CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA – UNICURITIBA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUÇÃO stricto sensu – MESTRADO EM DIREITO
LUIS OTÁVIO SALES DA SILVA JUNIOR
A CONSUNÇÃO NO DIREITO PENAL ECONÔMICO: PERTINÊNCIA E
CRITÉRIOS DE APLICAÇÃO
CURITIBA
2018
2
LUIS OTÁVIO SALES DA SILVA JUNIOR
A CONSUNÇÃO NO DIREITO PENAL ECONÔMICO: PERTINÊNCIA E
CRITÉRIOS DE APLICAÇÃO
Dissertação apresentada ao programa de Mestrado em
Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário
Curitiba – UNICURITIBA como requisito parcial para a
obtenção do Título de Mestre em Direito.
Professor Orientador: Doutor Fábio André Guaragni.
CURITIBA
2018
3
LUIS OTÁVIO SALES DA SILVA JUNIOR
A CONSUNÇÃO NO DIREITO PENAL ECONÔMICO: PERTINÊNCIA E
CRITÉRIOS DE APLICAÇÃO
Dissertação aprovada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em
Direito pelo Centro Universitário Curitiba.
Banca Examinadora constituída pelos seguintes professores:
Presidente:
__________________________________________
DR. FÁBIO ANDRÉ GUARAGNI
__________________________________________
DR. RODRIGO SÁNCHEZ RIOS
__________________________________________
DR. RODRIGO RÉGNIER CHEMIM GUIMARÃES
Curitiba, 4 de junho de 2018.
4
..o mundo moderno não consegue conciliar liberdade e
igualdade. Mas isso não é um defeito. Tais contradições são
inerentes a toda cultura humana. Na verdade, são aquilo que
move a cultura, responsáveis pela criatividade e dinamismo da
nossa espécie. Da mesma forma que duas notas musicais
discordantes tocadas ao mesmo tempo colocam em
movimento uma composição musical, a dissonância em nossos
pensamentos, ideias e valores nos compele a pensar, reavaliar
e criticar. A consistência é o parque de diversões das mentes
entorpecidas.
HARARI, Yuval Noah. Sapiens – Uma breve história da
humanidade. 29.ed. Porto Alegre: L&PM, 2017. p. 173.
5
RESUMO
Busca-se nesta investigação discutir o problema hermenêutico do conflito aparente de normas,
notadamente a consunção, no contexto do direito penal socioeconômico. Em se tratando de um
âmbito repressivo com particularidades político-criminais e dogmáticas, cujo efeito mais
sensível é o aumento aritmético de preceitos incriminadores, acentuam-se desafios de
subsunção jurídica, notadamente os fenômenos do concurso próprio e impróprio. Em um
cenário em que a sobreposição típica é frequente, cabe demarcar as diferenças de ambos os
institutos, aplainando eventuais obstáculos e divergências a fim de tornar menos tortuosa a
tarefa do intérprete. Entre esses desafios, está a questão da unidade ou pluralidade de condutas
típicas como pressuposto do conflito aparente e a noção de unidade delitiva complexa.
Investigam-se, ainda, os fundamentos hermenêuticos e dogmáticos que impelem o intérprete a
reconhecer a unidade de lei, para além de valores de pouca concreção como justiça ou equidade.
Apesar da razoável discricionariedade judicial ínsita ao exame da consunção, de natureza
marcadamente axiológica/valorativa, convém delimitar critérios que tornem mais estável e
previsível a operação de absorção material de uma norma incriminadora por outra. Entre eles,
apontam-se o desvalor da ação e o desvalor do resultado dos injustos em iteração valorativa,
haja vista a inclinação do moderno direito penal a fins político-criminais, sem se prescindir,
porém, da referência a bens jurídicos (adota-se, portanto, o funcionalismo teleológico de
Roxin). Após, apresentam-se as principais regras de resolução de conflito aparente de normas,
suas diferenças e casos práticos no âmbito do direito penal econômico. A regra da consunção,
objeto central desta investigação, é analisada em um capítulo à parte, onde se abordam sua
natureza, pressupostos, divergências dogmáticas e jurisprudenciais e casos clássicos, além de
uma análise mais detida das categorias do desvalor da ação e do desvalor do resultado. Ao fim,
analisam-se casos extraídos da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça em que se
discutiu a aplicação da consunção entre delitos socioeconômicos, tanto para demonstrar a
permanente divergência de compreensão em âmbito pretoriano, como para testar os critérios
abordados. Estudou-se a interação material entre os seguintes delitos: supressão tributária e
falsidade ideológica, obstrução de regeneração natural de vegetação e construção em solo não
edificável, gestão fraudulenta de instituição financeira e apropriação de ativos, ausência ilegal
de licitação e peculato de prefeito, e, por fim, lavagem e seu correspondente crime antecedente.
Palavras-chave: direito penal econômico, conflito aparente de normas, consunção, desvalor da
ação, desvalor do resultado, bis in idem material.
6
ABSTRACT
In this investigation, we seek to discuss the hermeneutic problem of the apparent conflict of
norms, especially consumption, in the context of socioeconomic penal law. In the case of a
repressive scope with political-criminal and dogmatic peculiarities, whose most sensitive effect
is the arithmetical increase of incriminating conducts, challenges of juridical subsumption,
especially the phenomena of the proper and improper contest, are accentuated. In a scenario
where the criminal overlapping is frequent, it is necessary to demarcate the differences of both
institutes, resolving eventual obstacles and divergences in order to make the interpreter's task
less tortuous. Among these challenges is the question of the unity or plurality of criminal
behaviors as a presupposition of apparent conflict and the notion of complex unit of criminal
offenses. It is also investigated the hermeneutic and dogmatic foundations that impels the
interpreter to recognize the unity of law, in addition to values of little concretion like justice or
equity. In spite of the reasonable judicial subjectivity involved in the examination of the
consumption, of a highly axiological/evaluative nature, it is necessary to delimit criteria that
make the operation of material absorption of one incriminating norm by another more stable
and predictable. Among them, we point out the devaluation of the action and the devaluation
of the result of the unjust in value iteration, due to the inclination of the modern criminal law
for political-criminal purposes, without neglecting, however, the reference to juridical assets
(we adopt, therefore, Roxin's teleological functionalism). Afterwards, the main rules for the
resolution of apparent conflict of norms, their differences and practical cases in the field of
economic criminal law are presented. The rule of consumption, the central object of this
investigation, is analyzed in a separate chapter, which discusses its nature, assumptions,
dogmatic and jurisprudential divergences and classic cases, as well as a more detailed analysis
of the categories of the devaluation of the action and the devaluation of the result. Finally, we
analyze cases extracted from the jurisprudence of the Superior Court of Justice in which the
application of the consumption between socioeconomic crimes was discussed, both to
demonstrate the permanent divergence of understanding in praetorian scope, and to test the
criteria. The material interaction between the following crimes was studied: tax suppression
and falsehood, obstruction of natural regeneration of vegetation and not buildable soil
construction, fraudulent financial institution management and ownership, absence of public
competition and illegal embezzlement committed by the Mayor, and, finally, money laundering
and your corresponding antecedent crime.
Keywords: economic criminal law, apparent conflict of norms, consumption, devaluation of
the action, devaluation of the result, material bis in idem.
7
ABREVIATURAS
ACR – Apelação Criminal
AgRg – Agravo Regimental
AgRg em REsp – Agravo Regimental em Recurso Especial
AREsp – Agravo em Recurso Especial
art. – artigo
CF – Constituição Federal de 1988
cf. – conforme
CP – Código Penal
DPE – direito penal econômico ou socioeconômico
HC – Habeas Corpus
i.e. – isto é
p.ex. – por exemplo
REsp – Recurso Especial
RExt – Recurso Extraordinário
STF – Supremo Tribunal Federal
STJ – Superior Tribunal de Justiça
tn – tradução nossa
TRF4 – Tribunal Regional Federal da 4ª Região
v.g. – Verbi gratia
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................................... 10
1 O DIREITO PENAL ECONÔMICO E O CONFLITO APARENTE DE NORMAS ............... 13
1.1 O DPE NO MARCO DE UM DIREITO PENAL NORMATIVIZADO: CONSIDERAÇÕES
PRELIMINARES .............................................................................................................................. 13
1.2 PRINCIPAIS FATORES DE EXPANSÃO DO DIREITO PENAL ECONÔMICO ................. 15
1.2.1 A proteção penal da atividade econômica: das origens ao Estado de bem-estar social ....... 16
1.2.2 Direito penal do risco: apontamentos sociológicos ............................................................. 19
1.2.3 O bem jurídico: ordem econômica latu sensu como critério identificador do DPE ............ 23
1.3 DIREITO PENAL ECONÔMICO: ENTRE LEGITIMIDADE E SUBVERSÕES ................... 26
1.4 FUNÇÃO PROMOCIONAL DO DPE ....................................................................................... 31
1.5 O CENÁRIO DO DPE COMO REFORÇO DA INCIDÊNCIA DO CONFLITO APARENTE
DE NORMAS ................................................................................................................................... 33
2 O CONFLITO APARENTE DE NORMAS PENAIS E O CONCURSO DE CRIMES............ 38
2.1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES ...................................................................................... 38
2.2 CONCEITO DE UNIDADE DE AÇÃO PARA A TEORIA DO CONCURSO ........................ 43
2.3 AÇÃO, RESULTADO E FATO PUNÍVEL NA TEORIA DO CONCURSO ........................... 49
2.3.1 Ação punível vs. fato punível .............................................................................................. 51
2.4 CONCURSO DE LEIS E DE CRIMES: DIFERENÇAS FUNDAMENTAIS ........................... 54
2.4.1 Unidade ou pluralidade de ação como pressuposto do concurso impróprio? ...................... 57
3 OS CRITÉRIOS DE SOLUÇÃO DO CONFLITO APARENTE DE NORMAS ...................... 62
3.1 FUNDAMENTAÇÃO HERMENÊUTICA E DOGMÁTICA ................................................... 62
3.2 OS CRITÉRIOS EM ESPÉCIE .................................................................................................. 71
3.2.1 Relações lógico-formais: a contribuição de Ulrich Klug .................................................... 76
3.2.2 Especialidade ....................................................................................................................... 80
3.2.3 Subsidiariedade .................................................................................................................... 83
3.2.4 Consunção ........................................................................................................................... 89
4 A CONSUNÇÃO NO DIREITO PENAL ECONÔMICO ........................................................... 90
4.1 CONSUNÇÃO: DELIMITAÇÃO .............................................................................................. 90
4.1.1 Atos típicos acompanhantes e atos posteriores coapenados (ou copunidos) ....................... 97
4.1.2 Desvalor da ação e desvalor do resultado: critérios de aplicação da consunção ............... 101
5 CASUÍSTICA: A JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA ............ 110
5.1 Sonegação fiscal e falsidade ideológica .................................................................................... 110
5.2 Empreendimento causador de dano à unidade de conservação ambiental mediante a conduta de
impedir regeneração de floresta ...................................................................................................... 115
5.3 Apropriação de valores de instituição financeira e gestão fraudulenta ..................................... 118
9
5.4 Ausência ilegal de licitação e peculato de prefeito ................................................................... 126
5.5 Lavagem, exaurimento do crime antecedente e consunção ...................................................... 132
5.6 Corrupção e delitos econômicos ............................................................................................... 139
CONCLUSÃO ................................................................................................................................... 144
REFERÊNCIAS ................................................................................................................................ 152
10
INTRODUÇÃO
Nota-se uma inversão de sinal na atenção dispensada pela sociedade e pelos organismos
de repressão aos crimes ditos de baixa visibilidade. Não apenas em razão das cada vez mais
comuns operações de investigação criminal contra detentores de poder político ou econômico,
mas pela crescente assimilação de demandas punitivas socioeconômicas pelas economias de
mercado ocidentais. Vem perdendo o gume o discurso de resistência contra a expansão do
direito penal em áreas de relacionamento social até então dele apartadas. Cresceu o catálogo de
interesses sob intervenção penal; intensificaram-se as formas de proteção; a reação penal foi
antecipada para estágios prévios à ocorrência efetiva do dano; aumentaram os deveres de
cuidado no exercício de atividades que envolvam o outro, tudo a revelar que o normativismo
segue superando o ontologicismo.
O cenário, enfim, é de expansão do direito penal (ao menos o simbólico, produto de
atividade legislativa – não se percebe compromisso com eventual descriminalização), para o
que contribuem ambas as instâncias de criminalização, primária e secundária. Mas os aspectos
sociais, econômicos e jurídicos que, se bem legitimam a intervenção pública sob a arrojada e
portentosa mecânica do direito penal econômico, afetam sensivelmente as estruturas do sistema
jurídico penal estabelecido. A escalada do direito penal econômico desorganiza o discurso
jurídico-penal tradicional e cobra releitura das categorias dogmáticas clássicas moldadas para
os problemas sociais de ontem.
O reforço de tutela penal imposto pelo direito penal econômico conflui fatalmente para
o aumento aritmético de preceitos incriminadores, facilitando o trânsito de cargas penais
deliberadamente literalistas e, bem por isso, destemperadas, como se o exercício de
interpretação jurídico-penal se resumisse à subsunção mecânica e meramente linguística do fato
à norma. Num cenário de profusão típico-normativa, já não se terá como certa a existência de
uma norma incriminadora específica para cada fato punível concreto; mais provável é a ameaça
de punição por uma variedade de preceitos penais que, se não examinados em conjunto desde
uma relação lógica e/ou valorativa, podem determinar uma reprovação penal repetida e
desproporcional, a despeito de eventual força atrativa que mantêm entre si, a recomendar o
descarte de um pelo outro.
Não obstante o direito penal econômico tenha lugar cativo no rol de opções para o
tratamento normativo dos problemas socioeconômicos atuais, a axiologia constitucional e a
matriz democrática cobram atenção para eventuais excessos e desvios de finalidade no exercício
do poder punitivo. Surge revigorado, então, o problema da teoria do concurso, quer o próprio
11
(material, formal e crime continuado), quer o impróprio (conhecido também como unidade de
lei ou conflito aparente), com o que eclode a questão da proporcionalidade e a preocupação com
a criação de mecânicas para atrelar forma a conteúdo.
O problema hermenêutico do conflito aparente de normas penais acaba também
reavivado. Em apertada síntese, trata-se da superposição em tese de tipos penais relativamente
a um mesmo fato punível, sobre o qual deve incidir, ao fim, a norma (ou as normas) que melhor
espelha o desvalor global do episódio delitivo. Isso se obtém com a depuração lógica ou
valorativa dos injustos virtualmente concorrentes. Um sistema normativo que olvida a
possibilidade de as normas incriminadoras se acharem em relação de subordinação,
interferência ou atração valorativa, como se fossem entidades autônomas e isoladas, não poderia
ser qualificado como tal.
Como o conflito aparente e o seu antagonista, o concurso próprio, são uma constante no
âmbito da criminalidade socioeconômica, torna-se premente realçar os traços distintivos de
cada hipótese. Igualmente fundamental é o estudo da consunção, regra de resolução de concurso
impróprio que, por sua índole valorativa/axiológica, apresenta áreas de indeterminação e está
em constante aperfeiçoamento. A agravar o cenário, há sensível divergência na inteligência
jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça quanto ao tratamento de casos similares e à
previsão de pressupostos gerais relativamente à consunção. A sondagem de critérios que
possam tornar razoavelmente previsível a subsunção jurídica material de episódios insertos no
âmbito do direito penal econômico está em harmonia com as balizas de pesquisa
sustentabilidade e cidadania, pois com a discussão da pertinência e aplicação da consunção se
almeja, sobretudo, segurança e controle do poder punitivo na aplicação do DPE, em atenção ao
regime democrático e às liberdades.
A presente investigação prioriza o método lógico-dedutivo, embora os capítulos finais
revelem traços do método indutivo, ante a consideração de precedentes jurisprudenciais para a
construção do conhecimento. Fundamentalmente, questionam-se a identidade dogmática da
categoria da consunção, quanto ela interessa no contexto da expansão do DPE e os possíveis
caminhos para tornar seu reconhecimento mais preciso e estável. O caminho epistemológico
escolhido abrange, num primeiro momento, o exame da consolidação do direito penal
econômico em seu formato atual, a legitimidade de sua expansão sob a égide de um Estado
prestacional e de um sistema econômico de conexões sociais anônimas, bem assim, a
necessidade de atrelar ganho qualitativo a ganho quantitativo no âmbito da delinquência
socioeconômica, restringindo-se a margem de excesso e de abuso na censura penal. Num
segundo momento, abordam-se dificuldades teóricas relativas à identificação do conflito
12
aparente de normas, seus pressupostos e diferenças principais com o concurso próprio. Busca-
se, também, aplainar obstáculos e divergências dogmáticas que dificultam a compreensão e a
dimensão prática dessa temática.
Num terceiro momento, a pesquisa se ocupa das razões pelas quais o intérprete estaria
impelido a reconhecer a unidade de lei, em especial a regra da consunção, o que envolve a
investigação dos fundamentos hermenêuticos e dogmáticos últimos para o exame da interação
lógica e valorativa entre os injustos penais em concurso aparente. Enfrenta-se, também, a
questão da discricionariedade judicial diante de mecanismos hermenêuticos de natureza
valorativa/axiológica, que por sua própria natureza trazem consigo certo subjetivismo e
incerteza, como é o caso da consunção. Conclui-se o terceiro capítulo com a apresentação das
principais regras de resolução do conflito aparente de normas, seus fundamentos e
características, além de exemplos práticos no âmbito do DPE.
