7/28/2019 Conferncias - Estudo sobre Santa Catarina de Sena (Os Paradoxos da Santidade)
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ESTUDO SOBRE SANTA CATARINA DESENAGustavo Coro
PRIMEIRA PARTEOS PARADOXOS DA SANTIDADE
I O AMOR E O DIO
No dia da festa de Santa Catarina de Sena, ouvimos no intrito da missa
estas palavras que convm nossa santa de modo admirvel: Dilexisti
justitiam et odisti iniquitatem.
Todos ns sabemos que o bem deve ser procurado e o mal evitado; e que
este fundamental discernimento, estandarte dos santos, o mesmo que
carregamos em nossas pobres pelejas cheios de tropeos e vacilaes.
Todos ns procuramos, sinceramente, fugir ao pecado mortal; mas muitas
vezes ai de ns! permitimos que o seu gosto e a sua saudade se
insinuem em nossos coraes.
So Francisco de Salles[1], descrevendo muito bem as fraquezas dessas
incompletas purgaes, comparou-as aos Israelitas que Moiss libertara doEgito. Tinham todos deixado para trs o exlio e o trabalho servil nas olarias,
mas nem todos se haviam despojado inteiramente da afeio pelo jugo, e
por isso, nos dias mais difceis do deserto, lamentavam-se relembrando,
como vantagens da escravido, as carnes saborosas do Egito e as cebolas
fartas. Assim tambm acrescenta o santo Doutor so os penitentes que
se abstm do pecado a conselho do confessor, como os doentes se abstm
do melo a conselho do mdico.
O que nos ensinam os santos, com palavras e obras, que no basta traarna areia uma tnue linha que separe o bem do mal; e que preciso,
resolutamente, entre os cus e os infernos, erguer muralhas de dio, e
cavar abismos de amor. E o que nos ensina com particular insistncia essa
moa de vinte e poucos anos, Catarina, filha do tintureiro Benincasa, de
Sena, que devemos andar como os paladinos do Santo Sepulcro, entre
duas cruzes, no peito e nas costas: a cruz do santo dio e a cruz do santo
amor.
grande o mistrio da santidade. Muito mal apreenderemos o palpitante
funcionamento do organismo espiritual, habitado pela graa, se nos
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deixarmos levar pela iluso de uma semelhana entre a santidade e
bondade natural que tambm, de certo modo, nos afasta de atos
reprovveis. A diferena maior do que a semelhana. enorme. Mesmo
sem tentar a explorao mais profunda da misteriosa conversao entre
uma alma e seu Criador, j poderemos apreciar, pelas manifestaesexteriores e visveis, pelas fisionomias, pelos gestos, a imensa distncia que
existe entre um quadro de virtudes naturais e a estrutura da alma dos
perfeitos.
Ns que no somos santos, ai de ns, construmos e cultivamos nossas
pequenas virtudes de um modo mesquinho, como o homem que, desejando
agasalhar-se em pouco pano, encolhe-se nas dobras exguas e trata de no
fazer gestos muito amplos. Quando tentamos alargar esta ou aquela virtude
de nossa maior afeio, no temos outro remdio seno furtar, s
escondidas de ns mesmos, alguns metros das outras. Cultivada amansido, fica desfalcada a coragem; exercitada a obedincia, empobrece-
se o esprito de iniciativa e, s vezes, o gosto pela veracidade. Tentando
evitar os desequilbrios mais fortes o que nos resta sofrear
cautelosamente os desejos. Foge-se assim s tentaes abafando as
aspiraes. E vai-se pela vida afora, devagar, como o sujeito que anda s
apalpadelas, no escuro, com medo das cadeiras.
Este pequeno equilbrio moral, que nos impede de assassinar os parentes
mais incmodos, e de esgueirar a mo no casaco do amigo em busca de suacarteira, caracteriza-se por uma retrao, um encolhimento, uma
aproximao dos extremos. E neste acanhado conjunto s vezes um
defeito que nos protege de um vcio. Por timidez, livramo-nos de certas
audcias. Das ms, sem dvida; mas das boas tambm.
nesse sentido que se costuma dizer, com acerto, que temos os defeitos de
nossas qualidades. Diz-se, por exemplo, que o brasileiro geralmente
bondoso e paciente, e pouco vingativo, porque displicente na justia.
Perdoa com facilidade, inclusive os homicidas, e principalmente os
delapidadores do patrimnio comum. A mole e simptica resultante desse
quadro de virtudes encolhidas no suporta a dilatao sem que um trgico
desequilbrio se evidencie. Crescendo o edifcio, logo aparece o aleijo, e
no preciso esperar muito tempo pelas catastrficas conseqncias.
O homem honesto, simplesmente honesto, vai assim trilhando seu caminho,
e conseguindo evitar os principais, ou mais visveis pecados, sem ter nas
costas a cruz do santo dio. A menor detestao do mal equilibra-se com a
menor dileo do bem.
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Na santidade, ao contrrio, o que logo se v, com fulgurante evidncia, a
dilatao da alma e o alargamento dos extremos. A mansido se v
acompanhada da coragem; a temperana de um santo como Bento Labre,
que passa a vida inteira dizendo: pouco... pouco... , completa-se com um
infinito desejo de posse; a misericrdia se abraa com um ardentesentimento de justia [2]. As virtudes, que no homem ainda sujeito s leis
dos sentidos, ou mal libertado desse jugo, eram meras disposies
facilmente abalveis (faciles mobiles), e sem conexo orgnica, tornam-se,
pela infuso da Caridade e pelo acrscimo dos dons, virtudes reais, foras
verdadeiras, dificilmente abalveis (difficiles mobiles) organicamente e
harmoniosamente conexas. E, em lugar do tbio e claudicante indivduo que
apenas consegue fazer algumas coisas boas, custa de compromissos,
demisses e pusilanimidades, v-se ento esta alma vivificada pela graa
abrir as grandes asas das virtudes que nos pareciam opostas e paradoxais,
erguer-se sem medo no largo vo dos albatrozes. [3]
Ora, esse prodigioso alargamento dos extremos, essa riqueza de
paradoxos, esse vo poderoso de asas bem abertas, que d fisionomia de
Santa Catarina de Sena um realce singular. Desta, pode-se dizer como a
Igreja o diz no intrito de sua missa: ela amou o bem e odiou a iniqidade.
Nela, desde o hbito preto e branco de mantellata (Terceira Dominicana),
tudo eram contrastes.
Tendo atingido aos vinte anos os mais altos vrtices da perfeitacontemplao, torna-se a mais diligente personagem de sua poca; sendo
filha de gente humilde e obscura, torna-se a primeira pessoa de quem o
Papa Urbano VI se lembra, e manda chamar, nos dias em que a Igreja sofria
a injria do grande cisma. E fcil prever que esta alma de dio e amor no
ficar hesitante entre os dois partidos que dilaceram a unidade do papado;
e ainda mais fcil adivinhar que esta moa corajosa (e humilde) no vai
procurar o meio termo, o falso apaziguamento, a tbia conciliao, com
receio que a pedra angular no suporte o peso de palavras e atitudes
verdicas. Nem partiria dela, nunca, a mais esdrxula idia que pode ocorrera algum diante de um cisma: a soluo do tertius. Mais tarde, j depois de
sua morte, esta insensata soluo foi de fato alvitrada, e elegeram um
terceiro papa. E ento diz Bossuet sem a sombra de um sorriso o
problema ficou mais intricado e insolvel do que nunca... Pudera!
Catarina tomou logo partido. Empenhou-se a fundo. E com a faca que
separa os nervos, os ossos, as junturas, reconheceu em Urbano o dolce
Cristo na terra; e em Clemente e seus prfidos cardeais ela denunciou a
impostura chamando-os de demnios encarnados. Podia ter-se enganado,
como So Vicente Ferrer enganou-se, e como alguns historiadorespretendem que ela mesma se tenha enganado em matria de julgamento
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poltico, anos antes, quando fora buscar em Avignon o papa Gregrio XI,
para traz-lo, por cima do corpo de seu velho pai, quase de rastros, para as
terras de Itlia. A apreciao da carreira poltica de Santa Catarina, como
lucidamente expe Nole M. Denis-Boulet, [4] pode revelar apreciveis
erros, servindo isto para nos acautelar contra a hagiografia convencionalque, insensivelmente, tende a desumanizar a santa, dotando-a de uma
infalvel e contnua inspirao. O que nos interessa agora, porm, no o
acerto ou desacerto, e sim a nitidez e a violncia com que Catarina se
empenhou na questo.
