrecantava,masKarenpensavasónosseussapatos
vermelhos.
Àtarde,avelhasenhorasoubeportodaagentequeossapatoseramvermelhos.
Paraela,issoerafeio.Nãoerampróprios.EKarendaípordiante,quandofosseà
igreja,deveriairsemprecomsapatospretos,mesmoquefossemvelhos.
No domingo seguinte foi a comunhão, e Karen olhou para os sapatos pretos,
olhou para os vermelhos… e voltou a olhar para os vermelhos. E calçou os
vermelhos.
Estava um belo tempo de Sol. Karen e a velha senhora foram por um atalho
poeirento,atravésdeumcampodetrigo.
Àportada igrejaencontrava-seumvelhosoldadocomumamuletaecomuma
estranhabarbacompridaqueeramaisruivaquebranca.Foraantescompletamente
ruiva.Elecurvou-seatéaochãoeperguntouàvelhadamasepodialimpar-lheos
sapatos.Karenestendeutambémoseupezinho.
—Olha! Que lindos sapatos de baile!— disse o soldado.— Agarre-os bem
quandodançar!—Ebateucomasmãosnassolas.
AvelhasenhoradeuaosoldadoummoedazinhaeentroucomKarennaigreja.
Toda a gente olhou para os sapatos vermelhos de Karen. Todas as imagens
olharamparaeles.QuandoKarenseajoelhouemfrentedoaltarepôsocálicede
oiro diante da boca, só pensou nos sapatos vermelhos. Era como se os sapatos
flutuassem dentro do cálice. Esqueceu-se de cantar o seu salmo e de recitar o
padre-nosso.
Toda a gente saiu da igreja e a senhora subiu para a sua carruagem. Karen
levantouopéparasubiratrásdela,quandoovelhosoldadoqueestavaporpertolhe
disse:
—Olhaquelindossapatosdebaile!
E Karen não pôde resistir, teve de fazer alguns passos de dança e, quando
começou,puseram-seaspernasadançar.Eracomoseossapatostivessemtomadoo
podersobreelas.Dançouàvoltadaigreja.Nãopodiadeixardefazê-lo.Ococheiro
tevedecorreratrásdelae agarrá-la, levando-aparadentrodacarruagem,masos
pés,esses,continuavamadançar,dandocruelmentepontapésnaboavelhasenhora.
Porfimossapatossaltaramdospéseaspernasrepousaram.
Emcasa,colocaramossapatosnumarmário,masKarennãoresistiuetevedevê-
los.
Avelhasenhoracaiudoente.Diziamquenãoviveriamuito.Tinhadesertratada
evigiadaeparaissonenhumapessoahaviamaispróximadeladoqueKaren.Lána
cidade ia realizar-se um grande baile eKaren foi convidada.Olhou para a velha
senhora,quecertamentenão iriavivermuito.Olhouparaos sapatosvermelhose
pareceu-lhe que não havia qualquer pecado nisso.Calçou-os, bempodia fazê-lo.
Foiaobaileecomeçouadançar.
Mas, quando queria ir para a direita, os sapatos dançaram para a esquerda,
dançaram chão acima, chão abaixo, escadas abaixo, pela rua e para as portas da
cidade.Ossapatosfizeram-nadançaretevededançaratéaobosquesombrio.
EntãobrilhoualgoporcimadasárvoreseelajulgouqueeraaLua,poisparecia-
lhetervistoumrosto,maseraovelhosoldadocomabarbaruiva.Estavasentado,
acenouedisse-lhe:
—Olha!Quelindossapatosdebaile!
Ficou assustada e quis lançar fora os sapatos. Puxou com força até rasgar as
meias.Mas os sapatos agora eram parte dos seus pezinhos. E dançou e teve de
dançarporcamposeprados,àchuvaeaoSol,denoiteededia,masdenoiteera
maisterrível.
Dançou dentro do cemitério aberto, mas os mortos não dançaram, era bem
melhorparaelesrepousardoquedançar.Queriasentar-sesobreacampadopobre,
onde a atanásia amarga crescia. Mas para ela não havia descanso nem repouso.
Quandodançavaemdireçãoàportaabertadaigreja,viuumanjocomlongasvestes
brancaseasasquelhechegavamdosombrosaochão.Orostoeraseveroegravee
nasmãosseguravaumaespada,largaebrilhante.
—Dançarás!—disseele.—Dançaráscomosteussapatosvermelhosatéficares
pálidaefria!Atéqueapeleseenruguecomoumamúmia!Dançarásdeportaem
porta e onde vivam crianças orgulhosas e vaidosas, baterás à porta, para que te
oiçametenhammedodeti!Dançarás,dançarás…!
—Misericórdia!—gritouKaren.Masnãoouviuoqueo anjo lhe respondeu,
poisossapatoslevaram-naparaocampo,peloportão,porcaminhoseatalhoseteve
semprededançar.
Umamanhã, passou a dançar por umaporta que conhecia bem.Lá de dentro
vinhaum somde salmos.Traziamumcaixãopara fora, cobertode flores.Soube
queavelhasenhoramorreraepareceu-lhequeestavaagoraabandonadaportodose
amaldiçoadapeloanjodeDeus.
Dançou e teve de dançar, dançar na noite escura. Os sapatos levaram-na por
sobreespinhosesilvas,rasgando-aatésangrar.Continuouadançarnacharnecaaté
uma casinha isolada.Era aí— sabia ela—quemoravao carrasco.Bateu comas
pontasdosdedosnavidraça,dizendo:
—Venhacáfora!Venhacáfora!Nãopossoentrarporqueestouadançar!
Eocarrascorespondeu-lhe:
—Sabesbemquemeusou?Cortoacabeçaaoshomensmauseafirmo-tequeo
meumachadoestábemafiado.
—Nãomecortesacabeça!—disseKaren.—Senão,nãopossoarrepender-me
domeupecado!Corta-meantesosmeuspéscomossapatosvermelhos!
Confessou-lhe o seu pecado e o carrasco cortou-lhe os pés com os sapatos
vermelhos,masossapatoscontinuaramadançarcomospezinhosládentrosobreos
campos,paraaflorestaprofunda.
Ocarrascofez-lhepésdepauemuleta.Ensinou-lheosalmoqueospecadores
cantamsempre,eelabeijou-lheamãoqueguiaraomachado.Dalifoipelacharneca
fora.
—Sofribastanteporcausadossapatosvermelhos!—disse.—Vouàigrejapara
que possam ver-me!—E foi tão depressa quanto pôde,mas quando lá chegou,
dançavamossapatosvermelhosdiantedela.Ficouassustadaefugiu.
Todaasemanaestevepesarosaechoroumuitaslágrimaspesadas,equandoveio
odomingo,disse:
— Ora bem! Sofri e lutei bastante! Acredito que sou tão boa como muitos
daquelesquesesentamdecabeçalevantada,ládentrodaigreja!
Eassimseencorajou.
Masnãopassoudaruaquedavaparaaigreja.Quandoviuossapatosvermelhosa
dançarem diante dela, teve medo e fugiu, arrependendo-se verdadeiramente no
coraçãodoseupecado.
E dirigiu-se ao presbitério pedindo para aí prestar serviço. Prometeu ser
diligenteefazertudooquepudesse,Nãoqueriasalário.Sóqueriaterumtetopara
seabrigareestarcomgenteboa.Eamulherdopresbíterotevepenadelaedeu-lhe
trabalho. Foi diligente e cheia de pensamentos. Sentava-se sossegada a ouvir,
quando, à noite, o pastor lia em voz alta a Bíblia. Todos os pequenos da casa
gostavam dela, mas quando as meninas falavam de vestidos e de luxo e em ser
bonitascomoumarainha,abanavaacabeça.
Nodomingo seguinte foramtodosà igrejaeperguntaram-lhe senãoqueria ir
também. Mas ela olhou triste, com lágrimas nos olhos, para as muletas. Todos
foramouvirapalavradeDeus.
Elaficousozinhanoseuquartinho.Nãocabianelemaisdoqueacamaeuma
cadeiraeaí se sentoucomoseu livrode salmos.Equando,comdevoção,o lia,o
ventotrouxe-lheossonsdeórgãodaigreja.Ergueuorostobanhadoemlágrimase
disse:
—Oh!MeuDeus,ajuda-me!
EntãobrilhouoSolluminosoe,mesmodiantedela,apareceuoanjodeDeusem
vestes brancas, que naquela noite vira à porta da igreja.Mas, em vez da espada
aguçada, trazia umbelo ramo verde cheio de rosas.Tocou comele o teto, e este
ergueu--semuitoalto.Ondetinhatocadobrilhouumaestreladeouro.Etocounas
paredese estas alargaram-se, e elaouviuoórgãoque soava.Viuas velhas figuras
dospastoresedasmulheresdospastores.Acongregaçãoestavasentadaemcadeiras,
cantando salmosdo livrode salmos.Aprópria igrejaveioaté àpobre raparigano
quartopequeninoeestreito.OuseriaquetinhasidoelaqueveioàIgreja?Estava
sentadanascadeirasdaspessoasdafamíliadopastorequandoestasterminaramo
salmoeolharamparacima,acenaram-lheedisseram:
—Fizestebememvir,Karen!
—Eraamisericórdia!—respondeuela.
Eoórgãosooueasvozesdascrianças,emcoro,soavamsuavesebelas!Aclara
luzdoSoljorravamuitoquenteatravésdajanelasobreacadeiradaigrejaemque
Karenestavasentada.OcoraçãoficoutãocheiodeluzdeSol,depazedealegria,
querebentou.
Aalmavoouna luzdoSolparaDeuseninguémhouveaíque lheperguntasse
pelossapatosvermelhos.
ACasaAntiga
Numa rua havia uma casa antiga, muito antiga. Tinha quase trezentos anos,
comosepodialernavigamestra,ondeconstavaoanodasuaconstruçãojuntamente
com tulipas e hastes de lúpulo. Estavam aí também versos completos escritos à
forma antiga e por cima de cada janela, esculpida nas vigas, via-se uma cara que
pareciafazercarantonhas.Umandarsobressaíaumbombocadoparaforadooutro
eprecisamentesobotelhadohaviaumcanodechumbocomumacabeçadedragão.
Aáguadachuvadeviaescorrer-lhepelagoela,masescorriadabarriga,poisocano
tinhagrandesburacos.
Todasasoutrascasasdaruaeramtãonovasetãobonitas,comgrandesvidraçase
paredes lisas,que se viabemquenada tinhamaver coma casa antiga.Pensavam
seguramente: «Quanto tempovai ficar ali aquelamonstruosidade,para escândalo
destarua!Osvãosdasjanelassaemtantoparaforaqueninguémdasnossasjanelas
podeveroquesepassanaquelelado!Aescadaétãolargacomoadeumcasteloe
tãoaltacomoadeumatorrede igreja.Abalaustradadeferroparecemesmouma
entradaparaumsepulcroantigo,poisatétembotõesdelatão.Éumavergonha!»
Mesmo em frente, na rua, havia também casas novas e bonitas, que pensavam
como as outras, mas à janela de uma delas estava sentado um rapazinho com as
maçãs do rosto frescas e rosadas, olhos claros e brilhantes, que sabia apreciar
verdadeiramenteacasaantiga,tantosobaluzdoSolcomoaoluar.Eseolhavapor
cima domuro, onde se sumira a cal, podia ver e descobrir aí todas asmais belas
imagens, exatamente como era o aspeto da rua com escadas, vãos de janelas e
empenas pontiagudas.Podia ver soldados com alabardas e goteiras que corriam à
volta como dragões e grifos…Era uma casa digna de se ver.Lá dentro vivia um
velho senhor, que vestia calções, tinhauma casaca comgrandes botões de latão e
umaperuca,quesepodiabemverqueeraverdadeira.Todasasmanhãsvinhater
comeleumhomemidosoquearrumavaacasaefaziaosrecados,foradisso,ovelho
doscalçõesestavacompletamentesónacasaantiga.Devezemquandovinhaatéà
janelaeolhavaparafora.Orapazinhoacenava-lheeovelhoacenava-lhetambém;
destemodoseconheceramesetornaramamigos.Sebemquenuncativessemfalado
umcomooutro,eramamigosnamesma.
Umdia,orapazinhoouviuospaisdizerem:
—Aquelevelhosenhortemmuitariqueza,masestáterrivelmentesó!
No domingo seguinte pegou em algo que embrulhou num pedaço de papel,
desceuaoportãoe,quandoohomemqueiaaosrecadospassou,pediu-lhe:
— Ouve! Queres levar isto ao velho senhor, da minha parte? Tenho dois
soldadosdechumbo,esteéumdeles.Podeficarcomele,poisseiqueestámuitosó.
Ovelhocriadomostrou-semuitocontente,fezumavéniae levouosoldadode
chumboparaacasaantiga.Depoisveiooconvite:seorapazinhonãoteriavontade
de ir até lá fazer uma visita ao velho senhor! Recebeu autorização dos pais,
atravessouaruaeentrounacasaantiga.
Osbotõesdelatãonocorrimãodaescadabrilhavammaisdoquenunca,crer-se-
ia que tinham sido polidos por causa da visita e era como se os trombeteiros
esculpidos—poisnaportaestavamesculpidos trombeteirosdepé,emtulipas—
soprassemcomtodaaforça,comasbochechasinchadascomonunca.Sim,tocavam:
tataratá!Vemaíorapaz!Tataratá!—eabriu-seaporta.Todoocorredorestava
cheioderetratosantigos,cavaleiroscomarmadurasedamascomvestidosdeseda.
Asarmaduras tiniameosvestidosde sedaroçagavam!…Depoisveioaescadaque
subiaumbombocado edesciaumbocadinho…e estava-senumavaranda,que se
encontravanumestadomuito frágil, comgrandesburacose fendasextensasonde
ervas e plantas cresciamem todos eles e por toda a varanda.O chão e as paredes
tinhamtantaverduraquepareciaumjardim,emborafosseapenassóumavaranda.
Haviaaívasosdeflorescomcaraseorelhasdeburroenelesas florescresciamao
deus-dará.Umvasoestavacheiodecravosatéàborda,querdizer,defolhasverdes,
rebentoaoladoderebento,ebemclaramentediziaele:«Oaracariciou-me,oSol
beijou-me e prometeu-me uma florzinha para o domingo, uma florzinha para o
domingo.»
Depoisentrounumasalacujasparedesestavamcobertascompelesdeporcoque
tinhamfloresdeouroestampadas.
Odouradodesaparece
Apeledeporcopermanece
—disseramasparedes.
Nasalahaviacadeirõescomcostasmuitoaltas,muitotrabalhadasecombraços
deambososlados.
— Senta-te! Senta-te!— disseram eles.—Ui!Como range emmim! Agora
tenhotantoreumáticocomoovelhoguarda-louça!Reumáticonascostas,ui!
Orapazinhoentrounasalaquetinhajanelasalienteeondeovelhosenhorestava
sentado.
—Obrigadopelosoldadodechumbo,meuamiguinho!—agradeceu.—Epor
viresvisitar-me.
—Obrigado,obrigado—oumelhor—craque,craque—dizia-seemtodosos
móveis. Estes eram tantos que estavam quase no caminho uns dos outros para
veremorapazinho.
Nomeiodaparedeestavasuspensoumquadrocomumabeladama,tãojoveme
de aspeto tão jovial, mas trajando ao uso dos velhos tempos, com cabeleiras
empoadas e vestidos caindo tesos.Não disse nem«obrigada» nem«craque»,mas
olhoucomosseusolhosmeigosparaorapaz,quelogoperguntouaovelho:
—Ondeaarranjaste?
—Numantiquário!—respondeu.—Hálámuitosretratos.Ninguémconhece
as pessoas retratadas ou se importa com elas, pois estão já todas enterradas,mas
noutrostemposconheci-aejáhámeioséculoqueestánooutromundo!
Porbaixodapinturaestavasuspenso,cobertoporumvidro,umramodeflores
secas.Tinhacertamentemeioséculo, tãovelhasas florespareciam.Opêndulodo
granderelógioandavaparaafrenteeparatráseosponteirosrodavametudonasala
setornavaaindamaisvelho,masnãoonotavam.
—Emcasa,dizem—continuouorapazinho—quetuestásterrivelmentesó.
—Oh!—disseoancião.—Asrecordaçõesdopassado,comtudooquepodem
trazerconsigo,vêmvisitar-meeagoravenstutambém!…Estoubemassim.
Depoistiroudaestanteumlivrodeestampas.Edesfilouumverdadeirocortejo;
osmaismaravilhososcoches,quejánãoseveemhojeemdia,soldadoscomovaletes
depauseartíficescombandeirasesvoaçando.Osalfaiatestraziamasuacomuma
tesoura,queerasegurapordoisleões,eossapateirosasua,massemsapatos,antes
comumaáguiaquetinhaduascabeças,poisossapateirosdevemtertudodemodoa
quesediga:éumpar…Ah!Sim!Aquiloéqueeraumlivrodeestampas!
Oanciãoentrounaoutradivisãopara irbuscardoces,maçãs enozes…nacasa
antigahaviaverdadeiraabundância.
—Nãoaguentoisto!—disseosoldadodechumbo,queestavadepé,emcimada
cómoda.—Aquiétãosolitárioetriste!Não!Quandosetevefamília,custaagora
acostumar-seaistoaqui!…Nãopossosuportá-lo!
—O dia é tão longo e a noite ainda mais longa!— continuou o soldado de
chumbo.—Nadaaquiécomoemtuacasa,ondeoteupaieatuamãefalavamtão
agradavelmente e onde tu e todos vós, doces crianças, fazíeis um tão bonito
alvoroço.Não!Comoovelhoestá isolado!Julgasquerecebebeijos,queháolhos
docesqueocontemplamouquetemárvoredeNatal?Outracoisanãotemsenãoo
enterro!…Nãoaguento!
—Nãodevesverascoisasassimtãotragicamente!—retorquiuorapazinho.—
Aquiparece-metudo tãobelo!Todasas recordaçõesdopassado,comtudooque
podemtrazerconsigo,nãovêmfazer-lhevisitas?
—Claroquevêm,masnãoasvejoenãoasconheço!—replicouo soldadode
chumbo.—Nãoaguentomais!
—Mastensdesuportá-lo!—respondeuorapazinho.
Oanciãovoltou,comprazenteirosemblanteecomdoces,maçãsenozescomum
belíssimoaspeto,peloqueorapazinhonãopensoumaisnosoldadodechumbo.
Feliz e satisfeito, regressou a casa. Passaram-se dias e passaram-se semanas.
Houveacenosparaacasaantigaehouveacenosdacasaantiga,atéqueorapazinho
lávoltoudenovo.
Ostrombeteirosdebochechasinchadastocaram:
—Tataratá!Éorapaz!Tataratá!
Asespadaseasarmadurasdosquadrostinirameosvestidosdesedaroçagaram,
aspelesdeporcofalarameasvelhascadeirastinhamreumáticonascostas—ui!Foi
exatamentecomodaprimeiravez,poisaícadadiaecadahoraeramiguais.
—Nãoaguento!—disseosoldadodechumbo.—Atéjáchoreichumbo!Aquié
tudotãotriste!Deixa-meantesirparaaguerraeperderosbraçoseaspernas!De
qualquermodoéumamudança.Nãoaguentomais!…Seiagoraoqueéteravisita
das recordações do passado, com tudo o que podem trazer! Recebi a visita das
minhas e, podes crer, não é nenhum prazer se vierem continuadamente.
Ultimamenteestivequaseparasaltardacómoda.Lembro-medevosveratodosvós
láemcasatãodistintamente,comosenarealidadeestivésseisaqui.Eraumdomingo
de manhã, como tu bem sabes! Todos vós, crianças, estáveis diante da mesa
cantando os vossos salmos, como cantais todas as manhãs. Estáveis devotamente
comasmãosjuntaseopaieamãetambémestavamsolenes.Abriu-seentãoaporta
eatuairmãzinhaMaria,queaindanãotemdoisanosequesempresepõeadançar,
quando ouve música ou canto, seja o que for, apareceu… não devia ainda ter
entrado…elogocomeçouadançar,masnãoconseguiaacompanharoritmo,poisos
tons eram demasiado longos. Firmava-se primeiro numa perna, pondo a cabeça
completamenteparaafrente,edepoisnaoutra,comacabeçatambémparaafrente
mas,nemmesmoassim,oconseguia.Vóstodosestáveismuitosérios,emborafosse
bastantedifícilmanter-sesério,maseuriapordentro,porissocaídamesaefiquei
comumamossaqueaindatragocomigo.Naverdade,nãofoibonitodaminhaparte
rir.Mas tudo isso voltou a acontecer naminhamente, bem comoo que naquela
altura vivi.E essas são as recordações do passado, com tudo o que podem trazer
consigo!… Conta-me, ainda cantais aos domingos? Diz-me alguma coisa da
pequenaMaria!Ecomovaiomeucamarada,ooutrosoldadodechumbo!Ah!Ele
équeéverdadeiramentefeliz!Eujánãoconsigosuportaristo.
—Foste dado comopresente!—disse o rapazinho.—Tens de ficar.Não és
capazdecompreenderisso?
Entretanto o ancião voltou comumagaveta, ondehaviamuito para ver, tanto
«casasdegiz»como«caixinhasdebálsamo»,ouvelhascartasdejogar,tãograndese
tão douradas, como já não se veem hoje. Foram abertas mais gavetas e abriu-se
tambémo piano.Tinha uma paisagempintada no interior da tampa e estava tão
roucoquandoovelhotocouneleecantarolouumacanção!
—Cantava-a ela!—disseo ancião, acenandoparao retratoque comprarano
antiquárioeosolhosbrilharam-lhe.
— Quero ir para a guerra! Quero ir para a guerra! — gritou o soldado de
chumbotãoaltoquantopodia,lançando-seaomesmotempoparaochão.
E depois o que foi feito dele? O velho procurou-o, o rapazinho procurou-o.
Desapareceraedesaparecidoficou.
—Heideencontrá-lo!—disseovelho,masnuncaoencontrou.Ochãotinha
buracose fendaspor todaaparte.Osoldadodechumbocaíraporumagretae lá
ficoucomonumasepulturaaberta.
Odiapassoueorapazinhovoltouparacasa.Passou-seumasemana,passaram-se
muitas semanas. Agora as janelas estavam completamente geladas. O rapazinho
tinha de ficar sentado, bafejando nelas para conseguir um orifício por onde
espreitar a casa antiga. Havia neve em todos os ornamentos e inscrições,
amontoava-senaescada,comosenãohouvesseninguémemcasae,realmente,não
havianinguémnacasaantiga.Naverdade,ovelhosenhormorrera.
Ànoite,parouumacarruagemdiantedacasa,eparaelaotrouxeramnocaixão,
poisiaserenterradonasuaterranocampo.Paraláolevavamagora,masninguémo
acompanhava,porquetodososamigosestavamjámortos.Orapazinhomandouum
beijocomapontadosdedosquandoocaixãopartiu.
Alguns dias depois fez-se o leilão do recheio da casa e o rapazinho viu da sua
janelaoquese levava:osvelhoscavaleiroseasvelhasdamas,osvasosdefloresde
grandesorelhas,asvelhascadeiraseosvelhosarmários.Umascoisasiamparaaqui,
outras para ali. O retrato voltou para o antiquário, onde ficou pendurado para
sempre, pois ninguém conhecia aquela dama e ninguém se interessou pelo velho
quadro.
Naprimaveradeitou-seacasaabaixo,poiseraumamonstruosidade,diziamas
pessoas.Podiaver-sedaruadiretamenteparadentrodasalaondeestavamaspeles
de porco, agora golpeadas e rasgadas. A verdura da varanda pendia enredada nas
tábuas,ameaçandocair…Eassimfoicompletamentearrasada.
—Foiumaboacoisa!—disseramascasaspróximas.
Construiu-seumanovaebelacasacomgrandesjanelaseparedeslisasebrancas.
Nasua frente,ondeestiveraa casaantiga,plantou-seum jardinzinhoeporcima
dosmurosvizinhoscresceramvideirasbravas.Diantedo jardimfoicolocadauma
grande grade de ferro, com um portão, também de ferro, que dava um aspeto
grandioso ao jardim, e as pessoas paravam e espreitavampara dentro.Os pardais
pousavam às dúzias nas videiras, palravam todos aomesmo tempo omelhor que
sabiam,masnãoerasobreacasaantiga,poisdelanãopodiamlembrar-se,jáhaviam
passadotantosanos…
Tantos anosqueo rapazinho crescera até tornar-seumhomemperfeito.Sim!
Umhomemperfeitoediligentequemuitaalegriaderaaos seuspais.Casara-see
foravivercomasuamulherzinhaparaacasanovacomoseujardimemfrente.Eali
estava ao seu lado enquanto ela plantava uma flor do campo que achara muito
bonita.Plantava-acomamãopequeninaebatiaaterracomosdedos.
—Ai!Querido!Quefoiisto?
Tinha-sepicado.Algopontiagudoapareceraemcimadaterramole.
Era…oraimaginai!
Era o soldadode chumboperdidona casa do ancião e que rolara e andara aos
tombosentrevigasecascalho,paraporfimjazermuitosanosdentrodaterra.
A jovemesposa limpouo soldadodechumbo,primeirocomuma folhaverdee
depoiscomoseufinolençodealgibeira,quetãobemcheirava!Paraosoldadode
chumbofoicomosedespertassedeumtorpor.
—Deixa-mever!—disseomarido,sorrindoeabanandoacabeça.—Sim,não
pode ser ele,mas faz-me lembrar uma história comum soldado de chumbo que
tive,quandoerarapazinho.
Depois contou à mulher a história da casa antiga, do ancião e do soldado de
chumbo que lhe mandou, pois estava muito só. Contou-a exatamente como
aconteceu.Ajovemesposaemocionou-setantoquelhevieramaslágrimasaosolhos
aopensarnacasaantigaenoancião.
—Podepoissucederquesejaomesmosoldadodechumbo!—disseela.—Vou
guardá-lo e lembrar-me de tudo o que me contaste, mas tens de mostrar-me a
sepulturadovelhosenhor.
—Sim,masnãoseiondeestá—declarouele—,eninguémsabe!Todososseus
amigostinhammorrido,ninguémcuidoudissoeeueraaindaumrapazinho!
—Comodeveter-sesentidoterrivelmentesó!—retorquiuela.
—Terrivelmentesó!—confirmouosoldadodechumbo.—Mas,quandonão
seéesquecido,émuitobelo!
—Belo!—gritoualgomuitoperto,masninguémsenãoosoldadodechumbo
viuqueeraumpedaçodapeledeporco.Todoodouradodesaparecera,pareciaterra
húmida,masmantinhaumaopinião.Emantendo-adizia:
Odouradodesaparece
Masapeledeporcopermanece.
Nisso,porém,nãoacreditavaosoldadodechumbo.107
OAbeto
Dentro do bosque erguia-se um bonito abeto. Tinha um bom lugar, podia
apanharSol,haviaaíbastanteareàsuavoltacresciammuitoscamaradasmaiores,
tanto abetos como pinheiros-bravos.Mas o pequeno abeto tinha tanta pressa de
crescer!NãopensavanoSolquenteenoarfresco,nãoprestavaatençãoaosfilhos
doscamponesesquepassavama tagarelarquandoandavamaapanharmorangose
framboesas. Muitas vezes vinham com uma vasilha cheia ou haviam enfiado
morangosempalhas,sentavam-sejuntodapequenaárvoreediziam:
—Oh!Comoétãobonitaassimpequena!—Issonãogostavanadaaárvorede
ouvir.
Umanodepoishaviaumtroncomaiorenoanoaseguirmaiorainda,poisnum
abetopode-sesemprever,pelosmuitosnósquetem,quantosanoscresceu.
— Oh! Se fosse assim uma árvore grande como as outras! — suspirou a
arvorezinha.—Então podia estender os ramos àminha volta e na copa ver até
longenovastomundo!Asavesconstruiriamninhosentreosmeusramosequando
fizesseventopodiainclinaracabeçaelegantemente,comoasoutrasali!
NãosentianenhumprazernaluzdoSol,nemnasavesounasnuvensrubrasque
demanhãeànoitenavegavamporcimadela.
Seerainvernoehavianeveàvolta,debrancobrilhante,vinhamuitasvezesuma
lebre saltitando e punha-se precisamente em cima da arvorezinha…Oh!Era tão
afrontoso!…Maspassaramdoisinvernosenoterceiroeraaárvoretãograndequea
lebretinhadepassaràsuavolta.«Oh!Crescer,tornar-segrandeevelho,éaúnica
coisabelanestemundo»,pensavaaárvore.
Nooutonovinhamsempreos lenhadoresecaíamalgumasdasárvoresmaiores.
Isso acontecia todos os anos, e o jovem abeto, que estava agora perfeitamente
crescido, tremia, pois as grandes e belas árvores tombavam rangendo e com
estrondoemterra.Osramoseramcortados,ficavamcompletamentenuas,longase
magras.Quasenãosereconheciam.Eramentãocarregadasemcarroçaseoscavalos
levavam-nasparaforadobosque.
Paraondeiriam?Quefariamdelas?
Na primavera, quando chegavam as andorinhas e as cegonhas, a árvore
perguntava-lhes:
—Paraondeiam?Qualeraoseudestino?
As andorinhas não sabiam nada, mas as cegonhas quedaram-se pensativas,
acenaramcomacabeçaedisseram:
—Sim, creioque sim!Encontreimuitosbarcosnovos,quandovoeidoEgito.
Nos navios havia belos mastros. Atrevo-me a dizer que eram elas, cheiravam a
abeto.Dou-vososmeusparabéns,mantinham-sedireitas,direitinhas!
—Oh!Seeufossetambémbastantegrandeparaflutuarnomar!Comoéesse
marecomqueseparece?
— Bem, é tão complicado de explicar! — disseram as cegonhas e foram-se
embora.—Alegra-tecomatuajuventude!—aconselhavamosraiosdeSol.
—Alegra-tecomoteufrescocrescer,comavidajovemquetensemti!
Oventobeijavaaárvoreeoorvalhochoravalágrimassobreela,masoabetonão
osentendia.
QuandochegouotempodoNatal,foramabatidasárvoresnovas,detenraidade
quemuitasvezesnãoerammaioresounãotinhammaisidadedoqueaqueleabeto,
quenãotinhadescanso,equequeriasempreirparalonge.Essasárvoresjovens,que
eram as mais bonitas de todas, ficavam sempre com todos os seus ramos, eram
postasemcarroçaseoscavaloslevavam-nasparaforadobosque.
—Paraonde irãoelas?—perguntavaoabeto.—Nãosãomaioresdoqueeu,
haviamesmoumaqueeramuitomaispequena.Porqueficamcomtodososramos?
Paraondeaslevam?
—Nóssabemos!Nóssabemos!—chilreavamospardais.—Espreitámosláem
baixonacidadeparadentrodasjanelas!Sabemosparaondeaslevam!Oh!Vãopara
omaiorbrilhoeglóriaquesepodeimaginar!Espreitámosparadentrodasjanelase
vimosqueficamplantadasnomeiodasalaaquecidaesãoenfeitadascomascoisas
maisbelas,maçãsdouradas,bolosdemel,brinquedosecentenasdevelas!
—Edepois?—perguntouoabeto,abanandocomânsiatodososseusramos.—
Edepois?Oquesucede?
—Bem,nãovimosmais!Masoquevimoseramaravilhoso!
—Vireiaseguiressebrilhantecaminho?—perguntouaárvorecomjúbilo.—É
bemmelhordoqueandarnomar!Comosofrocomesteanseio!SejáfosseNatal!
Agoraestoualtaecrescidacomoasoutrasqueforamlevadasdaquinoanopassado!
…Oh!Estivesseeujánacarroça!Estivesseeunasalaaquecidacomtodoessebrilho
e glória! E depois…? Bem, depois terão de vir coisas aindamelhores, aindamais
belas, senão para que me enfeitariam assim! Deve acontecer algo ainda mais
grandioso,aindamaisesplendoroso…Masoquê?Oh!Sofro!Anseio!Nãoseioque
sepassacomigo!
—Alegra-tecomigo!—aconselharamoarea luzdoSol.—Alegra-tecoma
tuafrescajuventudecáfora,aoarlivre!
Masnãosealegravanada.Cresciaecrescia,invernoeverãomantendo-severde.
Estavaverde-escura.Aspessoasqueaviamdiziam:
—Éumalindaárvore!
AtéquepeloNatalfoiaprimeiraaserabatida.Omachadocortoufundoatravés
da seiva, a árvore caiu com um gemido em terra. Sentia uma dor e um
desfalecimento,quenãotraziamnenhumafelicidade.Sentiapenaemseparar-seda
casa, do lugar onde tinha rebentado. Sabia bem que nunca mais veria os velhos
camaradasqueridos,ospequenosarbustoseasfloresàsuavolta,sim,talveznemos
pássaros.Aviagemtambémnãofoinadaagradável.
Aárvorevoltoua si,quandonopátio,demisturacomasoutrasárvores,ouviu
umhomemdizer:
—Aquelaaliébonita!Estaserve-nos!
Então vieramdois criados emproados e levaramo abetoparaumbelo salão.À
volta, nas paredes, suspendiam-se retratos e junto ao fogão grande de azulejos
estavam grandes vasos chineses com leões nas tampas.Havia cadeiras de baloiço,
sofás forrados de seda, grandes mesas cobertas com livros de estampas e com
brinquedos que tinham custado cem vezes cem táleres— pelomenos foi o que
disseram as crianças. O abeto foi colocado de pé numa barrica grande, cheia de
areia,masninguémdiriaqueeraumabarrica,poisforarevestidatodaàvoltacom
panoverdeeestavaemcimadeumtapetegrandedecoresvariegadas.Oh!Como
tremiaaárvore!Queiriaacontecer?Criadosemoçascomeçaramaenfeitá-la.Nuns
ramos penduraram redes pequenas de papel colorido. Cada rede estava cheia de
doces.Tambémtinhamaçãsenozesdouradasquesesuspendiam,comosetivessem
crescido aí, emais de uma centena de velinhas vermelhas, azuis e brancas foram
fixadas nos ramos.Bonecos que pareciam vivos como seres humanos— a árvore
nuncaantesvirataiscoisas—voavamnomeiodafolhagemeporcimadetudo,no
topo,foicolocadaumaestrelagrandedeouropel.Erabelo,maravilhosamentebelo!
—Estanoite—disseramtodos—,estanoitevaibrilhar.
«Oh!»,pensavaaárvore,«tomaraque seja jánoite!Tomaraqueasvelas sejam
acesas!Equeiráacontecer!Virãoasárvoresdobosquever-me?Voarãoospardais
juntodasjanelas?Crescereieuaqui,assimornamentada,invernoeverão?»
Sim, sabia bem, mas tinha verdadeiramente dores na casca de pura ânsia e as
doresnacascasãotãoterríveisparaumaárvorecomoasdoresdecabeçasãopara
nós.
Acenderam-se as velas.Que brilho!Que esplendor!A árvore tremia tanto em
todososramos,queumadasvelaspegoufogoàssuasagulhas.Doíarealmente.
—Deusnosacuda!—gritaramasmoças,queapagaramofogoatodaapressa.
Entãoaárvorenãoousoutremermais.Oh!Eraumhorror!Tinhatantomedo
deperderalgodasuapompa.Estavacompletamentedesorientadacomtodooseu
brilho…eentãoabriram-seambasasportasdedoisbatenteseumbandodecrianças
entrou de repelão, como se quisessem deitar a árvore abaixo.Os adultos vinham
discretamente atrás.Ospequenos ficaramcompletamente silenciosos,mas apenas
por um momento. Depois manifestaram a sua alegria de forma retumbante.
Dançaramemvoltadaárvoreecolherampresenteatrásdepresente.
«Que estão a fazer?», pensou a árvore. «Que vai acontecer?»As velas arderam
inteiramente até aos ramose apagaram-se.Entãoas crianças tiveramautorização
paradespojaraárvore.Oh!Assaltaram-nadetalmodoqueosramosestalaram.Se
nãoestivessepresacomapontaeaestreladeouroaoteto,teriacaído.
As crianças dançaram à volta com os seusmaravilhosos brinquedos.Ninguém
olhava agora para a árvore senão a velha criada dos meninos, que começou a
observá-laporentreosramos,massóparaversetinhaficadoesquecidoalgumfigo
oualgumamaçã.
— Uma história! Uma história! — gritaram as crianças, puxando um
homenzinhogordopara opéda árvore,que se sentoumesmoporbaixodela.—
Pois ficamos assimnomeio do verde—disse ele.—E a árvore pode beneficiar
extraordinariamenteseouvirtambém!Massócontoumahistória.Quereisouvira
do«Ivede-Avede»ouado«BolaQueRebola»,quecaiupelasescadasabaixomas
quechegouaotronoecasoucomaprincesa?
—«Ivede-Avede»—gritaramuns—,«BolaQueRebola»—gritaramoutros.
Eraumabarulheiraeumagritaria,sóoabetosemantinhacaladoepensava:«Devo
fazercomoeles,ounãofazernada?»Tinha-osacompanhadoefeitooquedevia.
Ohomemcontouahistóriado«BolaQueRebola»,quecaiupelasescadasabaixo
masquechegouaotronoecasoucomaprincesa.Eascriançasbaterampalmase
gritaram:— Conta! Conta!—Queriam também ouvir «Ivede-Avede», mas só
tiveramado«BolaQueRebola».Oabetoestava sossegadoepensativo,nuncaos
pássarosláforanobosquehaviamcontadocoisasdestegénero.«BolaQueRebola»
caiupelas escadas abaixomas casoucomaprincesa!Sim, sim, assimsepassamas
coisas no mundo!, pensou o abeto, acreditando que era verdade, pois fora um
senhor tãogentilqueo contara. «Sim!Sim!Quemsabe!Talvez eu tambémcaia
pelasescadasabaixoevenhaacasarcomumaprincesa!»Ealegrou-secomaideia
de,nodiaseguinte,serenfeitadocomvelasebrinquedos,ouroefrutas.
«Amanhãnãovoutremer!»,pensou,«querosimplesmentetodoomeuesplendor.
Amanhãvououviroutravezahistóriado“BolaQueRebola”etalvezado“lvede-
Avede”.»Aárvoreficousossegadaepensativatodaanoite.
Demanhãvieramocriadoeacriada.
«Agoravairecomeçarapompa!»,pensouaárvore,masarrastaram-naparafora
dasala,pelasescadasacima,atéaosótão,paraumcantoescuroondenuncaentrava
aluzdoSol,edeixaram-naaí.«Quesignificaisto?»,«Quevoufazeraqui?Quevou
poderouviraqui?»Encostou-seàparedeeficouapensar,apensar…Etinhatempo
suficienteparaisso,poispassaram-sediasenoites.Ninguémialáacimaequando
finalmenteapareceualguém, foiparapôrumascaixasgrandesnocanto.Aárvore
ficoucompletamenteescondida.Pensar-se-iaqueforatotalmenteesquecida.
«Agoraéinvernoláfora!»,pensouaárvore.«Aterraestáduraecobertadeneve,
os homens não me podem plantar. Por isso tenho de ficar aqui abrigada até à
primavera!É uma coisa bem pensada!Como realmente os homens são bons! Só
queriaqueaquinãofossetãoescuroetãoterrivelmente isolado…Nemaomenos
uma lebrezinha!…Era tãobom lá fora,nobosque,quandohavianeve e as lebres
saltitavam,sim,mesmoquandosaltavamporcimademim,doque,nessaaltura,não
gostavanada.Aquiemcimaestá-seterrivelmentesó!»
—Ih!Ih!—disseumratinhonomesmomomento,correndoparaasuafrentee
veiooutrotambém.Cheiraramoabetoemeteram-seporentreosseusramos.
—Fazumfrio terrível!—disseramos ratinhos.—Éumabênçãoestaraqui!
Nãoéverdade,velhoabeto?
—Nãosouvelhonenhum—respondeuoabeto.—Hámuitosquesãomuito
maisvelhosdoqueeu.
— Donde vens? — perguntaram os ratos. — E que sabes? — Eram
terrivelmentecuriosos.—Conta-nosalgodolugarmaisbelodaterra!Estivestelá?
Estivestenadespensa,ondeestãoosqueijosnasprateleirasesuspensosospresuntos
doteto,ondesedançaporcimadasvelasdeseboeseentramagroesesaigordo?
—Issonãoconheço!—disseaárvore.—Masobosqueconheço.Éláquebrilha
oSolecantamospássaros!—Depoiscontoutodaasuajuventude,eosratinhos,
quenuncatinhamouvidotaiscoisas,escutaram-noatentamenteedisseram:
—Realmente,comovistetanto!Comofostefeliz!
—Sim!—disseoabeto,pensandonoqueacabaradecontar.—Sim,foram,no
fundo,temposmuitodivertidos!—AseguircontousobreanoitedeNatal,quando
foienfeitadocombolosevelas.
—Oh!—disseramosratinhos.—Comofostefeliz,velhoabeto.
—Nãosounenhumvelho!—respondeuaárvore.—Foisónesteinvernoque
vimdobosque!Estounaminhamelhoridade,apenaspareinomeucrescimento.
—Como falas bem!— disseram os ratinhos, e na noite seguinte vieram com
quatrooutrosratinhosquequeriamouviraárvorecontar,equantomaiscontava,
maisdistintamenteselembravadetudoemaislheparecia:«Erampoistemposbem
divertidos!Maspodemviroutravez,podemvir!O“BolaQueRebola”caiupelas
escadasabaixoecasoucomaprincesa.Talvezeutambémvenhaacasarcomuma
princesa.»—Eoabetopensouentãonumalindabetulazinhaquecrescialáforano
bosque.Eraparaoabetoumaprincesaverdadeiramentelinda.
—Queméo«BolaQueRebola?»—perguntaramosratinhos.Entãooabeto
contou toda a história, lembrava-se de cada uma das palavras. E os ratinhos
estiveramquase a saltarparao topoda árvoredepura alegria.Nanoite seguinte
vierammuitosoutrosratose,nodomingo,duasratazanas.Masestasdisseramquea
histórianãoeradivertida,e issoentristeceuosratinhos,poisagoratambémnãoa
achavamtãobonita.
—Sósabeessahistória?—perguntaramasratazanas.
—Só esta!— respondeu a árvore.—Ouvi-a naminha noitemais feliz,mas
entãonãosabiaquãofelizera.
—É uma história extremamentemá!Não conhece nenhuma com presunto e
velasdesebo?Nenhumahistóriadadespensa?
—Não—disseaárvore.
—Bem,entãomuitoobrigada!—responderamasratazanas,queforamparaos
seusburacos.Osratinhosnãoaparecerammaiseaárvoremurmurou:—Era,na
verdade,bemagradável,quandoosratinhosespertinhossesentavamàminhavolta
eouviamoqueeucontava!Agoratambémissopassou!…maslembrar-me-eicom
prazer,quandoforlevadadaqui.
—Masquandoserá?…—Bem,foinumamanhã,bemcedo,emqueveiogente
que revolveu o sótão. As caixas foram removidas e a árvore arrastada para fora.
Lançaram-naumpoucobruscamenteparaochão,mas logoumcriadoaarrastou
paraaescada,ondebrilhavaaluzdodia.
«Agoracomeçadenovoavida!»,pensouaárvore.Sentiuoarfresco,osprimeiros
raiosdeSol…estavacáforanopátio.Tudosepassoutãodepressaqueaárvorese
esqueceu de olhar simplesmente para si porquemuito havia a ver à sua volta.O
pátio dava para um jardim e aí tudo floria. As rosas suspendiam-se frescas e
odorosas sobre a pequena balaustrada, as tílias estavam em flor e os pardais
esvoaçavamàvoltaediziam:
—Quirre-virre-vit, chegou o meu homem!—Mas não era ao abeto que se
referiam.
—Agoravouviver!—disse,alegrando-seeestendendoosramosbemparafora.
Ai! Estavam todos murchos e amarelos! Era num canto entre ervas daninhas e
ortigasque jazia.Aestreladepapeldouradoestavaaindanotopoebrilhavaà luz
claradoSol.
Nopátiobrincavam,alegres,algumasdascriançasquenoNatalhaviamdançado
à volta da árvore e que tão contentes ficaram com ela. Uma das mais pequenas
correuaarrancar-lheaestreladourada.
—Vejam,oqueaindaestánavelhaefeiaárvoredoNatal!—disseela,pisando
osramos,queestalaramsobassuasbotas.
Eaárvoreolhouparatodaaquelapompafloridaefrescuranojardim,olhoupara
siprópriaedesejouterficadonocantoescurodosótão.Pensounafrescajuventude
nobosque,nabelanoitedeNatalenosratinhostãoalegresquetinhamouvidoa
históriado«BolaQueRebola».
—Passado!Passado!—disseapobreárvore.—Semetivessealegradoquando
podia!Passado!Passado!
Porfim,vieramoscriadosecortaramaárvoreempequenospedaços.Ficouali
emmonte.Ardialindamentesobagrandevasilhaparafazercervejaquelhetinham
posto em cima, e suspirava profundamente.Cada suspiro era como um pequeno
disparo.Porisso,ascrianças,quebrincavam,correramepuseram-sediantedofogo
aolharparaeleeagritar:pif,paf!Masacadaestalo,queeraumprofundosuspiro,
pensava a árvore num dia de verão no bosque, numa noite de inverno, quando
brilhavamasestrelas.PensavananoitedeNataleno«BolaQueRebola»,aúnica
históriaqueouviraesabiacontar…eassimardeuatéaofim.
Osrapazesbrincavamnopátioeomaispequenotinhanopeitoaestreladourada
queaárvoreexibirana suanoitemais feliz.Agoraestaera jápassadoeahistória
também.Passado,passado,sãotodasashistórias!
AFamíliaFeliz
Amaiorfolhaverdequeexisteaquinopaísé,certamente,afolhadabardana.Se
alguémpequeninoapuserdiantedabarriguinha,écomoumaventalperfeitoe,sea
pusersobreacabeça,emtempodechuva,équasetãoboacomoumguarda-chuva,
porqueétremendamentegrande.Umabardananuncacrescesó.Não!Ondenasce
uma,nascemmuitas,sãodeumagrandebelezaetodaessabelezaservedecomida
aoscaracóis.
Os grandes caracóis brancos — que as pessoas finas, em tempos antigos,
mandavam preparar de fricassé — comiam as folhas e diziam «hum!, sabe tão
bem!», pois acreditavam que as bardanas tinham um gosto delicioso porque eles
viviamnassuasfolhasefoiparaserasuacomidaqueestastinhamsidosemeadas.
Havia então um velho solar onde já hámuito não se comiam caracóis porque
estavam completamente extintos. Mas as bardanas, essas, não estavam extintas,
Cresciamecresciamsobretodososcaminhosecanteiros.Jánadapodiasustê-las.
Era um imenso campo de bardanas. Aqui e acolá havia uma macieira e uma
ameixieirae,senãofossemelas,nuncasepensariaquehaviaaliumpomar.Tudo
erabardanasealiviviamosdoisúltimosevelhíssimoscaracóis.
Nemelesprópriossabiamquãovelhoseram,maslembravam-sedequehaviam
sidomuitos,queeramdeumafamíliaprovindadeumpaísestrangeiroeque,para
eleseparaosseus,foraplantadotodoocampodebardanas.Nuncatinhamestado
foradele,massabiamquehaviaalgonomundoquesechamavasolar.Aí,depoisde
cozinhadoatéficarpretoera-sepostoemtravessasdeprata,masoqueaconteciaa
seguirnãosesabia.Nãoeramcapazesde imaginarcomoseriaser-secozinhadoe
posto em bandeja de prata, mas devia ser algo belo e especialmente distinto.
Nenhum escaravelho, sapo ouminhoca a quem tinham perguntado, podia dar a
resposta.Nuncanenhumdelesforacozinhadooupostoemtravessasdeprata.
Os velhos caracóis brancos eram os mais distintos do mundo. O campo de
bardanas estava ali por amor a eles e o solar existia para que pudessem ser
cozinhadosepostosemtravessasdeprata.Eradissoqueestavamconvencidos.
Viviam muito sós, mas felizes. Como não tinham filhos, adotaram um
caracolzinho vulgar que educaram como se fosse o seu próprio filho. Porém, o
pequenonãocrescia,poiseraumcaracolvulgar.Aosvelhos,especialmenteàmãe-
caracol,parecia-lhequeelesetornavamaiorepediuaopai,quejánãotinhaolhos
queopudessemver,quepelomenosapalpasseacasinhadofilho.Foioquefeze
achouqueamãetinharazão.
Numdiacaiuumagrandechuvada.
—Ouvecomotamborila…rumpumpum,rumpumpum,nasbardanas—disseo
pai-caracol.
—Tambémestãoacairpingos!—afirmouamãe-caracol.—Atéescorrempelo
caule!Vaisver,vaificartudoencharcado!Estoucontentequetenhamosasnossas
boascasasequeopequenotambémtenhaasua!Emboaverdade,fez-semaispor
nósdoqueportodososoutrosserescriados.Podeassimver-secomosomosdealta
estirpe nomundo!Temos casa desde o nascimento e os campos de bardanas são
semeadosporamordenós!Gostariadesaberatéondeestemundoseestendeeo
queháparaalémdele!
—Nãohánadaparaalém!—proferiuopai-caracol.—Melhordoqueonosso
nãopodesernenhumoutrolugar,lánadaháqueeudeseje!
— Sim — concordou a mãe —, mas eu gostava muito de ir ao solar, ser
cozinhadaepostanumatravessadeprata.Todososnossosantepassadoso foram.
Acreditaqueháalgodedistintonisso!
— O solar está possivelmente desmoronado — disse o pai-caracol — ou as
bardanascresceramporcimadele,demodoqueossereshumanosnãopodemsair
de lá. De resto, não há pressa, mas tu andas sempre numa correria terrível e o
pequenocomeçaafazeromesmo.Nãosubiuocauleatéláacimaemtrêsdias?Até
mesintomaldacabeçaquandoovejolánoalto!
—Não deves ralhar-lhe— aconselhou amãe-caracol.—Ele arrasta-se com
tanta compostura… temos tanto prazer nele e para outra coisa não vivemos nós,
velhotes!Mas já pensaste como vamos arranjar-lhe uma esposa?Não crês que lá
paralonge,nocampodasbardanas,hajaalguémdanossaraça?—Caracóispretos
creioquehábastantes—disseovelho.
—Caracóis pretos sem casa,mas são tão vulgares e têm tanta presunção!De
restopodemosencarregardissoasformigas.Passamavidaacorrerparatráseparaa
frente,comosetivessemsemprequefazer.Sabem,comcerteza,deumaboaesposa
paraonossocaracolzinho!
—Sei,deverdade,damaisbonitadetodas!—disseumadasformigas.—Mas
receioquenãodêresultadoporqueérainha.
—Equetemisso!—redarguiramosvelhos.
—Ela temcasa?—Temumpalácio!—responderamas formigas.—Omais
belopaláciodeformigacomsetecentasentradas.
— Obrigada — disse a mãe-caracol. — O nosso filho não vai entrar num
formigueiro! Se não sabemde coisamelhor, vamos pedir aosmosquitos brancos.
Voamà roda à chuva e aoSol, conhecemo campode bardanas por dentro e por
fora.
—Temosumaesposaparaele!—informaramosmosquitos.Aunscempassos
de homem há, num groselheiro, uma menina-caracol com casa, que está
completamentesóecomidadeparasecasar.
—Sim,elaquevenhatercomele!—disseramosvelhos.—Eletemumcampo
debardanas,elatemsóumgroselheiro!
Eassimmandarambuscaramenina-caracol.Levouoitodias a chegar,mas foi
muitoapreciada,poispodiaver-sequeeraderaça.
Realizaram-seentãoasbodas.Seispirilampos luziramomelhorquepuderam;
para além disso, tudo se passou calmamente, pois os caracóis velhos não podem
suportaralvoroçosemanifestaçõesruidosas.Amãe-caracol,contudo,fezumbelo
discurso.Opai, comovido,não conseguiu.Ambosderamaosnoivos, emherança,
todo o campo de bardanas e disseram o que sempre tinham dito: os campos de
bardanaseramomelhordomundoeseelesvivessemhonestaehonradamenteese
semultiplicassem,umdiatodoshaveriamdeentrarnosolarparaseremcozinhados
atéficarempretoseserempostosemtravessasdeprata.
Edepoisdodiscursofeito,osvelhosarrastaram-separadentrodassuascasase
nuncamaissaíram;ficaramadormir.Ojovemcasaldecaracóisreinounocampode
bardanas e teve uma grande prole, mas nunca foram cozinhados e nunca foram
postosemtravessasdeprata,peloqueconcluíramqueosolarsehaviadesmoronado
equetodosossereshumanosestavamextintos.Comoninguémlhesdizianadaem
contrário,eraessa,portanto,averdade.
Eachuvabatianasfolhasdebardanaparafazermúsicadetamboresporamor
deles, eoSolbrilhavaparadarcoloridoaocampodebardanasporamoraeles, e
erammuitofelizes,etodaafamíliaerafeliz.
Porqueoera.
AVestimentaNovadoImperador
Hámuitos anos, viviaum imperadorquegostava tantode vestimentasnovas e
bonitas,quegastoutodooseudinheiroavestir-sebem.Nãosepreocupavacomos
seussoldadosnemcomcomédiasouempasseardecarruagempelobosque,apenas
queriaexibirassuasvestimentasnovas.Tinhaumacasacaparacadahoradodia,e
talcomosecostumadizerqueumreiestáemconselho,nestecasodizia-se:—O
imperadorestánoguarda-roupa.
Nagrandecidadeondevivia,otempodecorriamuitoagradável.Estavamsempre
a chegar forasteiros. Mas um dia vieram dois aldrabões. Disseram-se tecelões e
afirmaramquesabiamteceramaisbonitafazendaquesepodiaimaginar.Nãosóas
cores e o padrão eram invulgarmente bonitos,mas também as vestimentas feitas
com essa fazenda. Tinham a maravilhosa propriedade de ficar invisíveis para
qualquer pessoa que não fosse boa no seu ofício ou então inadmissivelmente
estúpida.
«Seria uma vestimenta bem bonita para vestir», pensou o imperador. «Podia
depoisvirasaberquepessoasnomeuimpérionãoprestamnoofícioquetêm.Podia
distinguir os espertos dos estúpidos! Sim, a fazenda tem de ser tecida
imediatamenteparamim!»Epôsnasmãosdosdoisaldrabõesmuitodinheiropara
quecomeçassemotrabalho.
Montaram dois teares, como se trabalhassem,mas não tinham amínima coisa
paratecer.Semhesitação,pediramasedamaisfinaeoouromaisbonito.Meteram-
nosnosseussacosetrabalharamcomostearesvazios,atéaomeiodanoite.
«Gostava agorade saberoque sepassa coma fazenda!»,pensouo imperador,
mas, no fundo, estava bastante embaraçado, por saber que todo aquele que fosse
estúpidoouquenãoprestassenoofícionãoconseguiriavê-la.Acreditavaquenão
precisavaderecearporsipróprio.Emtodoocaso,mandariaalguém,emprimeiro
lugar, para ver o que se passava. Todas as pessoas da cidade sabiam que poder
maravilhosotinhaotecidoetodosestavamdesejososdeveratéquepontoovizinho
nãovalianadaoueraestúpido.
«Vou mandar o meu velho e honrado ministro aos tecelões», pensou o
imperador. «Pode ver melhor como se apresenta o tecido, pois é inteligente e
ninguémémelhordoqueelenoseutrabalho.»
O velho e honrado ministro dirigiu-se então à sala onde os dois aldrabões
estavam sentados a trabalhar com os teares vazios. «Deus nos valha!», pensou o
velhoministro,arregalandoosolhos.«Nãoconsigovernada!»Masnadadisse.
Osaldrabõespediram-lheparateragentilezadeseaproximareperguntaram-
lhesenãoerabonitoopadrãoelindasascores.Apontaramparaostearesvazioseo
pobrevelhoministroescancarouosolhos,masnãoconseguiavernada,poisnada
havia para ver. «MeuDeus!», pensou ele. «Serei estúpido?Nunca tinha pensado
nisso.Masninguémdevesabê-lo.Nãoprestoparaomeutrabalho?Não,nãopode
ser,nãovoudizerquenãoconsigoverotecido.»
—EntãoV.Ex.anãodiznada?—perguntouaquelequeestavaatecer.
—Oh!Élindo!Primoroso!—respondeuovelhoministro,olhandoatravésdos
óculos.—Estepadrãoeestascores!Sim,voudizerao imperadorquemeagrada
extraordinariamente!
—Oh!Muitonosalegrasabê-lo!—disseramostecelões,queindicaramdepois
osnomesdascoresedescreveramopadrãoespecial.Ovelhoministroouviutudo
muitobem,parapoderrepeti-loaoimperador,quandoregressasse.Eassimofez.
Entãoosaldrabõespedirammaisdinheiro,maissedaeouro,queseriamprecisos
paraafeituradotecido.Meteramtudonosseussacos.Paraosteares,nemumfio!
Mascontinuaram,comoantes,atecernotearvazio.
Oimperadorenviou,novamente,umoutrohonradofuncionárioparavercomo
estavaotecidoesaberseestariaprontoembreve.Passou-seomesmoquesetinha
passado como velho e honradoministro.Olhou e voltou a olhar,mas comonão
haviaoutracoisaalémdostearesvazios,nadaconseguiuver.
—Nãoéverdadequeéumabelapeça?—perguntaramosaldrabões,exibindo-a
edandoesclarecimentossobreobelopadrãoque,evidentemente,nãoexistia.
«Estúpido não sou!», pensou o homem. «Será que não presto para o meu
trabalho?Haviadeserbonito!Masnãovoudaroprazeraalguémdeonotar.»E
assimlouvouotecido,quenãovia,eassegurou-lhescomogostavadeveraslindas
coreseobonitopadrão.
—Sim,éprimoroso!—disseeleaoimperador.
Todasaspessoasdacidadefalavamdolindotecido.
Entãoo imperadorquis,elepróprio,veroqueforafeitonosteares.Comuma
destacada comitiva, que incluía os velhos e honrados funcionários que antes já lá
haviam estado, dirigiu-se para os dois astutos aldrabões, que agora teciam com
todasasforças,massemfionemfibra.
— Não é magnifique? — perguntaram ambos os honrados funcionários. —
QueiraVossaMajestadeverquepadrão,quecores!—Eapontaramparaosteares
vazios,poisacreditavamqueosoutrospodiamcertamenteverafazenda.
«Que é isto?», pensou o imperador. «Não vejo nada! Oh, é terrível! Sou
estúpido?Nãoprestoparaserimperador?Eraacoisamaishorrívelquemepodia
acontecer!»
—Oh!Émuitobonito!—exclamou.—Temaminhasupremaaprovação!—
Eacenou coma cabeça, satisfeito, observandoos teares vazios.Nãoqueria dizer
quenãoconseguiavernada.Todaa comitivaqueviera comeleolhoue tornoua
olhar, mas não encontrou mais do que todos os outros. Tal como o imperador,
tambémafirmaram:
— Oh! É muito bonito! — E aconselharam-no a vestir esta nova e bonita
vestimenta,pelaprimeiravez,nagrandeprocissãoqueiriarealizar-se.
— É magnifique! Lindo! Excelente! — andava de boca em boca e todos se
sentiamintimamentecontentescomisso.Oimperadordeuacadaumdosaldrabões
umacruzdecavaleiroparapendurarnabotoeiraeotítulodecavaleirodetear.
Toda a noite, antes da manhã em que a procissão se realizaria, estiveram os
aldrabões de pé, commais de dezasseis velas acesas.Toda a gente podia ver que
estavamocupadosaacabaranovavestimenta.Fingiramquetiravamafazendado
tear,acortavamnoarcomgrandestesouras,acosiamcomagulhaelinhae,porfim,
disseram:
—Vede,agoraavestimentadoimperadorestápronta!
O imperador, com os seus cavaleiros mais distintos, foi ao encontro dos
aldrabões, que levantavam um braço no ar, como se segurassem alguma coisa.E
disseram:
—Aquiestãoascalças!Eisacasaca!Aquiomanto!—Eassimpordiante.—É
tãolevecomoteiadearanha!Parecequenãosetemnadavestidosobreocorpo,mas
éprecisamenteessaasuavirtude!
—Poisclaro!—afirmaramtodososcavaleiros,masnãoconseguiramvercoisa
alguma,poisnadahaviaparaver.
—Se agoraVossaMajestade Imperial tivesse a bondade de comprazer-se em
tirar as roupas— disseram os aldrabões—, vestir-lhe-íamos a nova vestimenta,
aqui,diantedograndeespelho.
O imperador despiu todas as roupas e os aldrabões agiram como se lhe
entregassempeçaporpeçadanovavestimenta,supostamenteacabada.Pegaram-lhe
pelacinturae fingiramacertaralgoqueestavapuxado,eo imperadorvirava-see
voltava-sediantedoespelho.
—Deus!Comovestembem!Comoassentamlindamente!—disseramtodosem
coro.—Quepadrão!Quecores!Éumtrajeprecioso!
—LáforaestãojácomopáliosoboqualiráVossaMajestadenaprocissão—
disseomestre-de-cerimóniasprincipal.
—Estábem,jáestoupronto—respondeuoimperador.—Nãoassentabem?—
Virou-seaindaumavezmaisdiantedoespelho,poisdeviaparecercomoseestivesse
aadmirarverdadeiramenteasuaelegância.
Osfuncionáriosdacorte,quetinhamdesegurarnacauda,tatearamcomasmãos
o chão, como se a levantassem. Saíram segurando-a no ar, não deviam deixar
transparecerquenadaconseguiamver.
Eassimseguiuoimperadoremprocissãosobopálioetodasaspessoasnarua,e
nasjanelas,diziam:
—MeuDeus!Como é impecável a nova vestimenta do imperador!Que bela
caudatemnacasaca!Comoassentatãobem!—Ninguémqueriaquenotassemque
nãoaviam,poisdestemodoeraconsideradomaunotrabalhooumuitoestúpido.
Nenhumaoutravestimentadoimperadorproduziratantafelicidade!
—Masnãolevanadavestido!—disseumacriancinha.
—LouvadosejaDeus!Ouçamavozdainocência!—retorquiuopai.Ecadaum
segredouaooutrooqueafirmaraacriança.
—Não levanadavestido!—gritoupor fim todoopovo. Isto impressionouo
imperador,poisparecia-lhequeopovotinharazão.Maspensou:«Agoratenhode
continuar com a procissão.» E assim continuou, ainda mais orgulhoso, e os
funcionáriosdacorteatrás,segurandonacaudaquenãoexistia.
HistóriasdoBrilhodoSol
—Agoravoueucontar!—disseoTempoVentoso.
—Não,comsualicença!—disseoTempodeChuva.—Agoraéaminhavez!
Hámuitoqueestáauivarnaesquinadarua,seéquetantoassimsepodeuivar!
— É o agradecimento — disse o Tempo Ventoso — por ter virado muitos
chapéusde chuva em suahonra.Sim, tê-losquebradomesmo,quandoaspessoas
nãoqueremnadaconsigo!
—Silêncio!Euconto!—falouoBrilhodoSol.—Eistofoiditocomlustroe
majestade.De talmodoque oTempoVentoso se deitou a todo o comprimento,
masoTempodeChuvasacudiu-oeproferiu:
—Temosdesuportaristo!Entraderompante,essesenhorBrilhodoSol!Não
vamosouvi-lo!Nãovaleapena!
MasoBrilhodoSolcontou:
—Voava um cisne sobre omar ondulante.Cada uma das suas penas brilhava
comoouro.Umadelas caiu lá embaixo,nograndenaviomercanteque vogava a
todo o pano. Poisou no cabelo encaracolado de um jovem, o superintendente da
mercadoria.Ouosobrecarga,comoeradenominado.Apenadaavedasorteroçou-
lheatestaetornou-seumapenadeescrevernasuamão.Ojovemfez-setãorico
mercadorquebempodiacomprarparasiesporasdeouroetransformartravessasde
ouronumbrasãodenobreza.
—Brilheinele!—disseoBrilhodoSol.
—Ocisnevoousobreopradoverdeondeopastorinho,umrapazinhodesete
anos,sedeitaraàsombradavelhaeúnicaárvorealiexistente.Eocisne,noseuvoo,
beijouumadas folhasdaárvore,quevoouparaamãodorapaz.Deumafolha se
fizeramtrês,dequesefizeramdez,dequesefeztodoumlivroeeleleunesteas
maravilhas da natureza, sobre a língua materna, sobre a fé e o saber. Quando
chegavaahoradeirparaacama,punhaolivrodebaixodacabeçaparanãoesquecer
oquelera,eolivrolevou-oaosbancosdaescola,àmesadaerudição.
—Lioseunomeentreosdossábios!—disseoBrilhodoSol.
— De novo o cisne voou. Dirigiu-se para dentro da solidão do bosque e
repousou nos lagos calmos e sombrios, onde crescem as açucenas brancas, onde
crescemasmaçãsbravaseondeoscucoseaspombasbravastêmpouso.
Umapobremulherandavaajuntarlenha.Ramoscaídos.Pô-losàscostase,com
ofilhinhoaopeito,foiparacasa.Viuocisnedourado,ocisnedafelicidade,elevar-
se da margem onde cresciam os juncos. Que brilhava ali? Um ovo de ouro que
estavaaindaquente.Pô-lojuntoaopeitoequenteficou.Haviacertamentevidano
ovo. Sim, algo picava dentro da casca.Apercebeu-se disso e julgouque era o seu
própriocoraçãoquebatia.
Emcasa,napobrecabana,tirouoovodeouroparafora.Tique,tique!—soava
ele, como se fosse um relógio de ouro precioso.Mas era um ovo cheio de vida.
Eclodiu.Umcisnezinho,complumagemcomosefossedeouropuro,pôsacabeça
de fora. Tinha quatro anéis à volta do pescoço e, como a pobre mulher tinha,
precisamente, quatro rapazes, três em casa e o quarto que trouxera consigo da
solidão do bosque, compreendeu que era um anel para cada uma das crianças e,
nesseprecisomomento,aavezinhadeouropartiuavoar.
Beijou cada anel e fez comque cadaumdos filhos os beijasse também.Pô-los
juntodocoraçãodascriançase,depois,colocou-osnosseusdedos.
—Euvi-o!—disseoBrilhodoSol.—Evioqueseseguiu!
Um dos rapazes sentou-se numa poça de barro, formou um torrão na mão,
moldou-ocomosdedoseestetornou-senafiguradeJosão,quefoibuscarotosão
deouro.
Osegundodosrapazescorreuparaoprado,ondehaviaflorescomtodasascores
imagináveis. Colheu uma mão-cheia delas e apertou-as com tanta força que os
sucos lhe salpicaram os olhos e molharam o anel que a mãe lhe dera. Excitado,
despertou-se-lhedetalformaaimaginaçãoque,diaseanosdepois,aindasefalava,
nacidade,dograndepintor.
O terceiro rapaz agarrou o anel tão fortemente na boca que soou um eco do
fundodocoração.Sentimentoseideiasascenderam-seemsonsquesubiramcomo
cisnescantantesemergulharamcomocisnesnaprofundezadolago.
Olagofundodopensamento.Tornou-seomestredasnotasedostons.Todosos
países podem agora pensar: «Ele pertence a todos nós!» O quarto era o bode
expiatório.Tinha gosma, falava-se. Precisava de pimenta e demanteiga como os
pintainhos doentes.Diziam estas palavras com a entoação que lhes apetecia dar:
«Pimentaemanteiga.»Eelerecebia-asatésefartar.
—MasdemimrecebeuumbeijodeSol—disseoBrilhodoSol.—Recebeu
dez beijos como se fossem um. Tinha a natureza dos poetas. Bateram-lhe e
beijaram-no,maseletinhaconsigooaneldasortedocisnedouradodafelicidade.
Os seus pensamentos pairavam como borboletas cantantes. O símbolo da
imortalidade!
—Foiumahistóriabemlonga!—disseoTempoVentoso.
—Eaborrecida!—disseoTempodeChuva.—Sopra-meparavoltaramim!
EenquantooTempoVentososoprou,oBrilhodoSolcontou:
—Ocisneda felicidadevoouentãosobreomarprofundo,ondeospescadores
tinhamdeitadoasredes.Omaispobredelespensavaemcasar-se.Ecasou-se.
Casou-seporque,paraele,ocisnetrouxeumpedaçodeâmbar.Oâmbaratrai.
Atraicoraçõesparacasa.Oâmbaréomaisbeloincenso.Vemdeleumodor,como
daigrejavemoodordanaturezadeDeus.Sentiram,verdadeiramente,afelicidade
deumabela vida em casa, a satisfaçãonas pequenas coisas e assim foi a sua vida.
Tornou-seumaverdadeirahistóriadoBrilhodoSol.
— Vamos interrompê-lo!— disse o Tempo Ventoso.— Já falou de mais o
BrilhodoSol.Paramimfoiumaborrecimento!
—Paramimtambém!—disseoTempodeChuva.
—Equedizemosentãonós,queouvimosashistórias?
—Dizemos:acabaram-seagora!
OsCisnesSelvagens
Muitolongedaqui,láparaondeasandorinhasvoamquandonóstemosinverno,
viviaumreicomonzefilhoseumafilha,Elisa.Osonzeirmãos—ospríncipes—
iam à escola com estrelas ao peito e sabre à ilharga.Escreviam em «ardósias» de
ourocom«penas»dediamanteesabiamtãobemrecitarcomoler.Ouvindo-os,via-
se logo que eram príncipes. A irmã Elisa sentava-se num pequeno escabelo de
cristaletinhaumlivrodeestampasqueforacompradopelovalordemeioreino.
