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A CIMBOA DIZ NÃO À MORTE

ANUNCIADA

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Os 100 anos de Nho Henrique e as 20 cimboas de S. Domingos

Nho Henrique (Henrique Tavares), 1905-déc. 90 sec. XX

A cimboa (ou cimbó) está a ganhar novo impulso, depois de ter tido a morte anunciada e de ser chamada peça de museu. Até recentemente, contava com um único e último tocador e fabricante conhecido, Mano

Mendi, de Ribeirão Chiq ueiro, a 10 quilómetros da Praia, mas a partir de Ju-nho de 2005 as coisas começaram a mudar.

Cerca de 20 jovens daquela comunidade participaram, naquele ano, num atelier para aprender a construir e a tocar este instrumento. O professor foi, naturalmente, Mano Mendi. A ideia, segundo Mário Lima, presidente do Ins-tituto do Emprego e Formação Profi ssional (IEFP), entidade que fi nanciadora da iniciativa, foi de Joaquim Leal, responsável do Centro de Juventude de S. Domingos, e do capitão das Forças Armadas e músico amador Pascoal Fernan-des, também daquele concelho. Objectivo da formação: perpetuar a presença da cimboa em Cabo Verde, através da multiplicação dos seus executantes e construtores. Ao mesmo tempo, ocupar os tempos livres dos jovens com uma actividade peculiar à cultura cabo-verdiana.

Segundo Mário Lima, algumas difi culdades com matérias-primas surgiram no arranque do curso, como a ausência de cabaças em Santiago, tendo-se que ir comprar à ilha do Fogo, e a difi culdade em adquirir rabo de cavalo, que acabou por ser enviado do Brasil. Esses são alguns dos materiais, recorde-se, utilizados na construção da cimboa, presente em muitos países da África. O antropólogo João Lopes Filho, na sua obra Cabo Verde – Apontamentos Etnográ-fi cos, indica a sua presença, no passado, em outras ilhas além de Santiago – e pessoas da ilha do Fogo recordam-se do instrumento na infância, há menos de 50 anos – mas foi nesta que resistiu.

Outra notícia sobre um novo rumo para a cimboa aparece, a 6 de Abril de 2005, em www.lantuna.blogspot.com (“A Cimboa Hoje”, 06 de Abril, 2005), onde se pode ler que, desde 1997, o professor de música Tó Tavares acalenta um futuro para o instrumento, que inclui a sua divulgação, ensino e eventuais alterações que permitam tirar melhor proveito dele.

Tudo isso coincide com o centenário de Nho Henrique, varredor de rua do Tarrafal falecido na década de 90 e que costumava acompanhar a cantadeira

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de fi naçon Nha Bibinha Cabral. Em 1980, ambos actuaram no cine-teatro da Praia, mas passam despercebidos – não há referência a eles nos artigos sobre os espectáculos que assinalam os cinco anos da independência de Cabo Verde –, numa altura em que a música tradicional está na ordem do dia, mas a atrac-ção é o funaná em versão urbana do Bulimundo.

Encontrámos há alguns anos a cimboa de Nho Henrique no Centro Nacio-nal de Artesanato, em S. Vicente. Esperemos que as vicissitudes por que pas-sou este centro nada tenham causado a esta peça de valor museológico. Mas se a cimboa de Nho Henrique é de facto peça de museu, no sentido literal, a cimboa de modo geral já foi tida como tal no sentido de não ser mais que um anacronismo. Era assim que a encarava, no seu livro de 1976, já referido, o antropólogo João Lopes Filho, num capítulo intitulado justamente: “Berimbau e Cimbó, dois instrumentos musicais em vias de desaparecimento em Cabo Verde”.

Por sua vez, em 1989, o jornalista José Tavares Gomes questionava no Voz di Povo (VP, 2 de Setembro): “Quem herdará a cimboa de Nho Henrique?” E faz o ponto da situação: “Nho Henrique há muito que pendurou a cimboa num canto. Os jovens não lhe querem seguir as peugadas como ele fi zera em relação a seu tio, Nho Miguel Tavares, pessoa a quem ele acompanhava para todo o lado, quando era convidado para animar a noite nas festas de casamento ou de baptizado.”