Essa filha de gente obscura, virgem humilde e dcil, torna-se conselheira de
papas e de reis; essa contemplativa, passa a ser um ativo personagem que
todos procuram, repetindo assim em moa, quase menina, a
movimentadssima histria do contemplativo Bernardo que interrompia seu
comentrio do Cntico dos Cnticos para cuidar dos problemas polticos.Ignorante, no sabendo escrever, e mal sabendo ler, essa moa, quase
menina, ensinava os doutores, passava horas a ditar cartas, trs ou quatro
ao mesmo tempo, s vezes; e comparecia diante de um consistrio de
telogos dominicanos que aprovam sua doutrina e se declaram subjugados
pela retido e pelo ardor de sua palavra. Virgem, tornou-se me de
numerosssimos filhos, incluindo papas, monges, doutores, poetas e freiras;
e sua maternidade continua fecunda at hoje, contando-se entre seus mais
ilustres filhos os telogos modernos, como Garrigou-Lagrange, Lemonnyer,
Petitot, Cardeil, Clrissac, etc., que no se cansam de buscar nas palavrasda dolce mamma Caterina as genunas lies de vida espiritual.
Sua prpria me, a boa e turbulenta Monna Lapa, que tantos obstculos
pusera s suas penitncias, completou o paradoxo tornando-se sua filha e
vindo finalmente alistar-se entre os doidos que andavam em torno dessa
irresistvel moa, quase menina. Seu confessor, Fr. Raimundo Cpua, dirigia-
a e era dirigido por ela, recebendo s vezes, da filha obediente e da me
exigente, cartas que abriam com este prembulo: Carssimo e dolcissimo
padre, e negligente e ingrato figliuolo in Cristo dolce Ges. [5]
Mas, de todos os contrastes, o mais vivo na alma da santa sem dvida
aquele de que nos fala hoje o intrito da missa: Dilexisti justitiam et odisti
iniquitatem. O pecado, para Catarina, no coisa que se evite
cautelosamente, como um poste pintado de fresco: um objeto de dio.
Sentia-o fisicamente; e odiava-o fisicamente. Pela cincia do valor do
sangue de Cristo, pelo amor desse sangue, que o leit-motif principal de
suas cartas, ela odiava o mal, como mulher, com a fora de mulher que ama
e que se bate por seu amor: ela odiava o mal com os dentes.
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Tomando um exemplo entre muitos, eis o que disse ela por carta a Fr.
Raimundo Cpua quando teve notcia de seu esmorecimento em certa
empresa a que ela o enviara, e de seu recuo diante dos ferozes adeptos de
Clemente VII, o falso papa. Depois de algumas exprobraes,
alternativamente maternais e filiais, como s ela sabia fazer, terminavaassim a carta: [6]
meu pobre pai, como tua alma e a minha estariam felizes se,
com teu prprio sangue, tivesses cimentado uma pedra a mais
nos muros da Igreja! Choremos, pensando que por nossa falta de
coragem deixamos de merecer tamanho bem. E agora, deixemos
os nossos dentes de leite; e exercitemos os de adultos: os fortes
dentes do dio e do amor. Revistamo-nos com a couraa da
Caridade e empunhemos o escudo da santa F. Como homens
feitos, corramos ao combate, e agentemos os golpes, firmescom uma cruz ao peito, e uma cruz s costas... E para que Deus
nos conceda esta graa, a ti, a mim, aos outros, comecemos
desde j a oferecer-lhe nossas lgrimas, e nosso desejo muito
doce, mas muito amargo por causa de nossas falhas que nos
privaram de to grande bem. Eia pois, filho, afoga-te no sangue
do Cristo crucificado; banha-te no sangue; sacia-te no sangue;
inebria-te no sangue; protege-te, alegra-te e chora por ti mesmo,
no sangue; cresce e fortifica-te, no sangue; deixa a tua tibieza e
tua cegueira no sangue do Cordeiro imolado: e iluminado enfim,corre, corre, meu viril cavalheiro, no encalo da honra de Deus,
do bem da Igreja, e da salvao das almas no sangue.
E termina esta carta com sua frmula habitual:Altro non ti dico. Permane
nella santa e dolce dilezione di Dio. Ges dolce, Ges amore.
Um outro belo exemplo de seu dio fsico ao pecado pode ser encontrado na
expresso que usa, no Dilogo, e em algumas cartas, para caracterizar as
almas tbias que se detm em meio do caminho, na Ponte da Salvao, e
acabam voltando ao antigo pecado. Fiel genuna tradio, que vem dos
Padres, e do Evangelho, Catarina sabe muito bem que, na vida espiritual,
deter-se regredir. Quem no avana, recua, porque diz ela repetindo
Santo Agostinho a alma no pode viver sem amor. E como o amor
mpeto e busca, e portanto o contrrio de rotina e repetio uniforme,
quando esmorece o amor pelo sangue que nos valeu a redeno, prevalece
logo o amor prprio, fonte e princpio de todos os pecados. E quem no
avanar, deixando para trs, resolutamente, os despojos do homem velho,
ento recua; e recua, diz a santa, como o co que, depois de ter vomitado e
seguido seu caminho, volta para comer seu prprio vmito.
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Para Catarina, como para Luiz de Frana, a volta ao pecado, a recada no
amor desregrado de si mesmo, a ofensa ao sangue do Cordeiro, tinham
repugnncia maior que um vmito de co; para ela, como para o santo rei,
era prefervel acordar coberta de lepra do que ofender a Deus. Esse horror
instintivo que ns temos pela carne esfarinhada, intumescida e purulenta,esse medo que se esconde em nossos subterrneos e vem povoar nossos
piores pesadelos, d uma idia ainda imperfeita do horror da santa pelo
pecado. Por um dom especial, ela sentia-lhe o mau cheiro: o amor prprio, o
orgulho, a concupiscncia, eram para ela to sufocantes como as maiores
podrides fsicas. Sentia-os com intenso sofrimento, chegando ao desmaio.
Em Avignon, onde fora persuadir o papa Gregrio XI a voltar para Roma,
Catarina mal podia respirar no ambiente da corte pontifcia onde as
emanaes da soberba e da inveja disputavam a primazia ao mau cheiro da
luxria. A julgar pelas crnicas, certas damas j no faziam questo deguardar decoro mesmo diante do altar. Uma destas, um dia, vendo Catarina
em xtase, depois da comunho, teve a idia de verificar se o fenmeno era
simulado, e no achou meio mais delicado do que furar o p da santa com
um estilete. Quando voltou a si Catarina mal se podia ter em p, to
profundo fora o golpe; mas foi assim mesmo, dolorida e claudicante, que
trouxe o papa, o dolce babbo, para a Itlia.
Mais tarde, j em Roma, conversando com o mesmo Gregrio XI, por
intermdio de seu confessor, pois o papa no entendia o italiano vulgar nemCatarina sabia o latim, lamentava-se a virgem que, na corte romana, que
deveria ser um paraso de virtuosas delcias, reinasse tamanha podrido de
vcios infernais. O papa, ouvindo isto, perguntou-lhe quando chegara ela em
Roma, e ouvindo dizer que na vspera, tornou a perguntar, entre ofendido e
admirado: Como pudeste em to pouco tempo examinar os costumes da
corte romana?. E ento conta Fr. Raimundo Cpua na sua Leggenda [7]
mudando ela a atitude curvada e humilde, ergueu-se vivamente,
revestida de uma espcie de majestade, que eu mesmo vi com meus
prprios olhos, e disse estas palavras: Para honra e Glria de Deus TodoPoderoso, ouso dizer que sinto e vejo melhor a podrido dos pecados que se
cometem continuamente na corte de Roma, sendo recm-chegada da
cidade em que nasci, do que esses mesmos que os cometem. Ouvindo
essas palavras, calou-se o soberano Pontfice. E eu acrescentava Fr.