O quarto capítulo é dedicado ao exame pontual da consunção, objeto central da pesquisa,
e abrangerá sua natureza, definição, pressupostos, pontos controvertidos e os casos clássicos
que conduziram à sua compreensão atual. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça
ilustrará as divergências permanentes quanto aos requisitos para se reconhecê-la na prática. Ao
fim, serão esboçados critérios para sistematizar a aplicação da consunção e aumentar sua
operacionalidade como ferramenta hermenêutica de correção de excesso, não, naturalmente,
com a pretensão de se oferecer uma resposta final, mas para pelo menos apontar possíveis saídas
ou caminhos dogmáticos. No capítulo final, a pesquisa será ilustrada com casos práticos
recorrentes de DPE extraídos da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, envolvendo
delitos socioeconômicos, a fim de testar os critérios sugeridos e, principalmente, expor as
principais dificuldades e pontos obscuros que ainda pendem de aclaramento pela literatura
especializada.
13
1 O DIREITO PENAL ECONÔMICO E O CONFLITO APARENTE DE NORMAS
1.1 O DPE NO MARCO DE UM DIREITO PENAL NORMATIVIZADO:
CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
O denominado “direito penal econômico” ou “direito socioeconômico” não supõe um
distinto e autônomo ramo do direito penal, mas sim, um subsistema com características
peculiares e formulações próprias em relação ao direito penal nuclear (dedicado à proteção da
vida, liberdade, patrimônio etc.), sem que isso sugira ruptura plena com os fundamentos do
discurso jurídico-penal clássico1. Vale dizer, o DPE é um setor inserto no direito penal tal como
este é conhecido. Apesar, porém, da inexistente autonomia científica, a peculiaridade do objeto
de estudo desse setor do ordenamento jurídico-repressivo (entendido em sentido lato como
delitos socioeconômicos) e seus problemas penais específicos impeliram a doutrina a construir
uma parte geral própria, sistematizando os traços comuns dessa particular família de delitos2.
Silva Sánchez observa que os problemas práticos relacionados ao direito penal
econômico estão por trás das tensões e reformulações das instituições clássicas da teoria do
delito, e renovam a demanda de elaboração de obras doutrinárias de parte geral que deem conta
dos problemas específicos de DPE em vista de soluções mais “justas”3. A reconfiguração
teórica de instituições dogmáticas determinada por situações concretas inéditas é um dos
aspectos que demarcam os caminhos epistemológicos distintos das ciências dogmáticas e das
ciências experimentais ou exatas. Enquanto nestas a presença de uma exceção (“cisne negro”)
revela a falsidade de uma dada teoria, segundo a fórmula: “a exceção refuta a regra”, nas
ciências do espirito admite-se, em linguagem ordinária, “a confirmação da regra pela exceção”,
sem invalidação da teoria ordinária4. O ponto é que o conjunto de casos particulares ao DPE
cobra a releitura de categorias clássicas do direito penal, a partir de agora mais abertas pela via
da “normativização”5.
1 MARTÍNEZ-BUJÁN, Carlos Pérez. Derecho Penal Económico y de la Empresa. Valencia: Tirant lo
Blanch, 2016. p. 77 (tn). 2 CAVERO, Percy García. Derecho Penal económico: parte general. 3ª ed. Lima: Jurista Editores, 2014.
p. 104. 3 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. Fundamentos del Derecho Penal de la Empresa. 2.ed. Madrid:
Edisofer S.L. Montevideo-Buenos Aires: B de F Ltda., 2016. pp. 3-4. 4 SILVA SÁNCHEZ, 2016, pp. 5-6. 5 SILVA SÁNCHEZ, 2016, pp. 7 e 92; MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, p. 75. Com isso se afirma que o direito
penal tem relativizado a exigência de estruturas ontológicas rígidas para a construção do sistema de imputação; a
“normativização” dos conceitos jurídicos penais permite a orientação da intervenção penal a finalidades de política
criminal. Assim, também: SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. Aproximación al
Derecho Penal Contemporáneo. Barcelona: J.M. Bosch Editor S.A, 1992. p. 64.
14
Pelo menos até agora, não prosperaram as propostas político-criminais de Silva Sánchez
e da escola de Frankfurt6 relativamente a um direito sancionador distinto para a gama de crimes
que notabilizam o direito penal contemporâneo. Para o primeiro, razoável seria um direito penal
de distintas “velocidades”: em se tratando de infrações penais a bens jurídicos personalíssimos
a que se comine pena de prisão (direito penal nuclear), devem valer com todo o vigor as regras
clássicas de imputação e os princípios-garantia tradicionais; já quanto às infrações penais
socioeconômicas erigidas sob a noção de ameaças potenciais (gestão de riscos) a interesses não
individualizáveis (direito penal “intervencionista”), admitir-se-ia um sistema de imputação
mais flexível ou menos rigoroso7. Para a segunda corrente de pensamento, em apartada síntese,
o caminho seria a instituição de um “direito da intervenção”, ramo autônomo entre o direito
civil e o público para ilícitos em matéria de drogas, econômicos, ecológicos etc., igualmente
menos pretencioso em relação a garantias materiais e processuais, desde que as sanções por ele
previstas sejam menos intensas; ao direito penal somente caberia proteger condutas contra bens
jurídicos individuais8. De qualquer forma, o que se tem percebido é a efetiva modernização do
direito penal e a revisão de suas categorias clássicas, provocadas, especialmente, pela ampliação
do catálogo de crimes socioeconômicos, antecipação da proteção e pelos novos interesses
colocados sob sua tutela9.
Com a pretensão de apenas apresentar o assunto, pode-se se exemplificar a distensão do
direito penal clássico com a proliferação de crimes comissivos por omissão e de imprudência
(relacionados invariavelmente à infração de deveres), a presença de uma maior densidade
regulatória extrapenal pela difusão de técnicas de reenvio e de tipos penais abertos (leis penais
em branco, elementos normativos de conteúdo jurídico e elementos de valoração global do
fato)10, além da antecipação da proteção penal com dispensa de resultado lesivo concreto,
6 Não se pode olvidar que essa denominação reúne autores diversos “com claras diferenças ideológicas e
metodológicas, talvez com o único acordo comum de rechaçar a normativização das categorias dogmáticas por
parte das propostas funcionalistas”. (CAVERO, 2014, p. 2014 – tn). 7 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. La expansión de Derecho penal: aspectos de la política criminal en
las sociedades postindustriales. 2. ed. revisada y ampliada. Madrid: Civitas, 2001. p. 149 et seq. 8 HASSEMER, Winfried. A preservação do ambiente através do direito penal. Revista Brasileira de
Ciências Criminais, São Paulo, v. 6, n. 22, p. 27-35., abr./jun. 1998. pp. 33-35. Ainda sobre o modelo de
Hassemer, confiram-se: CAVERO, 2014, pp. 82-83 e MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, p. 83. É preciso pontuar, porém,
que talvez não seja de todo correto concluir pela inviabilidade dessa ideia. Pensem-se nas leis de improbidade
administrativa (Lei nº 8.429/92) e de anticorrupção (Lei nº 12.846/13), que sem prever penas privativas de
liberdade, ainda assim são drasticamente invasivas. 9 MOCCIA, Sergio. De la tutela de bienes a la tutela de funciones: entre ilusiones postmodernas y reflujos
iliberalies. In: SILVA SÁNCHEZ (ed.). Política criminal y nuevo Derecho Penal. Libro Homenaje a Claus
Roxin. Barcelona: J.M. Bosch Editor, 1997. pp. 113-142 (p. 117). Não se olvide, contudo, o cabimento de penas
restritivas de direito e dos benefícios penais da Lei 9.099/95 para uma ampla gama de crimes econômicos, como
os previstos no Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90). 10 SILVA SÁNCHEZ, 2016, p. 9.
15
conjugada com a ampliação da gama de interesses tutelados pelo direito penal, agora gestor de
riscos sociais (o que se designa por “administrativização”11). Tudo porque o ambiente político
criminal de agora não é mais tanto de reprovação de fins (dolo direito de matar, p.ex.), mas de
censura aos meios e aos seus efeitos indesejados, não obstante a legitimidade e aceitação social
dos fins (empreendedorismo). Conforme Martínez-Buján, os bens jurídicos peculiares ao
direito penal econômico têm “natureza conflitual”, que corresponde ao aspecto de as fontes de
risco provirem de atividades lícitas e socialmente necessárias, que o Estado não pode proibir,
apenas controlar12.
Nessa toada, é um lugar-comum a constatação de que a matriz teórica do direito penal
econômico é marcadamente normativista (“funcionalismo normativista”13), não se mostrando
mais funcional o modelo clássico doloso de ação, assentado sobre noções de causalidade
empírica14. As teorias normativas têm mostrado melhor “capacidade de rendimento” na
construção das categorias jurídico-penais para a apreensão dos novos fenômenos de dano social,
em particular aqueles em que inexiste uma conexão “espaço-temporal” perceptível entre
conduta e dano15, por mitigarem a necessidade de referenciais ontológicos. Esse realinhamento
com o neokantismo (aqui tomado como o esmorecimento de exigências físico-causais para a
imputação de crimes e a inclinação ao mundo do dever-ser) não pode ser analisado sem se
abordar alguns dos aspectos jurídicos e sociológicos que explicam a expansão inaudita do DPE.
1.2 PRINCIPAIS FATORES DE EXPANSÃO DO DIREITO PENAL ECONÔMICO
Antes de se indicarem as particularidades do DPE mais sensíveis ao conflito aparente
de normas (sobretudo quanto à regra resolutiva da consunção), convém tecer breves
comentários sobre as principais razões da expansão do direito penal econômico, bem assim,
acerca da intensificação da intervenção penal em áreas tradicionalmente ignoradas. E, em um
momento posterior, cabe abordar, pelo menos em linhas gerais, a legitimidade da intensificação
da criminalização primária em âmbito socioeconômico. Naturalmente, o enfoque deste trabalho
11 SILVA SÁNCHEZ, 2001, p. 121 et seq. 12 MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, p. 190 (tn). 13 SCHÜNEMANN, Bernd. Consideraciones críticas sobre la situación espiritual de la ciência jurídico-
penal alemana. Anuario de derecho penal y ciencias penales, tomo 49, fasc./mes 1, 1996. pp. 187-218 (p. 206). 14 SILVA SÁNCHEZ, 2016, p. 10. 15 SILVA SÁNCHEZ, 2016, p. 12.
16
estreita as divisas de investigação, o que permite uma visão apenas panorâmica dos atributos
do direito penal moderno, do qual se recorta particularmente o espectro socioeconômico16.
1.2.1 A proteção penal da atividade econômica: das origens ao Estado de bem-estar social
O formato atual do DPE perpassa a consolidação da economia de mercado como sistema
econômico hegemônico da sociedade globalizada17. A tutela penal da ordem econômica,
estruturada com base na noção de bem jurídico supraindividual, era impensável na lógica
liberal-burguesa do século XIX. O modelo jurídico surgido a partir do contratualismo e do ideal
burguês era predominantemente individualista e patrimonialista, orientado à limitação da
intervenção estatal sobre a esfera individual, não havendo lugar para a elaboração de
construções coletivistas, até pela inexistente vocação promocional do Estado liberal18. É nessa
época que se concebe a “teoria monista-individualista de bem jurídico”19, elemento essencial
de identificação do direito penal clássico ou nuclear.
O arranjo econômico de então é assim sintetizado por Dotti: “o Estado deve se abster da
intervenção nas relações do setor de aquisição, venda, troca e demais contratos, os quais devem
ter suas cláusulas regidas pela lei da oferta e da procura e da livre iniciativa dos indivíduos”20.
Guaragni arremata sobre o Estado liberal-burguês: “Vida, liberdade e patrimônio, nestes
termos, são a tríade em função da qual o estado existe. O dever estatal é preservá-los. No mais,
o Estado não deve intervir na vida privada.”21 Nesse ambiente ideológico de antagonismo
visceral entre indivíduo e Estado não havia espaço para um direito penal econômico estruturado
sobre interesses metaindividuais (i.e, supraindividuais)22. Não que inexistissem normas de
proteção de caráter supraindividual, como a punição das práticas de monopólio ou ofensivas à
propriedade industrial, mas isso se devia à compreensão de que ao Estado não cabia um papel
16 MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, pp. 80 e 83. É lugar-comum a referência de que o direito penal moderno é
composto por setores que demandam a revisão das categorias jurídicas clássicas, como o direito penal econômico,
do consumidor, ambiental, do trabalho etc. 17 O que não significa que em regimes socialistas ou de economia planificada o DPE fosse uma
excentricidade; muito pelo contrário, foi utilizado plenamente, mas no formato de direito penal econômico
administrativo, valer dizer, DPE em sentido estrito ou de primeira geração. 18 GUARAGNI, Fábio André. Direito Penal Econômico: antecedentes medievais e sua primeira geração no
contexto da modernidade. In: BUSATO, Paulo César; PLACHA SÁ, Priscilla; Scandelari, Gustavo (coords).
Perspectivas das ciências criminais: coletânea em homenagem aos 55 anos de atuação professional do Prof.
René Ariel Dotti. Rio de Janeiro: LMJ. Mundo Jurídico, 2016. p. 719. 19 SCHÜNEMANN, 1996, p. 192. 20 DOTTI, René Ariel. O Direito Penal Econômico e a proteção do Consumidor. Curitiba: Ghignone,
1982. p. 13. 21 GUARAGNI, 2016, p. 725. 22 GUARAGNI, 2016, p. 726.
17
ativo na melhora das condições econômicas dos indivíduos, devendo apenas garantir a
preservação das regras de mercado contra os abusos de seus participantes23. De qualquer forma,
na lógica liberal essa tarefa era reservada ao direito administrativo, não ao direito penal.
Com o irrompimento das doutrinas sociais no final do século XIX, em reação à projeção
acentuada da burguesia, cresceu a demanda por igualdade social e sedimentou-se o “discurso
que, no início do século XX, seria meneado como bandeira para a constituição de um estado
forte, interventor, moldado em exato oposto ao estado liberal que o antecedeu.”24 A revolução
de 1917, na Rússia, representou a implantação de um modelo econômico de forte intervenção
estatal que contrapôs a doutrina liberal de igualdade formal, com progressiva influência sobre
a Europa ocidental. Os estados interventores surgidos após a primeira guerra mundial
compartilhavam a mecânica de forte intervenção na vida econômica, “controlando
minuciosamente o ciclo da produção e distribuição de bens e serviços levado a termo na esfera
privada”25. Foram modelos de estado que impuseram suas ordens econômicas, inclusive por
meio do ordenamento jurídico-penal, para garantir o sucesso das atividades interventoras e da
própria preservação do modelo econômico26.
Nesse ambiente surge o direito penal econômico em sua primeira geração, destinado à
tutela do bem jurídico supraindividual ordem econômica, consistente na prerrogativa
interventiva do Estado na economia. Guaragni lembra a respeito que, “conquanto
metaindividual, [essa concepção] deixou patente a pretensão do direito penal econômico de
proteger (...) não os interesses das pessoas integrantes da sociedade, mas sim – e sobretudo –
os interesses do próprio Estado, enquanto gestor da economia.”27 A proteção penal foi acionada
para reforçar a política de administração econômica. O surgimento de um direito penal
econômico para a proteção da prerrogativa estatal de intervenção na economia não apenas
importou na superação do paradigma liberal do século XIX, como se converteu em prima ratio
para assegurar o modelo econômico assumido28.
Embora as experiências totalitárias respondam pela primeira geração do DPE, as
democracias sociais do pós-segunda guerra inauguraram uma segunda geração, alterando o
alcance do bem jurídico supraindividual ordem econômica, então relacionado exclusivamente
23 CAVERO, 2014, p. 51. 24 GUARAGNI, 2016, p. 727. 25 GUARAGNI, 2016, p. 728. 26 CAVERO, 2014, p. 53. 27 GUARAGNI, 2016, p.729. 28 CAVERO, 2014, p. 54.
18
à intervenção estatal na economia. Consolidou-se a “economia social de mercado”29, que
reavivou, em alguma medida, os postulados de origem liberal e esmoreceu a intervenção
política típica dos regimes totalitários; isso não significou, porém, a abstenção de intervenção
estatal, apenas uma mudança de papel, doravante relacionada à garantia de prestações sociais
essenciais para justa distribuição de riquezas. O estado de bem-estar, marcadamente
promocional, alterou a compreensão do objeto de tutela desse setor da intervenção penal. A
ordem econômica, no contexto das democracias sociais, voltou-se “muito mais à preservação
dos interesses supraindividuais do que aos interesses do Estado propriamente dito”30. Eis a
síntese de Muñoz Conde:
Atualmente, ninguém discute que o Estado deve intervir na economia, não tanto em
substituição à iniciativa privada, mas controlando-a e corrigindo seus excessos, e, em
todo caso, redistribuindo a riqueza através de uma política fiscal que lhe permita
também adquirir seu próprio patrimônio destinado à realização de atividades
caracterizadas mais por sua rentabilidade social do que econômica (transporte, saúde,
educação etc.). O que originariamente ou pelo menos sob o prisma do liberalismo
econômico capitalista, se considerava como uma anomalia ou uma questão
excepcional, se considera hoje algo absolutamente normal, sem o qual nem sequer a
economia de mercado poderia sobreviver. (tn)31
Uma vez consolidada a lógica do livre mercado sob o modelo de um estado
comprometido com interesses supraindividuais (coletivos), a legislação penal passou a abrangê-
los, experimentando uma notável expansão não apenas quantitativa, mas qualitativa (as
infrações penais assimilaram progressivamente características antes restritas às infrações
administrativas – gestão de riscos)32. Assim, à função original do DPE de assegurar a
intervenção estatal na economia (direito penal econômico em sentido estrito) “se somou de
forma mais nítida a função de sancionar as diversas condutas danosas que pudessem surgir no
ciclo de produção, distribuição e consumo de bens e serviços”, dando origem à concepção
ampla de direito penal econômico33.