Naquela altura, Nho Henrique já raramente tocava, diz o jornalista: “Isso só acontece quando alguém interessado na recolha das nossas tradições o visita no intuito de lhe fazer o último registo, coisa que o desgosta um pouco. Mas ele, velho e alquebrado, não se faz de rogado (…) Começa por limpar o pó, pega dum pedaço de breu com o qual besunta a corda…”

Para além do artigo do VP (único sobre esta personagem encontrado nas nossas pesquisas nos periódicos cabo-verdianos), o livro Ña Bibinha Kabral – Bida y Obra, de Tomé Varela da Silva, traz uma entrevista com Nho Henrique, pela qual fi camos a saber que esteve duas vezes em S. Tomé e Príncipe, num total de oito anos: a primeira vez a partir de 1954; a segunda, não foi capaz de se recordar (era já octogenário na altura da entrevista).

Em 1990, Nho Henrique faz uma gravação que se encontra no CD Iles du Cap-Vert – Les Racines, disco raro, resultante de recolhas realizadas por Manuel Gomes. Por sua vez, Mano Mendi, seu sucessor, participou no disco de An-tónio Denti D’Oru editado em França pela Ocora e em gravações do argelino Abdelli.

Mesmo que já ninguém se lembre de Nho Henrique, o acaso o homenageia, no seu centenário, com as cimboas em construção.

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Mano, tesouro humano?

Mano Mendi (Pedro Mendes Sanches Robalo), 1927

Cerca de um ano depois do relatado no texto anterior, o historiador Charles Samsom Akibodé, do Instituto de Investigação e do Patrimó-nio Culturais (IIPC), dá início ao projecto “Salvaguarda da Memória

da Cimboa”, que contempla a recolha de informações sobre o instrumento e a realização de ateliers de construção e aulas para aprender a tocar, com o registo audiovisual de entrevistas e outras actividades do projecto, de forma a montar um arquivo sobre o tema. Contempla ainda – iniciativa inédita em Cabo Verde – a declaração de uma pessoa como património imaterial do país.

Essa pessoa é o já citado Manu Mendi, camponês septuagenário residente em Ribeirão Chiqueiro, que costuma ser apontado como o único e último cons-trutor e tocador de cimboa. Akibodé defende que seja considerado “patrimó-nio” por ser detentor de um saber tradicional único. Se isso acontecer, será a primeira vez que Cabo Verde atribui essa condição a uma pessoa.

“Mano Mendi, pelo seu talento, tirou do anonimato a aldeia de Ribeirão Chiqueiro e é o único tocador em Cabo Verde inteiro de um instrumento an-cestral e de um estilo musical que sobreviveu graças à sua abnegação”, diz o historiador, apontando os critérios da UNESCO para tais casos: “Uma pessoa pode ser considerada como Património Vivo ou Tesouro Humano Vivo (em inglês Living Human Treasure) de um espaço – aldeia, concelho, cidade, país – quando mostrou e desenvolveu um conhecimento ou uma habilidade parti-cular reconhecida e/ou que fez conhecer o espaço pelo seu talento.”

Ideia nova em Cabo Verde, esta prática existe desde 1950, tendo sido o Ja-pão o pioneiro na salvaguarda dos seus mestres de saberes tradicionais. Em África, a Nigéria, o Benim e o Burkina Faso estão entre os países que já adop-taram medidas que valorizam esses sábios populares. No Senegal, há a referir Joseph NDiaye, guia da Maison des Esclaves, na ilha de Goré. Trata-se de um caso específi co, mas que mostra que os critérios podem ser defi nidos pelos próprios países, de acordo com aquilo que julgam relevante.

Segundo a defi nição da UNESCO, o Património Cultural Imaterial (PCI) é constituído pelas práticas, representações, expressões, conhecimentos e habilida-des, instrumentos, objectos, artefactos – e espaços culturais que lhe são ligados – que as comunidades, grupos e indivíduos reconhecem e aceitam como fazendo parte do seu património. Ou seja, da língua à medicina tradicional e à culinária, passando pelos rituais, crenças, jogos e artes, nas suas várias expressões.