Oh!Ascriançasviviammuitobem!Masnãoviriaasersempreassim!
Opai,queeraoreidetodoopaís,casoucomumarainhamá,nadagentilpara
comaspobrescrianças.Puderamnotá-lologonoprimeirodia.
Emtodoopaláciohaviagrandeostentaçãoeascriançasbrincavam«àsvisitas»,
masemvezdereceberembolosemaçãsassadas,queeraoquehaviaparaoferecer,a
rainhadeu-lhesapenasareianumachávenadechá,dizendoquepodiamfingirque
eraoutracoisa.
Logo na semana seguinte pôs a irmãzinha Elisa no campo, em casa de
camponeses,enãoduroumuitoatéquedissessetantacoisaaoreisobreospobres
príncipes,queestenuncamaisseimportoucomeles.
—Voemporessemundoforaetratemdevósmesmos—dissearainhamá.—
Voemcomograndesavessemvoz!—Nãolhespôde,porém,fazertantomalcomo
queria.Transformaram-seemonzebeloscisnesselvagens.Comumgritoestranho,
partiramavoardasjanelasdopaláciosobreoparqueeobosque.
Eraaindamanhãcedo,quandopassarampelacasadoscamponesesondeairmã
Elisa estava a dormir. Aqui pairaram sobre o telhado, estenderam os longos
pescoçosebateramcomasasas,masninguémosouviunemviu.Tiveramdevoltara
partir,noalto,entreasnuvens,pelomundofora.Voaramparaumgrandebosque
sombrioqueseestendiaatéàpraia.
ApobreElisinhaestavanacabanadocamponêsabrincarcomumafolhaverde,
poisoutrobrinquedonãotinha.Fezumburaconafolha,olhouatravésdeleparao
Solefoicomosevisseosclarosolhosdosirmãos,e,decadavezqueosraiosquentes
doSollhebrilhavamnasfaces,pensavanosbeijosdetodoseles.
Os dias decorriam iguais uns aos outros. Se o vento sopravana grande roseira
diante de casa, esta sussurrava às rosas:—Quem pode ser mais bonita do que
vocês?—Asrosasabanavamacabeçaediziam:—Elisa.—Eseavelhasesentava
aodomingoàportaaleroseulivrodesalmos,oventoviravaasfolhasediziaparao
livro:—Quem pode ser mais piedoso do que tu?— Elisa— dizia o livro de
salmos,eeraapuraverdadeoqueasrosaseolivrodesalmosdiziam.
Quandofezquinzeanos,mandaram-naregressar.Assimquearainhaviucomo
elaerabonita,encheu-sederaivaedeódio.Bema teria transformadonumcisne
selvagemcomoosirmãos,masnãoopodiafazerjá,poisoreiqueriaverafilha.
Demanhãcedo,arainhafoiàsaladebanho,construídaemmármoreedecorada
comalmofadasfofaseosmaisbelostapetes.Pegouemtrêssapos,beijou-osedisse
paraum:—Põe-tenacabeçadeElisa,quandoelaentrarnobanho,paraquefique
tãoestúpidacomotu.—Põe-tenasuatesta—ordenouaosegundo—paraque
fiquefeiacomotu,demodoaqueopainãoareconheça.—Pousanoseucoração
—segredouaoterceiro—paraquevenhaatermauspensamentoseasofrercom
isso.—Colocouentãoossaposnaáguaclara,quelogotomouumacoresverdeada.
Chamou por Elisa, despiu-a e mandou-a entrar na água e, quando ela aí
mergulhou,pôs-se-lheumsaponocabelo,osegundonatestaeoterceironopeito,
masElisapareceunemdarporisso.Logoqueselevantou,flutuaramtrêspapoilas
vermelhasna água.Seos animaisnão fossemvenenososnembeijadospela rainha
bruxa,ter-se-iamtransformadoemrosasvermelhas,masfloressetornarammesmo
assim,aotocaremacabeçaeocoraçãodeElisa.Erademasiadopiedosaeinocente
paraqueofeitiçotivessepodersobreela!
Quandoarainhamáviuisto,esfregou-acomsucodenozes,demodoqueficou
toda castanha-escura, untou o belo rosto com um unguento malcheiroso e
emaranhou-lheobelocabelo.EraimpossívelreconheceralindaElisa.
O pai, quando a viu, ficou todo horrorizado, dizendo que não era filha dele.
Ninguémmais a reconheceria senão o cão de guarda e as andorinhas,mas eram
pobresanimaisenadapodiamdizer.
Então a pobre Elisa chorou, pensando nos onze irmãos, que estavam longe.
Aflita, saiu furtivamente do palácio, andou todo o dia por campos e pauis,
embrenhando-se na grande floresta. Nem sequer sabia para onde devia ir, mas
sentia-setãotristeecomtantassaudadesdosirmãos,que,comoela,deviamtersido
tambématiradosparaomundo!Iriaprocurá-loseachá-los-ia.
Mal penetrou no bosque, logo anoiteceu. Afastou-se de caminhos e atalhos.
Deitou-sesobreomusgomacio,rezouasuaoraçãodanoiteeencostouacabeçaa
umcepo.Estavatudocalmo,oartãosuaveeàvolta,naervaenomusgo,brilhavam,
como fogo verde,mais de cem pirilampos.Quando tocou com amão levemente
numdosramos,tombaramosinsetosluzentes,comoestrelascadentes,sobreela.
Toda a noite sonhou com os irmãos. Brincavam, como quando eram crianças,
escreviamcom«penas»dediamantesobre«ardósias»deouroeviamobelolivrode
estampas que custara meio reino. Mas nas ardósias não escreviam, como antes,
apenaszerosetraços,não,masasaçõesmaisousadasquehaviampraticado,tudoo
quetinhamvividoevisto.Nolivrodeestampas,tudoeravivo,ospássaroscantavam
e os homens saíam do livro e falavam para Elisa e para os irmãos, mas quando
voltava a folha, logo saltavam novamente para dentro, para que não houvesse
confusãonasestampas.
Quando acordou, já o Sol ia alto. Não podia vê-lo bem, porque as grandes
árvoresestendiamosramosespessosefirmes,masosraiosbrincavamporforacomo
uma teia de oiro oscilante. Havia um perfume de verdura e os pássaros quase
vinham pousar-lhe nos ombros. Ouvia a água murmurar. Havia muitas fontes
grandes e todas escorriampara um lago comomais belo fundo de areia.À volta
cresciam espessos arbustos, mas num sítio os veados haviam feito uma grande
abertura e por aí se dirigiu Elisa até à água. Era tão clara que, se o vento não
agitasseosramoseosarbustos,demodoamoverem-se,podiabemteracreditado
que estavam pintados no fundo, tão distintamente se refletia aí cada folha, tanto
aquelas através das quais o Sol brilhava como as que se encontravam
completamentenasombra.
Assimqueviuo seurosto, ficou todahorrorizada, tãocastanhoe feioqueera!
Masquandomolhouamãozinhaeesfregouosolhoseatesta,luziuapelebranca
outravez.Então,tiroutodaaroupaeentrounaáguafresca.Umafilhadereimais
bonitaqueelanãoseencontrarianestemundo!
Quando voltou a vestir-se e entrançou o longo cabelo, encaminhou-se para a
fonteborbulhante,bebeudamãoemconchaecontinuouavaguearnobosque,sem
saberparaondeir.Pensounosirmãos,pensounobomDeus,quecertamentenãoa
abandonaria.ElefaziacrescerasmaçãsbravasparasaciarosfamintosefoiEleque
lhe mostrou uma tal árvore, com os ramos dobrados pelo peso dos frutos. Aqui
colheuoalmoço,colocousuportessobosramoseentrounapartemaissombriado
bosque.Estavatudotãosilenciosoqueouviaosprópriospassos,ouviacadafolhinha
amurcharquesecurvavasobosseuspés.Nãoseviaumpássaro.Nenhumraiode
Solconseguiapenetrarporentreosgrandeseespessosramosdasárvores.Osaltos
troncosestavamtãopertounsdosoutrosque,quandoolhavaemfrente,eracomo
seumagradedetravesbemjuntasumasàsoutrasarodeasse.Oh!Haviaaquiuma
solidãocomonuncaantesconhecera!
Fez-seentãomuitoescuraanoite!Nemumúnicopirilampozinhobrilhavano
musgo.Aflita,deitou-senochãoparadormir.Pareceu-lhequeosramosdasárvores
porcimaseabriamparaoladoequeoSenhor,comdocesolhos,olhavaparaelaem
baixoequeanjinhosespreitavamsobreasuacabeçaesobosseusbraços.
Quandodespertoudemanhã,nãosabiasesonharaouseforarealmenteassim.
Caminhoualgunspassosemfrenteeencontrouumavelhacombagasnumcesto.
Avelhadeu-lhealgumas.Elisaperguntou se viraonzepríncipes cavalgandopelo
bosque.
—Não—respondeuavelha—,masviontemonzecisnescomcoroasdeouro
nacabeça,nadandopeloregatoabaixo,aquimesmoaolado.
Depois conduziu Elisa um pouco mais à frente até um declive. Em baixo
torneavaumregato.Asárvoresnasmargensestendiamumasparaasoutraslongos
ramoscheiosdefolhaseonde,peloseucrescimentonatural,nãopodiamalcançar-
se. Tinham desprendido as raízes da terra, pendendo para a água com os ramos
entrelaçados.
Elisadisseadeusàvelhaedirigiu-seaolongodoregatoatéondeestefluíapara
umagrandepraiaaberta.
Todoobelomarestavadiantedarapariga,masnemumavelasemostrava,nem
umbarcosepodiaver.Paraondedeviaseguir?Observouasinumeráveispedrinhas
namargem.Aáguatinha-asarredondadotodas.Vidro,ferro,pedra,tudooqueali
jazia,lançadoàpraia,tomaraformapelaágua,que,contudo,eramuitomaismacia
doqueassuasfinasmãos.«Estásempreinfatigávelarolareassimsenivelaoqueé
duro.Tambémqueroserinfatigável.Obrigadapelavossalição,vóslímpidasondas
rolantes. Algum dia — diz-me o coração — ireis levar-me aos meus queridos
irmãos.
Nasalgaslançadasàpraiaestavamonzepenasbrancasdecisnes.Juntou-ascomo
que a fazer um ramo. Havia nelas gotas de água. Se era orvalho ou lágrimas,
ninguémopoderiadizer.Estavasozinhanapraia,masnãosesentiasó,poisomar
apresentavaumaeternatransformação,sim,emalgumaspoucashorasmaisdoque
os frescos lagos interiores poderiam mostrar em todo um ano. Se aparecia uma
grande nuvem negra, era como se o mar dissesse «eu também sei mostrar-me
sombrio»eentãosopravaoventoeasondasvoltavamobrancoparafora.Masseas
nuvensbrilhavamvermelhaseosventosdormiam,ficavaomarcomoumafolhade
rosa. Estava agora ora verde, ora branco, mas como repousava calmo! Havia,
contudo,nasmargensumsuavemovimento,aáguaelevava-sedocemente,comoo
peitodeumacriançaquandodorme.
QuandooSolestavaquaseapôr-se,Elisaviuonzecisnesselvagenscomcoroas
deouronacabeça,voandoparaterra.Pairavamunsatrásdosoutrosepareciamuma
longa fita branca. Então Elisa subiu o declive e escondeu-se por detrás de um
arbusto.Oscisnespousarampertodela,batendoasgrandesasasbrancas.
Quando o Sol se sumiu sob a água, caiu-lhes subitamente a plumagem e ali
estavamosonzebelospríncipes,osirmãosdeElisa.Lançouumgrandegrito,pois,
apesar de teremmudadomuito, sabia que eram eles, sentiu que deviam ser eles.
Saltou para os seus braços, chamou-os pelos nomes e eles ficaram tão contentes
quandoviramereconheceramairmãzinha,queagoraestavatãocrescidaebonita!
Riramechoraramelogolhecontaramcomoamadrastaforamáparacomeles.
—Nós,irmã—disseomaisvelho—,voamoscomocisnesselvagens,enquanto
oSolestánocéu.Quandodesce,tomamosanossaformahumana.Porisso,aopôr
doSol,temossempredeterocuidadodeencontrarumpousoparaospés,poisse
voássemos lá alto, na direção das nuvens, tombaríamos como seres humanos no
abismo.Nãoéaquiquemoramos.Háumaterratãobonitacomoestadooutrolado
domar,mas é longo o caminho para lá, temos de atravessar o grandemar e, no
trajeto, não há nenhuma ilha onde possamos pernoitar. Só um rochedozinho
isoladoseergueaí.Maisespaçonãotemdoqueaqueleemquepodemosrepousar
juntos uns aos outros. Se o mar está bravo, salpica a água sobre nós, mas
agradecemosaDeusporele.Alipernoitamosemnossaformadehomens;semele
nuncapoderíamosvisitaranossaqueridapátria,poisdoisdosmais longosdiasdo
anoprecisamosparaonossovoo.Sóumaveznoanonosépermitidovisitaraterra
dosnossospais.Podemosficaraíonzedias,voarsobreograndebosqueedaívero
palácioondenascemoseondemoraonossopai,veraaltatorredaigreja,ondeestá
enterrada a nossa mãe. Aqui parece-nos que as árvores e os arbustos são nossos
parentes,aquicorremoscavalosselvagenssobreaplanície,comoosvíamosnanossa
infância.Aquicantamoscarvoeirosasvelhascançõesaosomdasquaisdançávamos,
ainda crianças. Aqui é a nossa pátria, para aqui somos atraídos e aqui te
encontrámos,queridairmãzinha!Aindapodemosficardoisdias,masdepoistemos
departirsobreomarparaumabelaterra,masquenãoéanossa!Comopodemos
levar-te?Nãotemosnavionemsequerumpequenobarco!
—Comopodereisalvar-vos?—disseairmã.
Falaramquasetodaanoite.Apenasdormitaramalgumashoras.
Elisa acordou com o som das asas dos cisnes, sussurrando por cima dela. Os
irmãosestavamoutraveztransformados,voandoemgrandescírculoseporfimlá
paralonge,masumdeles,omaisnovo,ficouparatrás.Ocisnepôsacabeçanoseu
regaçoeelaacariciou-lheaspenasbrancas.Estiveramtodoodiajuntos.Ànoitinha
voltaramosoutrose,quandooSolsepôs,tomaramasuaformanatural.
—Amanhã vamos voar daqui.Não podemos regressar antes de todo um ano.
Masnãopodemosdeixar-teassim.Tenscoragemparanosseguir?Omeubraçoé
forteobastantepara te transportaratravésda floresta.Não teremos todos juntos
asassuficientementefortesparavoarcontigosobreomar?
—Sim,levai-meconvosco!—respondeuElisa.
Passaramanoitetodaatecerumarededecascadesalgueiroflexíveledejuncos
rijos,queficougrandeeforte.NelasedeitouElisaequandooSolseergueueos
irmãos se transformaram em cisnes selvagens, pegaram na rede com os bicos e
voaramaltoparaasnuvenscomairmãquerida,queaindadormia.OsraiosdoSol
incidiam-lhediretamentenorosto.Porisso,umdoscisnesvoavasobreasuacabeça
paraqueasasaslargaspudessemfazer-lhesombra.
Estava longe a terra, quando Elisa acordou. Julgou que ainda sonhava, tão
maravilhoso lhe pareceu ser transportada sobre omar alto, através do ar!Ao seu
ladohaviaumramodebelasbagasmaduraseummolhoderaízessaborosas.Tinha-
oscolhidooirmãomaisnovo,quealiospuseraparaela.Sorriu-lheagradecida,pois
sabiaque fora ele, oque voavapor cimada sua cabeça e lhedava sombra comas
asas.
Estavam tão alto que o primeiro navio que viram pareceu-lhes uma gaivota
brancapousadana água.Umagrandenuvemencontrava-sepordetrásdeles.Era
todaumamontanhaenelaviuElisaasombradesiprópriaedosonzecisnes, tão
gigantescosvoavamali!Eraomaisbeloquadroqueviraatéentão!Maslogoqueo
Sol subiumais alto e a nuvem ficou para trás, desapareceu a imagem da sombra
flutuante.
Continuaramtodoodiaavoar,comoumaflechasussurranteatravésdoar,mas
mais lentamente do que nunca, pois tinham de transportar a irmã. Pôs-se mau
tempo,anoiteaproximava-se.Receosa,ElisaviuoSolbaixareaindanãoseavistava
orochedoisoladonomar.Pareceu-lhequeoscisnesbatiammaisfortecomasasas.
Ai!Eraculpasuasenãochegassematempo.QuandooSolsepusesse,tornar-se-
iamsereshumanos,cairiamnomareafogar-se-iam.Entãorezoudomaisfundodo
coraçãoumaoração aDeus.Mas aindanão avistavanenhum rochedo.Asnuvens
pretasaproximavam-secadavezmais.Asfortesrajadasdeventoanunciavamuma
tempestade. As nuvens formavam uma única e grande onda ameaçadora, que
pareciachumboeavançava.Luziamrelâmpagosunsatrásdosoutros.
OSol estava agorana bordadomar.O coraçãodeElisa batia fortemente.Os
cisnesdesceramtãorapidamente,quejulgouqueiacair,masaindacontinuavama
pairar.OSolestavameiomergulhadonaágua.Avistouentãoopequenorochedo
embaixo,quenãopareciamaiordoqueumafoca,comacabeçaforadaágua.OSol
baixavarapidamente.Eraagoracomoumaestrela.Entretantoosseuspéstocaram
o chão firme.OSol extinguiu-se como aúltima chispa deumpapel a arder.De
braçosdados,viuos irmãosàsuavolta,masmais lugardoqueparaeleseelanão
havia ali em baixo.Omar batia contra o rochedo e tombava com fortes bátegas
sobre eles. O céu brilhava num fogo sempre constante e a trovoada ribombava,
trovãoatrásdetrovão,masElisaeosirmãosderamasmãosecantaramumsalmo,
comquereceberamconsoloecoragem.
Ao romper do dia o ar estava puro e calmo. Logo que o Sol subiu, os cisnes
partiramdailhaelevaramcomelesElisa.Omaraindaestavaagitado.Parecia-lhes,
quandoestavamnoar,queaespumabrancanomarverde-escuroerammilhõesde
cisnesvogandonasondas.
QuandooSolficouaindamaisalto,Elisaviudiantedesi,meioflutuandonoar,
uma terra montanhosa com massas de gelo brilhantes nas rochas e no meio
estendia-se um palácio com uma boa milha de comprido com arrojadas arcadas
umas sobre as outras. Por baixo abanavam palmeirais e flores maravilhosas, tão
grandes como rodas demoinho. Perguntou se era a terra para onde iam,mas os
cisnesabanaramacabeça,poisaquiloqueelaviaeraobelopalácionasnuvens,em
constante transformação, da FadaMorgana. Nele não podia entrar nenhum ser
humano. Elisa olhou-o fixamente. Então desmoronaram-se montes, bosques e
palácioeapareceramdozesoberbas igrejas, todas iguaisumasàsoutras,comaltas
torresejanelaspontiagudas.Pareceu-lheouvirórgão,masfoiomarqueelaouviu.
Agora estavam as igrejas bem perto, transformando-se numa frota que navegava
debaixodela.Olhouparabaixoeeraapenasumaneblinaquepassavasobreaágua.
Sim, uma transformação constante tinha ela diante dos olhos. Viu, então, a
verdadeiraterraparaondeia.Eerguiam-seaíbelasmontanhasazuis,combosques
decedros,cidadesepalácios.MuitoantesdeoSolsepôr,jáestavasentadanarocha
diante de uma grande gruta, coberta com verdes e finas plantas trepadeiras que
pareciamtapetesbordados.
—Agoravamosvercomoquevaissonharestanoiteaqui!—disseoirmãomais
novo,mostrando-lheoquartodedormir.
— Oxalá sonhe como poderei salvar-vos! — respondeu. E este pensamento
ocupou-a vivamente.Pediu fervorosamente aDeusque a ajudasse, sim,mesmo a
dormircontinuouaorar.Entãopareceu-lhequevoavaaltonoarparaopalácionas
nuvensdaFadaMorganaequeestaveioaoseuencontro,tãobelaeesplendorosa,
contudo,parecendo-secomavelhaque lhederabagasnobosquee lhe falarados
cisnescomcoroasdeoiro.
— Teus irmãos podem ser salvos — disse ela —, mas tens coragem e
perseverança? É certo que o mar é mais macio do que as tuas finas mãos. No
entanto,dáformaàspedrasduras,masnãosenteasdoresqueosteusdedoshãode
sentir.Não temcoração,não sofre a angústia eo tormentoque tensde suportar.
Vêsestaurtigaquetenhonamão?Destaespéciecrescemmuitasàvoltadagruta
ondedormes.Tomanota,sóessaseasquebrotamnassepulturasdocemitériosão
boas. São essas que tens de apanhar,mesmo que te façam arder a pele e deixem
bolhas.Seesmagaresasurtigascomospés,obteráslinho.Comeleterásdetecere
enlaçaronzecotasdemalha,demangascompridas.Lança-assobreosonzecisnes
selvagens e o encanto fica quebrado.Mas lembra-te bem!Desde omomento em
quecomeçaresoteutrabalhoeatéestarcompletamenteacabado,mesmoquedure
anos,nãopodes falar.Aprimeirapalavraquedisserespenetrarácomoumpunhal
mortíferonocoraçãodosteusirmãos.Datualínguadependeavidadeles.Temem
atençãotudoisto!
Nomesmomomento,tocou-lhenamãocomaurtiga.Sentiucomoqueumfogo
ardente.AssimacordouElisa.Erajádiaclaroepertodosítioondedormiraestava
uma urtiga como aquela que vira em sonho. Então caiu de joelhos, agradeceu a
Deusesaiudagrutaafimdedarinícioàsuatarefa.
Comasmãosdelicadasapanhouasfeiasurtigas,queeramcomofogo.Grandes
bolhas ardiam-lhe nas mãos e nos braços, mas de bom grado sofria, pudesse ela
salvarosqueridosirmãos.Esmagouasurtigas,umaporuma,comospésdescalçose
entrançouolinhoverde.
QuandooSolsepôs,vieramosirmãoseficaramassustadosaoencontrá-laassim
muda.Julgaramqueeraumnovoencantamentodamadrastamá,masquandolhe
viramasmãos,compreenderamoquefaziaporeles;o irmãomaisnovochoroue
onde as suas lágrimas caíam não sentia nenhumas dores, já que desapareciam as
bolhasardentes.
Passoutodaanoiteatrabalhar,poisnãodescansariaenquantonãotivessesalvo
osirmãosqueridos.Permaneceutodoodiaseguinte,enquantooscisnesestiveram
fora,sentadanoseuisolamento,masnuncaotempocorreratãodepressa.Umacota
demalhaficoucompletamentepronta.Começoulogoaseguinte.
Soou então a trompa de caça nos montes. Ficou cheia de medo. Os sons
aproximavam-se,podiaouviroscãesaladrar.Assustada,entrounagruta,atouum
molhoasurtigasquejuntaraecardaraesentou-seemcima.
Nesse mesmomomento veio um cão grande saltando do barranco e logo um
outroeaindaoutro.Ladraramalto,correramparatrásevoltaramoutravez.Não
demoroumuitoqueestivessemtodososcaçadoresdiantedagrutaeomaisbelode
todoseraoreidopaís.Dirigiu-separaElisa.Nuncaviraumaraparigatãobonita!
—Como vieste parar aqui, lindamenina?—perguntou o rei.Elisa abanou a
cabeça, não devia falar, tratava-se da salvação e da vida dos irmãos.Escondeu as
mãossoboaventalparaqueoreinãovisseoquetinhadesofrer.
—Vemcomigo!—disseele.—Nãopodesficaraqui!Seforestãoboacomoés
bonita,vestir-te-eidesedaeveludo,pôr-te-eiacoroadeouronacabeçaeresidirás
nomeupaláciomaisrico.Depois,pegounelaesentou-anocavalo.Elisachorava,
torciaasmãos,masoreidisse:
—Sóqueroatuafelicidade!Umdiaagradecer-me-ás!—Eassimpartiupelos
montes,segurando-aàfrentenocavaloeoscaçadoresatrásdele.
QuandooSolsepôs,estavaabelacidaderealcomigrejasecúpulasdiantedelese
o rei conduziu-a ao palácio, onde grandes repuxos saltavam nas altas salas de
mármoreeparedesetetosostentavampinturas.Maselanãotinhaolhosparaisso,
choravaeafligia-se.Dócil,deixouqueasdamaslhevestíssemosvestidosreais, lhe
entrançassempérolas no cabelo e lhe calçassem finas luvas nos dedos a arder por
causa das urtigas. Quando ficou em todo o seu esplendor, estava tão
deslumbrantementebelaqueacorteseinclinouaindamaisprofundamenteperante
elaeoreiproclamouElisacomosuanoiva.Aindaqueoarcebispoabanasseacabeça
emurmurassequeabelaraparigadobosqueeracertamenteumaheregequecegara
osolhoseseduziraocoraçãodorei!Masoreinãooouviu,mandoutocaramúsica,
queviessemosmaisdeliciososmanjaresequeasmaisgentismeninasdançassemà
voltadela.Foi levadaatravésdos jardinsodorosospara salasmagníficas,masnem
umsorrisolheassomouaoslábiosoutranspareceunosseusolhos.Atristezaestava
alicomoherançaeposseeternas.
Entãooreiabriuumpequenoaposentojuntoàqueleemqueiriadormir.Estava
decoradocompreciosastapeçariasverdesepareciamesmoagrutaondeelaestivera.
Nochãoencontrava-seomolhodelinhoqueteceracomasurtigasenotetoestava
suspensaacotademalhaqueficarapronta.Tudo isso trouxeraumdoscaçadores
consigo,comocuriosidade.
—Podes sonhar aqui com o antigo lugar onde vivias— disse o rei.—Eis o
trabalhoemqueteocupavas.Agora,nomeiode todooesplendor,divertir-te-áa
recordaressetempo!
QuandoElisaviutudoaquilo,quetãopertolheestavadocoração,esboçouum
sorriso e o sangue assomou-lhe às faces. Pensou na salvação dos irmãos, beijou a
mãodorei,queaestreitoudeencontroaocoraçãoemandouquetodosossinosdas
igrejastocassemaanunciarasbodas.Abelaraparigamudadobosqueveioasera
rainhadopaís.
Entãomurmurouoarcebispopalavrasmásaoouvidodorei,masnãolhecaíram
no fundo do coração. Realizou-se o casamento. O próprio arcebispo teve de
colocar-lheacoroanacabeçaecomtãomávontadeecomtantaforçalhepremiuo
estreito anel da coroa na testa, que lhe fez doer.Ummais pesado anel, contudo,
circundavaoseucoração—ocuidadopelosirmãos.Nãosentiaasdorescorporais.
Aboca estavamuda—umaúnicapalavra custaria aos irmãos a vida—,masnos
olhoshaviaumprofundoamorpeloreibomebelo,quetudofaziaparaaalegrar.
Detodoocoração,dediaparadia,lhequeriamais.Oh!Sepudessesimplesmente
confiar-seaele,contar-lheassuasmágoas!Masmudatinhadeser,mudatinhade
completar a sua tarefa. Por isso escapava-se de noite do lado dele, entrava no
quartinho que estava decorado como a gruta e acabou uma cota de malha após
outra,mas,quandocomeçouasétima,nãotinhamaislinho.
Sabia que no cemitério cresciam as urtigas de que precisava, mas tinha ela
própriadeirapanhá-las.Comoconseguiriaisso?«
Oh!Quesãoasdoresnosdedoscomparadascomatorturaquesofreocoração?»,
pensou. «Tenho de tentá-lo! O Senhor não me retirará a Sua proteção!» Com
angústianocoração,comoseestivesseperanteumamáação,desceunanoiteclara
de luar ao jardim, atravessou as longas áleas, saiu para as ruas solitárias e
encaminhou-se para o cemitério. Aí viu sentado numa das maiores pedras
tumularesumcírculodevelhasbruxashorríveisquedespiramosandrajos,comose
quisessembanhar-se,ecomeçaramaesgaravatarcomos longosdedosmagrosnas
covas frescas, retirandoos cadáveres e comendo-lhes a carne.Elisa tevedepassar
pertodelas,quelhelançaramolharesmaus,maselarecitouasuaoração,juntouas
urtigasardentosaselevou-asparaopalácio.
Sóumaúnicapessoaaviu,oarcebispo,queestava levantadoquandoosoutros
dormiam. Tinha, pois, razão quando dissera que havia algo na rainha que não
estavabem.
Eraumabruxa,assimtranstornandoacabeçaaoreieatodoopovo.
Noconfessionário,contouaoreioqueviraeoquereceava.Quandoaspalavras
duras lhe saíam da língua, as imagens dos santos abanavam a cabeça, como se
quisessemdizer:—Nãoéassim!AElisaestáinocente!Masoarcebispoexplicou-o
de outromodo, que testemunhavam contra ela, que abanavam a cabeça pelo seu
pecado.Rolaramentãoduaspesadas lágrimaspelas facesdo rei.Regressou a casa
comadúvidanocoraçãoeànoitefingiuquedormia,masnenhumsonotranquilo
lhecobriuosolhos.ObservoucomoElisaselevantavaequeassimsucediatodasas
noites.E de todas as vezes a seguiu demansinho, vendo que desaparecia no seu
aposentoprivado.
Dediaparadiatornou-se-lheosemblantemaissombrio.Elisanotou-o,masnão
compreendeu. Inquietou-se com isso, mas o que não sofria o seu coração pelos
irmãos!No veludo e púrpura reais corriam as lágrimas salgadas, aí se quedavam
comodiamantescintilantese todososqueviamessericoesplendordesejavamser
comoarainha.Estava,entretanto,quasenofimdotrabalho,faltava-lheaindauma
cotademalha.Masnãotinhamaislinho,nemumaúnicaurtiga.Maisumavez,a
última, tinha de ir ao cemitério apanhar umamão-cheia de urtigas. Pensou com
angústianocaminhosolitárioenasbruxashorríveis,masasuavontadeerafirme,
comoeraaconfiançaemDeus.
Assim lá foi, mas o rei e o arcebispo seguiram-na, viram-na desaparecer pelo
portão de grades do cemitério e, quando se aproximaram, depararam-se-lhe nas
pedras tumulares as bruxas queElisa encontrara.O rei virou o rosto, pois entre
estasjulgouveraquelacujacabeçaaindananoiteanteriorrepousaranoseupeito.
—Opovoqueajulgue!—disseorei.Eopovocondenou-a:seriaqueimadanas
chamasrubras.
Dasbelassalasreaisfoilevadaparaumamasmorraescuraehúmida,ondeovento
assobiavapela janelacomgrades.Emvezdeveludoesedaderam-lheomolhode
urtigas que colhera, podia aí repousar a cabeça. As cotas de malha duras e
ardentosasquetecerapodiamservir-lhedeenxergãoedecoberta.Masnadamais
caro podiam ter-lhe oferecido. Voltou ao trabalho e rezou a Deus. Lá fora
cantavam os rapazes da rua canções de escárnio sobre ela. Nenhuma alma a
consoloucomumapalavraquerida.
Ànoite, algo sussurrou juntoàsgrades, eramasasasdeumcisne.Erao irmão
maisnovo,quevoltaraaencontrarairmã.Elisasoluçoualtodealegria,sebemque
soubesse que a noite que chegava era talvez a última que tinha para viver.Mas
agoraotrabalhoencontrava-sequaseacabadoeoirmãoestavaali.
Oarcebispoveioparapassaraúltimahora juntodela,prometera-oaorei.Mas
ela abanou a cabeça, pediu-lhe como olhar e gestos paraque a deixasse sozinha.
Nessanoitetinhadeacabarotrabalho,ouseriatudoinútil,tudo,dores,lágrimase
noitesemclaro.Oarcebispofoi-seemboracommáspalavrasparaela,masapobre
Elisasabiaqueestavainocenteecontinuouatrabalhar.
Osratinhoscorriamnochão,arrastavamasurtigasparadiantedospésdela,pois
queriamajudá-laumpouco,eotordopousounasgradesdajanelaecantoutodaa
noite,tãoalegrementequantopodia,paraqueelanãoperdesseacoragem.
Aindaeramadrugada,sódentrodeumahoraselevantariaoSol.Aliestavamos
onzeirmãosaoportãodopalácio,pedindoparaseremlevadosaorei.Quenãopodia
ser foi a resposta, ainda era bem de noite, o rei dormia e não seria acordado.
Pediram,ameaçaram,veioaguarda,desceumesmoorei,queperguntouoquese
passava. Levantou-se então o Sol nomesmomomento e nenhum irmão havia à
vista,maslánoaltosobreopaláciovoavamonzecisnesselvagens.
Paraforadasportasdacidadeacorriaemmassaopovo,quequeriaverafeiticeira
aserqueimada.Ummiserávelcavalopuxavaacarroçaondeelaiasentada.Tinham-
lhedadoumvestidodeserapilheiragrosseira.Olindocabelocompridopendiasolto
à volta da esbelta cabeça.As faces estavampálidas demorte, os lábiosmoviam-se
lentamente, mas os dedos entrançavam o fio verde. Nem mesmo a caminho da
morte abandonava o trabalho começado.As dez cotas demalha estavam aos seus
pés,adécimaprimeiraacabavaelaagora.Apopulaçainsultava-a.
—Vede a feiticeira comomurmura!Nem um livro de salmos leva nasmãos!
Pelocontrário,oseuhorrívelfeitiçoleva-oelaconsigo.Tirai-lhoerasgai-oemmil
pedaços!
Correramparaelaequeriamrasgarascotas.Vieramentãoonzecisnesbrancos
voando, que se puseram à volta dela na carroça, batendo comas grandes asas. A
multidão,assustada,afastou-se.
—Éumsinaldocéu!Estácertamenteinocente!—murmurarammuitos,mas
nãoousaramdizê-loalto.
Depoisocarrascoagarrou-apelamão.Entãolançounumgestorápidoasonze
cotassobreosonzecisneselogoalificaramonzebelospríncipes,masomaisnovo
tinhaumaasadecisnenolugardeumbraço,poisfaltavaumamanganasuacota,
queelanãoconseguiraaprontar.
—Agorapossofalar!—disseela.—Estouinocente!
Opovo,queviuoqueacontecera,curvou-sediantedeElisacomoperanteuma
santa,maselatomboudesmaiadanosbraçosdosirmãos.Tantacomoção,angústiae
dorestiveramoseuefeito.
—Sim,estáinocente!—disseoirmãomaisvelho,edepoiscontoutudooque
acontecera e, enquanto ele falava, espalhou-se um perfume, como demilhões de
rosas,poiscadaumdospedaçosde lenhada fogueiracriararaízesedesabrochara
em ramos.Estava ali uma sebe odorosa, alta e grande com rosas vermelhas e em
cimaumaflorbrancaebrilhante,quereluziacomoumaestrela.Apanhou-aorei,
queapôssobreopeitodeElisaeentãoelaacordoucompazejúbilonocoração.
Todos os sinos tocaram por si próprios e vieram pássaros em grandes bandos.
Formou-se um cortejo de noivado de regresso ao palácio, comonunca rei algum
vira.
AArcaVoadora
Eraumavezummercadortãoricoqueatépodiacalcetararuatodacommoedas
de prata e quase uma ruelazinha ainda. Mas não o fez, sabia empregar o seu
dinheirodeoutromodoesedespendiaumxelim,recebiaumtáleremtroca.Assim
eraomercador…eassimmorreu.
Ofilhoficouentãocomtodoessedinheiroelevouavidaadivertir-se.Foitodas
asnoitesamascaradas,armoupapagaioscomasnotasdetáleresefezsaltitarsobrea
superfície do mar moedas de ouro em vez de pedrinhas. Bem podia o dinheiro
sumir-seeassimsucedeu.Porfimnãopossuíamaisdoquequatroxelinsenãotinha
outra vestimenta senão um velho roupão e um par de pantufas. A partir daí os
amigosnão se importarammais comele,pois jánãopodiam ir juntospara a rua,
masumdeles,queerabom,mandou-lheumavelhaarcaedisse:
—Fazamala!—Sim,estavatudomuitobem,maselenãotinhanadacomquea
enchereassimsentou-seelepróprionaarca.
Eraumaarcapitoresca.Logoquesepremiaa fechadura,punha-seavoar.Foi
issoquefez,bumba!,vooucomeleporaíacima,atravésdachaminé,alto,porsobre
asnuvens,cadavezmais longe.Rangianofundoeeleestavacommuitomedode
que se fizesse em pedaços, pois se assim fosse vinha a dar um bem bonito salto.
Deus nos livre disso!Chegou à terra dos turcos.Escondeu a arca no bosque sob
folhasmurchasedirigiu-seàcidade.Bemopodiafazer,poisosturcosandamtodos
comoele,emroupãoepantufas.Encontrouassimumaamacomumacriancinha.
— Ouve, ama de turcos! — disse ele. — Que grande palácio é este junto à
cidade?Asjanelassãotãoaltas!
—Mora láa filhadorei!—disseela.—Foi-lheprofetizadoqueseria infeliz
porcausadeumnamoradoeporissoninguémpodeaproximar-sedelasemoreiea
rainhaestaremnasuacompanhia!
—Obrigado!—disseofilhodomercador,depoisfoiparaobosque,sentou-se
na arca, voou para o telhado e deslizando entrou pela janela do aposento da
princesa.
Estavadeitadanosofáadormir.Eratãobelaqueofilhodomercadortevedea
beijar.Aprincesaacordoueficoumuitoassustada,maseledissequeeraodeusdos
turcosquetinhadescidopeloaratéela,eissosoou-lhebem.
Sentaram-seao ladoumdooutro,elecontou-lhehistórias sobreosolhosdela,
que eram osmais lindos lagos de tons escuros e que os pensamentos nadavam aí
comosereias.Falou-lhedasuatesta,queeraumamontanhadenevecomasmais
belassalaseimagens,econtou-lhedacegonhaquetrazasmaisdocescriancinhas.
Oh!Eramhistóriasbembonitas!Foidessemodoquesedeclarouàprincesaeela
disselogoquesim.
—Mastemdeviraquinosábado—disseela.—Oreiearainhaestãocomigo
paraumchá!Ficarãomuitoorgulhososdeeureceberodeusdosturcos,masvejase
sabe um conto bem bonito, pois os meus pais gostammuito de ouvir contar. A
minhamãegostaqueelessejammoraisedistintoseomeupaidivertidos,parase
rir!
—Sim,nãotragooutropresentedenoivadosenãoumahistória!—afirmouele.
Separaram-se,masaprincesadeu-lheumsabre,incrustadocommoedasdeouro,e
estasbemsabiaelecomoutilizá-las.
Voouparafora.Comprouumroupãonovoesentou-senobosqueacomporuma
história,queteriadeficarprontaatésábadoeistonãoerafácil.
Finalmentedeuocontoporterminado.Etinhachegadoosábado.
Oreiearainhabemcomotodaacorteesperavam,comoconvidados,paraochá
daprincesa.Eofilhodomercadorfoiadmiravelmentebemrecebido!
—Querentãocontar-nosumahistória?—perguntouarainha.—Umaqueseja
desentidoprofundoeinstrutivo!
—Masquefaçatambémrir!—acrescentouorei.
—Certamente!—disseeleecomeçouacontar.Temosdeouvi-labem!
Eraumavezummolhodefósforos,extraordinariamenteorgulhosopelofactode
ser de alta estirpe. A sua árvore genealógica, quer dizer, o grande abeto, de que
eramumpedacinho, tinha sidoumagrandeárvoreantigadobosque.Os fósforos
estavamagoranaprateleira,entreumisqueiroeumavelhapaneladeferro,epara
elescontavamhistóriasdasuajuventude.
— Sim, quando estávamos no ramo verde! — diziam eles. — Estávamos
realmente bem!Todas asmanhãs e todas as noiteshavia cháde diamantes: era o
orvalho. Todos os dias tínhamos luz do Sol, quando este brilhava, e todos os
passarinhos tinhamde contar-noshistórias.Bempodíamos aperceber-nosdeque
tambéméramosricos,poisasárvoresdefolhasóestavamvestidasnoVerão,masa
nossa família possuía meios para ter vestuário verde tanto no verão como no
inverno. Mas vieram os lenhadores, foi a grande revolução, e a nossa família
dispersou-se.Otronco,queeraochefedafamília,obteveumlugardemastroreal
numbelonavioquepodianavegaràvoltadomundo,sequisesse.Osoutrosramos
foramparaoutroslugaresenóstemosagoraatarefadeacenderaluzparaaarraia-
miúda.Porissosomosgentedistintaqueveioaquiparaacozinha.
—Comigopassa-sedeoutromodo!—disseapaneladeferro,aoladodaqual
estavamosfósforos.—Desdequevimaomundoquesouesfregadaepostaaolume
continuamente!Cuidodoqueésólidoesou,naverdade,aprimeiracoisaaquina
casa.Aminhaúnicaalegriaé,depoisdamesa,ficaraquilimpaebonitanaprateleira
e terumaconversaajuizadacomoscamaradas.Mas, seexcetuarobaldedeágua,
que,umavezporoutra,desceaojardim,vivemossempredentrodeportas.Ocesto
decompraséoúnicoquenostrazasnovidades,maselefalatãoviolentamentedo
governoedopovo!Sim,outrodiafoiumvelhopotequecaiuládecima,demedo,e
desfez-seempedaços!Temumasideiasfrescas!Tenhodevosdizer!
—Agoraestásafalardemais!—disseoisqueiro,eoaçobateunapederneira,
atéfazerfaísca.—Nãoeraumanoiteagradávelquequeríamos?
—Sim,falemossobrequaldenóséomaisdistinto!—disseramosfósforos.
—Não, não gosto de falar demim própria— afirmou a panela de barro.—
Façamos um serão! Vou começar, vou contar-vos algo que cada um já viveu.
Compreende-semelhor a situação e émuito agradável.Estamos nomarBáltico,
comasfaiasdinamarquesas!
—É um lindo começo!— afirmaram todos os pratos.—Vai ser certamente
umahistóriadequetodosiremosgostar!
—Sim,aípasseiaminhajuventude,emcasadeumafamíliatranquila.Osmóveis
erampolidos,ochãoesfregado.Haviacortinaslavadastodososquinzedias!
—Comocontaissodemodotãointeressante!—referiuoespanador.—Pode-
se logo perceber que é uma mulher, pelo modo como conta. Há nisto algo de
asseado!
—Sim,sente-seisso!—disseobaldedeágua,edeuumsaltinhodealegriaea
águafezclatchnochão.
Apanelacontinuouacontar,eofimfoitãobomcomooprincípio.
Todosospratosmatraquearamalegremente,oespanadorfoibuscarsalsaverde
doburacodeareiaecoroouapanela,poissabiaqueissoaborreceriaosoutros,mas
pensou«Seacoroohoje,vaicoroar-meelaamanhã.»
—Agora vou dançar!—disse a tenaz, e dançou.Deusmeu!Como sabia pôr
umapernanoar!Ovelhopanoquecobriaacadeiraaocantorasgou-seaovê-la.—
Possosercoroada?—perguntouatenaz,efoi.
«Épurapopulaça!»,pensaramosfósforos.
Agoradeviacantarosamovar,masestavaresfriado,disseele,nãoopodiafazer
semestara ferver.Sentia-sedeoutraestirpe.Nãoqueriacantar senãoquandose
encontrasseàmesadosenhorio.
Na janelaestavaumavelhapena,comaqualacriadacostumavaescrever.Não
havianadadenotávelnelasenãoqueforamergulhadademasiadofundanotinteiro,
mas por isso fazia-se grande.— Se o samovar não quer cantar— disse ela—,
deixá-lo! Lá fora está um rouxinol numa gaiola que sabe cantar.Não aprendeu
nada,masnãoqueremosfalarmalestanoite!
—Achomuito impróprio—referiuachaleira,queeraacantoradacozinhae
meia-irmã do samovar — que se tenha de ouvir um pássaro estranho! É isso
patriótico? Quero ouvir a opinião do cesto de compras.— Estou simplesmente
desgostoso!—disseocestodecompras.
—Estouinteriormentetãodesgostoso,comoninguémpodeimaginar!Éestaa
maneira própria de passar a noite?Não seriamais acertado dar uma boa volta à
casa?Cadaumiriaparaoseulugareeudirigiriatodoocodilho.Seriabemoutra
coisa!
— Sim, façamos algazarra! — acrescentaram todos. No mesmo momento a
porta abriu-se.Era a criada, e ficaramquietos.Nenhum tugiunemmugiu.Mas
nãohaviapanelaalgumaquenãosoubesseoquepodiafazerecomoeradistinta.
«Sim,seeutivessequerido»,pensavamelas,«teriasidoumanoitedivertida!»
A criada pegounos fósforos, fez fogo com eles.Deusmeu!Como faiscaram e
flamejaram!
«Agoratodospodemver»,pensarameles,«quesomososprimeiros!Quebrilho
temos!Queluz!»Eassimarderamcompletamente.
— Foi uma bela história! — disse a rainha. — Senti-me perfeitamente na
cozinhacomosfósforos.Sim,vaisteranossafılha!
—Certamente!—confirmouorei.—Vaisteranossafilhanasegunda-feira!
—Agoratratavam-noportu,poisiapertenceràfamília.
Adatadabodafoifixadaenanoiteanteriortodaacidadefoiiluminada.Bolose
biscoitos voaram ao desbarato. Os rapazes da rua punham-se nos bicos dos pés,
davamhurraseassobiavamcomosdedos.Foiumamaravilha.
«Tenho de ver se faço também alguma coisa!», pensou o filho domercador, e
comprou foguetes, estalinhos e todo o fogo-de-artifício que se podia imaginar.
Carregou-onasuaarcaevooucomeleparaoar.
Rutch!Comosaltava!Ecomoflamejava!
Todososturcosderampulosdecontentes,detalformaqueaspantufasvoaram-
lhes à volta das orelhas.Um espetáculo do céu assim nunca tinham visto. Agora
podiamcompreenderqueeraoprópriodeusdosturcosqueiacasarcomaprincesa.
Logoqueofilhodomercadordesceudenovocomasuaarcaaobosque,pensou:
«Quero ir agora à cidade para ouvir contar como viram o espetáculo!» E era
aceitávelquetivessevontadedisso.
Oh!Oquecontavam!Cadaumadaspessoasaquemperguntoutinha-ovistoa
seumodo,masbonitotinhasidoparatodas.
—Euvioprópriodeusdosturcos—disseuma.—Tinhaosolhoscomoestrelas
brilhantesebarbacomoáguaespumante!
— Voava com uma capa de fogo — acrescentou outra. — Os mais lindos
anjinhosespreitavamdedentrodaspregas.
Sim,foramcoisasbonitasqueouviuenodiaseguinteseriamasbodas.
Entãovoltouaobosqueparasesentarnasuaarca…masondeestavaela?Aarca
ardera completamente.Uma fagulhado fogode artifício tinha lá ficado, atearao
fogoeaarcaeraagoracinza.Nãopodiavoarmais,nemvoltarparaasuanoiva.
Aprincesaficoutodoodianotelhadoàespera,aindaestáàespera.Maselecorre
mundoecontahistórias.Nãosão já,contudo, tãodivertidascomoadomolhode
fósforos.
OlavinhoFecha-os-Olhos
Em todo omundo não há ninguém que saiba tantas histórias comoOlavinho
Fecha-os-Olhos…Ecomosabecontá-las!
É à noitinha, quando as crianças estão sentadas, tão boazinhas, àmesa ou nos
seus banquinhos, que chega Olavinho Fecha-os-Olhos. Sobe de mansinho as
escadas, pois anda emmeias, abre aportadevagarinho epuf!, esguicha leitedoce
nos olhos, suavemente, suavemente,mas sempre o bastante para que não possam
mantê-los abertos e, portanto, vê-lo. Passa sorrateiro por detrás, sopra-lhes
levementenanucatornando-lhesacabeçapesada.Oh!Sim!Masnãolhesfazmal,
poisOlavinho Fecha-os-Olhos quer o bem das crianças. Só quer que venham a
estarquietaseassimoestãoquasesempre,quandoas levamparaacama.Têmde
ficarsossegadasparaqueelepossacontar-lheshistórias…
Quandoascriançasjádormem,OlavinhoFecha-os-Olhossenta-senacama.Ele
veste-sebem.Acasacaédeseda,masnãoépossíveldizerquecortem,poisbrilha
comtonsverdes,vermelhoseazuis,conformesemexe.Porbaixodecadabraçotraz
umchapéude chuva:um tem imagens, e essepõe-no sobre as criançasboas,que
assimsonhamtodaanoitecomasmaislindashistórias,eooutro,noqualnadahá,
põe-nopor cima das criançasmalcriadas, que assimdormem estupidamente e de
manhã,quandoacordam,nemamínimacoisasonharam.
Vamos agora ouvir como Olavinho Fecha-os-Olhos, durante uma semana
inteira, veio todas as noites visitar um rapazinho chamadoHialmar e o que lhe
contou!Aotodosãosetehistórias,poissetesãoosdiasdasemana.
Segunda-feira
—Ouve!—disseOlavinhoFecha-os-OlhosquandoapanhouHialmarnacama.
—Vou fazer agoraumadecoração!—As flores dos vasos transformaram-se em
árvoresgrandes,queestendiamoslongosramosatéaotetoeaolongodasparedes,
demodoquetodooaposentoformavaomaisbonitocaramanchão,etodososramos
estavam cheios de flores e cada flor era mais bonita do que a própria rosa.
Cheiravam tão bem e, quando as comia, eram mais doces do que compota! Os
frutos brilhavam como ouro e havia bolos que transbordavam com passas. Era
incomparável!Masnomesmomomento começouaouvir-seum lamento terrível
nagavetaondeHialmarpuseraoslivrosdaescola.
—Queéisto?—disseOlavinhoFecha-os-Olhos,edirigiu-seàmesa,abrindoa
gaveta.Eraalousa,quesesentiabeliscadaeapertada,poisvieraumnúmeroerrado
paraaconta,demodoqueestavaquaseadesconjuntar-se.Apenapulavaesaltava
naguita,comosefosseumcãozinhoquequeriaajudarnascontas,masnãopodia…
AseguirfoiocadernodeescritadeHialmar,queládentrocomeçoualamentar-se.
Oh!Erahorrívelouvi-lo!Aoalto,decimaabaixo,emcadafolhaestavamtodasas
letras grandes, cada uma com uma pequena ao lado, toda numa fila para baixo.
Eram modelos e ao lado delas estavam também algumas letras que julgavam
parecer-secomelas,escritasporHialmar.Estavamcomosetivessemcaídosobreo
traçodolápis,quandoeranelequedeviamestardepé.
—Vejam, é assimque têmde ficar!—disseramosmodelos.—Vejam, assim
paraolado,comumimpulso,decidido!
— Oh! Bem o queremos! — disseram as letras de Hialmar. — Mas não
podemos,estamostãomal!
— Então vou ter de sacudir-vos «o pó das bochechas»!— referiu Olavinho
Fecha-os-Olhos.
—Oh!Não!—gritaramelas,elogosepuseramtãodireitasqueeraumgosto
vê-las.
—Bem,agoranãoháhistóriasparacontar!—disseOlavinhoFecha-os-Olhos.
—Tenhodeexercitá-las!Um,dois!Um,dois!—Eexercitouassimasletras,até
que ficaram tãodireitas e tão sãs, como só osmodelos podem ficar.Masquando
OlavinhoFecha-os-OlhossefoiemboraeHialmardemanhãasviu,elasestavam
exatamentetãomiseráveiscomoantes.
Terça-feira
LogoqueHialmarfoiparaacama,tocouOlavinhoFecha-os-Olhoscomasua
seringuinha de duende em todos os móveis do aposento, que imediatamente
começarama tagarelare todos tagarelavamsobresipróprios,excetooescarrador,
que estava calado e resmungavaporque todos eram tão vaidosos, só falandode si
próprios, só pensando em si próprios e não tendo o mínimo pensamento sobre
aquelequealiestavatãomodesto,aocanto,edeixavaquelhecuspissememcima.
Sobreacómodaestavasuspensoumgrandequadronumamolduradourada.Era
umapaisagem.Viam-seárvoresaltasevelhas,floresentreaervaemuitaágua,um
rioquecorriapordetrásdobosque,passandopormuitoscastelos,atélonge,parao
altomar.
OlavinhoFecha-os-Olhostocoucomasuaseringadeduendenoquadroelogo
começaram os pássaros a cantar, os ramos das árvores a mover-se e as nuvens
puseram-seemfuga.Podiamver-seassuassombrassobreapaisagem.
EntãoOlavinhoFecha-os-Olhos levantouopequenoHialmaratéàmoldurae
este meteu as pernas dentro do quadro, no meio da erva alta e lá ficou. O Sol
brilhava por entre os ramos das árvores, descendo sobre ele.Correu para a água,
sentou-se numbarquinho que lá havia.Estava pintado de vermelho e branco, as
velasbrilhavamcomoprata, e seis cisnes, todos comcoroasdeouronopescoçoe
uma estrela azul cintilante na cabeça, puxaram o barco, passando pelos bosques
verdes, onde as árvores contavam histórias de salteadores e bruxas e as flores
históriasdeadoráveisduendezinhosedoqueasborboletaslhestinhamcontado.
Osmaislindospeixes,comescamascomosefossemprataeouro,nadavamatrás
do barco.De vez emquando davamum salto, depois voltavam a fazer platch na
água.Ospássaros,vermelhoseazuis,pequenosegrandes,voavamemduaslongas
filasportrás.Osmosquitosdançavameosbesourosfaziamzum!,zum!Todoseles
queriamseguirHialmar,etodostinhamumahistóriaparacontar.
Eraumpasseioàvela!Oraeramosbosquesespessoseescuros,oraomaisbelo
jardimcomSolefloreseláhaviagrandescastelosdevidroedemármore.Àvaranda
estavamasprincesasetodaseramasmeninasqueHialmarbemconhecia,poiscom
elas brincara antes. Estendiam as mãos e tinham o mais delicioso porquinho de
açúcar que uma vendedeira de bolos podia vender. Hialmar pegava numa das
extremidades do porquinho de açúcar, enquanto passava de barco, e a princesa
segurava-o bem, de modo que cada um ficava com a sua parte, ela, com a mais
pequena,Hialmar,comamaior.Emcadacastelohaviaprincipezinhosdesentinela
que punham ao ombro os sabres de ouro e faziam chover passas e soldados de
chumbo.Eramverdadeirospríncipes!
OranavegavaHialmarpelosbosques,oraporgrandessalasoupelomeiodeuma
cidade.Chegouassimaatravessaraquelaemquemoravaasuaama,aquelaqueo
trouxeranosbraços,quandoerabempequeninoequetantolhetinhaquerido.Ela
fez-lhe sinal com a cabeça e acenou-lhe, cantando a linda cançãozinha que ela
própriacompuseraelheenviara:
Emtipensoemmuitahora,
meuHialmar,tãocaromeu!
Aboquinhabeijei-teoutrora,
asbochechascoradas,orostoteu.
Aspalavrasprimeirasouvi-tedizer,
tivedeseparar-medeti,dizer-teadeus.
AbênçãodoSenhorvenhassempreater,
naTerra,anjoqueédoReinodeDeus!
Todosospássaroscantavam.Asfloresdançavamnosseuspéseasvelhasárvores
acenavam,comoseOlavinhoFecha-os-Olhoslhescontassetambémhistórias.
Quarta-feira
Oh!Comochovialáfora!Hialmarpodiaouvi-laemsonho.EquandoOlavinho
Fecha-os-Olhosabriuumajanela,chegavaaáguaatéaopeitoril.Eratodoummar,
masomaisbonitonavioestavajuntoàcasa.
—Queres viajar também, Hialmarzinho?— perguntou Olavinho Fecha-os-
Olhos.—Durante a noite podes alcançar terra estranha e estar aqui de manhã
outravez!
Hialmar ficou logo com a roupa de domingo no meio do belo navio e
imediatamente o tempo se pôs maravilhoso, começaram a navegar pelas ruas,
cruzaramaigrejaeagoraeratudoumgrandemarbravo.Viajaramtantoquenão
haviamais terra para ver e deparou-se-lhes umbando de cegonhas que vinha da
pátria e queria ir para as terras quentes. Cada uma das cegonhas voava atrás da
outra e já tinham voadomuito,muito.Uma delas estava tão cansada que as asas
quaseanãoaguentavammais.Eraaúltimadafilaeembreveficoumuitoparatrás.
Porfim,desceucomasasasabertas,cadavezmaisparabaixo.Adejouaindaumpar
devezes,masnãoserviudenada.Depoistocoucomaspatasnocordamedonavio,
escorregoupelavela,epumba!,poisounacoberta.
Entãoomoçodebordopegounelaepô-lanacapoeira,comasgalinhas,ospatos
eosperus.Apobrecegonhaficoutodadesanimadanomeiodeles.
—Hácadauma!—disseramasgalinhastodas.
Operuinchoutantoquantopôdeeperguntouquemera.Eospatosrecuarame
empurraram-seunsaosoutros:vá!,vá!,vá!
Acegonha falou-lhesdaÁfricaquente, daspirâmides e da avestruzque corria
comoumcavalo selvagempelosdesertos,masospatosnão entenderamoque ela
contava,assimempurraram-seunsaosoutros,perguntando:
—Nãoconcordamqueelaéestúpida?
— Sim, é certamente estúpida! — retorquiu o peru, gorgolejando. Então a
cegonhacalou-seepôs-seapensarnasuaÁfrica.
—Sãobonitasefinasaspernasquevocêtem!—disseoperu.—Quantocustao
alen1?
—Crá!Crá!Crá!—arreganharamtodosospatos,masacegonhafezcomose
nãotivesseouvidonada.
—Poderirtambém!—disseoperu.—Aquiloqueeudissefoiditocommuita
graça! Ou foi talvez demasiado vulgar! Ah! Ah! Não compreende o espírito!
Permita-nos que continuemos a ser interessantes para nós próprios!—E assim
gorgolejoueospatosgrasnaram:qui,cá!,qui,cá!Eraterrível,pormuitodivertido
queoachassem.
MasHialmarfoiàcapoeira,abriuaporta,chamouacegonha,quesaltouparaele
na coberta. Estava agora repousada e foi como se acenasse a Hialmar para lhe
agradecer. Depois abriu as asas e voou para os países quentes, mas as galinhas
cacarejaram,ospatosgrasnarameoperuficoutodorubronacabeça.
— Amanhã vamos comer sopa de vocês! — disse Hialmar mas, entretanto,
acordoueestavanacaminha.FoiumaviagemmaravilhosaaqueOlavinhoFecha-
os-Olhoslheproporcionounaquelanoite.
Quinta-feira
—Sabesumacoisa?—disseOlavinhoFecha-os-Olhos.—Nãotenhasmedo!
Vais ver um ratinho! — E estendeu a mão para ele, com o leve e encantador
bichinho.—Veioconvidar-teparaocasamento.Háaquidoisratinhosquequerem
contrairmatrimóniohojeànoite.Moramporbaixodadespensadatuamãe.Devem
terassimumabonitacasa!
— Mas como posso entrar no buraquinho dos ratos no chão? — perguntou
Hialmar.
—Deixa isso porminha conta!— disseOlavinho Fecha-os -Olhos.—Vou
fazer-tepequenino!—Eassim tocoucoma sua seringadeduendeemHialmar,
quelogosefoitornandocadavezmaispequenoatéficardotamanhodeumdedo.
—Agorapodespediremprestadasasroupasdosoldadodechumbo.Pensoquete
servirãoeésemprechiqueaparecerdeuniforme,quandoseestáemsociedade.
—Estábem!—respondeuHialmar.Numinstante,ficouvestidocomoomais
bonitosoldadodechumbo.
—Quereisterabondadedesentar-vosnodedaldevossamãe!—disseoratinho.
—Tereiassimahonradevospuxar!
— Valha-me Deus! Ides dar-vos vós próprio a esse incómodo!— retorquiu
Hialmar.Eassimpartiramparaabodadosratinhos.
Primeiroentraramporbaixodochão,paraumlongocorredorquemaisaltonão
eradoquesepermitiaaíandarnumdedaletodoocorredorestavabemiluminado
commadeiraapodrecida.
—Nãocheiraaquibem?—perguntouoratoqueopuxava.—Todoocorredor
estáuntadocompeledetoucinho.Nãopodesermaisbonito!
Entraram depois na sala da boda. À direita estavam todas as ratinhas, que
murmuravam,comosefizessempoucoumasdasoutras.Àesquerdaencontravam-
setodososratinhos,queacariciavamosbigodescomassuaspatas.Nocentrovia-se
o par de noivos, que estava numa casca de queijo esburacado e se beijocava
escandalosamenteperanteos olhosde todos, pois já eramnoivos e iamcelebrar a
boda.
Chegavam constantemente mais e mais convidados. Cada rato estava quase a
pisarmortalmenteooutroeopardenoivoscolocara-seameiodaporta,demodo
quenemsepodiasairnementrar.Paraobanquete,todaasala,talcomoocorredor,
foiuntadacompeledetoucinho.Paraasobremesafoiexibidaumaervilhaqueum
ratinho da família tinhamordiscado, gravando os nomes do par de noivos, quer
dizer,asprimeirasletras.Eraalgobastanteextraordinário!
Osratosafirmaramqueforaumabelabodaequeasconversastinhamsidomuito
agradáveis.
Hialmar voltou de carruagem para casa. Estivera realmente numa sociedade
distinta,mastiveratambémdeseencolhertodo,desefazerpequeninoparapoder
entrarnouniformedosoldadinhodechumbo.
Sexta-feira
—É incrível comomuitas pessoas velhas gostariam de me apanhar!— disse
OlavinhoFecha-os-Olhos.—Sãoprecisamenteaquelasquefizeramalgodemal.
— Bom Olavinho! — dizem-me. — Não conseguimos pregar olho e por isso
estamos deitadas toda a noite a ver as nossas ações más que, como pequenos
feiticeirosfeios,sesentamnabordadacamaenossalpicamcomáguaquente.Não
queresvirexpulsá-losparaquepossamosterumbomsono?—Eassimsuspiram
profundamente:
—Queremospagar-te!Boanoite,Olavinho!Odinheiroestánajanela!
—Maseunãofaçonadapordinheiro—disseOlavinhoFecha-os-Olhos.
—Quevamosfazerestanoite?—perguntouHialmar.
—Bem,não sei se tensvontadede ir aumaboda.Édiferentedadeontem.A
bonecagrandedatuairmã,quepareceumbonecoesechamaHermano,vaicasar-
se com a boneca Berta. Além disso é o dia de anos da boneca e por isso vão ser
oferecidosmuitospresentes.
—Sim,conheçoissobem!—disseHialmar.—Semprequeasbonecasprecisam
denovosvestidos,fá-lasminhairmãfestejaroaniversárioouaboda!Jásucedeuisso
umascemvezes!
—Sim,mashojeéabodacentoeumequandosefazacentoeum,estátudo
acabado!Porissoétambémincomparável!Oravê!
Hialmarolhouparaamesa.Láestavaacasinhadecartãocomluznas janelase
todosossoldadinhosdechumboapresentavamarmascáfora.Opardenoivosestava
sentadonochão, inclinadoparaopédamesa,bastantepensativoebempodia ter
razõespara isso.MasOlavinhoFecha-os-Olhos, vestidocoma saiapretadaavó,
casava-os.Quando a cerimónia terminou, começaram a cantar em coro todos os
móveisdasalaalindacançãoseguinte:Oautoreraolápiseamúsicasoavacomoa
dotoquederecolher.
Anossacançãocomobrisavaichegar
nasalaaosnoivosprontosacasar;
direitinhocomoumpauestáopar
empeledeluvaformaveioatomar!
Hurra!Hurra!Vimospauepelesaudar;
alto,paraoareventoestamosacantar!
Receberamentãoospresentes,mastinhamdeclinadotodasascoisascomestíveis,
poischegava-lhesoseuamor.
—Vamosficarnocampoouviajarparaoestrangeiro?—perguntouonoivo.Por
issofoipedidoconselhoàandorinha,quetinhaviajadomuito,eàvelhagalinhado
pátio,que tinha chocadopintos cincovezes.A andorinha contou coisasdosbelos
paísesquentes,ondeháuvasgrandesepesadassuspensas,ondeoarétãosuaveeas
montanhastêmcoresqueaquimalseconhecem.
—Masnãotêmanossacouve!—disseagalinha.—PasseiumVerãocomtodos
osmeuspintosnocampo.Haviaumasaibreira,ondepodíamosiresgravatareassim
tínhamos admissão a uma horta com couve. Oh! Como era verde! Não posso
imaginarcoisamaisbela!
—Mascadatalodecouveéigualaooutro!—afirmouaandorinha.—Eaqui
fazmuitasvezestãomautempo!
—Sim,masestá-seacostumado!—confirmouagalinha.
—Eaquifazfrio,gela-se!
— Isso faz bem à couve! — retorquiu a galinha. — Além disso, também
podemos ter calor! Não tivemos há quatro anos um Verão que durou cinco
semanas? Fez tanto calor que não se podia respirar! E não temos aqui todos os
animais venenosos que têm lá?E estamos nós livres de salteadores?É um patife
aquele que não acha que a nossa terra é amais bonita!Nãomerece, na verdade,
viver aqui!— A galinha chorou:—Eu também viajei! Andei numa selha doze
milhas!Nãoénenhumprazerviajar!
—Sim,agalinhaéumacriaturasensata!—disseabonecaBerta.—Também
nãogostodeviajarnamontanha,poissóseandaparacimae,depois,sóparabaixo!
Não,vamo-nosemboraparaasaibreiraepassearnahorta!
Eassimfoi.
Sábado
—Vououviragorahistórias?—perguntouHialmarzinho, logoqueOlavinho
Fecha-os-Olhosoconseguiupôradormir.
—Hoje à noite não temos tempo para isso!—disseOlavinho, abrindo o seu
chapéudechuvamaisbonitoporcimadele—Olhaparaesteschineses!—Etodo
o chapéude chuvapareciaumagrande tigela chinesa comárvores azuis e pontes
agudascomchinezinhosacenandocomacabeça.—Vamoslimpartodoomundoe
pô-lobonitinhoatéamanhã!—disseOlavinho.—Poiséumdiasanto.Édomingo.
Vouaocampanárioverseosduendezinhosdaigrejaestãopolindoossinosparaque
soembem.Vouaocampoverseosventossopram,varrendoervasefolhas,eoqueé
omaiortrabalho,tenhodetrazertodasasestrelasparabaixoparaaspolir.Ponho-
asnomeuavental,masprimeirocadaumatemdesernumerada,eosburacosonde
elasseencontram,láemcima,tambémtêmdesernumerados,paraquevoltemaos
osseuslugares,senãonãosefixametemosdemasiadasestrelascadentes,poiscaem
umasporcimadasoutras.
— Oiça, sabe uma coisa, Sr. Fecha-os-Olhos? — disse um velho retrato
pendurado na parede do quarto em que Hialmar dormia —, sou o bisavô de
Hialmar.Devoagradecer-lheporcontarhistóriasaorapaz,masnãodevebaralhar-
lheasideias.Asestrelasnãopodemserretiradasafimdeserempolidas.Asestrelas
sãogloboscomoanossaTerraeéprecisamenteoquehádebomnelas!
—Muito obrigado, velho avô!— disseOlavinho Fecha-os-Olhos.—Muito
obrigado!Ésacabeçadafamília,ésa«velha»cabeça!Maseusoumaisvelhodoque
tu! Sou um velho pagão. Os Romanos e os Gregos denominavam-me deus dos
sonhos!Entreinascasasmaisdistintaseaindaentro!Sei lidartantocomgrandes
comocompequenos.Contatuagorahistórias!—EassimpartiuOlavinhoFecha-
os-Olhos,levandoochapéudechuvaconsigo.
—Jánãosepoderealmentedarumaopinião!—observouovelhoretrato.
EentãoacordouHialmar.
Domingo
— Boa noite! — disse Olavinho Fecha-os-Olhos e Hialmar acenou com a
cabeça, mas logo saltou e virou o retrato do bisavô para a parede, para que não
pudessemeter-senaconversacomonanoiteanterior.
—Agoravais-mecontarhistóriassobreascincoervilhasverdesqueviviamnuma
vagemesobre«apernadegaloquefaziaacorteàpernadegalinhaesobreaagulha
depassajarqueeratãofinaquesejulgavaumaagulhadecoser!».
— Pode-se também ter demais do que é bom!— disseOlavinho Fecha-os-
Olhos.—Queroantesmostrar-tealgodiferente,sabes!Queromostrar-teomeu
irmão. Chama-se tambémOlavinho Fecha-os-Olhos,mas nunca visita ninguém
maisdeumaveze,quandovem,leva-onoseucavaloeconta-lhehistórias.Elesó
sabe duas, uma é tão extraordinariamente bonita, que ninguém nomundo pode
imaginá-la, e a outra é tão feia e cruel, que não se pode descrever! — Depois
OlavinhoFecha-os-OlhoslevantouoHialmarzinhoatéàjanelaedisse:
— Vais ver o meu irmão, o outro Olavinho Fecha-os-Olhos! Chamam-no
tambémMorte!Estásaver,nãoparecetãofeiocomonoslivrosdeestampas,ondeé
um esqueleto! Não, há bordados de prata no casaco que traz! É o mais belo
uniformedehussardo!Uma capade veludopreto adeja sobre o cavalo!Vê como
cavalgaagalope!
Hialmar viu como aqueleOlavinhoFecha-os-Olhospartia a cavalgar, levando
tantogentenovacomovelhanocavalo.Aalgunspunha-osàfrenteeaoutrosatrás,
massemprelhesperguntavaprimeiro:
—Comoestáacadernetadasnotas?