29 CAVERO, 2014, p. 54. 30 GUARAGNI, 2016, p. 730. 31 CONDE MUÑOZ, Francisco. Principios político criminales que inspiran el tratamiento de los delitos
contra el orden socioeconómico en el proyecto de Código Penal (LGL/1940/2) 1994. Revista Brasileira de
Ciências Criminais, vol. 11/1995, p. 7-20, jul./set. 1995. 32 SILVA SÁNCHEZ, 2001, p. 123. 33 CAVERO, 2014, p. 56 (tn).
19
1.2.2 Direito penal do risco: apontamentos sociológicos
A par dessas modificações políticas, emergiu um fator sociológico decisivo à
modernização do direito penal, associado ao modelo de economia prevalecente nas democracias
ocidentais desde meados do século XX. A sociedade pós-industrial (ou pós-moderna)
identifica-se pela presença de riscos surgidos de decisões humanas; não riscos pontuais,
localizados e delimitados, mas globais, não delimitáveis e frequentemente irreparáveis, segundo
a paradigmática formulação de Ulrich Beck34 – esse aspecto foi abordado pioneiramente pela
doutrina penal alemã, na pessoa de Prittwitz35. Embora presente na sociedade industrial
(designada por Beck de “modernidade simples” ou “primeira modernidade”), na atual
sociedade tecnológica (que ele chama de “modernidade reflexiva” ou “segunda
modernidade”36), o risco atingiu seu paroxismo, tornando-se um predicado insuperável. Uma
fase “na qual os riscos sociais, políticos, econômicos e individuais tendem, cada vez mais, a
escapar às instituições de monitorização e proteção da sociedade industrial”37. Por isso, na
sociedade de risco, o fenômeno marginal não é o risco, mas sim, sua ausência38.
Entendido sumariamente como “as diversas consequências não desejadas da
modernização radicalizada”39, é a regra, não a exceção, portanto. Os conflitos em torno da
distribuição de bens, típicos da sociedade industrial clássica, foram “sobrepostos com os
conflitos em torno da distribuição dos ‘males’”40. Esses males correspondem às ameaças que
acompanham, notadamente, a produção de bens e riquezas em nível global e derivam da
utilização de tecnologia nuclear, da mudança climática, de colapsos financeiros globais, da
engenharia genética, da nanotecnologia e da exploração massiva do meio ambiente41.
34 BECK, Ulrich. La sociedad del Riesgo Mundial. Trad. Jesus Alborés Rey. Madrid: Siglo Veintiuno de
España Editores, 2002. p. 5. Observe-se que “risco” não se confunde com “perigo”; aquele decorre de decisões
humanas, enquanto este tem procedência natural. 35 ROXIN, Claus. Derecho Penal: parte general. Madrid: Civitas, 1997. t. I. p. 61. 36 BECK, 2002, p. 2. Enquanto a primeira modernidade traduz a dinâmica dos Estado-nações, “en las que
las relaciones y redes sociales y las comunidades se entienden esencialmente en un sentido territorial”, a segunda
modernidade é marcada por cinco processos inter-relacionados: a globalização, a individualização, a revolução
dos gêneros, o subemprego e os riscos globais (“como la crisis ecológica y el colapso de los mercados financieros
globales”). 37 BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modernização reflexiva: Política, tradição e estética
na ordem social moderna. Trad. Maria Amélia Augusto. Oeiras: Celta, 2000. p. 5. 38 SILVA SÁNCHEZ, Jesus-maria. Teoría del delito y derecho penal económico. Revista Brasileira de
Ciências Criminais. vol. 99/2012. p. 327-356. Nov-Dez/2012. 39 BECK, 2002, p. 5 (tn). 40 BECK; GIDDENS; LASH, 2000, p. 6. 41 BECK, 2002, p. 5.
20
Silva Sanchez associa o risco estrutural do modelo social dos últimos decênios como
causa direta da expansão do direito penal e motivo fundamental da “criação de novos bens
jurídicos penais, ampliação dos espaços de riscos jurídico-penalmente relevantes, flexibilização
das regras de imputação e relativização dos princípios político-criminais de garantia”42. O
ambiente econômico volátil e dinâmico, a aparição de avanços tecnológicos sem parentesco na
história e o desenvolvimento radical da técnica geram uma efetiva demanda social por mais
proteção e suscitam não apenas a tutela penal de novas realidades sociais valorativas, mas o
incremento de proteção daquilo que tem se tornado escasso, como o meio ambiente equilibrado.
A natureza dos bens protegidos penalmente também muda. Aumentam os bens jurídicos
ditos “coletivos”43, pondo de relevo “a crescente dependência do ser humano de realidades
externas a si”44 e a tarefa do direito penal moderno de lidar com a sensação de insegurança
estrutural, servindo-se progressivamente de tipos de perigo de configuração “cada vez mais
abstrata ou formalista (em termos de perigo presumido)”45. Afinal, se do que se trata é de
garantir a segurança, os tipos delitivos que reclamam resultado de lesão passam a ter serventia
questionável.
É verdade que a razão técnico-instrumental permitiu a emancipação do homem de
contingências naturais e proporcionou sensível melhora em indicativos como expectativa de
vida, saúde, lazer, comunicação, transporte, energia, consumo, apenas para citar alguns
exemplos. Porém, a fé num promissor mundo de conforto para todos e a redução da existência
humana ao racionalismo científico não tardaram a cobrar seu preço. O discurso científico
passou a ser questionado como legatário de um futuro ideal. Os ganhos tecnológicos não se
provaram exatamente igualitários, já que o acesso à técnica requer dinheiro, cuja distribuição é
desigual. E embora as conquistas proporcionadas pela tecnologia se restrinjam a poucos, seus
riscos atingem a todos46. Riscos globalizados “não respeitam divisões entre ricos e pobres ou
entre regiões do mundo”.47 Além disso, se por um lado o desenvolvimento do saber técnico-
científico permitiu o domínio sobre a natureza ou, na expressão de Giddens, a “natureza
42 SILVA SÁNCHEZ, 2001, p. 20. 43 Utiliza-se, aqui, o conceito espanhol de “coletivo”, quando um bem, “fática ou juridicamente, é
impossível de ser dividido em partes [...] quando tem um caráter não distributivo”. (SILVA SÁNCHEZ, 2001, p.
26, nota 23 – tn). 44 SILVA SÁNCHEZ, 2001, p. 26 (tn). 45 SILVA SÁNCHEZ, 2001, p. 30 (tn). 46 GUARAGNI, Fábio André. A função do direito penal e os “sistemas peritos”. In: CÂMARA, Luiz
Antonio; GUARAGNI, Fábio André (Coords.). Crimes contra a ordem econômica: temas atuais de Processo e
Direito Penal. Curitiba: Juruá, 2011. pp. 76 e 77. 47 GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. Trad. Raul Fiker. São Paulo: UNESP, 1991.
p. 112.
21
socializada”48, por outro, a exuberância tecnológica e o forte crescimento econômico trouxeram
consigo ameaças que tornaram o futuro altamente incerto, em razão de efeitos secundários
indesejados e subestimados.
Outra perspectiva sociológica complementar à compreensão da feição do direito penal
moderno (também denominado direito penal do risco49) corresponde às relações de confiança
surgidas dos sistemas peritos, segundo a percepção de Giddens. Entendidos, em apartada
síntese, como “sistemas de excelência técnica ou competência profissional que organizam
grandes áreas dos ambientes material e social em que vivemos”50, são os alicerces sobre os
quais repousa a confiança da sociedade de consumo, fundamental para o desenvolvimento
econômico no contexto da economia de mercado. Os instrumentos tecnológicos cotidianos
corporificam os sistemas peritos e materializam o conjunto de conhecimento operado por
homens local e temporalmente desconhecidos. São “mecanismos de desencaixe”, que
reorganizam as “relações sociais através de grandes distâncias tempo-espaciais”51. Não se trata
de fidúcia num homem, mas na confiança em objetos síntese de sistemas peritos52. Sua
utilização prescinde do conhecimento efetivo ou potencial quanto aos processos técnicos nele
envolvidos.
Sem os sistemas peritos, seria impossível o ambiente de economia de mercado. A
produção, distribuição e consumo de bens e serviços, em patamares globalizados, seriam
inviáveis caso demandassem a participação e acompanhamento de cada consumidor em cada
um de seus processos. O consumo massivo tecnológico depende da confiança em tais sistemas,
enquanto “artigo de ‘fé’”53. Aceita-se o risco confiando-se na perícia implementada e na
experiência de que tais objetos funcionem conforme o esperado: “risco e confiança se
entrelaçam”54. É o caso, p.ex., de veículos de transporte (avião, automóvel, metrô), meios de
comunicação (celulares, internet), fontes de energia (nuclear, hidrelétrica), manipulação
industrial de alimentos, roupas, medicamentos etc.55 Em consequência, o gerenciamento dessas
autênticas fontes de risco designadas sistemas peritos torna-se pauta político-criminal,
explicando em boa medida a exasperação dos delitos de comissão por omissão e de
48 GIDDENS, 1991, p. 114. 49 CEREZO MIR, José. Los delitos de peligro abstracto en el ámbito del derecho penal del riesgo. Revista
de Derecho Penal y Criminología, n. 10, 2002, pp. 47-72 (pp. 54-55). 50 GIDDENS, 1991, p. 30. 51 GIDDENS, 1991, p. 51. 52 GUARAGNI, 2011, p. 79. 53 GIDDENS, 1991, p. 31. 54 GIDDENS, 1991, p. 36. 55 GIDDENS, 1991, p. 80.
22
imprudência, assim como a diminuição das áreas de risco permitido: enquanto o pensamento
típico da sociedade industrial desenvolvimentista sintetizava-se na máxima “navegar é preciso,
viver não é preciso”, no atual momento histórico, notabiliza-se mesmo a “necessidade de
viver”56.
Nesse cenário de ameaças permanentes e insegurança generalizada, o discurso do dever-
ser jurídico-penal acaba absorvendo as demandas sociais de proteção. Guaragni observa que a
necessidade de que os “sistemas peritos operem dentro dos patamares de risco tolerado –
condição essencial para que sejam merecedores de ‘fé’ [...] converge para atribuir-se ao direito
penal a função de contenção de riscos.”57 É o que se designa, como já dito, direito penal da
sociedade de risco ou, simplesmente, direito penal do risco58. Portanto, e resumidamente, a
sociedade pós-industrial, orientada pela economia de mercado, pela tecnologia corporificada
em sistemas peritos, pela comunicação instantânea e pela atividade econômica global, núcleo
do sistema social moderno para a produção de riqueza59, insufla o risco. A massificação de
riscos de proporções catastróficas gera um drama público insolúvel que suscita novos
paradigmas de responsabilidade e põe em evidência as instâncias de controle social disponíveis,
num esforço para debelar a sensação de insegurança em constante expansão60.
Não surpreende que essa vocação expansiva do direito penal moderno promova tensões
profundas com a tradição clássico-liberal que, comprometida com o garantismo e à restrição da
intervenção penal (cf. os corolários da fragmentariedade e da intervenção mínima), acaba se
tornando inútil para a assimilação das crescentes demandas sociais protetivas e preventivas61.
Nas palavras de Marta Machado:
não se trata, simplesmente, do aumento quantitativo da reação punitiva ou da simples
definição de novos comportamentos penalmente relevantes, mas do desenvolvimento
de uma nova racionalidade de imputação, a partir da utilização de figuras dogmáticas
diferenciadas – algumas vistas como excepcionais no passado – mais flexíveis e
direcionadas muito mais à prevenção em face dos riscos do que à tradicional
manifestação repressiva.62
56 SILVA SÁNCHEZ, 2001, p. 44. 57 GUARAGNI, 2011, p. 80. 58 DIAS, Jorge de Figueiredo. O direito penal entre a “sociedade industrial” e a “sociedade de risco”.
Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 33/2001, p. 39-65. Jan-Mar/2001. 59 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal: uma avaliação de novas
tendências político-criminais. São Paulo: IBCCrim, 2005. p. 22. 60 SILVA SÁNCHEZ, 2001, p. 32 et seq. 61 DIAS, 2001, pp. 39-65. 62 MACHADO, 2005, p. 23.
23
Assim, é de se esperar que a assimilação pelo sistema penal do compromisso de
prevenção dos riscos inerentes à sociedade pós-moderna e globalizada, no contexto da
modernidade reflexiva, exponha contradições e coloque em evidência a falta de rendimento dos
postulados jurídico-penais tradicionais, impulsionando a reformulação das categorias clássicas
para incorporação das pressões geradas pelo paradigma da sociedade de risco63. Os
instrumentos mais característicos do direito penal do risco são a ampliação do rol de bens
jurídicos supraindividuais (coletivos64), a antecipação da tutela penal mediante crimes de perigo
abstrato65, o abrandamento das regras de causalidade para imputação do resultado, a crescente
normatização do tipo objetivo (infração de dever), a proliferação de tipos omissivos e culposos
e dos tipos cumulativos, assim como a responsabilização penal da pessoa jurídica66.
1.2.3 O bem jurídico: ordem econômica latu sensu como critério identificador do DPE
Essa nova configuração social importou em contínuas discussões para se definir os
contornos técnicos do direito penal econômico, tendo a literatura proposto diferentes critérios
para a delimitação do campo. Entre as abordagens sociológicas, destacam-se as proposições de
Sutherland, com sua definição de white-collar crime (1939)67, e de Schünemann, que nomeia
criminalidade econômica aquela ocorrida em ambiente corporativo ou empresarial68. Já sob o
parâmetro processual-probatório, evocam-se dificuldades investigativas e probatórias inerentes
à apuração de crimes com conotação econômica como elemento de unidade disciplinar69. Não
obstante, a opção que permite uma sistematização mais precisa e, por isso mesmo, conta com
63 MACHADO, 2005, p. 25. 64 Entre os espanhóis, há quem diferencie bem jurídico “coletivo” de “supraindividual”. Cerezo Mir, p. ex.,
chama de coletivos os bens de caráter instrumental para a proteção de bens jurídicos individuais (segurança no
trânsito e saúde pública, p.ex.) e de supraindividuais os bens transcendentes e autônomos a interesses individuais
(fé pública, meio ambiente e administração da justiça, p.ex.). (CEREZO MIR, 2002, p. 57). 65 ANDRADE, Guilherme Oliveira de. O princípio da intervenção mínima e o direito penal de risco.
Dissertação (mestrado) – Centro Universitário Curitiba, Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania. Curitiba,
2009. pp. 132 e ss. 66 MACHADO, 2005, p. 23-26. 67 SUTHERLAND, Edwin H. El Delito de Cuello Blanco. Trad. por Laura Belloqui. Montevideo/Buenos
Aires, 2009. 68 Com maiores explicações sobre essa abordagem, vide: SCHMIDT, Andrei Zenkner. O bem jurídico
protegido pelo Direito Penal econômico. In: BUSATO, Paulo César; PLACHA SÁ, Priscilla; Scandelari, Gustavo
(coords). Perspectivas das ciências criminais: coletânea em homenagem aos 55 anos de atuação professional
do Prof. René Ariel Dotti. Rio de Janeiro: LMJ. Mundo Jurídico, 2016. p. 53. 69 Essa abordagem tem o inconveniente de que “outros delitos considerados materialmente econômicos
sejam definidos fora desse alcance”, ou de que delitos sem conotação econômica sejam tratados como tais, apenas
por força de seu regime processual (SCHMIDT, 2016, p. 54-55). Para mais detalhes sobre o critério processual-
probatório, confira-se: TIEDEMANN, Klaus. Manual de Derecho Penal Económico. Parte general y especial.
Valencia: Tirant lo Blanch, 2010. p. 55.
24
maior número de adeptos, é a que observa o critério material do bem jurídico, ou seja, a que
estatui como elemento de unidade conceitual o objeto jurídico de tutela do DPE.
A ênfase no bem jurídico (que do ponto de vista estritamente dogmático significa o
interesse social ou o “valor do sistema social concreto” maculado pela conduta contrária ao
direito70) como elemento chave de identidade disciplinar remete a concepções de direito penal
assentadas na teoria do bem jurídico, com a de Roxin, segundo a qual o direito penal se volta à
“proteção subsidiária de bens jurídicos”71. Se o conceito de bem jurídico é fundamental à
compreensão da missão do direito penal (como nas concepções funcionalistas teleológicas), não
surpreende que se tracem distinções entre setores repressivos em vista dele justamente72.
O estudo de Tiedemann entre as décadas de sessenta e setenta é considerado
paradigmático no que diz respeito à delimitação conceitual do direito penal econômico sob a
perspectiva do bem jurídico protegido73. Como já exposto, essa perspectiva vincula o delito
econômico à ofensa a bens jurídicos supraindividuais (coletivos) relacionados à ordem
socioeconômica (p. ex., ordem tributária, sistemas financeiro e previdenciário etc.)74. Há duas
concepções fundamentais relativas à abrangência do objeto material do direito penal econômico
desde a perspectiva do bem jurídico75. A primeira delas (concepção restrita) limita o DPE ao
“direito da direção da economia pelo Estado”76, i.e., às condutas ofensivas às prerrogativas
estatais de intervenção e regulação da economia.