Raimundo estupefato considerava comigo mesmo todas essas coisas, e
observava a autoridade com que ela dizia tais palavras a to grande
Pontfice.
claro que uma pessoa assim, que arvorava com tamanho denodo o duplo
estandarte do dio e do amor, no podia colher onde passasse, seno amorou dio. Diante dela era impossvel a neutralidade. Era impossvel tentar
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essa conciliao do preto com o branco que tanto se invoca nos tempos de
indiscernimento e pusilanimidade. Aquela moa de vinte e poucos anos,
vestida de mantellata, acompanhada de uma heterognea dzia de filhos,
um dos quais era seu pai no esprito, e outra sua prpria me no sangue,
onde passasse deixava um sulco e provocava uma opo. Quem noestivesse com ela estava contra ela.
O mistrio maior da santidade consiste em to perfeita e amorosa
impregnao do esprito do Esposo que esta alma, sem querer, quase
inconscientemente, imitando o Bem Amado, provoca nos outros a imitao
dos que o seguiram, e a imitao dos que o crucificaram. Foram muitos os
que seguiram as pegadas do Cristo nos passos dessa moa impetuosa que
mal comia, vivendo longos dias da sagrada eucaristia, e mal se aquietava
no af de converter. Um de seus mais fiis discpulos, Stefano Maconi, deixa
me, irmos, irms, riquezas, conforto, para a felicidade de gozar apresena virginal e a familiaridade da dolce mamma Caterina. Foi seu
inseparvel secretrio, e muitas noites cabeceava de sono ouvindo a
infatigvel Catarina a ditar suas cartas de sangue e fogo para os grandes do
tempo. Depois da morte da santa, e por ordem dela, tornou-se frade cartuxo
e morreu como um santo. Est, como Fr. Raimundo Cpua, inscrito no
catlogo dos bem-aventurados.
To volumosa tornou-se com o tempo a onda dos convertidos que foi
preciso obter uma bula de Gregrio XI designando trs confessoresdominicanos para atender aos penitentes da escola de Catarina. E s vezes
esses confessores no davam vazo, permanecendo noite e dia no
confessionrio.
Mas foram tambm numerosos os que a perseguiram e difamaram. O
exemplo mais chocante o da irm de hbito, a velha Andra, que fora
atingida por uma horrvel enfermidade. Tinha ela no peito diz-nos Fr.
Raimundo Cpua esta ferida que no vocabulrio dos mdicos se chama
cncer, e que corri as carnes, aumentando sem cessar. O peito da criatura
j estava todo tomado, e da ferida exalava-se to forte mau cheiro que
ningum podia aproximar-se.
Catarina, ouvindo contar a misria e o abandono da pobre Andra, correu a
cuidar dela. Mas a doente, amargurada pelo sofrimento e tentada pelo
demnio, deixou-se tomar por um sentimento de inveja e cime, que em
poucos dias avulta com labaredas de dio mortal. Murmurava todo o tempo,
e quando Catarina a deixava por algumas horas, a velha punha-se a gritar,
conseguindo sempre atrair muitas pessoas a quem, se repugnava o pus do
cncer, apetecia o da maledicncia. E Andra espalhou assim a notcia dos
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desregramentos daquela falsa virgem que se fazia de paciente e santa para
melhor disfarar sua devassido.
Uma tarde, chegando a moa inesperadamente, achou-se cercada de
pessoas que a consideravam com desconfiana; e ouviu de repente da
velha doente, levada ao paroxismo do dio, uma estridente acusao
pblica. Catarina, preparando os panos para pensar as horrveis feridas,
respondia-lhe com brandura e pacincia: Em verdade, minha me e minhas
irms, pela graa de Jesus Cristo, eu sou virgem.
Foi nesse tempo que o Cristo apareceu-lhe um dia propondo-lhe que
escolhesse entre as duas coroas que tinha nas mos: uma de pedras
preciosas, e outra de espinhos. Catarina respondeu-lhe: Meu Senhor, h
muito tempo renunciei minha prpria vontade e escolhi a Tua. No me
compete, pois, escolher coisa alguma; mas j que assim o exiges, digo-teque quero sempre nesta vida a conformidade com tua bendita paixo, e que
escolho para minha consolao e pelo amor que Te tenho, a coroa da dor.
E, ditas essas palavras, tomou com as duas mos a coroa de espinhos, e
com tal fora enfiou-a na cabea que as pontas rasgaram-lhe a fronte,
produzindo uma vivssima dor que persistiu todo o tempo que duraram
aquelas calnias e difamaes.
Dias depois, porm, ela iria ainda acrescentar uma prova concreta, fsica,
horrorosa, de seu dio ao pecado e de seu amor bendita paixo do CristoJesus; e foi a prpria Andra, j arrependida, j convertida, quem transmitiu
o fato aos diversos cronistas que, com pequenas variantes, no-lo deixaram
narrado.
comum na histria dos santos o caso da pacincia herica diante da
ingratido. Santa Terezinha do Menino Jesus teve sua doente difcil, que era
preciso conduzir capela, empurrando um carrinho, nem muito devagar,
nem muito depressa, e que era preciso atender sempre de um certo modo,
com especialssimas gradaes de gestos, porque assim era demais, e
assim era de menos, sendo quase impossvel acertar a ideal justa medida
ao agrado da doente. Santa Terezinha venceu o amargor da pobre irm com
as poderosas armas da humildade e com os recursos de seus mais mansos
e belos sorrisos. [8]
Mas os tempos em que viveu Catarina eram mais duros, mais violentos, e a
mesma santa pacincia se manifestar de um modo diferente. Um dia,
quando mais acresceram as recriminaes e mais nauseabundas as
enormes chagas purulentas, Catarina sentiu que o tentador lhe inculcava
pensamentos de desnimo e irritao; e ento, no tendo tempo a perdercom recursos mais delicados, possuda de um santo dio por si mesma, por
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seu egosmo, por suas vacilaes, colheu num vaso o sangue e o ftido pus
da cancerosa, e consumou, diante da pobre enferma, por amor bendita
paixo do Senhor, o que o Pe. Gardeil chamar um magnifique repas [9].
II DIFICULDADES
muito difcil, com setecentos anos de intervalo, separar, na lenda de um
santo, o falso do verdico, e sobretudo apreender os verdadeiros traos de
sua fisionomia. A devoo dos cronistas s vezes amplifica, outras vezes
mutila o que lhes parece desdouro humano demais. Um milagre a mais, ou
um defeito a menos, pouco pesam para quem est pessoalmente
convencido, sobejamente convencido, da santidade desse santo; e assim,
nesses piedosos deslizes sofre a veracidade; e ns, que no estamos vendoo santo viver, ficamos muitas vezes reduzidos a contemplar o inexpressivo
espetculo da santidade de conveno. A lenda de Santa Catarina de Sena,
conforme nos diz Nole M. Denis-Boulet, passou por uma sria crise poucos
anos atrs. Enquanto os eruditos italianos, Mme. Fiorilli e o Pe. Taurisano,
trabalhavam em silncio, estourou como uma bomba nos meios
catarineanos o trabalho do professor Robert Fawtier, [10] que vinha lanar
suspeio sobre a Lenda Maiorde Fr. Raimundo Cpua, confessor, diretor e
principal bigrafo da santa, e que vinha denunciar francamente, como
grosseiras falsificaes, o Suplemento ou Lenda Menorde Tomaz Cafferini,outro discpulo da santa.