—Boa—respondiamtodos.—Bem,deixa-mevereupróprio!—diziaele.E
assimtinhamdemostrar-lheacaderneta.Osquetinham«muitobom»e«distinto»
vinhamparaa frentedocavaloeeram-lhescontadasasmais lindashistórias,mas
aquelesque tinham«bom» e «sofrível» tinhamde ir para trás e ouviamhistórias
feias.Tremiamechoravam,queriamsaltardocavalo,masnãoconseguiam,poisera
comoseestivessemligadosaelecarnecomcarne.
— Mas a Morte é assim o Olavinho Fecha-os-Olhos mais belo! — disse
Hialmar.—Delenãotenhomedo!
— Não deves ter! — confirmou Olavinho Fecha-os-Olhos. — Procura
simplesmenteterumaboacadernetadenotas!
—Sim, isso é instrutivo!—murmurou o retrato do bisavô.—Sempre ajuda
algumacoisadarumaopinião!—Eficousatisfeito.
PoiséestaahistóriadeOlavinhoFecha-os-Olhos!Eleprópriopodecontar-teà
noitealgomais!
1-Alen=0,627metros.(N.doT.)(Voltar)
ASereiazinha
Lálonge,nomaralto,aáguaédeumazultãobelocomoasfolhasdamaislinda
centáureaetãoclaracomoovidromaispuro;masétambémmuitofunda,tãofunda
que nenhuma âncora consegue atingir o extremo da sua profundidade. Seriam
precisos muitos e muitos campanários de igrejas, uns por cima dos outros, para
alcançarasuperfíciedaságuas,cáemcima.Alivivemosseresmarinhos.
Nãosedeve,contudo,julgarque,porisso,ofundoéplanoeapenascobertode
areia branca. Não senhor, há árvores e plantas estranhas, de caules e folhas tão
flexíveisqueàmaispequenaondulaçãoseagitam,comoseestivessemvivas.Entre
osramosnadampeixesgrandesepequenos,talcomovoamasaves,cáemcima,ao
arlivre.Éaí,numdoslocaismaisprofundos,queseencontraocastelodoReido
Mar com as suas paredes de coral, as janelas altas em flecha domais translúcido
âmbareotelhadodeconchas,queseabremefechamcomofluxoeorefluxodas
águas.Oseuaspetoémajestoso,cadaconchacontémpérolasbrilhantes,umasódas
quaispoderiaconstituiroornamentomaispreciosodeumacoroaderainha.
OReidoMarhámuitosanosjáqueenviuvara,masasuavelhamãecuidava-lhe
dogovernodacasa.Eraumasereiabastanteinteligente,mastambémorgulhosada
suanobreza,eporessarazãoandavacomdozeostrasnacauda,enquantoasoutras
damas nobres só podiam ostentar seis. Em tudo o mais era digna dos maiores
elogios, especialmente pelos cuidados que tinha com as netinhas, as Princesas do
Mar.Eram seis sereiazinhasmuito lindas,mas amais nova era amais bonita de
todas.Asuapeleeraclarae finacomoumapétaladerosa,osolhosazuiscomoo
lagomais profundo,mas, como as irmãs, não tinha pés e o corpo terminava em
caudadepeixe.
Podiamentreter-setodoodiaabrincarnagrandesaladopalácio,cujasparedes
eram inteiramente decoradas com flores.Quando as grandes janelas de âmbar se
abriamdeparempar,ospeixesentravam,talcomosucedecomasandorinhas, se
deixamosabertasas janelasdasnossascasas,dirigiam-se logoparaasprincesinhas
comiamdassuasmãosedeixavam-seacariciar.
Emfrentedopaláciohaviaumgrande jardimcomárvorescorde fogoeazul-
escuras,cujosfrutosbrilhavamcomosefossemdeouroeasflorespareciamchamas
tremeluzindo,poisestavamsempreaagitaroscauleseasfolhas.Oprópriochãoera
deareiafiníssima,mascomumacorazuladasemelhanteàdaluzdoenxofrequando
arde.Tudoirradiavaumadmirávelresplendorazul.Dava-nosquaseasensaçãode
estarmosa flutuarnoaredevermosocéuporcimaeporbaixo,mesmosabendo
que era o fundo do mar. Com tempo calmo podia ver-se o Sol como uma flor
purpurinacujocáliceeraocentroirradiadordetodaaluz.
Cadaprincesinhatinhaoseupedacinhode jardimondepodiacavareplantaro
que quisesse. Uma dera ao seu canteiro de flores a forma de uma baleia, outra
preferiraqueoseuseparecessecomumapequenasereia,masamaisnovafizera-o
perfeitamentecircularcomooSoleenchera-oapenascomfloresvermelhasquese
lheassemelhavamnobrilho.Erauma sereiazinhaum tantoestranha, silenciosa e
triste, e enquanto as irmãs se adornavam com as coisas raras que apanhavamdos
barcos naufragados, ela só queria para brincar, além das flores vermelhas que se
pareciamcomoSol,umabelaestátuademármorequerepresentavaumformoso
jovem,esculpidaempedrabrancaepolida,que,comoutrosdestroços,vieraparar
aofundodomar.Plantaraaopédaestátuaumchorãocor-de-rosa,quecrescerade
modoextraordinário,deixandopenderasbraçadasfrondosassobreaestátuaparao
fundodeareiaazul,ondesombrasdevioletasseagitavamconstantementecomos
próprios ramos. Dava a impressão de que a copa e as raízes brincavam e se
beijavam.
Nadaeramaisgratoàprincesadoqueouvirfalardomundodoshomensláem
cima;eavelhaavótiveradecontar-lhetudooquesabiasobreosnavioseascidades,
oshomenseos animais,parecendo-lhe sobretudodignodeadmiraçãoque, lá em
cima,naterra,asflorestivessemaroma—oquenãosucedianofundodomar—,
que os bosques fossem verdes e que os peixes, movendo-se de ramo em ramo,
possuíssemumavozsonoraebela,sendoumprazerouvi-los.Eram,claroestá,os
passarinhos,aqueaavóchamavapeixes,porquesóassimpodiamcompreendê-la,
poisjamaistinhamvistoumaave.
—Quandocompletardesquinzeanos—disseaavó—,recebereisautorização
parasairdomaresentar-vosnosrochedos,aoluar,averpassarosgrandesnavios.
Tereisentãoaoportunidadedevertambémosbosqueseascidades!
No ano seguinte uma das irmãs completou quinze anos, mas a mais nova—
faziamdiferençadeumanoumasdasoutras—tinhadeesperaraindacincoanos
parapodersubirevercomoeramascoisasdonossomundo.Amaisvelha,porém,
prometeucontaràsoutrasoqueviesseaobservareachassemaisbelonoprimeiro
diaquesaíssedomar,poisaavónãolhesdisseraosuficienteehaviatantacoisaque
elasqueriamsaber.
Nenhumamanifestava,porém,tantaimpaciênciacomoamaisnova,justamente
a que tinha de esperarmais tempo e semostrava tão calma e pensativa. Passava
muitasnoitesàjanelaaolharparacima,atravésdaáguaazul-escura,ondeospeixes
semoviamagitandoasbarbatanaseascaudas.ÀLuaeàsestrelasconseguiavê-las,
maispálidasno seubrilho,mas também,vistas assimatravésda água,maioresdo
queaparecemaosnossosolhos.Sepassavaumagrandenuvemláemcima,sabiaque
se tratava de uma baleia que nadava por cima dela ou de um navio commuitos
homensabordo,quenãopodiampensarcertamentequeumalindasereiazinhase
encontravalánofundo,estendendoosalvosbraçosnadireçãodaquilhadobarco.
Chegou, pois, a altura emque a princesamais velha completouquinze anos e
obteveautorizaçãoparasubiràsuperfíciedomar.
Quandovoltou,traziacentenasdecoisasparacontar,masamaisbela,disse,fora
deitar-senumbancodeareia,aoluar,comomarcalmo,aobservardeperto,juntoà
costa,umagrandecidade,cujasluzescintilavamcomocentenasdeestrelas,ouvira
música, os ruídos e os rumores das carruagens e dos homens, ver os muitos
campanárioseasflechasagudasdastorreseescutarossinosatocar.
Oh,comqueavidezaouviraairmãmaisnova!Precisamenteporquenãopodialá
ir,ficaracommaisvontadedevertudoaquilo.Logoqueanoiteceu,foipostar-seà
janela a olhar para cima, através da água azul-escura, a pensar naquela grande
cidadecomtodososseusruídosebulício,parecendo-lheatéqueouviaosomdos
sinosdasigrejas.
Umanodepoisrecebeuaoutrairmãautorizaçãoparaviràsuperfícieenadarpor
ondequisesse.EmergiuprecisamenteaopôrdoSol,eesseespetáculoconsiderou-o
como a coisa mais bonita que vira. O céu parecia de ouro— declarou— e as
nuvens, ai!, as nuvens, era impossível descrever toda a sua beleza! Com tons
vermelhosevioláceos,haviamnavegadoporcimadela,masmuitomaisvelozforao
voo de um bando de cisnes, parecendo um longo véu branco, sobre a água, em
direçãoaoSol.Tentaratambémnadardireitoaele,masafundou-sedeprontoeo
clarãoróseoextinguiu-seaoníveldaáguaeporentreasnuvens.
Decorridomais um ano, coube a vez à terceira irmã de vir à superfície.Era a
maisaudaciosae,portanto,foinadandoatéaumriolargoquedesembocavanomar.
Pôde,então,verasbelasencostasverdescomosseusvinhedos,castelosepomares
entrebosquesmaravilhosos.Tevetambémoportunidadedeouvircantarospássaros
eoSoleratãofortequeseviuobrigadaasubmergirváriasvezespararefrescaro
rostoafogueado.Numapequenabaíaencontrouumgrupodeserezinhoshumanos,
completamentenus, a correremea chapinharemnaágua.Quisbrincarcomeles,
mas logo fugiram assustados, e veio depois um animalzinho preto, um cão, que
nunca vira antes.Ladrou-lhe de ummodo tão assustador que tevemedo e fugiu
para o alto mar.Não podia, porém, esquecer os bosques magníficos, os montes
verdejantes e as encantadoras crianças, que também sabiam nadar, apesar de não
teremcaudasdepeixe.
Aquartairmãnãoforatãoaudaciosa:quedara-senomaraltoedissequeforaisso
exatamenteoquevirademaisbelo.Oolharestendia-semuitasemuitasmilhasao
redoreocéuláemcimapareciaumaenormecampânuladevidro.Avistaratambém
algunsnavios,masaolonge,quaisgaivotas,observaragraciososgolfinhosfazendo
piruetas e enormes baleias que lançavam jatos de água das narinas, dando a
impressãodecentenasdefontes,àsuavolta…
Chegou então a vez da quinta irmã, cujo aniversário ocorreu precisamente no
invernoeque,portanto,teveaoportunidadedever,pelaprimeiravez,coisasqueas
outras não tinham visto. O mar apresentava uma cor verde e por toda a parte
flutuavamgrandes iceberguesquepareciampérolas—contouela—,masmuito
maioresqueoscampanáriosconstruídospeloshomens.Tinhamformaslindíssimas
e brilhavam como diamantes. Sentou-se num dos maiores e todos os veleiros se
desviavamcommedo,paralongedosítioondeelaestava,comoscabelosaovento.
Denoite,océucobriu-sedenuvens,começouarelampejareatrovejar,enquantoo
marimensofaziabalançarosgrandesblocosdegelo,brilhandocomaluzfortedos
raios.Nosbarcosarriavam-seasvelasehaviaconfusãoeterror,maselacontinuara
tranquilamente no balançante icebergue, vendo tombar as faíscas com a sua luz
azul,emziguezague,nomarchamejante.
Daprimeiravezemquecadaumadasirmãsvieraàsuperfície,asoutrashaviam
ficadofascinadascomasnovidadeseabelezaquediziamtervisto;masagora,quejá
eramcrescidasetinhamautorizaçãoparasubirsemprequequisessem,ointeresseia
diminuindo, começavam a sentir saudades do seu mundo e, após um mês,
declararamquelánofundo,nofimdecontas,eratudomuitomaisbonito.Eraem
casaquesesentiambem.
Algumasvezes,aoentardecer,ascincoirmãsdavamosbraçosesubiamemfilaà
superfície; possuíambelas vozes,mais belas do que a de qualquer ser humano, e
quando rebentava uma forte tempestade que as levava a supor que os navios
corriamoperigodenaufragar,balouçavam-sediantedelesecantavam-lhes lindas
canções,enaltecendoabelezadofundodomar,assimexortandoosmarinheirosa
nãoteremmedodedesceràssuasprofundezas.Estes,porém,nãoentendiamnem
aquelescânticosnemaquelaspalavras, julgavamtratar-sederuídosdatempestade
e,alémdisso,nuncatinhamapossibilidadedeadmirarasbelezassubmarinas,pois,
quandoonavioiaaofundo,morriamafogadoseapenascomocadávereschegavam
aopaláciodoReidoMar.
Quando à tardinha, as irmãs subiam de braço dado, a mais nova ficava
completamente só a olhá-las e dir-se-ia que chorava, mas as sereias não deitam
lágrimasesofrem,destemodo,muitomais.
—Ai!Quemmedera já terquinze anos!—dizia.—Como sintoquevirei a
gostardomundoláemcimaedoshomensqueohabitam!
Atéque,finalmente,chegouodiaemquecompletouquinzeanos.
—Bem,éatuavezagora—disseaavó,avelharainhaviúva.—Vem,quevou
enfeitar-te,comofizàstuasirmãs!
Colocou-lheumacoroadelíriosbrancosnacabeça,cujaspétalaseramcompostas
pormeiaspérolas emandouaderiroitograndesostras à caudadaprincesa, como
distintivodasuaaltaestirpe.
—Ai,quefazdoertanto!—disseasereiazinha.
—Claro,paraseserbelatemdesesofrer!—retorquiuaanciã.Oh!Comolhe
apetecia sacudir para fora de si todos aqueles atavios e arremessar para longe a
pesada coroa! Ficaria muito melhor com as flores vermelhas do mar, mas não
ousavaircontraatradição.
—Adeus—dissedepois,ecomeçouasubirtãoligeiraediáfanaqualbolhadear,
atravésdaáguadomar.
OSolacabaradepôr-sequandoemergiuacabeçadaágua,mastodasasnuvens
brilhavamaindacomtonsderosaeouroenomeiodocéuróseoluziaaestrelada
tardecomtodaasuacintilantebeleza.Aaragemerasuaveefrescaeomarestava
absolutamentecalmo.Apequenadistânciaencontrava-seumgrandenaviodetrês
mastros,apenascomumavelaiçada,poisnãocorriaamenorbrisaeportodaaparte
se suspendiam os marinheiros no cordame e nas enxárcias. Ouvia-se tocar
instrumentosecantare,assimquesefeznoite,acenderam-secentenasdelanternas
de várias cores; era como se ao vento ondulassembandeiras de todos os países.A
sereiazinha aproximou-se um pouco das vigias dos camarotes e quando a
ondulação a levantou pôde ver, lá dentro, através dos vidros límpidos como
espelhos, um grupo de homens ricamente vestidos. O mais belo de todos era,
porém,umjovempríncipedegrandesolhosnegros.Nãodeviatermaisdedezasseis
anos e naquele dia festejava-se, com toda a pompa, o seu aniversário. Os
marinheirosdançavamalegrementenacobertaequandoopríncipesaiuestalaram
nocéucentenasdefoguetesqueiluminaramtudoàvoltacomosefossediaclaro,de
tal modo que a sereiazinha se assustou terrivelmente, logo mergulhando a
esconder-seno fundodomar.Quandovoltouapôr a cabeçade forapareceu-lhe
que as estrelas tombavam sobre ela.Nunca antes vira um fogo de artifício. Era
como se rodopiassem grandes sóis, maravilhosos peixes de fogo sulcassem o ar,
refletindo-senomarespelhanteecalmo.Opróprionavioficoutãoiluminadoque
sepodiadistinguiramaispequenacorda,nãofalando jádoshomens.Ecomoera
bonito o jovem príncipe, que apertava as mãos aos marinheiros, sorrindo e
gracejando,enquantosoavaamúsicananoiteesplendorosa!
Era já tarde, mas a sereiazinha não conseguia desviar os olhos do navio e do
encantadorpríncipe.As lanternasmulticolores foram-se extinguindo,os foguetes
deixaram de estalar, emudeceram os canhões, mas nas profundezas do mar
começaram a ouvir-se ruídos surdos e estranhos. Continuava ao sabor do mar,
balouçando-se para cima e para baixo a fim de poder observar o que se passava
dentrodoscamarotesatéqueonavio tomouumandamentomaior, foi içadavela
após vela, a ondulação aumentou, correram grandes nuvens no céu e lá longe
começou a relampejar. Ai! Ia desencadear-se uma terrível tempestade! Por isso
voltavam os marinheiros a arriar as velas. O grande navio balouçava, navegando
vertiginosamente no mar bravo, que se elevava cada vez mais, como grandes
montanhasnegrasque ameaçavamderrubarosmastros.Flutuava, contudo, como
umcisne,oraafundando-seentreasaltasondas,oravoltandoaerguer-senomar
revolto.Para a sereiazinha tudo isto eramuitodivertido,masosmarinheirosnão
tinhamamesmaopinião.Onaviorangia,estalavaeasgrossaspranchastorciam-se
comosembatesfortesquerecebiam.Começouameterágua,partiu-seomastroao
meiocomosefosseumasimplescanaefoiadornandolentamenteàmedidaquese
inundava.Sóquandoreparouque tinhade seacautelarcomas tábuase restosdo
navioqueflutuavamnomar,équeasereiazinhaseapercebeudoperigoqueonavio
corria.Porummomentofoitãograndeaescuridãoquenadaconseguiadistinguir,
maslogoquevoltouarelampejarfez-setudoclaroàsuavoltaepôdereconheceros
homens a bordo. Cada um tentava salvar-se conforme podia. Procurou com
ansiedade o jovem príncipe e descobriu-o precisamente quando o navio se
desmantelavaeiaafundar-se.Asuaprimeirareaçãofoideintensaalegria,poisiria
assim tê-lo inteiramente para si, mas logo se lembrou de que os homens não
conseguemvivernaáguaequesómortopodiadesceraopaláciodeseupai.Ai!
Não! Morrer, isso não! Começou a nadar entre as vigas e as pranchas que
flutuavam, sem se lembrar dequepodiam esmagá-la,mergulhouprofundamente
na água e voltou a subir por entre as altas ondas, alcançando por fim o
principezinho, que já não tinha forças para se manter por mais tempo no mar
tempestuoso.Estava exausto, os braços e aspernas entorpecidos, os belos olhos a
cerrarem-se-lhe e teria sucumbido, sem dúvida, se a sereiazinha o não tivesse
alcançado.Segurou-lheentãoacabeça,mantendo-aaodecimadaáguaedeixou-se
levaraosabordasondas.
Quandoamanhãchegou,a tempestade já tinhapassado.Donavionãoseviao
mínimopedaço,oSolcomeçouaaparecer,rubro,brilhandosobreasuperfíciedas
águas, e era como seo rostodopríncipe fosse tomandovida, emboracontinuasse
comosolhosfechados.Asereiabeijou-lheatestaaltaebelaepuxou-lheoscabelos
molhados para trás. Achava-o muito parecido com a estátua de mármore que
guardavaláembaixo,noseupequenojardime,então,voltouabeijá-lo,desejando
detodoocoraçãoquevolvesseàvida.
Poucodepois avistou terra firme:umasmontanhas altas e azuladas,nos cumes
dasquaisluziaanevebranca,comosefossemcisnesqueaíestivessempousados.Cá
em baixo, junto à costa, havia belos bosques verdes e em frente uma igreja ou
mosteiro, não sabia bem,mas eraumedifício, comcerteza.Nopomar vicejavam
limoeiros e laranjeiras e diante dos portões erguiam-se altas palmeiras. Aí omar
formavaumabaiazinha,calmamasbastantefunda,ealongava-seatéaosrochedos,
onde se recortava uma pequena praia de areia branca. Nadou para a praia
arrastandoopríncipe,pousou-odepoissobreaareiaeteveocuidadodelheerguer
acabeça,sobosraiosquentesdoSol.
Soaram sinetas no grande edifício branco e logo depois começaram a sair
donzelasparaopomar.Então,asereiazinhalançou-seaomar,afastou-separatrás
deumas rochasque sobressaíamda água, colocouespumadomarno cabelo eno
peito para que não pudessem ver o seu pequeno rosto, e ficou à espera de que
alguémencontrasseopobrepríncipe.
Não levoumuito tempo até que uma das jovens se encaminhasse para a praia.
Pareceuficarmuitoassustada,masapenasporummomento,porquelogocorreua
buscarajudaeasereiapôdevercomoopríncipesereanimavaesorriaatodosàsua
volta.Sónãosorriaparaela, ignorandonaturalmentequemotinhasalvo.Sentiu,
então, uma dor tão profunda que, quando ele se dirigiu para o grande edifício,
mergulhoue,cheiadetristeza,regressouaopaláciodopai.
Forasemprecaladaetaciturna,masagoraaindaeramais.Asirmãspediram-lhe
quelhescontasseoquetinhavisto,naprimeiravezquesubiraàsuperfíciedomar,
maselanadalhesquisdizer.
Vinhamuitasvezes,aoentardeceredemanhãzinha,aolocalondehaviadeixado
opríncipe.Observou,assim,comoiamamadurecendoosfrutosdopomarecomo
vieram a ser colhidos; viu a neve derreter-se no alto das montanhas, mas nunca
conseguiuveropríncipe;e,portanto,voltavaparacasacadavezmaistriste.Oúnico
consoloeraficarsentadanoseujardinzinhoeenlaçarcomosbracitosabelaestátua
demármoreque se lhe assemelhava.As flores, porém, jánão lhe agradavamnem
cuidavadelas e assim foramcrescendo comoummatagal, cobrindoos carreiros e
entrelaçandooscauleslongoseasfolhasporentrearamagemdasárvores,demodo
quetudopareciamergulhadoemtrevas.
Porfimnãoconseguiuguardarmaisoseusegredo;contou-oaumadasirmãse
logo as outras vieram a sabê-lo, mas só elas e algumas amigas íntimas tomaram
conhecimentodocaso.Umadestasamigas,queassistiratambémàfestanonavio,
sabiaquemeraopríncipeeondeficavaoseureino.
—Vem, irmãzinha!—disseram as princesinhas e, enlaçadas umasnas outras,
subiram em longa fila à superfície domar, onde sabiam que ficava o palácio do
príncipe.
O palácio era feito de uma espécie de pedra brilhante, amarela-clara, com
grandes escadariasdemármorequedesciamsobreomar.Erguiam-semagníficas
cúpulas douradas sobre os telhados e entre as colunas que circundavam todo o
edifício havia estátuas de mármore que pareciam ter vida. Por detrás dos vidros
claros das altas janelas podiam ver-se belos salões, onde se suspendiam ricas
tapeçariasecortinadosdeseda,etodasasparedesadornadascomgrandesquadros,
o que era verdadeiramente um prazer contemplar. A meio da sala maior estava
colocadaumagrande fonte cujos repuxos se elevavamaté à cúpulade cristal, por
ondeentravaoSol,fazendobrilharosjatosdeáguaeasbelasplantasquecresciam
nataçamonumental.
Agoraquesabiaondeviviaopríncipe,vinhapassarmuitastardesenoitesjunto
ao palácio. Aproximava-semuitomais de terra do que qualquer uma das irmãs;
subira mesmo o estreito canal por debaixo do belo terraço que projetava uma
espessasombranaágua.Aíseescondiaeficavaaolharojovempríncipe,quejulgava
estarcompletamentesósobaluzclaradoluar.
Via-o, também, muitas vezes a passear na sua bela barca, com ondeantes
bandeiraseaosomdemúsicamaravilhosa.Espreitava-oatravésdosjuncosverdes,e
seovento lheagitavao longovéuprateadoeadescobria, julgavamosqueaviam
queeraumcisnequeabriaasasas.
Denoiteouvira,algumasvezes,ospescadores,quepescavamcomtochasnomar.
Referiam-seaopríncipeemtermoselogiososeapequenasereiaalegrou-seporlhe
tersalvoavidaquando,meiomorto,vogavaaosabordasondas,recordandocomo
repousaraacabeçanoseuseioeternamenteohaviabeijado.Ele,contudo,denada
sabiaenemporsombrasopodiasuspeitar.
Cadavezgostavamaisdoshomens,cadavezgostavamaisdeestarpróximodeles.
O seumundo parecia-lhe sermuitomaior do que aquele em que vivia! Iam até
muito longe nos seus barcos, subiam aos altos cumes das montanhas acima das
nuvens,easterras,comosseusbosqueseprados,estendiam-semuitoparaalémdo
alcance da sua vista.Haviamuitas outras coisas que gostava de conhecer,mas as
irmãsnãosabiamresponder-lheatodasasperguntas.Dirigiu-se,portanto,àvelha
avó,queconheciabemaquelemundosuperioraquemuitojustamentedenominava
«ospaísessobreomar».
—Quandooshomensnãomorremafogados—perguntouasereiazinha—,é
verdadequevivemeternamente,quenãoprovamamorte,comonósaquinomar?
—Não—respondeuaanciã—,elestambémtêmdemorrereasuavidaéainda
mais curta do que a nossa. Nós podemos viver trezentos anos, mas quando
deixamosdeexistirtransformamo-nossimplesmenteemespumadomarenuncahá
campaoutúmulo,cáembaixo,quenosrecordeaosentesqueridos.Nãotemosuma
almaimortal, jamaisrenascemos,somoscomoacanaverde,que,umavezcortada,
nãovoltaacrescer!Oshomens,emcontraposição,possuemalma,quetemsempre
vida,mesmodepoisdocorposedesfazerempó,ascendendoentãonoardiáfanoaté
ondeestãoasestrelasrutilantes!Assimcomonósemergimosdomarepodemosver
a terra dos homens, também eles se desprendem da terra para subirem a lugares
maravilhosos,desconhecidos,quenuncanosserádadover.
— E porque não temos nós também uma alma imortal? — perguntou a
sereiazinhamuitotriste.—Daria,debomgrado,ostrezentosanosquetenhopara
viver, para ser, por um dia apenas, um ser humano e poder partilhar, depois, do
mundocelestial!
—Não penses nisso!— retorquiu a anciã.— Somosmelhores emuitomais
felizesdoqueoshomensláemcima!
—Masmorrerassim,ficandoaflutuarcomoespumadomar,nãoouvirmaisa
músicadasondas,nãopodermaiscontemplarabelezadasfloresnemobrilhorubro
doSol!Nãoexiste,assim,nenhummeiodealcançarumaalmaimortal?
—Não—respondeuaavó—,sóseumhomemviesseagostartantodetique
fossesparaelemaisdoqueumpaiouumamãe,queeleseprendessedetalmodoa
ti,empensamentoecoração,quefossepediraumsacerdoteparavosunirasmãos
comapromessadefidelidadenestemundoeportodaaeternidade.Então,aalma
deleentrarianoteucorpoeparticiparias,assim,dabem-aventurançahumana.Dar-
te-iaaalma,semperderasuaprópria.Masissonuncaserápossível!Oqueaqui,no
mar,étãobonito—atuacaudadepeixe—,éconsideradoláemcimaumacoisa
feia;sãoincapazesdecompreendê-la.Sãonecessáriosdoissuportesmaciços,aque
chamampernas,paraseserbonito!
A sereiazinha suspirou profundamente e olhou com tristeza para a cauda de
peixe.
—Masalegremo-nos—continuouaanciã—,folguemosedivertamo-nosnos
trezentosanosqueteremosdeviver.É,naverdade,umperíododetempobastante
longo,masdepoismaisvontadeteremosdedescansar.Estanoitehaveráumbailede
gala!
Afestafoideumamagnificênciaimpossíveldeimaginarnaterra.Asparedeseo
tetodograndesalãodebaileeramdecristalespessomastranslúcido.
Centenasdeconchascolossais,cor-de-rosaeverdes,enfileiravam-sedecadaum
dos lados, irradiando uma forte luz azul, que iluminava todo o salão e que,
atravessando as paredes de cristal, vinha refletir-se claramente cá fora, no mar.
Podia ver-se uma imensidade de peixes, grandes e pequenos, nadando junto às
paredes de cristal e cujas escamas brilhavam com tons de púrpura, de ouro e de
prata. Ao meio, atravessando a sala, fluía uma larga corrente onde dançavam os
cavalheiros edamasdomundo submarino, ao somdas suasprópriasmaravilhosas
canções.Vozesassimtãobelasnãoaspossuemosseresterrestres.Asereiazinhafoi
quem cantoumelhor.Por isso foimuito aplaudida e, porummomento, sentiu o
coraçãozinhoinundar-se-lhedealegriaporsaberquetinhaavozmaisbeladaterra
e do mar. Mas logo voltou a pensar no mundo dos homens lá em cima. Não
conseguiaesquecerobelopríncipenemamágoaquesentiapornãopossuir,como
ele,umaalmaimortal.Saiudespercebidamentedopalácioreale,enquantoportoda
aparte seouviamcanções e a alegria erageral, foi sentar-se,muito triste,no seu
jardinzinho.Ouviu,então,atravésdaágua,umatrompasoarláemcimaepensou:
«Nestemomentopasseiadebarco,certamente,aqueleaquemqueromaisdoquea
minhamãe e ameupai, aquele que é omeuúnico pensamento e em cujasmãos
deporiaodestinodaminhavida.Tudoheidefazerparaalcançarumaalmaimortal!
Enquantoasminhas irmãsdançam ládentro,noPalácio, irei àbruxadomar,de
quem sempre tive tanto medo, mas que pode, talvez, aconselhar-me e auxiliar-
me!»
Então, a sereiazinhapartiudo seu jardimemdireção ao sorvedouro espumoso
pordetrásdoqual vivia abruxa.Nuncaantespercorrera aqueles caminhos,onde
não havia nem flores nem algas, apenas um fundo arenoso, pardo e deserto se
estendianadireçãodosorvedouroefervescente,ondeaágua,comorodaespumante
demoinho, remoinhava continuamente, arrastandoparao fundo tudooquenela
tombava. Era pelo meio daqueles furiosos remoinhos que teria de seguir para
penetrarnosdomíniosdabruxadomarenãohavia,namaiorpartedotrajeto,outro
caminho senão um lamaçal quente e borbulhoso a que a bruxa chamava a sua
turfeira.Pordetrás,nomeiodeumbosqueestranho,ficavaacasaondevivia.Todas
asárvorese arbustoserampólipos,metadeanimaismetadeplantas,quepareciam
serpentescomcentenasdecabeças, saindodochão.Osramoseram longosbraços
viscososcomdedosqueseassemelhavamavermesflexíveis,movendo-se,emtodas
asarticulações,daraizàpontamaisextrema.Tudooquepodiamapanharnomar
eraenlaçadoporelesenuncamaisolargavam.Asereiazinhaestacou,terrivelmente
assustada. Cheia de medo, com o coração aos pulos, esteve quase a regressar,
desistindo do seu empreendimento, mas voltou a pensar no príncipe e na alma
humanaerecobrouoânimo.Atouolongocabeloondulanteàvoltadacabeça,para
queospóliposonãopudessemagarrar,cruzouosbraçossobreopeitoelançou-se
emfrente,deslizandocomoumpeixe,porentreoshorríveispólipos,queestendiam
os membros e os dedos flexíveis para ela. Pôde assim ver como cada um deles
segurava alguma coisa que havia agarrado e que centenas de pequenos braços a
prendiam como com fortes aros de ferro.Náufragos que tinham vindo parar ao
fundo do mar eram agora brancos esqueletos nos braços dos pólipos. Prendiam
também, fortemente, remos, caixas, carcaças de animais terrestres emesmo uma
sereiazinhaquetinhamapanhadoeestrangulado.E,naturalmente,foiessaavisão
quemaisaimpressionou.
Chegou depois a umgrande largo viscoso, na floresta da bruxa, onde rolavam
enormes e bojudas serpentes aquáticas, mostrando os ventres repelentes de cor
amarela-clara.Erguia-se aí, ameio,uma casa edificada comosossosbrancosdos
náufragos.Ládentroestavaabruxadomardeixandoumsapocomerdasuaboca,
tal como os homensmimoseiam um canariozinho com pedacinhos de açúcar. Às
gordas e nojentas serpentes aquáticas chamava ela «pintainhos» e deixava-as
revolverem-sesobreoseuenormepeitoesponjoso.
—Já sei a que vens—disse a bruxa domar.—Éumagrande asneira oque
pretendes!Dequalquermodo,seráfeitaatuavontade,massótetraráinfelicidade,
minha linda princesinha.Queres libertar-te da cauda de peixe e substituí-la por
doisapêndicesparaandarescomooshomensetudoissoparaqueoprincipezinho
seenamoredeti,opossastersóparatievenhasaindaaalcançarumaalmaimortal!
—A bruxa deu depois uma gargalhada tão ruidosa e repulsiva que os sapos e as
serpentes tombaram no chão, onde ficaram a revolver-se. — Chegas mesmo a
tempo—continuouabruxa.—Amanhã,depoisdeoSolnascer, já seria tarde e
antesdeumanodecorridonãotepoderiaajudar.Voupreparar-teumapoção,que
levarásparaterraantesdonascerdoSoleque,sentadanumapraia,deverásbeber.A
tuacaudaseparar-se-ádocorpoecontrair-se-ánaquiloqueoshomensdenominam
umas pernas encantadoras, mas isso produzir-te-á dores horríveis, como se te
trespassasseumaespadaaguçada.Todososquetecontemplaremdirãoquejamais
viramum ser humano tão belo como tu.Conservarás o teu andar ondulante que
nenhuma bailarina saberá igualar, mas por cada passo que deres será como se
pisasses uma faca afiada que te fizesse sangrar. Se és capaz de sofrer tudo isto,
ajudar-te-ei.
—Sim—respondeuasereiazinhacomvoztremente,pensandonopríncipeena
almaimortalaquetantoaspirava.
— Mas deves lembrar-te — continuou a bruxa — de que, quando tiveres
recebidoaformahumana,nãopoderásvoltarasersereia!Jamaisdescerásatéonde
estãoastuasirmãseopaláciodeteupai.Senãoconseguiresoamordopríncipe,de
modoque,porti,elepossaesquecerpaiemãeetusejasoseuúnicopensamentoe
umsacerdotevenhaunirasvossasmãos,tambémnãoalcançarásumaalmaimortal!
Na manhã seguinte a ter-se casado com outra, o teu coração quebrar-se-á e
transformar-te-ásemespumadomar.
—Aceito—disseaprincesinha,tornando-sepálidacomoumdefunto.
—Mastambémamimterásdepagar-meporesteserviço—prosseguiuabruxa
—,enãoépoucooquetepeço.Possuisavozmaisbeladetodasnósaquinofundo
domar;epensasviraencantaropríncipecomela,masessa lindavozterás tude
dar-me.O que demelhor possuis quero-o pelaminha poção preciosa. Também
tereideoferecer-teomeuprópriosangueparaqueapoçãosejacortantecomouma
espadadedoisgumes.
—Massemetirasavoz—perguntouasereiazinha—,oquemerestaentão?
—A tuabela figura—retorquiu abruxa—,o teu andarondulante e os teus
belos olhos expressivos, comque poderásmuito bem perturbar o coração de um
homem.Então,jáperdesteacoragem?Anda,põealínguadeforaparaqueapossa
cortar,empagadamilagrosapoçãoquetevoupreparar!
—Assimseja!—respondeuasereiazinha,eabruxafoibuscarocaldeirãopara
cozinharapoçãomiraculosa.
—Alimpezaéumacoisamuitobonita!—disseabruxa,esfregandoocaldeirão
com as serpentes enrodilhadas e atadas com nós. Arranhou depois, com força, o
peitoedeixoucairládentroalgumasgotasdoseusanguenegro.Ovaporformava
estranhas e horrorosas figuras, de meter medo. A bruxa continuava a deitar
ingredientesemais ingredientesnocaldeirão,equandoapoçãocomeçouaferver
era como se um crocodilo chorasse. Por fim, ficou pronta, tomando o aspeto da
águamaiscristalina.
—Aquiatens—disseabruxa,elogoemseguidacortoualínguaàsereiazinha,
queficou,assim,completamentemuda,sempodercantarnemfalar.
— Se os pólipos te agarrarem quando fores a atravessar o meu bosque —
continuouabruxa—,atira-lhesumasgotinhas,quelogoficarãocomosbraçoseos
dedosfeitosemmilpedaços.
Não foi, porém, preciso que a sereiazinha se defendesse deste modo, pois os
póliposafastavam-seaterrorizados logoqueviamabrilhantepoçãoque lhe luzia
nasmãos, como se fosse uma estrela cintilante.Atravessou, assim, rapidamente o
bosque,opântanoeosorvedourorugiente.
Avistouopaláciodopai,ondeas luzes estavam já apagadasnogrande salãode
baile.Dormiamjátodos,certamente,enãoousouaproximar-se;agoraeramudae
ansiava sair dali para todo o sempre. Parecia que o coração lhe saltava do peito.
Entrou silenciosamenteno jardim, colheuuma florde cadaumdos canteirosdas
irmãs,lançoumilbeijosnaspontasdosdedosnadireçãodopalácioesubiuatravés
domarazul-escuro.
OSolaindanãohaviarompidoquandodescobriuopaláciodopríncipeesefoi
sentar nos degraus da bela escadaria de mármore. A Lua brilhava com uma
claridademaravilhosa.A sereiazinha ingeriu então abebida ardente e acre e logo
sentiu uma dor profunda, como se uma espada de dois gumes lhe atravessasse o
lindo corpo. Desmaiou, depois, e ficou como morta. Quando o Sol começou a
brilharsobreomar,acordou,voltoudenovoasentirumadoraguda,masemfrente
delaestavaobeloprincipezinho,queaobservavacomosolhosnegrosdeazeviche.
Volvendooolharparabaixo, verificouquea caudadepeixehaviadesaparecidoe
quepossuíaagoraaspernasmaisbrancaseencantadorasqueumaraparigapodeter.
Estava,porém,completamentenua,peloqueseenvolveunacabeleiralongaefarta.
Opríncipeperguntou-lhequemeraecomovieraaliparar,eela,voltandoparaele
osolhosazul-escuros,lançou-lheumolhardoceeaomesmotempotriste,poisnão
podia falar. Então, o príncipe tomou-a pela mão e conduziu-a para dentro do
palácio.Cadapassoquedava,comohaviapreditoabruxa,eracomosepisassefinas
agulhasefacasafiadas,masnadadeixoutransparecer.Pelamãodojovempríncipe,
subiu, leve como uma bolha de ar; e tanto ele como todos os circunstantes não
puderamesconderaadmiraçãopeloseuandarondulanteegracioso.
Deram-lhelindosvestidosdesedaedemusselinaetodosaconsideraramajovem
mais bela do palácio.Mas eramuda, não podia nem falar nem cantar.Uma vez,
vestidasdesedaedeouro,vierambelasescravascantardiantedopríncipeedeseus
augustospais.
Uma cantoumelhor do que as outras e o príncipe aplaudiu-a e sorriu-lhe. A
sereiazinha ficou, então, muito triste, pois sabia que teria sido capaz de cantar
muitomelhorepensou:«Oh!Seelesoubessequeparaestaraseuladomedesfiz
parasempredaminhabelavoz!»
Depoisasescravasdançaram,descrevendograciosasfigurasondeantesaosomde
música maravilhosa; e então a sereiazinha levantou os lindos braços brancos,
ergueu-senaspontasdospésecomeçouarodopiar,bailandocomonuncaninguém
antesofizera.Cadamovimentorealçavamaisasuabelezaeosolhosfalavammais
profundamenteaocoraçãodoqueaprópriacançãodasescravas.
Ficaram todos encantados, principalmente o príncipe, que lhe deu o nome de
«Enjeitadazinha».Eelacontinuouadançar,mesmosentindoque,decadavezque
ospéstocavamosolo,eracomosepisassecutelosafiados.Opríncipedeclarou-lhe,
então,queaqueriasempreaopédesi,permitindo-lhequedormissejuntoàporta
doseuquarto,sobregrandesalmofadõesdeveludo.
Ordenoutambémquelhefizessemumfatodehomem,parapoderacompanhá-
lonosseuspasseiosacavalo.Cavalgavamassimpelosbosquesfragrantes,ostroncos
verdes roçavam-lhes os ombros enquanto os passarinhos cantavam na folhagem
verde.Subiaaindacomopríncipeaaltasmontanhas,esebemquelhesangrassem
os pés delicados, demodo a ser notado por todos, ela continuava a sorrir-lhe e a
segui-loatéverasnuvensdeslocarem-seporbaixodelescomosefossemumbando
deavesacaminhodeterrasdistantes.
No palácio, à noite, quando todos dormiam, descia ela a larga escadaria de
mármorepara ir aliviarospés ardentesna água friadomare ficava apensarnos
seus,tãolonge,lánofundo.
Umanoite, vieramas irmãsdebraçodado, cantando tristementeevogandoao
sabordasondas.Asereiazinhaacenou-lhes,eelas, reconhecendo-a,contaram-lhe
comotinhamtodosficadomuitotristescomasuapartida.Passaramavisitá-latodas
asnoiteseumavezviumesmo,aolonge,avelhaavó,quejáhámuitoanosnãosubia
à superfície das águas, bem como oRei doMar, com a coroa na cabeça. Ambos
estenderam-lhe os braços,mas não ousaram, porém, aproximar-se tanto da costa
comoasirmãs.
Cada dia que passava ia aumentando o afeto do príncipe pela sereiazinha, de
quemgostavacomosegostadeumacriançaboaecarinhosa;masfazê-laesposae
rainhanãolhepassavasequerpelacabeça,noentantosuaesposatinhadeviraser,
senãonãoalcançariaumaalmaimortaletransformar-se-ia,namanhãseguinteàdo
casamentodopríncipe,emespumadomar.
—Nãogostasdemimmaisdoquedetodasasoutras?—pareciamperguntaros
olhos da sereiazinha quando o príncipe a tomava nos braços e lhe beijava a bela
fronte.
—Sim,quero-temaisdoqueatodasasoutras—diziaele—,poistensmelhor
coração,és-memaisdedicadaepareces-tecomumajovemqueviequecertamente
jamaisvireiaencontrar.Ia,então,numnavioquenaufragou,asondaslevaram-me
paraterra,juntoaumsantuáriocujocultoeramantidopordonzelas.Amaisnova
de todas descobriu-me na praia e salvou-me. Vi-a apenas duas vezes, mas era a
únicaquepodiaamarnestemundo.Pareces-tecomela,quaseofuscasasuaimagem
naminhaalma.Alémdisso,consagrou-seinteiramenteaotemploeporissoaminha
boasortemeconduziuparati.Jamaisnossepararemos.
«Ai!Nãosabequefuieuquelhesalveiavida»,pensouasereiazinha,«euqueme
oculteina espumaepor eleolhei até vir alguém.Euprópria vi a lindadonzela a
quemamamais doque amim!»E a sereia suspirouprofundamente, pois chorar
nãopodia.«Adonzelapertenceaosantuário,disse-oele,nãoviráparaestemundo,
nãomais seencontrarãoeeuestou juntodele,vejo-o todososdias, cuidareidele,
amá-lo-ei,dareiavidaporele!»
Eraagoraaalturadeopríncipesecasarcomabelafilhadoreivizinho,dizia-se.
Porissopreparavamcomtantoaparatoumnavio.Constavaqueopríncipeiapartir
para ver o país do rei vizinho, mas era realmente para ver a filha que ia assim
acompanhadodeumtãograndeséquito.Asereiazinhameneouacabeçae sorriu;
conheciamelhordoquequalqueroutrapessoaopensamentodopríncipe.
—Tenhodepartir—dissera-lheele.—Tenhodeirveressabonitaprincesade
quetantofalam;meuspaisassimoquerem,masnãomeobrigamatrazê-lacomo
noiva.Nãopossoamá-la,nãoseparececomabeladonzeladotemplo,comotute
pareces. Se pudesse alguma vez escolher noiva, seria, sem dúvida, a ti quem
escolheria,minhaEnjeitadazinhamuda, de olhos tão expressivos!—O príncipe
beijou-a na boca vermelha, brincando com os longos cabelos e pousando-lhe a
cabeça sobre o peito, que sonhava com a felicidade dos homens e com a alma
imortal.
—Não tensmedo domar, minhamudazinha querida?— perguntou-lhe ele
quandoseencontravamjánomagníficonavioquehaviadeconduzi-losaopaísdo
rei vizinho.Depois o príncipe falou-lhe das tempestades e do tempo calmo, dos
peixes estranhos do fundo do mar que os mergulhadores haviam visto, e a
sereiazinhasorriadassuasdescrições,poisninguémmelhordoqueelasabiatodas
aquelascoisas.
Nasnoitesclarasde luar,quando játodosdormiam,comexceçãodotimoneiro
queiaaoleme,vinhaparajuntodaamuradadonavioeficavaaolharaáguaclara.
Pareceu-lhe então ver o palácio do pai, no alto do qual estava a avozinha com a
coroadepratanacabeça,olhandoporentreasfortescorrentesnadireçãodaquilha
donavio.Umavezapareceramasirmãsàtonadaágua,olharam-nacomprofunda
tristeza e acenaram-lhe comasbrancasmãozinhas.A sereiazinha respondeu-lhes
agitandotambémasmãos;esorrindoiadizer-lhesqueestavabemefelizquando
ummoçodebordoseaproximou,obrigando-asamergulharrapidamente.
O moço ficou com a impressão de que a mancha branca que havia visto era
espumadomar.
Namanhãseguinteonavioentrounoportodabelacapitaldoreinovizinho.Os
sinos começaram a repicar e nas altas torres soaram as trombetas enquanto
formavam, em parada, as tropas com os estandartes ao vento e as reluzentes
baionetas.Todososdiashaviaumafesta.Osbaileseossarausseguiam-seunsaos
outros,masaprincesaaindanãofizeraasuaaparição.Estavaasereducadalálonge,
nummosteiro,ondeaprendiaasvirtudesreais.
Chegou,porfim,àcidade.Asereiazinhaestavaimpacienteporverasuabelezae
quando issoaconteceu tevede reconhecerquenuncaantes lhe foradadoadmirar
um ser tão gracioso. A tez era fina e macia e por detrás das longas pestanas
sombreadassorriamdoisdocesolhosazul-escuros.
—Tu!Fostetuquemesalvastequandojaziacomoumcadáverdadoàcosta!—
gritouopríncipe,abraçandoanoivaruborizada.—Oh!Comosoufeliz!—disseà
sereiazinha.—Cumpriu-seomeumaiordesejo.Tensdealegrar-tecomaminha
felicidade,poisqueres-memaisdoquequalqueroutrapessoa.
Asereiazinhabeijou-lheamão,sentindoqueocoraçãoselhequebrava.Amanhã
seguinteàssuasnúpciastrar-lhe-iaamorte,desfazendo-seemespumadomar.
Os sinos repicavam e os arautos percorriam as ruas anunciando o próximo
noivado.Nos altares ardiamóleosperfumados emricos lampadáriosdeprata.Os
sacerdotesagitaramosincensórios,eosnoivos,demãosdadas,receberamabênção
dobispo.Asereiazinha,todavestidadeouroeprata,seguravaacaudadanoiva,mas
os seus ouvidos não ouviam a música festiva, os olhos não viam a cerimónia
religiosa:pensavaapenasnanoitedasuamorteeemtudooquehaviaperdidoneste
mundo.
Finalmente,nessamesmatarde,embarcaramosnoivosparaoregresso,entreo
troar dos canhões e as bandeiras ondeando ao vento. A meio do navio estava
montadaumaricatendadepúrpuraeouro,tendoládentrolindoscochinsondeo
príncipeeaprincesadormiriamnanoitefrescaecalma.
Oventoenfunouasvelaseonaviodeslizouligeironomarcalmo.
Quandoescureceu,acenderam-selanternasdecoresvariegadaseamarinhagem
começou a dançar alegremente no tombadilho. A sereiazinha lembrou-se da
primeiravezquesubiraàsuperfíciedaságuasetiveraaoportunidadedeobservar
igualmagnificência e alegria. Lançou-se então, a dançar, rodopiando como uma
andorinhaperseguida e todos a aplaudiram, expressando a suagrande admiração.
Nunca bailara tão bem. Assim bailando, era como se navalhas afiadas lhe
dilacerassemos lindospés,mas elanemos sentia;muitomais agudaera adorno
coração.Sabiaqueeraaúltimanoiteemqueviaaqueleporquemtinhaabandonado
famíliaelar,perdidoabelavozesofridotodososdiastormentosinfindos,semque
elefizesseamenorideia.Eraaúltimanoiteemquerespiravaomesmoarqueele,
emquepodiaveromarprofundoeocéucheiodeestrelas.Esperava-aumanoite
eternasempensamentosnemsonhos,poisnãopossuíaalmanempodiaalcançá-la.
Nonavio tudo foi alegria e regozijo atémuito alémdameia-noite, e ela sempre
dançoueriucomopensamentodamortenocoração.Depois,opríncipebeijoua
bela noiva, esta acariciou-lhe os cabelos negros, e, de braço dado, entraram na
magníficatendapararepousar.
Fez-sesilêncioevoltouacalmaaonavio;sóotimoneiroficoujuntodoleme.A
sereiazinha colocou os alvos braços na borda da amurada e pôs-se a olhar para
oriente,àesperadaaurora,sabendoqueoprimeiroraiodeSollhetrariaamorte.
Viu, então, as irmãs subirem à superfície domar.Estavampálidas como ela e os
seuslongoscabelosjánãoflutuavamaovento:tinhamsidocortados.
—Demo-los à bruxa para que nos auxiliasse a salvar-te damorte esta noite!
Entregou-nosestafaca.Toma-a!Vêcomoestáafiada!AntesdonascerdoSol,terás
decravá-lanocoraçãodopríncipeequandooseusanguequentetesalpicarospés,
elestransformar-se-ãoemcaudadepeixe.Voltarásasersereia,poderásmergulhar
na água e regressar para junto de nós, onde viverás trezentos anos até te
transmutares na espuma salgada domar. Apressa-te!Um de vós terá demorrer
antesdeoSoldespontar!Anossaavozinhaestátãotristequelhecaíramtodosos
cabelosbrancos,enósperdemososnossossobatesouradabruxa.Mataopríncipee
volta!Apressa-te,estásaveraquelas faixasvermelhasnocéu?Dentrodeminutos
nascerá o Sol e irás morrer. — E, lançando profundos suspiros, voltaram a
mergulhar.
Asereiazinhaafastouacortinadepúrpuradatendaeviuabelanoivaadormir
comacabeçasobreopeitodopríncipe.Curvou-seebeijou-onatesta,olhouparao
céu para ver como a aurora se ia tornando mais luminosa, quedou-se por um
momento a olhar a faca afiada e voltou a mirar o príncipe, que em sonhos
murmurava o nome da noiva. Continuava a ser o seu único pensamento. A faca
vacilouporummomentonasmãosdasereia…maslogoaarremessouparalonge,no
mar,tingindo-seasondasdevermelho,comosegotasdesangueborbulhassemna
água.Finalmentevoltouafixarosolhosturvadosnopríncipee lançou-seaomar,
ondesentiuocorpoadesfazer-seemespuma.
Logodepois,rompeuoSol,projetandosuavementeosraiosquentesnaespuma
friademorte.Asereiazinhanãosentiuquemorria,viaoSolbrilhantee,porcima
dela,flutuando,centenasdeseresdeumatransparênciamaravilhosa.Conseguiaver
atravésdelesasvelasbrancasdonavioeasnuvensavermelhadasdocéu.Asvozes
eramdeumamelodiatãoespiritualquenenhunsouvidoshumanosapodiamouvir,
talcomonãopodiamvê-lososolhosterrestres.Semasas,flutuavamnoardevidoà
suapróprialeveza.Asereiazinhareparou,então,quetomaraamesmaformadesses
seresequeestavaaelevar-segradualmentedaespuma.
—Para onde vou?— inquiriu, e a sua voz soou como a dos outros seres, tão
espiritualmentecomonenhumamúsicaterrestreapoderiareproduzir.
—ParajuntodasFilhasdoAr!—responderam-lhe.—Assereiasnãotêmuma
alma imortal, nem nunca a poderão alcançar se não conseguirem o amor de um
homem!Oseudestinoeternodependedeumoutropoder.AsFilhasdoArtambém
nãotêmalmaimortalmaspodemviraobtê-lacomboasações.Deslocamo-nospara
ospaísesquentes,ondeoarmornoepestilentomataoshomens,eaíproduzimos
frescura. Espalhamos o perfume das flores no ar e trazemos alívio e cura. Se
durante trezentos anos praticarmos o bem, poderemos depois obter uma alma
imortal eparticiparda felicidadeeternadoshomens.Pobre sereiazinha, também,
comonós,teesforçaste,detodoocoração!Sofrestepacientemente,elevando-teao
mundodosEspíritosdoAr.Podesagoraviraalcançar,emtrezentosanos,comboas
ações,umaalmaimortal.
AsereiazinhaergueuobraçotranslúcidoparaoSol,radiosacriaçãodeDeus,e,
pelaprimeiravez,sentiucorreraslágrimas.Aonaviovoltaranovamenteavidaeo
bulício.Viuqueopríncipeealindanoivaaprocuravam,olhandotristementeparaa
espumaborbulhante,comoseadivinhassemquesetinhaatiradoàsondas.Invisível,
beijouatestadanoiva,sorriuparaopríncipeesubiucomasoutrasFilhasdoArnas
nuvensróseasquepairavamnocéu.
—Daquiatrezentosanos,assimascenderemostambémaoReinodeDeus!—
Poderemosalcançá-lomaiscedo!—sussurrouuma.
—Entramosinvisíveisnascasasdoshomensondehácriançaseporcadadiaque
encontrarmos um menino ou menina bonzinho, fazendo a alegria dos pais e,
merecendo o seu amor,Deus encurta-nos o nosso tempo de prova.Osmeninos
nunca sabem quando nos introduzimos nos quartos,mas se nos fazem sorrir de
alegria é-nos tirado um ano dos trezentos que teremos de viver assim. Pelo
contrário, se se nos depara uma criança malcriada e má, vertemos lágrimas de
tristezaeporcadalágrimavertidaéaumentadoemumdiaonossotempodeprova.
APolegarzinha
Eraumavezumamulherquesuspirava,ansiosamente,porterumacriancinha,
masquenãosabiaoquefazerparasatisfazeroseudesejo.Foiassimprocuraruma
velhafeiticeiraepediu-lhe:
—Gostariadetodoocoraçãodeterumacriancinha,nãoqueresdizer-meonde
podereiencontraruma?
—Sim,vamosresolverisso!—disseafeiticeira.—Eisaquiumgrãodecevada,
quenãoéigualàespéciequecrescenoscamposdoslavradores,nemàquesedáàs
galinhasparacomerem.Põe-nonumvasodeflores,depoisvaisver!
—Agradeço-temuito!—disseamulheredeuà feiticeiradozexelins.Depois
foiparacasa,plantouogrãodecevadaelogocresceuumalindaegrandeflor,que
pareciatalequalumatúlipa,masaspétalasestavamcompletamentefechadas,como
seestivesseaindaembotão.
—Éumalindaflor!—disseamulherebeijou-anasbonitaspétalasvermelhase
amarelas,masnomomentoemqueabeijavaaflordeuumgrandeestaloeabriu-se.
Eraumaverdadeiratúlipa,via-sebem!Masnomeiodaflor,numacadeiraverde,
estavasentadaumapequeninamenina,muitofinaegraciosa!Nãoeramaiordoque
umapolegadaeporissorecebeuonomedePolegadazinha.
Uma casca de noz lindamente envernizada foi o seu berço, pétalas de violeta
azuisforamosenxergõeseumapétaladerosaoseuedredãodepenas.Aídormiade
noite,masduranteodiabrincavaemcimadamesa,ondeamulhertinhacolocado
umprato,emvoltadoqualpuseraumacoroadeflorescomoscaulesespetadosna
água,ondeflutuavaumagrandepétaladetúlipaesobreestadeviaaPolegadazinha
sentar-se e vogardeum ladoparaooutrodoprato.Tinhadoispelosbrancosde
cavalopararemar.Erabembonitodesever!Tambémsabiacantar.Oh!Tãobelae
lindamente,comonuncaantessetinhaouvido…
Uma noite em que estava na sua linda cama, entrou um sapo feio aos pulos
através do vidro quebrado da janela. O sapo era tão horrível, grande e húmido!
Saltou logo para baixo para amesa, onde a Polegadazinha estava a dormir sob a
pétaladerosavermelha.
—Eraumabonitaesposaparaomeufilho!—disseosapo,peloqueagarrouna
cascadenozondedormiaaPolegadazinhaesaltouparaojardimcomelaatravésdo
vidropartidodajanela.
No jardim corria um regato grande e largo,mas nasmargens era pantanoso e
lamacento.Aímoravaosapocomofilho.Ui!Eratãofeioehorrendo,eraparecido
com a mãe! — Coax, coax, breque-que-quex! — foi tudo o que soube dizer,
quandoviualindamenininhanacascadenoz.
—Não fales tão alto, senão acorda!—disse o velho sapo.—Ela ainda pode
fugir-nos, pois é tão leve como uma penugem de cisne. Vamos pô-la no regato
sobre uma das folhas largas de lírio aquático, que é para ela, tão leve e pequena,
comoumailha.Daínãopodefugir,enquantonósmontamososaposentosdegala
porbaixodalama,ondeireisresidir!
Lá fora, no regato, cresciam muitos lírios aquáticos com folhas verdes e tão
largas que pareciam vogar na água. A folha que estavamais longe era também a
maior de todas. Para aí nadou o sapo velho e aí pôs a casca de noz com a
Polegadazinha.
Apobrepequeninaacordoucedodemanhã.Quandoviuondeestava,começoua
choraramargamente,poisagrandefolhaverdeencontrava-serodeadadeáguapor
todososlados,nãopodiadenenhummodovirparaterra.
Osapovelhoinstalou-seembaixo,nalama,edecorouosaposentoscomjuncoe
líriosaquáticosamarelos—seriaverdadeiramentebonitoparaanovanora!Nadou
depoiscomofilhorepelenteparaafolhaondeestavaaPolegadazinha.Queriamir
buscar a sua bonita cama, que devia ser posta no quarto de noivado, antes de a
trazerem.Ovelhofezumaprofundareverêncianaáguadiantedelaedisse:
—Aqui tens omeu filho, que será teumarido e ireis viver lindamente lá em
baixo,nalama!
—Coax,coax!Breque-que-quex!—foitudooqueofilhosoubedizer.
Pegaram na linda caminha e foram-se a nadar com ela, mas a Polegadazinha
sentou-secompletamentesóachorarnafolhaverde,poisnãoqueriamoraremcasa
dosapofeio,nemterofilhohorrendopormarido.Ospeixinhosquenadavamem
baixonaáguabemtinhamvistoosapoeouvidooquedissera,porissopuseramas
cabeçasdefora,queriamverapequenina.Logoqueaviram,acharam-natãobonita
efez-lhestantapenaquetivessedeirparabaixo,paraosaponojento!Não,issonão
devia acontecer! Juntaram-se em baixo, na água, à volta do caule verde, que
sustinha a folha onde ela estava, roeramo caule comos dentes e assim flutuou a
folha, regato abaixo, com a Polegadazinha, para longe, onde o sapo não podia
chegar.
APolegadazinhapassouanavegarpormuitoslugareseospassarinhospousados
nosarbustosviram-naecantaram:«Quelindamenininha!»Afolhavogoucomela
maisemaisparalonge.AssimviajouaPolegadazinhaparaforadopaís.
Umalindaborboletazinhabrancaficouapairaràvoltadelaepousouporfimna
folha, pois parecia gostar muito da Polegadazinha e ela estava tão contente por
agoraosaponãoapoderalcançar,eeratãobonitoporondevogava!OSolbrilhava
naágua,Eracomosefossedomaisbeloouro.Entãopegounasuafaixa,atouuma
pontaàborboletaeaoutrapontaprendeu-aàfolha.Assim,deslizavammuitomais
depressa,elaeafolha.
Nessemomento,umgrandebesouroveioavoare,assimqueaviu,numinstante,
prendeu-acomasgarrasàvoltadacinturadelgadaevooucomelaparaumaárvore.
Mas a folha verde vogou para baixo no regato e a borboleta voou com ela, pois
estavaligadaàfolhaenãoconseguialibertar-se.
BomDeus,comoapobrePolegadazinhaficouassustadaquandoobesourovoou
para cima da árvore com ela! Mas ficou muito mais preocupada com a bonita
borboleta brancaque atara à folha.No caso denãopoder libertar-se,morreria à
fome.Masobesouronão sepreocupoucom isso.Pousoucomelanamaior folha
verdedaárvore,deu-lhedocedefloresparacomeredisse-lhequeeramuitobonita,
sebemquenãoseparecessenadacomumbesouro.Depoisvieramtodososoutros
besouros que moravam na árvore fazer-lhes uma visita. Olharam para a
Polegadazinha,asmeninas-besourosestenderamostentáculoseumadelasdisse:
—Elanãotem,pois,maisdoqueduaspernas,temumaspetomiserável!
—Nãotemnenhunstentáculos!—acrescentououtra.
—Étãomagranacintura,puh!Parecemesmoumserhumano!Comoéfeia!—
referiram todas as fêmeas-besouros. Contudo, a Polegadazinha era tão bonita!
Também lhe parecia isso, ao besouro que a tinha apresado, mas como todos os
outrosdiziamqueera feia, acabou tambémporacreditarnissoenãoaquismais.
Podia irparaondequisesse.Voaramdaárvoreepuseram-nanumamargarida.Aí
chorou,porqueeratãofeiaquenemosbesourosaqueriam.E,contudo,eraamais
bonitaquesepodiaimaginar,tãodelicadaebrancacomoamaisbelapétaladerosa!
TodooverãoviveuapobrePolegadazinhacompletamentesónograndebosque.
Comtalosdeervaentrançadosfezumacamaesuspendeu-asobumagrandefolha
debardanaparaseprotegerdachuva.Colhiaosucodasflores,comia-oebebiado
orvalho que todas as manhãs estava nas folhas. Assim se passaram o verão e o
outono,masdepoisveiooinverno,ofrioelongoinverno.Ospássarosquetinham
cantadotãolindamenteparaela,voaramparaosseusdestinos.Asárvoreseasfolhas
murcharam.Agrandefolhadebardana,sobaqualtinhamorado,enrolou-seeficou
apenasumcauleamareloemurcho.Elaregelavaterrivelmente,poisoseuvestuário
estava em pedaços e a tão bonita e pequenina Polegadazinha, ia morrer gelada.
Começouanevarecadaflocodenevequecaíasobreelaeracomoselançassemum
cestocheiosobrenós,poissomosgrandeseelatinhaapenasumapolegadadealtura.
Assim embrulhou-se numa folha murcha, mas que não era suficiente para a
aquecer.Tremiadefrio.
Perto,foradobosque,paraoqualtinhavindo,haviaumgrandecampodetrigo,
masotrigoforaceifadohámuito,apenasficouorestolhosecodepénaterragelada.
Eracomovaguearnumpequenobosque.Tremiadefrio.
Oh!Chegouassimàportadoratodocampo.Haviaumpequenoburacosobo
restolho.Aquimoravaoratodocampobemaconchegado,tinhaoaposentocheio
detrigo,umalindacozinhaesaladejantar.ApobrePolegadazinhaparoudolado
dedentrodaporta,talcomoumapobrecriançapedinte,epediuumbocadinhode
umgrãodecevada,poishádoisdiasquenãocomianada.
—Pobrezinha!—disseoratodocampo,poiseranofundoumbomratovelho.
—Entranomeuaposentoquenteevemcomercomigo!
ComogostoudaPolegadazinha,disse-lhe:
—Podes ficar, debomgrado, emminha casa, duranteo Inverno,mas tensde
manteromeuaposentobemlimpinhoecontar-mehistórias,poisgostomuitode
histórias!
A Polegadazinha fez o que o bom rato do campo exigia e ali sentiu-se
verdadeiramentebem.
—Em breve vamos ter visitas!— disse o rato do campo.—Omeu vizinho
costuma visitar-me todas as semanas. Ele está ainda melhor do que eu. Tem
grandessalaseandacomumatãolindapeledeveludopreta!Pudessestutê-locomo
marido,que estarias bemgovernada.Mas é cego.Tensde contar-lhe ashistórias
maisbonitasquesabes!
Mas a Polegadazinha não se interessou, não quis o vizinho, pois era uma
toupeira.Chegou e fez a visita com a sua pele de veludo preta, eramuito rico e
muitoculto,disseoratodocampo.Osseusalojamentoseramtambémmaisdevinte
vezesmaiores do que os dele e tinha instrução,mas não suportava o Sol nem as
floresbonitas,falavamaldeles,porquenuncaostinhavisto.APolegadazinhateve
decantarecantoutanto«Besourinho,avoa,avoa»como«Vaiofradeparaoprado».
Assimficouatoupeiraapaixonada,porcausadalindavoz,masnãodissenada.Era
ummachomuitodiscreto!
Recentemente,tinhaescavadoumlongocaminho,atravésdaterra,desdeacasa
delesatéàsua,noqualtiveramoratodocampoeaPolegadazinhaautorizaçãopara
passearem,quandoquisessem.Maspediu-lhesquenão tivessemmedodopássaro
morto que estava no caminho. Era um pássaro inteiro, com penas e bico, que
certamente teria morrido há bem pouco, quando o inverno começou e estava
enterradoprecisamenteondeelefizeraocaminho.
Atoupeirapegounumpedaçodemadeirapodrenaboca,quebrilhacomolume
na escuridão. Foi à frente iluminando-lhes o longo caminho escuro. Quando
chegaramaolugarondeestavaopássaromorto,atoupeirapôsoseulargofocinho
contrao teto e empurrou a terrapara cima, demodoque ficouumburaco largo
pelo qual a luz, ao penetrar nele, podia brilhar. No meio do chão jazia uma
andorinhamorta,comasbonitasasasrecolhidas,aspernaseacabeçametidasentre
aspenas.Opobrepássaromorreracertamentedefrio.APolegadazinhatevemuita
pena dele porque gostava muito de todos os passarinhos. Tinham todo o verão
cantado e gorjeado tão lindamente para ela!Mas a toupeira empurrou-a com as
pernascurtasedisse:
— Agora não pia mais! Deve ser lastimável nascer-se passarinho! Deus seja
louvado,quenenhumdosmeusfilhososerá.Umtalpássaronadamaistemdoque
oseu«quevivi»etemdemorreràfomenoinverno!
—Sim,bemopodedizer,comomachosensatoqueé—disseoratodocampo.
—Quetêmospássarosportodooseu«quevivi»,quandovemoinverno?Têmde
passarfomeeregelar.Masparaelestudotemdeseremgrande!
A Polegadazinha não disse nada,mas quando os dois viraram as costas para o
pássaro, curvou-se, afastou as penas para o lado, que estavam sobre a cabeça e
beijou-onosolhosfechados.«Talvezfosseaquelequecantoutãolindamentepara
mimnoverão!»,pensouela.«Quantaalegriamedeuoqueridoelindopássaro!»
A toupeira fechou depois o buraco por onde penetrava a luz do dia e
acompanhou-osacasa.MasdenoiteaPolegadazinhamalpodiadormir.Levantou-
sedacamaeentrançoucomfenoumacobertagrandeebonita,levou-aparabaixoe
envolveu nela o pássaro morto, pôs algodão macio que tinha encontrado nos
aposentosdoratodocampoàsuavolta,paraquepudessesentir-sequentenaterra
fria.
— Adeus, lindo passarinho!— disse ela.— Adeus e obrigada pelo teu lindo
cantonoverão,quandotodasasárvoresestavamverdeseoSolbrilhavatãoquente
sobre nós! — Depois colocou a cabeça sobre o peito do pássaro, mas ficou no
mesmomomento toda assustada, pois era como se algo batesse lá dentro. Era o
coraçãodopássaroquenãoestavamorto.Jaziaemtorporeagoraestavaaquecidoe,
porisso,tomouvidanovamente.
Nooutono,asandorinhasvoamparalonge,paraospaísesquentes,masháuma
ou outra que se retarda, regela de tal modo que cai completamentemorta. Fica
ondecaieanevefriaamontoa-se-lheemcima.
A Polegadazinha tremeu, tão assustada estava, pois o pássaro era bem grande,
grande perante ela, que tinha apenas uma polegada de altura,mas encheu-se de
coragem,aconchegouoalgodãoàvoltadapobreandorinhaefoibuscarumafolha
dehortelãquetiveracomocobertaepô-lasobreacabeçadopássaro.
Nanoiteseguinterastejououtravezparabaixoatéaopássaro,queestavavivo,
mas tão esgotado quemal podia, por ummomentinho, abrir os olhos para ver a
Polegadazinhacomumpedacinhodelenhanamão,poisoutralanternanãotinha.
—Muito te agradeço, linda criancinha!— disse-lhe a andorinha doente. —
Fiqueitãobemaquecida!Embrevevouterforçasepodervoardenovo,parafora,
paraaluzdoSolquente!
—Oh!—disseaPolegadazinha.—Estátantofrioláfora,nevaegela!Ficana
camaquentequeeutratareideti!
