CETOACIDOSE DIABÉTICA
Marcello Eduardo Campelo
Escola Superior de Ciências da Saúde (ESCS)/SES/DF
www.paulomargotto.com.br
Brasília, 27 de abril de 2012
Introdução
Complicação aguda metabólica grave do diabetes melito (DM)
Causada pela deficiência de insulina, associada ou não a uma maior atividade dos hormônios contra-reguladores (cortisol, catecolaminas, glucagon, GH)
Maioria dos casos acontece em DM do tipo 1 (DM1)
Manifestação inicial em cerca de 25-50% dos casos de DM1
Risco: 1/10 casos/100 indivíduos/ano
Fatores precipitantes
Crianças Adolescentes
Primodescompensação Estresse físico, emocional, hormonal
Infecções virais e bacterianas Omissão ou subdose de insulina
Estresse físico, emocional Infecções
Omissão ou subdose de insulina
Uso excessivo de álcool associado aos fatores acima
Atraso no reconhecimento dos sinais e sintomas do DM
Fisiopatologia ↓ níveis séricos de insulina e ↑ dos hormônios
contra-reguladores
Estado catabólico acelerado
↑ da produção hepática da glicose por glicogenólise e gliconeogênese hepáticas
↓ da captação
periférica de glicose
Hiperglicemia
↑ da gliconeogênese
por glicogenólise muscular
(lactato), glicerol da lipólise e aa da proteólise
Fisiopatologia
Hiperglicemia
GlicosúriaHiperosmolaridade sérica
Desvio de água do meio intracelular
para o extracelular
Desidratação
intracelular
Diurese osmótica
Perda de água, Na, K,
P, Mg
Hipovolemia
↓ da perfusão renal e sua capacidade de excretar
glicose
Agravamento da
hiperglicemia
Agravamento da
hiperosmolaridade sérica
Desidratação
↓ da filtração glomerular
(FG)
Hiponatremia
dilucional
FisiopatologiaHipovolemia
(diurese, vômitos)
Perfusão periférica
inadequada
Formação de
ácido lático
Acidose metabólica com
ânion gap ↑
Insulinopenia extrema +
estado catabólico
↑ da
lipólise
↑ da oxidação hepática de AGL em corpos cetônicos: β-hidroxibutirato (75%) e
acetoacetato (25%)
Deslocamento do K do intra para o
extracelular (troca com H+)
Hipercetonemia
Excreção adicional de Na, K, Ca, Mg e amônia
para manter
neutralidade elétrica
Hiperpotassemia
Fisiopatologia: distúrbios eletrolíticos
Hiponatremia dilucional Causada por hiperglicemia Um aumento de 100 mg/dl acima dos valores
normais de glicose ocorre uma redução de 1,6 mEq/l na concentração de Na na leitura
Fórmula de Katz: Na real = Na dosado + 1,6 x [glicemia(mg/dl) – 100] 100
↑ de lipídios plasmáticos e perda urinária de Na
provocada pela diurese osmótica e eliminação de corpos cetônicos também favorecem a hiponatremia
Fisiopatologia: distúrbios eletrolíticos Pseudohiperpotassemia
Para cada redução de 0,1 no pH ocorre aumento de 0,6 mEq/l no K sérico
K sérico em níveis normais ou baixos na presença de acidose metabólica é indicativo de acentuado déficit do K corporal
Outros fatores que levam à perda corporal de K: Vômitos Diurese osmótica Hiperaldosteronismo secundário (para compensar a
desidratação; causada pela hipovolemia, levando à perda urinária de K)
Eliminação renal com cetoácidos Correção da acidose (uso de bicarbonato) Administração de insulina
Fisiopatologia: distúrbios eletrolíticos
Hiperfosfatemia Ocorre saída de P pelas células em
consequência do estado hipercatabólico O P corporal está baixo, podendo levar:
fraqueza muscular, depressão neurológica e disfunção miocárdica
Com o início do tratamento, a melhora da acidose e a ação da insulina promovem rápido deslocamento de fosfato do espaço extracelular para o intracelular, resultando em hiperfosfatemia
Fisiopatologia: distúrbios eletrolíticos Hipercloremia iatrogênica com
agravamento ou não melhora da acidose Se houver excesso na reposição de SF 0,9%
Hipocalcemia Caso o paciente receba reposição de
fosfato