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A UNESCO considera que uma das formas mais efi cazes de realizar a salva-guarda durável do PCI é cuidar para que aqueles que o encarnam continuem a praticar os seus conhecimento e os transmitam às gerações seguintes. A pro-pósito, Cabo Verde ainda não faz parte – quando concluímos estes escritos, em Janeiro de 2007 – do grupos dos países que ratifi caram a Convenção para a Sal-vaguarda do Património Cultural Imaterial, adoptada em Outubro de 2003.

* * *

No âmbito do projecto “Salvaguarda da Memória da Cimboa”, reali-zou-se, em Agosto de 2006, no Centro Comunitário de Ribeirão Chi-queiro, um atelier de construção do instrumento. Mano Mendi teve

como aprendizes quatro jovens da localidade, um dos quais seu neto; o já ci-tado Pascoal Fernandes, que do que aprendera na formação do ano anterior ajudou Mano Mendi a passar o seu know how; e a autora deste texto, enquanto estudante de Antropologia e jornalista interessada na cultura e em particular na música de Cabo Verde.

A iniciativa terminou em festa, com direito a uma actuação de Ntoni Denti d´Oru e suas batucadeiras e, claro, com Mano Mendi a solar a sua cimboa. Denti d´Oru, recorde-se, foi quem levou Mano Mendi a gravar pela primeira vez, acompanhando-o no seu primeiro CD, editado em França em 1998.

Visitou as actividades dos dez dias de atelier o médico dentista Olímpio Varela, de 71 anos, que aprendeu a tocar cimboa em criança e nunca mais pe-gou numa. Contudo, revelou-se capaz de, mais de 50 anos depois, solar na sua única corda, com à-vontade e mestria, mornas e coladeiras que são clássicos do repertório tradicional cabo-verdiano.

A acrescentar à lista de entusiastas da cimboa que o projecto fez vir à tona, há a fi gura do artesão tarrafalense Nho Eugénio, de Mato Brasil, que afi rma ter criado a peça que foi modelo para a ilustração da nota de 100 escudos emitida pelo Banco de Cabo Verde em Janeiro de 1977 – a primeira emissão do banco, criado meses antes. Uma das faces da nota traz a fi gura de Amílcar Cabral numa extremidade e a imagem de uma cimboa na outra. Nho Eugénio havia deixado o instrumento de lado há muitos anos, desanimado com o facto de ele ser tão pouco valorizado. Mas prontifi cou-se a colaborar, ensinando as suas técnicas de fabricação.

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Passo a passo da cimboa, segundo Mano Mendi

Não é fácil fazer uma cimboa. Os materiais são escassos em Santiago (como cabaças e rabo de cavalo), as árvores para as madeiras que compõem o instrumento têm se ser procuradas em zonas distantes,

e é preciso saber identifi cá-los. Aqui fi ca a descrição resumida do atelier com Mano Mendi, em Agosto de 2006:

A pele. Precisa de cerca de três dias de preparação, e por isso é o primeiro passo. Encontrar pele de cabra na Praia não foi fácil. É necessário encomendar às pessoas que fazem o abate, pois caso contrário ela vai logo parar ao lixo. O que permite concluir que as técnicas do curtume já praticamente não existem – e pensar que Cabo Verde exportava peles no passado… Os animais não de-vem ser nem muito bebés nem velhos: “Xubarra ou buréfu”, explicita Manu Mendi. Ou seja, adultos jovens.

A depilação. Não sabemos o que usavam no passado, mas agora as peles são colocadas dentro de uma bolsa de plástico (como as do supermercado), que é fechada com nós e colocada em local inacessível – aos cães, sobretudo. No caso, foi no alto de um contentor de transporte marítimo que havia nas re-dondezas. O objectivo é que o naturalíssimo processo de decomposição, que o calor no interior do saco vai acelerar, solte os pêlos do couro. Três dias depois, quando a bolsa é aberta, é preciso ter estômago para suportar o cheiro, mas os pêlos desprendem-se facilmente. A nota de humor é dada por um dos rapazes, diante das caretas dos companheiros: “Isto é como a medicina; não se pode ter nojo do paciente…” Depois de depilada e lavada com água apenas, sem qual-quer produto químico, a pele é posta a secar ao sol.