Trouxeáguaàandorinhanumapétalaeestabebeu,depoiscontou-lhecomose
tinhaferidonumaasa,numarbustocompicos,porissonãopodiavoartãorápido
comoasoutrasandorinhas,quevoavampara longe,paraospaísesquentes.Tinha
caídoparaaterra,emaisnãoselembravanemsabiacomovieraaliparar.
Todooinvernoficoudebaixodaterra,aPolegadazinhafoiboaparaelaegostava
muitodela.Nematoupeiranemoratodocampovieramasaberamínimacoisa,
poisnãopodiamtolerarapobreemiserávelandorinha.
LogoqueaprimaverachegoueoSolaqueceuaterra,aandorinhadisseadeusà
Polegadazinha,queabriuoburacoquea toupeira fizeraporcima.OSolbrilhou
lindamente lá dentro e a andorinha perguntou se não queria vir com ela. Podia
sentar-se nas suas costas, voariam para longe, para os bosques verdes. Mas a
Polegadazinhasabiaqueafligiriaovelhoratodocamposeoabandonasseassim.
—Não,nãoposso!—disseaPolegadazinha.
—Então,adeus,adeus!Boa, lindamenina!—despediu-seaandorinhaevoou
para o brilho doSol.APolegadazinha ficou a vê-la e vieram-lhe as lágrimas aos
olhos,poisgostavamuitodapobreandorinha.
—«Quevivi!»,vivi!—cantouopássaroevoouparaosbosquesverdes…
APolegadazinhaestava tãoaflita!Nempodiapermitir-sevirpara fora,parao
Solquente.O trigoque fora semeadono terrenoalipor cimada casado ratodo
campocresciatambém,eraumbosqueespessoparaapobrezinha,quesótinhauma
polegadadecomprido.
—Agoranoverãoterásdeprepararoteuenxoval!—disse-lheoratodocampo,
poisoenfadonhovizinho,atoupeiranapeledeveludopreta,tinha-lhefeitouma
propostadecasamento.—Tensdetertantodelãcomodelinho!Tensdeteronde
sentar-teedeitar-te,quandoforesesposadatoupeira!
APolegadazinhatevedefiarnofuso,àmão,eoratodocampocontratouquatro
aranhaspara fiare tecernoiteedia.Todasasnoitesa toupeira faziaumavisitae
falava sempre de que, quando o verão tivesse fim, então não brilharia o Sol, tão
pertoetãoquente.Agoraqueimavaaterraquasecomoumapedra.Sim,quandoo
verãoestivesseacabado,então seriamasbodascomaPolegadazinha.Maselanão
estavanadacontente,poisnãogostavanemumbocadinhodaenfadonhatoupeira.
Todas asmanhãs, quando o Sol se levantava e todas as noites quando se punha,
escapava-separaaportaequandooventoseparavaaspontasdotrigo,demodoque
pudesse ver o céu azul, pensava em como era luminoso e bonito lá em cima e
desejavatantopoderverdenovoaqueridaandorinha.Masestanãovoltariamais.
Voaracertamenteparalonge,nobelobosqueverde.
Quandochegouooutono,aPolegadazinhatinhaoenxovaltodopronto.
— Em quatro semanas terás as bodas!— disse-lhe o rato do campo. Mas a
Polegadazinhachorouedissequenãoqueriaaenfadonhatoupeira.
—Snique,snaque!—retorquiuoratodocampo!—Nãotefaçasrecalcitrante,
senãomordo-tecomomeudentebranco!Émuitobonitoomachoquevaister!A
suapeledeveludopretonãotemarainhaumaigual!Temmuito,tantonacozinha
comonadespensa.AgradeceaDeusporele!
Assimtiveramdefazerasbodas.AtoupeirachegaraparalevaraPolegadazinha.
Iriamorarcomela,nofundo,porbaixodaterra, jamaisvindoparaoSolquente,
porquecomissonãosofriaoratocego.Apobrecriançaestavatãoaflita,teriaagora
dedizeradeusaobeloSol,que,contudo,emcasadoratodocampoforaautorizada
aver,àporta.
—Adeus,claroSol!—disseela,eestendeuosbraçosparaoarefoitambémum
bocadinhoparaforadacasadoratodocampo.Poisotrigoforaceifadoealiestavam
apenasos restolhos secos.—Adeus, adeus!—repetiu enroscandoosbracinhos à
voltadeumaflorzinhavermelhaquealiestava.
—Saúdaaandorinhapormim,sealgumdiavieresavê-la!«Quevivi!»—ouviu
nomesmomomento sobre a sua cabeça.Olhou para cima. Era a andorinha que
passava naquelemomento.Logoque viu aPolegadazinha, ficoumuito contente.
Estacontou-lhecomquerelutânciaiaterafeiatoupeiracomomaridoequetinha
demorarnofundo,porbaixodaterra,ondeoSolnuncabrilhava.Nãopodiadeixar
dechorarporcausadisso.
—Agoravemoinvernofrio—disseaandorinha.—Euvooparalonge,paraas
terrasquentes, queres vir comigo?Podes sentar-tenasminhas costas!Só tens de
amarrar-tebemcomatuafaixa,voamosassimparalongedafeiatoupeiraedosseus
aposentossombrios,paralonge,sobreasmontanhas,paraospaísesquentes,ondeo
Solbrilhamaisbonitodoqueaqui,ondeésempreverãoeháflores.Voacomigo,
docePolegadazinha, queme salvaste a vida quando jazia regelada na cave escura
debaixodaterra!
—Sim,queroircontigo!—respondeuaPolegadazinha,esentou-senascostas
dopássaro,comospésnasasasabertas,amarroubemocintonumadaspenasmais
forteseaandorinhavoouparaoalto,sobreosbosquesesobreomar,altoporcima
dasgrandesmontanhas,ondehásempreneve.APolegadazinharegelounoarfrio,
masarrastou-separadentro,sobaspenasquentesepôsacabecinhadeforaparaver
todaaquelabelezaporbaixodela.
Chegaramassimàsterrasquentes.BrilhavaoSolmuitomaisclarodoqueaqui,
océueraduasvezesmaisaltoenasvalasenassebescresciamasmaisbonitasuvas
verdeseazuis.Nosbosquessuspendiam-selimõeselaranjas,aquicheiravaamirto
e hortelã e nos caminhos corriam as crianças mais lindas, que brincavam com
grandes borboletas multicolores.Mas a andorinha voou ainda paramais longe e
tornou-setudocadavezmaisbonito.Sobasárvoresmaisbelas,juntoaolagoazul,
estava um castelo de mármore branco brilhante dos velhos tempos. As vinhas
retorciam-separacimaàvoltadascolunasaltas.Aí,mesmoemcimadetudo,havia
muitosninhosdeandorinhasenumdessesmoravaaandorinhaquetransportavaa
Polegadazinha.
—Aquiestáaminhacasa!—disseaandorinha.—Mas,sequiseres,tuprópria
podesescolherumadasfloresmaisbonitasquecrescemláembaixo.Levar-te-eilá
eterástudotãobonitoquantodesejares!
—Seriamaravilhoso!—disseela,batendopalmascomasmãozinhas.
Haviaumagrandecolunademármorebranco,quetinhatombadonochãoese
partira em três pedaços e entre estes cresciam as flores mais lindas, grandes e
brancas.AandorinhavoouparalácomaPolegadazinhaecolocou-asobreumadas
folhas largas. Mas como ficou admirada! Aí estava sentado um homenzinho no
meioda flor, tãobrancoe translúcido, comose fossedevidro.Tinhanacabeçaa
coroadeouromaislindaenosombrosasasasmaislindaseclaras.Elepróprionão
eramaiordoqueaPolegadazinha.Eraoanjodaflor.Emcadaflormoravaassim
umhomenzinhooumulherzinha,masaqueleeraoreidetodos.
—Meu Deus, como é bonito!— segredou a Polegadazinha à andorinha. O
principezinho ficou tão assustado diante da andorinha, pois esta era uma ave
giganteperanteele,queeratãopequenoefino.QuandoviuaPolegadazinhaficou
muitocontente.Eraameninamaisbonitaqueatéentãotinhavisto.Porissotiroua
coroadeourodacabeçaecolocou-anacabeçadela,perguntoucomosechamavae
se queria ser sua mulher, seria rainha de todas as flores! Sim, era um homem
verdadeiro,bemdiferentedofilhodosapoedatoupeiracomapeledeveludopreta.
Disse,portanto,que simaobonitopríncipeedecada florveioumadamaouum
cavalheiro,tãobelos,quedavagostovê-los!CadaumtraziaparaaPolegadazinha
umpresente,masomelhordetodosfoiumpardelindasasasdeumagrandemosca
branca.ForamfixadasàscostasdaPolegadazinhaparapodertambémvoardeflor
para flor. Era tal a alegria que a andorinha sentou-se em cima, no seu ninho, e
cantouparaeles,tãobemquantopodia,masocoraçãoestava,contudo,triste,pois
gostavamuitodaPolegadazinhaenãoqueriaseparar-sedela.
—Nãodeves teronomePolegadazinha!—disse-lheoanjoda flor.—Éum
nomefeioetuésbonita.Vamoschamar-teMaia!
— Adeus! Adeus! — despediu-se a andorinha, e partiu. Deixou os países
quentes,evooulápara longe,deregressoàDinamarca.Ali tinhaumninhozinho
sobrea janelaondemoraohomemque sabecontar contos.Paraele, a andorinha
cantouo«quevivi»,dequetemostodaahistória.
AsFloresdeIdinha
—Asminhas pobres flores estão completamente mortas!— disse Idinha.—
Estavam tão bonitas ontem à noite e agora todas as pétalas estão pendentes e
murchas!Porque fizeram isso?—perguntouela aoestudantequeestava sentado
no sofá. Gostava muito dele, sabia as mais lindas histórias e recortava no papel
figurasmuitoengraçadas!Coraçõescomdamazinhasdentro,quedançavam,flores
e grandes castelos, cujas portas se podiam abrir!Era um estudante divertido!—
Porquetêmasflores,hoje,umaspetotãotriste?—perguntoudenovoemostrou-
lheumramocompletamentemurcho.
—Olha, sabes o que têm?— perguntou o estudante.— As flores estiveram
ontemnumbaileeporissopendem-lhesascabeças.
—Masasfloresnãosabemdançar!—disseaIdinha.
— Sabem— respondeu o estudante.—Quando faz escuro e nós estamos a
dormir,saltamalegrementecáparafora.Quasetodasasnoitestêmumbaile!
—Osfilhinhospodemacompanhá-lasaobaile?
—Naturalmente!—disseoestudante.—Aspequeninasmargaridaseoslírios
dovale.
—Ondedançamasfloresmaisbonitas?—perguntouaIdinha.
—Nãoestivestealgumasvezesforadeportas,pertodograndepalácio,ondeo
reivive,noverão,nobelo jardimcheiode flores?Vistecertamenteoscisnes,que
nadamparati,quandoqueresdar-lhesmigalhasdepão.Aíháverdadeiramenteum
baile,podescrer!
—Estive ontemno jardim com aminhamãe—disse Ida.—Mas não havia
nenhuma folha nas árvores e nem uma única flor!Onde estão elas?No verão vi
tantas!
—Estãodentrodopalácio!—disseoestudante.—Tensdesaberque,logoque
oreietodaagentedacortesevãoemboraparaacidade,asfloresdojardimcorrem
paraopalácioedivertem-se.Deviasver!Asduasrosasmaisbonitassentam-seno
tronoe sãoassimreierainha.Todasascristas-de-galovermelhascolocam-seaos
ladosefazemvénias, sãooscamaristasdacorte…Vêmdepoistodasasfloresmais
bonitaseéentãoograndebaile.Osamores-perfeitos1azuissãooscadetezinhosda
Marinha,dançamcomhortênsiaseaçucenas,aquechamamsenhorinhas.Astúlipas
easgrandesdáliasamarelassãoasvelhasdamas.Cuidamdequesedancebemeque
tudocorracomodeveser.
—Mas—perguntou a Idinha—não há ninguémque castigue as flores por
dançaremnopalácioreal?
—Nãoháninguémquevenhaasabê-lo—respondeuoestudante.—Algumas
vezes, de noite, pode vir o velho intendente, que temde tomar conta do palácio.
Trazumgrandemolhodechavesconsigo.Maslogoqueasfloresouvemaschavesa
tilintar,ficammuitoquietas,escondem-sepordetrásdasgrandescortinasedeitam
acabeçadefora.—Cheira-meafloresaquidentro!—dizovelhointendente,mas
nãoconseguevê-las.
—Queengraçado!—disseaIdinha,batendopalmas.—Masnãopossotambém
verasflores?
— Podes — disse o estudante. — Quando lá fores outra vez, lembra-te de
espreitar pela janela, vê-las-ás certamente.Fiz isso hoje.Havia uma grande dália
amarelaestendidanosofá.Eraumadamadacorte.
—AsfloresdoJardimBotânicotambémpodemir?Sãocapazesdefazerolongo
caminho?
—Sim,podescrer!—disseoestudante.—Pois,quandoquerem,sabemvoar.
Não tens visto as bonitas borboletas, vermelhas, amarelas e brancas? Quase
parecem flores. Foram-no, saltaram do caule para o ar, bateram com as pétalas,
como se fossem asinhas e assim voaram. E como se portaram bem, tiveram a
recompensa de voar de dia, não precisando de regressar e ficar quietas no caule.
Assim as pétalas transformam-se por fim em asas verdadeiras. Isso já tu própria
viste! Pode tambémmuito bem suceder que as flores do JardimBotânico nunca
tenhamestadonopaláciorealnemsaibamqueláétãodivertidodenoite.Agoravou
dizer-te uma coisa:muito espantado vai ficar o professor de Botânica quemora
aquiaoladoequeconhecesbem!Quandoforesaoseujardim,vaisdizeraumadas
floresqueháumgrandebailenopalácio.Esta,porsuavez,diráatodasasoutrase
assim todas se escaparão. Quando o professor voltar ao jardim, não haverá uma
únicafloreelenãoconseguirácompreendercomoseforamembora.
—Mas comopodem as flores dizer essas coisas umas às outras?As flores não
sabemfalar!
— Não, na verdade, não sabem! — respondeu o estudante. — Mas fazem
pantomima.Nuncavisteque,quandoháumbocadinhodevento,asfloresacename
mexemtodasasfolhasverdes?Étãoclarocomosefalassem!
—Oprofessorcompreendeapantomima?—perguntouIda.
—Sim,bempodescrer!Umamanhãdesceuaojardimeviuumagrandeurtigaa
fazer pantomima com as folhas a um lindo cravo vermelho.Dizia:—Tu és tão
bonitoeeugostotantodeti!—Mastaiscoisasnãopodeoprofessortolerar,elogo
bateu na urtiga, nas folhas, que são os dedos dela,mas sentiu um ardor e desde
entãonuncamaisseatreveuatocaremnenhuma.
—Queengraçado!—exclamouaIdinha,rindo.
—Paraque servemeter tais coisasnacabeçadacriança!—disseoenfadonho
conselheiro de chancelaria, que chegara de visita e estava sentado no sofá. Não
podiademaneiranenhuma suportar o estudante e censurava-o semprequandoo
via recortar as figuras divertidas e engraçadas: ora um homem que estava
pendurado numa forca e segurava um coração na mão, pois era um «ladrão de
corações»,oraumavelhabruxaquecavalgavanumavassouraetinhaomaridono
nariz.Istonãopodiaoconselheirodechancelaria suportaredestemodovoltoua
dizer:
—Paraqueservemetertaiscoisasnacabeçadacriança!Éestúpidafantasia!
Mas à Idinha parecia-lhe que era muito engraçado o que o estudante tinha
contado sobre as suas flores e pensou muito nisso. As flores deixavam pender a
cabeça porque estavam cansadas de dançar durante toda a noite, estavam
certamentedoentes.Levou-as,pois,parajuntodetodososseusoutrosbrinquedos
emcimadeumamesinha,cujagavetaseencontravatambémcheiadebrinquedos.
NacaminhadebonecasestavadeitadaasuabonecaSofia,quedormia,masaIdinha
disse-lhe:
—Temde ser, tens de levantar-te,Sofia, e contentar-te empassar a noite na
gaveta.Aspobresfloresestãodoenteseprecisamdedeitar-senatuacama.Talvez
assimfiquemboas!—Pegounaboneca,masestaolhoudetravésenãodisseuma
palavra.Estavazangadapornãopoderficarnasuacama.
Idadeitouasfloresnacamadasbonecasepuxouacobertazinhaparacimadelas.
Tinhamdeficarbemquietinhas,poisiafazercháparaasflores,afimdeficarem
boasepoderemlevantar-senodiaseguinte.Fechouascortinasàvoltadacaminha
paraqueoSolnãolhesbatessenosolhos.
Durantetodaanoitenãopôdedeixardepensarnoqueoestudantelhecontara,e
quandochegouahoradeirparaacama,tevedeirprimeiroatrásdascortinas,que
sesuspendiamdiantedasjanelas,ondeestavamaslindasfloresdamãe—jacintose
túlipas—esussurroubaixinho:
—Seimuitobemquevãoaobaileestanoite!—Masasfloresfizeramcomose
nãotivessementendidoenãomexeramumafolha.MasaIdabemsabiaoquesabia.
Quandofoiparaacama,ficoumuitotempoapensarcomoseriabompoderver
asbonitas floresadançar lánopalácioreal.«Irãoasminhas flores realmente lá?»
Mas adormeceu. Alta noite, acordou. Tinha sonhado com as flores e com o
estudante e como o conselheiro de chancelaria resmungava e dizia que queriam
meter-lhe coisas na cabeça. Era total o silêncio no quarto de dormir onde se
encontravaIda.Alamparinaardiaemcimadamesaeopaieamãedormiam.
—AindaestarãoasminhasfloresdeitadasnacamadeSofia?—interrogou-se.
—Comogostariatantodesabê-lo!—Ergueu-seumpoucoeolhouparaaporta,
queestavameioaberta.Láestavamasfloresetodososbrinquedos.Escutouefoi
como se ouvisse tocar piano na sala, masmuito suave e tão distintamente como
nuncaoouviraantes.
—Agoraestãocertamente todasas floresadançar láembaixo—disseela.—
MeuDeus!Comogostariadevê-las!—masnãoousoulevantar-se,poisacordaria
o pai e amãe.— Se viessem até aqui!— pensou.Mas as flores não vieram e a
músicacontinuouasoardeliciosamene.Entãonãopôdeaguentarmais,poisestaera
demasiado bela. Arrastou-se para fora da caminha, foi muito de mansinho até à
portaeespreitouparaasala.Oh!Comoeramaravilhosooqueselhedeparou!
Não havia nenhuma lamparina, mas estava mesmo assimmuito claro. O luar
entravapelajanela,refletindo-senomeiodochão.Eraquasecomosefossededia.
Todosos jacintose túlipasestavamemduas longas filasnochão.Nãohaviauma
únicaflornajanela.Osvasosestavamvazios.Embaixonosoalhodançavamtodasas
flores graciosamente à volta umas das outras, formando verdadeiros cordões e
agarrando-seumasàsoutraspelaslongasfolhasverdes,quandoandavamàroda.Ao
pianoestavaumgrandelírioamarelo,queaIdinhaviraseguramentenoVerão,pois
lembrava-sebemdeoestudantelheterdito:
—Oh!ComoseparececomaMeninaLina!—Nessaaltura todos se tinham
ridodele.MasagoratambémpareciarealmenteaIdaqueacompridafloramarela
se assemelhava àMenina e faziaosmesmosgestosquando tocava.Ora colocavao
oblongo rosto amarelo de um lado, ora do outro, marcando com a cabeça o
compassodabelamúsica.NinguémdeupelaIdinha.Viuentãoumgrandeaçafrão
azul saltarpara omeiodamesa, onde se encontravamosbrinquedos, ir direito à
camadasbonecasepuxarascortinasparaolado.Láestavamasfloresdoentes,mas
levantaram-se logo e acenaram às outras que também queriam dançar. O velho
Fumador2, que perdera o lábio inferior, levantou-se e inclinou-se perante as
bonitas flores, que não pareciam de modo nenhum doentes. Saltavam entre as
outraseestavammuitoalegres.
Pareceu que algo tombara da mesa. Ida olhou para lá. Fora o açoite do
Entrudo3quesaltaraquepareciatambémfazerpartedasflores.Eramuitobonitoe
emcima tinhaumabonequinhadecera comumchapéu largonacabeça igual ao
queoconselheirodechancelariausava.OaçoitedoEntrudosaltavanas suas três
pernas de pau vermelhas nomeio das flores e batia fortemente com os pés, pois
dançavam amazurca,mas esta dança não a sabiam as outras flores, porque eram
muitolevesenãopodiambatercomospés.
AbonecadeceranoaçoitedoEntrudofez-segrandeecomprida, torneoupor
cimadasfloresdepapelegritoubemalto:
—Paraqueservemetertaiscoisasnacabeçadacriança!Éestúpidafantasia!—
Eassimabonecadecerapareciaperfeitamenteoconselheirodechancelariacomo
chapéu largo, tão amarelo e rabugento.Mas as flores de papel bateram-lhe nas
pernas finas e assim se encolheu, tornando-se denovoumapequeninaboneca de
cera.FoitãoengraçadoqueaIdinhanãopôdedeixarderir.OaçoitedoEntrudo
continuouadançareo«conselheirodechancelaria» tevededançarcomele.Não
lhevaliadenadafazer-segrandeecompridoouvoltaraserabonequinhadecera
amarela com o grande chapéu preto. As outras flores pediram por ele,
especialmente aquelas que tinham estado deitadas na camade bonecas, e então o
açoite do Entrudo cedeu. Nesse momento ouviu-se bater com força dentro da
gaveta, onde estava a boneca Sofia, de Ida, com muitos outros brinquedos. O
Fumadorcorreuparaocantodamesa,deitou-seaocompridodebarrigaparabaixo
econseguiuabrirumbocadinhodagaveta.Sofialevantou-seeolhoutodaadmirada
àsuavolta.
—Masháaquibaile!—disseela.—Porqueéqueninguémmodisse?
—Queresdançarcomigo?—perguntouoFumador.
—Claro,éstãobonitoparaalguémdançarcontigo!—disseela,voltando-lheas
costas. Assim se sentou na gaveta, pensando que seguramente alguma das flores
viria convidá-la,masnãoveionenhuma.Tossiuhum!,hum!,hum!,mas também
nenhumaveio.OFumadordançousozinhoenadamal!
Comonenhuma das flores parecia dar porSofia, deixou-se esta cair da gaveta
para o chão, demodo que produziu umgrande alarido.Vieram todas as flores a
correrparaela,rodeando-aaperguntarsesetinhaquebrado.Mostraram-setodas
muitoamáveis,especialmenteaquelasquetinhamestadodeitadasnasuacama.Mas
elanãose tinhaquebradoeas floresdeIdaagradeceram-lheabelacamaeforam
muito gentis com ela.Trouxeram-na para omeio do chão, onde brilhava o luar,
dançaramcomela e todas asoutras flores fizeramumcírculo à volta.Sofia ficou
muito contente e disse que podiam ficar com a sua cama. Não estava nada
aborrecidapordormirnagaveta.
Masasfloresresponderam:
— Muito te agradecemos, mas não podemos viver tanto tempo. Amanhã
estaremoscompletamentemortas.MasdizàIdinhaquedeveenterrar-nos láfora
no jardim, onde está o canário. Vamos assim crescer outra vez para o verão e
ficaremosaindamaisbonitas!
—Não,nãovãomorrer!—disseSofia,beijandoasflores.Nomesmomomento
abriram-seasportasdasalaetodaumamultidãodebelasfloresentrouadançar.Ida
nãoconseguiacompreenderdondetinhamvindo.Eramcertamentetodasasflores
dopalácioreal.Àfrentevinhamduaslindasrosascomcoroazinhas.Eramumreie
umarainha.Entraramentãoosmaisbelosgoivosecravos,saudandoparaambosos
lados.Traziammúsicaconsigo,grandespapoilasepeóniassopravamemvagensde
ervilha,tantoqueficavamcomacabeçacompletamenterubra.Ascampânulasazuis
e as campainhas brancas soavam, como se tivessem guizos. Era uma música
admirável. Vieram depois muitas outras flores, que dançaram juntas, as violetas
azuiseasmargaridasvermelhas,narcisoselíriosdovale.
Asfloresbeijavam-seumasàsoutras.Erabelodesever!
Por fim as flores disseram boa noite umas às outras. Então a Idinha deslizou
tambémparaacama,ondesonhoucomtudooquevira.
Quandonamanhãdodiaseguinteselevantou,foidireitaàmesinhaparaverseas
flores ainda lá estavam.Puxou a cortinapara o ladoda caminha.Sim, lá estavam
todas, mas completamente murchas, muito mais do que na véspera. Sofia
continuavanagavetaondeapusera.Pareciaestarcommuitosono.
— Lembras-te do que tens a dizer-me? — perguntou a Idinha, mas Sofia
olhavacomumolharbemestúpidoenãopronunciouumaúnicapalavra.
—Nãoésnadaboa!—disse Ida.—E, contudo,dançaram todas contigo!—
Então pegou numa caixinha de cartão, combelos pássaros desenhados, abriu-a e
pôsnelaas floresmortas.—Seráovosso lindocaixão!—disseela.—Equando
vieremosprimosnoruegueses,acompanhar-me-ãoaenterrar-vosnojardim,para
quenoverãopossamcresceretornar-seaindamaisbonitas!
Os primos noruegueses eram dois rapazinhos espertos. Chamavam-se Jonas e
Adolfo.Opaitinha-lhesdadodepresenteduasnovasbestasetraziam-nasparaas
mostraraIda.Elacontou-lhesahistóriadaspobresflores,queestavammortas,e
assimforamconvidadosaenterrá-las.Osrapazinhosforamàfrentecomasbestas
aosombroseaIdinhaatráscomasfloresmortasnabonitacaixa.Nojardimabriu-
seumapequenasepultura. Idabeijouprimeiroas flores, colocou-asdepoiscoma
caixadentrodaterraeAdolfoeJonasdispararamasbestasporcimadasepultura,
poisnãotinhamespingardasoucanhões.
1-Emvirtudedogénero,emcorrespondênciacomotextodesignam-seoutros
nomes de plantas. Em dinamarquês propriamente: violetas, jacintos, açafrões,
tulipaselilases.(N.doT.)(Voltar)
2 -Trata-se de um quebra-nozes ou boneco figurando um homem a fumar,
certamentecachimbo.(N.doT.)(Voltar)
3 - Açoite do Entrudo: molho de ramos de bétula enfeitado, com o qual as
pessoas se açoitavam, de brincadeira, umas às outras no Entrudo. (N. do
T.)(Voltar)
OHomemdosFantoches
Estavanonavioumhomemdeaspetoidosocomumacaratãoalegreque,senão
mentia, devia serohomemmais felizdomundo.Era-o,disse ele.Ouvi-oda sua
própria boca. Era dinamarquês, meu compatriota e diretor teatral em viagem.
Trazia todoopessoal consigo e estavanuma caixa grande.Ele era ohomemdos
fantoches. O seu bom humor nato, disse ele, foi apurado por um bacharel da
politécnicaecomaexperiênciatornou-secompletamentefeliz.Nãoocompreendi
imediatamente,masentãoexplicou-metodaahistória.Ei-la.
—EraemSlagelse—disseele.—DavaumespetáculonacavalariçadoCorreio.
Tinhaumacasabrilhanteeumpúblicobrilhante,todoelesemterrecebidoaindaa
confirmaçãoreligiosa,excetoumpardevelhas.Veioentãoumapessoavestidade
preto de aspeto estudantil. Sentou-se e riu exatamente nas passagens certas,
aplaudindoperfeitamentebem.Eraumespectadorinvulgar!Tinhadesaberquem
era. Ouvi dizer que era bacharel da escola politécnica, enviado para ensinar na
província. Às oito estava terminado omeu espetáculo, pois as crianças têm de ir
cedoparaacamaedeve-sepensarnacomodidadedopúblico.Àsnovecomeçavao
bacharelassuasliçõeseexperiênciaseagoraeraeuoseuouvinte.Eraestranhode
ouvirever.Amaiorpartedascoisaspassouporcimadaminhacabeçaeentrouna
doPadre,comosediz.Mastivedepensar:sepodemosdescobrircoisasassim,então
devemospodertambémresistirmaistempo,antesdesermoslançadosparadentro
da terra.Tudooque fazia erampequenosmilagres e, contudo,no seu conjunto,
com amaior simplicidade, diretamente da natureza.No tempo deMoisés e dos
profetas, umbacharel depolitécnica podia ter sidoum sábio dopaís, e, na Idade
Média,teriasidoqueimado.Nãodormitodaanoite,equandonanoiteseguintedei
umespetáculo,obacharel estava láoutravez.Fiqueimesmocomboadisposição.
Ouvi dizer a um ator que ele nos papéis de amoroso só pensava numa única
espectadoraeesquecia todaarestantesala.Obachareldapolitécnicaeraaminha
«ela», o meu único espectador para quem representava. Quando o espetáculo
terminou, foram chamados ao palco todos os fantoches e eu fui convidado pelo
bacharel da politécnica a ir a casa dele para tomar um copo de vinho. Falou das
minhas comédias e eu falei da sua ciência e creioque tivemos igualmentegrande
prazeremparticipardeambas.Maseunãodeixeidefalar,poishaviamuitacoisa
nassuaspalavrasdequeelepróprionãosabiadarconta.Comoadeumpedaçode
ferro, quando cai através de uma espiral, fica magnético. Sim, o que é isso? O
espíritotombasobreele,masdondevem?Étalcomocomossereshumanosdeste
mundo,pensoeu.Deusdeixa-oscairatravésdaespiraldotempoeoespíritotomba
sobreeles,eaíestáumNapoleão,umLuteroouumapessoasemelhante.—Todo
o mundo é uma série de milagres — disse o bacharel —, mas estamos tão
acostumados a eles, que lhes chamamos coisas de todos os dias. — Falou e
esclareceu, era por fim como se me puxasse para cima o crânio e confesso
honestamente que, se não fosse já velho, iria imediatamente para a escola
politécnicaaprenderaveromundoafundoesemconsiderarqueeraumdosseres
humanos mais felizes. — Um dos mais felizes! — disse ele, e era como se o
saboreasse.—É feliz?— perguntou.— Sim— respondi.— Sou feliz e bem-
vindoatodasascidadesaondechegocomaminhacompanhia.Há,semdúvida,um
desejoquemeassalta comose fosseumduende,um incubocavalgandocombom
humor, isto é, ser diretor teatral de uma companhia viva, uma verdadeira
companhiadesereshumanos.—Desejaverosseusfantochesvivos,desejaquese
tornemverdadeiros atores?—perguntouele.—E se fosseodiretor, seria então
completamente feliz, o senhor crê nisso? — Ele não acreditava, mas eu cria e
continuámosafalarparaafrenteeparatráseassimficámoscomodantesnasnossas
opiniões,mascomoscoposbrindávamoseovinhoerabom.Havianele,porém,um
elixir, pois caso contrário toda a história ficaria a contar que apanhei uma
bebedeira.Enãosucedeuisso,Tinhaacabeçafresca.EracomoaluzdoSolnasala
irradiandodorostodobachareldapolitécnicaetivedepensarnosvelhosdeusesem
eternajuventude,quandoerrampelomundo.Issodisse-lhoeelesorriu,eeuteria
podidojurarqueeraumdeusdisfarçadoouumdafamília—era-o.Omeudesejo
seria satisfeito, os fantoches tornar-se-iam vivos e eu seria diretor de seres
humanos.Bebemosa isso.Elemeteutodososmeusbonecosnacaixademadeira,
atou-maàscostaseassimdeixou-mecairatravésdeumaespiraleaindahojeoiço
comocaí.Fiqueitombadonochão—ésabidoeéverdade—etodaacompanhia
saltouparaforadacaixa,Oespíritotombousobretodoseles,todososfantochesse
transformaramemartistasnotáveis,diziamelespróprios,eeueraodiretor.Estava
tudo preparado para a primeira representação. Toda a companhia queria falar
comigoeopúblicotambém.Adançarinadisseque,senãoficavasobreumaperna,
caíaacasa,eramestraeassimqueriasertratada.Abonecaquefaziadeimperatriz
queriatambémsertratada,foradecena,comoimperatriz,poissenãosaíadoensaio.
Aquelequeerautilizadoparaentraremcenacomumacarta,fez-setãoimportante
como o primeiro amante, pois os pequenos eram como os grandes, de igual
importância no conjunto artístico, disse ele.Então exigiu oherói que todo o seu
papelconstasseapenasderéplicasdesaída,porqueeramaplaudidas.Aprima-dona
sóqueriarepresentarcomluzvermelha,poisficava-lhebem—nãoqueriaestarem
azul.Eramcomomoscasnumfrascoeeuestavanomeiodofrasco.Eraodiretor.
Faltava-meoar,acabeçaandava-meàroda, senti-metão infelizcomosóumser
humanoopodeser.Eraumnovogénerohumanoemqueentrara.Queria-ostodos
juntosnovamentenacaixaenuncatersidodiretor.Disse-lhescomfranquezaque,
nofundo,nãopassavamdefantocheseentãomataram-meàpancada.Foiaminha
salvação!Estavadeitadonacama,nomeuquarto.Comofuidacasadobacharelda
politécnicapara lá, talvezele saiba, eunão.A luabrilhavano chão,ondeestava a
caixa dos bonecos virada do avesso e todos os bonecos espalhados, pequenos e
grandes, todaa companhia.Masnão fuipreguiçoso, salteida camaeparaa caixa
vieramtodos,unsdecabeçaparabaixo,outrosdepernas.Fecheiatampaesentei-
mesobreacaixa.Eradignodeumapintura!Pode imaginá-la,eupossovê-la!—
Ficamagoraaí—disseeu—enuncamaisqueroquevenhamaserdecarneeosso!
—Sentia-metãoaliviado,eraohomemmaisfeliz.Obachareldapolitécnicatinha-
mepurificado.Fiqueialisentadoagozarapurafelicidadeedeixei-medormirem
cimadacaixa.Erana realidademeio-dia,maseudormimaravilhosamente todaa
manhã— ainda estava sentado, feliz, pois tinha aprendido que o meu antigo e
únicodesejoeraestúpido.Pergunteipelobachareldapolitécnica,mastinha-seido
embora,comoosdeusesgregoseromanos.Desdeessetempotenhosidoohomem
maisfeliz.Souumdiretorfeliz,omeupessoalnãoraciocina,opúblicodiverte-se
detodoocoração.Possolivrementeeuprópriorecomporasminhaspeças.Tomode
todasascomédiasomelhor,comoquero,eninguémseirritacomisso.Peçasque
agora são desprezadas nos grandes teatros,mas para as quais o público corria há
trinta anos e com elas soluçava, tomo-as eu agora, dou-as aos pequenos e estes
soluçamcomoospaiseasmãessoluçaram.Dou-lhesJoanaMontfauconeDyveke,
mas encurtadas, pois os pequenos não gostam de longas palermices amorosas,
quereminfeliz,masrápido.JávisiteiaDinamarcaemtodosos sentidos, conheço
todas as pessoas e sou reconhecido.Fui agora àSuécia e tive êxito e ganhei bom
dinheiro. Sou assim escandinavo — como não? —, digo-lhe a si, que é meu
compatriota.
E eu, como compatriota, voltei naturalmente a contar logo a história,
simplesmentepeloprazerdecontar.
OSino
Ao entardecer, nas ruas estreitas da grande cidade, quando o Sol começava a
descer no horizonte e as nuvens brilhavam como se fossem de oiro, por entre as
chaminés, sucedia a uma ou outra pessoa ouvir, frequentemente, um som
maravilhoso,comosefosseosinodeumaigreja;massóporcurtosmomentos,pois
ascarruagensfaziamumruídoensurdecedoreeramuitoobarulhoeadesordem.
—Estáasoarosinodatardinha—diziam.—Vaipôr-seoSol!
Aqueles que saíam da cidade, onde as casas, com jardins e pequenas hortas,
estavammaisafastadasumasdasoutras,viamocéucrepuscularaindamaisbonitoe
ouviamtambémmaisdistintamenteosomdosino.Eracomoseviessedeumaigreja
bemdentrodobosquefragranteecalmo.Asgentesvolviamosolhosparalá,comar
grave.
Muitasvezes,diziamunsparaosoutros:
—Parece-mequeháumaigrejaalinobosque!Osinotemumsommaravilhoso.
Vamosatéláparaovermaisdeperto.
Osricosiamdecarruagemeospobresapé;masachavamsempreadistânciatão
grandeque,quandochegavamàorladobosque,ondehaviaunstantossalgueiros,
deixavam-seficarsentadosaolharparacima,paraaramagemdasárvores,pensando
quejáestavamnobosque.Veioumpasteleirodacidadeeabriuaíasuatenda,veio
outropasteleiroeabriuoutra,pendurandoumsinoporcima,massembadalo.As
tendaseramfeitasdelonaebetumadascomalcatrão,pararesistiràchuva.Quando
regressavama casa, aspessoasdiziamque tinha sidomuito romântico e com isto
queriamdizerqueforaalgodiferentedoqueumsimplescháemcasa.Trêspessoas
afirmaramque tinhampenetrado no bosque até ao limite extremo e que haviam
ouvido o sommaravilhoso do sino,mas sempre como se o som viesse da cidade.
Umaoutrapessoafezumlongopoemasobreosino,noqualdiziaquesoavacomoa
vozdeumamãeparaumfilhoqueridoeinteligenteequenenhumaoutramúsicase
lhepodiacomparar.
Oimperadordopaísficoutambémintrigadocomoacontecimentoeprometeu
àquelequefossecapazdedescobrirdondevinhaosomquelheoutorgariaotítulo
desineirouniversal,mesmonocasodenãosetratardeumsino.
Assimpartirammuitaspessoasparaobosque,embuscadosustentoprometido
peloimperador,poisasituaçãoqueselhesofereciaeraextremamenteboa.Apenas
umavoltoucomumaespéciedeexplicação.Ninguémseaventurouapenetrartão
profundamente no bosque, nem tão-pouco ele, mas afirmou que o som do sino
provinhadeummochomuitograndequeseencontravadentrodeumaárvoreoca.
Era um mocho sábio, que estava continuamente a bater com a cabeça contra a
árvore.Seosomvinhadacabeçadomochooudotroncooco,nãopodiaafirmá-lo
comsegurança.Foinomeadosineirouniversaleescreviatodososanosumpequeno
tratadosobreosmochos,quepoucoounadaadiantava.
Ora,sucedeuistoquevamoscontar,precisamentenodiasolenedaconfirmação
cristã.Osacerdotehaviapreparadouma lindaprédica, tendo faladosentidamente
ao coração. Os meninos e as meninas que haviam recebido o sacramento da
confirmaçãoficarammuitoimpressionados,poiseraumdiamuitoimportantepara
eles.Transformavam-se,deummomentoparaooutro,empessoascrescidas.Era
comoseaalmainfantilvoasseepassasseaseradepessoasadultas,dotadasderazão.
EraumbelodiadeSol.Osmeninoseasmeninasconfirmadossaíramdacidadee
forampassearnobosque,ondeouviram,deummodomaravilhosamentedistinto,o
somdogrande sinodesconhecido.Sentiram logovontadede ir atéao sítiodonde
partia o som e foram todos, com exceção de três.Destes três, umamenina quis
voltarparacasaparaprovarovestidodebaile,poisforapelovestidoepelobaileque
se havia confirmado. Outro era um rapaz pobre a quem o seu senhor havia
emprestado o fato e os sapatos para a confirmação e tinha de devolvê-los à hora
certa.Oterceirodeclarouquenuncaiaaqualquerlugardesconhecidosemospaiso
acompanharem, que sempre tinha sido um rapaz bem-comportado e queria
continuarasê-lo,mesmodepoisdeconfirmado,equeporissonãodeviamosoutros
rir-sedele,oquenaturalmentefizeram.
Semestestrês,puseram-seacaminho.OSolbrilhava,ospássaroscantavameas
meninaseosmeninosimitavam-noscantandotambém,caminhandodemãosdadas,
pois aindanão tinham conseguido emprego,mas, como confirmados, eram todos
iguaisperanteNossoSenhor.
Embreve,doisdosmaispequenossentiram-secansadosedecidiramregressarà
cidade.Duas raparigas deixaram-se ficar no caminho a fazer grinaldas de flores.
Então, quando os outros chegaram ao ponto onde havia muitos salgueiros e os
pasteleirosseinstalaram,disseramunsparaosoutros:
—Reparemquejáestamoslonge.Nãoexiste,narealidade,qualquersino,étudo
imaginação!
Nessemomentosoouosino,bemnaprofundezadobosque,etãosuaveesereno
quequatrooucincodecidiramavançar.Ocaminhoeratãocerradoefrondosoque
se tornava verdadeiramente difícil avançar. As aspérulas e as anémonas cresciam
muitoaltas,ascorriolasfloridaseasamoreirassilvestressuspendiam-seemlongas
grinaldas de árvore para árvore, onde os rouxinóis cantavam e os raios de Sol
brincavam.Era uma bênção,mas,mesmo assim, não era caminho parameninas,
queficariamcomosvestidosemfarrapos.Haviatambémgrandesblocosderocha
totalmente cobertos de musgo de variegadas cores, e a água fresca corrente
borbulhavasaltitante,soandoestranhamentecomoseuglu-glu.
— Não será isto o sino? — perguntou um dos rapazes confirmados, que se
deitounochãoparaouvirmelhor.—Merece serbemestudado—declaroueali
ficounochão,enquantoosoutroscontinuaramocaminho.
Chegaram, então, a um local onde havia uma cabana construída com grandes
ramosecascasdeárvores.Sobreelapendiaumagrandemacieirasilvestrecomose
estivesse disposta a deixar tombar a sua bênção de frutos sobre o telhado florido
com rosas. Os grandes ramos apoiavam-se um pouco sobre a viga mestra, onde
estava suspenso um pequeno sino. Seria aquele o sino que se ouvia? Era, pois.
Todosestavamdeacordo,excetoumquedeclarouserosinodemasiadopequenoe
delicadoparapoderserouvidotãolonge,alémdequenãopodiaseraqueleosom
que tãoprofundamentepenetravanocoraçãodoshomens.Quemassim falouera
umfilhodereie,então,disseramosoutros:
—Estesqueremsempresermaisespertosdoquenós.
Deixaram-no partir sozinho, mas, à medida que ia avançando, a solidão
penetravacadavezmaisnoseucoração.Ouvia,contudo,aindaopequenosino,que
haviacontentadoosoutros,e,detemposa tempos,quandooventovinhado lado
dasinstalaçõesdopasteleiro,chegavam-lhetambémcançõesaoouvido.Masosom
profundo do outro sino fazia-se ouvir cada vez com mais força. Era como se
tocassemumórgão.Osomvinhadoladoesquerdo,doladodocoração.
Desúbito,ouviuumruídoesurgiunasuafrenteumrapazinhocomtamancosde
pau e uma jaqueta tão curta que as mangas lhe ficavam a meio do braço.
Reconheceram-se logo, pois o rapaz era o menino confirmado que não tinha
podidoacompanharosoutrosporterderegressaracasaparadevolverajaquetaeos
sapatos do filho do seu senhor. Fora isto realmente que fizera e depois, com
tamancoseummíserofato,vierasozinhoparaobosque,atraídopelosomfortee
profundodosino.
—Podemos ir juntos—disseo filhode rei.Masopobreconfirmado, comos
seus tamancos, sentiu-se tão envergonhado que puxou pelas curtas mangas da
jaqueta.Respondeu-lheque receavanãopoder acompanhar os seus passos e que,
alémdisso, o sinodevia ficar à direitaporque era este o ladode tudoquanto era
grandiosoemagnífico.
—Bem,entãojánãovoltamosaencontrar-nos—retorquiuopríncipe,fazendo
umacenodedespedidaaomoçopobre,queentrounapartemaisescuraeespessado
bosque,ondeosespinhoscomeçaramarasgar-lheofato,orosto,asmãoseospés,
que sangravam abundantemente. O príncipe também recebeu alguns bons
arranhões,mashaviasempreSolnoseucaminho.Éelequevamosseguir,poisera
ummoçodetratoagradável.—«Tenhodeencontrarosino,dêláporondeder»,
disseparaconsigopróprio.«Ireiatéaofimdomundo,seforpreciso.»
Osfeiosmacacosqueestavamsentadosemcimadasárvoresarreganharam-lheos
dentes.
—Vamosmalharnele—disseram.—Vamosmalharnele.Éfilhoderei!
Masele,infatigável,penetravacadavezmaisprofundamentenobosque,deonde
surgiam floresmaravilhosas: lírios brancos estrelados com filamentos sanguíneos,
túlipas azul-celestes que cintilavam ao vento e macieiras cujos frutos pareciam
grandes bolas luminosas de sabão. Imaginem, pois, como seriam as árvores e as
flores à luz do Sol! À volta dos belos prados verdes, onde o veado e a corça
brincavamnarelva,cresciambeloscarvalhosefaias,esealgumadasárvoreshavia
perdido a casca, medravam nas suas gretas ervas e rebentos. Também havia no
bosque lagos tranquilos, onde os cisnes brancos flutuavam, batendo as asas. O
príncipe,devezemquando,paravaparaescutar,crendo,muitasvezes,queerade
umdesseslagosprofundosqueosomdosinovinhaatéele;logoverificavaquenão,
massimdofundodobosque.
EntãosobreveioopôrdoSol,océuruboresceucomoseardesseetudopareceu
calmonobosque,tãocalmoqueelesedeixoucairdejoelhos,cantandoosalmoda
noiteedizendo:
—Jamaisencontrareioqueprocuro!OSolvaipôr-seagora,vemaíanoite,a
noitetenebrosa.Talvezpossaver,porém,umavezmais,abolarubradoSolantes
quedesapareçacompletamentepordetrásdaterra.Vousubiràquelesrochedos,que
sãotãoaltoscomoasmaisaltasárvores.
Agarrando-se aos ramos e às raízes, trepou sobre as pedras húmidas, onde se
enroscavamascobras-d’águaecoaxavamossapos.ChegouláacimaantesdeoSol
seterpostocompletamente.Quemagnificência!Omar,omajestosomar,lançando
as grandes ondas contra a costa, estendia-se na sua frente e o Sol era como um
grandealtar luminoso,ondeaáguaeocéuseuniam.Tudosemesclavaemcores
radiantes,obosquecantava,cantavaomar,eocoracãodopríncipeacompanhava-
os.Toda a naturezaparecia umgrandioso templo emque as árvores e as nuvens
flutuanteseramascolunas, as florese aerva,osparamentosdeveludo,opróprio
céu,acúpula.Porfim,quandooSoldesapareceu,sumiu-setambémacorrósea,e
milhõesdeestrelasacenderam-se.Brilhavammilhõesdelâmpadasdediamante.O
príncipeabriuosbraçosparaocéu,paraomareparaobosque.Entãoapareceu,à
suadireita,opobreconfirmado,dasmangascurtasedostamancosdepau.Também
alihaviachegadopeloseucaminho.Correramumparaooutroederamasmãos,no
grandetemplodaNaturezaedaBeleza.
Sobreelessoouosagradosinoinvisível,enquantoosespíritosbem-aventurados
pairavamàsuavolta,cantandojubilosaaleluia.
OLivroMudo
Juntoàestrada,nomeiodobosque,haviaumaquintasolitária.Entrava-sepelo
portão,atéaoterreirobanhadopeloSolecomtodasasjanelasabertas.Haviavidae
movimentoládentro,masnopátio,numaramadadelilasesflorescentes,estavaum
caixão aberto.Omorto fora colocado aliporquenaquelamanhã ia ser enterrado.
Ninguém o olhava com lamentações, ninguém o chorava. O seu rosto estava
coberto comumpanobrancoe soba sua cabeça fora colocadoum livrograndee
espesso,cujasfolhas,soltas,eramdepapelcinzentoeentrecadaumadelasestavam,
guardadas e esquecidas, flores fanadas, todo um herbário colhido em lugares
diferentes. Devia ir para a sepultura também, porque o tinha pedido o próprio
falecido.Acadaflorestavaligadoumcapítulodasuavida.
—Queméomorto?—perguntámosnós,earespostafoi:ovelhoestudantede
Uppsala! Tinha sido diligente. Tinha conhecido a linguagem dos sábios, tinha
sabidocantar,sim,etambémescrevercanções,disse-se,masalgoselheatravessou
nocaminho.Lançou-seasimesmoeaosseuspensamentosàaguardente,equando
a saúde disso se ressentiu, veio para aqui, para o campo, onde lhe pagaram as
despesas.Eradevotocomoumacriança,mas,quandooespíritonegroodominava,
corriacomoumanimalacossadopelafloresta.Seconseguíamoslevá-loparacasae
pô-loaverolivrocomasplantassecas,ficavasentado,todoodia,aolharparauma
planta e para outra.Muitas vezes corriam-lhe lágrimas pelas faces abaixo. Sabe
Deusoquepensava!Maselepediuo livroparaoacompanharnocaixãoeeleali
estava.Dentrodepoucotempoatampaseriapregadaereceberia,finalmente,asua
docepaznasepultura.
Levantaramamortalha.NorostodomortohaviapazeumraiodeSoltombou
sobre ele. Uma andorinha disparou, no seu voo veloz de flecha, para dentro da
ramadaedeuumavolta,chilreando,sobreacabeçadomorto.
Como émaravilhoso— conhecemo-lo certamente todos—, quando pegamos
emvelhas cartas donosso tempode juventude e as lemos, emerge todauma vida
comtodasassuasesperançasetodasassuasmágoas.Quantosdosserescomquem
vivemos tão intimamente estão agora como mortos para nós e, contudo, vivem
ainda, mas não pensámos por longo tempo neles, naqueles a quem outrora
supusemosestarsempreligados,participandoreciprocamentededoresealegrias.
Afolhafanadadocarvalho,no livro,recordaaquiamigos,amigosdotempoda
escola,amigosparatodaavida.Nobosqueverde,eleprendeuestafolhanobarrete
deestudante,quandoopactoficoufirmadoparatodaavida.—Ondeviveagora?
Folha guardada, amizade olvidada! Aqui está uma estranha planta de estufa,
demasiado fina para os bosques doNorte— é como se houvesse ainda alguma
humidadenesta folha!Foiadonzelaque lhadeu, aquelaestranhaplanta, colhida
em jardim da nobreza. Aqui está o nenúfar, ele próprio o colheu e regou com
lágrimassalgadas,nenúfardeáguadoce.Eaquiestáumaortiga.Quedizemassuas
folhas?Quepensouaocolhê-la,aoguardá-la?Aquiestáumlírio-do-valedasolidão
dobosque,aquiestáumamadressilvadopotedeplantasdasaladoalbergueeaquia
folhaderelva,cortanteenua!
Os lilases florescentes inclinam cachos frescos e perfumados sobre a cabeça do
morto—a andorinhapassa a voaroutra vez: «Quevivi!Quevivi!»Agora vêmos
homenscompregosecommartelo,colocamatampasobreomorto,onderepousaa
cabeçasobreolivromudo.
Guardado—esquecido!
ASombra
Nos países quentes, bem pode dizer-se que o Sol queima! As pessoas ficam
completamentemorenas,dacordomogno.Nospaísesmaisquentes,queimam-se
mesmoatésetornaremnegras.Foi,porém,paraospaísesapenasquentesqueum
letradoveiodos frios. Julgou, então,quepodia andar comona sua terra;mas em
brevesedeixoudisso.Ele,comotodasaspessoassensatas,tinhadeficaremcasa.As
portas das janelas e as portadas para a rua permaneciam cerradas o dia inteiro,
parecendo toda a casa adormecidaouquenãoestavaninguém.Apequena ruade
casasaltas,ondemorava,estava,alémdisso,situadademodoqueoSolbatiaaíde
manhãànoite.
Eraverdadeiramente insuportável!Ao letradodospaíses frios,queera joveme
umhomeminteligente,parecia-lhequeseencontravanumafornalhaardente.Isto
afetou-o, emagreceu muito, a sua própria sombra estreitou-se, tornou-se mais
pequena do que era na terra dele. O Sol também a afetou. Só viviam ambos de
noite,quandooSolsepunha.Eraverdadeiramenteumprazerverasombra.Logo
queocandeeiroeratrazidoparaoquarto,estendia-secompletamenteatéàparede,
atémesmoaoteto,tãocompridasefazia.Tinhadeestender-separaganharforças.
O letrado ia para a varanda tambémpara se estender, e àmedida que as estrelas
surgiam no céumaravilhosamente claro, ele sentia-se voltar à vida. Em todas as
varandas da rua—enos países quentes todas as janelas têmvaranda—aparecia
gente,poisprecisa-sedoar,mesmoseseestáacostumadoaserde«mogno»!Todaa
gente se animava. Sapateiros e alfaiates, iam todos para a rua, traziam mesas e
cadeiras,acendiam-seluzes—bemmaisdeummilhardelas—,umfalava,outro
cantava e a gente andava a passear. Rodavam carruagens, passavam burros,
tlintintim—traziamguizos—,osmortosiamaenterrarcomcantosdesalmos,os
rapazesdarualançavampetardos,ossinosdasigrejasrepicavam,haviaumagrande
animaçãoláembaixo,nasruas.
Só numa casa, que ficava precisamente em frente daquela em que morava o
letradoestrangeiro,reinavacompletosilêncio.Vivia,contudo,láalguém,poishavia
na varanda floresquedesabrochavamadmiravelmente ao calordoSol, oquenão
podiaacontecersenãofossemregadas,e,portanto,alguémhaviaqueasdeviaregar.
Vivialáalguém,comcerteza.Aportadajanelaentreabria-setambémànoite,mas
por dentro permanecia escuro, pelo menos na divisão em frente, da qual vinha
música. Ao letrado estrangeiro parecia-lhe que a música era incomparável, mas
podia muito bem ser que a imaginasse assim, pois achava todas as coisas
incomparáveisnospaísesquentes,sóquenãodeviahavertantoSol.Odonodacasa
emquemoravadisse-lhequenãosabiaquemalugaraacasaemfrente,nuncasevia
lá gente e quanto à música, parecia-lhe terrivelmente aborrecida. Era como se
alguém se exercitasse na mesma peça, não pudesse ver-se livre dela, sempre a
mesma…Bempodia dizer: «hei de consegui-lo!»,mas nunca viria a consegui-lo,
pormaisquetocasse.
Certanoiteoestrangeirodespertou.Dormiacomajaneladavarandaabertaea
cortina esvoaçava ao vento. Pareceu-lhe, então, que vinha um esplendor
maravilhosodavarandadacasaemfrente.Todasasfloresluziamcomochamasnas
coresmaislindas.Entreasfloresestavaumajovemesbeltaegraciosaeeracomose
elatambémbrilhasse.Esteesplendorferiu-lheosolhos.Abriu-ostãoterrivelmente
que logosaiudosono.Numsaltoestavanochão,ecomtodaacautela foipôr-se
pordetrás da cortina,mas a jovem sumira-se.Sumira-se tambémo esplendor, as
floresnãoluziamdemodoalgumeláestavamcomosempre.Aportaparaavaranda
mostrava-seentreabertaedofundovinhaosomdamúsicatãosuaveemaravilhosa
quepodialiteralmentedizer-sequeseeraarrebatadoporelaequesetombavaem
docespensamentos.Pareciaum feitiço,masquemviveria ali?Ondeera a entrada
para lá? Todo o rés-do -chão era loja com loja e por aí as pessoas não podiam
passar.
Umanoiteestavaoestrangeirosentadoàvaranda.Dentro,noquarto,pordetrás
dele,aluzestavaacesaeassimeraperfeitamentenaturalqueasuasombraincidisse
naparededacasaemfrente.Defacto,estasobrepunha-seentreasfloresdavaranda
e,quandooestrangeirosemexia,mexia-seelatambém,poisassimcostumafazer…
—Creiobemqueaminhasombraéaúnicacoisavivaqueali sevê—disseo
letrado.—Vê comopousas esplêndida entre as flores!A porta estámeio aberta,
bempodiasserengenhosaeentrar,davasumaolhadelaàtuavoltaevoltavaspara
mecontaroqueviste!Fariasassimalgoútil!—disseeleabrincar.—Fazesofavor
deentrar?Vá!Entrasounão?—Eacenouàsombra,queporsuavezlheacenou.
—Anda,masnão fiques lá!—Oestrangeiro levantou-se, então, e a sua sombra
sobreavarandadoprédioemfrentelevantou-setambém,eoestrangeirovoltou-se
easombraimitou-se.Esealguémtivesseestadorealmenteaobservá-los,podiater
visto distintamente que a sombra entrou pela porta da varanda meio aberta
exatamente quando o estrangeiro entrou no quarto, deixando tombar a grande
cortinaatrásdesi.
Namanhãseguintesaiuoletradoparatomarcaféelerosjornais.
—Queéisto?—exclamouele,quandoveioparaoSol.—Nãotenhonenhuma
sombra!Entãosempreláentrouontemànoiteenãovoltou!Éumacoisabastante
aborrecida!
Eficouzangado,nãotantoporasombraestarfora,masporquesabiaquehavia
umahistóriadeumhomemsemsombraquetodaagenteconhecianospaísesfrios.
Voltasse o letrado à terra agora e contasse a sua história, diriam que a havia
plagiado,enãotinhanecessidadedisso.Nãoqueria,pois,demodoalgum,falardo
caso,eassimpensoubemsensatamente.
Ànoitevoltouàvaranda.Colocaraaluz,muitoacertadamente,pordetrásdele,
poissabiaqueasombrasemprequerterodonocomoanteparo,masnãoconseguiu
atraí-la. Fez-se pequeno, fez-se grande, mas não apareceu sombra nenhuma,
nenhumavoltou.Disseentão«hum!,hum!»,masissonadaoajudou.
Era aborrecido, mas nos países quentes bem crescem as coisas depressa e
decorridos oito dias observou, com grande satisfação sua, que lhe crescia uma
sombranovaapartirdaspernas,quandoveioparaoSol.Deviaterficadoláaraiz.
Passadastrêssemanastinhaumasombrabastantesatisfatória,que,noseuregresso
aos países nórdicos, foi crescendo mais e mais até que ficou tão comprida e tão
grandequemetadedelateriasidojásuficiente.
O letradovoltou àpátria e escreveu livros sobreoque era verdadenomundo,
sobreoqueerabomesobreoqueerabelo.Passaram-sediasepassaram-seanos,
muitosanossepassaram.
Estava, então, uma noite sentado no seu quarto e eis que batem à porta de
mansinho.
—Entre!—disseele,masninguémentrou.
Foi abrir e diante dele apareceu um homem extraordinariamente magro, que
muito o fez admirar. De resto, estava vestido de forma extremamente elegante,
deviaserumapessoadistinta.
—Aquemtenhoahonradefalar?—perguntouoletrado.
—Bempenseieu—disseohomemelegante—quenãomeconheceria!Tomei
muitocorpo,ganheirealmentecarneevestuário.Comcertezanuncapensouver-
meassimtãopróspero.Nãoreconheceasuaantigasombra?Certamentenãojulgou
quenãovoltassemais.Amimascoisascorreram-meespecialmentebem,depoisda
última vez que estive consigo. Prospereimuito em todos os aspetos! Se tiver de
pagaralgumserviço,bempossofazê-lo!—Fezressoartodoumfeixedecustosos
berloquesquesesuspendiamcomorelógioelevouamãoàpesadacorrentedeouro
que trazia ao pescoço. Oh! Como todos os dedos brilhavam com anéis de
diamantes!Etudoaquiloerareal.
—Não!Nãoconsigovoltaramim!—disseo letrado.—Quevemasertudo
isto?
—Sim,bastantenormalnãoé—disseaSombra—,mastambémosenhornão
pertenceaonúmerodosseresnormais,eeu,bemosabe,seguidesdecriançaassuas
pisadas.Logo que achei que estavamadura para ir sozinha pelomundo, segui o
meucaminho.Estounumasituaçãobrilhantíssima,masapoderou-sedemimuma
espéciedeanseiodevê-loumavezmaisantesdemorrer,jáquealgumavezháde
morrer! Gostava também de ver de novo esta terra, pois sempre se fica preso à
pátria!Euseiqueconseguiuarranjaroutrasombra.Tenhoalgumacoisaapagara
elaouaosenhor?Queirasófazerofavordedizer.
—Não?És realmente tu?— exclamou o letrado.—É, contudo,muitíssimo
estranho!Nuncajulgueiqueasombradealguémpudessevoltarcomoserhumano!
—Diga-meoque tenhoapagar!—disseaSombra.—Poisnãogostode ter
dívidasdeespéciealguma!
— Como podes falar assim? — retorquiu o letrado. — Quem fala aqui de
dívidas? Considera-te perfeitamente quite! Muito me alegro com a tua sorte.
Senta-te,velhoamigo,econta-meumpoucocomosepassoutudoeoquevistena
casaemfrentelánopaísquente.
— Sim, vou contar-lho — disse a Sombra, sentando-se —, mas tem de
prometer-me que nunca dirá a ninguém aqui na cidade, onde casualmente me
encontrar,quefuiasuasombra!Pretendocasar-me,poispossosustentarbemmais
deumafamília!
— Fica absolutamente tranquilo — tornou-lhe o letrado. — Não direi a
ninguémquemés.Aquitensaminhamão!Prometo-oeépalavradehomem!
—Palavradesombra!—retorquiuaSombra,poisassimtinhadeseexpressar.
Erarealmentemuitoestranhocomosetornaratãohumana.Estavatodavestida
depreto, comumadasmais finas fazendas, combotasenvernizadaseumchapéu
que podia ser comprimido de modo a ficar só copa e aba, sem falar, como já
sabemos,quetraziaberloques,correntedeouroeanéisdediamantes.Naverdade,a
Sombra apresentava-se extraordinariamente bem vestida e era precisamente isso
queafaziaparecertãohumana.
—Pois vou contar-lhe!— disse a Sombra, colocando as pernas com as botas
envernizadastãofirmementequantopodiasobreas«mangas»danovasombrado
letrado, a qual ficou como um cãozinho caniche aos seus pés e não foi por
arrogânciamastalvezparaobrigá-laaaderir.Asombrajacenteficoucaladaequieta
para tudo ouvir convenientemente, pois queria saber como se poderia soltar e
tornar-sesenhoradesiprópria.
— Sabe quemmorava na casa em frente?— perguntou a Sombra.—Era a
beleza suprema, era aPoesia!Estive lá três semanas eo seuefeito foi tãogrande
como se tivesse vivido aí trêsmil anos e tivesse lido tudo o que foi imaginado e
escrito.Poisdigo-lhe,eéverdade,vitudoeseitudo!
—Poesia!—exclamouoletrado.—Ah!Sim,sim…émuitasvezeseremitanas
grandescidades!Poesia!Éverdade,vi-aumcurtoinstante,masosonopesou-me
nos olhos!Estava na varanda e brilhava como brilha a aurora boreal.Mas conta,
conta!Estivestenavaranda,entrastepelaportaeviste…!
— Pois estive na antecâmara!— disse a Sombra.—O senhor estava sempre
sentadoaolharparaaantecâmara.Aímalhavialuz,eraumaespéciedecrepúsculo,
mas todas as portas estavam abertas umas diante das outras numa longa fila de
aposentosesalas.Salasondehavia luzetantaqueteriaalicaídomorto,setivesse
entradologoparaondeestavaajovem.Masfuiprudente,dei-metempo,eéassim
quesedevefazer.
Equevisteentão?—perguntouoletrado.
—Vitudoevoucontar-lhe,mas…masnãoépororgulhodaminhaparte,mas…
comohomemlivreecomosconhecimentosquetenho,paranãofalardaminhaboa
posição,daminhaexcelentesituação…muitodesejariaquemetratasseporsenhor!
—Desculpe!—disseo letrado.—Éumvelho costumeque está arreigado!…
Temabsolutamenterazão!Nãooesquecerei!Masagoraconte-metudooqueviu!
—Tudo!—disseaSombra.—Poistudovieseitudo.
—Como era nas salas interiores?— perguntou o letrado.—Era como num
bosqueviçoso?Era comonuma igreja sagrada?Eramas salas comoumcéu claro
comestrelas,quandoocontemplamapartirdasaltasmontanhas?
—Tudoláestava!—disseaSombra.—Nãoentreicompletamente,fiqueino
quarto em frente,napenumbra,mas estava aíperfeitamentebem, vi tudoe tudo
sei!EstivenacortedaPoesia,naantecâmara.
—Masoqueviu?AtravessavamasgrandessalastodososdeusesdaAntiguidade?
Osheróisantigoslutavamaí?Brincavamdocescrianças,contandoosseussonhos?
—Digo-lhequeestiveaíe,comodevecompreender,vi tudooquehaviapara
ver! Se o senhor lá tivesse estado, não se teria convertido em homem, mas eu
converti-me! E além disso aprendi a conhecer a minha natureza íntima, o meu
«congénito», a familiaridade que tinha com aPoesia.Na verdade, quando estava
consigo, nãopensavanisso,mas sempre, como sabe, que oSol se levantava ou se
punha, eu tornava-me estranhamente grande. Com o luar quase conseguia
distinguir-memais do que o senhor.Não compreendia então aminha natureza,
masna antecâmara tudo se tornouclaroparamim!Tornei-mehomem!…Saídaí
amadurecida, mas o senhor já não estava nos países quentes. Envergonhei-me,
comohomem,deandarcomoandava,queriaatodoocustobotas,fatos,todoaquele
vernizhumanoquetornaumhomemreconhecível…Tomeiocaminho,digo-lhe…o
senhornãovaipôrissoemnenhumlivro…,tomeiocaminhodasaiadapasteleira,
sobaqualmeescondi.Amulhermalpodiapensarquantoocultava.Sósaíaànoite.
Percorri a rua ao luar, encostando-me às paredes, o que faz umas cócegas tão
agradáveisnascostas!Andeiparacimaeparabaixo,espieiparadentrodas janelas
mais altas, para dentro de salas e nos telhados espreitei por onde ninguémpodia
espreitarevioquenenhumaoutrapessoavia,oqueninguémpodiaver!Nofundo,
éummundobastantegrosseiro!Nãoquereria tornar-mehomem, se algumavez
não se tivesse suposto que isso é ser algo! Vi as coisas mais inconcebíveis nas
mulheres,noshomens,nospaisenasdoceseincomparáveiscrianças.Vi—dissea
Sombra—oquenenhum ser deve saber, omal dopróximo.Se tivesse feito um
jornal,quelidoseria!Masescrevidiretamenteàsprópriaspessoaseespalhava-seo
terroremtodasascidadesaquechegava.Tinhamtantomedodemimeamavam-
me tão extraordinariamente! Os professores fizeram-me professor, os alfaiates
ofereceram-menovosfatos—estoubemfornecidodeles!—,osmestresmoedeiros
fizerammoedas paramim e asmulheres diziamque era belo!Foi assimqueme
torneinohomemquesou.Eagoradespeço-me.Eisomeucartão,morodoladodo
Soleestousempreemcasaemtempodechuva.—EditoistoaSombrapartiu.
—Foi,narealidade,notável!—exclamouoletrado.
PassaramanosediaseaSombravoltou.
—Comoestá?—perguntou.
—Oh!—respondeuoletrado.—Escrevosobreaverdade,abondadeeabeleza,
mas ninguém se preocupa em saber de tais coisas. Estou desesperado porque as
tomomuitoasério.
—Issonãofaçoeu!—disseaSombra.—Estouaengordareéissoquesedeve
tentar fazer! Na realidade, o senhor não sabe viver neste mundo. Está por isso
doente.Temdeviajar!Vouviajaresteverão,quervircomigo?
Gostariamuitodeterumcompanheirodeviagem!Queracompanhar-me,como
sombra?Seriaumgrandeprazerparamimtê-locomigo.Pagoaviagem!
—Vaibemlonge!—disseoletrado.
—Éconformesetomamascoisas!—retorquiuaSombra.—Osenhortirará
grandebenefíciodaviagem!Sequiserseraminhasombra,tudoterágratuito!
—Éloucura!—disseoletrado.
—Masomundoéassim!—respondeuaSombra.—Eserásempreassim!—
Logoemseguidapartiu.
Oletradonãoandavanadabem.Perseguiam-nopreocupaçõesecuidadoseoque
elediziadaverdade,dabondadeedabelezaeraparaamaiorpartedaspessoascomo
deitarrosasaumavacaoupérolasaporcos.Ficouporfimbastantedoente.
— Parece realmente uma sombra! — diziam-lhe as pessoas, e o letrado
estremeciaaopensarnisso.
—Deveirabanhos!—proferiuaSombra,queveiovisitá-lo.—Nãoháoutra
coisaafazer!Irácomigo,porsermosvelhosconhecidos.Pagoaviagemeosenhor
faz as descrições e entretém-me um pouco no caminho.Quero ir a uma estação
termal,abarbanãomeestáacrescerbem.É,portanto,qualquerdoença,ebarba
tem um homem de ter! Seja pois razoável e aceite o convite. Vamos viajar, com
certeza,comobonscamaradas.
Partiram pois em viagem. A Sombra era o senhor e o senhor era a Sombra.
Andaram de carruagem, a cavalo e a pé, juntos, lado a lado, à frente ou atrás,
conforme estava o Sol. A Sombra sabia sempre pôr-se no lugar de senhor e o
letradonãosepreocupavacomisso.
Tinhamuitobomcoraçãoeeraparticularmenteplácidoegentil.Umdiadisseà
Sombra:
—Agoraquesomosbonscamaradasdeviagem,comorealmentesomos,e,além
disso,considerandoquecrescemosjuntosdesdeainfância,nãodevíamosfazeruma
saúdeecomeçarmosatratar-nosportu?Émaisíntimo!