Para Fawtier, esse Suplementum, bem como o opsculo Miracula, no tm
nenhum valor histrico. Cafferini tratado com extremo rigor pela crtica
que chega a lhe atribuir a inveno dos estigmas, a que esse dominicano
teria sido levado pela rivalidade, que naquele tempo era spera e crua,
entre a sua ordem e a dos franciscanos. Chegou-se tambm a provar, a
custa de um pedao de pergaminho achado em Sena e datado de 1352, que
Catarina Benincasa j era terceira dominicana numa poca em que,
segundo a cronologia de Fr. Raimundo Cpua, ela teria cinco anos. O
cientista conclui ento, um pouco apressadamente, que o confessor
remoara a santa de dez anos, pelo menos, afim de faz-la morrer com a
idade de Cristo.
Felizmente, h sempre mais de um erudito no mundo. Os trabalhos
subseqentes do Pe. Mandonet e de M. Jordan demonstraram que a data se
referia, evidentemente, a abertura da lista, e que no havia nenhum motivo
srio, e realmente cientfico para afirmar que Fr. Raimundo Cpua, inscrito
hoje entre os bem-aventurados, tenha falsificado a idade da santa. Alis, oprprio Roberto Fawtier, num segundo trabalho publicado em 1930, v-se
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obrigado a retificar uma srie de asseres contidas no primeiro e d um
belo exemplo de probidade cientfica, tomando para seu caso uma palavra
da prpria Catarina: Umana cosa il peccare, ma la perseverantia nel
peccado cosa di dimonio.
De todo esse debate que durante algum tempo assustou alguns timoratos
devotos da virgem senense, que no viam com bons olhos aquela avidez
dos homens de cincia pela veracidade dos fatos, resultou num
incontestvel lucro que se traduziu numa maior nitidez da fisionomia
humana da santa. Para comear, a atuao poltica de Catarina, sem se
tornar insignificante como pretende Fawtier, perde o carter de iluminada
infalibilidade que lhe empresta a hagiografia convencional. E descobrem-se
importantes mutilaes nas suas cartas.
O fato que, para 381 cartas atribudas santa, existem somente oitooriginais de autenticidade incontestvel. Ningum ainda pretendeu provar,
seriamente, que as outras cartas no so de Catarina, ou que Catarina no
existiu; mas incontestvel que as cartas sofreram mutilaes. O original
de uma carta dirigida a Nri de Landocio (outro discpulo da santa, que ser
um de seus secretrios na elaborao do Dilogo) prova que foi cortado,
depois da expresso habitual altro non ti dico, com que a santa
geralmente encerrava suas exortaes, um texto duas vezes mais extenso
do que a carta at ento conhecida. No trecho cortado Catarina falava de
vinte e quatro carlinos enviados por alguns benfeitores de Npoles (aosquais Nri deveria agradecer por ela), de um projeto de viagem, de notcias
recebidas dos amigos, e do aluguel de uma casa em Roma.
Observa Nole M. Denis-Boulet que esses negcios terrestres interessam
muito aos historiadores, que so gente extremamente curiosa e vida de
detalhes, e conta o caso ainda mais curioso da Carta de outra Santa
Catarina, de Ricci, em que a santa, depois de contar um xtase, transmitia
s suas irms uma receita de doce. As boas religiosas que se sucederam no
priorato de Prato, entretanto, s consentiram na divulgao das cartas
depois de refundi-las e trunc-las. A receita de doce foi severamente
cortada e s veio a reaparecer muito mais tarde graas s pesquisas
cientficas.
A meu ver, porm, a sagaz historiadora errou no modo de colocar sua
justssima reclamao contra as piedosas mutilaes das cartas da santa.
No somente aos historiadores que tal procedimento molesta;
principalmente aos devotos. O documento truncado no fica somente com
seu valor histrico diminudo, mas tambm, e sobretudo, com seu valor
espiritual prejudicado. A idia de deixar somente as passagens edificantes,as frases sublimes, os trechos dos evangelhos, baseada numa falsa
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espiritualidade, pois o culto dos santos e o arrimo que suas vidas
exemplares nos pode trazer, exigem, como nota essencial, a humanidade.
O mistrio da santidade, e principalmente da santidade reconhecida
oficialmente pela Igreja, e proposta devoo dos fiis, no pode dispensar,
sem se desfazer num vazio simbolismo, esse calor de humanidade que nos
mostre, mais prximo de ns, multiplicado, diversificado, atribudo a todas
as raas e temperamentos, o mistrio central da Encarnao. Se tudo o que
nos maravilha no santo obra de Deus, e est em Cristo de modo perfeito,
nem por isso menos real e menos humana a carne, o sangue e os ossos
desses santos; e seria tambm falsa a espiritualidade que abandonasse
essas ddivas de Deus ao longo do tempo, desde os apstolos at Santa
Teresinha ou Santa Gema Gulgani, para involuir, sob o fcil pretexto da
sublimidade e da totalidade, para o mistrio nico do Cristo em sua
encarnao, saltando por cima desse pluriforme e adorvel mistrio dossantos.
A cincia verdica do historiador Fawtier , a meu ver, mais espiritual do que
o zelo das prioras que tinham receio de manchar a memria de sua santa
com uma receita de compota. E mais espiritual justamente porque mais
verdica. E, tambm, mais espiritual porque mais escarnada. Para mim,
a notcia daquelas moedas recebidas de Npoles, os recados, o aluguel da
casa em Roma, tudo isso veio aquecer o texto das cartas edificantes de
Santa Catarina tornando-as mais edificantes.
Os evangelhos, apesar da extraordinria conciso, esto cheios de detalhes
que nos falam da humanidade do Salvador e de suas testemunhas. No dia
do nascimento de Jesus os anjos de cu vm comunicar a boa nova aos
pastores, e do um sinal de reconhecimento: achareis um recm nascido
enfaixado em panos e deitado na palha. No dia de sua ressurreio, como
um sinal, reaparecem esses panos no fundo do sepulcro vazio.
Pedro tem o primeiro sinal da vitria do Cristo nesses panos que v quando
se debrua na borda do sepulcro; os peregrinos de Emas crem quando o
Senhor abenoa o po; So Tom reconhece o Cristo pelas chagas, vendo-
as e pondo-lhes em cima o dedo. E foi bom. Esse trao de incredulidade do
apstolo, que se tornou proverbial, foi bom para ns, por dois excelentes
motivos. Primeiro porque nos ensinou a reconhecer a presena de Deus em
nossa alma pelo toque das chagas, esse bendito sinal; segundo, porque nos
legou uma bem-aventurana especialmente nossa, muito nossa, e de que a
prpria Virgem Santssima est excluda: bem-aventurados os que crerem
sem ter visto...
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Mas em So Paulo que encontramos um sinal de humanidade mais
parecido com aquelas moedas e alugueis suprimidos das cartas de Santa
Catarina. Na segunda epstola a Timteo, depois de lavrar seu testamento, o
apstolo pede que tragam o saco que ficou em Troas, em casa de Carpus, e
lembra tambm que no esqueam os rolos de manuscritos, e ospergaminhos. No houve, felizmente, um prior zeloso que riscasse na
epstola esse bendito saco, esses rolos benditos, que nos fazem bater mais
depressa o corao, e sem os quais estaria incompleta a palavra de Deus.
por esses pequenos sinais, aqueles panos, aquele po, aqueles rolos, que
ficamos sabendo, de fato, experimentalmente, cordialmente, no sangue,
que essa comprida histria cheia dos mais prodigiosos personagens, ,
afinal de contas, a nossa prpria histria.
III FISIONOMIA
Procurando entrever, atravs das piedosas deformaes, a verdadeira
fisionomia de Santa Catarina de Sena, ficamos deveras embaraados. O que
se v mais um claro do que um rosto; mais um fogo que passa do que
uma moa de vinte anos, filha do tintureiro, cercada de seus discpulos. Os
fortes dentes do dio e do amor, atravs dos quais passaram as palavras
ditadas a reis e papas, esses mesmos dentes que Stefano Maconi vira um
dia a brilhar no mais belo sorriso, incitando-o a deixar me, irmos,conforto, riqueza, para seguir a paixo do Cristo Jesus, esses dentes so o
pouco que nos resta dela estando at hoje guardados, espera da
ressurreio, na igreja de Santa Maria supra Minerva, em Roma.
