“Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei – Ano IV - Número IV – janeiro a dezembro de 2008.
CONSIDERAÇÕES ACERCA DA ARTE E DA VONTADE NO PENSAMENTO DE
NIETZSCHE
Bruna Dutra Fernandes (Bolsista do Grupo PET-Filosofia UFSJ) Profa. Dra. Glória Maria Ferreira Ribeiro (Orientadora - Tutora do Grupo PET Filosofia) Agência financiadora: MEC/SESu
Resumo: Esse artigo tem por objetivo compreender as relações entre arte e vontade
no pensamento do filósofo Friedrich W. Nietzsche. Sendo a vontade entendida por Nietzsche como impulso de liberdade e sinônimo de vida; um conjunto de afetos de comandos, pensamentos e sentimentos responsáveis pelas ações dos indivíduos, capaz de produzir arte. Vontade simboliza a força capaz de se apropriar dos fenômenos e lhes conferir sentido.
Palavras-chave: Arte, Vontade, Vida.
objetivo principal desse trabalho é evidenciar as relações entre arte e
vontade visando compreender, numa última instância, as principais características da
arte. Para cumprir este objetivo utilizaremos como obra base A Gaia Ciência, escrita
em 1882 e ampliada substancialmente alguns anos depois, com a acréscimo do quinto
capítulo, pelo filósofo alemão Friederich W. Nietzsche (1844-1900). Esta obra faz parte
do que convencionalmente é denominado de seu “período positivista”, surgido com a
obra Humano, demasiado humano (1878) - trazendo percepções e questões que
caracterizam o chamado “perspectivismo” de Nietzsche.
Na obra A Gaia Ciência o filósofo utiliza aforismos, versos humorísticos, textos
argumentativos, diálogos, parábolas, alegorias e poemas em prosa, para descrever
questões importantes e freqüentes em suas obras - tais como arte, moral, história,
conhecimento, ilusão e verdade. Essa obra visa livrar-se da moral judaico-cristã, uma
moral em que a vontade se volta contra si; na qual há uma negação da própria
vontade. Esta moral emerge a partir do fenômeno de interiorização da vida se
caracterizando por uma busca incessante de sentido (um sentido metafísico, espiritual,
em que tudo é determinado). Esse tipo de moral é considerada por Nietzsche como
um tipo de degeneração da vida. Como contraposição a esse tipo de postura face ao
fenômeno vital, ele (Nietszche) irá se dedicar a evidenciar a vida no seu sentido mais
autêntico.
Para se compreender a noção de vida em Nietzsche é de extrema importância
compreender as questões da arte e da vontade. Uma vez que a arte é tida como algo
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que acrescenta e completa a existência, o que possibilita ao homem “forças” para
prosseguir e persistir vivendo. Por seu lado, a vontade se mostra como um afeto
elementar: “como um afeto de comando, um querer interno, um comando de criar, de
introduzir interpretações sempre novas, sempre transformadoras e formadoras dos
existentes”. Mas o que leva essa vontade a criar a arte?
Ora, considerando que vontade para Nietzsche pode ser entendida como impulso de
liberdade e sinônimo de vida, um conjunto de afetos de comandos, pensamentos e
sentimentos responsáveis pelas ações dos indivíduos; ela (vontade) acaba por
simbolizar a força que se apropria dos fenômenos e lhes confere sentido. Poderíamos
a princípio dizer que: a vontade se manifesta como forma criadora da arte, através da
qual a “existência ainda nos é suportável”.
Nietzsche oferece três teses em relação a vontade: 1- para que surja a vontade é
necessário antes uma idéia de prazer e desprazer; 2- o fato de um estímulo ser
sentido como prazer ou desprazer está ligado ao intelecto interpretante que, em geral,
trabalha nisso de modo inconsciente, sendo que o mesmo estímulo pode ser
interpretado como prazer ou desprazer; 3- apenas nos seres inteligentes há prazer,
desprazer e vontade, a imensa maioria dos organismos não tem nada disso.
Porém, para esse pensador prazer e desprazer não são coisas distintas. Ele entende o
prazer, ou o mínimo de desprazer possível, como ausência de dor, e diz que na dor há
tanta sabedoria como no prazer – porque como este (prazer) a dor se situa entre as
forças de primeira ordem na conservação da espécie.