—Dizbem—respondeuaSombra,queeraagoraoverdadeiro senhor.—É
muitosinceroehonestooquedizevousertambémhonestaesincera.Osenhor,
queéumletrado,sabemuitobemcomoanaturezaéestranha.Hápessoasquenão
podem suportar tocar em papel pardo que logo se sentemmal, outras há que se
arrepiamtodasquandoseesfregaumpregonumavidraça.Eusintoumasensação
idênticaquandoooiçotratar-meportu,sinto-mepremidacontraochão,comona
minhaprimeiraposturaconsigo.Comovê,éumasensação,nãoumorgulho.Não
possopermitir-lhetratar-meportu,mastratá-lo-eicomgostoportu.Ficaassim
meiosatisfeitooseudesejo!
AssimcomeçouaSombraatratarportuoseuantigosenhor.
«Ébemdedoidos»,pensoueste,«queeudevatratá-laporsenhoreelatratar-me
portu!»,masnãohaviaoutroremédio.
Chegaramentretantoaumaestância termal,ondehaviamuitosestrangeiros, e
entreelesabelafilhadeumreiquetinhaadoençadeverdemasiadobem,oqueera
muitodesagradável.
Elanotouimediatamentequequemacabavadechegareraumapessoadiferente
detodasasoutras.«Veioparafazercrescerabarba,dizele,masvejomuitobema
verdadeirarazão,nãoconsegueproduzirsombra.»
Ficouassimcheiadecuriosidadee logonasvoltasdopasseiopúblicoprocurou
conversa com aquele senhor estrangeiro.Como filha de um rei, não precisou de
fazermuitascerimóniasparalhedizer:
—Asuadoençaénãoproduzirsombra.
—VossaAltezaRealdevesentirconsideráveismelhoras!—retorquiuaSombra.
—Seiqueovossomaléverdemasiadobem,mas jápassou,estaiscurada.Tenho
realmenteumasombrapoucovulgar.Nãovêapessoaqueandasemprecomigo?As
outraspessoastêmumasombravulgar,maseunãogostodavulgaridade.Podedar-
seaoslacaiostecidosmaisfinosparaaslibrésdoqueaquelesqueseusa,efoiassim
quepermitiàminhasombraarranjar-separaseapresentarcomohomem.Comovê,
dei-lhemesmouma sombra.Éumprazermuito caro,masgostodepossuiruma
coisasóparamimpróprio.
«O quê!», pensou a princesa. «Estarei realmente curada? Estes banhos são os
melhoresqueexistem!Aáguatemnonossotempoumefeitoenorme.Masnãome
vou embora, pois agora é que começa a ser divertido aqui. Gosto
extraordinariamentedesteestrangeiro.Oxaláqueabarbanãolhecresça,senãovai-
seembora!»
Nessanoite,nagrandesaladebaile,afilhadoreieaSombradançaram.Elaera
leve,masaSombraaindamais.Nuncativeraumparceiroassim.Disse-lhedeque
país vinha, e a Sombra conhecia-o. Fora lá, mas nessa altura ela estava ausente.
Deraumaolhadeladas janelaspara cimaeparabaixo, tinha visto isto e aquilo, e
soubeassimresponderàsperguntasdafilhadoreiedarindicaçõesdetalmodoque
elaficoumaravilhada.Deviaserohomemmaissábiodetodoomundo!Tomou-se,
pois, de grande respeito pelo que ele sabia e, quando voltaram a dançar, estava
enamorada e a Sombra bem o notou, pois quase a trespassava com o olhar.
Dançaramaindamaisumavezeelaestevequaseadeclarar-se-lhe,mas,comoera
discreta, pensou no seu país e no reino e nasmuitas pessoas sobre quem viria a
reinar.«Homeminstruídoéele»,disseparasiprópria,«oqueébom.Dançabem,o
que também é bom. Mas terá conhecimentos sólidos? É coisa igualmente
importante!Temde ser examinado.»Começou assimpouco a pouco a fazer-lhe
perguntasmaisdifíceis,aqueelapróprianãosabiaresponder.EaSombrafezuma
grandecaradeestranheza.
—Nãosabeentãoresponder!—disseafilhadorei.
— São coisas que aprendi em criança — respondeu a Sombra. — Creio,
contudo,queaminhasombra,quealiestáaopédaporta,saberáresponder-lhe.
—Asuasombra!—exclamouafilhadorei.—Seriamuitocurioso!
—Poisé,nãodigodecididamentequesabe—disseaSombra—,mascreiobem
que sim. Seguiu-me e escutou-me tantos anos… sim, creio-o bem! Mas Vossa
AltezaRealpermita-mequelhechameaatençãoparaofactodequeelatemtanto
orgulhoempassarporumapessoa,que,seestiverdebomhumor…edeveestarpara
responderbem…temdesertratadacomotal.
—Possobemtolerarisso—respondeuafilhadorei.
Assimsedirigiuaoletrado,queestavaaopédaporta,efaloucomelesobreoSol,
aLuaesobreaspessoas,tantoporforacomopordentro,eelerespondeu-lhebeme
inteligentemente.
«Que homem este, que tem uma sombra tão instruída!», pensou. «Seria uma
verdadeira bênção para o meu povo e para o reino se o escolhesse para meu
consorte.Voumesmoescolhê-lo!»
E logo acordaram casar-se, tanto a filha do rei como a Sombra. Ninguém,
porém,deviasabê-loantesdeelavoltaraoreino.
—Ninguém,nemmesmoaminhasombra!—disseaSombra,elátinhaassuas
razões.
Foramdepoisparaopaísondeafilhadoreireinava,quandoláestava.
—Ouve,meubomamigo!—disseaSombraaoletrado.—Souagoratãofelize
poderosa como ninguém e quero fazer algo especial por ti! Habitarás sempre
comigo no palácio, andarás comigo naminha carruagem real e terás centenas de
milhares de táleres por ano, mas tens de deixar-te chamar sombra por toda e
qualquerpessoa.Nãopodesdizerquefostealgumavezumapessoa,eumavezpor
ano,quandomesentarnavarandaaoSolparaquemevejam,deverásdeitar-teaos
meuspés,comofazumasombra.Possodizer-te,vou-mecasarcomafilhadoreie
hojeànoiteserãocelebradasasbodas.
—Não!Éloucurademasiada!—disseoletrado.—Nãoquero,nemfaçoisso!
É enganar todo o país e a filha do rei também! Vou dizer tudo!Que sou eu o
homemequetuésasombra,queapenasandasvestidacomohomem!
—Ninguém acreditará em ti!— afirmou a Sombra.— Sê, pois, sensato ou
chamoaguarda!
—Voujáàfilhadorei—disseoletrado.
—Maseuvouprimeiro!—redarguiuaSombra.—Etuvaisparaaprisão!
Tevemesmodeir,poisassentinelasobedeceramàquelequesabiamqueafilha
doreiqueriaparaconsorte.
—Estásatremer!—exclamouafilhadorei,quandoaSombraentrounosseus
aposentos. — Aconteceu alguma coisa? Não podes estar doente hoje à noite,
quandovãocelebrar-seasbodas.
—Acabodeviveracoisamaiscruelque sepodeviver!—disseaSombra.—
Imagina… realmente um pobre cérebro de sombra não pode suportar muito…
imagina,aminhasombraenlouqueceu,crêqueépessoaequeeu…imaginabem…
eusouasuasombra.
Éhorrível!—exclamouaprincesa.—Estácomcertezaencarcerada?
—Está,pois.Estouconvencidodequenãoserestabelecerámais.
— Pobre sombra!— exclamou a princesa.— É muito infeliz. É verdadeira
caridade libertá-ladopoucode vidaque teme, sepensobem, creioque se torna
necessárioacabar-secomelasecretamente.
—Érealmentebastanteduro—disseaSombra—,poiseraumaservidorafiel.
—Edeixouescaparalgoparecidocomumsoluço.
—Tendesumcaráternobre!—exclamouafilhadorei.
Ànoitetodaacidadeestavailuminadaeoscanhõesdispararam—pum!—Eos
soldadosapresentaramarmas.
Aquilo éque forambodas!A filhado rei e aSombravieramàvarandapara se
mostraremeforamacolhidascommuitosvivas.
Oletradonadaouviu,poisjálhehaviamtiradoavida…
Saltadores
Umavez,opulgão,ogafanhotoeogansosaltador1quiseramverqualdelesera
capazdesaltarmaisaltoeassimconvidaramtodoomundoequemdemaisquisesse
assistiràexibição.Eramtrêsvalentesquandoentraramnasala.
—Sim,douaminhafilhaàquelequesaltarmaisalto!—disseorei.—Poisé
mesquinhodeixaraspessoassaltarpornada!
Opulgãofoioprimeiroaavançar.Tinhamaneirasdelicadasefezsaudaçõespara
todososlados,poishaviasanguededonzelaneleeestáacostumadoasóterrelações
comossereshumanos.Eissotemmuitaimportância.
Veiodepoisogafanhoto.Eraconsideravelmentemaispesado,mastinha,mesmo
assim, muito boas maneiras e apresentou-se no seu uniforme verde herdado à
nascença.Alémdisso,diziamaspessoasquevinhadeumafamíliamuitoantiga,na
terradoEgitoequeaqui,noreino,eraaltamenteconsiderado.Tinham-notrazido
diretamentedocampoepostonumacasadecartas,comtrêsandares,construídos
com figuras com o lado colorido para dentro.Havia tanto portas como janelas e
tudorecortadonocorpodadamadecopas.—Eucantodetalmodo—afirmou—
quedezasseisgrilosnativosque, embora, cantassemdesdepequenos,não tiveram
direitoanenhumacasadecartas.Aoouvirem-me,zangaram-setantoqueficaram
aindamaismagrosdoqueeram!
Tanto o pulgão como o gafanhoto deram assim boas contas de quem eram,
acreditandoquebempodiamvirapossuirumaprincesa.
O ganso saltador não disse nada, mas falaram por ele e disseram que assim
pensavamais,eocãodacorte,malofarejou,afiançouqueogansosaltadorerade
boafamília.Ovelhoconselheiro,quetinharecebidotrêsordensparaestarcalado,
assegurou que sabia que o ganso saltador era dotado da capacidade de profecia.
Podiaver-senassuascostassesetinhauminvernosuaveourigorosoeissonuncase
podiavernascostasdequemescreviaoalmanaque.
—Sim,poragoranãodigonada!—afirmouovelhorei.—Masvouocupar-me
dissoepensarnaminhaopinião!
Haviaentãoquedarosalto.Opulgãosaltoutãoaltoqueninguémoconseguiu
ver, e então foram de opinião de que não tinha mesmo saltado, e isso foi
mesquinho!
Ogafanhotosaltousómetadedaaltura,massaltoumesmoparaacaradorei,que
sentenciouqueeranojento.
Oganso saltador ficoumuito tempoquieto a pensar, julgando-sepor fimque
nãoeramesmocapazdesaltar.
—Oxalánãosesintamal!—disseocãodacorte,quevoltouafarejá-lo.Rutch!
Eogansosaltadordeuumpequenosaltodeesguelhaparaocolodaprincesa,que
estavasentadanumbanquinhodeouro.
Entãooreiproferiu:
—Osaltomaisaltoéparaaminhafilha,poiselaédomaisfinoquehá.Paratal
coisaháque teruma cabeçaparapensar e o ganso saltadormostrouque a tinha.
Temossonatesta,querdizer,temmiolo!
Eassimrecebeuaprincesa.
—Fuieuquesalteimaisalto!—afirmouopulgão.—Masé-meindiferente!
Queaprincesafiquecomogansodepauepez!Fuieuquesalteimaisalto,masé
precisotercorponestemundoparaqueovejam!
Eassimopulgãoalistou-secomocombatentenoestrangeiro,ondesedizquefoi
abatido.
O gafanhoto sentou-se lá fora na valeta a pensar, como são propriamente as
coisasnestemundo,dizendo:
—Temdesetercorpoparaisso!Temdesetercorpoparaisso!Eassimcantoua
suacançãotristeefoidelaquetomámosahistória,quebempodiaserfalsa,ainda
queimpressa.
1-Velhobrinquedofeitodeumossodepeitodegansoquedavasaltos. (N.do
T.)(Voltar)
ARapariguinhadosFósforos
Estavaterrivelmentefrio.Nevavaetinhacomeçadoaanoitecer.Eratambéma
última noite do ano, a véspera do ano novo. Naquele frio e naquela escuridão,
caminhavapela ruauma rapariguinhapobre, com a cabeça descoberta e descalça.
Tinha,oumaisjustamentetiveracalçadochinelas,quandosaiudecasa.Masdeque
lheservira isso!Eramtãograndes—ultimamenteamãeandaracomelas—que
lhe caíram dos pés quando teve de atravessar a rua a correr, para fugir de duas
carruagensemloucacorreria.Umachinela,nãofoipossívelencontrá-laeaoutra
levou-aumrapazinhoquelhedissequepoderiavirautilizá-lacomoberço,quando
tivessefilhos.
Agora ia pela rua a rapariguinha de pezinhos descalços, que estavam roxos de
frio.Novelhoegastoaventallevavaumaquantidadedefósforosenamãosegurava
ummolhodeles.Durantetodoodia,ninguémlhetinhacompradoum.Ninguém
lhe dera um pequeno xelim. Com fome e enregelada, a pobrezinha caminhava
muito infeliz!Os flocos deneve caíam-lhe sobre os longos cabelos loiros, que se
encaracolavamgraciosamente em volta do pescoço,mas nesta beleza não pensava
ela.Asluzesbrilhavamemtodasasjanelasecheiravamuitobemaoassadodeganso,
naquelarua.Eraanoitedapassagemdoano.
Eeranissoqueelapensava.
Numrecantoafastado,entreduascasas—umaavançavaumpoucomaisdoque
aoutra—,sentou-se,encolhida.Puxaraasperninhasparadebaixodesi,mascada
vez tinhamais frio e para casa não ousava ir.Não vendera, na verdade, nenhuns
fósforos.Nãoconseguiraumúnicoxelim.Opaibater-lhe-ia.Alémdisso,também
estavafrioemcasa.Tinhamotelhadomesmoporcimadeleseoventoassobiavapor
aí,sebemquetivessemtapadocompalhaetraposasfendasmaiores.Asmãozinhas
estavamquasemortasdefrio.Ai!Umfosforozinhofar-lhe-iabem.Setirasseumsó
domolhoeoriscassenaparedeeaquecesseosdedos!Tirouume«ritch»!Como
esguichou, como ardeu! Era uma chama clara, quente, como uma velazinha,
quandopôsamãoàvoltadele.Eraumaluzestranha!Àrapariguinha,pareceu-lhe
que estava sentada diante deumgrande fogãode ferro, comesferas e tamborde
latãodourado.Ofogoardiatãoabençoadoeaqueciatãobem!Oh!Quefoiisto?A
pequenaestendiajáospésparatambémosaquecer,quandoachamaseapagoueo
fogãodesapareceu.Continuousentadacomumtocozinhodefósforoqueimadona
mão.
Riscou outro, que ardeu e luziu. E, quando o clarão incidiu na parede, esta
tornou-se transparente como um tule. Olhou para dentro da casa onde a mesa
estava posta com loiça de porcelana fina sobre uma brilhante toalha branca.
Maravilhosamente, exalava um ganso assado, recheado com passas de ameixas e
maçãs!Ogansosaltoudatravessa,saracoteando-sepelochão,comogarfoeafaca
espetadosnolombo,quefoiaindamaismaravilhoso.Dirigiu-sediretamenteparaa
rapariguinha.Masquandoofósforoseapagou,elasóviuaespessaparedefria.
Acendeuoutro.FicouentãosentadasobamaisbelaárvoredeNatal.Eraainda
maioremaisornamentadadoqueaquelaquevirapelaportaenvidraçada,emcasa
do comerciante rico, no último Natal. Milhares de velas brilhavam nos ramos
verdesefigurasmuitocoloridas,comoaquelasquedecoravamasmontrasdaslojas,
olhavam,ládecima,paraela.Apequenaestendeuambasasmãosnoare…logose
apagouofósforo.AsmuitasluzesdoNatalsubiramcadavezmaisalto.Viuentão
que eram as estrelas brilhantes.Umadelas caiu e fez um longo risco de fogono
céu.
—Estáamorreralguém!—disseapequena,porqueavelhaavó,quefoiaúnica
pessoaquetinhasidoboaparaela,masqueagoraestavamorta,dissera:—Quando
caiumaestrela,sobeumaalmaparaDeus!
Riscoudenovoumfósforonaparede,queiluminoutudoàvoltae,noseufulgor,
estavaavelhaavó,tãoclara,tãoluminosa,tãodoceefeliz.
—Avó!—gritouapequena—Oh!Leva-mecontigo!Seiqueteirásquandoo
fósforoseapagar.Queteiráscomoofogãoquente,comoobeloassadodegansoea
grande e abençoada árvore de Natal! — E riscou apressadamente o resto dos
fósforosqueestavamnomolho.Queriaconservaraavó.Eosfósforosarderamcom
talbrilhoquesefezmaisclaroquealuzdodia.Aavónuncatinhasidotãobelae
tão grande. Levantou a rapariguinha para os seus braços e voaram ambas em
esplendor e júbilo. Tão alto, tão alto! Naquele lugar não havia nenhum frio,
nenhumafome,nenhummedo…estavamcomDeus!
Mas naquele recanto da rua, na madrugada fria, jazia morta pelo frio a
rapariguinha com as faces vermelhas e comum sorriso na boca… enregelada.Na
última noite do velho ano. A manhã do novo ano ergueu-se sobre o pequeno
cadáver,sentadocomoseupunhadodefósforos,quasetodosqueimados.—Quis
aquecer-se!—disseram.
Ninguémsoubequecoisasbelasameninaviu,nememqueesplendorelacoma
velhaavótinhamentradonojúbilodoanonovo!
ORouxinol
NaChina, como bem sabes, o imperador é chinês, e todos quantos tem à sua
voltasãochineses.Jálávãomuitosanos,masprecisamenteporissomereceapena
ouvirestahistória,antesquesejaesquecida!
Opaláciodoimperadoreraomaisfaustosodomundo,inteiraecompletamente
deporcelanafina,tãovalorosa,mastãofrágil.Tãosensívelaqualquertoque,que
havia verdadeiramente que tomar-se atenção. No jardim viam-se as flores mais
estranhasenasmaisesplendorosasestavamatadascampainhasdeprataquetiniam
paraquenãosepassasseporelassemasnotar.Sim,nojardimdoimperadortudo
estavaperfeitamenteplaneadoeestendia-seatétãolongequeoprópriojardineiro
nãosabiaondeterminava.Sesecontinuavaaandar,entrava-senomaisesplêndido
bosquecomárvoresaltaselagosfundos.Obosqueestendia-seatéaomar,queera
azuleprofundo.Grandesbarcospodiamnavegarepenetrarsobasramagensdestas
árvores e nelas vivia um rouxinol que cantava de forma tão abençoada que até
mesmoopescadorpobre,quetinhatantasoutrascoisascomquesepreocupar,se
quedava a escutá-lo, quando de noite saía para lançar a rede e calhava ouvi-lo.
«SantoDeus, como este canto é belo!», dizia,mas tinha de pensar na sua vida e
esqueciaopássaro.Contudo,nanoiteseguinte,quandoorouxinolvoltavaacantar
eopescadorandavaporali,exclamavaomesmo:«SantoDeus,comoestecantoé
belo!»
De todos os países domundo vinhamviajantes admirar a cidade imperial bem
comoopalácio eo jardim.Masquandoouviamo rouxinol, afirmavam:«Isto éo
melhordetudo!»
Os viajantes falavamdisso quando regressavam e os letrados escreviammuitos
livrossobreacidade,opalácioeo jardim,masnãoseesqueciamdorouxinol,que
erapostoacimade tudo.Eosque sabiampoetarescreviamasmaisbelaspoesias,
todassobreorouxinoldobosque,juntoaomar.
Os livroscircularampelomundoealgunsdeles chegaramumavezàsmãosdo
imperador.Este sentou-sena sua cadeiradeouro,pôs-se a ler, a ler, e foi lendo.
Acenava a todo omomento com a cabeça, pois agradava-lhe ler as maravilhosas
descriçõesda cidade,dopalácioedo jardim.«Maso rouxinol ébemomelhorde
tudo»,tambémestavaláescrito.
—Oque é isto?— exclamou o imperador.—Um rouxinol?Nada sei disso!
Existetalpássaronomeuimpério,precisamentenomeujardim?Nuncaouvifalar
detalcoisa!Edistotenhodesaberatravésdaleitura?
Chamoupeloseucavaleiro-às-ordens,queeratãodistintoque,quandoalguém
quelheerainferiorseatreviaadirigir-lheafalaouaperguntar-lhealgumacoisa,
nãolherespondiasenãocomum«pe!»,quenadasignificava.
— Deve haver aqui um pássaro extraordinariamente notável que se chama
rouxinol!—disseoimperador.—Dizemqueéomelhordetudonomeugrande
império!Porquenãomefalaramdele?
— Nunca ouvi mencioná-lo! — disse o cavaleiro-às-ordens. — Não foi
apresentadonacorte!
—Queroquevenhaaquihojeànoiteecanteparamim!—disseoimperador.—
Todoomundosabeoquetenhoeeunãosei!
— Nunca ouvi mencioná-lo! — respondeu o cavaleiro-às-ordens. — Vou
procurá-loeheideencontrá-lo!
Masondeiriaprocurar?Ocavaleiro-às-ordenssubiuedesceu,acorrer,todasas
escadas,percorreusalasecorredores,Nenhumadaspessoasqueencontrououvira
falardo rouxinol.Ocavaleiro-às-ordens voltou a correrparao imperador edisse
quedeviasercertamenteumahistóriainventadaporessagentequeescrevelivros.
— Vossa Majestade Imperial não deve crer em tudo o que se escreve! São
invenções.Éoquesechamamagianegra!
—Masolivroondeli isso—disseoimperador—foi-meenviadopelomuito
poderoso imperador do Japão e, portanto, não pode ser falso. Quero ouvir o
rouxinol!Temde estar aqui hoje à noite!Concedo-lhe a supremagraça de vir à
minha presença! Se não vier, toda a corte levará açoites na barriga depois de ter
ceado.
—Tsing-pe!—disseocavaleiro-às-ordens,evoltouacorrer,asubireadescer
todasasescadas,apercorrertodasassalasecorredores,emeiacortecorriacomele,
poisnão tinhamnenhumavontadede levar açoitesnabarriga.Eraumperguntar
portodaapartepelorouxinolqueomundointeiroconhecia,masnãoacorte.
Porfimencontraramumapobrerapariguinhanacozinha.Disseela:
— Oh! Deus, o rouxinol! Conheço-o bem! Sim, como sabe cantar! Tenho
autorizaçãoparalevartodasasnoitesumpoucodosrestosdamesaparacasa,paraa
minha pobre mãe doente. Vive lá em baixo na praia e, quando regresso, estou
cansada e repouso no bosque, oiço então o rouxinol a cantar! Fico com os olhos
húmidos.Écomoseaminhamãemebeijasse!
—Cozinheirazinha!—disseocavaleiro-às-ordens.—Arranjar-lhe-eiumlugar
certonacozinhaepermitir-lhe-eivero imperadorcomer, senos souber levarao
rouxinol,poisasuapresençafoianunciadaparahojeànoite!
Precipitaram-se todos para o bosque, onde o rouxinol costumava cantar.
Acompanhava-osmeiacorte.Enquantocaminhavam,ouviramumavacaamugir.
—Oh!— disseram os pajens da corte.—Temo-lo agora!Há realmente um
vigorextraordinárionumanimaltãopequeno!Jáoouvicomtodaacerteza!
—Não!Sãoasvacasquemugem!—disseacozinheirazinha.—Estamosainda
longedolugar.
Coaxaramdepoisasrãsnocharco.
—Maravilhoso!—disseodeãodopalácio.—Oiço-oagora,écomosinozinhos
deigreja!
—Não!Sãoas rãs!—dissea cozinheirazinha.—Maspensoqueembreveo
vamosouvir.
Entãocomeçouorouxinolacantar.
—Éele—dissearapariguinha.—Oiçam!Oiçam!Estáali!—Eapontoupara
umpassarinhocinzentopousadonosramos.
— É possível? — disse o cavaleiro-às-ordens. — Nunca o tinha imaginado
assim!Comopareceinsignificante!Certamenteperdeuascoresaovertantagente
distintaàsuavolta!
— Rouxinolzinho! — gritou a cozinheirazinha bemalto. — O nosso
magnânimoimperadorgostariamuitoquecantassesparaele!
—Com o maior gosto— respondeu o rouxinol, e logo cantou que era uma
maravilha.
—É como as campainhas de vidro!—disse o cavaleiro-às-ordens.—Vede a
gargantazinha, como se esforça!É estranhoque nunca o tenhamos ouvido!Fará
grandesucessonacorte!
—Devocantarmaisumavezparaoimperador?—perguntouorouxinol,que
julgavaqueoimperadorestavaali.
—Meu excelente rouxinolzinho!— disse o cavaleiro-às-ordens.—Tenho a
grandealegriadevosconvidarparaumafestanacorte,estanoite,naqualdeliciareis
SuaAltaGraçaImperialcomovossocantofascinante!
—Émaisbonitono campo!—disseo rouxinol,mas acompanhou-osdebom
grado,quandoouviudizerqueoimperadorassimoqueria.
Nopaláciofoipostotudoconvenientementealuzir.Paredesepavimentos,que
eramdeporcelana,brilhavamcoma luzdemilharesde lamparinasdeouro.Nos
corredoresforamcolocadasasfloresmaisbelas,quepodiamverdadeiramentetinir.
Eraummovimentoeumaaragemtaisque faziamsoar todasas campainhas,que
ninguémconseguiuouvirumapalavra.
No meio da grande sala onde o imperador estava sentado fora colocado um
poleiro de ouro e nele devia pousar o rouxinol. Toda a corte estava aí e a
cozinheirazinha recebeu autorização para ficar de pé, por detrás da porta, pois
tinhaagoraotítulodecozinheiraabsoluta.Trajavamtodosassuasmelhoresgalase
olhavamparaopassarinhocinzento,aoqualoimperadoracenou.
O rouxinol cantou tão bem que vieram as lágrimas aos olhos do imperador.
Correram-lhepelorosto.Quandoorouxinolcantouaindamelhor,oseucantofoi
direito ao coração. O imperador ficou tão contente que disse que o rouxinol
receberia as suas chinelasdeouropara trazer à voltadopescoço.Maso rouxinol
agradeceudizendoquejáreceberarecompensasuficiente.
—Veras lágrimasnosolhosdoimperadoréparamimomaisricotesouro!As
lágrimasdeum imperador têmumpodermaravilhoso!Deusbemsabequeestou
suficientemente recompensado. — E voltou a cantar com a sua voz maviosa e
abençoada.
—Éomaisamávelgalanteioqueconheço—disseramasdamasemredor,que
começaram a pôr água na boca para gorgolejar, quando alguém falava com elas.
Imaginavamque,destemodo,tambémpareciamrouxinóis.Atémesmooslacaiose
ascriadasdequartodeixaramsaberqueelestambémestavamsatisfeitos.Issotinha
muitaimportância,poissãoaspessoasmaisdifíceisdecontentar.Nãohaviadúvida,
orouxinolfizerabastantesucesso!
Ficaria agora na corte e teria a sua própria gaiola, bem como a liberdade de
passearnanaturezaduasvezespordiaeumavezdenoite.Recebeutambémdoze
criados.Tinhamtodosumafitadesedaligadaàpernadorouxinoleseguravam-na
firmemente.Orouxinolsentia-sepreso.Paraelenãohavianenhumprazernesses
passeios.
Todaacidadefalavadonotávelpássaroeseduaspessoasseencontravam,umasó
dizia«rouxi!»,eaoutrarespondia«nol!»,edepoissuspiravameentendiam-seuma
comaoutra.Atéonzefilhosdeummerceeiroreceberamoseunome,masnenhum
delesdeutomqueseouvisseemvida…
Um dia chegou uma grande encomenda para o imperador. Por fora estava
escrito:Rouxinol.
—Temosaíumlivronovosobreonossopássarocélebre!—disseoimperador.
Nãoera,porém,nenhumlivro,masumapequenaobradeartedentrodeumacaixa,
Um rouxinol artificial, que devia imitar o vivo, e que estava completamente
guarnecido com diamantes, rubis e safiras. Logo que se dava corda ao pássaro
artificial,estepunha-seacantarumadaspeçasqueoverdadeirocantavaeacauda
movia-se para cima e para baixo, brilhando como prata e ouro. No pescoço
suspendia-seumapequenafita,ondeestavaescrito:«Orouxinoldoimperadordo
JapãoépobreperanteodoimperadordaChina.»
—Émaravilhoso!—disseramtodos,eapessoaquetrouxeopássaroartificial
recebeulogootítulode«portador-mordorouxinolimperial».
—Agoratêmdecantar juntos!Equetalumdueto!Eassimtiveramdecantar
juntos,masnãodeuresultado,poisorouxinolverdadeirocantavaàsuamaneiraeo
pássaroartificialfuncionavacomrolos.
—Não tem culpa—disse omestre demúsica.—Respeita os compassos e é
inteiramentedaminhaescola!
O pássaro artificial teve então de cantar sozinho. Fez tanto sucesso como o
verdadeiroeeramuitomaisengraçadovê-lo,brilhavacomobraceletesoualfinetes
depeito.
Cantou trinta e três vezes a mesma peça musical e nunca ficou cansado. As
pessoastê-lo-iamouvidoaindamais,masoimperadorfoideopiniãodequeagora
tambémdevia cantar umpouco o rouxinol vivo…mas onde estava ele?Ninguém
dera por isso, mas ele voara pela janela aberta lá para longe, para o seu bosque
verde.
—Mas que vem a ser isto?— perguntou o imperador, e todos os cortesãos
descompuseramorouxinoledeclararamqueeraumanimalaltamenteingrato.—
Temos,contudo,opássaromelhor!—disseram,eassimopássaroartificialtevede
voltaracantarepelatrigésimaquartavezouviramamesmapeçamusical.Masnem
mesmo assim ficaram a conhecê-la, pois era muito difícil, e o mestre demúsica
elogiouextraordinariamenteopássaro,asseguroumesmoqueeramelhordoqueo
verdadeiro,nãosónoquerespeitavaaovestuárioeaosmuitosbelosdiamantes,mas
tambéminteriormente.
— Pois vejam bem,minhas senhoras e meus senhores, o imperador acima de
todos!Comorouxinolverdadeironuncasepodecontarcomoquevaivir,mascom
opássaroartificialtudoestáfixado!Éassimenãodeoutromodo!Podeexplicar-se,
podeabrir-seemostraraobradopensamentohumano,ondeestãoosrolos,como
funcionamecomoumsesegueaooutro…
—Éexatamenteoquepensamos!—exclamaramtodos.Eomestredemúsica
recebeuautorizaçãode,nodomingoseguinte,mostraropássaroaopovo.Também
deviaouvi-lo,disseo imperador.Ouviu-oe ficou tãocontentecomose se tivesse
alegradocomumsimpleschá,oqueébemchinês.Disseramtodos«oh!»epuseram
o dedo no ar, o que chamam lambedor, e acenaram com a cabeça.Mas o pobre
pescadorquetinhaouvidoorouxinolverdadeirodisse:
—Soabastantebem,étambémparecido,masfalta-lhealgo,nãoseioquê!
Orouxinolverdadeirofoibanidodopaísedoimpério.
Opássaroartificialteveoseulugarnumaalmofadadesedabemjuntodoleitodo
imperador.Todas as ofertas que recebeu, ouro e pedras preciosas, estavam à sua
volta e em título ascendeu a «cantor-mordemesinhade cabeceiradeSuaAlteza
Imperial», em categoria númeroumdo lado esquerdo, pois o imperador contava
esse ladocomosendoomaisdistinto,noqualestavaocoração,eocoração ficaà
esquerda,mesmonumimperador.Entretantoomestredemúsicaescreveuvintee
cincovolumes sobreopássaro artificial.Eram tãoeruditos e tão longos e comas
palavras chinesasmais difíceis, que todas as pessoas diziamque os tinham lido e
compreendido, pois senão teriam sido consideradas estúpidas e levado açoites na
barriga.
Assim passou todo um ano. O imperador, a corte e todos os outros chineses
conheciamdecoromaispequenogorjeiodocantodopássaroartificial,e,poressa
razão, lhes parecia ser isso omelhor de tudo. Podiam cantar aomesmo tempo e
assim faziam. Os rapazes da rua cantavam «zizizi— clucluclu» e o imperador
também.Sim,eraverdadeiramentebelo!
Mas uma noite em que o pássaro artificial estava nomelhor do seu canto e o
imperadordeitadonacamaaouvi-lo,sooudentrodopássaroum«tze»,saltoualgo,
«tre»,todasasrodasandaramàvoltaeamúsicaparou.
Oimperadorsaltoulogodacamaemandouchamaromédicodacorte,masque
podiaelefazer!Mandouentãochamarorelojoeiro,que,depoisdemuitofalarede
muitomirar, conseguiupôropássarominimamenteemcondições,masdisseque
deviaserpoupado,poisestavabastantegastonosdentesdasrodasenãoerapossível
substituí-las, de modo a que funcionasse certo com a música. Foi um grande
desgosto!Sóumavezporano sepodiadeixaropássaroartificial cantaremesmo
assimcombastantedificuldade.
Então o mestre de música fez um pequeno discurso com palavras difíceis,
afirmandocomautoridadequeficaratãobomcomoantes.
Passaram cinco anos, quando todo o país sofreu umdesgosto verdadeiramente
grande,pois,no fundo, todosgostavammuitodo seu imperador.Estavadoentee
nãoviveriamuitotempo,dizia-se.Umnovoimperadorfora jáescolhidoeopovo
paravanaruaeperguntavaaocavaleiro-às-ordenscomoestavaoimperador.
—Pe!—diziaele,sacudindoacabeça.
Frioepálido,o imperador jazianoseuleitograndeesumptuoso.Todaacorte
acreditavaque estavamorto e todosos cortesãoso abandonarampara correrema
saudar o novo imperador. Os camareiros saíram para tagarelar sobre o
acontecimentoeascriadasdopaláciojuntaram-seemgrandesociedadeparatomar
café e tagarelar também. À volta, em todas as salas e corredores, tinham sido
estendidospanosparaquenãoseouvissemaspessoasaandare,portanto,erapor
todaaparteumgrandesilêncio!Masoimperadoraindanãoestavamorto.Rígidoe
pálidojazianoleitosumptuosocomgrandescortinadosdeveludoeborlaspesadas
deouro.Láemcima,bemalto,estavaumajanelaabertaeoluarentravabrilhando
sobreoimperadoreopássaroartificial.
Opobreimperadorquasenãopodiarespirar,eracomosealgolhepesassesobreo
peito.Abriuosolhos e viuentãoqueera aMortequeestava sentada sobreo seu
peito, tendonacabeçaasuacoroadeouro,segurandonumamãoosabredeouro
imperialenaoutraoseubeloestandarte.Àvoltadaspregasdosgrandescortinados
develudodoleitoespreitavamcabeçasestranhas,umasbemfeias,outrasdetraços
admiravelmente suaves. Eram todas as ações boas e más do imperador, que o
olhavam,agoraqueaMorteestavasentadasobreoseucoração.
—Lembras-tedisto?—murmuravaumaapósoutra.—Lembras-tedisto?—E
tantascoisaslhecontavamqueosuorlhecorriadatesta.
—Nuncaosoube—diziaoimperador.—Música,música!Ograndetambor
chinês!—gritou.—Paranãoouviroquedizem!
Noentanto elas continuavama contar e aMorte inclinava a cabeça, comoum
bomchinês,atudooquediziam.
—Música,música!—gritavao imperador.—Tu,maravilhosopassarinhode
ouro!Canta, anda, canta!Dei-te ouro e preciosidades, eu próprio te pendurei as
minhaschinelasdeouroaopescoço.Canta,vá,canta!
Masopássaroficouimóvel,nãohavianinguémaliquelhedessecorda,peloque
nãopodiacantar.AMorte,porém,continuavaaolharparaoimperadorcomassuas
grandesórbitasvaziasetudoerasilêncio,umsilêncioterrível.
Então sooude repente, junto à janela, omais belo canto.Era o rouxinolzinho
vivo que pousara num ramo lá fora.Tinha sabido da agonia do seu imperador e
vierapara lhe cantar consolação e esperança.E àmedidaque cantava esvaneciam
maisemaisasfiguras,osanguecorriamaisemaisrápidonosfracosmembrosdo
imperadoreaprópriaMorteescutavaedizia:
—Continua,rouxinolzinho,continua!
— Quero que me dês o belo sabre de ouro! Sim, queres dar-me o rico
estandarte?Queresdar-meacoroaimperial?
AMorte dava cada um destes tesouros por um canto e o rouxinol continuava
sempre a cantar. Cantou sobre o cemitério tranquilo, onde crescem as rosas
brancas, onde o sabugueiro perfuma o ar e onde a erva fresca é regada pelas
lágrimasdossobreviventes.EntãoaMortesentiusaudadesdoseujardimedeslizou
comoumanévoafriaebrancapelajanelafora.
— Obrigado, obrigado! — disse o imperador. — Tu, passarinho celestial,
conheço-tebem!Bani-tedomeupaíseimpério!Contudo,viestecantarparaqueas
visões terríveis desaparecessem domeu leito.Conseguiste que aMorte saísse do
meucoração!Comopossorecompensar-te?
—Jámerecompensaste!—disseorouxinol.—Recebilágrimasdosteusolhos,
naprimeira vezque cantei, nuncame esqueço!São as joiasque verdadeiramente
alegram o coração de um cantor!Mas agora dorme, recompõe-te e fortalece-te!
Voucantarparati.
Cantou depois… e o imperador caiu num doce sono. Ai! Como era suave e
benfazejoessesono!
OSolentravapelasjanelasquandoacordoufortalecidoesão.Nenhumdosseus
servidorestinhavoltado,poispensavamqueestavamorto,masorouxinolláestava
ainda.Ecantava.
— Tens de ficar sempre comigo!— disse o imperador.— Cantarás quando
quisereseaopássaroartificialvouparti-loemmilpedaços.
—Nãofaçasisso!—pediuorouxinol.—Elefezomelhorquepôde!Guarda-o
comoaté aqui!Nãopossomorarnopalácio,maspermitequevenha,quandome
apetecer.Pousareiànoitenaqueleramojuntoàjanelaecantareiparati,paraquete
alegresemeditesigualmente.Cantareiagentefelizeagentequesofre.Cantareio
maleobem,queàtuavoltasemantémoculto.Opassarinhocantorvoaatélonge
aquiàvolta,atéaopobrepescador,atéaotelhadodacabanadocamponês,atodoo
lugarqueestálongedetiedatuacorte.Gostomaisdoteucoraçãodoquedatua
coroa e, contudo, a coroa tem um esplendor algo sagrado à sua volta. Voltarei e
cantareiparati…masumacoisatensdeprometer-me!
—Tudo!—disseoimperador,queagoraseapresentavanoseutrajeimperial,
que ele próprio vestira, e sustendo o sabre, de ouro maciço, erguido contra o
coração.
—Umacoisatepeço:nãocontesaninguémquetensumpassarinhoquetediz
tudo.Seráassimmelhor.
Eorouxinolvoouparalonge.
Osservidoresentraramparaveremoseu imperadormorto…poisbem,quando
alichegaram,estedisse-lhes:
—Bomdia!
OFuzil
Vinha um soldado amarchar pela estrada fora.Um, dois!Um, dois!Trazia a
mochilaàscostaseumsabreàilharga,poisestiveranaguerraeregressavaagoraa
casa.Encontrouentãoumavelhafeiticeiranaestrada.Eranojenta.Olábioinferior
pendia-lhequaseatéaopeito.
— Boa noite, soldado! — exclamou ela — Que bonito sabre e que grande
mochila tens! És um verdadeiro soldado! Agora, vais ter tanto dinheiro quanto
quiseres!
—Muitoobrigado,velhafeiticeira!—disseosoldado.
—Vêsestaárvoregrande?—perguntouafeiticeiraapontandoparaumaárvore
queestavaaoladodeles.—Écompletamenteoca.Setreparesatéaotopo,verásum
buracopeloqual podes deixar-te escorregar e ir ao fundoda árvore.Vou atar-te
umacordaàcinturaparapoderiçar-teoutravez,quandomechamares.
—Eoquevoueufazeraofundodaárvore?—perguntouosoldado.
—Buscar dinheiro!— respondeu a feiticeira.—Quando chegares ao fundo,
vaisencontrarumgrandecorredorcompletamente iluminado,poisaíestãoacesas
mais de cem lâmpadas. Verás então três portas. Podes abri-las porque as chaves
estão nas fechaduras. Entra na primeira câmara, e nomeio verás, no chão, uma
grandearca e sobre elaumcão sentado comolhos tãograndes comochávenasde
chá,masnãoteimportescomele!Dar-te-eiomeuaventaldequadradinhosazuis,
quepoderásestendernochão.Vaidireitoaocãoepõe-nosobreoavental,abrea
arcaetiradelátantosxelinsquantosquiseres.Sãotodosdecobre,massequerestê-
los de prata, entrarás no compartimento seguinte. Aí estará um cão que tem os
olhostãograndescomomósdemoinho.Masnãoteimportescomele,põe-noem
cima domeu avental e pega no dinheiro. Se quiseres ter ouro, também o podes
obter,etantoquantopuderestransportar,seentraresnaterceiracâmara.Masocão
que está sentado na arca do dinheiro tem olhos tão grandes como a Torre
Redonda1.Acreditaqueéumcãodeverdade.Masnãoteimportescomele.Põe-no
simplesmenteemcimadoavental,queelenão te faránenhummal,e tiradaarca
tantoouroquantoquiseres.
—Não é nadamau!—disse o soldado.—Mas o que tenhode dar-te, velha
feiticeira?Euimaginoquealgumacoisavaisquereremtroca!
—Não—disseafeiticeira.—Nemumúnicoxelimqueroparamim.Apenas
me trarásumvelho fuzilqueaminhaavóesqueceuquando lá estevepelaúltima
vez.
—Estoudeacordo!Põe-meentãoacordaàcintura!—pediuosoldado.
— Aqui está ela! — disse a feiticeira. — E aqui tens o meu avental de
quadradinhosazuis!
Entãoo soldado trepouàárvore,deixou-seescorregarpeloburacoeachou-se,
como dissera a feiticeira, no grande corredor, onde estavam acesas centenas de
lâmpadas.
Abriu a primeira porta. Ui! Lá estava o cão com os olhos tão grandes como
chávenasdecháafitá-lo.
—Ésumtipojeitoso!—disseosoldado,pondo-osobreoaventaldafeiticeirae
tiroutantosxelinsdecobrequantopodiameternosbolsos.Fechoudepoisaarca,
pôsocãooutravezemcimadelaedirigiu-separaasegundacâmara.Ena!Láestava
ocãocomolhostãograndescomomósdemoinho!
—Nãodevesolhartantoparamim!—disseosoldado.—Podesficarmaldos
olhos.—Epôsocãonoaventalda feiticeira.Mas,quandoviu tantodinheirode
pratanaarca,deitouforatodoodinheirodecobrequetinhaeencheuosbolsosea
mochilasócomodeprata.Depoisentrounaterceiracâmara.Oh!Erahorrível!O
cãotinharealmentedoisolhostãograndescomoaTorreRedonda.Egiravam-lhe
nacabeça,comorodas.
—Boanoite!—disseosoldadoelevouamãoàbarretina2,poisumcãodestes
nuncaviraantes.Masdepoisdeotermiradoumpouco,pensou:«Chegadeolhar.»
Pegounele, pô-lo no chão e abriu a arca.Oh!SantoDeus!Quanto ouro!Podia
comprarCopenhagainteiraetodososporquinhosdeaçúcardasdoceiras,todosos
soldadosdechumbo,chicotesecavalosdebaloiçoquehouvessenomundo.Sim,na
verdade,havia lá imensodinheiro!—Entãoosoldadolançouforatodososxelins
depratacomqueencheraosbolsoseamochilaesubstituiu-ospelosdeouro.Sim!
Todososbolsos,amochila,abarretinaeasbotas ficaramcheiasde talmodoque
malpodiaandar!
Agora,sim,tinhadinheiro!Levantouocãoepô-losobreaarca,fechouaportae
gritou:
—Iça-me,velhafeiticeira!
—Játensofuzil?—perguntou-lheesta.
—Éverdade!—disseosoldado.—Tinha-meesquecido.
—Evoltouatrásparaoirbuscar.Afeiticeiraiçou-oeláestavaeleoutravezna
estradacomosbolsos,botas,mochilaebarretinacheiosdedinheiro.
—Quevaisfazeragoracomofuzil?—perguntouosoldado.
—Não te interessa!— respondeu a feiticeira.— Já tens o dinheiro!Dá-me
simplesmenteofuzil!
—Parvoíce!—retorquiuosoldado.—Oumedizesimediatamenteoquevais
fazercomeleoupuxodosabreecorto-teacabeça!
—Não!—disseafeiticeira.
Entãoosoldadocortou-lheacabeça.Ali ficou.Pôstodoodinheironoavental,
atou-o,colocou-oàscostasàlaiadetrouxa,meteuofuzilnobolsoedirigiu-separa
acidade.
Eraumalindacidadeeentrounamaisbonitahospedaria,pediuomelhorquarto
ecomeudoquemaisgostava,poisagoraerarico,tinhamuitodinheiro.
Ao criado, que deveria limpar-lhe as botas, pareceu-lhe que estas eram
estranhamentevelhasparapertenceremaumsenhortãorico.Masosoldadoainda
não tivera tempo de comprar outras.No dia seguinte, arranjou botas novas para
calçar e roupa que era uma beleza! O soldado era agora um senhor elegante.
Contaram-lheentãotudosobreacidadeeoqueláhaviaefalaram-lhedorei.Eque
lindaprincesaeraafilhadele!
—Ondesepodevê-la?—perguntouosoldado.
—É impossível vê-la!— responderam todos em coro.—Mora num grande
castelode cobre, commuitosmuros e torres à volta!Ninguémsenãoo rei tema
coragemdeentrarousair,poisestáprofetizadoqueaprincesaviráacasarcomum
simplessoldadoeissonãoagradaaorei!
«Bemgostariadevê-la!»,pensouosoldado,masnuncaobterialicençaparaisso.
Viviaagoradivertindo-se.Iaàscomédias,andavadecarruagemnoJardimdoRei
edavaaospobresmuitodinheiro,oqueerabembonito!Lembrava-semuitobem
dosvelhostemposecomoeramaunãopossuirumxelim!Estavaagorarico,vestia
belasroupasetinhamuitosamigosquediziamqueeleeraumapessoamuitoboa,
umverdadeirocavalheiro,eissoagradava-lhe!
Mascomotodososdiasgastavadinheiroenãorecebianadaemtroca,apenaslhe
restavam dois xelins, pelo que teve de sair do belo aposento onde morava,
mudando-se para um quartinho estreito, mesmo debaixo do telhado. Tinha de
escovarelepróprioasbotaseconsertá-lascomumaagulhadepassajarejánenhum
dosseusamigosovisitava,poiserammuitososdegrausatéláacima.
Eraumanoitebemescura.Jánãotinhadinheiroparacomprarumavela.Então
lembrou-sedequehaviaumcotonofuzilqueencontraranaárvoreoca,emquea
velhaotinhaajudadoadescer.Agarrounofuzilenocotodevela,masprecisamente
nomomentoemquefezfogoeasfaíscassaltaramdapederneiraabriu-seaportade
parempareocãoquetinhaolhoscomograndeschávenasdecháequeosoldado
viralánofundodaárvoreestavadiantedele.
—Queordenaomeusenhor?—perguntouocão.
—Que é isto?— interrogou-se o soldado.— É, na verdade, um fuzil bem
engraçado! Posso assim obter o que quero! — Arranja-me algum dinheiro! —
pediueleaocão.Zaque!,elogoestedesapareceue,zaque!,logovoltou,trazendona
bocaumgrandesacocheiodexelins.
Agora,osoldadosabiaqueofuziltinhaalgodemaravilhoso.Sefizessefogouma
vez, vinha o cão que estava sobre a arca com dinheiro de cobre; se fizesse duas
vezes,vinhaoquetinhadinheirodeprata,esefizessetrêsvezes,vinhaoquetinha
ouro. Voltou a correr para o belo aposento, vestiu-se com boas roupas e, de
imediato,oreconheceramtodososamigosquetantogostavamdele.
Entãopensou:«Écoisabastanteestranhaquenãosepossaveraprincesa!Deve
sermuitobonita.Todosmodizem!Masparaque serveabeleza, se temdeestar
sempremetida numgrande castelo de cobre com tantas torres?Não conseguirei
mesmovê-la?Ondeestáomeufuzil?»Fezfogoumaveze,zaque!,logoapareceu
ocãocomosolhostãograndescomochávenasdechá.
—Jávaialtaanoite—disseosoldado—,masgostariatantodeveraprincesa,
sóporummomento!
Ocãodesapareceupelaporta e antesqueo soldado tivesse tempodepensar já
estavadevoltacomaprincesa sentadaadormirnoseu lombo.Erarealmente tão
bonita que todos podiam ver que era deveras uma princesa.O soldado não pôde
conter-se,tevedebeijá-la,comofazemtodososverdadeirossoldados.
O cão regressou a correr com a princesa.Demanhã, quando o rei e a rainha
tomavamchá,aprincesadissequetiveraumsonhoestranhonanoiteanterior,com
umcãoecomumsoldado.Cavalgaranocãoeosoldadobeijara-a.
—Semdúvidaqueéumalindahistória!—dissearainha.
Então,nanoiteseguinte,umadasvelhasdamasdacorteficoudevigiajuntoao
leitodaprincesa,paraverseerarealmenteumsonhoououtracoisaqualquer.
Osoldadoansiavatantoveroutravezabelaprincesa,quechamouocão,como
seufuzil.Estefoibuscá-laecorreutantoquantopôde.Masavelhadamadacorte
calçoubotasdechuvaecorreucomigualrapidezatrásdeles.Quandoosviuentrar
numacasagrande,pensou«agora sei onde é!», e fez comumpedaçodegizuma
grandecruznaportaondeo soldadomorava.Depois foiparacasaedeitou-se.E
tambémocãodevolveuaprincesa.Quandoregressou,eviuquehaviaumacruzna
portaondeosoldadomorava,ocãopegoutambémnumpedaçodegizefezcruzes
emtodasasportasdacidade.Foicoisafeitacommuitaesperteza,poisagoraadama
da corte não saberia encontrar a porta certa, visto que havia cruzes em todas as
portas.
Demanhãcedovieramoreiearainha,avelhadamadacorteetodososoficiais
paraveremosítioondeestiveraaprincesa.
—Éaqui—disseorei,quandoviuaprimeiraportacomumacruz.
—Não!Éali,queridomarido!—afirmouarainha,queviuumasegundaporta
comumacruz.
—Mas é aqui e é ali!—exclamaram todos.Paraqualquer ladoqueolhassem
haviacruzesnasportas.Verificaramentãoquenãovaliaapenaprocurarmais.
Arainhaeraumamulherbastanteesperta,quesabiamuitomaisdoqueandarde
carruagem.Pegounasuagrandetesouradeouro,cortouumgrandepedaçodeseda
em bocados e fez destes um saquinho bonito. Encheu-o com sêmola de trigo
mourisco, pequena e fina, atou-o às costas da princesa e, feito isto, fez um
buraquinho no saco, de modo que a sêmola pudesse derramar-se por todo o
caminhoondeaprincesaandasse.
À noite veio de novo o cão, pôs a princesa às costas e correu com ela para o
soldado.Estegostavatantodelaquegostariadeserumpríncipeparaatomarcomo
esposa.
O cão, correndo com a princesa, não notou como a sêmola se foi derramando
pelocaminhodesdeocastelo,pelomuroacima,atéàjaneladosoldado.Demanhã,
oreiearainhaviramondeafilhatinhaestado.Prenderamosoldadoepuseram-no
nocalabouço.
Estavapreso.Ui!Comoera escuro e triste!Edisseram-lhe: «Amanhãvais ser
enforcado!» Não era nada divertido ouvir uma coisa destas e, ainda por cima,
esquecera-sedofuzilnaestalagem.Demanhãpôdeobservar,atravésdasgradesde
ferro da pequena janela, a gente que se apressava a sair da cidade para o ver ser
enforcado.Ouviuostamboreseviuossoldadosamarcharem.Todaagentecorria.
Umaprendizde sapateiro comavental de coiro e pantufas tanto correu a galope
queumadaspantufasvoou-lhedospésefoibaterprecisamentecontraaparedepor
detrásdaqualestavaosoldadosentadoaolharparaarua.
— Eh! Aprendiz de sapateiro! Não precisas de ter tanta pressa! — disse o
soldado.—Nadavaiacontecerantesdeeuláchegar!Sequiseres,porém,correraté
ondemorei e trazer-meomeu fuzil, receberásquatroxelins!Mas tensdedar às
pernas!
Oaprendizde sapateiroqueriaganharosquatroxelins,peloquecorreucomo
umasetaabuscarofuzil,queentregouaosoldadoe…agoravamosterdeouvir!
Foradacidadetinhamlevantadoumagrandeforca.Àsuavoltahaviasoldadose
muitascentenasdemilharesdepessoas.Oreiearainhaestavamsentadosnumbelo
tronomesmoemfrentedosjuízesedetodooconselho.
O soldado estava já no cimo da escada, mas, quando iam pôr-lhe a corda no
pescoço, disse que sempre haviam concedido a um pecador, antes de sofrer o
castigo, a possibilidade de satisfazer um desejo inocente. Ele gostaria tanto de
fumarumacachimbada,jáqueseriaaúltimaquefumarianestemundo!
Taldesejonãoquisoreinegar-lhe,eassimosoldadopegounofuzilefezfogo
uma, duas, três vezes. Lá estavam todos os cães, o dos olhos tão grandes como
chávenas de chá, o dos olhos como mós de moinho e o que tinha os olhos tão
grandescomoaTorreRedonda.
— Ajudem-me para que não seja enforcado! — pediu o soldado, e logo se
atiraramoscãesaosjuízeseatodooconselho.Pegaramnunspelaspernasenoutros
pelonarizelançaram-nosmuitasbraçadasparaoar,demodoque,quandocaíam,
logoficavamempedaços.
—Eunãoquero—disseorei,masocãomaiorpegouneleenarainhaelançou-
os para o ar, como aos outros. Então os soldados ficaram assustados e a gente
gritou:
—Soldadinho,serásonossoreieterásalindaprincesa!
Sentaramassimosoldadonacarruagemrealeos trêscãesdançavamàfrentee
gritavam «hurra»!Osmoços aprendizes assobiavam com os dedos e os soldados
apresentavam armas. A princesa saiu do castelo de cobre, foi feita rainha e bem
podiasentir-secontenteporisso!
Abodadurouoitodias,oscãessentaram-seàmesaefizeramgrandesolhos.
1-ObservatóriodocélebreastrónomoTygeBrahe,emCopenhaga.(N.doT.)
(Voltar)
2-Barretinaalta.Antigobarretealto,compala,feitodefeltrooudecouro.(N.
doT.)(Voltar)
OColarinhoPostiço
Eraumavezumcavalheirofinocujosartigosdetoiletteeramumacalçadeirae
umpente.Mas tinhaosmaisbonitoscolarinhospostiçosdomundoeé sobreum
colarinhoquevamosouvirumahistória.
Certocolarinhopensavaqueestavanaidadedecasar.Eaconteceuquefoipara
lavarjuntamentecomumaliga.
—Oh!Não!—disseocolarinho,olhandoparaaliga.—Nuncavi,naverdade,
algotãoeleganteefino,tãodoceetãobonito.Possoperguntar-lheonome?
—Nãodigo—respondeualiga.—Ondereside?—insistiuocolarinho.
Masàliga,queeramuitotímida,pareceu-lhenãoserdebomtomresponderao
colarinho.
—Écertamenteumatira!—continuouocolarinho.—Assimumatirainterior.
Vejobemqueétãoútilcomodecorativa,minhamenina.
—Nãodevefalar-me!—respondeu-lhealiga.—Parece-mequenãolhedeio
mínimopretextoparaisso!
— Sim, quando se é tão bonita como você! — retorquiu o colarinho. — É
pretextosuficiente.
—Não se cheguemais!— disse a liga.—Tem um ar tãomásculo!— Sou
tambémumfinocavalheiro!Tenhocalçadeiraepente!
E não era verdade.Quem os tinha era o dono do colarinho, mas ele estava a
fanfarronar.
—Nãoseaproxime!—dissealiga.—Nãoestouhabituadaaisso!
— Pretensiosa! — afirmou o colarinho, e foram retirados da bacia de lavar.
Levougoma,foipenduradonumacadeiraaoSoleestendidonatábuadeengomar.
Veiooferrocomasolaquente.
—Senhora!—disseocolarinho.—Viuvinha!Estouaaquecercompletamente!
Estouaficaroutro,estouaficarsemrugas.Estáaqueimar-me,afazerburacosem
mim!Ui!…Proponho-lhecasamento!
—Farrapo!—disseasoladoferrodeengomar,passandoorgulhosaporcimado
colarinho.Achava-separtedeumacaldeiraavapor.Deviamaserairparaocaminho
deferropuxarvagões.
—Farrapo!—ouviu-se.
O colarinho estava umpouco poídonas pontas.Veio então a tesoura de papel
paraasaparar.
—Oh!—disseocolarinho.—Écomcertezaprimeira-bailarina!Comosabe
estenderaspernas!Édomaisbonitoquevi!Nenhumserhumanopodeimitá-la!
—Issoseieu!—disseatesoura.
—Mereciasercondessa!—comentouocolarinho.—Tudoquantotenhoéum
finocavalheiro,umacalçadeiraeumpente!Tivesseeuumcondado!
—Está a declarar-se, este!— disse a tesoura.Zangada, deu-lhe uma valente
tesourada.
Estavaarrumado.
—Sómerestaproporcasamentoaopente!—pensouocolarinho.—Énotável
comoconservatodososdentes,meucaro!Nuncapensouemnoivado?
—Sim,podesabê-lo!—disseopente.Estoucomprometidocomacalçadeira!
—
Comprometido!
Agoranãohaviamaisninguémparaproporcasamento.Decidiuentãopôressa
ideiadelado.
Muito tempo depois, o colarinho foi parar a uma caixa, nomoinho de papel.
Haviaumagrande sociedade de farrapos.Os finos deum lado e os grosseiros do
outro.Arrumadoscomodeveser.Todostinhammuitoquecontar,masocolarinho
postiçotinhaaindamais.Eraumverdadeirogabarola.
— Tive tantas namoradas! Não podia andar sossegado. Era também um
cavalheiro fino, com goma! Tinha uma calçadeira e um pente que nunca usava!
Deviam ter-me visto, quando estava deitado de lado!Não esqueço nunca omeu
primeiro namoro, era uma tira, tão fina, tão doce e tão encantadora. Afogou-se
numaselhadeáguapormim!Haviatambémumaviúvaqueficouembrasa,maseu
deixei-a até ela ficar preta! Houve a primeira-bailarina, deu-me a cutilada que
aindatragocomigo.Eratãoraivosa!Omeuprópriopenteenamorou-sedemim,
perdeu todos os dentes por mal de amor. Sim, tive muitas experiências deste
género!Masdoquesintomaispenaédaliga…querodizer,datiraqueseafogouna
selhadeágua.Tenhomuitoapesar-menaconsciência.Bempossonecessitarfazer-
mepapelbranco!
E assim foi, todos os farrapos se tornaram papel branco, mas o colarinho
transformou-se precisamente neste pedaço de papel, que aqui vemos, onde a
história está impressa, e isso porque fanfarronou tanto sobre o que nunca lhe
acontecera.
Énissoquedevemospensarparanãofazermosomesmo,poisnuncahavemosde
saber,naverdade,senãoviremosalgumaveztambémparaacaixadefarrapospara
sertransformadosempapelbrancoetertodaanossahistórianeleimpressa.Mesmo
amaissecreta.Eterassimdecorrermundoecontá-la.
Comoocolarinhopostiço.
OValenteSoldadinhodeChumbo
Eraumavezvinteecincosoldadosdechumbo.Eramtodosirmãos,poistinham
nascidodeumavelha colher.Traziamespingardas aoombro, e olhavambemem
frente.Vermelhoseazuis,quebonitoseramosuniformes!Oqueprimeirodetudo
ouviram nestemundo, quando foi tirada a tampa da caixa onde se encontravam,
foramaspalavras:—Soldadosdechumbo!—Gritou-asumrapazinho,batendo
palmas.Recebera-osporqueeraoseuaniversárioecolocou-osempésobreamesa.
Cadasoldadoassemelhava-seexatamenteaosoutros,sóumeraumpoucodiferente.
Tinhaapenasumaperna,poisforaoúltimoaserfundidoeochumbonãochegara.
Contudo,estavadepétãofirmementesobreumapernacomoosoutrosnasduaseé
precisamenteestesoldadoquevaisernotável.
Namesa onde foram colocados estavammuitos outros brinquedos,mas o que
davamaisnas vistas eraumbelopaláciode cartão.Atravésdas janelinhaspodiam
ver-seassalas.Doladodeforahaviaarvorezinhasemvoltadeumpequenoespelho
parafazerdecontaqueeraumlago.Cisnesdeceravogavamaí,refletindo-se.Todo
o conjunto era bonito, mas o mais bonito, contudo, era umamenina que estava
entreasportasabertasdopalácio.Tambémerarecortadaemcartão,mastinhauma
saiadomaisclarolinhoeumaestreitafitinhaazulsobreosombroscomoumxaile.
No meio deste estava uma palheta brilhante, tão grande como o rosto dela. A
meninaestendiaambososbraços,poiseraumabailarina,elevantavaumapernatão
altonoarqueosoldadodechumbomalpodiavê-la,peloquejulgouquetinhasó
umapernacomoele.
—Era mulher para mim!— pensou.—Mas é bastante distinta, mora num
palácio.Eu tenhoapenasumacaixae somosaí vintee cinco,nãoé lugarque lhe
convenha!Contudo,vouversetravoconhecimentocomela!—Eassimdeitou-se
por detrás de uma caixa de rapé que estava na mesa. Dali podia ver
convenientementeadamazinha,quecontinuavadepésobreumaperna,semperder
oequilíbrio.
Quandoerajánoitefechada,vieramtodososoutrossoldadosdechumboparaa
caixaeagentedacasafoiparaacama.Entãocomeçaramosbrinquedosabrincar,
àsvisitas,afazerguerrasouaosbailes.Ossoldadosdechumboagitaram-sefazendo
barulhodentrodacaixa,poistambémqueriamparticiparnasbrincadeiras,masnão
conseguiram abrir a tampa. O quebra-nozes deu cambalhotas e a pena fez
travessurasnaardósia.Eraumespetáculo,detalmodoalegrequeocanárioacordou
ecomeçoutambémameter-senaconversa.Osúnicosquenãosemexeramforamo
soldadodechumboeabailarinazinha.Elacontinuavatodadireitanapontadopée
comambososbraçosestendidos.Eleestavabemfirmenasuaperna,nãodesviando
osolhosdelanemporummomento.
Então soouameia-noite e, taque!, saltoua tampada caixade rapé.Nãohavia
nenhum tabaco lá dentro, mas sim um gnomozinho preto, pois a caixa era um
truque.
—Soldadodechumbo!—disseognomo.—Vejaláondepõeosseusolhos!
Masosoldadodechumbofingiuquenãoouviu.
—Estábem,esperaporamanhã!—disseognomo.
Quando amanheceu e as crianças se levantaram, o soldado de chumbo foi
colocado junto da janela e quer fosse então o gnomoouumgolpe de vento, esta
abriu-sesubitamenteeosoldadocaiudoterceiroandar,decabeçaparabaixo.Foi
umaviagemterrível,apernavirou-secompletamenteparaoareficoucaídosobreo
capacete,comabaionetaparabaixo,entreaspedrasdarua.
A criada e o rapazinho desceram imediatamente a procurá-lo, mas embora
estivessem quase a pisá-lo, não conseguiram vê-lo. Se o soldado tivesse gritado:
estouaqui!,bem,tê-lo-iamencontrado,maselenãoachouconvenientegritar,pois
estavadeuniforme.
Começouentãoachover,cadagotamaisespessadoqueaoutra.Tornou-seum
aguaceiroperfeito.Quandopassou,vieramdoisrapazesdarua.
—Olha!—disseum.—Estáaliumsoldadodechumbo!Vaipartirdebarco!
Fizeramumbotedeumjornal,puseramosoldadodechumboládentro,no
meio,eei-loanavegarvaletaabaixo.Ambososrapazescorriamaolado,batendo
palmas.Deusnoslivredisso!Queondashavianavaletaequecorrente!Tinha
chovidotorrencialmente.Obarcodepapelbalouçavaparacimaeparabaixoenos
intervalosviravacomtantarapidezqueosoldadodechumboestremecia.Mas
mantinha-sefirme,nãomexiaummúsculo,olhavabememfrenteeseguravaa
espingardaaoombro.
De repente o barco entrou numa longa sarjeta. Ficou tão às escuras, como se
estivessedentrodacaixa.
—Paraondeireiagora?—pensou.—Ah!Sim,sim,istoécoisadognomo!Ai!
Estivesseajovemaquinobarco,bempodiafazerodobrodoescuro!
Nesse momento apareceu um grande rato dos canos que vivia por baixo da
sarjeta.
—Tenspassaporte?—perguntouorato.—Passa-oparacá!
Masosoldadodechumboficoucaladoesegurouaarmaaindacommaisfirmeza.
Obarcopassoueoratofoiatrásdele.Ui!Comorangiaosdentesegritavaparaos
pauzinhosepalhinhas:
—Façam-noparar!Façam-noparar!Nãopagouaportagem!Nãomostrouo
passaporte!
Acorrentetornou-secadavezmaisforte.Osoldadodechumbojápodiaveraluz
dodianasuafrente,ondeterminavaasarjeta.Masouviutambémumrugidoque
bem podia assustar um homem corajoso. Vejam bem; a sarjeta tombava a pique,
onde terminava o cano, para fora, para um grande canal, que seria para ele tão
perigosocomoparanósdescerdebarcoumagrandequeda-d’água.
Agoraestava tãopertoquenãopodiaparar.Obarcoavançou,opobre soldado
agarrou-se tão firme quanto pôde. Ninguém lhe podia dizer que tivesse
pestanejado.Obarcorodopioutrês,quatrovezeseencheu-sedeáguaatéàborda,
iaafundar-se.Osoldadodechumboestavacomáguaatéaopescoçoecadavezmais
seafundavaobarcoecadavezmaissedissolviaopapel.Aáguajáestavaporcimada
cabeçado soldado…Entãopensounapequeninae lindabailarinaquenuncamais
iriaveresoaram-lheaoouvidoaspalavrasdacanção:
Perigo,perigo,guerreiro!
Amortevaisofrer!
Depoisdesfez-seopapeleosoldadodechumbocaiuporentreeste…masfoino
mesmomomentoengolidoporumgrandepeixe.
Oh!Comoeraescuroládentro!Aindaerapiordoquenasarjetaetãoapertado!
Masosoldadodechumboerafirmeeficouondeestava,comaarmanobraço…
O peixe andou às voltas, fazia os mais terríveis movimentos. Por fim ficou
completamentequietoeentrounelecomoqueumrelâmpago.Aluzbrilhoubem
claraealguémgritou:
—O soldadode chumbo!—Opeixe fora apanhado, trazidopara omercado,
vendidoelevadoparaacozinha,ondeacriadaoabriucomumagrandefaca.Pegou
depoiscomdoisdedosnosoldadoelevou-oparaasala,ondetodosqueriamvero
homemtãonotávelqueviajaranabarrigadeumpeixe.Masosoldadodechumbo
nãoestavanadaorgulhosodisso.Puseram-noemcimadamesa e aí… comoneste
mundopodemacontecercoisasmaravilhosas!Osoldadodechumboencontrava-se
namesmasalaemqueestiveraantes.Viuasmesmascriançaseosbrinquedosque
estavamemcimadamesa.Obelopalácio coma lindaepequeninabailarina,que
aindasesustinhanumaperna,comaoutra levantada.Tambémelaerafirme.Isso
comoveuosoldadodechumbo.Estevequaseaverterlágrimasdechumbo,masnão
era coisa que lhe ficasse bem. Ele olhou para ela e ela olhou para ele, mas não
disseramnada.
Nessemesmomomento umdos rapazinhos pegouno soldado e deitou-o para
dentrodo fogão semdarqualquer explicação.Foi comcertezaognomoda caixa
queteveaculpa.
O soldado de chumbo ficou iluminado e sentiu umgrande calor.Era terrível,
masseerarealmentedofogooudoamor,nãosabia.Desapareceram-lheascores,e
se foidaviagemoudamágoa,ninguémopodiadizer.Olhavaparaamenina, ela
olhavaparaeleesentiuquesederretia,masficoufirmecomaespingardaaoombro.
Abriu-seentãoumaporta,oventopegounabailarina,quevooucomoumasílfide
paradentrodofogão,paraosoldadodechumbo.Ardeunaschamasedesapareceu.
Assimsederreteuosoldadodechumbo,ficandoapenasumpedacinhodechumbo,
e quando a criada tirou as cinzas no dia seguinte, encontrou-o na forma de um
coraçãozinho.Dabailarina,aocontrário,restavaapenasapalheta,queestavapreta
comocarvão.