Os cronistas raramente nos do um trao vivo de sua fisionomia. Aqui e
acol quase se entrev um rosto magro, abrasado nas horas de xtases, e
alagado de suor nas horas de mais perfeita imitao das dores da cruz.
Depois, um vulto que se ergue repentinamente, com majestade nunca
vista, diante do papa Gregrio XI.
Contam que ela era faladeira, como qualquer boa italiana. Se era capaz de
passar dias no mais completo silncio, era tambm capaz de passar a noite
inteira, entre os seus discpulos, sentada no cho, falando, falando, falando.
E zangava-se quando um deles cabeceava de sono. Nas horas mais
imprprias ditava rainha de Npoles e ao rei de Frana cartas to utpicas
e to ineficazes como as cartas que o dr. Sobral Pinto dita para os nossos
ministros de estado.
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Apesar dos rigorosos jejuns, era certamente uma bonita moa, alta, pronta
nos gestos, rpida no andar; e era por fora alegre, mesmo porque,
segundo So Francisco de Salles, um saint triste est um triste saint.
Mas o que mais vivamente nos impressiona em Catarina, a ponto de nos
desorientar a imaginao na tentativa de apreender sua fisionomia e suas
atitudes o paradoxo de sua perfeita humildade aliada a um dinamismo, a
uma tenacidade, a um vigor da vontade que somente se encontram nas
figuras dos grandes guerreiros. Obediente e voluntariosa, dcil e imperiosa,
suave e impetuosa, essa virgem nos proporciona um dos melhores
exemplos do organismo espiritual plenamente desenvolvido e
harmonicamente armado das virtudes antinmicas a que nos referimos
atrs. At aqui, o que dela dissemos, evidencia sua fora de alma.
Vejamos agora um quadro diferente em que a doce virgem Catarina, aosdezessete anos, passeia nos jardins, em volta de sua ermida, conversando
com o Senhor Jesus e Maria Madalena enquanto o sino de San Ansano toca o
ngelus. Vejamo-la depois, noutra tarde feliz, cantando hinos com seu noivo
celeste, sombra dos olivais. E paremos um instante para admirar um dos
mais belos momentos dessa vida espantosa: estava ela a ler seu brevirio
no adro da igreja... O pouco que sabia ler era todo para a Sagrada Escritura
e para o brevirio. Saboreava os salmos, vivia com os salmos na boca e no
corao, morreu a repetir dezenas de vezes os salmos de penitncia.
Estava, pois, a ler seu brevirio no adro da Igreja, quando percebeu que jno estava s, e que algum andava a seu lado, lentamente, suavemente,
recitando os salmos tambm. E ento, quando chegava ao Gloria Patre,
Catarina detinha seus passos no meio do adro, fazia uma reverncia
sorrindo, como uma louca suave que estivesse a sonhar e a danar em
plena luz do dia, e, obrigada pela fora das circunstncias modificava um
pouco as palavras do versculo dizendo: Gloria Patri et Tibi et Spiritui
sancti... E Ele ento, sorrindo tambm, entoava em clara voz o salmo
seguinte. [11]
Essa figura, eu diria quase essa estampa de livro de lendas, ou essa
iluminura de Livro de Horas, que nos lembra as mais adamantinas e
transparentes atitudes de uma Santa Gertrudes, aparece agora, pginas
adiante, num claro de batalha, com a magnanimidade de uma Santa Joana
DArc.
E observem um trao singular dessa mulher singular: o modo como dizia eu
quero, o acento que punha neste o mais feminino dos verbos. A cada
instante, em carta a papas e reis, ela dizia: eu quero. Io voglio. Ou ento:
essa a vontade de Deus, e a minha.
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Sua alma era um navio. Se o leme estava atrs na popa da obedincia, e o
timo entregue a quem de direito, ento, sem hesitaes e sem medo, o
esporo de proa podia avanar impetuosamente. E o seu grito de guerra, Io
voglio!, com sua formidvel sonoridade no era outra coisa seno o esturio
caudaloso do rio nascido em fonte humilde entre sussurros de virgem, denoiva junto de sua ermida, sombra dos olivais.
A obedincia est escondida nas guas, como o leme; o vigor da vontade
avana ento apaixonado e agressivo. Esse contraste vem das regras do
amor. No tinha ela feito sempre a vontade de seu bem amado? Ento
agora, pelas eternas regras do amor, Ele tambm far a sua vontade.
Permitam que lhes conte, como puder, uma pequena e belssima histria
em que essa virgem diz: eu quero, em circunstncias deveras
extraordinrias. Mas como essa histria passou-se junto a um cadafalso,deixem-me abrir aqui um parntese.
IV O COLQUIO DAS CRUZES
H certos episdios que reaparecem, com a insistncia de um leit-motiv,
nas lendas dos santos. Um destes a converso de um criminoso obtida
pelas preces do santo, s vezes, no derradeiro instante, junto ao cadafalso.
Santa Terezinha do Menino Jesus teve o seu grande criminoso, um tal
Pravini, autor de espantosos homicdios, feroz impenitente, e condenado
morte. A menina de quatorze anos, que j sonhava entrar no Carmelo, pede
ao Senhor Jesus um sinal e, com a magnanimidade prpria dos santos,
comea assim o seu apostolado implorando a contrio de uma fera. Dias
depois ela l num jornal a notcia da execuo: Prazini subira ao cadafalso
sem os sacramentos, e os carrascos j o arrastavam para a guilhotina
quando, de repente, voltando-se para um padre que estava atrs dele, o
criminoso segura o crucifixo e beija trs vezes, chorando, as santas chagas.Mais tarde, quando recebia algum donativo, Tereza encomendava missa por
esse primeiro filho de suas lgrimas, alegando a sorrir que ele certamente
precisava desses sufrgios em vista dos mauvais tours que por aqui andara
fazendo. [12]
Santa Gema Galgani, no prprio dia da chegada do Pe. Germano Estanislau,
que viera de longe para examinar o caso dessa extraordinria
estigmatizada, foi vista em xtase a disputar diante de Deus uma alma de
grande pecador. Depois de um vivo debate entre a exttica e o seu Senhor,o padre ouviu, em certa altura, as palavras com que a santa repreendia o
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Senhor Jesus, valendo-se de seu privilgio de esposa: No, no me faleis
assim! Na boca de quem a prpria misericrdia essa palavra: Eu o
abandono. No fica bem. No deveis pronunci-la. Derramastes sem medir
o vosso sangue pelos pecadores, e quereis agora medir a quantidade de
nossos pecados? No me ouvis?... [13]
Depois de uma pausa, volta-se ento para a Virgem Santssima e apelando
para a sua onipotncia suplicante consegue deter o brao de seu filho. E
nesta mesma tarde o padre Germano foi procurado por um desconhecido
que, de joelhos e chorando, confessava seus horrveis pecados.
O caso de Santa Maria Goreli, recentemente canonizada, ainda mais
convincente: converteu seu prprio assassino que chegou a assistir,
velhinho, e j sacerdote, a primeira missa pontifical em honra da nova
santa.
E, se deixarmos os nossos tempos, volvendo os olhos para os primeiros
sculos de nossa era, a dificuldade est na escolha, to abundantes so os
casos de converses instantneas em torno do cadafalso.
Diante de todos esses exemplos, eu imagino que Nosso Senhor deseja nos
mostrar, como alis j o fez na parbola do publicano, que os ladres, as
prostitutas e os assassinos, esto muitas vezes mais prximos de Sua
misericrdia do que o honesto cidado que saudado nas praas comrespeito.
Alm disso, dir-se-ia que corre nos cus um frmito de recordaes
misteriosas cada vez que a pobre justia humana arma no mundo a
carpintaria de seu pronunciamento final.
Que estrado este em que o martelo bate e o serrote canta, fora dos muros
da cidade? Que poste este, de forma to esquisita, que esto firmando no
cho?
A justia humana legtima; sua severidade boa, uma perfeio; porque
a sociedade deve realizar seu prprio bem. Contudo, dir-se-ia que o simples
fato de se armar um patbulo produz no cu um alvoroo de anjos. No era
assim mesmo que o martelo batia e que o serrote cantava, naquele dia?