Quadro clínico Poliúria Polidipsia Polifagia Perda ponderal Astenia Desidratação leve Náusea Vômito Dor abdominal Anorexia Desidratação hiperosmolar acentuada Taquipneia leve a respiração de Kussmaul (rápida e profunda) Rubor facial Hálito cetônico Irritabilidade alternada com sonolência ou estado comatoso, torpor,
confusão Arritmia cardíaca Choque hipovolêmico: hipotensão e pulsos finos
Início
Estado
grave
Diagnóstico
Exame físico: Taquicardia Saliva espessa Mucosas secas Olhos encovados ↓do turgor do tecido subcutâneo Choque hipovolêmico: hipotensão e pulsos
finos Taquipneia Estertoração fina Hálito cetônico
Acidose metabólica com produção de corpos cetônicos
Desidrataçã
o
Diagnóstico laboratorialCetoacidose diabética (CAD) Estado
hiperosmolar
hiperglicêmico não cetótico (EHHNC)
Leve Moderada Grave
Glicemia (mg/dl)
> 200 (> 250*)
> 200 > 200 > 600
pH sérico < 7,3 < 7,2 < 7,1 > 7,3
HCO3- sérico
(mEq/l)< 15 < 10 < 5 > 15
Cetonemia (mmol/l)
> 3 > 3 > 3 < 3
Cetonúria Presente Presente Presente Ausente
Osmolaridade sérica (mOsm/kg)
Variável Variável Variável > 320
Ânion gap > 10 > 12 > 12 < 12
*Sociedade Brasileira de Diabetes
Outros exames
RX abdome ECG: monitoração de arritmias cardíacas
e distúrbios eletrolíticos (K) TC crânio: para paciente em coma e
com suspeita diagnóstica de edema cerebral
Salicilemia: intoxicação por salicilatos Atividade da colinesterase:
intoxicação por organofosforados
Diagnóstico diferencial (além do EHHNC)
Patologia O que causa Como afastar
Intoxicação por salicilatos
Hiperglicemia, glicosúria, acidose
Dosagem de nível sérico
Intoxicação por organofosforados
Hiperglicemia, glicosúria, acidose
História de ingestão de pesticidas e sinais de envenenamento (miose, broncorréia, sialorréia)
Infecção grave Hiperglicemia, glicosúria, acidose
Presença de foco infeccioso, febre, sinais de toxemia, leucocitose
Gastroenterite Desidratação Ocorre oligúria; na CAD ocorre poliúria
Desidratação hipernatrêmica
Desidratação Ocorre hipernatremia; na CAD ocorre pseudohiponatremia
Tubulopatia renal Glicosúria, cetonúria Não ocorre hiperglicemia, cetonemia e desidratação
Pneumonias Taquipneia Febre, dor torácica, crépitos, alterações radiológicas
Broncoespasmo Taquipneia Ausência de hiperglicemia, acidose metabólica, desidratação, hálito cetônico, cetonemia
Coma
Abdome agudo Na CAD, a dor melhora com hidratação
Tratamento: abordagem inicial Bases do tratamento:
Reposição hídrica Insulinoterapia Correção dos distúrbios eletrolíticos e ácido-
básicos
Exame físico (enfatizar): Sinais vitais Peso Avaliar grau de desidratação Avaliar presença de respiração de Kussmaul Verificar existência de hálito cetônico Examinar possibilidade de processo infeccioso:
examinar genitália (vulvovaginites e balanopostites)
Tratamento: abordagem inicial
À entrada A cada hora Até a correção da acidose na
CAD
Após a correção da acidose na
CAD
•O2: para instabilidade hemodinâmica•Obter acesso venoso•Glicemia plasmática e capilar•Gasometria venosa•Na, K, Cl,Ca, Mg, P, ureia, creatinina•Cálculo da osmolaridade efetiva•Cálculo do ânion gap•Pesquisa de corpos cetônicos e glicose na urina (EAS) ou de cetonemia em sangue capilar•Ácido lático•Sonda vesical•Sonda NG•Dieta zero
Controles de glicemia capilar nas primeiras 6-8h
•Em suspeita infecciosa, verificar: hemograma, hemocultura, urocultura, RX tórax•Verificar sinais vitais•Avaliação neurológica: reconhecer quadro de edema•Controle do balanço hídrico•Controlar dose de insulina administrada
Controles a cada 2h após 6-8h do medicamento
•Glicemia•Gasometria venosa•Na, K, Cl, P•Cetonemia ou cetonúria às micções•Observar normalização do hemograma caso estela alterado