OPequenoClauseoGrandeClaus
Havia numa cidade dois homens que tinham o mesmo nome, ambos se
chamavamClaus,masumpossuíaquatrocavaloseooutroapenasum.Então,para
sepoderemdistinguirumdooutro,chamava-seàquelequetinhaquatrocavaloso
GrandeClauseaoquesótinhaumoPequenoClaus.Agoravamosouviroquese
passoucomeles,poiséumahistóriaverídica.
Durante todaa longa semana,oPequenoClaus tinhade lavrarparaoGrande
Clauseemprestar-lheoseuúnicocavalo.OGrandeClausretribuía-lhe,ajudando-
ocomosquatrocavalos,masapenasumavezporsemana,aodomingo.
—Arre!,cavalos!—ComooPequenoClausfaziaestalarochicotesobretodos
oscincocavalos!Eracomosefossemdelenaqueledia.OSolbrilhavamagníficoe
todosossinosdocampanáriotocavamachamaraspessoasparaamissa.Asgentes
aperaltavam-seedirigiam-separaaigrejacomolivrodesalmosdebaixodobraço,a
fimdeouviremoPastorpregar.EntretantoolhavamoPequenoClaus,quelavrava
com cinco cavalos e estava tão contente que voltava a fazer estalar o chicote,
gritando:arre!,todosmeuscavalos!
—Nãopodesdizerisso—avisouoGrandeClaus.—Ésóumcavaloqueéteu.
Masquandovoltavaapassaralguémparaaigreja,oPequenoClausesquecia-se
dequenãoodeviadizeregritava,novamente:arre!,todosmeuscavalos!
—Bem,peço-tepara tedeixaresdisso!—repetiuoGrandeClaus.—Pois se
voltasadizê-lomaisumavez,douumapancadanacabeçadoteucavalo,queelecai
logomorto,e,pronto,acabou-secomele.
—Nãotornoadizê-lo—prometeuoPequenoClaus,masquandopassougente
e o saudou com um aceno de cabeça dando-lhe os bons-dias, ficou contente.
Parecia-lhe tão bem ter cinco cavalos para lavrar o seu campo, que fez estalar o
chicoteegritou:arre!,todosmeuscavalos!
—Vou pôr a andar os teus cavalos!— disse oGrande Claus, que pegou na
marreta e deu uma pancada na cabeça do único cavalo doPequenoClaus, de tal
modoqueestecaiuparaolado,completamentemorto.
— Ai! Agora não tenho mais nenhum cavalo— exclamou o Pequeno Claus,
desatandoachorar.Depoisesfolouocavalo,pegounapeleepô-laasecaraovento,
meteu-anumsaco,quelançouaosombros,epartiuparaacidadeafimdeavender.
Havia um longo caminho a percorrer. Tinha de atravessar um grande bosque
escuro e pôs-se um tempo terrível. Perdeu-se completamente e, sem que
conseguisseencontrarocaminhocerto,entardeceu,estandodemasiadolongequer
parachegaràcidadequerparavoltarparacasaantesdeanoitecer.
Juntoaocaminhohaviaumagrandecasadelavoura.Asportadasdas janelasdo
lado exterior estavam fechadas sobre as vidraças,mas deixavam transparecer luz.
«Bempodiampermitir-mepassaranoiteali»,pensouoPequenoClaus,efoibater
àporta.
Amulherdo lavradorabriu,masquandoouviuoqueelequeria,disse-lheque
seguisse caminho, que o seu homem não estava em casa e, por isso, não recebia
qualquerestranho.
—Bem,entãotenhode ficarcá fora—disseoPequenoClaus,eamulherdo
lavradorfechou-lheaportanacara.
Pertohaviaumagrandemedadefenoeentreelaeacasaestavaconstruídoum
pequenoalpendrecomumtelhadodireitodepalha.
—Possodormiraliemcima—pensouoPequenoClaus,quandoviuotelhado.
—Éumaboacama.Acegonhanãovirácáabaixomorder-menaspernas.—Pois
haviaumacegonhavivanocimodotelhado,ondetinhaoninho.
Então o Pequeno Claus trepou para o alpendre para se deitar comodamente.
Comoasportadasdemadeiradasjanelasnãoestavamfechadasemcima,podiaver
paradentrodecasa.
Avistava uma grande mesa posta com vinho, assado e ainda um belo peixe. A
mulher do lavrador e o sacristão estavam sentados à mesa e mais ninguém. Ela
servia-oeeleespetavaogarfonopeixe,poiseraalgodequegostavamuito.
—Quemmederapoderapanharalgumacoisadali!—disseoPequenoClaus,
estendendoa cabeçapara a janela.Oh!Deus!Quebelobolopodia ver ládentro!
Sim,eraumfestim.
Nessemomentoouviuquealguémvinhaacavalopelaestradafora,nadireçãoda
casa.Eraomaridodalavradeiraqueregressava.
Esteeraumbomhomem,mas tinhaadoençaestranhadenãopodervernem
suportar sacristães. Se lhe aparecia um diante dos olhos ficava completamente
enraivecido. Foi por isso que o sacristão entrara para dar os bons-dias àmulher,
pois sabia que o homem não estava em casa, e a boa mulher lhe apresentou,
portanto, amelhorcomidaque tinha.Quandoouviramchegaromarido, ficaram
tãoassustadosqueamulherpediuaosacristãoparaseescondernumagrandearca
vaziaqueestavaaumcanto,oqueelefezporquesabiabemqueopobrehomem
não suportava sacristães. A mulher escondeu rapidamente toda a boa comida e
vinhono forno, pois, se omaridoos visse, perguntaria comcertezaoquequeria
aquilodizer.
—Oh!—suspirouoPequenoClausemcimadoalpendre,quandoviuamulher
retirartodaacomida.
—Estáalguémaíemcima?—perguntouolavrador,olhandoparaoPequeno
Claus,lánoalto.—Porqueestásaí?Andacomigoparadentrodecasa.
EntãooPequenoClauscontoucomosetinhaperdidoeperguntousepodiaali
passaranoite.
—Certamente!—disseolavrador.—Masprimeirotemosdetratardavida!
Amulhermostrou-semuitogentilparaambos,pôsamesa,uma longamesa,e
trouxe-lhesumatravessagrandecompapasdeaveia.Olavradorestavacomfomee
comeucomgrandeapetite.MasoPequenoClausnãodeixavadepensarnoassado,
nopeixeenobolodebeloaspetoquesabiaestaremnoforno.
Sobamesa,juntoaospés,colocaraosacocomapeledocavalo,poissabemosque
foraparaavendernacidadequesaíradecasa.Aspapasnão lhesabiambem,pelo
quepisouosacoe,ládentro,apelesecarangeufortemente.
—Queéisso?—perguntouolavrador,espreitandoparabaixodamesa.
—Chiu!—disseoPequenoClausparaosaco,masvoltouapisá-loaomesmo
tempo,demodoqueesterangeuaindacommaisforça.
—Não!Quetensaínosaco?
— Oh! É um feiticeiro! — respondeu o Pequeno Claus. — Diz que não
devemoscomeraspapas,eleencantoutodooforno,queestácheiodeassado,peixe
ebolo.
—Oquê—exclamouolavrador,efoiabriroforno,ondeviutodaaboacomida
queamulherescondera,masqueelejulgavaagoratersidoofeiticeirodosacoquea
haviaencantadoparaeles.Amulhernãoousoudizernada,antespôslogoacomida
na mesa e assim ambos comeram peixe, assado e bolo. Então o Pequeno Claus
voltouapisarosaco,demodoqueapelerangeu.
—Quedizeleagora?—perguntouolavrador.
—Diz—retorquiuoPequenoClaus—quetambémencantoutrêsgarrafasde
vinho para nós. Também estão dentro do forno!— Então a mulher teve de ir
buscar o vinho que escondera e o lavrador bebeu, ficando muito alegre. Um
feiticeirocomooqueoPequenoClaustinhanosaco,muitogostariadepossuir!
—EletambémpodefazerapareceroDiabo?—perguntouolavrador.—Bem
gostariadeover,poisagoraestoualegre.
—Sim—disseoPequenoClaus.—Omeufeiticeiropodetudooqueeu lhe
pedir.Nãoéverdade?—perguntouelepisandoosaco,demodoqueesterangeu
novamente.—Conseguesouvi-lodizerquesim?MasoDiabotemumaspetotão
feioquenãomereceapenavê-lo.
—Oh!Nãotenhomedonenhum.Comopodeeleparecer-se?
—Bem,vaimostrar-secompletamentenapessoadeumsacristão.
— Ui!— exclamou o lavrador—, que feio! Vossemecê deve saber que não
suporto sacristães.Mas não faz mal, sei que é o Diabo, aguentarei isso melhor.
Agoratenhocoragem.Maselenãodeveaproximar-semuitodemim.
—Vouperguntarentãoaomeufeiticeiro—disseoPequenoClaus,pisandoo
sacoeapurandooouvido.
—Quedizele?
—Que vossemecê pode ir abrir a arca que está ali ao canto e verá o Diabo
acocorado,mastemdesegurarbematampaparanãoseescapar.
—Quer ajudar-me a segurá-la?— perguntou o lavrador, dirigindo-se para a
arca,ondeamulhertinhaescondidoosacristão,queestavacheiodemedo.
Olavradorlevantouatampaumpoucoeespreitouparadentrodaarca.
—Ui!—gritouele,saltandoparatrás.—Sim,vi-oagora!Étalequalonosso
sacristão!Oh!Foiterrível!
Eraprecisobeberqualquercoisaeassimbeberamatéaltanoite.
—Tensdevender-meofeiticeiro!—disseolavrador.—Pedeoquequiseres.
Sim,dou-teparajáumalqueirecheiodedinheiro.
—Não,nãoposso—afirmouoPequenoClaus.—Pensabemquelucroposso
tirardestefeiticeiro.
—Oh!Gostavatantodetê-lo!—disseolavrador,quecontinuouapedir.
—Bem—respondeuoPequenoClausporfim.—Fostetãobomemdar-me
acolhimento de noite, está bem, podes ficar com o feiticeiro por um alqueire de
dinheiro,masquero-obemcheioatécima.
—Tê-lo-ás—disseolavrador.—Masaquelaarcatensdelevá-lacontigo,não
quero tê-la nemmais umahora em casa.Nunca se pode saber se ele continua lá
dentro.
OPequenoClausdeuao lavradorosacocomapelesecaerecebeuporeleum
alqueirededinheiro,bemmedidoatécima.Olavradorpresenteou-oaindacomum
grandecarrodemãoparatransportarodinheiroeaarca.
—Adeus!—disseoPequenoClaus, epartiu comodinheiro e agrandearca,
ondeestavaaindaosacristão.
Nooutroladodobosquehaviaumaribeiragrandeefunda.Aíaáguacorriatão
fortequemalsepodianadarcontraacorrente.Foraconstruídaumapontegrandee
novasobreela.OPequenoClausparouameiodaponteedissebemaltoparaqueo
sacristãoopudesseouvir:
—Ora,quevoufazercomaestúpidaarca?Étãopesadacomosetivessepedras
lá dentro. Vou ficar completamente esgotado se continuar a empurrá-la, vou,
portanto, lançá-laàribeira.Seforpararàminhacasa,muitobem,senãofor,éo
mesmo.
Depoispegounaarcacomumamãoe levantou-aumpouco, comosequisesse
lançá-laàágua.
—Não,para!—gritouosacristãodentrodaarca.Deixa-mesair.
—Ui!—disseoPequenoClaus,fingindoqueestavacommedo.—Eleaindalá
estádentro!Entãotenhodedeitá-loàribeiradepressa,paraqueseafogue.
—Oh!Não!Não!—gritounovamenteosacristão—Dar-te-eiumalqueirede
dinheirosenãoofizeres.
— Bem, isso já é outra coisa! — disse o Pequeno Claus, e abriu a arca. O
sacristão saiu logo e empurrou a arca vaziapara a água, dirigindo-sedepois para
casa, ondeoPequenoClaus recebeuumalqueirededinheiro. Já receberaumdo
lavradorecommaisesteagoratinhaocarrodemãocheiodedinheiro.
—Estásaver,conseguiqueocavalofossemuitobempago—dissedesiparasi
quandovoltouparacasaedespejavatodoodinheironumgrandemonte,nomeiodo
chão. — Bem arreliado vai ficar o Grande Claus, quando vier a saber como
enriquecicomomeuúnicocavalo,masnãovoudizer-lhoassimsimplesmente.
Então mandou um rapaz pedir ao Grande Claus que lhe emprestasse uma
medidadealqueire.
—Paraquequereráeleisso?—pensouoGrandeClaus.Besuntouofundocom
alcatrão para que lhe ficasse agarrado alguma coisa do que fossemedido e assim
sucedeu,poisquandorecebeudevoltaoalqueire,estavamcoladostrêsoito-xelins
depratanovos.
—Que é isto?— exclamou oGrande Claus, e correu imediatamente para o
PequenoClaus:—Ondearranjastetantodinheiro?
—Oh!Édaminhapeledecavalo,vendi-aontemànoite.
—Foibastantebempaga!—disseoGrandeClaus,quelogocorreuparacasa,
pegounummachadoeabateuosseusquatrocavaloscomumapancadanacabeça.
Depoistirou-lhesaspelesepartiucomelasparaacidade.
—Peles!Peles!Quemmercapeles?—gritavapelasruas.
Todos os sapateiros e curtidores vieram a correr e perguntaram-lhe quanto
queriaporelas.
—Umalqueirededinheiroporcada—disseoGrandeClaus.
—Estásmaluco?—perguntaramtodos.—Achasquetemosassimdinheiroaos
alqueires?
—Peles!Peles!Quemquercomprarpeles?—voltouagritar,masatodosque
perguntavamquantocustavamaspeles,respondia:—Umalqueirededinheiro.
— Quer fazer pouco de nós — disseram todos. Os sapateiros pegaram nos
tirapéseoscurtidoresnosaventaisdecouroecomeçaramasovaroGrandeClaus.
—Peles,peles!—gritavam,escarnecendodele.—Poisbem,vamosdar-teuma
pele que vai espirrar porcaria vermelha! Fora da cidade com ele!—OGrande
Claustevedeescapar-se,comopôde,poisnuncatinhalevadotantapancada.
—Bem!—disseelequandoregressouacasa.—OPequenoClausvaipagá-las.
Voumatá-lo!
EmcasadoPequenoClaus,avelhaavómorrera.Tivera,naverdade,sempremau
génioe foramápara ele,masoPequenoClaus estavamuito comovido,peloque
pegounaavóedeitou-anasuaprópriacamaquenteparaverseelaconseguiavoltar
àvida.Aídevia jazer todaanoite,ele iria ficaraumcantosentadonumacadeira,
comojáantesohaviafeito.
Estandoelealisentadodenoite,abriu-seaportaeoGrandeClausentroucomo
seu machado. Sabia bem onde era a cama do Pequeno Claus, dirigiu-se
imediatamenteparaelaedeuumamachadadanacabeçadaavó,crendoqueerao
PequenoClaus.
—Viste?—disseele.—Agoranãomeenganasmais.Edepoisvoltouparacasa.
—Maséumhomemmau,mesmomau!—disseoPequenoClaus.—Queria
matar-me. Foi bom que a avozinha já estivesse morta, senão tinha-lhe tirado a
vida!
Depoisvestiuàvelhaavóasroupasdomingueiras,pediuemprestadoumcavalo
aovizinho,atrelou-oàcarroçaesentouaavónolugartraseiro,demodoaquenão
pudessecair,quandoandasse,epartiramrolandoatravésdobosque.QuandooSol
selevantou,estavamdiantedeumagrandeestalagem,ondeoPequenoClausparou
parairládentrobuscaralgumacoisaparacomer.
O estalajadeiro tinha muito, muito dinheiro, era também bom homem, mas
arrebatado,comosetivessepimentaetabacodentrodele.
— Bom dia! — disse ao Pequeno Claus. — Vieste tão cedo e com fato
domingueiro,hoje!
—Sim—disseoPequenoClaus.—Tenhode iràcidadecomaminhavelha
avó.Está sentada lá forana carroça,não consigoque entre aquipara a sala.Não
querlevar-lheumcopodehidromel?Mastemdefalar-lhealto,poiselanãoouve
bem.
—Estábem,levá-lo-ei—respondeuoestalajadeiroeencheuumgrandecopo
dehidromelquelevouàavómorta,queestavacolocadadireitanacarroça.
—Está aquiumcopodehidromel do seuneto—disse o estalajadeiro,mas a
velhanãoproferiupalavra.Ficousentadasemsemexer.
—Nãoouve?—gritouoestalajadeirotãoaltoquantopodia.—Estáaquium
copodehidromeldoseuneto!
Maisumavez lhegritouemaisumavezainda,mas,comoelanãosemexiade
modoalgumdo lugar, encolerizou-see lançou-lheo copoà cara,demodoqueo
hidromel lhe ficou a escorrerparaonariz e ela caiupara trásna carroça,pois só
estavacolocadadireitaenãoatada.
— Eh! — gritou o Pequeno Claus da porta da estalagem, agarrando o
estalajadeiropelopescoço.—Matasteaminhaavó!Bastaolhares,temumagrande
brechanatesta!
—Oh!Foiumacidente!—gritouoestalajadeiro, torcendoasmãos.—Tudo
por causa domeu temperamento arrebatado!BomPequenoClaus, dar-te-ei um
alqueirededinheiroemandareienterraratuaavó,comosefosseaminha,masnão
digasnada,senãocortam-meacabeçaeétãodesagradável!
AssimrecebeuoPequenoClausumalqueireinteirodedinheiroeoestalajadeiro
enterrouavelhaavó,comosefosseasua.
Quando o Pequeno Claus voltou outra vez para casa com muito dinheiro,
mandou imediatamente o mesmo rapaz ao Grande Claus pedir-lhe emprestada
umamedidadealqueire.
—Oqueéisto?—disseoGrandeClaus—Entãonãoomatei?Tenhodeirver
eupróprio.—EfoiassimcomoalqueireaoPequenoClaus.
—Não pode ser!Onde arranjaste todo este dinheiro?— perguntou, abrindo
muitoosolhosaoveraquelapequenafortuna.
— Foi a minha avó e não a mim que mataste— disse o Pequeno Claus.—
Vendi-adepoiserecebiumalqueireporela.
—Foinaverdadebempaga!—observouoGrandeClaus,eapressou-seavoltar
acasa.Pegounummachadoelogomatouasuavelhaavó,pô-lanacarroça,partiu
para a cidade, onde morava o boticário e perguntou-lhe se queria comprar um
morto.
—Queméedondeotraz?—perguntouoboticário.
—Éaminhaavó—respondeuoGrandeClaus.—Matei-aporumalqueirede
dinheiro.
—Deusnosguarde!—exclamouoboticário.—Faladetalmododesipróprio!
Nãodigatalcoisa,poispodeperderacabeça!—Depoisdisse-lhequecoisaterrível
tinhafeitoequemauhomemeraequedeviasercastigado.OGrandeClausficou
tão assustado que saltou imediatamente da botica para a carroça, chicoteou os
cavalos e virou para casa. O boticário e toda a gente julgaram que era doido e
deixaram-nopartir.
—Vaispagar-meisso!—disseoGrandeClaus,quandojáestavanaestrada.—
Sim,vaispagar-mo,PequenoClaus!—E logoquechegouacasapegounosaco
maiorqueencontrou,foiaoPequenoClauseameaçou-o:
—Voltasteaenganar-me!Primeiromateiosmeuscavalos,agoraaminhavelha
avó! É tudo culpa tua, mas não me enganarás mais. — Deste modo agarrou o
PequenoClaus pela cintura emeteu-o no saco, pô-lo às costas e gritou-lhe:—
Agoravouafogar-te.
Era um bom pedaço a pé até chegar à ribeira e o PequenoClaus não parecia
assimtãoleveparatransportar.Ocaminhopassavapelaigreja,ondetocavamórgão
easpessoasentoavambeloscantos,ládentro.EntãooGrandeClauspôsosacocom
oPequenoClaus junto à porta da igreja e pensou que seriamuito bom entrar e
ouvirumsalmoantesdeprosseguircaminho.OPequenoClausnãopodiademodo
algumescapar-seetodaagenteestavanaigreja.Entrou,pois.
—Ai!Ai!—suspiravaoPequenoClausdentrodosaco.Voltava-seetornavaa
voltar-se,masnãolheerapossíveldesfazeronóemcima.Nessemomentochegou
um vaqueiro muito, muito velho que tinha o cabelo branco como a neve e um
grandebordãonamão.Tocavaumagrandemanadadevacaseboisadiantedeleque
embateunosacoondeestavaoPequenoClaus,demodoquesevirou.
—Ai!— suspirou oPequenoClaus.—Sou tão novo e tenho de ir já para o
ReinodosCéus.
—E eu, pobre demim!—disse o vaqueiro.—Sou tão velho e não posso ir
ainda!
—Abreosaco!—gritouoPequenoClaus.—Mete-tenomeulugar,quevais
imediatamenteparaoReinodosCéus.
— Sim, é isso o que eumais quero— disse o vaqueiro, desatando o saco do
PequenoClaus,quelogosaltouparafora.
—Queres tomarcontadogado?—perguntouovelho,metendo-sedentrodo
saco,queoPequenoClauslogoatou.Seguiucaminhocomtodasasvacasebois.
PoucodepoissaiuoGrandeClausdaigreja,pegououtraveznosacoàscostase
pareceu-lhe,comrazão,quesetinhatornadomaisleve,poisovaqueironãopesava
metade do PequenoClaus.—Como estámais leve de transportar! Bem, é com
certezaporquefuiouvirumsalmo!—Assimsedirigiuparaaribeira,queerafunda
egrande,lançouosacocomovelhovaqueiroàáguaegritou-lhe,porquepensava
queeraoPequenoClaus:
—Viste?Nãomeenganarásmais!
Foi depois para casa, mas quando chegou ao sítio em que os caminhos se
cruzavam,encontrouoPequenoClaus,queconduziatodooseugado.
—Queéisto?—interrogouoGrandeClaus.—Nãoteafoguei?
—Sim—disseoPequenoClaus.—Lançaste-meà ribeirahápoucomaisde
meiahora.
—Masondearranjastetodoestebelogado?—perguntouoGrandeClaus.
—Égadomarinho!—respondeuoPequenoClaus.—Vou contar-te toda a
históriaetambémteagradeçopormeteresafogado,poisestouagoracáemcimae
verdadeiramenterico,podescrer!…Tivetantomedo,quandoestavadentrodosaco
eoventomeassobiavanosouvidosemelançastedaponteparadentrodaáguafria!
Fuilogoparaofundo,masnãomemagoei,poisláembaixocresceamaisbelaerva
tenra. Caí sobre ela e logo o saco se abriu e uma donzela lindíssima com vestes
brancascomoaneveecomumacoroaverdeemvoltadocabelohúmidopegou-me
pelamãoedisse:«ÉsoPequenoClaus?Alitens,primeiro,algumgado!Umamilha
mais acimaestá tambémumamanada completaque tequerooferecer!»Vi então
quea ribeira eraumagrandeestradapara agentemarinha.Embaixo,no fundo,
estaandavaapéedecarruagemvindadomarebemparadentrodaterraatéondea
ribeiratermina.Eratãobelocomfloreseaervamuitofrescaepeixesquenadavam
naáguadeslizandoàvoltadasorelhas,comoospássarosnoar.Quegentebonitaaí
haviaetantogadoqueandavapelosfossosevalados!
—Masporquevoltastelogoparacima,paranós?—perguntouoGrandeClaus.
—Eunãoteriafeitoisso,sevissequeeratãoagradávelláembaixo!
— Sim— afirmou o Pequeno Claus.— Foi uma esperteza daminha parte!
Ouve bem o que te digo! A donzela marinha disse que a uma milha acima do
caminho—ecomocaminhoqueriadizeraribeira,poisaoutrolugarnãopodeela
chegar—estáaindatodaumamanadaparamim.Masseicomoaribeiradávoltas,
oraaquioraacolá,éumbomdesvio.Poisbem,ficamaiscurtoquandosesabevir
aqui à terra e se atravessa os campos para voltar à ribeira.Com isso poupo bem
quasemeiamilhaechegomaisdepressaaomeugadomarinho.
—Oh!Ésumhomemfeliz!—disseoGrandeClaus.—Crêsquetambémvou
conseguirgadomarinhosechegaraofundodaribeira?
—Sim,achoquesim!—afirmouoPequenoClaus.—Masnãopossolevar-te
no saco para a ribeira, és demasiado pesado para mim. Se quiseres ir até lá e
meteres-tenosaco,comomaiorprazerteempurrareiparaofundo.
—Muitoteagradeço—disseoGrandeClaus—,massenãoconseguirnenhum
gadomarinho,quandochegaraofundo,dar-te-eiumaboatareia,podescrer!
—Oh!Não!Nãosejastãomau!—Epartiramparaaribeira.Quandoogado,
queestavacomsede,viuágua,correuomaisquepôde,parachegarabaixoebeber.
—Vêscomotêmpressa?—perguntouoPequenoClaus.—Queremvoltarde
novoparaofundo.
— Sim, ajuda-me agora primeiro! — respondeu o Grande Claus. — Senão
apanhaspancada.—Eassimsemeteunosacograndequepuseradetravéssobreo
lombodeumdosbois.—Põeumapedra,poissenãoreceionãochegaraofundo—
pediuoGrandeClaus.
—Vaijá!—retorquiuoPequenoClaus.Pôs,então,umapedragrandedentro
dosaco,apertoubemolaçodesteeempurrou-o.Plum!LáfoioGrandeClauspara
aribeiraelogodireitoaofundo!
—Receioquenãovenhaaencontrarogado!—exclamouoPequenoClaus,e
partiuparacasacomoquetinha.
SoboSalgueiro
Paraos ladosdeKøgea regiãoémuitoescalvada.Acidade ficamesmo juntoà
praia,e issoésemprebonito,maspodiaaindasermaisbonito.Àvolta,oscampos
sãoplanoseobosqueficalonge.Masquandoseéverdadeiramentenaturaldeum
lugar,encontra-sesemprealgobonito,dequenolugarmaisbelodomundosepode
tersaudades!TambémdevemosdizerquenascercaniasdeKøge,ondeumparde
pobres jardinzinhos se estende para baixo até à ribeira que corre a desaguar na
praia,podiasermuitobonitonotempodoverãoeassimoachavamespecialmente
asduascriançasvizinhasKnudeJoana,queaíbrincavameseprocuravamumao
outro, rastejando sob os arbustos de uva-espim. Num jardim erguia-se um
sabugueiro,nooutro,umvelhosalgueiroesobestegostavamascriançasdebrincar
e para isso tinham autorização, se bem que a árvore ficasse bem junto à ribeira,
ondepodiamfacilmentecairàágua.MasNossoSenhortemosolhosnascrianças,
senão seria muito mau. Eram também muito cuidadosos, sim, o rapaz era tão
receosodaágua,quenãoerapossível,notempodeverão,levá-loparaapraia,onde,
contudo, as outras crianças gostavam tanto de patinhar. Faziam-no envergonhar
por isso e tinha de suportá-lo.Mas, então, sonhou a pequena Joana vizinho que
navegavanumbarconabaíadeKøgeequeKnudcorriaparaela,aáguaalcançava-o
primeiroatéaopescoçoedepoisporcimadacabeça.Edesdeomomentoemque
Knud ouviu este sonho, não suportou mais que lhe chamassem medroso, fazia
simplesmentereferênciaaosonhodeJoana.Eraoseuorgulho,masparaaáguanão
iaele.
Os pais pobres juntavam-se frequentemente, e Knud e Joana brincavam nos
jardinsenaestrada,queaolongodasvaletastinhaumafilacompletadesalgueiros,
estes não eram bonitos— estavam tão podados nas copas!—,mas também não
estavamaliparaenfeite,antesparaseremúteis.Maisbonitoeraovelhosalgueiro
nojardimeporbaixodelesesentavammuitasvezes,comojásedisse.
EmKøgehaviaumgrandemercado.Nessaalturaerguiam-seruascompletasde
tendas com fitas de seda, botas e tudo o que era possível. Acorria umamultidão,
geralmente no tempo de chuva, e então notava-se o cheiro dos jaquetões dos
camponeses, mas também o belo perfume dos bolos de mel. Havia uma barraca
cheiadeles.Masformidáveleraohomemqueosvendiaalojar-sesempre,notempo
domercado,emcasadospaisdeKnudpeloquesobejavaassim,naturalmente,um
pequenobolodemel,dequeJoanatambémrecebiaasuaparte.Aindamelhor,erao
mercadordebolosdemelsabercontarmuitobemhistórias,sobretodasascoisas,
mesmo sobre os seus bolos demel. Pois sobre estes contou ele, uma noite, uma
história que impressionou profundamente as duas crianças, que nunca mais a
esquecerameomelhoréquetambémaouçamos,tantomaisqueécurta.
—Estavamnobalcãodoisbolosdemel—disseele.—Umtinhaaformadeum
cavalheirocomchapéu,ooutro,deumadonzelasemchapéu,mascomumpedaço
deouropelnacabeça!Tinhamorostodeladoeviradoparacima,poisassimdeviam
ser vistos, e não de costas, que deste modo nenhuma pessoa os devia ver. O
cavalheiro tinha uma amêndoa amarga à esquerda, era o coração, a donzela, ao
contrário, era simplesmente bolo de mel. Estavam para prova no balcão,
encontravam-se aí há bastante tempo e assim se enamoraram um do outro, mas
nenhum se tinhadeclarado.No entanto erapreciso fazê-lo se sequeria chegar a
algumacoisa.
«Eleéhomem,deveproferiraprimeirapalavra»,pensavaela,masagradar-lhe-
iasaberqueoseuamoreracorrespondido.
Eleera,contudo,maisglutãonosseuspensamentoseoshomenssão-nosempre.
Sonhavaqueeraumrapazdarua,quepossuíaquatroxelinsequeassimcompravaa
donzelaecomia-a.
Permaneceram dias e semanas no balcão, ficaram secos e os pensamentos dela
tornaram-semaisdelicadosemaisfemininos:«Chega-meterficadonobalcãocom
ele»,pensou,equebrou-sepelocorpo.
«Setivessesabidodomeuamor,tinhacomcertezaduradomaistempo»,pensou
ele.
—Éesta ahistória e aqui estão ambos!—disse omercadordebolos.—São
notáveispelasuacarreiraepeloamormudo,quenuncalevouanada.Vede,aquios
tendes!—EassimdeuaJoanaocavalheiro,queestavainteiro,eKnudrecebeua
donzelaquebrada.Masestavamtãoimpressionadoscomahistóriaquenãotiveram
coragemdecomeropardeamorosos.
Nodia seguinte foramcomelesaocemitériodeKøge,ondeaparededa igreja
estácobertacomamaisbelahera, seja invernoouverão,aí se suspendendocomo
umaricatapeçaria.PuseramosbolosdemelnaverduraaoSolecontaram,perante
um bando de outras crianças, a história sobre o amormudo que não servia para
nada, quer dizer, o amor, pois a história era bonita — assim a acharam todos.
Quandoolharamparaopardebolosdemel,bem,houvealiumrapazgrandote—
efoipormaldade—quecomeuadonzelaquebrada.Ascriançaschoraramedepois
— foi sem dúvida para que o pobre cavalheiro não ficasse só no mundo —
comeram-notambém,masnuncaesqueceramahistória.
As crianças juntavam-se sempre perto do sabugueiro e sob o salgueiro e a
rapariguinhacantavacomvozclaradesinosdeprataasmaisbonitascanções.Knud
nãosabiaentoarumúnicotom,massabiaaletra,oqueéjáalgumacoisa…Agente
deKøge, atémesmo amulher doquinquilheiro, quedava-se a ouvir Joana.—É
umavozdocequeameninatem!—diziaela.
Eramdiasabençoados,masnãoduraramparasempre.Osvizinhossepararam-se.
Amãedameninamorrera,opaiiacasar-seemCopenhaga,ondepodiaencontrar
outromododevida. Ia sermensageiroemqualquerparte,oqueparecia seruma
posiçãomuitolucrativa.Osvizinhosdespediram-secomlágrimas,especialmenteas
crianças. Mas os adultos prometeram escrever-se pelo menos uma vez por ano.
Knud entrou para aprendiz de sapateiro, pois não podiam deixar um rapaz tão
crescidoandarporaliapassear.Eassimrecebeuaconfirmaçãocristã!
Oh!Comogostaria,naquelediadefesta,deteridoaCopenhagaedeverJoana,
masnãofoienuncaláhaviaestado,sebemqueficasseacincomilhasdeKøge.Mas
Knud tinha visto as duas torres para além da baía, em tempo claro, e no dia da
confirmaçãoviu,distintamente,brilharacruzdouradanaFrueKirke1.
Ai!Comopensava emJoana!Lembrar-se-ia dele?Sim!…NoNatal veio carta
dos pais dela para os pais de Knud: passavam bem emCopenhaga e um grande
acontecimentofelizsederaparaJoanadevidoàsualindavoz.Entraraparaoteatro,
pois aí também cantavam. Já recebia algum dinheiro por isso e desse dinheiro
mandavaparaosqueridosvizinhosemKøgeumtálerinteiroparaalgodivertidona
noitedeNatal.Deviambeberàsuasaúdeeacrescentaracomasuaprópriamãoum
pós-escrito,ondeselia:«SaudaçõesamigáveisparaKnud!»
Choraram todos de alegria porque as notícias eram agradáveis. Todos os dias
JoanatinhaestadonospensamentosdeKnudeagoraviaqueelatambémpensava
nele, equantomais se aproximava a data emque viria a ser oficial,mais claro se
tornavaqueamavamuitoJoanaequeelaviriaaserasuamulherzinha.Assimselhe
abriuumsorrisoepuxoucommaisforçaofio,enquantofincavaapernacontraa
trave.Espetou a sovela numdedo,mas não se importou.Não ficaria certamente
mudocomoosdoisbonecosdemel.Essahistóriatinha-oensinadomuito.
Veio a seroficial de sapateiro e amochila foi logo afivelada2.Finalmente, ia a
Copenhaga pela primeira vezna vida e já tinha lá ummestre.Ora!Como Joana
ficariasurpreendidaecontente!Elaagoratinhadezasseteeeledezanove.
Quiscomprar,aindaemKøge,umaneldeouroparaela,maspensouentãoque
certamente conseguiria ummuito mais bonito em Copenhaga. Despediu-se dos
velhos e partiu logo no Outono, a pé, à chuva e ao vento. As folhas caíam das
árvores.Molhadoatéaosossos,chegouàgrandeCopenhagaeacasadoseunovo
mestre.
NodomingoseguinteresolveufazerumavisitaaopaideJoana.Vestiuonovo
trajedeoficialeochapéunovodeKøgeficava-lhetãobem!Antesandarasemprede
barrete… Encontrou a casa que procurava e subiu as muitas escadas. Era de ter
vertigens. Como as pessoas estavam amontoadas umas sobre as outras, aqui, na
cidadeintricada!
Dentro da casa, tudo parecia indicar prosperidade, e o pai de Joana acolheu-o
amigavelmente.Paraamulher,eramaisumestranho,masdeu-lheamãoecafé.
—Joanavaialegrar-semuitoemver-te!—disseopai.—Tornaste-teumbelo
rapaz!…Bem,agoravaisvê-la!Sim,éumaraparigaquemedámuitaalegriaeainda
tereimais,seDeusquiser!Temosseusaposentospróprioseesteépagoporela!—
O próprio pai bateu suavemente à porta, como se fosse um estranho. Depois
entraram.Oh!Comoerabonito!Nãohavia seguramenteumaposento assimem
toda a Køge. Talvez nem a rainha tivesse um tão bonito! Havia alcatifa, havia
cortinasatéaochão,umacadeiradeveludoverdadeiroeàvolta flores,quadrose
um espelho no qual se podia quase entrar, pois era tão grande como uma porta.
Knudviutudoistoderelance;contudo,sóviuJoana.Estavaumaraparigacrescida,
completamente diferente do queKnud tinha imaginado,masmuitomais bonita!
NãohaviaemKøgeumadonzelacomoela,ecomoerafina!Olhouestranhamente
paraKnud,sebemqueapenasporumsómomento.Depoiscorreuparaele,como
se quisesse beijá-lo. Não o fez, mas esteve quase a fazê-lo. Sim, estava
verdadeiramentecontenteporveroseuamigodeinfância!Nãohavialágrimasnos
olhos?Edepoistinhamuitoqueperguntaredequefalar,desdeospaisdeKnudao
sabugueiroeaosalgueiro,eaesteschamavaaMãeSabugueiraeoPaiSalgueiro,
como se também fossempessoas, pois por estas podiammuito bempassar, como
podiam os bolos de mel. Destes falou ela também e do seu amor mudo, como
estiveramnobalcãoesedesfizeramempedaços,eentãoriucordialmente…maso
sangueardeunasfacesdeKnudeocoraçãobateu-lhemaisfortedoquenunca!…
Não, não tinha sido de modo algum arrogante!… Também fora por ela, bem o
notou,queospaislhepediramparaficartodaanoite,ofereceu-lhechá,elaprópria
lhedeuumachávena,depoispegounumlivroeleualtoparaelesefoiparaKnud
comosetudooquelessefossesobreoseuamor,correspondiatãobematodosos
seuspensamentos!Aseguircantouumacancãosimples,masveiocomelatodauma
história, eracomoseoprópriocoraçãobatessenesta.Sim,gostavacertamentede
Knud. Corriam-lhe lágrimas pelas faces, nada podia fazer contra isso, e não era
capaz de dizer uma única palavra. Parecia-lhe que era estúpido e, contudo, ela
tocou-lhenamãoedisse:
— Tens um bom coração, Knud! Sê sempre como és! Foi uma noite
incomparável,por issonãosepodiadormir,eKnudnãodormiu.Nadespedida,o
paideJoanadissera:
—Bem, agora não vais esquecer-nos! Vamos ver se não deixas passar todo o
invernoatévoltaresaver-nos!—Assimpodiavirnopróximodomingo!Ebemo
queriaele.Mastodasasnoites,quandoestavaterminadootrabalho,etrabalhavam
comluzacesa, iaKnudparaacidade.PassavapelaruaondeJoanamorava.Havia
quasesempreluz,eumanoiteviudistintamenteasombradoseurostonacortina.
Foi uma bela noite! Àmulher domestre não lhe parecia bem que à noite fosse
semprevadiar,comodizia,eabanavaacabeça,masomestresorria:
—Éjovem!—diziaele.
«Nodomingovamosver-nosedigo-lhecomoestánosmeuspensamentoseque
temdeviraserminhamulher!Sounarealidadeapenasumpobreoficialsapateiro,
maspossovirasermestre,pelomenosmestreporcontaprópria,heidetrabalhare
esforçar-me por isso…! Sim, digo-lhe isso, nada se ganha com o amor mudo,
aprendi-ocomosbolosdemel!
Chegouodomingo,eKnudveio,masquepoucasorte!Iamtodossair,tinhamde
dizer-lho.Joanatocou-lhenamãoeperguntou:
—Estiveste jáalgumaveznoteatro?Tensde lá irumavez!Cantonaquarta-
feirae, se tens tempo,voumandar-teumbilhete.Meupai sabeondemorao teu
mestre!
Como era amoroso da parte dela! Na quarta-feira pelo meio-dia chegou um
papelcomselosempalavras,masobilheteláestavaeànoiteKnudfoipelaprimeira
veznavidaaoteatroeoqueviu?…Sim,viuJoana,tãobela,tãoencantadora!Estava
verdadeiramente casada com um homem estranho, mas era teatro, algo que
representavam, sabiaKnud, senãonão tinha tomado a iniciativademandar-lheo
bilheteparaaver.Todaagentebatiapalmasegritava,eKnudgritouhurra!
OpróprioreisorriuparabaixoparaJoana,comosetambémsealegrassecomela.
Deus, como Knud se sentiu pequenino!Mas ele amava-a tão dentro de si e ela
também gostava dele, mas o homem tem de dizer sempre as primeiras palavras,
comopensavaadonzeladosbolosdemel.Nessahistóriamuitosecontinha!
Assimquechegouodomingo,Knuddirigiu-separalá!Tinhaumadisposiçãode
espírito comopara a comunhão. Joanaestava sóe recebeu-o.Nãopodia sermais
propício.
—Foibomquetivessesvindo!—disseela.—Estivequaseparamandar-temeu
pai,mastiveumpressentimentodequevinhascomcertezaestanoite.Poistenhoa
dizer-tequepartonasexta-feiraparaFrança.Tenhodeirparaquesepossafazer
algovaliosodemim!
ParaKnudfoicomoseasalaandasseàroda,comoseocoraçãoselhequebrasse,
masnãolhevieramlágrimasaosolhos.Contudo,foibemvisívelquãotristeficou.
Joanaviu-oeestevequaseachorar.
—Quehonestoelealés!—disseela…Entãosoltou-sealínguaaKnud,disse-
lhe quanto gostava dela e que tinha de vir a ser suamulherzinha.Enquanto lho
dizia,viuqueJoanaficavapálidacomoumcadáver.Soltou-lheamãoedissegravee
triste:
—Nãotefaçasatieamiminfelizes,Knud!Sereiparatisempreumaboairmã
comquempodes contar…!Masmais não!—E afagou-lhe a testa quente com a
mãosuave.—Deusdá-nosforçasparamuito,quandonósprópriosqueremos!
Entrou,então,nessemomentoamadrasta.
—Knudestácompletamenteforadesi,porquevoupartir!—disseela.—Sê,
pois, um homem!— E bateu-lhe nos ombros. Era como se tivessem falado da
viagemenãodeoutracoisa.—Criança!—acrescentou.—Eagoravaisserbome
razoável,comosobosalgueiro,quandoamboséramoscrianças!
Para Knud foi como se tivesse desaparecido um pedaço do mundo, os seus
pensamentoseramcomoumfio solto, semvontade, aovento.Ficou,não sabia se
lho tinham pedido,mas foram amáveis e bons, Joana ofereceu-lhe chá e cantou.
Não era o tom antigo e, contudo, tão maravilhosamente belo! Era de partir o
coração,depoisdespediram-se.Knudnão lhe estendeuamão,mas ela tomou-a e
disse:
— Dás com certeza a mão à tua irmã para despedida, meu velho irmão de
brinquedos!
—Esorriucomlágrimasquelhecorriampelasfaces,repetindo:
—Irmão.
—Estábem,deveservirdemuito!—disseele.Foiassimadespedida.
ElapartiudebarcoparaFrança,Knudandoupelas ruas sujasdeCopenhaga…
Os outros oficiais da oficina perguntaram-lhe porque estava assim e o que
ruminava.Deviaircomelesdivertir-se,eraumrapaznovo.
Foram juntos a um baile onde havia muitas raparigas bonitas mas nenhuma
verdadeiramentecomoJoana,eondeelecriaesquecê-la,aliestavaelaemcorpoe
almanosseuspensamentos.—Deusdá-nosforçasparamuito,quandoqueremos
—tinha dito ela. Sentiu-se invadido por devoção, juntou a smãos… e os violinos
tocavameas raparigasdançavamàvolta.Ficoumuitoassustado,pareceu-lheque
estavanumlugarondenãopodialevarJoana,maselaestavacomelenocoração…e
assimsaiu,correupelasruas,passoupelacasaondeelatinhamorado,estavaescuro,
portodaaparteestavaescuro,vazioesolitário.Omundoseguiaoseucaminhoe
Knudoseu.
Veio o inverno e as águas congelaram, como se tudo se preparasse para um
enterro.
Masquandoaprimaverachegoueoprimeirobarcoavaporpartiu,entãosentiu
umagrandeânsiadeirparafora, longenovastomundo,masnãoparademasiado
pertodaFrança.
Assimafivelouamochilaevagueouatélonge,naAlemanha,decidadeemcidade,
sem um momento de descanso. Quando chegou à velha e bela cidade de
Nuremberga,foicomoseafúriadeandarselhedespegassedossapatos,sentiu-se
capazdeficar.
É uma velha cidade maravilhosa, como que recortada de uma crónica com
iluminuras.As ruasestãocomo lhesapetece, as casasnãogostamde ficaremfila.
Vãosdejanelacomtorrinhas,volutaseestátuassaltamparaopasseioe,doaltodos
telhados maravilhosamente combinados, correm a meio sobre as ruas goteiras
formadascomodragõesecãescorpulentos.
Knudparounapraçadomercado,comamochilaàscostas.Paroujuntodavelha
fonte,ondeestãoasmaravilhosas figurasdebronze,bíblicasehistóricas,entreos
jatos de água saltitantes…Uma criada bonita, que tirava então água, deu aKnud
algumaparaserefrescar;comotinhaumagrandemão-cheiaderosas,ofereceu-lhe
tambémumaeissopareceu-lheumbompresságio…
Aopédaigrejaveioosomdoórgãoatéele,soavacomosefossenapátria,como
seviessedaigrejadeKøge,eentrounagrandecatedral.Ládentro,oSolbrilhava
através dos vitrais, entre as colunas altas e elegantes. Houve devoção nos seus
pensamentos,desceutranquilidadeaoseuespírito.
Procurou e encontrou um bommestre emNuremberga, ficou em casa dele e
aprendeualíngua.
Osvelhosfossosàvoltadacidadeestãotransformadosemhortaspequenas,mas
asaltasmuralhasaindaláestão,comtorrespesadas.Oscordoeirostorcemascordas
nagaleria construídapor vigas foradasmuralhasparadentroda cidade, e aqui à
voltadasfendaseburacoscrescemsabugueiros,quedeixampenderosramossobre
ascasinhasbaixasenumadelasmoravaomestreemcasadequemKnudtrabalhava.
Sobreapequenajaneladotelhadosoboqualdormiadeixavaosabugueirocairos
ramos.
Aquimoroueleumverãoeuminverno,masquandoaprimaverachegounada
houveque o sustivesse.Os sabugueiros estavam em flor e lançavamumperfume
comonapátria,eracomoseestivessenojardimemKøge…Abandonouomestree
foiparaoutrolugar,maislonge,nacidade,ondenãohaviasabugueiros.
Foi junto de uma das antigas pontes muradas, precisamente por cima de um
moinhode água, baixo, sempre a rugir,que ficou a trabalharnumaoficina.Fora
havia apenas uma ribeira que ficava encerrada por casas, todas guarnecidas com
velhasvarandas frágeis.Pareciamquererabalá-laspara tombaremnaágua…Aqui
nãocrescianenhumsabugueiro,nãohaviamesmonenhumvasocomumpoucode
verdura,masprecisamenteemfrenteestavaumgrandesalgueirovelhoqueparecia
agarrar-seàcasaafimdenãoserarrastadopelacorrente.Lançavaosramossobrea
ribeira,exatamentecomoosalgueironojardimjuntoaoriodeKøge.
Sim, tinha verdadeiramente fugido daMãe Sabugueira para o Pai Salgueiro.
Aquelaárvore,especialmentenasnoitesdeluar,tinhaalgo,comquesesentiu:
«…emespíritotãodinamarquêsaoluar!»
Masnãoerademodoalgumoluarqueassimofazia,não,eraovelhosalgueiro.
Não podia suportá-lo, e porque não? Pergunta ao salgueiro, pergunta ao
sabugueiroflorido!…eassimdisseadeusaomestreeaNurembergaepartiupara
maislonge.
AninguémfalavadeJoana.Dentrodesiescondiaasuadorepunhaumsentido
especial na história sobre os bolos de mel. Agora compreendia porque o bolo-
cavalheiro tinha uma amêndoa amarga à esquerda, ele próprio sentia um gosto
amargo, e Joana, que era sempre tão doce e sorridente, era só bolo demel. Era
comoseascorreiasdamochilaoapertassemdetalmodoquelheeradifícilrespirar,
soltou-as,masnão serviudenada.Domundo sómetadeestava foradele, aoutra
metadetraziaeledentrodesi.Assimera!
Só quando viu as altas montanhas, o mundo se lhe tornou maior. Os seus
pensamentos voltaram-se para fora, saltaram-lhe lágrimas dos olhos. Os Alpes
pareceram-lhe as asas fechadas domundo.Onde as erguia, estendiam-se grandes
penascomcoresvariegadasdebosquesnegros,águasimpetuosas,nuvensemassas
deneve!«NodiadoJuízoFinal, aTerraergueasgrandesasas, voaparaDeuse
rebentacomoumabolhanosSeusclarosraios!—Oh!Quemmederaquefossejáo
diadoJuízoFinal!»,suspirou…Tranquilo,vagueoupelopaís,quelhepareceuum
pomar verdejante. Das varandas de madeira das casas, raparigas, fazendo renda,
acenavam-lhe;oscumesdasmontanhasbrilhavamaoSolrubrodatarde,equando
viuoslagosverdesentreárvoressombrias…pensou,então,napraiadabaíadeKøge.
Ehouvetristeza,masnenhumadornoseupeito.
Ali,ondeoReno,comoumaúnicalongaondarolaemfrente,tomba,rebentaese
transformaemmassasdenuvens claras, brancasdeneve, como se fosse aprópria
criaçãodasnuvens…oarco-írisflutuacomoumafitasolta…pensounosmoinhosde
águaemKøge,ondeaáguasussurravaesaltitava.
Gostaria de ter ficado na tranquila cidade do Reno, mas havia muitos
sabugueiros e muitos salgueiros… e assim continuou caminho. Sobre as altas
montanhasimponentes,atravésdaspedreirasepeloscaminhosque,comoninhosde
andorinhas, estavam colados às paredes de pedra. A água espumava no fundo, as
nuvensficavamporbaixodele.Sobrecardosbrilhantes,rosasalpinaseneve,entrou
no Sol quente de verão… disse assim adeus às terras doNorte e desceu para os
castanheiros, entre vinhedos e campos de milho. As montanhas eram um muro
entreeleetodasasrecordações,eassimtinhadeser.
Na sua frente estava uma cidade grande e bonita que se chamavaMilão, aqui
encontrou ummestre alemão, que lhe deu trabalho.Era um velho casal honesto
para cuja oficina entrou. Ganhou afeto o oficial calmo, que falava pouco,
trabalhava,portanto,maisesemostravacristãopio.EracomoseDeuslhetivesse
tiradoopesadofardodocoração.
O seumaior prazer era subir à imponente igreja demármore, que lhe parecia
construídacomnevedasuaterraeformadaporfiguras,torresaltaseátriosabertos
decoradoscomflores.Decadacanto,decadapontaearco,sorriam-lheasestátuas
brancas… Por cima, ele tinha o céu azul, por baixo, a cidade e a verde planície
lombarda estendendo-se até longe, e para o norte as altas montanhas com neve
eterna…assimpensounaigrejadeKøgecomrebentosdeheraemvoltadasparedes
vermelhas, mas não sentia nenhum anseio. Era por detrás das montanhas que
queriaviraserenterrado.
Tinhavividoaquiumano,masjáfaziatrêsanosquepartiradapátria.Entãoo
mestrelevou-oàcidade,nãoàarenaparaveroscavaleirosartistas,massimàgrande
ópera,queeraumasaladignadesever…Emseisandaressuspendiam-secortinasde
seda.Dochãoatéaoteto,numaalturavertiginosa,estavamsentadasasmaisfinas
damascomramosdefloresnasmãos,comoseestivessemnumbaile,eoscavalheiros
mostravam--se nos seus fatos de gala,muitos comprata e ouro.Estava tão claro
comoaluzdoSolmaisclara,quandoirrompeuamúsica,tãoforteetãobela!
EramaisfaustosodoqueoteatroemCopenhaga,masláestavaaJoana.Aqui…
Sim,aquifoicomoqueumencanto.Ascortinascorreramparaosladosealiestava
ela,vestidadeouroeseda,comumacoroadouradanacabeça.Cantoucomosóum
anjodeDeuspodecantar.Veioàfrente,sorriu,comosóJoanaosabiafazer.Olhou
diretamenteparaKnud.
OpobreKnudagarrouamãodomestreegritou:«Joana»,masninguémoouviu,
osmúsicostocavamtãoforte!Omestreacenou-lhe:
— Sim, chama-se realmente Joana!—Depois pegou numa folha impressa e
mostrou-lhequeestavaalioseunome,onomecompleto.
Não,nãoeranenhumsonho!Todasaspessoasexultavamdiantedela,atiravam-
lhefloreseramosedecadavezqueseiaembora,iaevinhaevoltavaair.
Cáfora,narua, juntou-segenteàvoltadacarruagem,puxaram-na.Knud,que
estava à frente de todos, era o que mais entusiasmado se mostrava, e, quando
chegouàbela casa iluminadaonde Joanamorava,Knudestavamesmoàportada
carruagem,queseabriu,elasaiu,ealuzbrilhoudiretamentenoseurostoamoroso,
esorriu,agradeceutãodocementepoisestavatãocomovida!Knudolhou-abemno
rostoeelaolhouKnudbemnorosto,masnãooreconheceu.Umsenhorcomuma
estrelaaopeitoestendeu-lheobraço…estavamnoivos,dizia-se.
AssimKnudfoiparacasaeapertouasfivelasdamochila.Queriaetinhadevoltar
paraosabugueiroeosalgueiro…Ai!Sobosalgueiro!Numahorapodeviver-setoda
umaexistência!
Pediram-lheparaficar.Nenhumaspalavraspuderamretê-lo.Disseram-lheque
estavaaviroinverno,quejácaíanevenasmontanhas.Masnorastodacarruagem
deandamentolento…quedeviaabrir-lheocaminho…podiair,comosacoàscostas,
apoiadonobastão…
Foi para asmontanhas, por elas acima, por elas abaixo.Enfraquecido, não via
aindaqualquercidadeoucasa.IaparaoNorte.Asestrelasacenderam-seporcima
dele,ospésvacilavam,acabeçasentiavertigens.Lánofundo,novale,acenderam-
se também as estrelas, era como se o céu se estendesse por baixo dele. Sentiu-se
doente.Asestrelasláembaixoeramcadavezmaisesempremaisclaras,moviam-se
aquieacolá.Haviaumacidadezinhaondepiscavamasluzes.Quandodeuporisso,
esforçou-see,comasúltimasforças,alcançouumpequenoalbergue.
Ficou aí instalado todoumdia e umanoite, pois osmembros necessitavamde
repousoetratamento.Novaleaneveestavameioderretida.Umamanhãcedoveio
umtocadorderealejo,tocavaumacançãodapátria,daDinamarca,e,então,Knud
não pôde aguentarmais… andou dias,muitos dias, commuita pressa, como se se
tratassederegressaràterra,antesquelátodosmorressem…Masaninguémfalou
dasuasaudade,ninguémpodiacrerquesofriaumadordecoração,amaisprofunda
quesepodesofrer.Nãoécoisaparaomundo,nãoédivertido,nãoétambémpara
amigoseelenãotinhaamigos!Estranho,iaemterraestranha,paraapátria,parao
Norte.Naúnicacartadecasaqueospaishámuitotempolhetinhamescritoestava:
«Tu não és verdadeiramente dinamarquês, como nós aqui! Nós somo-lo
enormemente!Tusógostasdasterrasestrangeiras!»Ospaispodiamescreverisso…
sim,conheciam-nobem!
Eranoite,iapelocaminhoaberto,começavaafazerfrio.Aterraiaficandocada
vezmaisplanacomcamposeprados.Juntoaocaminhoestavaumsalgueirogrande.
Tudopareciacomonapátria,tãodinamarquês!Sentou-sesobosalgueiro,sentia-
setãocansado,acabeçapendia-lhe,osolhosfechavam-se-lheparadescansar.Mas
elesentiaepressentiacomoosalgueiroabaixavaosramosparaele,aárvoreparecia
um velho robusto, era o próprio Pai Salgueiro que o levantava nos braços e
transportavaofilhocansadoparaapátria,paraaterradinamarquesa,juntodapraia
branca, para a cidade deKøge, para o jardimda sua infância. Sim, era o próprio
salgueirodeKøge,quetinhaidopelomundoàsuaprocuraeagoraencontrava-oe
trazia-oparaapátria,paraojardinzinhojuntoàribeiraeaquiestavaJoanaemtodo
o seu esplendor coma coroadeourona cabeça, comoa tinha vistoultimamente,
queexclamava:—Bem-vindo!
Diretamente diante dele estavam duas figuras estranhas, mas pareciammuito
maishumanasdoquenotempodainfância,tambémtinhammudado.Eramosdois
bolosdemel,ocavalheiroeadonzela.Estavamvoltadosdefrenteparaeleetinham
bomaspeto.
—Obrigado!—disseramambosaKnud.—Soltaste-nosa língua!Ensinaste-
nos que se deve confiantemente expressar o pensamento, senão nada resulta! E
agoraresultoualgo!…Estamosnoivos.
Foram demãos dadas pelas ruas deKøge emostravam-semuito decentes por
detrás. Nada havia a dizer! Foram logo na direção da igreja, e Knud e Joana
seguiram-nos. Também iam de mãos dadas e a igreja estava como antes, com
paredesvermelhaseabelaverduradehera,aportagrandedaigrejaabriu-separa
ambososlados,oórgãosooueocavalheiroeadonzeladirigiram-separaanave.
—A senhora eo senhorprimeiro!—disserameles, «osnoivosbolosdemel»,
depois desviaram-se cada um para seu lado, para dar lugar a Knud e Joana, eles
ajoelharam-se,elabaixouacabeçasobreorostodele,erolaram-lhe lágrimasfrias
degelo,quederretiamemvoltadocoraçãocomoforteamordeKnud,ecaíamnas
suasfacesafogueadas…acordouassim,masestavasentadosobovelhosalgueiroem
terraestranhananoitefriadeinverno.Dasnuvenstombavagranizoregelanteque
lhechicoteavaorosto.
—Foio tempomaisbelodaminhavida!—disse.—Efoiumsonho…Deus,
deixa-mesonhá-looutravez!—Fechouosolhos,adormeceu,sonhou.
Demanhãcedocaiuneve,amontoou-sesobreosseuspés,eledormia.Agenteda
terradirigia-seàigreja.Estavaalisentadoumoficialartífice,mortoregelado…sob
osalgueiro.
1-VorFrueKirke—IgrejadeNossaSenhora.(N.doT.)(Voltar)
2 -Nos países doNorte e na Alemanha, certos artífices, como os sapateiros,
usavam,quandooficiais, um traje comque se distinguiam.Era também costume
nos sapateiros, após a aprendizagem, fazer uma viagem demorada por outras
regiões.(N.doT.)(Voltar)
JoãoPateta
Lá para o campo havia um solar antigo e nele habitava um velho senhor que
tinhadois filhos,queeramtãoespirituososquemetade seria suficiente.Queriam
pedirafilhadoreiemcasamentoepodiamfazê-lo,porqueelamandaraanunciar
quetomariacomomaridoaquelequeelaachassequemelhorpodiafalarporsi.
Osdoisprepararam-seemoitodias—eraoprazomáximoquetinhamparaisso
—,e eraobastante,pois tinhamconhecimentosprévios e estes são sempreúteis.
Umsabiade cor todoo léxicode latimeo jornalda cidadedesdehá três anos, e
ambosdefrenteparatrásedetrásparaafrente.Ooutrofamiliarizou-secomtodos
osartigosdascorporaçõesdeartesãoseoquecadamestredeviasaber.Podiaassim
discutirsobreoEstado,pensavaele.Alémdissosabiatambémbordarsuspensórios,
poiserafinoehabilidosodemãos.
—Voubuscarafilhadorei!—disseramambos,peloqueopaideuacadaum
um belo cavalo.O que sabia o léxico e os jornais recebeu um negro de carvão e
aquelequeerasabedordascoisasdosmestresequebordavarecebeuumbrancode
leite, e depois untaram os cantos da boca com óleo de fígado de bacalhau para
ficaremmais flexíveis.Estava todaa criadagemembaixo,nopátio, avê-los subir
paraoscavalos.Nessemomentochegouoterceiroirmão,poiseramtrês,masnão
havia ninguém que o considerasse como irmão, porque não tinha tanta erudição
comoosoutrosdoise,porcausadisso,chamavam-lhesimplesmenteJoãoPateta.
—Ondevão,assimtãoaperaltados?—perguntou.
— À corte para falarmos e ganharmos a filha do rei! Não ouviste o que os
tamboresanunciaramportodoopaís?—Econtaram-lho.
—Comabreca,tambémtenhodeir!—disseJoãoPateta,masosirmãosriram
deleepartiram.
— Pai, dá-me um cavalo também! — exclamou o João Pateta. — Sinto tal
vontade de casar-me!Se a princesamequiser, quer-me!E se nãomequiser, eu
quero-anamesma!
—É disparate!— disse o pai.—Não te dou nenhum cavalo.Não sabes, na
verdade,falar!Não,osteusirmãossãorapazesmaisapresentáveis!
—Senãopossoterumcavalo—afirmouJoãoPateta—,levoobode,queémeu
epodebemcomigo!
Pôs-sea cavalonobode,espetouoscalcanharesnas ilhargasdoanimaleestee
partiuàdesfiladapelaestradafora.Ui!Comoandava!—Aquivenhoeu!—dizia
JoãoPatetaecantavaqueatéressoava.
Mas os irmãos cavalgavam calmamente à sua frente.Nãodiziamumapalavra,
tinhamdepensar em todas as boas ideiasquequeriam levar consigo,pois seriam
necessáriasmuitasagacidadeeesperteza!
—Olá!— gritou João Pateta.—Aqui venho eu! Vejam o que encontrei na
estrada!—Emostrou-lhesumagralhamortaqueencontrara.
—Pateta!—afirmarameles.—Quequeresfazercomisso?
—Querodá-ladepresenteàfilhadorei!
—Estábem,dá-lha!—disserameles,rindo,econtinuaramacavalgar.
—Olá!Aquivenhoeu!Vejamoqueencontreiagora.Nãoseencontradestas
coisastodososdiasnaestrada!
Osirmãosviraram-seoutravezparaveroqueera.—Pateta!—disseram.—É
umvelhotamancodepau,cujapartesuperiorsedesprendeu!Tambémvaisdarisso
àfilhadorei?
—Vou,pois!—retorquiuJoãoPateta,osirmãosriram,continuaramacavalgar
edistanciaram-semuito.
—Olá!Aquiestoueu!—gritoudenovoJoãoPateta.—Não,agoravaisercada
vezpior!Olá!Éextraordinário!
—Queencontrasteagora?—perguntaramosirmãos.—Oh!—exclamouJoão
Pateta.—Nãoécoisaparasedizer!Comovaificarcontente,afilhadorei!
—Ui!—disseramosirmãos.—Élamaqueavaletalançouparaaestrada.
— Sim, é isso!— confirmou João Pateta.— É da mais fina espécie, não se
consegueagarrar!—Eencheuasalgibeiras.
Mas os irmãos cavalgaram tanto quanto as roupas podiam aguentar, e assim
chegaram uma hora antes e pararam à porta da cidade. Aí, os pretendentes,
conformeiamchegando,recebiamumnúmeroeerampostosemfilas,seisemcada
fileira,mas tão juntosquenãopodiammexer os braços.Assimestavamuitobem
pensado, senão ter-se-iamrasgadoas costasdos fatos, simplesmentepara ficarem
unsàfrentedosoutros.
Todososoutroshabitantesdopaísseamontoavamàvoltadocastelo,espreitando
atépelas janelas,paraverema filhadorei receberospretendentes.Logoqueum
delesentravanasala,faltava-lheodomdafala.
—Nãopresta!—diziaafilhadorei.—Fora!
Entãoveioaqueledosirmãosquesabiaoléxicodecor,masesqueceu-seporque
esteveemfila.Ochãorangeueotetoeradeespelho,demodoqueseviudecabeça
parabaixo.Emcada janela estavamtrês escribas eummestre, cadaumdosquais
escrevia tudo o que se dizia para que pudesse vir rapidamente no jornal e ser
vendido, à esquina, por dois xelins.Era terrível,mas também tinham acendido o
fogãodeaquecimentodetalmodoqueotamborestavaaorubro.
—Estáumgrandecaloraquidentro!—disseopretendente.
—Éporqueomeupaiestáhojeaassarfrangos!—afirmouafilhadorei.
—Bé!—Alificou.Aquelaconversanãoesperavaele.Nemumasópalavrafoi
capazdedizer,poisqueriaterditoalgodivertido.
—Nãopresta!—disseafilhadorei.—Fora!—Eassimtevedeseirembora.
Veioentãoooutroirmão.
—Estáaquiumcalorterrível!—começouele.
—Sim,estamosaassarfrangoshoje!—disseafilhadorei.
—Oquêbê…oquê?—perguntouele,etodososescribasescreveramoquêbê…
oquê.
—Nãopresta!—exclamouafilhadorei.—Fora!
VeioentãoJoãoPateta,quelogoentrouparaasalaemcimadobode.—Estáum
caloresbraseante!—disseele.
—Éporqueestouaassarfrangos!—respondeuafilhadorei.
—Apraz-meisso!—acrescentouJoãoPateta.—Possoassimassarumagralha?
—Podemuitobem!—retorquiuafilhadorei.—Mastemalgumacoisaonde
possafazeroassado?Équeeunãotenhonempanelanemfrigideira!
—Mastenhoeu!—disseJoãoPateta.—Aquiestáoutensíliodecozinhacom
rebordoeestanho!—Puxoupelovelhotamancoepôsagralhaemcima.
—Chega para toda uma refeição!—disse a filha do rei.—Mas onde vamos
arranjaromolho?
—Tenho-oaquinasalgibeiras!—respondeuJoãoPateta.—Tenhotantoque
possoderramá-lo!—Eassimesvaziouumpoucodelamadosbolsos.
—Distogostoeu!—disseafilhadorei.—Sabesrealmenteresponder!Sabes
falar e a ti te quero comomarido!Mas sabes que toda a palavra que dizemos e
dissemoséescritaevemamanhãno jornal! Juntoacada janelavêsqueestão três
escribaseumvelhomestremasomestreéopior,poisnãoconsegueentender!—
Istodisseelasóparalhemetermedo.Todososescribasrincharamedeitaramum
borrãodetintanochão.
—Jáchega,meussenhores!—disseJoãoPateta.—Tenhodedarumpresente
aomestre!—Virouasalgibeiraselançou-lhelamaàcara.
—Foimuitobemfeito!—disseafilhadorei.—Issonãoeraeucapazdeter
feito!Masvouaprender!
AssimJoãoPatetaveioaserrei,tevemulhereumacoroaesentou-senotrono.
Istosabemosdiretamentepelojornaldomestre.Eistoéparanãoacreditar.
OSapo
O poço era fundo, por isso a corda era comprida. A roldana rodava com
dificuldadequandosepuxavaobaldecomáguaparaabordadopoço.OSolnunca
conseguiadescerparaseespelharnaágua,pormuitoclaraquefosse,masatéonde
chegavaoseubrilho,cresciaaervaentreaspedras.
Viviaaíuma famíliada raçados saposque imigraraequecaíradecabeçapara
baixo, com a velha sapa-mãe ainda viva. As rãs verdes, que há muito tempo ali
estavam instaladas e nadavam na água, reconheceram-nos como primos e
chamaram-lhes«hóspedesdopoço».Estestraziamopropósitodeaíficar.Viviam
alimuitoagradavelmentenoseco,comoeleschamavamàspedrashúmidas.
Arã-mãe jáanteshaviaviajado.Estiveranobaldedeágua,quandoeste iapara
cima,mashaviamuitaluz,ficoucomimpressõesnosolhos.Tevesorteaoescapar-
sedobalde,caiucomumaterrívelchapinhadanaáguaeaíficoutrêsdiascomdores
nascostas.Nãopodiacontarmuitodomundoqueviuláemcima,maselasabiae
sabiamtodosqueopoçonãoeratodoomundo.Asapa-mãebempodiatercontado
algumacoisa,masnuncarespondiaquandolheperguntavam,eassimninguémlhe
perguntavanada.
—Forte e feia, disforme e gorda é ela!—diziam as jovens rãs verdes.—Os
filhotessãoigualmentedisformes!
—Atépodeser!—disseasapa-mãe.—Masumdelestemumapedrapreciosa
nacabeça,ouentãotenho-aeu!
As rãs verdes ouviram e olharam pasmadas, como não gostaram disso fizeram
caretaseforamparaofundo.Masossapinhosbateramcomaspernastraseirascom
puro orgulho. Cada um deles acreditava que tinha a pedra preciosa, pelo que
ficaramcompletamentequietoscomascabeçasmas,porfim,perguntaramporque
sesentiamorgulhososeoqueera,naverdade,umapedrapreciosa.
— É algo tão magnífico e precioso — disse a sapa-mãe — que não posso
descrevê-lo.Éalgocomqueandamosparanossopróprioprazereque,porisso,aos
outrosarrelia.Masnãoperguntesmais,queeunãorespondo!
—Sim,nãotenhonenhumapedrapreciosa!—disseosapomaispequeno.Era
tãofeio,quemaisnãopodiaser.—Porquedeveriadetercoisatãomagnífica?E,se
a outros arrelia, tambémnão posso ter prazer nisso!Não!Só desejo poder subir
umavezatéàbordadopoçoeolharparafora.Devesermaravilhoso!
—Ficaantesondeestás!—avisouavelha.—Jáconhecesesabesoqueé!Toma
atenção ao balde, faz-te em papas. Se vais nele, podes cair para fora, nem todos
caemassimcomsorte,comoeu,quefiqueicomosmembrostodoseosovostodos!
—Quá!—disseopequeno,talcomonós,oshomens,quandodizemos«ai!».
Sentia um grande desejo de vir acima, até à borda do poço, e olhar para
fora!Sentiaumtãograndeanseiopelomundoverdeláemcima!