Já a concepção ampla, nas palavras de Rios, propõe alcançar “além destas condutas,
todas aquelas figuras típicas que violam bens coletivos supraindividuais econômicos
relacionados com a regulamentação jurídica da produção, distribuição e consumo de bens e
serviços”77. Sob a visão centrípeta (restrita), portanto, o crime econômico está atrelado a ofensas
que tenham por alvo “interesses supraindividuais relacionados à ordem da economia instituída
70 BUSTOS RAMÍREZ, Juan J.; MALARÉE, Hernán H. Lecciones de derecho penal. V. I. Madrid: Trotta,
1997. p. 37. 71 ROXIN, 1997, p. 51. 72 Evita-se, aqui, o incurso no problemático tema da crise do bem jurídico, que renderia um estudo isolado.
Basta consignar que, apesar das críticas, a teoria ainda contribui para a definição de um critério negativo sobre os
interesses passíveis de tutela penal, e fornece diretrizes teleológicas para a “solução de impasses dogmáticos
diversos, como problemas de concurso de normas”. Vide, a respeito: BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI,
Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro. Aspectos penais e processuais penais: comentários à Lei 9.613/1998, com
as alterações da Lei 12.683/2012. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. pp. 80 e 81. 73 CAVERO, 2014, p. 67. 74 TIEDEMANN, 2010, p. 215. 75 CAVERO, 2014, p. 67. 76 TIEDEMANN, Klaus. El concepto de derecho económico y de delito econômico. Revista chilena de
derecho, vol. 10, n. 1, 1983, p. 59-68. p. 67 (tn). 77 RIOS, Rodrigo Sánchez. Reflexões sobre o delito econômico e a sua delimitação. Revista dos Tribunais,
vol. 775/2000. p. 432-448, maio 2000. p. 436.
25
e dirigida pelo Estado”78 (v.g., sistema financeiro, ordem tributária, ordem econômica, sistema
previdenciário etc.), ao passo que sob a orientação centrífuga, basta que a conduta ilícita afete
um bem jurídico coletivo ou supraindividual afeito a atividades econômicas reguladas no
segmento da produção, industrialização e divisão de bens e serviços (v.g., concorrência desleal,
meio ambiente, propriedade industrial etc.)79.
Apesar de vozes autorizadas ainda defenderem a concepção restrita (como Schmidt e
Faria Costa80), apontando a dificuldade da concepção ampla de delimitar satisfatoriamente o
alcance cognitivo dos delitos econômicos, o que aumenta a insegurança jurídica81, a corrente
que reúne mais adeptos é a ampla, à qual se filiam, v.g. Tiedemann, Martínez-Buján e Gárcia
Cavero. Este último, a propósito, justifica a adesão à posição ampla na crise do modelo de
economia planificada e no reconhecimento da economia de mercado como uma estrutura
econômica inexorável, não olvidando, porém, as dificuldades de delimitação do campo surgidas
da concepção alargada82. Refira-se ainda, em complemento, a razoável visão temperada de
Cervini, que, sem ignorar a insuficiência da concepção restrita no tratamento da criminalidade
havida no seio do atual sistema econômico, sustenta que os bens jurídicos do direito penal
socioeconômico devem ser não apenas suficientemente determinados, mas dispor sempre de
referencial antropológico e sentido pré-jurídico83.
A inevitável discussão quanto aos limites conceituais do objeto de tutela do direito penal
econômico se deve à preocupação da doutrina com a abrangência da intervenção penal sob a
rubrica de bens jurídicos supraindividuais relacionados à produção, industrialização e divisão
de bens e serviços. Como a tutela penal nesse âmbito é exercida frequentemente mediante a
categoria de perigo abstrato contra interesses coletivos, o que invariavelmente distende os
princípios substantivos clássicos, especialmente o da lesividade (que particularmente reclama
ofensa ao bem jurídico), e esmorece as funções limitadora e crítica do bem jurídico (tornando
seu conteúdo cada vez mais abstrato e vago84), há quem insista na necessidade de se restringir
conceitualmente o objeto material de tutela do DPE, buscando com isso limitar a abrangência
desse setor repressivo85.
78 SCHMIDT, 2016, pp. 55-56. 79 CAVERO, 2014, p. 68. 80 SCHMIDT, 2016, p. 56. 81 SCHMIDT, 2016, p. 56. 82 CAVERO, 2014, p. 68. 83 CERVINI, Raúl. Derecho penal económico – concepto y bien jurídico. Revista Brasileira de Ciências
Criminais, vol. 43/2003, p. 81-108, abr.-jun/2003. 84 MOCCIA, 1997, p. 115. 85 É paradigmática a proposta de Martínez-Buján de delimitar o direito penal em sentido amplo a partir das
noções de bem jurídico mediato e imediato. Em uma síntese ousada, somente fariam parte desse setor os delitos
26
1.3 DIREITO PENAL ECONÔMICO: ENTRE LEGITIMIDADE E SUBVERSÕES
A irrecusável proliferação de leis penais econômicas orientadas à repressão de delitos
cometidos em âmbito socioeconômico motiva uma maior discussão de sua legitimidade,
especialmente porque isso conduz à adaptação das estruturas de imputação penal e à mitigação
dos princípios e das garantias de tradição liberal86. Receia-se que a ampliação desmedida de
figuras delitivas socioeconômicas “descaracterize” o direito penal em seu conjunto, com
“sacrifício de garantias essenciais do Estado liberal de Direito”87, pois na tensão entre proteção
da sociedade e salvaguarda da liberdade individual, o direito penal moderno tende a priorizar
aquela – essa percepção está por trás da proposta de Silva Sanchéz de desmembramento do
direito penal em distintos setores (“velocidades”), em que a espécie de punição determina o
nível qualitativo das garantias e princípios político-criminais aplicáveis (v.g., legalidade,
proporcionalidade, lesividade etc.”)88.
Não obstante as críticas de determinados setores da doutrina (especialmente da escola
de Frankfurt) dirigidas à política-criminal de expansão dos interesses submetidos a tutela penal,
de fato quase sempre afastados da tríade clássico-liberal de bens pessoais (vida, liberdade e
patrimônio) e, principalmente, divorciados de estruturas ontológicas89, o direito penal
econômico é um caminho sem volta90. A resistência ao abandono da concepção individualista
de bem jurídico (monismo liberal), se bem compatível com os contornos clássicos do direito
penal, perde consistência no contexto das sociedades pós-industriais, em que os contatos sociais
se mostram muito mais complexos e com maior grau de desenvolvimento tecnológico do que
aqueles típicos do século XIX. Agora, os interesses são outros ou já não são mais os mesmos.
Há formas bem mais sofisticadas de danos sociais e de frustração de desenvolvimento humano,
pois o que antes era abundante hoje é mais escasso (v.g. meio ambiente ecologicamente
equilibrado) ou o que antes tinha menor importância hoje é fundamental (realidade
socioeconômica como pressuposto da realização do ser humano em sociedade).
que protegem imediatamente bens jurídicos supraindividuais relativos à ordem econômica (v.gr. delitos fiscais,
delitos contra o sistema financeiro) – direito penal econômico em sentido estrito – e, além deles, os delitos que,
não obstante protejam imediatamente bens jurídicos individuais, revelem como ratio legis a tutela mediata de bens
jurídicos supraindividuais relacionados à ordem econômica (v.gr. delitos contra a propriedade industrial, delitos
de concorrência desleal, delitos societários) – direito penal econômico em sentido amplo. (MARTÍNEZ-BUJÁN,
2016, pp. 124). 86 MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, pp. 79-85. 87 RIOS, 2000, pp. 434. 88 SILVA SÁNCHEZ, 2001, p. 156. 89 CAVERO, 2014, p. 78. 90 SILVA SANCHÉZ, 2001, p. 150.
27
Nas últimas décadas se assiste a um progressivo aumento no interesse de identificação
de bens jurídicos coletivos relacionados à tecnologia, sistema econômico, meio ambiente,
segurança, saúde e outras questões associadas ao bem-estar, acompanhado de um incremento
da própria percepção dos cidadãos em relação a condutas danosas nesses âmbitos91. Além disso,
as formas de manifestação de criminalidade não são mais as mesmas (lesão causal a bem
jurídico de outrem); os modelos atuais de atuação delitiva correspondem ao “sistema econômico
moderno de distribuição e especialização do trabalho”92. Mudaram, portanto, as necessidades e
as vulnerabilidades ao desenvolvimento e realização humana, de modo que a indiferença solene
do direito penal aos novos fenômenos sociais faria dele um adorno jurídico93 – saliente-se, a
propósito, a inclinação paulatina da intervenção penal a orientações de prevenção geral, em
função do objetivo de mitigação de riscos sociais, cf. indica Roxin94.
Um direito penal funcionalizado exclusivamente à proteção de interesses
personalíssimos seria anacrônico perante as novas formas de agressão a referenciais dos quais
as pessoas passaram a depender no arranjo social moderno, moldado segundo o estágio atual
de desenvolvimento tecnológico95. É preciso compatibilizar as vocações antagônicas do Estado
de Direito, a saber: a proteção da sociedade contra riscos ou agressões a bens jurídicos
(prevenção geral) e a garantia de liberdade dos cidadãos frente a reações punitivas
desproporcionais96. E é mesmo difícil justificar a reação enérgica (prisão) contra formas
delitivas dirigidas ao patrimônio individual (v.g. estelionato) e a indiferença perante condutas
portadoras de um dano social não menos grave, como, p.ex., a supressão tributária; ou então, a
intervenção penal por lesões corporais e o desprezo quanto a bens ou produtos hostis à
segurança do consumidor. Anota Martínez-Buján, a propósito, que o objeto de proteção do
direito penal nuclear em matéria patrimonial não deixa de ter uma conotação classista, pois
serve primordialmente à punição de “setores da população sociologicamente mais
desfavorecidos”97.
Se hoje o direito penal se ocupa mais intensamente de riscos, algo inédito sob sua
vertente tradicional, é porque os riscos estruturais atuais representam os sinais dos tempos, não
considerados na concepção clássica de intervenção penal. Diante de novas necessidades sociais
91 MOCCIA, 1997, pp. 117 e 118. 92 CAVERO, 2014, p. 70. 93 CAVERO, 2014, p. 148. 94 ROXIN, Claus. La evolución de la Política criminal, el Derecho penal y el Proceso penal. Valencia:
Tirant lo Blanch, 2000. p. 31. 95 SCHÜNEMANN, 1996, pp. 192-195. 96 ROXIN, 2000, pp. 33 e 44. 97 MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, p. 93 (tn).
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vitais, o direito penal deve considerar as afetações mais significativas a elas, a não ser que
deliberadamente se busque a deficiência de tutela – o que é inviável sob a perspectiva da
proibição da proteção deficiente98. Schmidt, valendo-se dos ensinamentos de Faria Costa
relativamente à função do direito penal, recorda o seguinte:
Em sendo considerado o “cuidado” o elemento fundante que faz do homem o ser-
homem em sua relação com o outro, o direito passa a desempenhar a função de
proteger, em alguns casos, o indivíduo e a comunidade, dos “perigos” que possam
advir da oscilação dessa relação de “cuidado”. Sempre que a possível frustração de
um cuidado-de-perigo assuma uma dimensão de relevância capaz de atrair a tutela
jurídica, então este “perigo com” transformar-se-á num bem jurídico passível de
“cuidado” institucional. E, quando sua relevância ganha destaque, esta proteção ainda
pode dar-se pela via do direito penal.99
Nessa ordem de ideias, cabe destacar que uma das características da modernidade é a
multiplicação dos nexos causais nos contatos sociais (interconexões causais), o que dificulta ou
torna mesmo inviável a vinculação estreita entre (uma) causa e o dano para efeito de
imputação100. Não se trata mais de uma sociedade de contatos individualizados em grupos
humanos reduzidos, mas de inter-relações dinâmicas e confluentes, indiferentes a limites
espaciais e temporais. Isso demarca, inclusive, um compromisso com as gerações futuras,
notadamente em relação a condições ambientais adequadas101. A complexidade da rede de
produção e circulação de produtos se revela na substituição de contextos individuais de ação
por contextos de ação coletivos, em que o “contato interpessoal é substituído por uma forma de
comportamento anônima e estandardizada”102.
Schunemann pontua sobre isso que os novos intercâmbios sociais e a proliferação de
cadeias causais na sociedade de massa conduzem a uma nova maneira de o direito penal
proteger bens jurídicos, não apenas com o trânsito do delito de resultado para o de perigo
abstrato, mas com a concepção de que há interesses coletivos autônomos não reconduzíveis à
dimensão individual: “para que o Direito penal possa seguir cumprindo sua missão de proteger
bens jurídicos sob as condições de distribuição do mercado atual, [...] deve averiguar em que
lugar se encontram os pontos de conexão coletivos nos quais deve intervir [...]”103.
98 ROXIN, 2000, p. 31. “[...] um Direito penal moderno deve ter como objetivo a melhor conformação
social possível” (tn). 99 SCHMIDT, 2016, p. 68. 100 CEREZO MIR, 2002, p. 60. 101 A propósito, a paradigmática obra de: JONAS, Hans. O princípio responsabilidade. Ensaio de uma
ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-Rio, 2006. 102 SCHÜNEMANN, 1996, p. 199. 103 SCHÜNEMANN, 1996, pp. 199-201.
29
Portanto, em um ambiente de ameaças ao conjunto da sociedade impostas pela dinâmica
complexa da vida moderna, os bens jurídicos tendem a uma conformação difusa ou coletiva
(concepção dualista), obrigando a releitura do postulado iluminista da lesividade, em função da
difusão da técnica do perigo abstrato para assegurar a repressão antes da produção efetiva de
um dano104 – se bem que, como observa Silva Sanchéz, a abreviação do alcance do princípio
da lesividade deve ser compensada com uma intransigência maior em relação à performance
dos primados da fragmentariedade e subsidiariedade105.
A doutrina majoritária segue respaldando a atuação do legislador na tutela penal de bens
jurídicos supraindividuais106 (p.ex., Klaus Tiedemann107, Martínez-Buján108 e Roxin109). A
técnica recorrente de proteção desses interesses coletivos é mediante crimes de perigo abstrato,
em que não se exige a efetiva lesão ou a destruição do bem como requisito típico (como se dá
com a vida em relação ao homicídio)110, “já que nas instituições ou interesses coletivos jurídicos
não se produz nem uma lesão, nem uma concreta colocação em perigo mediante o fato delitivo”,
cf. a posição de Tiedemann111. Em se tratando de bens de natureza supraindividual, o objetivo
passa a ser mais proibir a afetação: “fazendo-se constituir o dano na lesão da confiança social,
não na confiança individual ou em um dano material”112. Tiedemann propõe que não se espere
uma lesão real aos bens jurídicos ditos supraindividuais para autorizar a intervenção penal;
bastaria a “lesão à validade” das instituições da vida econômica113. Desloca-se, portanto, o
sentido de lesão ao bem para o de lesão à confiança em relação à disposição de instrumentos de
realização econômica. Na base da criação de tipos de perigo abstrato está a premissa de que a
conduta incriminada “geralmente põe em perigo o bem jurídico”, independentemente da efetiva
criação de perigo no caso concreto114.
A adaptação do princípio da lesividade às novas formas de proteção penal e a elaboração
de critérios de legitimação dos crimes de perigo abstrato são um foco de debate doutrinário
104 ROXIN, 2000, p. 27. 105 SILVA SÁNCHEZ, 1992, pp. 291-292. 106 Para uma síntese do assunto, vide: KNOPFHOLZ, Alexandre. A denúncia genérica nos crimes
econômicos. Dissertação (mestrado) – Centro Universitário Curitiba, Mestrado em Direito Empresarial e
Cidadania. Curitiba, 2012. pp. 24 e ss. 107 TIEDEMANN, 2010, p. 215. 108 MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, p. 22. 109 ROXIN, 2000, p. 91. 110 CEREZO MIR, 2002, pp. 47. A respeito das diferentes estruturas ofensivas dos delitos socioeconômicos
(lesão, perigo concreto e abstrato), vide: MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, p. 208 et seq. 111 TIEDEMANN, 2010, p. 67 (tn): “ya que en las instituciones o intereses colectivos jurídicos no se
produce ni una lesión, ni una concreta puesta en peligro a través del hecho delictivo”. 112 TIEDEMANN, 2010, p. 67 (tn). 113 TIEDEMANN, 2010, p. 67 (tn). 114 CEREZO MIR, 2002, p. 63 (tn).
30
profícuo, indicando que o fundamental não está tanto na discussão sobre a necessidade de tutela
de determinados interesses socioeconômicos supraindividuais, mas na qualidade da ofensa115.
A respeito disso, Moccia (mais intransigente em relação à função crítica do bem jurídico116),
sugere que não se confunda razão de tutela (funções) com o bem jurídico propriamente
protegido (objeto de tutela), sob pena de se subverter o primado da lesividade a partir da criação
de objetos fictícios de tutela para punição de condutas muito distantes de uma lesão efetiva
(v.g., correta gestão econômica, ordem estável da economia). Nesse sentido, afirma, em
apartada síntese, que os comportamentos incriminados devem ser revestidos de um sentido
danoso mais claro passível e ter como referencial um objeto de proteção com contornos mais
definidos (i.e., não totalmente desprendido dos referenciais clássicos, como patrimônio e vida),
facilitando a identificação do conteúdo do desvalor do resultado pelo destinatário da norma117.