Por seu lado, a vontade é tida como símbolo da soberania e da força, com isso
Nietzsche distingue homens superiores dos inferiores. Sendo os superiores os homens
com poder de criação, “ele é o verdadeiro e incessante autor da vida” (NIETZSCHE,
2001,pág.204). Este, porém, pode cair numa ilusão quando acredita ser apenas mais
um indivíduo que assiste ao espetáculo da vida. Ele designa sua natureza de
contemplativa, e cai na ilusão justamente quando não percebe que é o responsável,
que é aquele que não cessa de criar sua própria vida. Nietzsche também compara
tais homens com aqueles que possuem característica superior, ou seja, aos poetas,
pois “lhe pertence como o poeta o poder de contemplação e o olhar retrospectivo
sobre a obra, mas também e sobretudo o poder criador”. (NIETZSCHE, 200, pág.204).
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Os superiores sofrem de abundância de vida, buscam uma arte dionisíaca, ou seja,
uma arte que representa a realidade, em que mesmo diante da visão do terrível, da
destruição, e decomposição da vida, esta arte “permite” ver o feio, o mau, porque nela
existe um excedente de forças, capaz de transformar essa realidade.
Contrariamente, o homem inferior, o pobre de vida busca uma arte da aparência, da
bondade, ele não possui esse excedente de força que permite encarar a vida como de
fato ela é. Este busca o que tranqüiliza, busca a ilusão como forma de suportar a vida.
Os homens inferiores são aqueles que buscam quietudes, redenções, seguranças.
Esses dois tipos de homens agem de formas ditintas. Para Nietzsche, o homem inferir
é aquele cuja ação tende para uma determinada direção, visando um objetivo
particular – é uma ação previamente determinada uma finalidade. Por sua vez, o
homem superior age de acordo com a vontade (de acordo com o lado mais autêntico
da vida). Esse tipo de ação possui energias contidas que se auto-afirmam sem
necessidade de uma finalidade que as oriente – a única orientação possivel é aquela
oriunda da própria dinâmica vital. Sendo assim, o homem superior possui como
objetivo do seu agir apenas uma força que orienta e não a força que move.
Ora, se mantivermos em mente que, a ação que se encontra de acordo com a vontade
é aquela própria dos poetas, nos será dado afirmar que a falta e a abundancia são
fenômenos criadores da arte. Isto porque toda criação implica na “destruição” de um
sentido que já se encontra previamente estabelecido para que um outro possa se
afirmar. Essa “destruição” acaba por evidenciar uma “falta” que deverá ser preenchida
por um novo sentido. Assim, toda ação genuína, toda ação poética implica na
afirmação dessa falta (daquilo que sempre deverá ser preenchido ou melhor dito,
afirmado) e na comemoração da abundância que se deixa entrever a cada falta
preenchida.
A arte é para Nietzsche uma expressão e interpretação da vida. Ela é um tipo de
instrumento que ajuda o homem a compreender sua existência, ela consegue levar o
homem a raciocinar sobre sua vida: sobre esse excesso e essa falta que a constitui;
evidenciando que a ilusão e o erro fazem parte da existência humana; e que a dor e o
prazer são fenômenos inerentes a vida. Com isso ele nos diz que, “como fenômeno
estético a existência ainda nos é suportável, e por meio da arte nos são dados olhos,
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mãos e, sobretudo, boa consciência, para bem poder fazer de nós mesmos um tal
fenômeno”(NIETZSCHE, 2001,pág.132).
Nietzsche faz um questionamento a respeito dos meios que possuímos para tornar as
coisas atraentes, belas, desejáveis, quando elas não o são. Na obra Nietzsche e a
Verdade de Roberto Machado1, “a beleza é tida como uma intensificação das forças
da vida que aumenta o prazer de existir”. Sendo assim, no pensamento de Nietzsche
os artistas são considerados como aqueles que permanentemente se dedicam a
buscar tais meios – é para ele (Nietzsche) ser sábio nessa busca consiste em ser
sempre criadores da própria vida.
Aos artistas é dada a característica de prover aos homens olhos e ouvidos para ver e
ouvir com algum prazer, o próprio real. Apenas eles “nos ensinaram a estimar o herói
escondido em todos os seres cotidianos, e também a arte de olhar a si mesmo como
herói, à distancia e como que simplificado e transfigurado – a arte de se “pôr em cena”
para si mesmo” (NIETZSCHE, 2001, pág.106). Para Nietzsche somente dessa
maneira, na tentativa de compreensão de nós mesmos, podemos lidar com minúcias,
particularidades em nós, o que possibilita com que vejamos o mais próximo, a mais
vulgar não como algo distante, separado de nossa existência. Sem a arte e sem a
criação do culto do não-verdadeiro, a ação ou faculdade de perceber a inverdade ( ou
seja, a mentira, o erro e a ilusão) como cláusula da existência seria insuportável para
nós. Dessa forma “a apologia da arte já significa, como sempre significará para
Nietzsche, uma apologia da aparência como necessária não apenas à manutenção,
mas à intensificação da vida”2, isto é, a arte atua como “boa vontade da aparência”.