Quandonamanhã seguinte,poracaso,obaldecheiodeágua foipuxadoepor
ummomento ficouparadodiantedapedraondeestavao sapo, lápalpitouaquilo
dentrodoanimalzinho,quesaltouparaobaldecheio,foiaofundodobaldeedepois
veioàtona,saltandoparafora.
—Raios te partam. Fora daqui!— disse o homem que o viu.—É domais
nojentoquetenhovisto!—Edeuumpontapécomotamanconosapo,quequase
ficoumutilado,masconseguiusafar-separadentrodasaltasortigas.Viaaícauleao
lado de caule, via também para cima! O Sol brilhava nas folhas. Eram
completamente transparentes. Para ele, era como para nós, homens, quando, de
súbito, entramos num grande bosque onde o Sol brilha por entre os ramos e as
folhas.
—Aquiémuitomaisbonitodoqueláembaixonopoço!Aquitem-sevontade
deficartodaavida!—disseosapinho.Ficouláumahora,ficouláduas!—Como
serálámaisparacima?Jáquevimtãolonge,vouaindamais longe!—Saltoutão
rapidamentequantopodiaeatravessouocaminho,comoSolabrilharsobreelee
comopóapolvilhá-lo.
—Aqui está-se verdadeiramenteno seco!—exclamouo sapo.—Estou a ter
tantoetãodemasiadodaquiloqueébom,queatémeaflige!
Atingiuentãoavala.Cresciamaímiosótiseulmárias,haviasebesespessasjuntoa
salgueiros e espinheiros alvares. Cresciam mangas-de-camisa-branca-de-maria
comotrepadeiras.Alihavia coresparaapreciar.Voava tambémumaborboleta.O
sapo julgou que era uma flor que se voltara paramelhor ver omundo.Era bem
verosímil.
—Se sepudesse viajar assimcomoaquela…—disseo sapo.—Quá!Ai!Que
beleza!
Ficouoitonoiteseoitodias juntodavalaenãolhefaltoucomida.Aononodia
pensou: «Avante!» Mas que mais maravilhas se podiam encontrar? Talvez um
sapinho ou algumas rãs verdes.Tinha-lhe soado na noite passada, no vento, que
havia«primos»navizinhança.
—Étãobomviver!Subirparaforadopoço,deitar-senasortigas,saltarparao
caminhopoeirentoerepousarnavalahúmida!Masavante!Vejamosseencontrorãs
ouumsapinho.Issonãopossodispensar.Paramim,anaturezajánãoésuficiente!
—Evoltouapôr-seaocaminho.
Entrou num campo que dava para um charco grande com caniços em redor.
Tentousaltarparaocharco.
—Aquiédemasiadohúmidoparaosenhor?—perguntaramasrãs.—Masseja
muito bem-vindo! Diga-nos: é um ou uma? É o mesmo. De qualquer modo, é
bem-vindonamesma!
E foi convidado para o concerto à noite, um concerto familiar. Grande
entusiasmo e vozes finas! Conhecemo-los. Não havia banquete, apenas bebidas
grátis.Todoocharco,sesequiser.
—Voltoaocaminho!—disseosapinho.Sentiasempreodesejodealgomelhor.
Viuasestrelasbrilharem,tãograndesetãoclaras,viualuanovaluzir,viuoSol
levantar-se,maisaltoemaisalto.
— Ainda estou no poço, num poço maior, tenho de ir mais alto! Sinto
inquietação e anseio!—Quando a Lua ficou cheia e redonda, pensou o pobre
animal: «Gostariade saber se éumbaldequevaidescer e se eupodia saltarpara
dentropara subirmais alto?OuéoSolograndebalde?Comoégrande, comoé
brilhante, podia conter-nos a nós todos juntos! Tenho de adaptar-me às
circunstâncias!Oh!,comobrilhanaminhacabeça!Nãocreioqueapedrapreciosa
possabrilharmais!Masnãoatenhoenãochoroporela,não,oSolémaisaltoem
esplendoreprazer!Tenhoacertezae,contudo,medo…éumpassodifícildedar!
Mastemdeserdado!Avante!Jáparaaestrada!
Deuopasso,comoumbatráquioopodedareestavaagoranaestradaprincipal,
ondeviviamoshomens.Haviatantosjardinsdefloresehortas.Repousoujuntode
uma.
—Queenormevariedadehánacriação!Nãosabia!Ecomoomundoégrandee
maravilhoso!Deve-seirvê-loenãoficarparadonumúnicolugar.—Saltoupara
dentrodahorta.—Comoétudoverdeaqui!Comoébonitoaqui!
—Bemosei!—dissealagartanafolhadecouve.—Aminhafolhaéamaior!
Ocultameiomundo,masnãopossodispensá-la!
Cluque! Cluque! Ouviu-se. Aproximavam-se as galinhas que passeavam na
horta.Agalinhaquevinhaàfrenteviabemaolonge.Lobrigoua lagartanafolha
onduladaelançou-seacorrerparaela,detalmodoquealagartacaiu,enroscando-
seevirando-sedebarrigaparaoar.Agalinhaolhouprimeirocomumolho,depois
comooutro,poisnãosabiaoquepoderiaviradaraquelebichinhoterficadoassim
enroscado.
«Estevermenãofazistovoluntariamente!»,pensouagalinhaelevantouacabeça
paraatacaralagarta.Osapoficoutãoaflitoquesaltounadireçãodagalinha.
—Tementãotropasdesocorro!—disseela.—Olha-meparaaquelebicho!—
Depois virou-lhe as costas.—Nãome interessa aquela coisinha verde que nem
chegaafazercócegasnagarganta.—Asoutrasgalinhasforamdamesmaopiniãoe
afastaram-se.
— Escapei-lhe, enrolando-me!— disse a lagarta.— É bom ter presença de
espírito,masrestaomaisdifícil,voltarasubirparaaminhafolhadecouve.Onde
estáela?
O sapinho quis expressar a sua simpatia. Foi divertido que ele, com a sua
fealdade,tivesseassustadoasgalinhas.
—Quequer dizer com isso?—perguntou a lagarta.—Escapei-medela por
méritomeu.Émuitodesagradável olharpara si!Posso estarnaquiloque émeu?
Cheira-meà couve!Estou agoranaminha folha!Nãohánadamaisbelodoque
aquiloqueédenóspróprios.Mastenhodesubirmaisalto!
—Sim,maisalto!—disseosapinho.—Maisalto!Issosintoeutambém!Mas
nãoestábem-dispostahoje.Foidomedo.Todosqueremos subirmaisalto!—E
olhouparaoaltotantoquantopodia.
Acegonhaestavanoninhonotelhadodacasadocamponês.Acegonha-paifalava
eacegonha-mãefalava.
«Comovivemtãoalto!»,pensouosapo.«Quempudessesubirláacima!»
Na casa do camponês viviam dois jovens estudantes. Um era poeta e o outro
cientista.Um cantava e escrevia na alegria de queDeus criara tudo e que se lhe
refletiano coração.Cantava-ode forma curta, clara e rica, emversos sonoros.O
outrotomavaascoisasporsipróprias,sim,dissecava-asquandoassimtinhadeser.
TomavaaobradeNossoSenhorcomoumgrandeproblemaaritmético,subtraía,
multiplicava,queriasabertudoporforaepordentroefalarcomconhecimento—e
com todo o entendimento— e falava da obra com alegria e inteligência. Eram
ambospessoasboasealegres.
— Está ali um belo exemplar de sapo! — disse o cientista. — Tenho de o
apanharparaoconservaremálcool!
—Játensdois!—observouopoeta.—Deixa-oestaremsossegoeadivertir-se!
—Masétãomaravilhosamentefeio!—referiuooutro.
—Sim,sepudéssemosencontrarapedrapreciosanasuacabeça!—exclamouo
poeta.—Entãoseriaeupróprioadissecá-lo.
— Pedras preciosas! — exclamou o outro. — Conheces bem a história da
natureza!
—Masnãoéalgomuitobelonacrençadopovodequeosapo,oanimalmais
feio, ocultamuitas vezesna cabeça a tãodesejadapedrapreciosa?Não sepassao
mesmo com os seres humanos?Que pedras preciosas não teveEsopo, e também
Sócrates?…
Maisnãoouviuosapo,enãocompreendeunemmetade.Osdoisamigosforam-
seemboraeeleescapou-sedeserpostoemálcool.
—Falavam,portanto,dapedrapreciosa!—disseo sapo.—Ébomqueanão
tenha,senãoestavaagorametidoemsarilhos!
Ouviram-se, então, vozes no telhado da casa do camponês.Era a cegonha-pai
quefaziaumdiscursoàfamíliaeestaolhavadeladoparabaixo,paraosdoisjovens
estudantesqueaindaseencontravamnahorta.
—Os homens são as criaturas mais presunçosas!— disse a cegonha-pai.—
Oiçam como são as conversas deles!Não sabemdar um verdadeiro estalo como
bico. Enchem o papo com os seus dons de fala, a sua língua! É uma língua
agradável.Masmuda em cada local que encontramos nas nossas viagens diárias.
Unsnãoentendemosoutros.Anossa língua,pelo contrário,podemo-la falar em
todaaterra,tantonaDinamarcacomonoEgito.Voartambémnãosabem!Fazem
viagensnumacoisadescobertaaquechamam«caminhodeferro»epartemacabeça
muitas vezes por causa disso. Fico com calafrios no bico quando penso nisso!O
mundopodeexistirsemhomens.Podemosdispensá-los.Quenosdeixemapenasrãs
eminhocas!
«Foiumdiscursoformidável!»,pensouosapinho.«Comoéumgrandehomem!
Eestátãoaltocomonuncavininguémestar!Ecomosabenadar!»,exclamouele,
quandoacegonhaabriuasasasepartiupeloar.
Acegonha-mãefalounoninho,contousobreaterradoEgito,sobreaáguado
Niloesobreosatoleirosincomparáveisquehaviaemterrasestrangeiras.
Issosooucomoalgonovoebeloparaosapinho.
—TenhodeiraoEgito!—disseele.—Seacegonhamelevasseoualgumdos
seusfilhos!Pagar-lhe-iaoserviçonodiadonoivado.Sim,vouaoEgito,porqueme
sintofeliz!Todooanseioevontadequesintoérealmentemelhordoqueteruma
pedrapreciosanacabeça!
Eeletinhaexatamenteapedrapreciosa.Eraoeternoanseioevontadedesubir,
para cima, sempre para cima! Brilhava lá dentro, luzia de alegria e irradiava na
vontade.
Nesse momento veio a cegonha. Vira o sapo na erva. Baixou e pegou no
animalzinhode formapoucogentil.Obico apertava, o vento sussurrava,não era
agradável,maseleiaparacima,paracima,paraoEgito,sabia-oele.Eporissoos
olhosbrilhavam.Eracomosedelessaíssemcentelhas.
—Quá!Ai!
Ocorpoestavamortoemortoosapo.Masascentelhasdosolhos,quesepassou
comelas?
OsraiosdeSolpegaramnelasecomelaslevaramapedrapreciosadacabeçado
sapo.Paraonde?
Não perguntes ao cientista, pergunta antes ao poeta. Ele conta-te como num
conto.Easlagartasláestãoeafamíliadecegonhasláestátambém.Pensa!Alagarta
transforma-se numa linda borboleta.A família de cegonhas voa para longe sobre
montes e mares para a longínqua África, mas volta a encontrar o caminhomais
curtoparacasa,paraaterradinamarquesa,paraomesmolugar,omesmotelhado!
Sim, é tudo demasiado maravilhoso e, no entanto, é verdadeiro. Podes bem
perguntaraocientista,temdeoadmitir.Tuprópriosabesissotambém,porqueo
viste.
—Masapedrapreciosanacabeçadosapo?—Busca-anoSol!Vê-a,sepuderes!
O brilho é demasiado forte. Não temos olhos ainda para ver dentro de toda a
magnificênciaqueDeus criou,mas temo-los, e isso vema sero contomaisbelo,
poisnósprópriosestamoslá!
NoPátiodosPatos
Veio uma pata dePortugal.Disseram algumas pessoas que podia ter vindo de
Espanha.Éindiferente.Chamaram-naaportuguesa,pôsovos,foimortaeservidaà
mesa. Foi a sua carreira. Todos os que saíram dos ovos dela foram chamados
portugueseseistotinhaasuaimportância.Detodaafamíliaapenasrestaraumano
pátio.Umpátioaque tinhamtambémacessogalinhaseondeogalo se conduzia
cominfindávelaltivez.
—Fere-mecomoseucantoviolento!—diziaaportuguesa.—Masébonito,
não sepodenegar, aindaquenão sejapato.Deviamoderar-se,masmoderar-seé
umaartequerevelacultura superior.Têm-naospassarinhoscantores, lánoalto,
nas tílias do jardim vizinho. Como cantam maravilhosamente! Há algo tão
comovedornoseucanto!ChamoaissoPortugal!Tivesseeuumpassarinhocantor
assim e seria uma mãe extremosa e boa para ele. Está no meu sangue, no meu
caráterportuguês!
Efoiprecisamentequandoassimfalavaquealiveiopararumpassarinhocantor.
Caiu do telhado, de cabeça para baixo. O gato andara atrás dele, mas o pássaro
escapara-se-lhecomumaasaquebrada,caindonopátiodospatos.
—Devesercoisadogato,aquelebruto!—disseaportuguesa.—Conheço-odo
tempo que tive patinhos! Permitir-se que uma criatura assim viva e ande pelos
telhados!IssocreioeuquenãosepassaemPortugal!
E compadeceu-se do passarinho, e as outras patas, que não eramportuguesas,
compadeceram-sedeletambém.
—Pobrezinho!—disseramelas,echegou-seumaechegaram-seasoutras.—É
certo que não somos cantoras—disseram elas—,mas temos dentro de nós um
someirodeórgãooualgoparecido.Sentimo-lo,aindaquenãofalemosdisso!
—Poiseuquerofalardisso!—disseaportuguesa.—Equerofazeralgoporele,
porqueéonossodever!—Esubiuassimparadentrodaselhadeáguaepatinhou
nelade talmodoquequaseafogavaopassarinhocomamolhaqueesteapanhou,
masfoicomboaintenção.—Éumaboaação—disseela.—Bempodemosoutros
vereseguiroexemplo!
— Piu! — disse o passarinho. Uma das asas estava quebrada, era-lhe difícil
sacudir-se, compreendeu,porém,queachapinhadela foibem-intencionada.—É
muitoboadecoração,minhasenhora!—disseele,masnãopediumais.
—Nuncapenseina inclinaçãodomeucoração!—disse aportuguesa.—Sei,
porém, que amo todos osmeus semelhantes, exceto o gato, mas quem poderia
esperaroutracoisademim!Comeudoisdosmeus.Estejaaquiagoracomoemsua
casa.Podearranjar-se.Euprópriasoudeumaterraestrangeira,comobempodever
pelomeuaprumoevestidodepenas.Omeupatoénativo,nãotemomeusangue,
masnãomefaçoaltivaporisso!…Asercompreendidoporalguémdaqui,seéque
possoafirmá-lo,serápormim.
—Elatembeldroegasnamoela!—disseumpatinhovulgarqueeraespirituoso,
eosoutros,quetambémeramvulgares,acharamadmirável issodeportulak1 soar
com «Portugal». Empurrando-se uns aos outros, diziam: — Ouviram? Foi
incomparavelmenteespirituoso!
Emeteram-secomopassarinho.
—Aportuguesafalaverdadeiramentebem!—disserameles.—Nósnãosomos
de grandes palavras no bico, mas temos igualmente grande simpatia. Se não
fazemos nada por si, também não levantamos questões. Achamos que é mais
bonito!
—Temuma bonita voz!— disse um dosmais velhos.—Deve ser uma bela
sensaçãodarprazera tantagente,comovocêfaz!Nãoentendo,naverdade,nada
disso!Porissocaloobico,oqueésempremelhordoquedizerqualquerparvoíce,
comomuitosoutroslhasdizem.
— Não o incomodem — disse a portuguesa. — Ele necessita de repouso e
tratamento.Passarinho,querqueeuomolheoutravez?
—Oh!Não,deixe-meficarseco!—pediuele.
— A cura pela água é a única coisa que me ajuda— disse a portuguesa.—
Divertimentotambémécoisaboa!Daquiapoucovãovirasgalinhasvizinhaspara
nos visitar. São duas galinhas chinesas, andam com calças à mameluco, possuem
muitaeducaçãoesãoimportadas.Têmelevadolugarnaminhaconsideração.
Easgalinhasvierameveioogalo.Esteestavatãogentilquenemfoigrosseiro.
—Vocêéumverdadeiropássarocantor!—disseele.—Efazdasuavozinhao
quesepodefazercomumatalvozinha.Masdevecantarcomaforçadalocomotiva
paraquesepossasaberqueéumverdadeiromacho.
Asduaschinesasficaramencantadasaoveremopássaro.Estavatãoencharcado
da molha que recebera que parecia um pintainho chinês. — Bonito! — E
começaramafalarcomelecomvozsussurranteesonsdePemchinêselegante.
— Somos do seu género. As patas, mesmo a portuguesa, pertencem às aves
aquáticas, como bem notou. A nós ainda você não conhece, mas quantos nos
conhecemousedãoaotrabalhodenosconhecer?Ninguém!Nemmesmoentreas
galinhas, sebemquenasçamosparapousarnumpoleiromais altodoquemuitos
outros…Maséomesmo, seguimosonosso tranquilo caminhonomeiode todos,
cujosprincípiosnãosãoosnossos,masnóssóolhamososladosbonsesófalamosdo
bem,aindaquesejadifícildeoencontrarondenãoexiste.Comexceçãodenósedo
galo,nãoháninguémnacapoeiraquesejainteligenteeaomesmotempohonesto!
O mesmo se pode dizer dos habitantes do pátio. Avisamo-lo, passarinho! Não
acreditenaque tema cauda cortada, é falsa!Aquelamanchada ali como espelho
tortonasasasémalucapordisputasenuncadeixaninguémteraúltimapalavra,e,
aindapor cima,nunca tem razão!…Aquelapatagorda falamalde todos, e isso é
contraanossanatureza.Senãosepodefalarbem,cala-seobico.Aportuguesaéa
única que tem um pouco de educação e com quem se pode conviver, mas é
impetuosaefalademasiadodePortugal!
—Comotêmasduaschinesastantoamurmurar!—disseramalgumaspatas.—
Aborrecem-me,nuncafaleicomelas!
Veio então o pato. Julgou que o pássaro era um pardal. — Sim, não vejo
diferença! — disse ele. — Mas não tem importância! Pertence aos brinquedos
musicaisque,quandoostemos,temos!
— Não te importes com o que ele diz! — sussurrou a portuguesa. — É
respeitávelnosnegócioseosnegóciosestãoparaeleacimadetudo.Masagoravou
deitar-meedescansar!Éumdeverparacomigoprópriafazeropossívelporestar
bemgordinha,paraviraserembalsamadacommaçãseameixas.
ElogosedeitouaoSol,pestanejandocomumolho.Estavatãobemdeitadaetão
bemconsigoprópria,quedormiumuitoconvencida.Opassarinhopuxoupelaasa
quebradaedeitou-setambém,encostadoàsuaprotetora.OSolbrilhavaquentee
belo,eraumbomlugarparaseestar.
Asgalinhasvizinhasandavamàvoltaaesgravatar.Tinhamvindosobretudopor
causadacomida.Aschinesasforamasprimeirasaafastar-seedepoisasoutras.O
patinhoespirituosodisse,referindo-seàportuguesa,queavelhaestavaaentrarna
«segundapatinhice»,eriram,comardetroça,asoutraspatas.
— Segunda patinhice! É incomparavelmente espirituoso! — E repetiram o
antigoditodeespírito:beldroegas!Foimuitoengraçado.—Depoisdeitaram-se.
Estavamjáháalgumtempodeitadasquandolançaramcomidanopátio.Estalou
deencontroaochão,demodoque todaacriaçãoquedormia se levantouebateu
com as asas. A portuguesa acordou também, virou-se e esmagou terrivelmente o
passarinho.
—Piu!—disseele.—Pisou-metanto,minhasenhora!
—Porque sepôsno caminho?—retorquiu ela.—Nãodeve ser tão sensível!
Tambémtenhonervos,masnuncadissepio!
—Nãoestejazangada!—disseopassarinho.—Opiosaiu-medobico!
A portuguesa nem o ouviu.Correu para a comida e colheu uma boa refeição.
Quandoterminouesedeitou,chegou-seopassarinho,quequeriaseramável:
TilelelilTilelelil!,obomcoraçãoqueencontreiemti
vaisermuitasvezescantadopormim
quandovoarporaí,poraí,poraí!
—Agora vou repousar depois da comida—disse ela.—Temde aprender os
costumesdacasa!Agoravoudormir!
O passarinho ficoumuito desconcertado, pois fizera aquilo com boa intenção.
Quando a dama acordou, estava ele diante dela com um grãozinho no bico, que
tinha encontrado. Pusera-lho à frente, mas ela não tinha dormido bem e assim
estava,naturalmente,rabugenta.
—Podedá-loaumpintainho!—disseapata.—Nãoestejasempreemcimade
mim!
—Masestázangadacomigo!—disseele.—Quefizeu?
— Fiz? — disse a portuguesa. — A expressão não é das mais finas. Quero
chamar-lheaatençãoparaisso!
— Ontem havia Sol!— disse o passarinho.— Hoje está escuro e cinzento!
Sinto-metãotristedentrodemim!
—Nãosabeaindabastantedocálculodotempo!—disseaportuguesa.—Odia
aindanãoacabou.Nãofiqueaíafazercaradeparvo.
—Olha para mim tão zangada, tal como esses dois olhos maus me olharam,
quandoaquicaínopátio.
—Desavergonhado!—disseaportuguesa.—Compara-mecomogato,aquela
fera!Nenhumagotadesanguemauháemmim.Tomeicontadesievouensinar-
lheboasmaneiras!
Ecomumabicadaarrancouacabeçaaopassarinho,quelogoalicaiumorto.
—Queéissoagora!—disseela—Nãofoicapazdesuportarabicada!Então
nãoerarealmenteparaestemundo!Fuicomoumamãeparaele,bemsei!Porque
coraçãotenhoeu!
E o galo do vizinho meteu a cabeça no pátio e cantou com a força de uma
locomotiva.
—Vocêdácabodeumacriaturacomessecanto!—gritouela.—Étudoculpa
sua!Eleperdeuacabeçaeeuestouaperderaminha!
—Nãoocupamuitolugarondeestá!—disseogalo.
— Fale com respeito acerca dele!— disse a portuguesa.— Tinha distinção,
tinhavozegrandeeducação.Eraamorosoemeigo,comoconvémaosanimaiseaos
denominadossereshumanos.
Etodasaspatasse juntaramàvoltadopassarinhomorto.Aspatastêmpaixões
fortes,quernainvejaquernacompaixão,ecomoalinadahaviaainvejar,estavam,
portanto,compadecidasetambémoestavamasduasgalinhaschinesas.
—Um pássaro cantor como este nuncamais teremos!Era quase chinês— e
choraramtanto,etodasasgalinhaseasoutrasavespresentesnopátiocacarejaram,
masaspataseramasquetinhamosolhosmaisvermelhosdetodas.
—Coraçãotemosnós!—diziamelas.—Ninguémno-lopodenegar!
—Coração!—disseaportuguesa.—Sim,temo-lonós…quasetantocomoem
Portugal!
—Pensemosagoraemencontraralgumacoisaparaopapo!—chamouopato.
—Queéomaisimportante!Sesequebraumbrinquedomusicalempedaços,ainda
nosrestambastantes!
1-Portulak,emdinamarquês;Portulaca,emlatim.Plantasdefolhascarnudase
alimentares,vulgarmentechamadasbeldroegas(N.doT.)(Voltar)
ARainhadasNeves
Umcontocomsetehistórias
Primeirahistória—quetratadoespelhoedos
seusfragmentos
Vejamentão!Agoravamoscomeçar.Quandotivermoschegadoaofimdonosso
conto, saberemos mais do que agora, pois fala de um feiticeiro mau! O pior de
todos.Odævel1.
Umdia,estavaeledebomhumor,porquetinhaacabadodeconstruirumespelho
que possuía uma propriedade: a beleza e a bondade que nele se refletissem
reduziam-se a quase nada.Tudo o que eramau ou desagradável, pelo contrário,
aumentava,tornando-seaindapior.
Quando as mais admiráveis paisagens se refletiam no espelho pareciam
esparregadodeespinafres.Asmelhorespessoastornavam-serepelentesouficavam
com a cabeça para baixo, sem barriga e com as caras tão disformes que ficavam
irreconhecíveis.Se alguém tivesseumapequena sarda,podia ter a certezadeque
estasetornavaenorme,cobrindo-lheonarizeaboca.
— Como isto é divertido! — dizia o diabo do feiticeiro. Logo que um
pensamentosensatooupiedosoatravessavaoespíritodeumhomemrefletia-seno
espelhoumsorrisodeescárnio.Estefeiticeirodosdiabosria-se,encantadocoma
suainvenção.Todososqueandavamnasuaescoladefeiticeiro,poiseletinhauma
escoladefeitiços,contavamportodaapartequehouveraummilagre.Sóagorase
podiaver,opinavameles,comoomundoeoshomenseramnarealidade.Corriam
portodoomundocomoespelhoe,nofim,nãohaviapaísoupessoaquenelenão
visserefletidaasuaimagemdistorcida.
Agoraelesqueriamvoarparaoprópriocéuafimdefazerempoucodosanjose
deNossoSenhor.Quantomaissubiamcomoespelhomaisesteseriadeescárnio.
Malopodiamsegurar.Continuaramavoarcadavezmaisaltoemaisalto,cadavez
mais próximos de Deus e dos anjos. De repente o espelho estremeceu tão
terrivelmentecomoseumalvadosorrisoqueseescapoudasmãosdosdiabinhosese
precipitouparaaTerra,desfazendo-seemcemmilhõesdebiliõeseaindaemmais
fragmentos.
Efoiassim,despedaçado,quecausoumaisdanosdoqueantes.Algunspedaços
que não eram maiores que grãos de areia voaram pela vastidão do mundo e as
pessoas apanharam com essa funesta poeira nos olhos. Essas pessoas viam tudo
errado,esótinhamolhosparaoqueestavamal,poiscadapequenogrãodeespelho
mantinha asmesmas forças como se de todo o espelho se tratasse.Houve quem
chegasseaterumpequenogrãodoespelhonocoração,eentãoerapavoroso,poiso
coraçãodessaspessoastransformava-senumpedaçodegelo.
Existiampedaçostãograndesquechegaramaserusadoscomovidraçasparaas
janelas. Não era nada aconselhável ver os amigos através deles. Outros foram
utilizados como lentesparaóculos e então,quando alguémospunha,para se ver
comclarezaejustiça,tudocorriamal.
Ofeiticeirosorriadetalformaqueatéabarrigalherebentava.Orisofazia-lhe
cócegas deliciosas. Lá fora, voavam ainda pequenos pedaços de vidro. Agora,
escutemcomatenção.
1 - Dævel (djævel). Expressão infantil que designa diabo, em dinamarquês.
Andersen utiliza o termo para amenizar a figura no imaginário das crianças.
(Voltar)
Segundahistória—Umrapazinhoeumamenina
Nagrandecidadehátantascasasetantaspessoas,quenãoexistelugarparatodos
poderem ter o seu jardim. Por isso, a maioria contenta-se com alguns vasos de
flores.Haviaduascriançaspobresquetinhamumjardimumpoucomaiordoque
um vaso de flores.Não eram irmãos,mas gostavam tanto um do outro como se
realmenteofossem.Osseuspaisviviamemduaságuas-furtadastãopróximasuma
daoutraqueostelhadosquasesetocavam.Cadacasatinhaumajanelaviradapara
outraebastavaesticaraspernasparasepassarparaqualquerumdoslados.
Cadafamíliapossuíaumgrandecaixotedemadeiracheiodeterra,foradajanela
e nele cultivava hortaliças para governo da sua casa, e uma pequena roseira que
cresciaqueeraumabênção.Ospaistiveramaideiadecolocarascaixasatravessadas
demaneiraquechegavamdeumajanelaàoutra.Pareciaumverdadeirocanteirode
flores. Os ramos das ervilheiras suspendiam-se e as roseiras lançavam ramos
compridos que se enroscavam em volta das janelas, curvando-se uns contra os
outros.Eraquaseumarcodetriunfodeverduraseflores.
Oscaixoteseramaltoseascriançassabiamquenãopodiamtreparporeles,mas
os pais autorizaram que se sentassem nos seus banquinhos e ali brincavam
maravilhosamente.
Noinverno,estedivertimentonãopodiaexistir.Muitasvezesasjanelasficavam
totalmentecobertasdegelo.Então,osmeninosaqueciamumapequenamoedade
cobre na braseira e colocavam-na sobre a vidraça, formando assim um pequeno
postigo redondo, tão redondo, que atrás dele espreitava um olhito de expressão
abençoadaeterna,istoemcadaumadasjanelas.Eramorapazinhoeamenina.Ele
chamava-seKayeelaGerda.
Noverão,podiam,comojásedisse,chegarumaooutrocomumsimplessalto.
Noinverno,paraseencontrarem,era-lhesnecessáriodescernumerososdegrause,
emseguida,subiroutrostantos.
Láfora,aneverodopiavaemmilharesdeflocos.
—Sãoasabelhasbrancasqueesvoaçam—disseavelhaavó.
Elas também têm uma rainha? — perguntou o menino, pois sabia que as
verdadeirasabelhastêmsempreumarainha.
—Certamente—respondeuaavó.—Láestáelaavoar,ali,ondeestãomuitos
flocos juntos.Éamaiorde todas.Nuncaestánomesmosítio, rodopia, rodopiae
nunca fica quieta sobre a terra.Voa sempre para o céu escuro.Muitas noites de
inverno,voapelasruasdacidadeeespreitaatravésdasjanelas,que,porcausadoseu
olhar,gelamdeformatãoestranha,formandodesenhosdeflores.
—Já vimos isso—exclamaramas crianças.E ficaramconvencidasdeque era
verdade.
—ARainhadasNevespodeentraraqui?—perguntouarapariguinha.
—Elaquevenhaentão!—disseKay.—Pô-la-eiemcimadabraseira,quese
derretelogo.
Masaavóacariciou-lheoscabelosecontou-lhesoutrashistórias.
À noite, o pequeno Kay estava na sua casa, já meio despido e pronto para se
deitar.Mas, antes, trepou para uma cadeira junto à janela e espreitou através do
pequenoburacoredondo,feitocomamoedaaquecida.Algunsflocosdenevecaíam
lentamente.Omaior de todos veio pousar na beira de umdos caixotes de flores.
Cresceucadavezmaiseacaboupor se tornarnumamulher,vestidadomais fino
tulebrancocomose fosse feitodemilhõesde flocoscintilantes.Eramuitobelae
graciosa,mastodafeitadegelo.Gelobrilhanteeresplandecente.Apesardeserde
gelo,mesmoassim,estavaviva.Osseusolhosbrilhavamcomoduasestrelasclaras,
mas não tinham calma nem descanso. Acenou para a janela e fez adeus com um
gesto.Orapazinho,assustado,saltoudacadeiraenessemomentopareceu-lheque
umgrandepássarovoavadiantedajanela.
Nodiaseguintetudoestavageladoelimpo.Depois,aneveeogelocomeçarama
derreter-se.Veio então a primavera.OSol resplandeceu e os primeiros rebentos
começaram a verdejar. As andorinhas construíram os seus ninhos, as janelas
abriram-seeasduascriançasencontraram-senovamentenoseujardinzinho,láem
cima,noalgeroz,juntodotelhado.
Quando as rosas floresceram em toda a sua magnificência, era o verão! Ah!
Comoo jardim lhesdavaprazer!Arapariguinhaaprenderadecorumsalmoque
falavaderosas.Quandoocantava,pensavanasquetinhanoseujardim.Ecantou-o
diante do rapaz, e ele aprendeu-o também. Rapidamente, ambos uniram as suas
vozesparacantar:
Asrosascrescemnosvales.
LácomungamoscomoMeninoJesus!
Osdois,comasmãosdadas,beijavamasfloresecontemplavamobrilhodoSole
falavam para ele como se oMenino Jesus lá estivesse.Que diasmaravilhosos de
verão.Eraumabênçãoestarjuntodasroseiras,quepareciamnuncaparardeflorir!
Certo dia, Kay e Gerda sentaram-se a olhar para um livro de imagens, que
representava animais e aves. Foi então que, no precisomomento em que o sino
bateuascincobadaladasnatorredaigreja,Kayexclamou:
—Ai,quealgumacoisamepicounocoraçãoeagorasintoquemeentrououtra
coisanoolho.
A menina tomou-lhe o rosto entre as mãos e olhou-o nos olhos, que
pestanejavam;masnãoviuabsolutamentenadadeanormal.
—Parece-mequejápassou—disseele.Masnãopassou.Aquiloeraexatamente
umpedaçodevidroquesaltoudoespelho.Oespelhodo feitiço,conformemuito
bemnos lembramos.O terrível espelhoque faziaparecerpequenoe feiooqueé
grandeebeloequepunhaemdestaqueoladomauerelesdosseresedascoisas.O
infeliz Kay recebeu no coração um desses inúmeros fragmentos. Em breve iria
tornar-secomoumpedaçodegelo.Kaynãosentiumaisdornenhuma,masaquilo
estavalá.
—Porquechoras?—perguntouele.—Parecestãofeia!Eunãotenhonada!Ai!
Cala-telácomisso!—gritou,olhandoemredor.—Estarosafoitodacomidapor
um verme e esta está torta. Na realidade, são vulgares e sem graça, tal como o
horrívelcaixoteondecrescem!
Deuumdesdenhosopontapénocaixoteearrancouasduasfloresquelhehaviam
desagradado.
—Kay!Oqueestásafazer?—gritouamenina.
Vendo-a tão horrorizada, Kay arrancou mais uma rosa, depois correu para
dentroatravésdasuajanela,paralongedapequenaeabençoadaGerda.
Quando, mais tarde, ela apareceu com o livro das imagens, ele disse-lhe que
aquele era um livro para crianças pequenas.Quando a avó contava histórias, ele
vinha sempre estragar tudo com um «mas», ou então, se via uma oportunidade,
colocava-se por detrás dela, punha os seus óculos e imitava-a. Toda a gente o
aplaudia.Embreve,seriacapazdeimitarquempassavapelarua.Kaysabiaimitar
tudooqueeraestranhoenadabonitonaspessoas.
—Temumaboacabeça,esterapaz!—dizia-se.
Narealidade,tudoistosedeviaaosgrãosdevidroquelheentraramparaoolhoe
paraocoração.EestaeraarazãoporqueeleatéaborreciaapequenaGerda,que
gostavadelecomtodaasuaalma.
Asuamaneiradebrincartornou-setotalmentediferente.Agorafaziaascoisasde
formafriaecalculista.
Umdiaemquenevava,apareceucomumagrandelupaeestendeuumapontado
seucasacoazul,paraapanharalgunsflocosdeneve.
—Olha agora os flocos na lupa,Gerda. Cada floco de neve tornou-semuito
maioreesplendoroso.Pareciaumaestreladedezpontas.Foimaravilhosodever.
—Estásavercomoéartificial?—disseKay—,émuitomais interessantedo
queasfloresreais.Sãotãoperfeitosquenãotêmumúnicoerro.Sãotodosiguais.
Desdequenãoderretam.
Pouco depois, apareceu comgrandes luvas e o seu trenó às costas e gritou aos
ouvidosdeGerda:
—Tenhoautorizaçãoparaandarnagrandepraçaondeosoutrosbrincam.
Edesapareceuacorrer.
Lá,napraçapública,osrapazesmaisatrevidosatavam,àsvezes,osseustrenósàs
carroças dos camponeses e faziam-se arrastar durante um bocado. Era muito
divertido.
Enquanto brincavam, chegou um grande trenó. Estava pintado de branco e
dentrodelevinhasentadoalguémvestidocomumapeliçabrancaeumgorrobranco
nacabeça.
Otrenódeuduasvoltasàpraça.Kayaproveitoueprendeu-lheoseueassimse
fezdeslocar.
Ograndetrenódeslocava-sedepressa,cadavezmaisdepressa.Deixouapraçae
meteupelaruaaolado.Quemoconduziavoltou-seefezaKayumamistosoaceno
comacabeça,comosejáfossemconhecidos.SemprequeKayprocuravadesataro
seu trenó, a personagem olhava-o, dirigindo-lhe um aceno com a cabeça, eKay,
subjugado,ficavaquieto.
Ei-los que saem pelas portas da cidade. A neve começou a cair com força. O
pobrerapazinhonãoviadoispassosdiantedesieoandamentoeracadavezmais
veloz.
Queria largar rapidamente a corda para se livrar do grande trenó. Mas não
conseguiu. O seu pequeno veículo continuava preso ao grande trenó, que
prosseguia,rápidocomoovento.Kaycomeçouagritarporsocorro;masninguémo
ouvia e a neve caía cada vez commais força.E o trenó continuava a voar, numa
vertiginosacorrida.Porvezes,sentia-seumsolavancocomosesaltasseporcimade
um valado ou transpusesse uma sebe. Kay estava apavorado. Queria rezar o seu
padre-nosso,massóselembravadagrandetabuada.
Osflocosdenevetornavam-secadavezmaioresatésepareceremcomgrandes
galinhasbrancas.Derepente,estasdesaparecerameograndetrenóparou.Quemo
conduzia,ergueu-se.Asespessaspelesqueacobriameramtodasdeneve.Tratava-
sedeumadamaalta,cheiadedignidadeedeumabrancuraresplandecente.
EraaRainhadasNeves.
—Viemosaandarbem—disseela.—Apesardisso,vejoqueestásquasegelado.
Vemabrigar-tedebaixodaminhapeliçadepeledeurso.
Ela agarrou-o, e colocou-o no seu trenó, envolvendo-o com a sua pele. Kay
julgoutermergulhadonumamassadeneve.
—Aindatensfrio?—perguntouela,beijando-onatesta.Obeijoerafriocomoo
gelo e penetrou-lhe até ao coração, que já estavameio gelado. Sentiu-se quase a
morrer.Mas essa sensação durou apenas um instante.Achou-se logo em seguida
muitoreconfortadoejánãotevemaisnenhumcalafrio.
—Omeutrenó!Nãoseesqueçadomeutrenó!—Kaylembrou-sedele.
Então,otrenófoiatadoàscostasdeumadasgalinhasbrancasquevoavamatrás
deles.
ARainhadasNevesbeijouKaymaisumavez,eelenãosentiuqualquersaudade
dapequenaGerda,nemdaavó,nemdenenhumdosseus.
—Agoranãovoltareiabeijar-te,poisumnovobeijoseriaatuamorte.
Kayolhouparaela.Eratãobela.Rostomaisinteligenteemaravilhosonãopodia
imaginar.Não lhe parecia já feita de gelo, como da primeira vez em que a vira
dianteda sua janela e emqueela lhe fizeraumgesto amistoso!Aos seusolhos, a
RainhadasNeveseraaperfeição.Não sentiamedoecontou-lheque sabia fazer
contasdecabeça,mesmofrações,equesabiaonúmeroderecenseadosedasléguas
quadradasquetinhaopaís.
ARainhasorriasemprequeelefalava.Kaysentiuentãoquenãoerasuficienteo
quesabia.Olhouparaograndeenegroespaçovazio.ARainhasubiu,voandocom
ele,paraládagrandenuvemnegra.
Como o vento uivava. Parecia que cantava as velhas canções. Voaram sobre
florestas e lagos, sobre mares e terras. Por baixo, o vento frio soprava, os lobos
uivavam e a neve cintilava com os corvos negros a voar e a gritar.Mais acima,
brilhavaaLua,tãograndeeclara.FoientãoqueKayviunelaalonga,longa,noite
deinverno.
Quandoodianasceu,adormeceuaospésdaRainhadasNeves.
Terceirahistória—Ojardimdamulherque
sabiafazerfeitiços
Como se sentia a pequenaGerda, agora que Kay nuncamais chegava?Onde
estavaele?
Ninguémsabianadadele;ninguémviraporondepassara.Sóumrapazcontou
queoviraprenderoseupequenotrenóaoutro,grandeeesplendoroso,queentrara
na rua e saíra pela porta da cidade. Ninguém sabia onde ele estava. Bastantes
lágrimas correrampor causa deKay, e a pequenaGerda chorouprofundamente,
durantemuitotempo.
— Ele morreu— diziam—, deve ter-se afogado no rio que passa perto da
cidade.
Oh!Forammuitoselongosossombriosdiasdeinverno!
Finalmentevoltouaprimavera,trazendoconsigooSoleocalor.
—Kaymorreu!—diziaapequenaGerda—,partiuparasempre.
—Eucánãoacreditonisso!—respondeuoraiodeSol.
—Elemorreu,nãovoltareiavê-lo!—diziaelaàsandorinhas.
—Nãoacreditamosqueissosejaverdade—responderam-lheestas.
Porfim,aprópriaGerdajánãoacreditavanamortedeKay.
—Voucalçarosmeusnovossapatosvermelhos—disseelanumamanhã—,uns
queKaynuncaviu,eireiaorioperguntar-lheseelesabeoqueaconteceu.
Eramuito cedo.Deuumbeijo à sua velha avó, que dormia ainda, e calçou os
sapatosvermelhos.Depois,saiusozinha.Passoupelasportasdacidadeechegouà
beiradorio.
—Éverdadequemetirasteomeupequenoirmão?—perguntouela.—Estou
dispostaadar-teosmeussapatosvermelhossemodevolveres.
Pareceu-lhequeaságuaslheacenaramcomumestranhomovimento.Pegounos
seusbonitossapatos,queeramomaispreciosobemquetinha,elançou-osàságuas.
Mas os sapatos foram cair tão perto da beira do rio que as pequenas ondas os
devolveramàmargem.Era como seo rionão lhosquisesse tirar,porquenão lhe
podia devolver o pequeno Kay. Mas Gerda julgou que não lançara os sapatos
suficientemente para longe da margem. Decidiu, portanto, meter-se num barco
queseencontravanomeiodos juncos.Foiatéàproaedelá lançounovamenteos
sapatosàágua.
O barco não estava preso àmargem.Com o impulso começou a afastar-se. A
menina,apercebendo-sedisso,tentousaltarparafora,masquandochegouàpopa
havia jámaisdeumalen1dedistânciadaterra.Eobarcocomeçouadeslizarpelo
rio,cadavezmaisdepressa.
Então,apequenaGerdaficouapavoradaecomeçouachorar.Ninguémaouvia,
anão serospardais,maselesnãoapodiam levarpara terra.Noentanto, voavam
junto damargem e cantavampara a confortar: «Nós estamos aqui!Nós estamos
aqui!»
Obarcodeslizoucomacorrente.Gerdadeixou-se ficar sentada,muitoquieta,
apenascalçadacomassuasmeias.Ossapatinhosvermelhosflutuavamtambémnas
águas do rio, mas não conseguiam alcançar o barco, que deslizava com maior
velocidade.
Aolongodasmargensalinhavam-sevelhasárvores,desabrochavambelasflorese
brotavaumespessotapetederelvaondepastavamoscarneiroseasvacas,masnão
havianinguémàvista.
—TalvezoriomeleveatéjuntodopequenoKay—pensouGerda.
E com este pensamento sentiu-se melhor. Ergueu-se e contemplou
demoradamenteasbelas everdejantesmargens.Chegou finalmentediantedeum
cerejalondehaviaumapequenacasacomestranhasjanelasvermelhaseazuisecom
telhado de colmo. Na soleira perfilavam-se dois soldados de madeira, que
apresentavamarmasaquempassava.
Gerdachamou-osemseuauxílioporqueosjulgavavivos.Naturalmentequeeles
nãosemoveram.
Entretanto, obarco aproximou-sedamargemeGerdagritou commais força.
Então,dacasinha,saiuumaanciã.Umamulhervelha,muitovelha,queseapoiava
numbastãomuitotorto;trazianacabeçaumgrandechapéudepalha,pintadocom
asmaisbelasflores.
—Pobremenina—disseela—,comovieste,destemodo,trazidapelaságuasdo
granderio?Comofostearrastadaatétãolonge,atravésdomundo?
Avelhamulherentrounaágua,puxouobarcocomoseubastãoparaamargeme
retirouapequenaGerda.Ameninaficoucontentelogoquechegouaterrafirmee
seca.Todavia,tevealgumreceiodaestranhaevelhamulher.
—Conta-me—disse-lheesta—quemésecomochegasteaqui?
Gerdanarrou-lhetudooquesucedera.Avelhasacudiuacabeçaedisse:«Hum!
Hum!»Quandoameninaterminouoseurelato,perguntouàanciãsetinhavistoo
pequenoKay.Respondeu-lhequeelenãopassaradiantedasuacasa,masquenão
tardariaavir.Gerdanãodeviadesanimarefê-laprovarassuascerejaseadmiraras
suas flores, que eram mais bonitas do que as que estão em qualquer livro de
imagens,poisassuasflorespodiamcontarhistórias.
Tomou a menina pela mão e foram para dentro da pequena casa. E a velha
senhorafechouaporta.
Asjanelaserammuitoaltas;asvidraçaseramvermelhas,azuiseamarelas.Aluz
dodia,quandopassavaatravésdosvidros,brilhavaestranhamente,refletindoestas
cores.Emcimadamesaencontravam-semagníficascerejaseGerdacomeuasque
lheapeteceu,poisforaautorizadaafazê-lo.
Enquanto comia as cerejas, a anciã penteou-lhe os cabelos com um pente de
ouro, fazendo-lhe bonitos caracóis, que emolduravam comouma auréola o lindo
rostodamenina,facefrescaeredonda,semelhanteaumbotãoderosa.
—Desejeidurantemuito tempo—disseavelhinha—ter juntodemimuma
doceepequenameninacomotu!Vaisvercomonosvamosdarbem!
EnquantopenteavaocabelodeGerda,esta ia-seesquecendocadavezmaisdo
seuamiguinhoKay.Averdadeéqueavelhaeraumafeiticeira,emboranão fosse
umafeiticeiramalvada;apenasfaziafeitiçosparasedistrairumpouco.Gostavada
pequenaGerdaedesejavaconservá-lajuntodesi.
Foi por isso que se dirigiu ao jardim e tocou com o seu bastão em todas as
roseiras,atémesmonasmaisviçosas.Estassumiram-senaterra,nãoficandodelas
qualquer vestígio. A velha temia que, seGerda as visse, estas lhe recordassem as
rosasdasuacasaeselembrasseentãodeKay,epartisseàsuaprocura.
Levou a menina ao jardim, que era esplêndido. Que deliciosos aromas ali se
respiravam!Floresdetodasasestaçõesdesabrochavamcomtodaapujança.Nunca,
com efeito, algum livro de imagens pudera ostentar semelhante beleza. Gerda
saltoudealegriaebrincouatéoSolseocultaratrásdascerejeiras.Aanciãlevou-a
então para casa, deitando-a numa linda cama coberta com edredões de seda
vermelha e almofadados com violetas azuis. Gerda adormeceu e teve tão belos
sonhoscomosefosseumarainhanodiadoseunoivado.
Nodiaseguinte,voltouabrincarnomeiodasflores,beijadapelosraiosquentes
doSol.Assimpassarammuitosdias.Gerdaconheciaagoratodasasfloresdojardim.
Havia-as às centenas.Contudo,parecia-lhe,porvezes,que faltavauma.Masnão
sabiaqual.
Umdiaolhouparaograndechapéudasenhora,comasflorespintadas.Amais
bonitadetodaseraumarosa.Avelhaesquecera-sedeatirar.Nãosepodepensar
emtudo.
—Oquê?—exclamouimediatamenteGerda.—Aquinãohánenhumarosa?
Saltouporentreoscanteiroseprocurou,procurou.Pormaisqueprocurasse,não
encontrounenhuma.
Sentou-seecomeçouachorar.Assuas lágrimasquentescaíramexatamenteno
sítioondeumadasroseirastinhadesaparecido.Logoqueaterrafoiregadacomas
lágrimas da menina, uma delas irrompeu imediatamente, tão magnificamente
floridacomoquandodesaparecera.
Gerdaabraçouaroseira,beijouasrosasepensounasmaravilhosasfloresdasua
casaelembrou-sedopequenoKayjuntodelas.
—MeuDeus!Quantotempoperdiaqui!EuquepartiparaprocurarKay!Não
sabemondeelepoderáestar?—perguntouelaàsrosas.—Parece-vosqueeleesteja
morto?
—Não!Nãomorreu— responderam—, acabamos de chegar de debaixo da
terra.Éaliqueestãotodososmortoseelenãoestavalá.
— Obrigado! Muito obrigado! — respondeu Gerda. Correu para as outras
flores;detendo-se juntode cadauma, tomandonas suasmãospequeninasos seus
cáliceseperguntou-lhes:
—SabemoqueaconteceuaopequenoKay?
Mascadaflor,sobobrilhodoSol,sonhavaoseuprópriocontoouasuaprópria
história.ApequenaGerdaouviumuitos,muitoscontos.Masninguémsabianada
doKay.
Quediziaentãoabrændlilje?3
—Ouvesotambor?Bum,bum!Sótemdoistons.Semprebum,bum!Ouveso
canto demorte dasmulheres e ouves o grito dos padres?Envolta no seu grande
mantovermelho,aviúvadohinduestánapira.Aschamascomeçamaerguer-seà
suavoltaeàvoltadocorpodomarido.Masaviúvaapenaspensanomaridovivoe
nosseusolhos,que lançavamuma luzmais fortedoqueaquelaschamas,naquele
olharquehaviaacendidonoseucoraçãoumincêndiomaisviolentoqueaqueleque
vaireduziracinzasoseucorpo.Acreditasqueachamadocoraçãopossaardernas
chamasdafogueira?
—Issoeunãoentendo—disseapequenaGerda.
Esteéomeuconto—disseabrændlilje.
Quecontouagærdesnerle?4
—Na encosta damontanha está alcandoradoumvelho castelo; a espessahera
trepapelos velhosmuros vermelhos, folha a folha, até ao varandim.Ali está uma
belajovem.Debruça-sesobreoparapeitoeolhaoestreitocaminho.Nenhumarosa
no seu ramo se reclina com tanta graciosidade, nem a flor damacieira quando o
ventoalevadaárvoreémaisairosadoqueodoceroçagardoseuvestidodeseda!
—Masentão,elenuncamaischegará?—murmuraela.
—ÉdeKayquefalas?—perguntaapequenaGerda.
—Eusófalodomeuconto,domeusonho—respondeuagærdesnerle.
—Quedizapequenasommerhvidblomme?5
—Entre os ramos, suspensa por cordas, está uma tábua.Éumbalouço.Duas
lindas rapariguinhasbalouçam-senele; os seus vestidos sãobrancos como aneve;
nosseuschapéusflutuamlongasfitasverdes.Oirmãomaisvelho,queémaiordo
queelas,empurraobalouço.Elas têmumbraçometidoporentreascordas,para
não se desequilibrarem.Com uma pequena tigela numamão e uma palhinha na
outra, o irmão faz bolas de sabão; e, enquanto o balouço vai e vem, as bolas
multicoloreselevam-senoar.Eisqueuma,napontadapalha,seagitaaosabordo
vento. O cãozinho negro acorre e ergue-se sobre as patas traseiras; quereria
também ir para o balouço, mas este não se detém; e o cão zanga-se e ladra. As
criançasatiçam-noe,entretanto,asmagníficasbolasrebentamedissipam-se.
—Ébonitooque acabasde contar—disseGerda à sommerhvidblomme—,
masfalascomtantatristezaenãomencionasopequenoKay.
Oquecontamoshyacint?6
—Havia trêsbelas irmãs,vestidasde tule,umadevermelho,outradeazulea
terceira todadebranco.Demãosdadas,dançavamao luar,àbeiradocalmo lago.
Não eram sílfides2, eram filhas de seres humanos. O ar estava inundado de
embriagadoresaromas.As jovensdesapareceramnobosque.Operfumetornou-se
mais forte. Três caixões. Dentro deles estavam as maravilhosas raparigas,
deslizandodaflorestaparaolago.Pirilamposesvoaçavam,luzindo,comosefossem
pequenas velas a tremulezir. Asmeninas que dançavam, estão a dormir ou estão
mortas?Oaromadasfloresdiz-nosquesãocadáveres.Ossinosdobramafinados
aoanoitecer.
—Vóscausais-metristezacomavossahistória—disseapequenaGerda—,o
vossoaromaétãofortequemelevaapensarnasraparigasmortas!Ai!Opequeno
Kayestárealmentemorto?Asrosasqueforamparadentrodaterradizemquenão.
—Kling,klang—responderamoshyacint—,o sinonãodobrapelopequeno
Kay.Nãooconhecemos.Cantamosanossacanção,nãosabemosoutra.
Gerda interrogou o smørblomst7, que via desabrochar sobre o tapete verde da
relva.
—Tu brilhas como um pequeno Sol— disse-lhe ela.—Sabes onde poderei
encontraromeupequenoirmão,comquemtantobrinquei?
O smørblomst que brilhava, com efeito, sobre a relva entoou uma canção, mas
nestanãosefalavadeKay.
—Numapequenaquinta,numdosprimeirosdiasdaPrimavera,oSoldeNosso
Senhor fazia incidir os seus raios quentes, deixando-os escorrer sobre as paredes
brancas da casa vizinha; perto daí cresceram as primeiras flores amarelas, eram
comoouroreluzindosobosraiosquentesdoSol.Cáfora,avelhaavóestavasentada
na sua cadeira. A sua neta, uma pobre e bonita criada, veio fazer-lhe uma curta
visita e beijou-a.Foi ouro, ouro do coração no beijo abençoado, ouro nos lábios,
ouronosolo,ouroláemcima,naalvoradadamanhã!
—Olha,estaéaminhapequenahistória—disseosmørblomst.
—Minhavelhaepobreavozinha!—suspirouGerda.—Sim!Ela,certamente,
sente saudades.Está triste por causademim, tal como estavapelopequenoKay,
masembreveestareideregressoelevá-lo-eicomigo.Nãoajudanadaperguntaràs
flores!Elasapenassabemoseuprópriocontoeamimnãomeinformamdenada.
Arregaçou o seu vestidinho para poder corrermais depressa,mas, ao saltar, o
pinselilje8 bateu-lhe na perna; ela parou, olhou para a alta e amarela flor e
perguntou-lhe:
—Tutalvezsaibasalgumacoisa.—Einclinou-seatéficarjuntodopinselilje.E
quedisseele?
—Consigover-meamimpróprio.Consigover-meamimpróprio.Oh!Como
cheirotãobem!
—Láemcima,numpequenoquartodeáguas-furtadas,meiodespida,estáuma
pequena bailarina.Umas vezes eleva-se num só pé e outras nos dois. Parece dar
pontapésatodoomundo,maselaéapenasumailusãoparaoolhar.Deitaáguado
buledechásobreumpanoquetemnamãoelava-o.Éumafaixa.Asseioéumaboa
coisa!Ovestidobrancoestápenduradonocabide.Tambémfoilavadocomaágua
do bule de chá e foi posto a secar no telhado. Veste o vestido e põe um lenço
amarelo-açafrão no pescoço.Destemodo o vestido parecemais branco. Como é
corajosa,comasuapernanoar!
Veja-secomoopinseliljeesticaacabeçadocaule!
—Consigover-meamimpróprio.Consigover-meamimpróprio!
—Distonãogostonada—disseGerda.—Nãoénadaqueeuqueirasaber!
Ecorreuparasairdojardim.
Oportão estava fechado,mas empurrandoo ferrolho, cheiode ferrugem, com
todasassuasforças,fê-losairdogancho.Oportãoabriu-seeameninaprecipitou-
separafora,comospésdescalços,atravésdovastomundo.
Por três vezes sedeteveparaolharpara trás;ninguémaperseguia.Quando se
sentiumuitofatigada,sentou-seemcimadeumagrandepedra;olhouàsuavoltae
apercebeu-sedequeoVerãopassaraequeseestavaagoranofimdooutono.No
belojardim,nãosederacontadapassagemdotempo;haviasempreSoletodasas
floresdasquatroestaçõesnelesemisturavam.
—Deus! Como me atrasei!— disse para consigo.— Eis-nos já no outono!
Tenhodeirdepressa,nãotenhotempopararepousar!
Levantou-separaretomaroseucaminho;masosseuspezinhosestavamdoridos
e cansados. O tempo estava frio e agreste. As longas folhas dos salgueiros
amarelecerameahumidadepingavadelas.As folhascaíamumasatrásdasoutras.
Apenasosabrunhos-bravostinhamfrutosmascomardeseremazedoseamargos.
Comoeracinzentoepesadooaspetodomundo!
1-Alen=0,627metros.(Voltar)
2 - Elver-Sylfides. Seres em forma humana que atraem os homens para os
montes,pântanosebosques,cobiçandoassuasvidas.(Voltar)
3-Brændlilje.Latim:Liliumbulbiferum.(Voltar)
4-Gærdesnerle.Latim:Convulvolussepium.(Voltar)
5-Sommerhvidblomme.Latim:Leucojumaestivum(narcissus).(Voltar)
6-Hyacint.Latim:Hyacintusorientalis.(Voltar)
7-Smørblomst.Latim:Ranunculus.(Voltar)
8-Pinselilje.Latim:Narcissuspoeticus.(Voltar)
Quartahistória—Príncipeeprincesa
Gerda teve novamente de parar para descansar.Naneve,mesmo à sua frente,
saltavaumagralhaqueestavaháalgumtempoaolharparaela:«crah,crah,b’dia,
b’dia!».Agralhanãosabiafalarmelhor,masestavacheiadeboasintençõescoma
menina.Eperguntou-lheondeiaela,assimsozinha,atravésdomundoimenso.
Gerda só compreendeu a palavra «sozinha», e bem que lhe sentiu o peso.
Contou-lheasuavidaeassuasaventuraseperguntou-lhesenãoviraKay.
Aaveabanouacabeçacomumargrave,erespondeu:
—Ébempossívelquesim,ébempossívelquesim.
—Como?Acreditas tê-lovisto?—gritouGerda,equasematouagralhacom
tantosabraçosebeijos.
—Juízo!Juízo!—exclamouagralha—,eupensoquepodeseropequenoKay;
nãodigomaisdoque isso.Mas, se forele,deve ter-seesquecidode ti,porquesó
pensanasuaprincesa.
—Umaprincesa?—insistiuGerda.—Elevivecomumaprincesa?
—Sim!Ouve!—respondeuagralha.—Eu tenhodificuldadeem falar a tua
língua;tunãoésumafala-baratocomonós,asgralhas?Podiacontar-teoquesei,
muitomelhor.
—Não,nãoseiserumagralhaafalar—disseGerda.—Aminhaavósabia.Que
penaelanãomeaterensinado…
—Nãofazmal—retorquiuagralha—,voucontarcomosei,emboranãosoe
muitobem.
Ecomeçouacontaroquesesegue:
—Nestereinoondenosencontramosviveumaprincesatãointeligentequeleu
todosos jornaisdomundoeesqueceu-osdenovo.Portanto, estámesmoaver-se
queémuitointeligente.Umdia,quandoestavasentadanotrono—eissonãoétão
engraçadocomosejulga—,deu-lheparacantarolarumacantigapopular:
Porquenãoheidecasar-me?
«Olha! A cantiga faz sentido», pensou ela. Então decidiu casar-se. Mas não
queriaumdaqueleshomensquesabemtodasasrespostasquandosefalacomeles.
Nem um que apenas sabe parecer nobre, pois isso é muito aborrecido. Assim,
mandou rufar os tambores para chamar todas as suas cortesãs. Quando estas
ouviramoqueelaqueria,ficarammuitocontentes.«Gostodesaberisso.Também
penseinissonumoutrodia»,dissecadaumadelas.
—Podes crer que é verdadeira cada palavra que eu digo—disse a gralha—,
tenhoumanoivadomesticadaqueandalivrementeportodoopalácioefoielaque
mocontou.
(Naturalmente que a noiva da gralha também é gralha, pois gralha procura
gralha,oqueésempreumagrandegralha.)
— Portanto — continuou a gralha —, os jornais saíram imediatamente,
ornamentadoscomcoraçõeseomonogramadaprincesa,anunciandoquequalquer
jovemcombomaspetopodiairlivrementeaopalácioefalarcomela.Aquelequese
apresentasseefalassemelhor,elaotomariacomomarido.
—Sim!Sim!—afirmouagralha—,istoétãocertocomoeuestaraquisentada.
As pessoas afluíram. Era um aperto e uma correria e, mesmo assim, não
conseguiramláchegarnemnoprimeironemnosegundodia.Todossabiamfalar
quandoestavamnarua,masassimquepassavamaportadopalácioeviamaguarda
vestidadeprataepelasescadasacimaoslacaiosornamentadosdeouroeentravam
nasgrandessalas iluminadasficavamsemvoz.Quando,finalmente,chegavamem
frentedotrono,ondeaprincesaestavasentada,nãosabiamsenãorepetiraúltima
palavraqueela tinhadito.E istonãogostavaaprincesadeouvir.Eracomoseas
pessoastivessemengolidorapéecaídoemsonolência.Quandovoltavamparaarua,
nessaaltura,sim,jásabiamfalar.Haviaumalongafiladesdeaportadacidadeatéao
palácio.
—Eupróprio fui lá ver— continuou a gralha—, eles ficaram esfomeados e
cheiosdesedemasdopalácionãoreceberamnemumcopodeáguamorna.Alguns,
maisprecavidos,trouxerampãocomalgumacoisaládentro,masnãoopartilharam
comosseusvizinhosdefila,poispensavam:«Deixá-losterumarfaminto.Assima
princesanãoosescolhe.»
—Mas,Kay?O pequenoKay!— perguntouGerda.—Quando chegou ele?
Estavaentreosoutros?
— Dá tempo ao tempo que agora vamos falar dele. Foi no terceiro dia que
chegouumapequenapessoa sem cavalo e sem carruagem.Dirigiu-se comumar
decidido para o palácio. Os seus olhos brilhavam como os teus. Tinha cabelos
longosemaravilhosos,masestavapobrementevestido.
— É o Kay — rejubilou Gerda, batendo as palmas. — Oh! Então agora
encontrei-o.
—Eletraziaumapequenatrouxaàscostas—disseagralha.
— Não! Creio que era o seu trenó porque, quando se foi embora, levou-o
consigo—respondeuGerda.
—Podeserqueseja—continuouagralha—,nãoolheicomatenção.Oqueeu
seipelaminhanoivadomesticadafoique,quandoeleentroupelaportanopalácioe
viu aguarda vestidadeprata e subiu a escadaria comos lacaiosornamentadosde
ouro, não se intimidou. Acenou-lhes e disse: «Deve ser maçador ficar de pé, na
escada,prefiroirparadentro.»Quandoentrou,asalacintilava.Viuosministrose
todasasexcelências,queandavamdescalçostransportandotravessasdeouro.Uma
pessoa bem podia ficar impressionada. A cada passo, as botas rangiam-lhe
pavorosamente,maselenãoseamedrontou.
—ÉdecertezaoKay—disseGerda.—Seiqueeletinhabotasnovas.Ouvi-as
rangernasaladaavó!
—Sim,certamentequeelasbemrangeram—prosseguiuagralha.—Segurode
si,caminhouatéàprincesa,queestavasentadaemcimadeumapérolatãogrande
comoarodadadobadoura.Todasascortesãscomassuascriadasecriadasdecriadas
etodososcavaleiroscomosseusaioseaiosdosaios,queporsuavezaindatinham
umrapaz,estavamcolocadosemredor.Quantomaispertodaportaestavammais
orgulhosos se sentiam.O rapaz dos aios dos aios, que anda sempre de pantufas,
apresentava-setãovaidosoqueatécustavaolharparaele.
—Devesertãofinoqueéumhorrorver—interrompeuapequenaGerda—,e
mesmoassimoKayficoucomaprincesa!
— Não fora eu uma gralha, e teria ficado com a princesa, mesmo sendo
comprometido.Omoçodeveterfaladotãobemcomoeuquandofaloalínguadas
gralhas e estas são palavras da minha noiva domesticada. Ele foi franco e
apresentou-se bem, apesar de não ter vindo com a intenção de pedir a mão da
princesa.Vieraapenasparatomarconhecimentodainteligênciadela.Eleachou-a
bemeelatambém.
—Nãohádúvida—disseGerda—,éKay.Elesabiatantascoisas,atémesmo
resolverdecabeçacontascomfrações.Oh!Bempodiasintroduzir-menopalácio!
—Issoéfácildedizer—respondeuagralha.—Mascomoovoufazer?Talvez
falarcomaminhanoivadomesticada.Elavaiaconselhar-nos.Équeumamenina
assimdescalçanuncaterálicençaparaentrarnopalácio.
—Euvouentrar!—disseGerda.—QuandooKaysouberqueeuestoucá,virá
imediatamentebuscar-me!
—Esperapormimjuntoaestemurodepedra.
Agralhaacenoucomacabeçaedepoisvoou.
Jáanoiteestavaescuraquandoagralhavoltou.
— Crah, crah! Trago muitos cumprimentos da minha noiva e também um
pãozinho para ti.Ela apanhou-o na cozinha.Há lámuito pão e certamente que
terásfome!Nãoépossívelentraresnopalácioassimcomospésdescalços.Aguarda
vestidadeprataeoslacaiosornamentadosdeouronãoopermitem.Masnãochores.
Vais lá chegar. A minha noiva domesticada sabe de uma pequena escada nas
traseirasquevaidaraoquartodedormiretambémsabeondeestáachave.
Agralhaconduziuameninapelagrandealamedadoparquee,domesmomodo
queasfolhasdasárvorescaíamumasapósasoutras,tambémnafachadadopalácio
asluzesseapagavamumasapósasoutras.AgralhalevouGerdaatéàportatraseira,
queestavaentreaberta.
Eracomoseestivessemafazeralgumacoisamá.Noentanto,elaqueriaapenas
saberseeraopequenoKay.«Sim,deveserele.»Epensoumuitovivamentenosseus
olhos inteligentes e no seu cabelo comprido. Podia imaginar como ele sorria tal
comoquandoestavamsentadosemcasaporbaixodasroseiras.Certamenteeleiria
ficar contente ao vê-la, ouvir o longo caminhoque ela fizerapor ele, saberquão
tristestodosficaramemcasaquandoelenãovoltou.Oh!Sentiureceioealegriaao
mesmotempo.
Subiramaescada.Haviaumapequenacandeiaacesa,porcimadeumarmário.A
gralha domesticada estava sobre o soalho, rodando a cabeça de um lado para o
outro,observandoGerda,quelhefezumavénia,comoaavólhetinhaensinado.
— O meu noivo falou muito bem de si, minha menina — disse a gralha
domesticada.—A suavita, como tambémse chama, émuito tocante.Agora,por
favor,peguenacandeia,queeuensino-lheocaminho.Nãotenhamedo,poisnão
encontraremosninguém.
—Parece-me—dissenoentantoGerda—quevemalguématrásdenós.
Com efeito, ouviu-se um sibilar como se passassem sombras pelas paredes.
Sombras de cavalos com crinas flutuantes e pernas esbeltas. Sombras de pajens,
cavaleirosesenhorasmontadosemcavalos.
— São apenas os sonhos — disse a gralha domesticada. — Vêm buscar os
pensamentosdecaçadeSuasAltezas.Eébomqueassimseja.Destamaneirapode
vê-losdeitadosna cama.Terãomaisdificuldade emacordar epoderáobservá-los
maisàvontade.Nãomeparecenecessáriodizer-lhe,minhamenina,que,seganhar
posiçãoehonrarias,sedevemostrargrataparaconnosco.
—Issonãosediz—corrigiuonoivo,agralhadafloresta.
Chegaramaumaprimeirasala,cujasparedesestavamforradasdecetimcor-de-
rosacomfloresbordadas.Ossonhospassaramtambémporali,tãorapidamenteque
Gerda nem teve tempo de ver os pensamentos de Suas Altezas. Uma sala após
outra, cadaumamaismagnificentedoque a anterior.Sim,por certo, eranatural
ficarespantado.
Finalmente chegamaoquartodedormir.O tetopareciaumagrandepalmeira
com folhas de cristal.Nomeio elevava-seumgrosso caule de ouromaciço, onde
estavam pendurados dois leitos que pareciam flores-de-lis: um era branco, onde
repousavaaprincesa,eoutroeravermelho.EranessequeGerdadeviaprocuraro
pequenoKay.Dobrouumadasfolhasvermelhaseviuumanucamorena.
—Oh!ÉoKay.—Gerdagritoupeloseunome,segurandoacandeiaàfrentede
siparaqueeleapudesseverquandoabrisseosolhos.
Ossonhosvoltaramnumgrandegalope,trazendooespíritodojovempríncipe.
Eledespertouevoltouacabeça.
NãoeraopequenoKay!
Aúnicasemelhançaresidiananuca.Opríncipenãodeixavadeser,noentanto,
jovem e belo.Mas eis que a princesa espreita com o seu lindo rosto, através das
flores-de-lis brancas, e pergunta quem está ali. A pequena Gerda começou a
chorar, contou toda a suahistória enão se esqueceude salientar comoasgralhas
haviamsidobondosasparacomela.
—Pobremenina!—disseramopríncipeeaprincesa,comternura.Eelogiaram
asduasgralhas,assegurando-lhesquenãoestavamzangadospeloqueelashaviam
feito, mas dizendo-lhes que não o deveriam repetir. Prometeram-lhes até uma
recompensa:
—Querem voar livremente ou preferem ser elevadas à dignidade de gralhas-
camareiras,oquevosdaráodireitosobretodososrestosdacozinha?