Independentemente, porém, de propostas pontuais para ajustar a fenomenologia penal
moderna ao tradicional princípio da lesividade, o ponto é que não se trata de abrir mão das
garantias substanciais e processuais no âmbito do DPE, mas sim, de ajustá-las às necessidades
preventivas do sistema econômico atual. Se o esforço for reconduzido à discussão da qualidade
dos ataques proibidos penalmente, estimam-se avanços mais expressivos em termos de
racionalização da intervenção penal118, porque parece mais fácil questionar a legitimidade da
repressão penal quanto a determinados ataques ao meio ambiente, p.ex., do que sustentar a
plena indiferença do direito penal a esse inolvidável bem supraindividual – que tem se mostrado
cada vez mais caro ao desenvolvimento humano. Considere-se, ainda, que bens jurídicos
coletivos não são uma efetiva novidade (pense-se na administração da justiça e na incolumidade
pública); é a expansão do catálogo que é119. Evidentemente, essa abordagem não prejudica a
115 Com isso não se nega a necessidade de se discutir a legitimidade de novos bens jurídicos
supraindividuais. A esse respeito: GRECO, Luís. “Princípio da ofensividade” e crimes de perigo abstrato – uma
introdução ao debate sobre o bem jurídico e as estruturas do delito. Revista Brasileira de Ciências Criminais,
vol. 49/2004, p. 89-147, jul-ago/2004. 116 MOCCIA, 1997, p. 117. 117 MOCCIA, 1997, pp. 121-139. Moccia propõe que os tipos legais de conduta no âmbito socioeconômico
não se distanciem muito dos modelos de estelionato e fraude, e que o bem supraindividual de referência não se
despregue drasticamente dos valores clássicos de referência, como patrimônio e saúde, p. ex. “Deve-se considerar
de um modo mais realista a causação, segundo os parâmetros normais adotados para os delitos contra o patrimônio,
de um prejuízo tal que suponha um obstáculo ao exercício da função econômica. Este é o conteúdo delitivo de
agressão patrimonial que certamente se pode ver como próprio dos atos de evasão fiscal e da ilícita captação de
subvenções, no momento em que se subtraiam ou se desviem recursos utilizados paras as funções sociais”. (tn). p.
134. 118 Martínez-Buján propõe, por exemplo, aperfeiçoar a discussão da teoria do bem jurídico, dos efeitos do
princípio da proporcionalidade na limitação da liberdade, da repercussão dos princípios da subsidiariedade e da
fragmentariedade e da proporcionalidade das sanções. (MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, p. 92). 119 GRECO, 2004, pp. 104-105.
31
discussão da qualidade penal de alguns bens jurídicos supraindividuais quando, p.ex.,
apresentem questionável identidade conceitual ou conteúdo excessivamente retórico120.
1.4 FUNÇÃO PROMOCIONAL DO DPE
Outro aspecto – mais polêmico – que distingue o direito penal econômico (e demonstra
também sua aptidão expansiva) é sua pretensa qualidade promocional. Entre os interesses que
protege há aqueles indispensáveis à consecução das finalidades sociais (justiça social) típicas
de um Estado de bem-estar, razão pela qual os ataques a eles dirigidos encontram uma razão
adicional de tutela, ao afetarem, em última análise, a execução de políticas públicas. Rios
pontua a respeito que “o Direito Penal não tem apenas um caráter limitativo, no sentido de
negativo e proibido, mas também um caráter prospectivo, no sentido de concretizar ou efetivar
os valores ou as normas da Constituição, servindo de instrumento para a sua realização
efetiva”121. Schmidt identifica o caráter promocional dos bens jurídicos supraindividuais
relativos à ordem econômica na aptidão que possuem para “sensibilizar ou mesmo densificar a
consciência ético-social de uma determinada comunidade em relação à necessidade de proteção
jurídica supraindividual de práticas econômicas”122, acrescentando que é possível “reconhecer
uma função positiva para o bem jurídico, legitimadora da criminalização de novas condutas que
historicamente modifiquem os níveis de carência de proteção de relações de cuidado-de-perigo,
ainda que numa dimensão supraindividual”123.
Realmente, da Constituição se extraem as “circunstâncias dadas ou finalidades”124
indispensáveis ao desenvolvimento do indivíduo no marco do sistema social estabelecido, que
justamente por essa razão demandam tutela penal, bem assim, os limites valorativos à
incriminação de condutas, pois nenhum interesse social sob proteção penal pode contrariar a
carga axiológica da CF125. Segundo Schmidt, “a dignidade de um crime econômico tem de se
sujeitar a uma conformidade axiológica qualificada, qual seja, a sua compatibilidade com os
valores socialmente reconhecidos e também consagrados constitucionalmente”126. É a matriz
120 MOCCIA, 1997, pp. 135. Assim também: GRECO, 2004, pp. 111-112. 121 RIOS, 2000, p. 435. 122 SCHMIDT, 2016, p. 75. 123 SCHMIDT, 2016, p. 76. 124 ROXIN, 1997, p. 56. 125 GRECO, 2004, pp. 99-100. 126 SCHMIDT, 2016, p. 64.
32
axiológica constitucional, aliás, que garante o dinamismo necessário à atualização dos bens
jurídicos protegidos penalmente em conformidade com o desenvolvimento social127.
O Título VII da CF (Constituição econômica) é taxativo em relação à prerrogativa
intervencionista do Estado brasileiro na economia, em especial, o art. 170, que prevê os
princípios e estabelece os fundamentos regentes da ordem econômica, i.e., as condições
normativas para que o exercício da atividade econômica tenha legitimidade jurídico-
constitucional. Com o Estado assumindo a tarefa de regular e condicionar o exercício da livre
iniciativa com vistas à realização dos objetivos constitucionais (construção de uma sociedade
justa e solidária, erradicação da pobreza etc.), é esperado que a proteção jurídico-penal seja
chamada a prestar seu auxílio para coibir os ataques mais graves à ordem econômica128.
Mas não se pode descurar que o princípio da subsidiariedade preside todo o labor penal,
autorizando somente a tipificação dos ataques mais graves, inclusive e com mais razão ainda,
quanto aos bens jurídicos supraindividuais129. Bem por isso, o discutido atributo promocional
do DPE não significa permissão para sua utilização pródiga. García Cavero, por exemplo, atrela
a legitimidade da intervenção penal na ordem econômica em sentido amplo à salvaguarda da
identidade normativa do sistema jurídico da sociedade de que concretamente se trate: “a única
prestação que realmente pode cumprir o Direito penal económico é manter, apesar da atuação
delitiva concretamente realizada, a identidade normativa essencial da sociedade no sistema
económico”.130 Sustenta então o autor peruano, utilizando como substrato teórico o
funcionalismo de Jakobs (mas sem abrir mão do conceito de bem jurídico)131, que a missão do
direito penal econômico é o reestabelecimento da vigência das expectativas sociais derivadas
da “identidade normativa essencial da sociedade” na economia132, o que tornaria a vocação
promocional do campo bem mais modesta.
Não obstante a sobredita função do DPE de efetivação de valores constitucionais
fundamentais (caráter promocional), a legitimação de criminalização em âmbito
socioeconômico dependerá não apenas da identificação das diretrizes normativas
socioeconômicas essenciais da sociedade (acompanhada da seleção das violações mais graves
a esses bens jurídicos, como manda o princípio da subsidiariedade), mas também do respeito
ao referencial antropológico sobre o qual o direito penal deve estar assentado no Estado
127 ROXIN, 1997, pp. 57-58. 128 RIOS, 2000, p. 436. 129 MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, p. 96; CEREZO MIR, 2002, p. 59. 130 CAVERO, 2014, p. 117. 131 CAVERO, 2014, p. 153. 132 CAVERO, 2014, p. 116.
33
democrático de direito (enquanto instrumento necessariamente a serviço da realização da
pessoa humana), sob pena de o sistema repressivo se converter em puro instrumento político e
ideológico133.
A esse respeito, García Cavero pontua que não se trata de proteger penalmente a
identidade normativa da sociedade concebida em si mesmo ou a priori, mas apenas naquilo que
possa favorecer a realização das pessoas em sociedade, concluindo, então, que “o bem jurídico
penalmente protegido é a vigência das expectativas normativas de condutas essenciais no
sistema econômico, radicando seu caráter essencial em sua necessidade para garantir o
desenvolvimento pessoal dos agentes econômicos”134. Note-se, contudo, que a referência ao
caráter antropocêntrico do direito penal não equivale a sustentar que bens jurídicos coletivos
somente podem ser reconhecidos na medida em que medeiem interesses individuais, como
concebe a teoria monista135; a admissão da autonomia plena de bens jurídicos supraindividuais
sem se exigir que se refiram instrumentalmente a indivíduos concretos não significa que estão
liberados da função teleológica de garantir o desenvolvimento do indivíduo em sociedade.
Assim, embora possam ser tratados como entidades autônomas, o são na medida em que
cumprem um papel funcional ao desenvolvimento do homem no meio social136.
1.5 O CENÁRIO DO DPE COMO REFORÇO DA INCIDÊNCIA DO CONFLITO
APARENTE DE NORMAS
Agora, todo esse contexto de reforço de tutela penal conflui fatalmente para o aumento
aritmético de preceitos incriminadores, reavivando o fenômeno do conflito aparente de normas
penais (entendido simplesmente, por ora, como a superposição formal de tipos penais
relativamente a um mesmo fato punível). Isso conduz a que para determinada situação fática
eventualmente incida mais de uma norma penal, aumentando as chances do excesso de censura
e de dupla punição pelo mesmo fundamento material. Afinal, num cenário de profusão típico-
normativa, já não se terá como certa a existência de uma única norma incriminadora para cada
fato punível concreto, mas sim, a ameaça de punição por uma variedade de preceitos penais
que, caso não examinados em conjunto (desde uma relação lógica ou valorativa), podem
133 TAVARES, Juarez. Bien Jurídico y Función en Derecho Penal. Buenos Aires: Hammurabi, 2004. p.
84. 134 CAVERO, 2014, pp. 112 e 153 (tn). 135 GRECO, 2004, p. 103. 136 MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, p. 182.
34
determinar a reprovação penal cumulada, a despeito da força atrativa mantida entre si, a
recomendar o descarte de um pelo outro. Um sistema normativo que olvida a possibilidade de
as normas incriminadoras se acharem em relação de subordinação e interferência valorativa,
como se fossem entidades autônomas e isoladas, não poderia ser qualificado como tal.
Ademais, deve-se observar que no contexto da delinquência socioeconômica, não é raro
a prática simultânea de várias condutas puníveis ou a colaboração (voluntária ou involuntária)
de outras pessoas no desiderato criminoso, especialmente porque delitos dessa natureza
geralmente são praticados em ambiente empresarial, marcado pela divisão de tarefas137. Disso
igualmente decorre a possibilidade de subsunção do fato punível global em mais de uma norma
penal (concurso real ou ideal de crimes) ou, então, a configuração de concurso apenas aparente
de normas penais.
Quanto a essa questão da superposição de normas, Rios e Laufer chamam a atenção para
a “especial técnica de tipificação voltada aos delitos econômicos, pois, geralmente, estar-se-á
diante de tipos que demandam comportamentos posteriores após a consumação do objeto da
conduta do tipo principal”. E concluem:
esta exigência também é amplamente constatada para os atos prévios, uma vez que os
delitos econômicos percorrem, na sua configuração, a incriminação de atos
preparatórios e, por outro lado, constatam-se os casos em que fatos regulados em uma
norma incriminadora constituem a preparação ou a facilitação da execução do fato
previsto como principal138.
Rememore-se a observação de Schunemann sobre o ambiente econômico atual, em que
a satisfação das necessidades humanas ocorre em “contextos de ação coletivos”, ou seja, onde
o contato interpessoal cede perante comportamentos anônimos e estandardizados. Os cursos
causais se perdem na sociedade de massa e de consumo pela severa e insondável segmentação
de comportamentos individuais na rede de distribuição e de produção de bens. Com isso,
Martínez-Buján legitima a intervenção penal para tutelar a liberdade de disposição de pessoas
não individualizáveis, anotando que a “indeterminação da fronteira do perigo” é o que
“incrementa precisamente o desvalor do injusto e permite justificar a antecipação do castigo ao
momento do perigo abstrato”139.
137 MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, p. 135-136: “em termos gerais, a imensa maioria dos delitos econômicos
são, e também os mais importantes, encontram seu marco de atuação no seio da empresa” (tn). 138 RIOS, Rodrigo Sánchez; LAUFER, Daniel. Apontamentos a respeito do concurso de crimes e do conflito
aparente de normas: a regra do antefato e do pós-fato punível coapenado no âmbito dos delitos econômicos. In:
SILVA FRANCO, Alberto; LIRA, Rafael (coords.). Direito penal econômico: questões atuais. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2011. p. 168. 139 MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, p. 216.
35
Dentre as características do DPE com maior impacto no problema hermenêutico do
concurso impróprio de crimes, destacam-se a ampliação do catálogo de bens jurídicos
supraindividuais (ordinariamente protegidos, como já afirmado, sob a técnica de perigo
abstrato, que dispensa resultado lesivo) e o intenso conteúdo normativo dos tipos penais
socioeconômicos.
Relativamente ao primeiro aspecto, a sensível ampliação dos âmbitos de proteção em
razão da definição de novos bens jurídicos conduz à superposição de áreas de tutela, pois os
contornos já não podem ser tão delimitados, o que aumenta a possibilidade de convergência de
normas incriminadoras para a reprovação do fato (isso reaviva os fenômenos do concurso de
crimes e do conflito aparente de normas, temas cuja análise será desenvolvida nos capítulos
seguintes). Um bom exemplo dessa situação são os setores de segurança alimentar e de proteção
à saúde do consumidor140: de um lado, proíbem-se com normas penais riscos dirigidos à
incolumidade dos alimentos dispostos ao consumo (vide, p.ex., o art. 272, do CP), de outro,
proíbem-se penalmente comportamentos de risco em geral à saúde de consumidor (cf. art. 7º,
IX, da Lei 8.137/90). Esses bens jurídicos supraindividuais reconhecidos no marco da atividade
econômica de produção, distribuição e consumo de produtos141 contêm invariavelmente áreas
de interferência, suscitando a repetição de reprovação jurídico-penal.
Quanto ao segundo aspecto (denso conteúdo normativo dos tipos socioeconômicos),
Rios e Laufer consignam que a maioria dos tipos penais socioeconômicos “possuem em sua
gênese redacional a presença incontestável de elementos normativos ou extrapenais já
existentes em outros delitos (cite-se, por exemplo, a expressão fraude na gestão fraudulenta e
as falsidades documentais e ideológicas inerentes ao delito tributário etc.)”142. Embora esse
apontamento seja preciso, deve-se acrescer que o setor repressivo em questão, mas do que se
valer amplamente de elementos normativos, utiliza com frequência outras técnicas de reenvio
em tipos abertos (leis penais em branco, elementos normativos de conteúdo jurídico e elementos
de valoração global do fato), que também suscitam o problema de convergência típica143.
A admissão e a solução do conflito aparente envolvem a atribuição de significação
jurídico-penal única a comportamentos ajustados a previsões típicas autônomas, que em
conjunto fornecem um sentido de desvalor unitário e acabado (unidade delitiva complexa, como
140 CAVERO, 2014, p. 124. 141 Consigne-se, porém, que não é unânime o tratamento dos delitos contra a saúde pública como delitos
econômicos. Nesse sentido: MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, p. 126. 142 RIOS; LAUFER, 2011, p. 171. 143 MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, p. 128.
36
se verá no próximo capítulo), notadamente quando houver interferência (lógica ou valorativa)
entre os conteúdos de injusto dos tipos legais. A admissão do conflito aparente implica concluir
que um dos injustos convergentes, embora conserve uma autonomia abstrata e conceitual, é
absorvido pelo injusto penal dominante, que se mostra suficiente para explicar o fato punível
globalmente considerado e aplicar a resposta penal adequada.
Para finalizar, deve-se pontuar que é determinante ao estudo em apreço a concepção de
direito penal que se tenha em mente. Um direito penal funcionalizado com a missão de
assegurar a vigências das normas, que prescinda de todo referencial relativo à objetividade
material (bens jurídicos), parece enfraquecer especialmente o critério da consunção (segundo a
concepção desta pesquisa), a ponto de torná-lo irrelevante ou quase isso – antecipe-se que
Jakobs não vê sentido na adoção de outros critérios adicionais ao da especialidade144. O estudo
da assimilação do desvalor de uma norma por outra, segundo a ofensividade revelada no caso
concreto145, aparenta ter mais força no marco de uma concepção de direito penal que opera com
a exclusiva proteção de bens jurídicos ou, como prefere Roxin, que se oriente à “proteção
subsidiária de bens jurídicos”146.
Mesmo sob concepções funcionalistas sistêmicas de estabilização das expectativas
normativas mais abrandadas, como a de Silva Sanchéz147 e de García Cavero, ambos no sentido
de que a legitimidade das normas penais repousa na identidade normativa essencial da
sociedade148 e no princípio da proporcionalidade, é possível antever dificuldades de assimilação
das categorias aqui expostas sem correspondente adaptação conceitual, pois elas têm, em maior
ou menor grau, arrimo no princípio da lesividade, especialmente a consunção. Por isso, o estudo
a seguir casa melhor com concepções de direito penal que não prescindam do conceito (crítico)
de bem jurídico, como, p.ex., a formulada por Zaffaroni149.