O prprio Senhor Jesus, sentado direita do Pai, h de lembrar-se daquela
noite nica, quando v um de seus irmos acercar-se do patbulo.
Era uma noite como no houve noite igual; uma noite metida fora, cunha
de treva e de dor, na claridade do dia. A terra tremera e um crepe espesso
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cara sobre o mundo. O Homem das Dores, nufrago das trevas, est
suspenso no ar. Suspenso pelas chagas. Os discpulos fugiram; Pedro
negara trs vezes; e entre as sombras que se movem em baixo, esquivas e
medrosas, mal se percebe o vulto ereto e imvel da me dolorosa. O
Homem das Dores est suspenso, puxado para cima, arrancado do cho,isolado, perdido no meio das trevas.
De repente ouve uma voz. No vem do cho, pois os discpulos fugiram, a
me dolorosa guarda o silncio e os soldados de Roma murmuram palavras
surdas que mal se distinguem. A voz que se ouve, isto , que Ele ouve, vem
do lado. Vem da mesma altura, da mesma treva, da mesma dor. E logo, do
outro lado, outra voz. Entre a terra e o cu, comeava o espantoso colquio
das cruzes.
No o Cristo? dizia asperamente a primeira cruz Salva-te ento a timesmo e a ns.
No tens o mesmo temor de Deus? advertia a segunda cruz Ns,
justo o que recebemos, e que merecemos por nossas faltas. Ele, porm,
nada fez de mal.
E, depois de uma pausa, tornou a falar esta segunda cruz, dirigindo-se
agora do centro que ouvia em silncio:
Lembrai-vos de mim Jesus, quando voltardes com toda a realeza!
E o Homem das Dores, no alto da cruz, entre o cu e a terra, nufrago da
escurido, ouvindo aquela voz de nufrago tambm, aquela voz de homem,
de pecador, de penitente, de condenado, sentiu certamente ouso
imaginar seu ltimo frmito de ternura humana lembrando-se dos outros,
dos bons dias em que andara as estradas de Cesrea ouvindo vozes assim,
de Pedro, de Joo, de Andr... Onde esto eles?...Naquele dia em que
disputavam como crianas o melhor lugar no Reino dos Cus. E, naquele dia
mais prximo em que Pedro jurara... Eram vozes assim, de homens, deirmos, de filhos. E o Homem das Dores alegrou-se, certamente, ouvindo
pela ltima vez, antes da ressurreio, no centro mesmo da sua paixo, a
voz que na eternidade iria associar a idia de cadafalso lembrana dos
curtos dias, dolorosos e felizes, em que a prpria Sabedoria de Deus se
deliciara de achar-se aqui, nesta terra, neste cho, brincando entre os filhos
dos homens.
E ali mesmo, dentro da escurido, no centro mesmo da dor, no alto da cruz,
ex-cathedra, o Senhor Jesus canonizou em vida o bom ladro:
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Em verdade eu te digo, hoje estars comigo no paraso.
V IO VOGLIO
O episdio que lhes vou contar, da vida de Santa Catarina, est ligado ao
drama das cruzes que falavam, e est associado tambm ao paradoxo que
faz tantas vezes dizer Io voglio, quem tinha para sempre renunciado sua
prpria vontade.
Narra ela mesma este episdio numa carta dirigida a Fr. Raimundo Cpua,
[14] que comea assim:
Em nome do Cristo Jesus crucificado e da doce Maria. Carssimo
e dulcssimo pai, e querido filho no Cristo Jesus, eu Catarina,
serva e escrava dos servidores de Jesus Cristo, escrevo-te no
sangue precioso do Filho de Deus, com o desejo de te ver
queimado e afogado neste doce sangue e impregnado do fogo
de sua ardente caridade. Porque isto mesmo que minhalma
deseja: ver-te, a ti, a Nanni e Tiago, viverem nesse sangue. Novejo outra soluo para o lucro das principais virtudes que nos
so necessrias. Meu dulcssimo pai, tua alma que o meu
alimento, pois no se passa um minuto que eu no a saboreie na
mesa do cordeiro que se fez degolar com to ardente amor
tua alma, dizia eu, no alcanar a modesta virtude da
humildade sincera, se no a afogares no sangue. Esta virtude
brotar do dio e esse dio brotar do amor. E assim como o
ferro sai puro da forja incandescente, tua alma renascer com
pureza perfeita. Eu quero pois que te abrigues no lado aberto doFilho de Deus. um refgio de tal modo saturado de delcias que
o prprio pecado se torna um blsamo. Ali a doce esposa se
reclina num leito de fogo e sangue... Coragem, coragem meu
bom pai. No durmamos! Ouvi contar tais coisas que no quero
mais saber de descanso e de conforto. Acabei de receber uma
cabea em minhas mos, e ela foi para mim to grata que o
corao no pode considerar, nem a boca dizer, nem os olhos
ver, nem os ouvidos escutar. A vontade de Deus ultrapassou
todos os mistrios precedentes. Fui ontem visitar aquela pessoaque sabes....
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Essa pessoa, era o jovem Nicolau Tuldo, de Perusia, preso e condenado
morte pelo crime de ter criticado publicamente os atos dos governantes de
Sena que a si mesmos se intitulavam Magnifici Domini et Patres Domini
Defensores Populis Civitatis Senarum. Esses solenssimos, severssimos e
injustssimos defensores da cidade de Sena no hesitaram em pronunciarum julgamento definitivo, com pena de morte, contra o jovem Tuldo que
mais pelo vinho do que pelas convices polticas deixara escapar aluses
grosseiras a suas excelncias.
Na priso, o moo maldizia a sorte e blasfemava contra o Deus que
consentia no mundo tamanha estupidez. Esquecendo suas outras culpas,
ele via somente a imensa desproporo entre uma zombaria de brio e a
condenao morte.
E estava assim, no paroxismo do desespero e da revolta, perdido, esquecidode todos no fundo do crcere, imaginando l fora o ar, o cu azul de Itlia,
os rudos da cidade, os sinos, o sol, a boa algazarra das tabernas tudo
perdido para ele, na flor da idade, tudo perdido...Quando se abre a porta da
priso e o moo v dirigir-se ao seu encontro em passo rpido a figura
esguia de uma mantellata, que se aproxima, faz o sinal da cruz, senta-se no
cho e, voltando para ele um rosto abrasado, pe-se a falar depressa numa
festa de npcias, e num castelo onde a esposa feliz se reclina num leito de
fogo e sangue.
Ao cabo de algum tempo, como um ferro dobrado em forja ardente, o moo
inclina a cabea no seio da doce mamma e grita-lhe com voz de menino
pequeno que tem medo do escuro: Fica aqui! No me deixes e eu morrerei
contente. E a virgem, sentindo a alegria e o perfume do sangue do jovem
Tuldo, e do seu prprio que de bom grado derramaria por seu esposo Jesus,
falou-lhe assim: Coragem meu doce irmo. No tarda a festa. Tu irs
banhado no sangue do Filho de Deus, com o doce nome de Jesus que eu no
quero que esqueas um s instante. Coragem. Vou esperar-te no lugar da
justia. E o moo perguntava admirado: De onde me vem tamanha graa
que a consolao de minhalma me espere no santo lugar da justia? E
Catarina, em sua carta a Raimundo Cpua dizia ainda mais admirada: V o
grau de luz a que ele chegou to depressa para chamar de santo o lugar do
suplcio.
Na hora da execuo, Catarina j estava junto ao cadafalso esperando
Tuldo. Passara a noite rezando incessantemente. Pedira Me de Deus, e
virgem mrtir Catarina a intercesso por alma de seu novo filho. E,
enquanto no chegava o prisioneiro, ela subiu os degraus do patbulo e
ajoelhou-se junto ao tosco cepo, deitando a cabea no lugar em que omachado da dura lei deixara a madeira retalhada e manchada de muitos
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sangues. E obteve ali uma promessa que deixou sua alma transbordante de
alegria.
Chegou enfim o moo, escoltado pelos soldados, manso como um cordeiro.