As gralhas inclinaram-se numa vénia e pediram para ficar como gralhas-
camareiras efetivas, pois pensaram na sua velhice e como «era tão bom haver
algumacoisaparaovelhohomem»,comocostumadizer-se.
OpríncipesaiudoseuleitoedeixouqueGerdarepousassenele.Eraoquepodia
fazerporela.Ameninajuntouasmãozinhas:
— Meu Deus ! — murmurou —, como as pessoas e os animais têm sido
bondosos comigo!—Depois fechou os olhos e adormeceu abençoadamente.Os
sonhos correrampara ela com rostos de anjos deDeus empurrandoumpequeno
trenó onde estava sentado Kay, que a olhava sorrindo. Mas isso era apenas um
sonhoe,quandoacordou,tudodesapareceu.
Nodiaseguintevestiram-naprimorosamentedeveludoedesedadacabeçaaos
pés.Aprincesapropôs-lhequeficassenopalácio,paranelepassaravidaeterbons
dias.Mas ela pediu apenas umapequena carruagem comum cavalo e umpar de
botas,pararetomarasuaviagematravésdograndemundo,embuscadeKay.
Recebeuumasbotaseumregaloparaasmãos.Quandochegouomomentode
partir,encontrounopátiodopalácioumacarruagemnova,todadeouro,brasonada
comoescudodopríncipeedaprincesaequeluziacomoumaestrela.
Nointerior,acarruagemestavaforradacombiscoitospolvilhadoscomaçúcar;a
arca da bagagem ia cheia de frutas e de broas de mel. O cocheiro, o criado e o
trintanário1,poiselalevavatambémumtrintanário,tinhamuniformesbordadosa
ouroecoroasnacabeça,tambémdeouro.
O príncipe e a princesa vieram eles próprios ajudar Gerda a subir para a
carruagemedesejaram-lhetodaafelicidadepossível.Agralhadafloresta,queagora
estavacasadacomagralhadomesticada,acompanhou-ae instalou-senofundoda
carruagem, pois incomodava-o ir de costas.A gralha domesticada pediu desculpa
pornãopoderacompanharGerda,poisnãoseencontravabem-disposta.Desdeque
tinhadireitoa todasasmigalhasdacozinha,andava indispostadoestômago.Mas
veioatéàportinholaebateuasasasatéqueacarruagempartiu.
—Adeus,adeus!—disseramopríncipeeaprincesa.EapequenaGerdachorou
e a gralha chorou. Depressa andaram três léguas. Então a gralha da floresta
despediu-se.Foi umadespedidamuito sofrida.Vooupara cimade uma árvore e,
dali, bateu as asas negras enquanto pôde divisar a carruagem, que resplandecia
comoumverdadeiroSol.
1-Trintanário.Lacaioque vai ao ladodo cocheirona almofada da carruagem.
Monta,porvezes,oprimeirocavalo.(Voltar)
Quintahistória—Apequenasalteadora
Passaramporumaflorestaescura,masacarruagemluziaeasualuzencandeou
ossalteadores,quenãoaguentaramvertantobrilho.
—Éouro, é ouro!—gritaram.Detiveramos cavalos,mataramo cocheiro, o
criadoeotrintanárioetiraramapequenaGerdadacarruagem.
—Comoégordinhaebonitaestamenina.Foiengordadacomavelãs—dissea
velha e feia salteadora, que tinha uma grande barba espetada e sobrancelhas
penduradasemfrentedosolhos.—Asuacarnedevesertãotenrinhacomoadeum
gordocordeirinho.Oh,comonosiremosregalar!
Ao mesmo tempo que dizia estas palavras, puxou por uma grande faca, cujo
brilhoerasuficienteparaprovocarcalafrios.
—Ai!Ai!—gritouavelha.A sua filha,queestavapenduradanas suascostas,
acabaradelhemorderaorelha.Eratãobravaemalcriadaquedavagostover.
—Grandevelhaca!—disseamãe,semtempoparamatarGerda.
—Elatemdebrincarcomigo!—disseapequenasalteadora.—Eladar-me-áo
seu regalo e o seu belo vestido e dormirá comigo naminha cama.—Emordeu
novamenteamãe,que,comador,deuumgrandesalto.
Osbandidosriamedisseram:
—Olhacomoeladançacomasuafilhota.
—Queroentrarnacarruagem—disseafilhadossalteadores.
Tiveramde lhe satisfazer este capricho,pois ela eramimalhaediabolicamente
teimosa.PuseramGerdaaoseuladoeinternaram-senafloresta,pulandoporcima
domato.ApequenasalteadoranãoeramaiorqueGerda,masmaisforteemorenae
osseusolhosnegroseramtristes.AgarrouGerdacomforça,aoredordacintura,e
disse-lhe:
—Elesnãovãodegolar-teenquantoeunãomezangarcontigo.Seráqueésuma
princesa?
—Não— respondeuGerda.E contou tudo por que tinha passado e quanto
gostavadopequenoKay.
A filha dos salteadores olhou muito séria para ela. Acenou com a cabeça,
exclamando:
—Elesnãotematarão,mesmoqueeumezanguecontigo.Nessecaso,sereieu
própria amatar-te!—Enxugou as lágrimas que corriam dos olhos deGerda e,
depois,envolveuassuasmãosnobeloregalo,queeramuitoquenteemacio.
Finalmenteacarruagemdeteve-se:haviamchegadoaopátiodeumvelhocastelo,
que servia de refúgio aos salteadores. Estava rachado de alto a baixo. Bandos de
corvos e gralhas voavam por entre as frestas. Enormes buldogues acorreram
saltando.Tinhamumarferozetodoselespareciamcapazesdedevorarumhomem.
Nãoladravamporquelheseraproibido.
Nagrandeevelha sala, cheiade fuligem,ardia,emcimadas lajes,umagrande
fogueira;ofumoelevava-seatéaotetoeescapava-seporondepodia.Emcimada
fogueira fervia um grande caldeirão cheio de sopa; lebres e coelhos assavam no
espeto.
— Tu dormirás comigo e com todos os meus pequenos animais — disse a
pequenasalteadora.
Comeramebeberameforamparaumcantodasalaondehaviapalhaemantas.
Por cima, empoleirados nas traves, quase uma centena de pombos parecia que
dormia. Alguns tiraram a cabeça de baixo da asa quando as raparigas se
aproximaram.
—São todosmeus—disse a pequena salteadora e, agarrandoumpelas patas,
abanou-o, fazendo-o bater as asas.—Dá-lhe um beijo!—E atirou-o contra o
rostodeGerda.
— Todos estes pombos— acrescentou ela— são mansos e aqueles dois são
pombos-torcazes.Écostumetê-losfechadosparanãofugirem,masnãoháperigo
emdeixá-lossairpeloburacoquevês,além,namuralha.Eaquiestáomeufavorito,
omeuqueridoBeh!—Etiroudeumcanto,ondeestavapresa,umarenaquetinha
em torno do pescoço uma coleira de cobre muito polida.— A esta não a posso
perderdevista,senãofogeparaoscampos.Todasasnoitesmedivirtoacoçar-lheo
pescoço com a minha faca bem afiada; parece que ela não gosta muito desta
brincadeira.
Então, tirou uma comprida faca de uma fenda da muralha e passou-a pelo
pescoçodarena.Opobreanimal,loucodeterror,puxavapelacorda,escouceavae
debatia-se, para grande regozijo da pequena salteadora.Quando se fartou de rir,
deitou-seepuxouGerdaparajuntodesi.
—Vais ficarcoma facaenquantodormes?—perguntouGerda,olhandocom
receioparaalongalâmina.
—Sim—respondeuela—,durmosemprecomaminhafaca.Nuncasesabeo
quepoderásuceder.Masconta-menovamenteoquemedissestesobreopequeno
Kay e as tuas aventuras desde que começaste a procurá-lo através do grande
mundo.
Gerdarecomeçouasuahistória.Ospombos-torcazescomeçaramaarrulharnas
suasgaiolasenquantooutrospombosdormiamtranquilamente.
Apequenasalteadoraadormeceu,comumbraçoemtornodopescoçodeGerda,
segurandoasuafacacomamãolivre.Depressacomeçouaressonar.Gerda,porém,
não conseguiapregarolho.Via-se entre a vida e amorte.Os salteadores estavam
sentadosàvoltadafogueira,bebendoecantando.Avelhafaziacabriolas.
QuepavorosoespetáculoparaapequenaGerda!
Eisque,subitamente,ospombos-torcazesdesataramaarrulhar:
—Crrup!Crrup!VimosopequenoKay.Umagalinhabrancalevavaoseutrenó
àscostaseele iasentadonotrenódaRainhadasNeves.Voaramrasantes,sobrea
floresta onde nos encontrávamos, muito pequeninos, ainda no nosso ninho. A
RainhadasNevessoprousobrenósoseuhálitoglaciale todosmorreram,exceto
nósosdois.Crrup!Crrup!
—Oqueestaisadizeraíemcima?—exclamouGerda.—Paraondeiaessatal
RainhadasNeves?Sabemalgumacoisaaesserespeito?
Eladirigia-se,semdúvida,paraaLapónia;láhásempregeloeneve.Perguntaà
renaqueestápresaacolá.
—Sim—respondeuarena—,naLapóniahágeloenevequeéumabênção.
Como é bom viver lá! Pode saltar-se e correr livremente nos grandes vales
reluzentes!ÉaliqueaRainhadasNevestemasuacasadeverão.Oseuverdadeiro
palácio,situa-sepróximodoPóloNorte,numailhaquesechamaSpitzbergen.
—Oh!Kay,meupequenoKay!—suspirouGerda.
—Estáquieta—resmungouafilhadossalteadores—,porquesenãoenterro-te
aminhafacanabarriga.
Quando amanheceu, Gerda contou à pequena salteadora o que os pombos-
torcazes lhe tinham dito. A pequena salteadora assumiu o seu ar mais sério e,
abanandoacabeça,disse:
—Ora,querolásaberdisso,querolásaberdisso.SabesondeficaaLapónia?—
perguntou,virando-separaarena.
—Quemmelhor do que eu o poderia saber?— respondeu o animal, com os
olhosabrilhar.—Foiláquenasciefuicriada;foialiquesalteifelizpeloscampos
cobertosdeneve.
—Escuta— disse a filha dos salteadores paraGerda—, como vês, todos os
nossoshomensseforamembora.Apenasficouaminhavelhamãe,poiselanuncasai
daqui.Mal amanhece,bebeoqueestádentrodagarrafagrandee,depois,dorme
umbombocado.Nessaalturafareiqualquercoisaporti.
Apequenasalteadorasaltoudacamaependurou-seaopescoçodamãepuxando-
lhepelobigode.
Eamãesaudou-a.
—Bonsdias,minhadocecabrita.Bonsdias.—Ebeliscoucomtalforçaonariz
dapetizaqueesteficouvermelhoeazulado.Eraamorpuro.
Maistarde,comefeito,avelhabebeudagrandegarrafaedepoisadormeceu.A
pequenasalteadorafoitercomarenaedisse-lhe:
—Eugostariadeteconservarcomigo,paratecoçaropescoçocomaminhafaca,
poisnessasalturasficasmuitoengraçada.Agoraé-meindiferente.Vousoltar-tee
deixar-tepartir,afimdequepossasregressaràLapónia.Éprecisoquemexasbem
as pernas e que leves esta menina até ao palácio da Rainha das Neves, onde se
encontrao seuamigo.Sabesbemoqueela contouestanoite,pois faloubastante
altoetuésumagrandebisbilhoteira.
A rena pulou de alegria. A pequena salteadora montou Gerda no lombo do
animal,teveocuidadodeaatarsolidamenteeatélhedeuumaalmofadaparaelase
sentar.
—Ésempreamesmacoisa,voltamosaoprincípio—disseela—,devolvo-teas
tuasbotasfelpudas,poisestámuitofrito,masoregalo,esse,ficoeucomele,porque
émuitobonito.Porém,nãoqueroquefiquescomasmãosgeladas;levasasgrandes
luvas forradas da minha mãe, que te chegam até aos cotovelos. Vá! Calça-as!
Olhandoparaastuasmãos,atéteparecescomaminhahorrorosamãe.
Gerdachoravadealegria.
—Nãogostoquechoramingues—disse-lheapequenasalteadora—,agoraé
quedevesterumacaracontente.Tomaládoispãeseumpresunto.Assimnãoterás
fome.
Atouambasasprovisõesà rena, abriuaportae chamouosgrandescãesparaa
sala.Finalmentecortouacordacomasuafacaeordenouaoanimal:
—Correagora,mascuidabemdapequenamenina.
Gerdaestendeuasmãoscomasgrandesluvasdepeleparaapequenasalteadorae
disse-lheadeus.Arenapartiucomoumaflecha, saltandoomelhorquepodiapor
cimadomatoatravésdagrandefloresta,sobrepântanoseestepes.Oslobosuivavam
e os corvos grasnavam. Fht! Fht!, ouviu-se. Era como se o céu soltasse espirros
vermelhos.
—Sãoasminhasvelhasaurorasboreais!—exclamouarena.—Olhacomoelas
brilham!
Galopouaindamaisemais,noiteedia.Comeramospãeseopresunto.Eentão
chegaramàLapónia.
Sextahistória—AmulherdaLapóniaea
mulherdaFinlândia
Detiveram-se junto de umapequena cabana.Eramesmomiserável.O telhado
quasetocavanaterraeaportaeratãobaixaqueafamíliaprecisavadeentrarede
sairdegatas.NãohavianinguémsenãoumavelhamulherdaLapóniaqueestavaa
cozerpeixejuntoaumacandeiadetran1.
A rena contou toda a história de Gerda, mas, primeiro, começou pela sua
própria,pensandoqueeramaisimportante.Gerdaestavadetalmodoentorpecida
pelofrioquenemconseguiufalar.
—Pobres criaturas, que infelizes vocês são—disse amulher—, e ainda têm
tanto para percorrer; pelomenos cem léguas no interior doFinnmark.É aí que
habitaaRainhadasNeves.Éaíqueelalançatodasasnoitesaurorasboreaisazuis.
Vouescreveralgumaspalavrasnumbacalhausecoporquenãotenhopapelparavos
recomendaràmulherfinlandesaquemoraacolá;elainformar-vos-ámelhordoque
eu.
Agora queGerda já aquecera e tinha comido e bebido, a mulher da Lapónia
escreveu um par de palavras sobre um bacalhau seco e recomendou que Gerda
cuidassebemdele.
Atou-a de novo à rena, que voltou a partir veloz comouma flecha.Fth!Fth!,
ouviu-senoar.Durantetodaanoite,arderamaurorasboreaisazuismaravilhosas.
ChegaramfinalmenteaoFinnmark,ebateramnachaminédamulherdaFinlândia,
poiselanemumaportatinhanacasa.
Havia tanto calor na sua casa que amulher andava quase nua.Era pequena e
muito suja. Tirou imediatamente as roupas de Gerda, descalçou-lhe as grandes
luvas e as botas, senão amenina teria ficado sufocada com o calor. Colocou um
pedaço de gelo em cima da cabeça da rena, e depois leu o que estava escrito no
bacalhau seco. Leu-o por três vezes para decorar as palavras; depois meteu o
bacalhau na panela que estava ao lume, pois podia servir para comer. A mulher
finlandesasabiaquedeviaaproveitartudo.
A rena contouprimeiro a suahistória edepois adapequenaGerda.Amulher
pestanejouosseusolhinhosinteligentes,masnãodissenada.
—Tuéstãointeligente—dissearena—,podes,comumsimplescordel,atar
todos os ventos do mundo. Se o skipper2 desata o primeiro nó, terá bom vento;
desatando o segundo, o navio fende as vagas com rapidez; mas se se desatam o
terceiro e o quarto, então desencadeia-se uma tempestade que deita por terra as
florestas.Sabestambémfazerumapoçãocapazdedarforçaadozehomens.Não
quererás dá-la a beber a estamenina, para que ela possa lutar com aRainha das
Neves?
A força de doze homens?— perguntou amulher finlandesa.— Sim, talvez,
talvezissolhepudesseservir.
Tiroudeumaprateleiraumagrandepeleenrolada.Desenrolou-aecomeçoua
lerletrasestranhasquenelaseencontravamescritas.Eranecessáriaumatalatenção
paraasinterpretarqueamulhersuavaportodososporos.Masarenaencorajou-a
pedindo-lhe insistentemente que auxiliasse a menina e que não a abandonasse.
Gerda olhava a também com os olhos suplicantes e rasos de lágrimas. Amulher
piscouosolhose levouarenaparaumcantoe,depoisde lhevoltarapôrgelona
cabeça,disse-lheaoouvido:
—ÉverdadequeopequenoKayestácomaRainhadasNeves.Elesente-seali
muito feliz, acha tudo a seu gosto. É, na sua opinião, o mais agradável sítio do
mundo. Isso émotivado pelo facto de ele ter no coração um estilhaço de vidro e
dentrodavistaumgrãodessemesmovidro,quelhedeformamossentimentoseas
ideias.Épreciso tirar-lhos, senãonuncamaisvoltará a serumserhumanodigno
dessenomeeaRainhadasNevesconservarátodooseudomíniosobreele.
—NãopoderásdarabeberàpequenaGerdaumapoçãoquelhedêopoderde
romperesseencantamento?
—Eunãoseriacapazdeadotardeumpodermaisfortequeaquelequeela já
possui.Nãoestásavertãograndiosaqueelaé?Nãovêsqueosanimaiseaspessoas
sãoforçadosaservi-laeque,tendopartidodescalça,atravessouventurosamenteo
grande mundo? Não é de nós que poderá receber o seu poder; ele está no seu
coraçãoevem-lhedofactodeserumacriançainocente.Senãoforcapazdechegar
atéaopaláciodaRainhadasNevesedetirardeKayosdoisfragmentosdevidro,
nãoserádenósquelhepoderávirauxílio.Devesconduzi-laatéàentradadojardim
daRainhadasNeves,queficaaduasléguasdaqui.Deixa-ajuntodoarbustocom
bagasvermelhasqueestánomeiodaneve.Nãotedemorescommuitasconversase
voltarapidamenteparacá.
E amulher finlandesa voltou a colocarGerda em cima do animal, que partiu
comoumaflecha.
—Oh!— disse amenina, sentindo o cortante frio glacial.—Não trouxe as
minhasbotasnemasminhasluvasdepele.
Masarenanãoseatreveuavoltaratrás;galopoudeumsófôlegoatéaogrande
arbusto com bagas vermelhas. Ali deixouGerda, beijando-lhe a boca. E grossas
lágrimascorreramdosolhosdovalenteanimal.Regressourápidocomoovento.
AlificouapobreGerda,semsapatosesemassuas luvas,nomeiodoterrívele
geladoFinnmark.
Começouacorrertãodepressaquantolheerapossível.Viadiantedosseusolhos
umamultidãode flocosdeneve.Nãocaíamdocéu,queestava claroe iluminado
pelaauroraboreal.Corriam,issosim,emlinharetasobreosoloequantomaisse
aproximavammaioresficavam.
Gerdalembrou-sedosflocosqueemsuacasaexaminaraatravésdalupa.Como
eram grandes e formados com simetria! Estes eram bastantemaiores e terríveis;
estavam dotados de vida. Eram as guardas avançadas do exército da Rainha das
Neves.
Tinham as figuras mais estranhas. Uns pareciam grandes e feios porcos-
espinhos, outros estavam feitos em nós que pareciam serpentes entrelaçadas,
dardejandoas suascabeçasemtodosos sentidos,outrosainda tinhamoaspetode
pequenos ursos atarracados, com os pelos em pé. Eram todos de uma ofuscante
brancura.Eramtodosflocosdenevevivos.
Então,Gerdarezouo seupadre-nosso.Ofrioera tão intensoquepodiavero
seuhálito,que,enquantoorava,lhesaíadabocacomoumabaforadadevapor.Este
vaporfoi-setornandocadavezmaisespessoedeleseformarampequenoseclaros
anjos,que,maltocavamaterra,cresciamcadavezmais.Traziamtodoscapacetesna
cabeça e estavamarmadosde lanças e de escudos.Assimque amenina acaboude
rezaropadre-nosso,osanjosformaramumaverdadeiralegiãoemdefesadela.
Investiram contra os terríveis flocos com as suas lanças e retalharam-nos
desfazendo-os em mil pedaços. A pequena Gerda caminhou para a frente, com
convicção. Os anjos acariciaram-lhe os pés e as mãos, para que o frio os não
entorpecesse.Aproximou-serapidamentedopaláciodaRainhadasNeves.
MaséprecisoquesaibamosagoraoquefaziaKay.Naverdade,elenãopensava
sequeremGerdanemsonhavaqueelaestivessealitãoperto.
1-Tran.Óleoextraídodagorduradasbaleias,focasepeixes.(Voltar)
2 - Skipper. Palavra nórdica que titula o comandante de uma
embarcação.(Voltar)
Sétimahistória—Oqueaconteceunopalácioda
RainhadasNeveseoquesepassoudepois
Asparedesdopalácioeramfeitascomanevequeesvoaçavaeasportasejanelas
eramosventoscortantes.Haviamaisdecemsalas.Tudoseordenavaedesordenava
comanevequeesvoaçavasopradapelovento.Amaiorsalaestendia-sepormuitas
milhaseeramtodasiluminadaspelosclarõesdasaurorasboreais.Tudoalibrilhava
ecintilava.Tudotãogrande,tãovazio,tãofrioetãobrilhante!
Nuncahaviadivertimentosnopalácio.Nemumpequenobailedeursos-brancos,
que o som da tempestade pudesse animar e onde eles dançassem com as patas
traseirasemostrassemosseusmodoselegantes.Nuncaaliseorganizavamjogosde
salãoquepermitissemapostasseladascomvigorososapertosdemão,nemasjovens
raposasbrancassereuniamatomarcháebolinhos,comoépermitidoàsdonzelas
dascortesquetagarelamedizemmalumasdasoutras,comosucedeembastantes
reinosdesoberanos.TudoeravastoevazionograndeefriopaláciodaRainhadas
Neves.A luzdas auroras boreais flamejava com tal exatidão, que se podiaprever
quandoaumentavaediminuía.
Nomeiodasaladeneve,vaziaeinfinita,haviaumlagogelado,cujogeloestava
cortado emmilhares de pedaços. Cada pedaço era tão semelhante ao outro que,
quandounidos,noseuconjunto,pareciamumapeçadearte.QuandoaRainhadas
Neves habitava no palácio, tinha o trono no meio do lago, que ela chamava o
espelhodainteligênciaequeeraúnicoeomelhordestemundo.
OpequenoKayestavaazuldefrio.Sim,quasenegro.Masnãoseapercebiadisso.
Comumbeijo,aRainhadasNevesarrebatara-lheapropriedadedesentirarrepios
eocoraçãodeleestavatranformadoemgelo.
Tinha nas mãos alguns desses pedaços de gelo, lisos e regulares, de que era
compostaa superfíciedo lago.Colocava-osunsao ladodosoutros, comoquando
fazemos paciências. Estava absorvido nestas combinações e procurava obter as
figurasmaisestranhasemais invulgares.Este jogochamava-seograndejogofrio
dainteligênciaeeramuitomaisdifícildoqueumquebra-cabeçaschinês.
Friamente, construía figuras surreais. Aos seus olhos, as figuras pareciam-lhe
corretasedamaiorimportância,maseraporcausadogrãodevidroquetinhano
olho.
Compunha figuras que formavam palavras escritas mas nunca conseguia
inventar a palavra que realmente queria encontrar: aEternidade. A Rainha das
Nevestinha-lhedito:
—Seconseguiresencontraressafigura,serásoteupróprioamo;dar-te-eitodo
omundoeumpardepatinsnovos.
Maselenãoeracapaz.
—Agoravouvoarparaospaísesquentes—disseaRainhadasNeves.—Tenho
deirverosgrandescaldeirões(eramasgrandescraterasdosvulcõesEtnaeVesúvio,
comosãochamados),tenhodeircaiá-loscomumpoucodeneve.Obrancoficabem
comoslimõeseasuvas,napartemaisquente,láembaixo.
EaRainhadasNevesvooupelosares.Kayficousónagrandesaladegelocom
várias milhas quadradas, olhando para os pedaços, imaginando, combinando,
congeminandocomoospoderiadisporparaatingiroseuobjetivo.Estavaaliparado
eabsorto;pareciapetrificadopelogelo.
FoinessaalturaqueapequenaGerdaentrounopaláciopelograndeportão.Os
ventos cortantes impediam-lhe a entrada.Gerda rezou o seu padre-nosso e eles
acalmaram e desvaneceram-se. A menina entrou nas grandes e frias salas vazias.
EntãoviuKay,reconheceu-oecorreunasuadireção,saltando-lheparaopescoço.
Mantendo-obemapertado,exclamou:
—Kay!QueridopequenoKay,finalmente,encontro-te!
Elecontinuousentado,rígidoegelado.EntãoapequenaGerdachoroulágrimas
quentesquecaíramsobreopeitodeKay,penetrandonoseucoraçãoefundindoo
gelo,demodoqueocruelestilhaçodevidrofoilevadopelogeloderretido.
Kay ergueu a cabeça e olhou para ela. Gerda cantou, como outrora no seu
jardinzinho,oestribilhodacanção:
Asrosascrescemnosvales.
LácomungamoscomoMeninoJesus!
Kayrompeuemsoluços.Aslágrimasjorraram-lhedosolhoseopedaçodevidro
saiuarrastadoporelas.ReconheceuGerdae,cheiodealegria,exclamou:
—Querida,pequenaGerda,ondeficastedurantetantotempo,eeu,ondetenho
estado?
Olhouàsuavolta:
—MeuDeus,comofazfrioaqui!Equepavorosovazio!
Apertou-secomtodasassuasforçascontraGerda,queriaechoravadealegria.
Era tudo tão abençoadoque até os fragmentos de gelo dançavamà volta deles e,
quandosecansaram,colocaram-seexatamentenaformadasletrasqueaRainhadas
NevestinhaditoparaKaydescobrir,compondoapalavraEternidade,queiriadara
Kayaliberdade,omundointeiroeopardepatinsnovos.
GerdabeijouasfacesdeKayeelasvoltaramatercor.Beijou-lheosolhos,que
retomaramo seu brilho cintilante, e asmãos e os pés, onde a vida renasceu.Kay
voltouaserumbonitorapazcheiodesaúdeedealegria.ARainhadasNevespodia
agora voltar, pois a carta de liberdade estava escrita compeças de gelo brilhante.
Deramasmãosesaíramdopalácio.
Falaramdaavó,dasuainfância,dasrosasedojardinzinhosobreostelhados.À
suaaproximação,osventosacalmarameoSolsurgiu.Tendochegadoaoarbustode
bagasvermelhas,encontraramarena,queosesperava,acompanhadaporumaoutra
jovemrena e cujas tetas estavamcheias: deramo seu leitequente aospequenos e
beijaram-nosnaboca.EntãolevaramKayeGerdaatéàcasadamulherfinlandesa,
onde se aqueceram, e, em seguida, à casa damulher daLapónia, que lhes coseu
novasroupasearranjouparaelesoseutrenó.
Asduasrenasacompanharam-nos,saltitando,atéàfronteiradoseupaís,láonde
brotava a primeira verdura. Kay e Gerda despediram-se da bondosa mulher da
Lapóniaedasduasrenasqueoshaviamconduzidoatéali.Asárvorescomeçavama
vestir-sedeverdeeasavesacantar.
De repente, viram sairda floresta,montadanummagnífico cavalo,queGerda
reconheceu(poiseraoqueestiveraatreladoàcarruagemdeouro),umajovemque
usava um gorro vermelho. Ao lado da sela pendiam pistolas. Era a pequena
salteadora. Fartara-se da vida em casa e partia para oNorte e, em seguida, para
outraqualquerdireção,casolánãoencontrassedivertimento.
ReconheceuimediatamenteGerda,quetambémareconheceulogo.Aquiloéque
foiumaalegria!
—Tuésmesmoumgrandepalerma, vadiandodeum ladoparaooutro, sem
pensar nas tuas obrigações — disse para Kay a pequena salteadora. — Só me
perguntosemerecesquehajaalguémquecorraatéaofimdomundoportuacausa.
Gerda acariciou-lhe as faces e, para desviar a conversa, perguntou-lhe o que
sucederaaopríncipeeàprincesa.
—Viajampeloestrangeiro—respondeuafilhadossalteadores.
—Easgralhas?
—Adosbosquesmorreueadomesticadaéviúvaeandacomumpedaçodefio
delãpretaàvoltadaperna.Elalamenta-sequeéumatristeza,mastudonãopassa
de uma farsa!Mas conta-me as tuas aventuras e como conseguiste apanhar este
fugitivo.
GerdaeKaynarraram,cadaumporsuavez,assuasaventuras.
—Snip-snap-snurre-basselurre!—disseapequenasalteadoraeestendeu-lhesa
mão. Prometeu visitá-los se passasse pela cidade onde viviam. E retomou a sua
viagempelograndemundo.
Kay e Gerda continuaram a caminhar de mãos dadas; a primavera nascia,
magnífica, trazendo consigo a verdura e as flores.Umdia ouviramo repicar dos
sinos e reconheceram as altas torres da grande cidade ondemoravam. Entraram
nela, subiramasescadasdacasa,para iremtercomaavó.Noquarto, tudoestava
nos mesmos lugares, como outrora. O relógio de parede fazia tiquetaque e os
ponteirosrodavam;mas,aotransporemaporta,descobriramquehaviamcrescido,
quesetinhamtornadopessoasadultas.
As rosas do algerozhaviamdesabrochadopara dentro das janelas abertas.E lá
estavam os dois pequenos banquinhos. Kay eGerda sentaram-se neles, de mãos
dadas, como nos outros tempos. Tinham esquecido, como se de um pesadelo se
tratasse,osfriosesplendoresdaRainhadasNeves.Aavóestavasentadasobobrilho
doSol deDeus e lia aBíblia: «Se não fordes como as crianças, não entrareis no
ReinodosCéus.»
Kay e Gerda olharam-se e compreenderam melhor do que nunca o velho
estribilho:
Asrosascrescemnosvales.
LácomungamoscomoMeninoJesus!
Permaneceramdurantemuitotemposentados,dandoasmãos.Tinhamcrescido
e,apesardisso,continuavamasercrianças,criançasnosseuscorações.
Eraverão.
Overãoquenteeabençoado.
AHistóriadeUmaMãe
Estavaumamãesentadajuntodasuapequenacriança,tãoaflitaereceosadeque
elaviesseamorrer.Omeninomostrava-setãopálido,ospequenosolhostinham-se
fechado,respiravalentamenteedevezemquandocomumaaspiraçãofunda,como
quesuspirava,eamãeolhavacadavezmaisangustiadaparaapequenaalma.
Bateram então à porta e entrou um pobre velho envolvido como que numa
grandemantadecavalo,poisestaaquece,ebemprecisavaeledela,jáqueestavaum
inverno frio.Lá fora estava tudo coberto de gelo e neve e o vento soprava de tal
modoquecortavaorosto.
Como o velho tremia de frio e o menino dormia por um momento, a mãe
afastou-se,deitoucervejanumpúcaroepô-lanofogãoaaquecerparaovelho.Este
sentou-seecomeçouaembalaroberço,entretantoamãepuxouumacadeirapara
junto dele e ficou sentada a olhar para o filho doente, que respirava tão fundo,
levantando-lheapequenamão.
—Nãocrêsbemqueficareicomele?—perguntouela.—Deusnãoirátirar-
mo!
Ovelho,queeraaprópriaMorte,acenoucomacabeçatãoestranhamente,que
tantopodiaquererdizer sim comonão.E amãepousouos olhosno regaço e as
lágrimascorreram-lhepelaface.Acabeçapesava-lhe.Durantetrêsnoitesetrêsdias
nãofecharaosolhos,entãodeixou-sedormir,massóummomento,poislogodeu
umpulo,levantando-seatremerdefrio.
—Queé isto?—disse,olhandopara todosos lados.Ovelhodesapareceraeo
meninotambém.Levara-oconsigo.Lánocanto,orelógioantigozuniuezuniu,o
pesograndedechumbofoiescorregandoatéaochão,Pum!Eassimficoutambém
silencioso.
Apobremãesaiudecasaacorrer,chamandopelofilho.
Cá fora, no meio da neve, estava sentada uma mulher com um vestido preto
compridoquedisse:
—AMorteestevenatuacasa,bemavi.Saiuatodaapressacomatuacriança.
Corremaisvelozdoqueoventoenuncadevolveoqueleva!
—Diz-mesóquecaminhotomou!—retorquiuamãe.—Diz-meocaminho,
queeuaacharei!
—Seiquecaminhotomou!—respondeuamulherquevestiadepreto.—Mas
antes de dizer-to tens de cantar-me todas as canções que cantaste ao teu filho!
Gostodelas,jáasouvi.SouaNoite,viastuaslágrimasquandoascantavas!
—Cantá-las-eitodas,todas!—respondeuamãe.—Masnãomeretenhas,para
quepossaacharomeufilho!
No entanto, aNoite ficoumuda e queda. Amãe, torcendo asmãos, cantou e
chorou;erammuitasascanções,masaindamaisaslágrimas.EaNoitedisseentão:
—Meteàdireitaeentranoescurobosquedeabetos,foiaíqueviaMortetomar
caminhocomatuacriança!
No fundo do bosque os caminhos cruzavam-se e ela já não sabia por onde ir.
Haviaaíumespinheiro,semfolhasnemflores—estava-senoinverno—eageada
caía-lhedosramos.
—NãovistepassaraMorteporaquicomomeufilho?
—Claro que vi!— observou o espinheiro.—Mas não te digo que caminho
tomousemprimeiromeaqueceresnoteucoração!Tenhoumfriodemorte,estoua
ficarcompletamentegelado!
Ela apertou o espinheiro contra o peito, bem apertado, para poder aquecê-lo
bem,eosespinhosentraram-lhenacarneeosanguecorreu-lheemgrandesgotas.
Doespinheiro,porém,rebentaramfrescasfolhasverdesebrotaramfloresnaquela
noitefriadeinverno,tantocalorhavianocoraçãodeumamãeaflita.Eoespinheiro
indicou-lheocaminhoquedeviaseguir.
Chegouentãoaumgrandelago,ondenãohavianembarconembarcaçaparao
atravessar. Não estava suficientemente gelado para que pudesse aguentar-lhe o
peso,nemabertoebaixoosuficienteparapassaravau,mastinhadeatravessá-lo,se
queriaencontrarasuacriança.Deitou-se,então,naterra,parabeberolago,oque
eranaturalmente impossívelparaum serhumano,mas amãe, aflita,pensavaque
podiadar-seummilagre.
—Não,assimnuncaconseguirásnada!—disseo lago.—Vamosverantes se
chegamosaacordo!Gostodecolecionarpérolaseosteusolhossãoosmaisclaros
que já vi. Se chorares até osperderesparamim, levar-te-ei à grande estufa onde
viveaMorte,cultivandofloreseárvores.Cadaumadelaséavidadeumhumano.
—Oh!Oquenãodoueuparachegaraomeufilho!—exclamouamãe,exausta
de chorar; mas chorou ainda mais e os olhos caíram no fundo do lago,
transformando-seemduaspérolaspreciosas.
O lago, então, levantou-a comonumbaloiço e num só impulso ela voou até à
outramargem.Haviaaíumacasaestranhacomaextensãodemilhas.Nãosesabia
seeraummontecombosqueecavernas,ouseassimforaconstruída,masapobre
mãenãoapodiaver,tinhaperdidoosolhosachorar.
—OndeachareiaMortequelevouomeufilho?—perguntouela.
—Aindacánãochegou!—respondeuaVelhaMulherqueguardaasCampas,
que tomava conta da grande estufa daMorte.—Como achaste o caminho para
aquiequemteajudou?
—FoiNossoSenhorquemmeajudou!Eleémisericordiosoetutambémserás!
Ondeachareiomeufilho?
—Não sei como ele é—disse a velha—e tunãopodes ver.Muitas flores e
árvoresmurcharam esta noite.AMorte deve estar a chegar para transplantá-las!
Tubemsabesquecadaserhumanotemasuaárvoreouasuaflordavida,conforme
estádestinado a cadaum.Assim, como se veem, são iguais às outrasplantas,mas
têm bater de coração. Os corações das crianças também batem! Procura, talvez
reconheçasodatuacriança.Masoquemedássetedisseroquetensdefazer?
—Nada tenho para dar— respondeu a mãe—, mas irei por ti ao fim do
mundo!
—Bem,nofimdomundonadatenhoafazer—disseavelha.—Maspodesdar-
meo teu longocabelonegro.Tubemsabes,ébonitoegostodele!Receberásem
trocaomeucabelobranco,sempreéalgumacoisa!
—Senãoqueresmaisnadadoque isso—pronunciouamãe—,dou-to com
prazer!
Eassimlhedeuoseubelocabelo,recebendoemtrocaobrancodenevedavelha.
Entraram depois na estufa grande da Morte, onde flores e árvores cresciam
estranhamente umas entre as outras.Havia jacintos delicados sob campânulas de
vidro e lá estavam peónias grandes e vigorosas. Cresciam aí plantas aquáticas,
algumasmuitofrescas,outrasmeiodoentes.Nelasestavampousadascobras-d’água
e caranguejos pretos apertavam-lhe os pés.Havia palmeiras, carvalhos e plátanos
magníficos, salsa e tomilho florescente. Cada árvore e cada flor tinha um nome,
cadaumaeraumavidahumana.Aspessoasviviamainda,tantonaChinacomona
Gronelândia, emqualquerpontodomundo.Haviaárvoresgrandesempequenos
vasos, tãooprimidasque estavamprestes a rebentá-los,havia tambémemmuitos
lugaresumaflorzinhainsignificanteemterragorda,commusgoàvolta,cobertae
tratadacomcuidado.Amãe,aflita,contudo,curvava-sesobretodasasplantasmais
pequenas e escutava comobatia o coraçãohumanodentrodelas e, entremilhões,
reconheceuodoseufilho.
—Éeste!—gritou,estendendoamãosobreumaçafrãozinhoazulquependia
paraumlado,bastantedoente.
—Nãotoquesnaflor!—disseavelha.—MasficaaquiequandoaMortevier…
Esperoporelaatodoomomento…Nãoadeixesarrancaraplantaeameaça-aaté
defazeresomesmoàsoutrasflores,queelaficaráreceosa!Temderesponderpor
elasaDeus,nenhumapodeserarrancadasemEleprimeirodarautorização.
De súbito perpassou uma aragem gelada pela estufa e amãe cega pôde assim
aperceber-sedequeeraaMorteachegar.
— Como encontraste o caminho para aqui? — perguntou esta. — E como
conseguistechegarmaisdepressadoqueeu?
—Soumãe—respondeu.
AMorteestendeualongamãoparaaflorzinhadelicada,masamãemanteveas
mãos firmes à volta desta, bem de perto, receosa, contudo, de tocar na mínima
pétala.EntãoaMortesoprou-lhenasmãoseelasentiuqueessesoproeramaisfrio
doqueofriodovento,easmãoscaíram-lhedesfalecidas.
—Comovês,nadapodescontramim!—disseaMorte.
—MasDeuspode!—redarguiuamãe.
—EusófaçooqueElequer!—sentenciouaMorte.—SouoSeujardineiro!
Pego em todas asSuas flores e árvores e transplanto-aspara ogrande Jardimdo
Paraísonopaísdesconhecido,mascomoaícrescemecomoéaí,nãoousodizer-te!
—Devolve-meomeufilho!—pediuamãe,chorandoeimplorando.Desúbito
estendeuambasasmãossobreduasbelasfloresegritouparaaMorte:
—Arrancotodasastuasflores,poisestoudesesperada.
—Nãolhestoques!—exclamouaMorte.—Dizesqueésmuitoinfelizeagora
querestornaroutramãeigualmenteinfeliz!…
—Outramãe?—inquiriuapobremulher,logoretirandoasmãosdasflores.
—Aquiestãoosteusolhos—disseaMorte.—Pesquei-osnolago.Brilhavam
tanto!Nãosabiaqueeramteus,toma-os,agorasãomaisclarosdoqueantes.Olha
agoraparaofundodessepoçoaí.Voudizer-teosnomesdasduasfloresquequerias
arrancareverástodooseufuturo,todaasuavidahumana.Observaoquequerias
perturbaredestruir!
Amãeolhouentãoparaofundodopoço.Viucomoumasetornavaumabênção
paraomundo,quantafelicidadeealegriaespalhavaàsuavolta.Depoisviuavidada
outra,etudoeratristezaemiséria,horroredesgraça.
—AmbassãoavontadedeDeus—disseaMorte.
—Qualéaflordadesventuraequaladaventura?—perguntouamãe.
— Isso não te digo— respondeu aMorte—,mas saberás demim que uma
dessasfloreseraadoteufilho.Foiodestinodelequeviste,ofuturodatuaprópria
criança!
Entãoamãegritouaterrorizada:
—Qualdelaseraomeufilho?Diz-mo!Salvao inocente!Salva-odetodaessa
desgraça!Leva-oantes!Leva-oparaoreinodeDeus!Esqueceasminhaslágrimas,
esqueceasminhassúplicasetudooquedisseefiz!
—Nãotecompreendo!—observouaMorte.—Queresquetedevolvao teu
filhooudevolevá-loparalá,paraesselugarquenãoconheces?
Entãoamãe,torcendoasmãos,deixou-secairdejoelhoserogouaDeus:
—Nãomeoiças, sesuplicocontraaTuaVontade,queé justa!Nãomeoiças!
Nãomeoiças!
E inclinouacabeçaparao regaço.EaMortepartiucomacriançaparaopaís
desconhecido.
APrincesaeaErvilha
Era uma vez um príncipe que queria casar com uma princesa, mas com uma
princesaque fosse verdadeira.Viajoupor todoomundo àprocuradeumaqueo
fosserealmente,masemtodasasqueencontroudescobriusemprealgoquenãolhe
agradava.Princesashaviamuitas;mas,quantoaconsiderá-lasverdadeiras,nãofora
capazdedecidir.Haviasemprealgumacoisaquenãoeradeumaprincesagenuína.
Regressou à pátria, muito triste, pois desejava, deveras, casar com uma princesa
verdadeira.
Uma noite estalou uma tremenda tempestade. Relampejava e trovejava, e caía
chuvaqueDeus adava!Erahorrível!Então, alguémbateuàportada cidadeeo
velhoreiveioabri-la.
Eraumaprincesaqueestavaláfora.Mas,SantoDeus,emqueestadoatinham
posto a chuva e o mau tempo! A água escorria-lhe dos cabelos, sobre a roupa,
entrando pela biqueira e saindo pelo calcanhar. Era uma verdadeira princesa,
declarouela.
—Está bem, em breve o saberemos!—pensou a rainha velha, que, contudo,
nada disse. Dirigiu-se ao quarto de hóspedes, tirou a roupa da cama, pôs uma
ervilhasobreastábuasdoleito,edepois,colocouvintecolchõesporcimadaervilha
esobreestesaindamaisvinteedredões.
Eraaíquenessanoiteaprincesairiadormir.
No outro dia de manhã perguntaram-lhe se havia dormido bem. — Oh,
terrivelmente mal!— respondeu a princesa.—Quase não preguei olho toda a
noite!SabeDeusoquetinhaacama!Estivedeitadasobrequalquercoisaduraque
meencheuocorpodenódoasnegras!Foiumanoitehorrível!
Orei,arainhaeoprópriopríncipepuderamdestemodoverificarquesetratava
deumaverdadeiraprincesa.Naverdade,sóumagenuínaprincesapodiaserassim
tãosensível.
O príncipe tomou-a, então, por esposa, pois tinha agora a certeza de ter
encontrado uma princesa de verdade, e a ervilha foi colocada nummuseu, onde
aindapodeservista,seninguématiroudelá.
Poisestaétambémumahistóriaverdadeira!
ABorboleta
A borboleta queria uma noiva e, naturalmente, pretendia a mais bonita das
florzinhas.Olhouparacadaumadelas.Estavamsilenciosasemuitodiscretasnoseu
caule,conformeconvémajovensdonzelascasadoiras.Mas,comoerammuitas,era
muitodifícilescolher.
Então a borboleta voou para junto da menina malmequer. Os franceses
descobriramqueestaflorpossuiodomdaprofecia.Osnamoradosarrancam-lheas
pétalas uma a uma, fazendo perguntas sobre o parceiro: «Gosta de mim?»,
«Pouco?»,«Muito?»,«Nada?».Cadapessoafazasperguntasnasuapróprialíngua.
Aborboletatambémainterrogou,masemvezdelhearrancaraspétalas,beijou-as
umaauma,poisacreditavaqueagentilezadámelhoresresultados:
—Docemalmequer!Ésamulhermais inteligentede todasas flores.Diz-me,
devoescolherestaouaquelaflor?Qualdelasdevoescolherparanoiva?Assimque
meresponderes,voareinasuadireçãoepedi-la-eiemcasamento.
Masameninamalmequernãodisseumapalavra.Ficouaborrecidaporquelhe
tinham chamado «mulher», sendo ela solteira e, ainda por cima,muito jovem. A
borboleta fezaperguntaumaeoutravezmas,comonãoobteveresposta,acabou
por desistir e voou para longe disposta a encontrar uma noiva sem a ajuda de
ninguém.
Estava-se no começo da primavera; as campainhas brancas e os açafrões
floresciamportodoolado.
—Sãomuitobonitas—disseaborboleta—masmuitojovens.
Preferiameninasmais velhas, como acontece com amaioria dos rapazesmais
novos.Voou para junto das anémonas,mas achou-as um pouco secas demais. As
violetaseramdemasiadoromânticaseastúlipasdemasiadoalegres.Oslírioseram
muitoplebeus,asfloresdetíliaerammuitopequenase,alémdisso,tinhammuitas
irmãs.Écertoqueasfloresdemacieirapareciamrosas,masfloresciamnumdiae
caíamnoseguinte,levadaspelovento.Seriaumcasamentodemasiadobreve.
A florquemais lhe agradou foi ada ervilhade cheiro.Eravermelhaebranca,
fina e delicada; pertencia à categoria das raparigas caseiras que são bonitas e, ao
mesmotempo,sabemcozinhar.
Iapedi-laemcasamentoquandoviuaseuladoumavagemdeervilhacomuma
flormurchanaponta.
—Queméesta?—perguntou.
—Éminhairmã—respondeuaervilhadecheiro.
—Oh!Énissoquetetransformarás!
Assustadacomaideia,aborboletavoouparalonge.
Amadressilva floresciapelasencostas.Haviamuitas,comfacesredondasepele
amarela. Não gostou da espécie. Sim, mas afinal de contas, de quem é que ela
gostava?
Boapergunta!
A primavera passou e o verão também.Chegou o outono e a borboleta estava
longe de se decidir. As flores estavam agora mais bonitas, usando roupagens
coloridas,masdequelhesserviam?Faltava-lhesafrescuraeoaromadajuventudee
é precisamente por essa fragrância que o coração anseia quando se envelhece.As
dáliasnãopossuemqualqueraromaemparticulare,porisso,aborboletafoivera
hortelã.
—Na verdade não tem flores,mas toda ela é uma flor, perfumada dos pés à
cabeça,comumdocearomaemcadafolha.Sim,éelaquedesejo.
E,finalmenteaborboletapediu-aemcasamento.
Porém,ahortelãficourígidaecalada.Porfim,respondeu:
— Seremos amigos, se quiseres,mas nadamais. Sou velha e tu também o és.
Podemos viver umpara o outro,mas casar, não.Não façamos figura de tolos na
nossaidade.
E foi assimqueaborboleta ficou solteira.Tinhahesitadodemais,oquenãoé
sensato.Aborboleta«ficouparatia»,comosecostumadizer.
Ooutono ia jáavançadoeovento friovergavaos troncos trémulosdospobres
salgueiros, fazendo-os estalar.Quando o tempo está assim, não é nada agradável
voaremtrajedepasseio.Masaborboletanãovoavapeloscampos.Pormeroacaso
tinha entrado numa sala que tinha a lareira acesa. O ar estava tão quente que
pareciaverão.Porisso,conseguiumanter-seviva.
—Manter-mevivaapenas,nãochega—pensavaaborboleta.—Faz-mefaltao
brilhodoSol,aliberdadeeumaflorzinhaparaamar.
Então voou contra o vidro da janela. As pessoas viram-na, admiraram-na,
espetaram-lheumaagulhae juntaram-naàcoleçãodeborboletas.Foi tudooque
puderamfazerporela.
—Agora estou assente num caule, tal como as flores— disse a borboleta.—
Não é muito agradável. É tal e qual como o casamento: está-se firmemente
agarrado.
Aborboletaconsolava-secomestepensamento.
—Pobreconsoloodela!—murmuraramasfloresdosvasosdasala.
—Nãomepossofiarnaopiniãodasfloresdosvasos—pensouaborboleta.—
Convivemdemasiadocomossereshumanos.
OBule
Era uma vez um Bule muito orgulhoso. Orgulhoso por ser de porcelana,
orgulhoso do seu longo bico e orgulhoso da sua asa bojuda. Tinha o bico à sua
frenteeaasaatrásdesi.Eraacercadosdoisquefalavasemparar.
Nuncafalavada tampaqueestavapartidaecolada,ouseja,queeradefeituosa.
Ninguémgostadefalardosseusdefeitos,bastaqueosoutrosofaçampornós.
Aschávenas,aleiteiraeoaçucareiro—numapalavra,todooserviçodechá—
pensavammuitomaisnosdefeitosda tampa e falavammuitomais acercadelado
queacercadaasarobustaedobicotãodistinto.
OBulesabiaqueassimera.
«Conheço bem osmeus defeitos— disse o Bule para com os seus botões.—
Reconheço-os e admito-os. Penso que é nisso que reside aminha humildade e a
minhamodéstia.Todostemosmuitosdefeitos,mastambémtemosvirtudes.
Aschávenastêmasas,oaçucareirotemumatampa.Maseutenhoasduascoisas
e,alémdisso,possuoaquiloquenenhumdelesjamaisterá—umbico—eéporsua
causaquesouoreidamesadechá.
A função do açucareiro e da leiteira é servir iguarias,mas sou eu que impero.
Repartobênçãospelahumanidadesedenta.Nomeuinterior,asfolhaschinesasdão
saboràáguaquenteeinsípida.»
EraassimqueoBule falavanos temposdasua juventude.Estavasobreamesa
posta para o chá e foi levantado por mãos delicadas. Mas as mãos delicadas
revelaram-se muito desajeitadas. O Bule caiu no chão, o bico quebrou-se, a asa
partiu-seedatampanemsefalaporquejásedissetudooquehaviaadizersobre
esseassunto.
O Bule jazia desmaiado no chão, deixando escorrer do seu interior a água a
ferver. Foi um rude golpe. O pior foi que toda a gente se riu dele e da mão
desajeitadaqueodeixaracair.
«Nuncameesquecereidessedia!—diziaoBulequando,maistarde,falavacom
osseusbotõesacercadopassado.—Chamaram-me inválidoepuseram-meaum
canto.Nodiaseguintederam-meaumamulherqueveiomendigarumpoucode
comida.Caínamiséria,tãoinútilpordentrocomoporfora.
Foientãoquecomeçouparamimumavidamelhor.Começa-seavidasendouma
coisaederepentepassa-seaseroutrabemdiferente.
Encheram-medeterra,oqueparaumBuleéomesmoqueserenterrado,ena
terraplantaramumbolbodeflor.Quemopôsláemoofereceu,nãoseidizer.Foiaí
plantado,substituindoasfolhaschinesas,aáguaaferver,aasaeobico.
O bolbo ficou na terra, dentro de mim, tornando-se o meu coração, o meu
coração cheio de vida, coisa que nunca tinha possuído antes.Havia vida nomeu
interior,haviaenergiaepoder.Palpitava.Obolbogerminou,libertoupensamentos
e sentimentos que brotaram numa flor. Vi-a, sustentei-a e esqueci-me de mim
próprioperanteasuabeleza.
Éumabênçãoesquecermo-nosdenósprópriosevivermosparaosoutros.Não
me vangloriei, nem sequer pensei em mim. Todos a admiravam e eu sentia-me
honrado.
Umdiadisseramqueaflormereciaumvasomelhor.Partiram-meemdois,—
que dor! — plantaram-na noutro vaso e atiraram-me para o pátio onde me
encontroquebradoemmilbocados.Masconservoestarecordação,eninguémma
podetirar!»
OCaracoleaRoseira
Emredordojardimcresciaumaneldeaveleiras.Paraalémdelasestendiam-seos
camposeospradosondepastavamovelhasevacas.Nocentrodojardimcresciauma
roseiracarregadaderosase,àsuasombra,viviaumcaracolquetinhamuitodentro
desi—nomeadamente,tinha-seasipróprio.
—Paciência!—diziaocaracol.—Hádechegaraminhahora.Fareimuitomais
doquedarrosasouavelãs,muitíssimomaisdoquedarleitecomofazemasvacase
asovelhas.
— Espero muito de ti — disse a roseira. — Posso perguntar-te quando me
mostrarásoqueéscapazdefazer?
—Calma!—respondeuocaracol.—Andassempreapressada.Nãoéassimque
sepreparamasboassurpresas.
Um anomais tarde, o caracol estendia-se ao sol quase no mesmo lugar onde
estiverano ano anterior, enquanto a roseira se afadigava a criar novos botões e a
mantertodasasrosasfrescaseluzidias.Ocaracolpôsmeiocorpoforadacarapaça,
estendeuospauzinhosevoltouarecolhê-los.
—Nada de novo— disse. —Não se vislumbra progresso algum. A roseira
continuaatratardassuasrosaseissoétudooquefaznavida.
Passou o verão e chegou o outono. A roseira continuou a dar novos botões e
novasrosas.Porfim,anevecomeçouacaireotempoficouhúmidoefrio.Aroseira
dobrou-sesobreaterraeocaracolescondeu-senosolo.
Começouumnovoanoeasrosasvoltaramaflorireocaracolvoltouasair.
— Já és uma velha roseira— disse o caracol.—Deves apressar-te emorrer,
porquejádesteaomundotudooquepodiasdar.Seissotevealgumvalorécoisaem
queaindanãotivetempodepensar.Masoqueécertoéquenãofizestenadapara
progredirespessoalmente.Caso contrário, terias feitonasceroutras flores.Oque
tensadizersobreisto?Embreveserásapenasumtroncoseco.Compreendesoque
teestouadizer?
—Estásaassustar-me!—respondeuaroseira.—Nuncapenseinisso.
—Não,nunca te deste ao trabalhodepensar.Alguma vez te interrogastepor
que razão florescias e como florescias? E porque o fazias dessa forma e não de
outra?
—Não—respondeuaroseira.—Ficavafelizaofazê-loenãoopodiaevitar.O
sol era tão quente e o ar tão refrescante!... Bebia o límpido orvalho e a chuva
generosa.Respirava,vivia.Aminhaforçaprovinhadointeriordaterraetambémdo
ar.Sentia uma felicidade sempre renovada, intensa e, por isso, tinhade florescer.
Eraessaaminhavida.Nãopodiafazeroutracoisa.
—Tivesteumavidademasiadofácil—disseocaracol.
—Éverdade—concordouaroseira.—Davam-metudo.Mastutivesteainda
maissortedoqueeu.Fosteumadessascriaturasquepensammuito,umdessesseres
tremendamenteinteligentesquesepropõemdeslumbraromundo.
—Não,não,demodonenhum—negouocaracol.—Omundonãoexistepara
mim. Que tenho eu a ver com ele? Já é suficiente que me ocupe comigo e só
comigo.
—Mas não devíamos todos nós dar aos outros o melhor de nós próprios? É
verdadequesótedeirosas;mastu,queéstãodotado,oquedesteaomundo?Oque
podesdar-lhe?
—Dar-lhe?Daraomundo?Cusponomundo!Paraque serveomundo?Não
significanadaparamim.Anda,continuaacultivarastuasrosas.Sóservesparaisso.
Deixaqueoscastanheirosproduzamosseusfrutos,queasvacaseasovelhasdeem
oseuleite.Cadaumtemoseupúblicoeeutenhotambémomeudentrodemim
mesmo.Recolho-menomeuinterioreaíficarei!Omundonãomeinteressa.
Dizendoisto,ocaracolmeteu-sedentrodasuacarapaçaeporláficou.
—Quepena!— lamentou-se a roseira.—Não tenho formademeesconder,
pormaisque tente.Heide regressarumaeoutra vez,mostrando-meatravésdas
minhasrosas.Assuaspétalascaemeoventoarrasta-as.Certodiaviumamãeque
guardouumadasminhasfloresentreasfolhasdolivrodeorações;outravez,uma
rapariga bonita prendeu ao peito uma das minhas rosas e houve também um
meninoquebeijououtrarosa,cheiodealegria.Todosessesmomentosfizeramcom
queme sentisse bem, foram uma verdadeira bênção. São essas as recordações da
minhavida.
E a roseira continuou a florescer na sua inocência, enquanto o caracol dormia
dentrodasuacasa.Omundonadasignificavaparaele.
Passaramosanos.
Ocaracolvoltouàterra,oroseiraltambém,eacélebrerosadolivrodeorações
desapareceu. Mas, no jardim, brotavam novas roseiras e os novos caracóis
arrastavam-sedentrodassuascasas,pensandonomundoquenadasignificavapara
eles.
Voltamos a ler a nossa história desde o princípio?Não, não vale a pena: seria
sempreigual.
OHomemdeNeve
—Estáumfriomaravilhoso—murmurava,ohomemdeneve.—Equedelícia
sentiroventocortantepenetrar-menocorpo!Láestáaqueleaolhar-me,comos
seusolhosfixos...Poisnãoconseguefazer-mepestanejar...Seimuitobemcomohei
demanter-meinteiro!
Referia-seaosolquedesaparecianohorizonte.Eraumbonecoqueassimfalava,
umbonecodeolhostriangulares,feitosdedoisbocadosdetelha,ecomumancinho
atravessadonaboca,afazerdedentadura.Vieraaomundonomeiodosaplausosda
criançada,saudadopelascampainhasdostrenósepeloschicotesdoscondutores.
DesapareceuoSolesurgiuaLua,grandeeredondanocéuazul,cheiadeluze
demajestade.
—Lávemeledooutrolado—disseohomemdeneve,supondoquesetratava
aindadoSol.—Jánãolançaraiospelosolhos.Erabomqueficasseali,paraqueeu
mevejaamimmesmo.Seeusoubessecomosairdaqui…Gostavatantodeandar!Se
pudesse,patinavanogelocomoascriançasfazem.Opioréquenãoseicorrer...
—Au! Au!— ladrou o cão de guarda. Estava um tanto rouco, coisa que lhe
aconteciadesdeotempoemquedeixaraoconfortodolarparaviveraoarlivre.—
OSolteensinaráacorrer.Assimaconteceuaoteuantecessordoanopassado,eao
outro,anterioraesse.Au!Au!Todosdesapareceram.
—Nãocompreendooquedizes,amigo—respondeuohomemdeneve.—O
queestáláemcimavaiensinar-meacorrer?(Agorareferia-seàLua).Sim,nãohá
dúvidadequeébomcorredor...Estáadeslizarmuitodepressa.
—Comopodessaberqualquercoisa—atalhouocãodeguarda—seacabasde
sermodelado?Oqueestásaverchama-seLua,oquedesapareceueraoSol.OSol
voltaráamanhãeesseéquetevaiensinaracorrerparaoaterro.Teremosmudança
detempomuitoembreve,éoquemedizapataesquerdadastraseiras,comassuas
picadinhas.Sim,senhor,otempovaimudar.
— Não percebo o que ele quer dizer, mas desconfio que fala de coisas
desagradáveis.Palpita-mequeesseaquechamamSolnãoémeuamigo.Écáuma
suspeita…—murmurouohomemdeneve.
— Au! Au! — repetiu o cão, dando três voltas antes de se deitar na casota,
dispostoadormir.
Otempomudou,efetivamente.Demanhã,caiuumacortinadenevoeiroespesso
e húmido sobre toda aquela região. Soprava um vento glacial, mas que lindo
espetáculoaonascerdoSol!Asárvores,osarbustosestavamcobertosdegeada:dir-
se-ia uma floresta de coral branco, com os galhos carregados de flores brancas e
reluzentes.Surgiamagoranítidastodasashastezinhasqueafolhagemestivalnão
deixavaver.Eraumarendaedetalbrancuraquesetinhaaimpressãodesairluzde
cada ramo.O chorão ondulava ao vento, cheio de vida.E, quando o Sol nasceu,
tudocintilavacomoseapaisagemfossepolvilhadadediamantes!
— Que vista maravilhosa! — disse uma rapariga que passava no jardim na
companhia de um rapaz. Parara justamente ao lado do homem de neve, a
contemplarasárvoresreluzentes.—Overãonãonosoferecepaisagenstãobelas.
—Eumjovemcomoaqueletambémnãoéfácildeconseguir—acrescentouo
rapaz,designandooboneco.
Araparigariu,cumprimentouohomemdeneveepuseram-seosdoisadançarà
suavolta.
—Quemsão?—perguntouobonecoaocãodeguarda,quandooparsehavia
retirado.
—Conheço-osbem—respondeuocão.—Elafaz-mefestaseeledeu-meum
ossoumavez.Aesses,nãomordo.
—Masquemsão?
—Estãonoivos.Vãohabitaramesmacasotaeroeroseuossodesociedade.
—Têmmaisimportânciadoqueeuoutu?
—Pertencemàcategoriadosdonos.Bemsevêqueésrecém-nascido.Eu,que
não sou novato, percebo alguma coisa da vida.Conheço todos os de casa.Houve
tempoemquenãoestavacáforaamarradoaumacorrenteeaapanharfrio.
—O frio é delicioso— afirmou o homemde neve.—Conta lá o que sabes,
conta,masnãoarrastesacorrente,quemedásarrepios.
—Au!Au!Fuicachorromimado,dormianapoltronadeveludo,saltavaparao
colo dos donos. Beijavam-me o focinho, limpavam-me as patas com lenços
bordados. Tratavam-me por diminutivos graciosos. No entanto, fui crescendo,
tornei-me grande de mais, e nessa altura mandaram-me para o quarto da
governanta.Foiassimquepasseiavivernacave.Daí,podesveroquartocomoseu
fogão. Era lugar ameno, apesar de modesto. Vivia aí com maior conforto e as
criançasdacasanãoestavamconstantementeapuxar-mepelacaudaepelasorelhas,
comoacontecianasala.Averdadeéquenãomefaltavaalimento,possuíaalmofada
paradormir...Equantoaofogão...quefaltamefazagora!Au!Au!
—Ofogãoécoisabonita?Éparecidocomigo?
—Exatamenteocontráriodatuapessoa.Negrocomocarvão,comumpescoço
comprido e fornode cobre.Come lenha e cospe fogopela boca.Não imaginas o
prazerqueéestarpertodele.Podesvê-lodaí.Repara.
Ohomemdeneveolhouparadentrodecasaeviuumobjetopretobembrunido,
comoseufornodecobre.Porbaixoluziaolume.Eohomemdenevesentiuuma
sensaçãodifícildeexplicar.
—Porquesaístedelá?Comopudesteabandonarumsítiotãobom?
—Fuiobrigado.Puseram-menaruaeamarraram-meaestacorrente.Tudopor
termordidoapernadeummiúdoquemetiraraoossoqueeuroía!Levaramaquilo
amal,evimparaaqui,ondeavozmeenrouqueceu.Istoéofim.
Ooutrojánãoescutava.Tinhaosolhosfitosnacavedagovernantaeemespecial
nofogão.
—Que sensação, na verdade... Quem me dera entrar naquele quarto! É um
desejoinocente,e,comotal,deviarealizar-se.
—Nunca!—declarouocão.—Seteaproximasses,aideti!Estavaspronto.
—Dánomesmo.Parecequemequebroemdois,semsequerentrarnoquarto
dofogão.
Todoodiaficouohomemdeneveaolhar,atravésdajanela,paraointeriordo
aposento.Este,aocrepúsculo, tornou-seaindamaissedutor.Olumeiluminava-o
comumasuavidadequeaLuanãotem.Sóumfogãoseriacapazdedaraquelaluz:
selheabriamaporta,saíaumachamarubra,queseiarefletirnacaradoboneco.
—Estáadeitaralínguadefora—diziaohomemdeneve,embevecido.
Anoitefoicomprida,masnãoparaohomemdeneve,quesemanteveentregue
aosseuspensamentos.Pelamanhã,asjanelasdacave,cobertasdegelo,formavamas
mais lindas flores de uma brancura ideal. Mas, ao mesmo tempo, escondiam o
quarto.Ohomemdenevedeviasentir-sefeliz,econtudonãooestava.Faltava-lhe
avistadofogão.
—Seioqueteaflige—observouocão.—Éasaudade...Tambémsofridessa
doença,mascurei-me.Au!Au!Otempovaimudar.
Mudou, realmente.Eraodegelo.Esteaumentou,ohomemdenevediminuiu.
Nãodissenada,nãosequeixou.Tinhadeserassim.
Certo dia, esbarrondou-se. No lugar onde ele estivera, ficou um atiçador do
lume,emvoltadoqualosgarotosohaviammodelado.
—Agora compreendo—disse o cão.—O sujeito, afinal, tinha o atiçadorno
corpo,nãoadmiraquesentisseanostalgiadofogão.Foiissoqueomatou.
Entretanto,acabavaoinverno.
—Au!Au!—ladravaocãodeguarda.
Asmeninasdacasapulavam,cantandoebrincandonomeiodasuaalegria.
Jáninguémselembravadohomemdeneve.
OsVerdinhos
Havia uma roseira perto da janela. Até há bem pouco tempo estava verde e
florida,masagoratinhaumaspetodoentio—algumacoisacorriamal.
Um regimento de invasores estava a comê-la; e, diga-se de passagem, era um
regimentomuitodecenteerespeitável,deuniformeverde.
Faleicomumdosinvasores.Sabesoquemedisse?Bem,tudooquemedisseé
verdade—falouporeleeportodososoutros.
Ouvebem!
«Somos omais refinado de todos os regimentos domundo!Os nossos jovens
nascemnoverão,quandofazbomtempo.Ficamosnoivosecasamoslogoaseguir.
Quandootempoarrefece,pomosovoseaquecemo-los.Aformiga,amaissábiadas
criaturas (respeitamo-lamuito!),estuda-noseaprecia-nos.Nãonoscomea todos
de uma só vez; transporta os nossos ovos e coloca-os na cave do formigueiro,
camada sobre camada, todos etiquetados e numerados, lado a lado, demodo que
cadadiapossasairumdoovo, semdificuldade.Leva-nosparaamesa, imobiliza-
nosaspatasposterioresesuga-nosatéàmorte.Éumasensaçãoagradabilíssima.As
formigaschamam-nosomaislindodosnomes:vaquinhasleiteiras!
Éassimquenoschamamtodasascriaturascombomsenso;oshumanossãoos
únicosquenãoofazem.Aofensaétãograndequevivemosamargurados.Seráque
podesescrever, emnossonome,umprotesto contra esta situação?Podespôressa
genteno seudevido lugar?Olhamparanós comumar tão estúpido e ciumento!
Apenas porque comemos folhas de rosas.Mas eles comem toda a criação, tudo o
queéverdeouquecresce.
Oh,chamam-nosonomemaisdesprezíveledetestáveldetodos!Nemsequero
voupronunciar!Ugh!Dá-mevoltaaoestômago;não,nãoovoudizer,pelomenos
enquantousaruniformeeeuuso-osempre!
Nascinuma folhade rosa.Todoomeu regimento vive à custada roseira.Em
compensação, é graças a nós que muitos dos seres colocados num ponto mais
elevado da escala da Criação subsistem. Os humanos detestam-nos!Matam-nos
com água de sabão, uma bebida horrorosa! Parece-me que estou a sentir o seu
cheiro. É pavoroso ser-se lavado quando não se nasceu para tomar banho. Ó
homem!Tuquenosvêscomolhosestupidamenteenevoados,tememcontaonosso
lugarnanatureza.Pensanaformaartísticacomopomosovosecriamososnossos
filhos!«Cresceiemultiplicai-vos»tambémseaplicaànossaespécie!Nascemosnas
rosaseénelasquemorremos.Anossaexistênciaéumpoemamaravilhoso.Nãonos
chamempelonomeque consideram tãodepreciativo ehorroroso—onomeque
nãoousopronunciar!Emvezdele, chamem-nosvaquinhas leiteiras,o regimento
daroseira,osverdinhos!»
Eu,ohomem,fiqueiaolharparaaroseiraeparaosverdinhos—cujoverdadeiro
nomenãome atrevo a pronunciar porque não quero ferir os sentimentos de um
cidadãodaroseira,umagrandefamíliacomovosemuitascrianças.Equantoàágua
desabãoqueiausarparaoslavar—porquemetinhaaproximadocomsabãoeágua
eintençõesperversas—vouagitá-laatéfazerbolasdesabão.Ficareiacontemplar
todaasuabeleza.Talvezexistaumcontodefadasemcadaumadelas.
Abolacresceu,ficouenormeebrilhoucomtodasascoresdoarco-íris.Nocentro
parecia flutuar uma pérola de prata.Oscilou, desprendeu-se, voou para junto da
portaeesbarrounela.Aportaabriu-seesurgiuaFadadosContosemcarneeosso!
Sim,agoraéelaquetevaicontarmelhordoqueeuofinaldahistóriados...—não,
nãodigooseunomeverdadeiro—dosverdinhos.
—Dospiolhos!—corrigiu-meaFadadosContos.—Deveschamarascoisas
pelos seusnomes.Senemsempreteatrevesa fazê-lonavidareal,nosContosde
Fadasdevessercapazdeofazer.
Top Related