Uma vez analisados os aspectos sociais e jurídicos que, se bem legitimam a intervenção
estatal segundo a mecânica do direito penal econômico, ao mesmo tempo reavivam o conflito
aparente de normas penais, cabe examinar, na sequência, as características desse problema de
hermenêutica, seus pressupostos e critérios de solução, já problemáticos no âmbito do direito
144 A propósito disso, o capitulo 3, item 3.2, deste trabalho. 145 Uma definição sumular e superficial do critério da consunção. 146 ROXIN, 1997, p. 51. Não se ignora, porém, a propalada crise da teoria do bem jurídico, consubstanciada
no fato de que, quando assim deseja o legislador, novos bens jurídicos são criados, de modo que em vez de
funcionar como um mecanismo de contenção do poder punitivo, acaba mesmo o ampliando. 147 SILVA SÁNCHEZ, 2001, p. 113 et seq. 148 SILVA SÁNCHEZ, 2001, pp. 115-116. 149 ZAFFARONI, Eugenio Raúl et al. Derecho penal. Parte general. 2. ed. Buenos Aires: Ediar, 2002. pp.
53 e 484.
37
penal nuclear. Não obstante a legitimidade da pretensão protetiva do DPE, sua compatibilidade
com o Estado de Direito implica em coibir eventuais excessos, para o que se devem buscar
critérios de racionalização do poder punitivo.
38
2 O CONFLITO APARENTE DE NORMAS PENAIS E O CONCURSO DE CRIMES
2.1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
A tarefa de enquadrar juridicamente um fato da vida é reconhecida como “um processo
muito complexo, que vai desde a simples subsunção lógica ou subsunção em sentido estrito até
os mais complexos juízos valorativos”150. O problema fundamental relacionado à subsunção
jurídico-penal consiste em selecionar os preceitos normativos abstratos mais adequados ao caso
concreto. A depender da situação fática deparada pelo intérprete, mais de um dispositivo penal
pode concorrer para seu tratamento normativo. E em concorrendo ao menos em tese mais de
uma norma penal para regular o fato, entram em cena as categorias dogmáticas conhecidas
como concurso de crimes e concurso/conflito de leis ou normas151.
A aplicação da lei penal a uma determinada situação fática sobre a qual incide em tese
mais de um preceito incriminador conduz, então, a dois impasses: determinar se a hipótese é
mesmo de pluralidade de delitos152, ocasião em que se estará diante do que a ciência penal
chama de concurso próprio de crimes e, ainda, apurar a relação havida entre essas normas
concorrentes, haja vista a possibilidade de que entre elas se estabeleça apenas um conflito
aparente153.
Adiantando-se o que será exposto melhor adiante, haverá concurso de crimes quando as
normas penais potencialmente incidentes admitirem aplicação simultânea ou conjugada;
haverá, porém, conflito/concurso aparente de normas quando essa incidência concorrente for
apenas virtual, mostrando-se suficiente a aplicação de somente uma única norma para esgotar
a reposta punitiva que o fato concreto merece154.
Note-se que o concurso de leis ou de crimes não se confunde com outro tipo de conflito
a que o julgador está obrigado a analisar, chamado diacrônico, que diz respeito à análise da
sucessão de leis penais no tempo. O denominado conflito sincrônico (i.e., concurso aparente e
150 MUÑOZ CONDE, Francisco. Introdución al derecho penal. 2. ed. Montevideo/Buenos Aires: B de F,
2001. p. 247 (tn). 151 A controvérsia terminológica relacionada ao conflito aparente será abordada adiante. 152 JIMÉNEZ DE ASÚA, Luis. Principios de derecho penal. La ley y el delito. 3. ed. Buenos Aires:
Abeledo-Perrot, 1958. p. 527. 153 BACIGALUPO, Enrique. Derecho penal. Parte general. 2ª ed. Buenos Aires: Hammurabi, 1999. p. 569. 154 Registre-se, contudo, a possibilidade de em determinado caso concreto haver o reconhecimento de
conflito aparente entre dois tipos penais e o crime remanescente estar ainda em concurso com um terceiro.
39
concurso efetivo) depende da vigência simultânea das leis em confronto, o que não ocorre em
caso de novatio legis in melius ou de abolitio criminis155.
Escuchuri Aisa pontua que no concurso de leis se trata de averiguar se no caso concreto
“um só dos preceitos esgota ou contém de maneira exaustiva o desvalor do fato ou se, ao
contrário, cada um deles deixa sem valorar aspectos relevantes para os outros, como o que é
necessária a aplicação de todos estes”156. O concurso de crimes afasta o conflito aparente de
normas e vice-versa, de modo que os institutos se relacionam entre si como verso e anverso em
caso de convergência de normas penais157. Sustenta Busato que o estudo de um fenômeno
concursal remete ao outro, pois “o método de interpretação empregado para a identificação da
unidade/pluralidade de delitos implica necessariamente passar pela identificação dos tipos
aplicáveis aos casos, o que exige a realização da interpretação que, por vezes, passa
necessariamente pela questão do conflito aparente de norma”158. Stratenwerth defende o exame
do concurso impróprio (conflito aparente) como etapa prévia ao do concurso próprio159. Assim
também, Jescheck e Weigend, que tratam o concurso próprio (ideal e real) e o impróprio
(concurso aparente, rebatizado por ambos de “unidade da lei”) em conjunto – embora o primeiro
já adotasse essa denominação quando doutrinava sozinho160. No âmbito do direito penal
econômico, García Cavero também confere às temáticas mesmo tratamento setorial, sob o
título: “o concurso nos delitos econômicos”.161
Contudo, essa não é uma questão pacífica. Jiménez de Asúa, por exemplo, considerava
o conflito aparente de normas tópico pertinente à interpretação de leis e o concurso de delitos
questão pertinente à teoria da aplicação da pena162. Com semelhante posição, Palma Herrera163.
Sebastián Soler, por sua vez, alocava o conflito aparente em tópico autônomo pertinente à
155 ALBERO, Ramón García. 'Non bis in idem' material y concurso de leyes penales. Barcelona: Cedecs
Editorial, 1995. p. 211. Com um estudo detalhado, confira-se, entre nós: CRUZ, Flavio Antônio. O confronto
entre o concurso formal de crimes e o concurso aparente de normais penais no direito brasileiro: revisão
crítica sob os influxos de uma hermenêutica emancipatória. Tese (doutorado) – Universidade Federal do Paraná,
Setor de Ciências Jurídicas, Programa de Pós-graduação em Direito. Curitiba, 2014. p. 704 e ss. 156 ESCUCHURI AISA, Estrella. Unidade de ação e pluralidade delitiva. In: BADARÓ, Gustavo Henrique
(org.). Direito penal e processo penal: parte geral. Doutrinas essenciais. v. II. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2015. p. 910. 157 RIOS; LAUFER, 2011, p. 140. 158 BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte geral, v. 1. São Paulo: Atlas, 2017. p. 876. 159 STRATENWERTH, Günter. Derecho penal. Parte General I. El hecho punible. 4.ed. Buenos Aires,
Hammurabi, 2005. pp. 533 e 540. 160 JESCHECK, Hans-Heinrich e WEIGEND, Thomas. Tratado de Derecho Penal. Parte General. 5a. ed.
Granada: Comares, 2002. p. 788 (tn). 161 CAVERO, 2014, p. 709 et seq. (tn). 162 JIMÉNEZ DE ASÚA, Luis. Principios de derecho penal. La ley y el delito. 3.ed. Buenos Aires:
Abeledo-Perrot, 1958. p. 142. 163 HERRERA, José Manuel Palma. Los actos copenados. Madrid: Dykinson, 2004. p. 46.
40
subsunção típica, apartando-o sistematicamente tanto da teoria da interpretação como do
concurso164.
A doutrina nacional majoritária tem tradicionalmente separado as temáticas, como se vê
em Fragoso165, Aníbal Bruno166, Regis Prado167, Mayrink da Costa168, Dotti169, Schmidt170 entre
outros. Basileu Garcia171, Magalhães Noronha172, Frederico Marques173, Cirino dos Santos174 e
Busato175, por sua vez, estudam-nas em conjunto, por considerarem que a possibilidade de
concorrência autêntica de normas penais só se confirmará caso a situação não seja de
concorrência aparente.
Não obstante as divergências, o manuseio prático desses institutos pressupõe
necessariamente o domínio de um para que se decida pelo outro, por haver relação de exclusão
recíproca entre eles, de modo que considerá-los temáticas estranhas ou independentes não ajuda
na solução prática dos problemas surgidos da convergência de normas penais176. Além de
aplicação de lei pressupor invariavelmente interpretação, a identificação da unidade ou
pluralidade delitivas reclama a perspectiva do concurso aparente de normas, convindo estudar
os institutos em conjunto177. Essa também é a posição de Figueiredo Dias que, ao tratar do
conflito aparente de normas (por ele designado “unidade de norma ou de lei”), sublinha ser um
“‘pressuposto’ da indagação material da unidade ou pluralidade de crimes; por isso, uma tal
164 SOLER, Sebastián. Derecho penal argentino. Buenos Aires: Tipografica Editora Argentina, t. 2, 1992.
p. 204. 165 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito penal (parte geral). Atual. Fernando Fragoso. 17. ed.
Rio de Janeiro: Forense: 2006. p. 455. 166 BRUNO, Aníbal. Direito Penal. Parte geral: Tomo 1.º. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967. p. 260. 167 PRADO, Luiz Régis. Curso de direito penal brasileiro, volume 1: parte geral, arts. 1º a 120. 12. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 273. 168 COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito penal: volume 1, tomo I – parte geral. 6. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1998. p. 421. 169 DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal: parte geral. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
p. 364. 170 SCHMIDT, Andrei Zenkner. Concurso aparente de normas penais. Revista Brasileira de Ciências
Criminais, n. 33, São Paulo: Revista dos Tribunais, jan.-mar. 2001. p. 78. 171 GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal. Vol. I, Tomo II. 4.ed. São Paulo: Max Limonad, 1972.
p. 507. 172 NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 1. Introdução e parte geral. 15. ed. São Paulo: Saraiva,
1978. p. 293. 173 MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal. Vol. II. 1.ed. Campinas: Bookseller, 1997. p.
436. 174 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2006. p. 417. 175 BUSATO, 2017, p. 876. 176 BACIGALUPO, 1999, p. 572. 177 MUÑOZ CONDE, Francisco; GARCÍA ARÁN, Mercedes. Derecho penal. Parte general. 8ª ed.
Valencia: Tirant lo Blanch, 2010. p. 463. Assim também: BETTIOL, Giuseppe. Direito penal. Trad. Paulo José
da Coste Jr. e Alberto Silva Franco. v. II. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971. pp. 291-292. Vide ainda: CRUZ,
2014, p. 719.
41
operação deve ser levada a cabo – e igualmente a sua exposição sistemática – antes que se
afronte o problema substancial da unidade e pluralidade do facto punível”178.
Mencione-se, ainda, a ponderação de Rios e Laufer à tendência doutrinária de aglutinar
o conflito aparente de normas e o concurso de crimes dentro de uma só disciplina dogmática
denominada “unidade e pluralidade de delitos”, tal como o fazem, por exemplo, Jescheck e
Weigend. A justificativa é de que há “coincidência de fundamentação lógica”179 entre uma das
modalidades de concurso de crimes (o ideal/formal) e um dos critérios de resolução do conflito
aparente de normas (a subsidiariedade), e também há certa conexão entre o concurso
real/material e a consunção (outro critério de resolução do conflito aparente), “sobretudo
quando por meio de um entendimento valorativo na hipótese de pluralidade de condutas
delitivas se deduzir que um fato delitivo regulado em outra norma, na verdade constitui uma
conduta anterior ou posterior do fato previsto exaustivamente pela outra norma
incriminadora”180. Noutras palavras, Rios e Laufer reconhecem pontos de contato entre
categorias relativas a um dos institutos (concurso próprio) com as de outro (concurso
impróprio), especialmente em caso de pluralidade de condutas puníveis, momento em que se
investiga se na situação concreta cabe aplicar a regra do concurso material ou reconhecer a
consunção para que prevaleça apenas a norma dominante.
A abordagem apartada das temáticas pela literatura técnica é potencializada pelo distinto
tratamento legal de algumas codificações. Há países que não disciplinam em lei o conflito
aparente de normas, fazendo-o apenas quanto ao concurso de crimes (v.g. Brasil, Alemanha e
Portugal), enquanto outros regulamentam ambos os institutos em seus respectivos códigos (v.g.
Espanha – art. 8 e Itália – art. 15). Não obstante a ausência de previsão legal no Código Penal
brasileiro, isso não autoriza a conclusão de que a matéria tem menor relevância; antes o
contrário, conforme a clássica observação de Hungria, seria indesejável que o sistema
normativo apresentasse contrariedades ensejadoras de “perplexidades e intoleráveis soluções
pelo bis in idem”, pois o direito penal deve funcionar como “uma unidade coordenada e
harmônica”181. Zaffaroni e Pierangeli afirmam que o que a lei não prevê são as hipóteses
específicas de concurso aparente de tipos, “coisa que, embora algumas leis estrangeiras o façam,
carece de maior importância, porque ainda que a lei nada diga, a ninguém pode ocorrer a
178 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral: tomo I: questões fundamentais: a doutrina geral
do crime. São Paulo: Revista dos Tribunais; Portugal: Coimbra, 2007. p. 992. 179 RIOS; LAUFER, 2011, p. 143. 180 RIOS; LAUFER, 2011, p. 143. 181 HUNGRIA, Nelson; DOTTI, René Ariel. Comentários ao Código Penal: dec.-Lei n. 2.848, de 7 de
dezembro de 1940; Lei n. 7.209, de 11 de junho de 1984. 6. ed. Rio de Janeiro: LMJ, 2014. p. 95.
42
existência de uma concorrência – que não seja meramente aparente – entre a tentativa e a
consumação do delito”182. A disciplina do concurso aparente deflui, portanto, da interpretação
racional dos injustos penais, justificando-se em imperativos como segurança jurídica,
racionalidade e proporcionalidade da intervenção penal, e controle democrático do exercício do
poder de punir.
Quanto às terminologias empregadas para referir o conflito aparente (termo recorrente
neste trabalho), há considerável divergência na doutrina nacional e estrangeira, conforme
apontam Cruz183 e Horta184, pelas mais variadas razões. Como exemplo, mencionem-se as
expressões “concorrência de leis”, “concurso de leis”, “concurso aparente de normas”,
“concurso aparente de leis”, “concurso aparente de tipos”, “concurso impróprio” e “unidade de
lei”185. Sem entrar no mérito de por que uma expressão mereça ser descartada em face da outra,
é razoável a orientação de Horta no sentido de que a designação concurso (ou conflito) aparente
de normas faz “jus, por um lado, à constatação inicial de superposição das normas, ou plural
subsunção do fato, ressaltando igualmente a operação posterior, de aplicação exclusiva de uma
delas, obediente ao princípio ‘non bis in idem’”186. Ou seja, a nomenclatura “conflito aparente”
tem o mérito de abranger tanto a questão da incidência potencial de mais de uma norma penal,
como a operação posterior relacionada à escolha de apenas uma delas no momento da aplicação
da pena.
Se bem que as expressões “unidade de lei” e “concurso impróprio”, utilizadas por
Jescheck-Weigend187, Zaffaroni188 e Stratenwerth189 refletem também a ideia de algo que
formalmente ou em teoria é uma coisa, mas substancialmente ou na prática é outra, não havendo
razão para rejeitá-las. De qualquer forma, como se trata de uma questão terminológica e,
portanto, de menor importância, pode-se aceitar e considerar equivalentes as referidas
denominações190 – nesta pesquisa se empregará com frequência “conflito” ou “concurso
aparente”.
182 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro,
volume 1: parte geral. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. pp. 628-629. 183 CRUZ, 2014, p. 713 e ss. 184 HORTA, Frederico Gomes de Almeida. Do concurso aparente de normas penais. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2007. pp. 24-31. 185 RIOS; LAUFER, 2011, pp. 142-143. 186 HORTA, 2007, p. 29. 187 JESCHECK; WEIGEND, 2002, pp. 763 e 788 (tn). 188 ZAFFARONI, 2002, p. 853 (tn). 189 STRATENWERTH, 2005, p. 540 (tn). 190 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo II: Especiales formas de aparición del delito.
Madrid: Civitas, 2014. p. 998.
43
O conflito aparente de normas não é uma temática simples, conforme reconhece a
literatura especializada191. Fragoso abria seu estudo com a advertência de que o tema era um
dos “mais árduos e complexos do direito penal, pela ausência de normas expressas que o
regulem”192. Na visão de Ulysses Bezerra, trata-se de um dos assuntos “mais tormentosos da
dogmática jurídico-penal”, pois, “são infindáveis as controvérsias acerca do conteúdo dos
princípios [de resolução do conflito de normas], bem como os efeitos de sua aplicação em casos
concretos”193. Rios e Laufer anotam que embora exista na doutrina a pretensão de simplificação
dos argumentos para delimitar o concurso de crimes e o conflito aparente de normas, “nem
sempre se consegue desenvolver um raciocínio explicativo que defina a incidência e o alcance
de cada um deles justamente pelas dificuldades não sanadas na doutrina, as quais repercutem
na seara jurisprudencial”194.