Madeiras. Na zona rural de S. Domingos encontram-se as espécies ve-getais utilizadas na fabricação da cimboa. Mas é preciso saber identifi cá-las. Para o braço do instrumento, usa-se um galho de pé de pinha, “colhido de preferência na época da lua minguante, para que depois de seca a madeira não rache”, explica Manu Mendi. O braço é maciço, não há emenda, portanto será necessário cortar um ramo que seja sufi ciente para fazer pelo menos um braço completo. Para o arco: ramo de barnélu, um arbusto que abunda naquela re-gião. A chave para afi nação da corda pode ser feita com um pequeno pedaço de mogno ou outra madeira dura. Há ainda os pregos que fi xam a pele, feitos com varetas de carriço.

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Esculpir. Tanto a madeira de pinha como a do barnélu são trabalhadas ainda verdes, por serem mais fl exíveis nessa altura. Já o carriço é cortado em varetas, para ir secando até chegar o momento de usá-lo. Transformar um ga-lho de árvore num braço de cimboa exige uma faca bem afi ada, um pouco de força mas, sobretudo, habilidade para lhe dar a forma que se pretende.

O arco. Depois de se retirar a casca do ramo de barnélu, este é curvado e amarrado com um cordão, o que lhe dará a forma. Depois, o cordão será subs-tituído pela corda feita com fi os de rabo de cavalo.

Buli. cortar e furar. O buli (cabaça), que será a caixa de ressonância do ins-trumento, deve ter à volta de 15 cm de diâmetro. É cortado com serra ou faca, de forma a abrir uma boca que será revestida com a pele. Além disso, fazem-se três furos: dois onde fi ca encaixada a haste inferior do braço e um por onde sai o som.

Montar a pele. Ao redor da abertura do buli fazem-se pequenos furos com intervalos regulares, com um furador manual. A pele deve estar molhada ao ser esticada sobre a abertura, e as varetas de carriço, que entretanto já fo-ram cortadas com a ponta em cunha, são introduzidas nesses furos, através da pele, fi xando-a ao buli e eliminando-se o excedente.

Montar o braço. Introduz-se a parte inferior do braço, que no total tem cer-ca de 60 centímetros de comprimento e cerca de três de largura, nos dois buracos feitos no buli, de forma que este é atravessado pela haste, que sai pelo segundo buraco. A forma e espessura do braço devem coincidir com as dos orifícios.

A corda. A corda da cimboa, bem como a do arco, é constituída por cerca de 50/60 fi os de rabo de cavalo. Uma particularidade é o facto de que estes fi os devem ser escuros – pretos ou castanhos, pois o fi o branco parece não dar bom som. Difi culdades de se obter este material em Cabo Verde ditaram pedi-dos de fornecimento a pessoas no Brasil e no Uruguai, onde Charles Akibodé tinha divulgado o seu projecto. Vários quilos foram enviados, pelo que o IIPC passou a dispor de um bom stock. A corda fi ca presa numa fenda na chave de afi nação. Na outra extremidade, passa por cima de um cavalete (uma peque-na peça cortada do buli e colocada sobre a pele), fi cando bem esticada ao ser amarrada com barbante na ponta do braço que sai do buli.

Afi nar e tocar. No fi m do atelier, Manu Mendi experimentou as cimboas construídas e também uma que Ntóni Denti d´Oru tinha em casa, avariada, e que foi reparada. E tocou no encerramento, preparando-se para a próxima fase do projecto: ensinar a tocar.1

1 Até a conclusão desta obra, em Janeiro de 2007, não tinha sido realizada a fase em que Mano Mendi ensinaria os aprendizes a tocar.

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Mano Mendi, em sua casa em Ribeirão Chiqueiro, 1998. FOTO: GLÁUCIA NOGUEIRA

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