Essa boa vontade da aparência pode ser melhor entendida pelo fato de que
eventualmente, segundo o autor aqui tratado, precisamos descansar de nós mesmos,
necessitamos descobrir um homem notável pelos feitos, pela valentia, e também a
futilidade que se manifesta de vez em quando, para assim continuar nos alegrando.
Portanto, seria uma regressão cair integralmente na moral.
A arte para Nietzsche é “superior” a moral porque ela representa uma manifestação
1 Roberto Machado é professor titular o Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade federal
do Rio de Janeiro (UFRJ). 2 Roberto, M. Nietzsche e a Verdade.
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mais autêntica da vida. Ela não se constitui numa prática, numa experiência de
dominação, pois quando e onde há alguém que domina, consequentemente existe
massas, o que faz com que haja uma necessidade de escravidão. E onde há
escravidão os indivíduos possuem contra si o instinto de rebanho, isto é, impulso
natural de fraqueza. Já a arte é algo que se sabe como “não-verdadeira”, porém ao
contrário da moral não tem desejos ou vontade de criar-se como absoluta, como algo
determinante. A moral funciona como algo que de certa forma impede, dificulta a
entrada, o conhecimento do próprio ser do indivíduo, impedindo o conhecimento das
paixões e da desordem que também o constitui.
A desordem, o caos, são fatores inerentes ao ser humano. No pensamento
nietzschiano, a verdadeira realidade do homem é a dor. O sofrimento, no entanto é o
que nos liberta dessa desordem e desse caos impostos pela própria vida. É no
sofrimento que essas coisas (caos, desordem) que vulneram muito fácil e que nos
atingem intimamente, se mostram como fatores de humanização do homem. É nessa
“fragilidade” humana, exposta pelo sofrimento, que entra a arte como uma forma de
suportar a realidade. Através dela pode-se ver a crueldade e a condição de ser
humano de forma bela e prazerosa.
O homem é um ser de vontade, seja ela degenerativa ou afirmativa. Nietzsche
compara a vontade com as ondas, o que fica claro na passagem em que diz:
(...) com que avidez esta onda se aproxima, como se houvesse algo a atingir! Com que pressa aterradora se insinua pelos mais íntimos cantos das falésias! É como se quisesse chegar antes de alguém; como se ali se ocultasse algo que tem valor, muito valor. – E agora ela recua, um tanto mais devagar, ainda branca de agitação – estará desiludida? Terá encontrado o que buscava? Toma um ar desiludido? – Mas logo vem outra onda, ainda mais ávida e bravia que a primeira, e também sua alma parece cheia de segredos e do apetite de desencavar tesouros. Assim vivem as ondas – assim vivemos nós, seres de vontade!
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Conclui-se que o homem sente a necessidade, “assim como as ondas” de buscar, de
criar o tempo todo. Sendo a arte e a vontade, no seu sentido mais autêntico, modos
de afirmação da vida - uma vez que a arte é tida como algo que acrescenta e completa
a existência, como o que encanta e impulsiona a prosseguir, e persistir vivendo.
Enquanto que a vontade revela-se como uma ação ou efeito de impelir o agir diante da
vida, um conjunto de sentimentos de atos de comandar, desígnios e sensibilidades
3 FRIEDRICHE, N. A gaia Ciência
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responsáveis por ações de indivíduos. Ou seja, a vontade se revela como algo de
primário a vida, como um querer que leva a ação e criações transformadoras. São
estas características da vontade que permitem a criação da arte - fenômeno que
torna a existência suportável.
Referências Bibliográficas: MACHADO, Roberto Cabral de Melo. Nietzsche e a Verdade, São Paulo: Paz e Terra, 1999.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A gaia e ciência. Tradução, notas e prefácio: Paulo César de
SOUZA. São Paulo: Companhia das letras, 2001.
____________. Humano, demasiado humano. Tradução, notas e prefácio: Paulo César de
Souza. São Paulo: Companhia das letras, 2005.
____________. Genealogia da Moral: Uma Polêmica. Tradução, notas e prefácio: Paulo Cde
Souza. São Paulo: Companhia das letras, 1998.
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