Não obstante, as dificuldades ínsitas ao assunto não devem, naturalmente, diminuir o
interesse por ele; muito pelo contrário, por se tratar de matéria relacionada à aplicação da lei
penal e, portanto, à medida da punição que o autor do fato punível deverá suportar, é preciso
reservar ao tema a importância que ele merece, sobretudo no âmbito do direito penal
econômico, onde surge intensificado.
Antes de se examinar mais detidamente as diferenças entre o conflito aparente e o
concurso de crimes, convém analisar previamente os conceitos de ação, resultado e fato punível
no âmbito da teoria do concurso, porque além de serem expressões recorrentes no âmbito do
concurso em sentido amplo pelas legislações e pela doutrina, são elementos-chave para
distinguir os institutos e para melhor compreendê-los.
2.2 CONCEITO DE UNIDADE DE AÇÃO PARA A TEORIA DO CONCURSO
A determinação da unidade e pluralidade de ações e de delitos, indispensável ao
enfrentamento da temática do concurso próprio de crimes195, interessa igualmente à
compreensão do concurso impróprio, porque não necessariamente uma pluralidade de ações
puníveis conduz ao reconhecimento da pluralidade de crimes. Nada impede que diferentes
191 HERRERA, 2004, p. 20. 192 FRAGOSO, 2006, p. 457. 193 BEZERRA, Ulysses Gomes. Princípios da Consunção: fundamentos e critérios de aplicação. Revista
Brasileira de Ciências Criminais, n. 87. São Paulo: RT, nov-dez, 2010. 194 RIOS; LAUFER, 2011, p. 141. 195 ROXIN, 2014, p. 943. No mesmo sentido: ESCUCHURI AISA, 2015, p. 915.
44
ações se submetam a uma só norma penal dentre as formalmente convergentes na dinâmica do
caso concreto196.
O desafio hermenêutico do concurso em sentido amplo (próprio e impróprio, portanto)
é incrementado pela constatação de que fatos penalmente relevantes abrangem, não raro, várias
ações (principalmente no âmbito do direito penal econômico), o que conduz à necessidade de
se conceituar, antes, unidade de ação na perspectiva da teoria do concurso.
Observe-se, com Roxin, que o conceito de ação para efeito da disciplina do concurso
não se identifica com o conceito de ação da teoria do delito (o fato como ação típica, antijurídica
e culpável)197. O autor alemão esclarece que o conceito sistemático de ação é “pré-típico”
(abarca tanto comportamentos típicos quanto atípicos), ao passo que o conceito de ação da
teoria do concurso só descreve comportamentos típicos “e em determinadas circunstâncias pode
incluir dentro de si numerosas ações típicas”.198 Jescheck e Weigend, por sua vez, sustentam a
irrelevância do conceito jurídico-penal de ação à teoria do concurso com o argumento de que
aquele se presta a determinar as exigências mínimas para que um comportamento humano seja
“acessível à valoração penal”199, sem considerar a hipótese de concorrência de violações e suas
consequências200.
Com uma apresentação preliminar do que se entende por unidade jurídica de ação,
Politoff L., Matus A. e Ramirez G. afirmam que um único delito se comete quando se realiza
apenas uma vez a descrição típica legal, independentemente do “número de ações em sentido
natural realizadas pelo autor (movimentos corporais dirigidos pela vontade)”201. Jiménez de
Asúa exemplificava a unidade normativa de ação punível em meio à pluralidade de movimentos
naturais do agente, com este exemplo: “matar com dez punhaladas (dez golpes com uma faca)
é apenas um ato ou ação”202. Portanto, percebe-se que para o direito “carece de utilidade a
decomposição do comportamento humano em frações minúsculas conforme um critério
médico”203, nas palavras de Jescheck e Weigend, que afirmam ser decisivo para a delimitação
196 TAVARES, Juarez. Teoria do crime culposo. 3.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 493. 197 ROXIN, 2014, p. 944. 198 ROXIN, 2014, p. 944 (tn). Observe-se, porém, que há modelos de teoria da conduta em que essa
afirmação é inválida, por simplesmente não adotarem conceitos pré-típicos de ação (como a concepção
significativa de ação). 199 JESCHECK; WEIGEND, 2002, p. 765 (tn). 200 Sob uma visão mais temperada, levando em conta a estrutura finalista da ação humana, confira-se a
abordagem de: ESCUCHURI AISA, 2015, p. 945. 201 POLITOFF L., Sergio; MATUS A., Jean Pierre; RAMIREZ G., Maria Cecilia. Lecciones de derecho
penal chileno. Parte general. 2. ed. Santiago: Editorial Juridica de Chile, 2004. p. 445 (tn). 202 JIMÉNEZ DE ASÚA, 1958, p. 531 (tn). 203 JESCHECK; WEIGEND, 2002, p. 764 (tn).
45
da unidade de ação o sentido dos tipos legais infringidos, deduzido por via interpretativa204.
Bettiol também enfatizava que ação é um “conceito de valor”, não “naturalístico-
mecanicista”205.
Zaffaroni e Pierangeli anotam que não seria razoável, tampouco lógico, que o conceito
jurídico de conduta equivalesse ao de ação fisiológica (como um movimento muscular, por
exemplo). A maioria dos tipos penais requer, quando não uma pluralidade, pelo menos alguns
movimentos corporais para configuração de uma conduta juridicamente punível (como nos
casos do roubo e da conjunção carnal), independentemente da possibilidade de se incorrer em
crime com apenas um único movimento corporal (v.g. arremesso de uma bomba que mata
alguém)206. Explicam os autores que os vários movimentos exteriores (naturais ou fisiológicos)
podem ser considerados uma conduta (juridicamente) única quando se constata um plano
comum do autor, ou seja, uma unidade de resolução (“fator final”207) complementada, porém,
por um fator normativo “que a converta em uma unidade de desvalor”208 – trata-se de uma
concepção marcadamente finalista, herdada de Welzel209. O plano comum do autor deve se
correlacionar, portanto, com uma unidade de sentido normativa, “um sentido unitário para a
proibição”210, que contenha em si uma unidade de desvalor. Muñoz Conde, com mesmo
enfoque finalista, fixa igualmente o significado de unidade jurídica de ação a partir dos fatores
final e normativo211.
É comum a menção ao critério da “concepção natural de vida” para determinação da
unidade de ação punível. Sob esse conceito, os vários movimentos corporais correspondem a
uma só ação quando assim for possível conceber a partir dos usos e costumes da sociedade,
auxiliados pelos dados de unidade de propósito e de conexão espaço-temporal212. Não obstante,
o critério mais aceito pela literatura especializada é mesmo o normativo, extraído do “sentido
do tipo correspondente”213. A partir dele, a ação punível unitária corresponde à prática dos
204 JESCHECK; WEIGEND, 2002, p. 766. 205 BETTIOL, 1971, p. 292. 206 ZAFFARONI; PIERANGELI, 2007. p. 617. 207 ZAFFARONI; PIERANGELI, 2007, p. 617. 208 ZAFFARONI; PIERANGELI, 2007, p. 617. 209 WELZEL, Hans. Derecho penal. Parte general. Buenos Aires: Roque Depalma Editor, 1956. pp.
215/217. 210 ZAFFARONI; PIERANGELI, 2007, p. 618. Esta orientação consta também em: ZAFFARONI, 2002, p.
859. 211 MUÑOZ CONDE; GARCÍA ARÁN, 2010, p. 464. 212 ESCUCHURI AISA, 2015, p. 920. Entre nós, veja-se o trabalho de: CRUZ, 2014, p. 461. 213 MIR PUIG, Santiago. Derecho penal. Parte general. 9. ed. Montevideo/Buenos Aires: B de F, 2015. p.
649 (tn).
46
vários atos que compõem o objeto único de valoração dado pelo injusto penal214, não
importando a possibilidade de fracionamento naturalístico. Segundo Horta, “as parcelas do
comportamento humano que interessam ao aplicador da norma penal só podem ser aquelas
recortadas pelo tipo que as descreve”, enquanto “modelo legal de conduta incriminada”215; a
consideração exclusiva de “critérios pré-jurídicos, a outra coisa não conduz senão ao arbítrio e
à insegurança na aplicação do direito”216.
Posição similar é a de Tavares, que entende a unidade de ação mais sob uma perspectiva
comunicativa, i.e., o sentido normativo expressado pela ação (ou ações) a partir de parâmetros
ou referenciais dados pela norma, especialmente o bem jurídico tutelado, não importando o
número de processos causais acionados pelo agente, desde que todos congreguem um mesmo
sentido. Destaca-se: “esse complexo de relações entre a atividade causal e a lesão ou o perigo
de lesão ao bem jurídico é que deve ser tomado como base para a determinação da unidade ou
pluralidade de ações”217. Assim, o sujeito que durante o furto de uma residência resolve
arrombar um cofre e o danifica, comete uma única ação e um único delito de furto, pois “a
orientação da atividade seguiu o mesmo sentido de lesão de bem jurídico, ou seja, o sentido de
subtrair objetos situados naquela residência”218.
Para ilustrar, vejam-se ainda estes exemplos de unidade jurídica de conduta
apresentados por Zaffaroni e Pierangeli: a) quando o tipo, por sua complexidade imanente
(delito complexo), requer expressamente uma pluralidade de movimentos (v.g. extorsão e
estelionato); b) quando o tipo admite uma eventual pluralidade de movimentos (v.g. homicídio
executado em etapas); c) quando um determinado crime é mero exaurimento de um anterior
(v.g. falsificação e uso de documento falso)219; d) nos delitos permanentes, onde os movimentos
em cadeia se prestam a manter o estado consumado; e) o chamado “verdadeiro delito
continuado”220 – este, aliás, um exemplo emblemático da complexidade do assunto.
No delito continuado chamado “verdadeiro” que, segundo Zaffaroni e Pierangeli, não
se confunde com a figura prevista no art. 71, do CP, denominada por ambos de “falso delito
continuado” ou “concurso material atenuado”221 (cujas razões não serão aqui abordadas), existe
uma repetição de condutas típicas, separadas no tempo e no espaço, que não desnatura a unidade
214 BACIGALUPO, 1999, p. 583. 215 HORTA, 2007, p. 44. 216 HORTA, 2007, p. 43. 217 TAVARES, 2009, pp. 496 e 497. 218 TAVARES, 2009, p. 497. 219 Caso clássico de conflito aparente de normas, dirimível pelo critério da consunção. 220 ZAFFARONI; PIERANGELI, 2007, p. 619. 221 ZAFFARONI; PIERANGELI, 2007, p. 625.
47
jurídica de conduta, mas apenas aumenta seu conteúdo de injusto222. Nesse sentido, caso a
afetação ao bem jurídico admita gradação, uma interpretação racional da norma penal admite
que se conceba a repetição típica como uma mera progressão na realização de um único injusto
penal.
Assim por exemplo, quem comete pequenos furtos durante meses contra uma mesma
pessoa visando à subtração de uma quantia considerável para não ser descoberto, não comete
tantos furtos quanto forem suas subtrações isoladas; tampouco quem passa horas falsificando
papel-moeda não comete tantas falsificações quanto forem as horas dedicadas ao crime. Não há
vários crimes, mas um único, mais grave223. Zaffaroni e Pierangeli concluem, então: “no crime
continuado, a realidade da continuidade se traduz numa única ação típica, e os atos sucessivos
do autor são tão-somente graus progressivos da realização do conteúdo injusto do crime”224.
Contudo, é bastante polêmica a aceitação da unidade de ação punível em casos tais225. A esse
tema se retornará no último capítulo, ao se analisar a consunção no âmbito do crime de
sonegação fiscal (Lei 8.137/90, art. 1°).
Como já dito, também se considera conduta jurídica única o crime complexo (CP, art.
101), que se entende pela reunião em uma única norma penal de atos delitivos que isoladamente
considerados constituem uma figura típica autônoma226. Assim também, os chamados tipos
mistos alternativos, que, segundo Dotti, descrevem “não uma, mas várias hipóteses de
realização do mesmo fato delituoso. A característica destes tipos é que as várias modalidades
são fungíveis e a realização de mais de uma não altera a unidade do delito”227 – pontue-se,
contudo, que as diferentes modalidades de conduta devem recair sobre o mesmo objeto material
para que se cogite de tipo misto alternativo. Portanto, trata-se de figuras penais que mesmo
prevendo variadas maneiras de o agente praticar o crime, mantêm-se normativamente como
delito único, ainda que o agente nelas incorra simultaneamente, a exemplo do crime de tráfico
de entorpecentes, previsto no art. 33, da Lei 11.343/06228. Cite-se, por fim, a categoria dos
crimes plurissubsistentes, cujo “processo executivo se compõe de vários atos ou etapas, de
222 JESCHECK; WEIGEND, 2002, pp. 767-770. 223 Jiménez de Asúa enfatiza que o crime continuado não é um caso de concurso de crimes, senão de delito
único, uma unidade real: JIMÉNEZ DE ASÚA, 1958, p. 529. 224 ZAFFARONI; PIERANGELI, 2007, p. 621. 225 ROXIN, 2014, p. 949 et seq. 226 REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de direito penal: parte geral. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense.
2009. p. 273. 227 DOTTI, 2010, p. 367. Assim também: BETTIOL, 1971, p. 296. 228 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1391929/RJ. Rel. Min. Ribeiro Dantas. 5ª Turma. Julgado
em 08/11/2016. DJe 14/11/2016.
48
maneira a caracterizar um iter criminis. É o oposto do crime unissubsistente, ou seja,
caracterizável em um único ato, assim como ocorre com a injúria verbal”.229
Agora, embora o sentido normativo extraído do tipo legal de crime e do bem jurídico
tutelado sejam referenciais fundamentais para a determinação da unidade de ação punível, isso
não significa que haverá tantas ações puníveis quanto forem os modelos legais de crime
formalmente preenchidos, ou melhor, tantos crimes quanto forem as normas incriminadoras
aplicáveis em tese ao fato230. Primeiro, porque a própria lei reconhece a hipótese de violação
de mais de uma norma penal mediante uma única conduta (CP, art. 70): no concurso
ideal/formal, há pluralidade de infrações à lei penal com a prática de uma só conduta, sem que
isso determine a artificial multiplicação do número de ações. Noutras palavras, se o direito pode
desvalorar uma mesma conduta sob mais de uma forma, ou ainda, atribuir significação
normativa unitária a um conjunto ordenado de movimentos corporais, a isso não corresponde a
que o direito possa criar condutas231. Segundo, porque ainda que os movimentos corporais se
enquadrem em mais de um tipo legal, o decisivo ao reconhecimento da unidade jurídico-
normativa, pelo menos para a doutrina majoritária, será o fator final (resolução única) e a
unidade de desvalor (desvalor jurídico unitário) extraída do confronto entre os tipos, a
revelarem um só conteúdo de injusto.
É por isso que comete apenas uma ação punível de roubo (CP, art. 157) quem constrange
para subtrair (fator final), não obstante as previsões típicas autônomas de constrangimento
ilegal (CP, art. 146) e furto (CP, art. 155). Por haver uma previsão delitiva que esgota a
significação fático-normativa concreta (roubo), não se pode sustentar a existência de ações
puníveis autônomas, uma de constranger e outra de subtrair, mesmo havendo correspondência
típica para cada uma delas232. Escuchuri Aisa refere, por essa razão, a importância do caso
concreto como referencial para delimitação da unidade normativa de ação233.
Os exemplos acima servem para ilustrar que na verificação da unidade e pluralidade
delitivas não se podem olvidar o sentido normativo dos atos e a compreensão de que o direito
dá à realidade o sentido que pretende, não tendo importância eventual sentido ontológico ou
pré-jurídico de ação para o exame de sua unidade jurídica, como salienta Mir Puig234. A
229 DOTTI, 2010, p. 464. 230 ESCUCHURI AISA, 2015, p. 916. 231 Sublinhe-se, porém, que sob a concepção de um direito penal mais orientado ao mundo do dever ser,
como se dá com a teoria social da ação, é possível a criação de condutas normativamente. 232 ZAFFARONI, 2002, p. 859. 233 ESCUCHURI AISA, 2015, p. 947. 234 MIR PUIG, 2015, p. 649.
49
intenção do autor torna-se relevante quando investida de sentido social, ou seja, quando
analisada segundo os “significados compartilhados socialmente”235. Em resumo, a ação punível
será única conforme o seu fator final e o sentido normativo extraído dos tipos legais de crime
(especialmente o bem jurídico), que em conjunto venham exprimir apenas um conteúdo de
desvalor jurídico-penal (conteúdo de injusto). Não é ociosa a discussão sobre unidade ou
pluralidade de ações puníveis, como se verá na ocasião do exame dos pressupostos ao
reconhecimento do conflito aparente de normas.
2.3 AÇÃO, RESULTADO E FATO PUNÍVEL NA TEORIA DO CONCURSO
Outra discussão teórica preliminar consiste em aclarar o significado das referências à
“ação” e “fato”, comuns no âmbito da teoria do concurso. Há variações terminológicas nas
legislações e na doutrina, que ora utilizam o termo “unidade de fato”, ora a expressão “unidade
de ação” para disciplinar o concurso ideal de crimes e/ou o conflito de normas.