Sorrindo, logo que a avistou, pediu-lhe que traasse em sua testa o sinal da
cruz. Abaixa-te filho, eis aqui a mesa do banquete nupcial. Meu doce irmo,
ainda hoje ters a vida eterna. Ele abaixou-se, deitou a cabea no cepo e
Catarina ajoelhou-se diante dele, com as mos estendidas para colher o
fruto maduro de seu amor.
E quando viu o carrasco firmar-se nas pernas hercleas, levantando no ar o
grosso machado, num gesto que lhe estalava as costuras do gibo; e
quando ouviu o moo murmurar: Jesus, Catarina, no podendo esperar, e
suplicar, e discutir, como Santa Terezinha, como Santa Gema Galgani; num
relmpago de orao ela atirou para frente sua alma de navio, com um gritode corsrio que comanda a abordagem da misericrdia de Deus: Io voglio!
E recebeu nas mos a cabea, banhando-se no sangue daquela vtima.
VI O DESPREZO E O ZELO PELAS CRIATURAS
O paradoxo mais impressionante da vida mstica sem dvida formado por
esses dois termos: o desprezo total e o zelo ardente pelas criaturas. Na
linguagem hiperblica dos msticos, mais vital e afetiva mas menos precisa
do que a dos telogos, a criatura um nada. Era pois de esperar que o
mstico se tornasse perfeitamente indiferente a tudo e a todos. Ora,
exatamente o contrrio que acontece: o santo na verdade abrasado de
zelo apostlico pela salvao das almas. Haver nisto uma contradio?
No, porque o nada da criatura a que se refere a linguagem mstica no o
no ser do metafsico e sim o ser contingente, isto , a criatura cuja
existncia uma ddiva gratuita de Deus. E assim sendo fcil concluir que
o verdadeiro amor a Deus se traduzir coerentemente num amor pela Suaobra. Mas para que a criatura no seja amada por ela mesma, a experincia
mstica comea por neg-la para depois voltar a ela incendiada do
verdadeiro amor.
Em Santa Catarina de Sena esse contraste como os outros de que j
falamos vivssimo. Sua vida pode ser dividida, como alis o fez seu
principal bigrafo, Fr. Raimundo Cpua, em duas partes distintas: a primeira
em que a santa percorre rapidamente as trs vias da perfeio, e que
poderamos chamar contemplativa; a segunda em que a santa manifesta ao
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mundo os dons que recebera no segredo de seu retiro, e que poderamos
chamar apostlica ou ativa.
A mesma Catarina que, no silncio da contemplao ouvira do Senhor estas
palavras: Eu sou aquele que sou, e tu s aquela que no , diz agora ao
seu confessor: meu pai, se vsseis a beleza de uma alma dotada de
razo, no hesitarias, se isto fosse possvel, em sofrer cem vezes a morte do
corpo para a salvao de uma alma. No existe nada no mundo visvel que
se possa comparar a esta beleza.
Mas, a bem dizer, no h duas partes realmente distintas na vida da santa,
nem muito exato dizer, que ela foi ora contemplativa e ora ativa. Foi
sempre ambas as coisas. Se nos atos, nos fatos e nos episdios h margem
para se estabelecer tal distino, no mago mesmo do processo de
santificao subsistem sempre os dois extremos do indispensvel paradoxo.No h santo sem vida de orao e sem vida de apostolado. O que pode
acontecer que um desses elementos seja menos manifesto, ou esteja
escondido no mistrio, parecendo que predomina, aqui a atividade como no
caso de So Vicente de Paula, ali a contemplao como no caso de Santa
Teresinha. A imitao de Cristo, essncia da santidade, manifesta-se s
vezes em atos aparentemente diversos e at contraditrios. So Joo da
Cruz e Santa Tereza Dvila encontraram-se um dia diante de um pssego.
Era uma bela fruta, madura, perfumada, apetitosa. So Joo da Cruz
absteve-se, por amor de Deus; Santa Tereza comeu-a, por amor de Deus. Amesma fruta no mesmo momento, pode ser objeto de mortificao para um,
e um benedicite para outro.
Os verdadeiros msticos sempre souberam que a natureza boa; mas como
so telogos prticos, que se interessam antes de tudo pelas situaes
concretas e pela experincia afetiva da vida em Deus, sua linguagem segue
muitas vezes o varivel contorno das circunstncias variveis. preciso
possuir um hbito, uma simpatia especial, para entender bem a linguagem
dos msticos e sua perfeita conexo com as lies dos especulativos. Mas
tambm preciso possuir um senso especial, muito do agrado de Deus e de
sua Igreja, para compreender que a linguagem precisa dos especulativos
palpitante de vida, impetuosamente comunicante com a experincia
concreta.
De vez em quando assalta a humanidade um pensamento insensato de que
existem uma inteligncia fria que trata do Deus morto, e uma inteligncia
quente que trata do Deus vivo. No domnio da filosofia essa insensata
dicotomia gera, por exemplo, o chamado existencialismo, que uma
pseudo tentativa de falsa mstica natural. No domnio espiritual, o mesmofenmeno aparece produzindo correntes, ora mais pra c, ora mais para l,
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quando a inteligncia perde a coragem dos paradoxos, o senso do mistrio
e a capacidade da analogia. Como observa muito bem Garrigou Lagrange,
os verdadeiros msticos sempre tiveram em alta conta os especulativos, no
lhes passando na mente a triste idia de que uma frmula exata seja
inimiga da vida, ou que a vida seja inimiga da inteligncia.
Tenciono abordar, na segunda parte deste estudo, o problema do noserda
criatura, pedra angular da doutrina catarineana. Agora, o que nos interessa,
neste primeiro esboo de sua fisionomia espiritual, o singular contraste
realizado em sua vida, que foi manifestamente contemplativa e
manifestamente ativa. E cumpre notar que a transio assinalada por seu
bigrafo foi simbolicamente marcada com a solenidade das bodas msticas.
Ela passava assim de virgem me, no esprito, tornando-se esposa.
Estava-se relata Fr. Raimundo [15] nos dias que precedem aquaresma, em que os fiis celebram uma festa inteiramente mundana que
se poderia chamar festa do ventre.
Era dia de carnaval. Depois de combater corajosamente o tentador que a
torturava como nunca, a amorosa virgem que jejuava e rezava, enquanto
ouvia nas ruas os rumores da festa pag, viu diante de si o Senhor Jesus
que assim lhe falou: Repeliste por minha causa todas as vaidades, e
desprezando os deleites da carne puseste s em mim o afeto de teu
corao. Eis porque agora, enquanto as outras pessoas esto entregues salegrias dos banquetes, ocupando-se do prprio corpo, quis eu tambm
celebrar solenemente contigo a festa das npcias de tua alma. Como te
prometi, quero esposar-te na F.
Falava ainda o Senhor, quando apareceram, a Virgem Santssima, o bem-
aventurado Joo Evangelista, o glorioso apstolo So Paulo, o santssimo
Domingos, a cuja ordem pertencia a noiva, e o profeta David trazendo
consigo o harmonioso saltrio.
Enquanto ressoava aquele instrumento sob os dedos do santo rei, comsuavidade que mal se pode imaginar, a Virgem Me tomou a mo de
Catarina, estendendo-a a seu Filho, e pedindo-lhe que a recebesse como
esposa na F. O Filho Unignito de Deus acercou-se, e com ternura
apresentou-lhe um anel de incomparvel beleza dizendo-lhe essas palavras:
Eu, teu Criador e Salvador, esposo-te na F, que conservars intacta, at o
dia em que celebrars comigo, nos cus, as npcias da eternidade.
Coragem pois, filha, e cumpre doravante, ousadamente e sem nenhuma
hesitao, as obras que em suas mos puser a minha providncia. Ests
armada com a F, e triunfars de todos os teus adversrios.
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E depois destas palavras desapareceram todos, ficando Catarina sozinha em
sua cela, enquanto l fora, na cidade, o povo se divertia ruidosamente no
carnaval.