Controles a cada 4h nas próximas 24h
•Glicemia•Gasometria venosa•Na, K•Dieta oral•Heparinização profilática
Reposição hídrica
O paciente com CAD apresenta déficit de volume equivalente a 5-10% do seu peso
É realizado em 2 etapas
Estimativa da severidade da desidratação
5% peso Turgor da pele ↓, mucosas secas, taquicardia
10% peso Tempo de enchimento capilar > 3s, olhos encovados
> 10% peso Pulsos periféricos fracos ou impalpáveis, hipotensão, choque, oligúria
Reposição hídrica
Expansão rápida: NaCl 0,9% ou Ringer lactato Presença de choque: 50 ml/kg (máximo 1000
ml/h) até estabilidade Ausência de choque:
20 ml/kg/h (máximo 1000 ml/h) Manter EV, por 4h Se necessitar de mais volume, 10 ml/kg/h até a
hidratação clínica
Reposição hídrica
Manutenção Perdas calculadas devem ser repostas em 48h com
NaCl 0,45% ou 0,9% Composição: 100 ml/100 kcal/dia + 3 mEq/l Na + 5
mEq/l K Iniciar oferta de glicose para evitar rápida redução
da glicemia: deve ser iniciada quando a glicemia alcançar 200-300 mg/dl
Suspender quando o paciente aceitar dieta oral e líquido
Glicemia (mg/dl) SG a ser usada (100 ml/kcal)
> 300 5%
200-300 7,5%
< 200 10%
Reposição eletrolítica
Potássio (KCl): realizada na fase de manutenção K < 6,5 mEq/l (< 5 mEq/l*):
Iniciar na 2ª hora de hidratação Repor 30 mEq/l na velocidade de 0,5 mEq/kg/h Repor ½ na forma de KHPO4 a 25% (1 ml = 1,8 mEq) e ½
na forma de KCl (1 ml = 2,5 mEq) K > 6,5 mEq/l:
Colher nova amostra e utilizar na 2ª hora apenas NaCl 0,9% até resultado
K ≤ 3,5 mEq/l: Aumentar a velocidade de reposição até 1 mEq/kg/h Monitorar o paciente Não ultrapassar 70 mEq/l
*Sociedade Brasileira de Diabetes
Reposição eletrolítica
Potássio
Administração de K > 6 mEq/kcal/dia deve ser acompanhada de monitoração cardíaca
Fósforo Seus níveis tendem a quando a acidose é corrigida P < 1 mg/dl ou em pacientes com comprometimento
cardíaco, anemia ou insuficiência respiratória Fosfato ácido de P 2 mEq/kg/dia EV ou 10 ml com 2
mEq/ml VO
K inicial (mEq/l) K requisitado
> 6 2-4 mEq/kcal/dia
4-6 4-6 mEq/kcal/dia
< 4 6-8 mEq/kcal/dia
Correção da acidose
Bicarbonato (HCO3 ) só deverá ser utilizado nos casos de acidose grave (BE < -18 e pH ≤ 6,9)
HCO3 pode agravar a hipocalemia
Dose a ser calculada para 1h: Bicarbonato a administrar (mEq)=
15 – bicarbonato encontrado na gasometria) X 0,3 X peso (kg)
Insulinoterapia
Iniciada na 2ª hora de tratamento, após a 1ª expansão
Esquema 1 Esquema 2•Infusão EV contínua ou IM de ↓ doses de insulina regular•Velocidade de infusão: 0,1 UI/kg/h•Objetivo: promover queda linear da glicemia na taxa de 70-90 (55-90) mg/dl/h•Verificar a cada hora a glicemia capilar para monitorar queda•Reduzir pela metade e velocidade de infusão quando glicemia atingir 200-250 mg/dl até a resolução da cetoacidose (pH 7,3 e bicarbonato > 15 mEq/l)•Se glicemia continuar > 300 mg/dl, continuar com insulina regular 0,1 UI/kg •Liberar dieta ou introduzir soro de manutenção quando glicemia 200-250 mg/dl
•Insulina ultra-rápida SC (Lispro ou Aspart)•Dose: 0,15 UI/kg a cada 1-2 horas•Insulina regular pode ser usada de forma alternativa•Verificar a cada hora a glicemia capilar para monitorar queda (aceitável até 100 mg/dl/h)•Se a taxa de queda for > 100 mg/dl/h: reduzir a dose para 0,1 UI/kg a cada 2h até a glicemia atingir 200-250 mg/dl, quando o intervalo entre as doses deverá ser aumentado para 3h (0,1 UI/kg)•Liberar dieta ou introduzir soro de manutenção quando glicemia 200-250 mg/dl
Insulinoterapia
É preciso que o paciente receba 3-4 doses de insulina para reverter a produção de corpos cetônicos e a gliconeogênese
Após correção da acidose (pH > 7,3 e bicarbonato > 15 mEq/l), introduzir insulina NPH 0,3 UI/kg/dose a cada 8h, ou insulina regular SC a cada 4h, conforme tabela:
Glicemia (mg/dl)
Peso < 20 kg Peso > 20 kg
< 200 - -
200-250 2U 4U
250-300 4U 6U
300 6U 8U
Insulinoterapia
A administração de insulina SC poderá ser iniciada antes das 3 principais refeições após a recuperação: Volume intravascular Melhora do nível de consciência Quando a ingestão por VO for possível pH > 7,3 Bicarbonato > 15 mEq/l Glicemia entre 150-200 mg/dl
Evolução de melhora clínica
Melhora da acidose (pH > 7,3 e bicarbonato e bicarbonato > 15 mEq/l: 12 horas
Insulinização e correção da cetoacidose: 6h Média de melhora: 6-12h Parâmetros clínicos de melhora:
Fim dos sinais clínicos de desidratação Melhora da taquipneia Melhora do nível de consciência Normalização da gasometria
Complicações
Hipocalemia: administração de insulina Hipoglicemia: administração de
insulina Hiperglicemia: alteração da
insulinoterapia
Edema cerebral Acidose hiperclorêmica Síndrome da angústia respiratória
Mais comu
ns
Menos comuns
Acidose metabólica hiperclorêmica Causas:
Intensa perda urinária de corpos cetônicos (ânions)
Infusão de grandes quantidades de fluidos com concentração de cloretos > concentração plasmática. Ex.: NaCl 0,9%, KCl
Retarda a normalização plasmática de bicarbonato e pH, prolongando a insulinoterapia e o tempo de internação
Diagnóstico: acidemia com ânion gap normal durante tratamento da CAD
Edema cerebral
Complicação mais temida 0,5-1% de todos os casos de CAD na
infância Mortalidade: 20-25% Sequelas neuromusculares: 30% Surge em média 5-15h após terapia Pacientes de risco:
Acidose grave < 5 anos Pacientes sem diagnóstico prévio de DM CAD prolongada e sem tratamento
Edema cerebral
Fisiopatologia Hidratação excessiva → hiperfluxo →
movimento de fluido para cérebro expansão do espaço extracelular
Desidratação + vasoconstrição intracraniana + taquipneia + ↓PCO2 → hipofluxo cerebral → hipoxemia → isquemia
↑ corpos cetônicos → alteração da permeabilidade vascular → edema
Hiponatremia prolongada Rápida redução da glicemia
Edema cerebral
Quadro clínico Cefaleia Sonolência Confusão ↑ da PA Vômitos Alterações pupilares Irregularidade ou parada respiratória da FC Irritabilidade Descerebração, decorticação e paralisia de nervo
craniano
Sinais de hipertensão intracranian
a
Edema cerebral Tratamento
Manitol: 0,5-1 g/kg EV em 20 min. Repetir dose se não houver resposta em 30min-1h
NaCl 3%: 5-10 ml/kg em 30 min. Alternativa ao manitol, em caso de resposta negativa
Redução da taxa de administração de fluidos em 1/3
Elevação da cabeceira a 45º Manter PaCO2 entre 27-30 mmHg TC crânio para afastar outras causas de
deterioração neurológica (isquemia, hemorragia, tumores)
Referências
SCHVARTSMAN, C.; REIS, A. G.; FARHAT, S. C. Pronto-Socorro. São Paulo: Manole, 2010. 686 p. (Coleção Pediatria. Instituto da Criança HC FMUSP).
LOPEZ, F. A.; PIOCLÍCIO, C. J.; Tratado de Pediatria. 1ª ed. São Paulo: Manole, 2007.
BERHRMAN, R. E.; KLIEGMAN, R. M.; Jenson, H. B.; Stanton, B. F. Tratado de Pediatria. 18ª ed.. São Paulo: Elsevier, 2009. 3568 p.
Diretrizes da Sociedade Brasileira de Diabetes, 2008. 108 p. Alves, C. Situações em Emergência em Pediatria: Cetoacidose
Diabética. Universidade Federal da Bahia: Endocrinologia Pediátrica, 2004.
Távora, Y. O. N. Cetoacidose Diabética. 2010. 33 p. Dissertação para conclusão do programa de residência médica em terapia intensiva pediátrica da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal – HRAS. 2010.
Damiani D; Damiani D. Complicações Hiperglicêmicas Agudas no Diabates MelitoTipo I do Jovem. Arq Bras Endocrinol Metabol. 2008 Mar; 52(2):367-74
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