Esta transio, ilustrada de tal modo, serve para nos mostrar que o mistrio
da santidade tem profundas semelhanas com o mistrio da virgindade
maternal da Igreja. A partir daquele dia, sendo sempre virgem, comeava a
histria de sua maternidade; e no deixa de ser estranho que ningum,
homens, mulheres, moos e velhos, achasse imprprio o tratamento de me
que todos davam, espontaneamente, quela moa de vinte anos que
comeava um dos mais extraordinrios apostolados que jamais existiu.
No caberia aqui uma relao, mesmo resumida, de seus feitos. J vimos
meia dzia de episdios, escolhidos entre centenas, e talvez mal escolhidos.
quase certo que algum leitor nos escrever perguntando porque nocontamos o caso da leprosa, as curas milagrosas, a converso de outros
dois condenados, a morte mstica, os espantosos jejuns, ou porque no nos
alongamos um pouco mais no relato da poderosa influncia que essa moa
exerceu sobre dois papas, Gregrio XI e Urbano VI.
Nosso objetivo, mais modesto, foi o de assinalar, nos seus traos principais,
o claro escuro dessa impressionante figura, ilustrando a idia do paradoxo
da santidade. Aproximando-nos do fim de sua curta vida, vemos crescer, em
contraste com os primeiros anos de recolhimento e silncio, o zeloapostlico, cada vez mais intenso e extenso, por cada um de seus filhos e
sobretudo pela Santa Igreja, a doce Esposa do Cristo.
Nos dias do grande cisma vamos encontr-la a fazer seu testamento. Alm
das cartas dispersas, a iletrada Catarina vai deixar-nos um livro, o seu Livro,
ditando em xtases cerca de setecentas pginas em cinco ou seis dias.
Certa manh, depois da missa, ela avisou aos secretrios que estivessem
prontos para escrever. A data provvel o dia 9 de outubro de 1378, [16] o
ambiente histrico o mais perturbado possvel. Mal terminada a querelaentre a Santa S e a cidade de Florena, estoura o cisma com a eleio de
Clemente VII a 20 de setembro, alegando os impostores que a eleio de
Urbano fora viciada pela coao e pelo terror. Sufocado pelos
acontecimentos, Urbano manda chamar Catarina. Desculpa-se ela,
mandando dizer que no pode ir a Roma pois j no pouca a maledicncia
que se espalha em Sena por causa de suas constantes viagens. Insiste o
papa, chamando-a agora em nome da santa obedincia. Catarina tem trinta
anos como se tivesse vivido trezentos. Est exausta.
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Consumida pelo jejum quase total e pelo fogo devorante de seu amor. A boa
Mona Lapa, sua me e sua filha, lamenta-se em altos gritos; os discpulos se
entreolham e adivinham que est prximo o desenlace daquela incrvel
histria.
nessas circunstncias que Catarina dita o seu Livro, que ser mais tarde
chamado Dilogo. Naquele sbado de manh, depois da missa votiva a
Nossa Senhora, ela pe-se a ditar em xtases. So trs os secretrios que
se revezam: Barduccio Caniggiani, Stefano Maconi e Neri Pagliaresi. A cena
passa-se numa pequena ermida, prxima de Sena, no tempo das colheitas.
Muita gente viera dos arredores, enchendo o pequeno recinto,
acotovelando-se na porta, e fcil adivinhar que, apesar do grande respeito
pela vidente, os secretrios no conseguiam obter silncio desses
irrequietos italianos. Dura horas cada sesso. Catarina, no centro da cela,
mais sentada do que ajoelhada, com o corpo arqueado, o pescoodistendido para trs, as mos crispadas, o rosto em brasa, as fontes
alagadas de suor, ditava em voz rpida, montona, s vezes alteada at se
tornar um grito lancinante.
Esse livro na verdade um Dilogo: a santa suplica e Deus, Deus Pai
responde. Durou cerca de seis dias; no ltimo Deus confirma o que
prometeu a Catarina: Eu farei misericrdia ao mundo, misericrdia Igreja,
porque, como j te ensinei, a misericrdia o meu atributo distintivo e o
que h de mais divino em Mim.
O livro est chegando ao termo. A santa agora dirige Santssima Trindade
uma longa orao de agradecimento que o bom Stefano Maconi, o
secretrio dessas ltimas pginas, mal consegue acompanhar. H um
silncio. Calou-se Catarina. Stefano, esfalfado, ia enrolar o pergaminho
quando Catarina tornou a falar, e disse: Deo Gratias. Amen. Stefano Maconi
tornou a abrir o pergaminho e escreveu: Deo Gratias. Amen. E vendo que a
santa voltava a si, e que o livro chegara ao fim, teve a idia de escrever
alguma coisa sua na cauda do testamento de sua dolcemamma, e gravou
furtivamente as palavras que ficaram at hoje presas ao livro, agarradas,
por assim dizer, ao p da santa: Rezai por vosso intil irmo pecador.
Ns tambm, terminamos aqui. Sem flego para a acompanhar mais longe,
at o dia em que ela pede a Deus que a esmague com o peso da Igreja, e
at o dia em que entrou na vida eterna, aos 33 anos, deixando Igreja o
encargo de repetir no dia de sua festa, hoje, aquele intrito: Dilexisti
justitiam et odisti iniquitatem, ns tambm, no termo deste pequeno
estudo, e aproveitando a oportunidade desta reunio, tivemos a idia de
imitar o bom e esperto Stefano Maconi, agarrando-nos ao p do discpulo
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como ele mesmo agarrou-se ao santo p de sua dolcemamma. E diremos,
ns tambm: rezai, rezai por vosso inutilssimo irmo pecador.
(Conferncia pronunciada no Centro Dom Vital em 30 de Abril de 1948 e
publicada nA Ordem, em Agosto do mesmo ano. Infelizmente, a prometida
segunda parte deste Estudo jamais foi concluda)
Notas:
[1] Saint Franois de Salles. Introduction la Vie Devote.
[2] Para o desenvolvimento desta idia ler L. H. Petitot O. P., La Doctrine
Ascetique et Mystique Integrale; e tambm Sainte Thrse de
Lisieux.
[3] Para maior rigor e desenvolvimento, ler J. Maritain, Science et
Sagesse, Deuxime Partie ( Eclaircissements sur la Philosophie Morale )
chap. II.
[4] Nele M. Denis-Boulet, La Carrire Politique de Sainte Catherine de
Sienne, Les Iles, Descle de Brower, Paris 1939.
[5] Santa Caterina da Siena, Epistolrio, a cura di Piero Misciatelli, Ed.
Marzocco, Fireze, 1939. Vol. II. Lettera CIV. Lettres de Sainte Catherine
de Sienne, trad. E. Cartier, edit. Poussielgue-Ruscend, Paris 1858. Tome II,
Lettre CXXXVIII.
[6] Op. Cit. Vol. V, lettera CCCXXXIII.
[7] R. P. Taurisano O.P. Les Fioretti de Sainte Catherine de Sienne,
trad. de Madeleine Havard de la Montagne Art-Catholique, Paris.
[8] Soer Thrse de lEnfant-Jesus Histoire dune Ame.
[9] A. Gardeil O. P., Le Saint-Esprit dans la Vie Chrtienne, Editions du
Cerf, Paris.
[10] Robert Fawtier, Sainte Catherine de Sienne, essai de critique des
sources. Sources hagiographiques. 1921.
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[11] Johannes Joergensen. Santa Catarina de Sena.Trad. Maria Ceclia de
M. Duprat. Vozes de Petrpolis.
[12] Soeur Thrse de lEnfant-Jesus Histoire dune Ame.
[13] Pe. Germano Estanislau Santa Gema Galgani. Trad. Pe. J. Oliveira
Dias S.J., Porto, 1949.
[14] Santa Caterina da Sena, Epistolrio, Vol. IV, let. CCLXXII.
[15] Bem. Raymundo de Cpua, SantaCatarinadeSena; trad. Lucia
Furquim Lhameyer, Grfica-Ypiranga, Rio, 1931.
[16] DialoguedeSainteCatherinedeSienne, trad. et preface pour le R.
P. J. Hurtaud, O. P., edit. Lethielleux, Paris 1913.
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