O Código Penal brasileiro diferencia o concurso material (art. 69) do formal (art. 70)
conforme o número de ações praticadas; nada diz sobre o conflito aparente. Nélson Hungria,
responsável pela elaboração do Anteprojeto do Código Penal de 1963, pretendeu disciplinar em
lei o conflito aparente de normas nestes termos:
Art. 5º Quando a um mesmo fato podem ser aplicadas duas ou mais normas penais,
atende-se ao seguinte, a fim de que só uma pena seja imposta: a) a norma especial
exclui a geral; b) a norma relativa a crime que passa a ser elemento constitutivo ou
qualificativo de outro é excluída pela norma atinente a este; c) a norma incriminadora
de um fato que é meio necessário ou normal, fase de preparação ou execução de outro
crime, é excluída pela norma a este relativa. Parágrafo único. A norma penal que prevê
vários fatos, alternativamente, como modalidades, de um mesmo crime, só é aplicável
uma vez, ainda quando os ditos fatos são praticados, pelo mesmo agente,
sucessivamente236.
Embora sua proposta ainda hoje encontre adeptos237, ela foi rejeitada por Fragoso na
ocasião, sob o argumento de que seria necessário recorrer-se a “normas demasiadamente vagas,
235 CRUZ, 2014, p. 209. Embora se analise, aqui, o conceito de unidade de ação para a disciplina do
concurso, Flavio Cruz defende uma compreensão eclética de ação para a teoria do delito. 236 PRADO, 2013, p. 274. 237 CARVALHO FILHO, José Cândido. Concurso aparente de normas penais. Rio de Janeiro: Revan,
2009. pp. 9-10 e 48. Este autor é peremptório: “O silêncio da lei tem servido apenas para aguçar a gravidade do
castigo. Só o código tem a capacidade de divulgar e exigir a aplicação das normas de direito. A jurisprudência não
tem força para obrigar, de modo incontestável, a aplicação de suas decisões”. Observe-se, a propósito, que o
Projeto de Código Penal em discussão no Congresso é uma nova tentativa de se regulamentar em lei a matéria
(PLS 236/2012, art. 12).
50
que nem sempre encontrariam neste imenso país, juízes bastante esclarecidos para aplica-las”,
ao que complementou: “não é preciso lei para resolver os casos em que duas ou mais normas
se excluem por necessidade lógica ou de valoração jurídica do fato”238.
Defendendo a inconveniência de se disciplinar em lei a matéria, Jescheck e Weigend
afirmam: “por serem inabarcáveis as possibilidades que se derivam, o legislador, com acerto,
renunciou fixar exteriormente por meio de regras gerais as distintas relações de
concorrência”239. Zaffaroni e Pierangeli sustentam que é função da doutrina e da jurisprudência
a interpretação lógica dos tipos penais, sendo que a lei, em caso de “preciosismo extremado”,
somente poderia enunciar os princípios gerais do conflito aparente, “sob o risco de limitar a
elaboração lógica dos textos, por falta de previsão de hipóteses ainda não estuadas na ciência
jurídica”240. Essa também é a posição de Flavio Cruz241, Figueiredo Dias242 e de Roxin243.
Os Códigos Penais alemão, português e chileno também disciplinam apenas o concurso
de crimes. O Código Penal alemão, em seu §52, utiliza os termos “fato” e “ação” para
disciplinar o concurso ideal/formal, prevendo sob a rubrica “unidade de fato” a punição em
concurso de quem com “uma mesma ação” punível infringe mais de uma lei penal ou a mesma
lei várias vezes. O concurso real/material, previsto no §53, contempla a expressão “fatos
puníveis”.244 O Código Penal português, por sua vez, não distingue concurso formal de
concurso material (art. 30.º-1): ou haverá concurso efetivo de crimes, simplesmente,
determinado pelo “número de tipos de crime efetivamente cometidos”, ou unidade de fato
punível245. Por fim, o Código Penal chileno utiliza a expressão fato em relação ao concurso
ideal (art. 75): “quando um mesmo fato constitui dois ou mais delitos” (tn); já quanto ao
concurso material, a previsão legal é: “ao culpável por dois ou mais delitos” (tn)246. Os três
códigos não regulam o conflito aparente de normas, a não ser em relação aos casos de
subsidiariedade expressa (ou seja, quando determinado tipo legal ressalva sua aplicação à
prática de um crime principal mais grave).
Um detalhe interessante em relação à legislação alemã é que nela o concurso formal
segue a regra da absorção (§52, II), ou seja, como regra geral, o crime de pena mais grave
238 HUNGRIA; DOTTI, 2014, p. 208. 239 JESCHECK; WEIGEND, 2002, p. 789 (tn). 240 ZAFFARONI; PIERANGELI, 2007, p. 628. 241 CRUZ, 2014, p. 810. 242 DIAS, 2007, p. 1002. 243 ROXIN, 2014, p. 997. 244 HORTA, 2007, p. 36; ROXIN, 2014, pp. 981. 245 DIAS, 2007, p. 981. Como anota Escuchuri Aisa, a legislação penal da Áustria, Suíça e França também
preveem uma única consequência jurídica para o concurso de crimes: ESCUCHURI AISA, 2015, p. 910. 246 POLITOFF L.; MATUS A.; RAMIREZ G., 2004, p. 446.
51
absorve o que contempla pena mais branda, o que poderia conduzir à afoita conclusão de que
não teria relevância prática distinguir o concurso ideal do conflito aparente de normas. Contudo,
como observa Roxin, o princípio da absorção se complementa com as previsões do §52 II, III
e IV, que preveem, respectivamente: a) o denominado “efeito de bloqueio das leis penais mais
benignas”, consistente na proibição de que a pena concreta resultante do delito mais grave seja
inferior à que as outras leis aplicáveis permitiriam (na legislação penal alemã não há previsão
de pena mínima, apenas a máxima); b) a previsão de aplicação de penas acessórias e multa
cumulativamente; c) a obrigação de o juiz a referir expressamente, na sentença, as normas penas
infringidas na declaração de culpabilidade, como uma reprovação simbólica adicional do
agente247.
O Código Penal italiano descreve o concurso formal (art. 81) a partir da unidade de ação:
“quem com uma só ação ou omissão...” (tn); já o concurso material (art. 72 e ss.) é expresso na
fórmula: “ao culpável de mais de um delito...” (tn), sem utilizar os termos ação e fato, e o
conflito de normas, previsto no art. 15, também não alude a fato ou ação, mas à regulação de
uma “mesma matéria” (tn) por mais de uma lei ou disposição legal. Na Espanha, a expressão
utilizada é “fato” tanto para o concurso formal (art. 77): “um só fato constitua dois ou mais
delitos...” (tn), como para o conflito aparente (art. 8): “os fatos suscetíveis de ser qualificados...”
(tn); o concurso real (art. 73) é expresso nesta fórmula: “ao responsável por dois ou mais
delitos...” (tn). Na doutrina, é também comum encontrar os termos ação e fato no tratamento do
conflito aparente, notadamente quando se apresentam os pressupostos do instituto. A fórmula
geralmente é a seguinte: “quando em relação à uma ação (ou fato) punível aparentemente incidir
mais de uma norma penal, aplica-se...”
2.3.1 Ação punível vs. fato punível
Horta, com base em Bettiol e Jakobs, afirma que ação punível corresponde ao
comportamento delitivo em si mesmo e fato significa a ação acompanhada de seu resultado
lesivo. Fato delitivo, segundo o autor, seria algo mais amplo que ação ou omissão, portanto:
“enquanto estas se referem apenas ao processo executivo, ao comportamento lesivo, aquele
abarca também a própria ofensa – resultado – causada pelo comportamento”248. Segue daí que,
247 ROXIN, 2014, pp. 979-980 e 997 (tn). 248 HORTA, 2007, pp. 65-68. Realmente, Bettiol entende que se uma única conduta produz mais de um
evento lesivo, não haverá unidade de fato punível, mas pluralidade de fatos: “Dada a pluralidade dos eventos, os
52
no concurso formal, há uma única ação com necessária pluralidade de fatos puníveis (estes,
determinados pelo número de infrações à lei penal mediante uma só ação); ao passo que no
conflito aparente, uma pluralidade de ações puníveis pode ser considerada ainda assim um único
fato (infração a uma só norma), caso a aplicação de apenas uma norma se mostre suficiente no
caso concreto. Em conclusão, o pressuposto do conflito aparente, segundo Horta, seria, em
verdade, a unidade de fato (infração única à lei), não a unidade de ação punível (que, aliás, pode
determinar mais de uma violação à lei e, consequentemente, caracterizar mais de um fato
punível). Nas palavras de Horta:
a unidade ou pluralidade de fatos nem sempre corresponde à unidade ou pluralidade
de ações, já que uma única ação pode ser determinante de uma pluralidade de fatos,
como ocorre no concurso formal de delitos, assim como pode um mesmo fato, isto é,
um mesmo conteúdo de injusto ser determinado por uma pluralidade de ações,
suportantes de tipos de delito diversos, aparentemente concorrentes, como são os
anteriores e posteriores impunes ou coapenados.249
Ao compreender a unidade de fato como um elemento conceitual do concurso ideal,
Roxin também parte da premissa de que fato punível é ação mais seu resultado (uma unidade
de fato pressupõe a realização de um resultado através de uma ação), mas, ao contrário de Horta,
consigna que “à unidade de ação se devem adicionar várias infrações da lei para que surja uma
unidade de fato”250. Assim, segundo Roxin, o fato punível ainda permaneceria único quando a
prática de uma ação traz consigo a realização de mais de um tipo251. Esclarece o autor alemão
que a discussão sobre se haveria um único fato punível (teoria da unidade) ou vários (teoria da
pluralidade) diante de diferentes infrações à lei (resultados) “não tem significação prática e por
isso é improdutiva”. Conclui, então, que o importante é considerar a “pluralidade de valoração
baseada na unidade de ação”252, com o que se torna irrelevante discutir se o concurso ideal se
caracteriza pela prática de mais de um fato punível mediante uma só ação.
Acolhendo também a teria da unidade (ou unitária), segundo a qual o número de
resultados não altera o número de ações puníveis, Zaffaroni enfatiza que mesmo se uma ação
produzir mais de um resultado lesivo, ainda haverá fato punível unitário: “quando se trata de
saber se há penalmente uma ou várias condutas, para nada servem o número de tipos que
fatos também, no concurso ideal, são plúrimos, porque qualquer evento constitui elemento constitutivo do fato em
cuja economia êle entra.” (BETTIOL, 1971, p. 300). 249 HORTA, 2007, p. 85. 250 ROXIN, 2014. p. 944 (tn). 251 ROXIN, 2014. p. 963 (tn). 252 ROXIN, 2014. p. 963 (tn).
53
concorrem, o número de resultados e o número de movimentos realizados pelo sujeito”253.
Afirma o professor argentino, em complemento, que quando a legislação utiliza a palavra fato,
o faz em um sentido genérico, deixando sua determinação à doutrina e à jurisprudência254.
Bacigalupo igualmente rechaça a concepção segundo a qual o número de resultados
altera o número de ações ou de fatos puníveis, referindo sobre isso julgados do Supremo
Tribunal espanhol255. Muñoz Conde também compreende que uma única conduta, embora
eventualmente possa determinar mais de uma infração à lei penal e, portanto, mais de um crime,
ainda representa um único fato punível256. Na doutrina nacional, Fortes Barbosa era um dos que
defendiam a equivalência entre os termos257. Como representante estrangeiro da corrente para
a qual o número de resultados materiais causados por uma única ação altera a quantidade de
fatos puníveis (teoria pluralista), cite-se Mir Puig258.
Uma vez exposta parte das compreensões doutrinárias sobre os conceitos de ação e de
fato na teoria do concurso, chegam-se às seguintes conclusões (adotando-se, aqui, a teoria
unitária): a) uma só ação pode produzir mais de uma infração à lei penal, sem que isso desnature
a unidade do fato (concurso formal); b) várias ações puníveis tomadas em conjunto podem
representar, ainda assim, um único fato punível em sentido amplo (unidade delitiva)259, com só
um conteúdo de injusto (é o caso da consunção, o critério de resolução do conflito aparente
especialmente analisado neste trabalho). Neste último caso, a “unidade normativa do fato” é a
“síntese da superposição valorativa das normas incidentes, determinantes da exclusão de uma
pela aplicação de outra”260. Silva Franco e Rui Stoco referem a unidade de fato como
pressuposto do conflito aparente, mas esclarecem que “o fato pode ser constituído de uma só
ou mais de uma conduta”261. Portanto, uma pluralidade de condutas puníveis pode ser
reconhecida como um fato unitário global quando somente uma normal penal subsistir na
valoração do caso concreto, sem importar, aqui, o número de resultados/lesões formais
identificados (é o caso clássico da absorção do uso de documento falso pelo estelionato).
253 ZAFFARONI, 2002, p. 857 (tn). 254 ZAFFARONI, 2002, p. 856. 255 BACIGALUPO, 1999, p. 576. 256 MUÑOZ CONDE; GARCÍA ARÁN, 2010, pp. 466-467. 257 BARBOSA, Marcelo Fortes. Concurso de normas penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976. pp.
143-146. 258 MIR PUIG, 2015, p. 651. Com uma análise mais detalhada sobre as razões pelas quais um setor da
doutrina entende que o número de resultado altera o de ações, vide: ESCUCHURI AISA, 2015, pp. 939-944. 259 ROSA, Fábio Bittencourt da. Lei 7.492/86 e o concurso aparente de leis. Revista dos Tribunais, vol.
835/2005, p. 467-472, maio/2005. 260 HORTA, 2007, p. 83. 261 FRANCO, Alberto Silva; STOCO, Rui (coords.). Código Penal e sua Interpretação: doutrina e
jurisprudência. 8.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 386.
54
Não obstante a constatação de que a menção ao termo “fato” tem o mérito de abranger
mais de uma ação punível sob um mesmo sentido normativo, parece melhor a referência singela
à unidade delitiva (complexa) como condição ao reconhecimento do conflito aparente de
normas (como se adotará daqui em diante), por ser não apenas mais generosa como mais
precisa, pois evita a discussão de se ação e fato punível são conceitos equivalentes e,
principalmente, não exclui de plano as hipóteses de pluralidade de comportamentos delitivos
dos casos de concurso impróprio ou aparente, do que são exemplos os grupos de casos
denominados antefato e pós-fato coapenados ou impuníveis, albergados na regra da consunção.
2.4 CONCURSO DE LEIS E DE CRIMES: DIFERENÇAS FUNDAMENTAIS
Ante o que já se expôs, é possível estabelecer o seguinte panorama em relação à unidade
e pluralidade de delitos: a) uma única ação do autor (unidade de ação punível) pode ensejar a
aplicação de mais de uma norma penal se houver infrações à lei/resultados lesivos
independentes entre si (concurso formal/ideal); b) mais de uma ação (pluralidade de ações
puníveis) pode determinar a aplicação de mais de uma norma penal (concurso material/ real ou
crime continuado); c) uma só ação punível ou mais de uma pode atrair a superposição de normas
penais262, sendo que da relação formal (lógica) ou material (teleológica ou valorativa) havida
entre elas será possível aplicar apenas uma, com exclusão das demais263. Com isso, é chegada
a hora de esmiuçar as diferenças entre concurso de próprio e concurso impróprio.
Conforme Mayrink da Costa, o conflito aparente de normas ocorre quando “duas ou
mais disposições coexistentes parecem adaptar-se ao mesmo caso, porém, só uma é na realidade
aplicável”.264 Não necessariamente todas as normas incidirão no contexto delitivo, mas apenas
aquela que melhor se adaptar a ele: “as várias disposições violadas pela mesma conduta são
apresentadas ao jurista para que seja eligida uma delas e para que a aplique”265. Na síntese de
Cruz, o fenômeno em questão se refere aos casos “em que, em um exame prima facie, distintas
normas penais vigentes parecem aplicáveis ao caso, mas – depois do trabalho hermenêutico –
se reconhece a incidência de apenas um tipo incriminador”266. Welzel ensinava que no conflito
de normas não existe concurso, pois só formalmente os vários tipos são aplicáveis à ação, já
262 RIOS; LAUFER, 2011, p. 150. 263 HORTA, 2007, p.1. 264 COSTA, 1998, p. 422 (itálico do original). 265 COSTA, 1998, p. 423 (itálico do original). 266 CRUZ, 2014, pp. 712 e 715.
55
que uma análise mais atenta revela que “o conteúdo delitivo é determinado de forma exaustiva
por apenas um desses tipos”267.
Bacigalupo esclarece que no concurso aparente de leis se leva em consideração a
“relação dos tipos penais entre si”268, a exemplo do estelionato (CP, art. 171) conjugado com o
uso de documento falso (CP, art. 304), que remete à questão de se saber se aquele absorve este.
Explica Dotti que a precedência (ou absorção) de uma norma penal em relação a outra atende a
“critérios lógicos e de valoração jurídica do fato”269. Mir Puig justifica a impossibilidade de
aplicação conjunto dos tipos penais virtualmente concorrentes no princípio geral do Estado de
Direito do ne bis in idem, salientando que essa relação de prevalência ocorrerá “sempre que um
dos preceitos bastar por si só para apreender todo o desvalor do fato ou fatos concorrentes”270.
Como se nota, no conflito aparente opera uma força atrativa entre os tipos penais
superpostos, obrigando a que se examine a relação lógica ou valorativa em que se encontram;
no concurso de crimes, ao contrário, há “neutralidade” ou “perfeita indiferença” (cf. as
expressões de Soler271) entre as figuras penais convergentes, o que afasta a hipótese de
preponderância ou subordinação de alguma delas e, portanto, viabiliza o reconhecimento do
concurso efetivo/próprio. Portanto, a reação punitiva adequada ao episódio delitivo dependerá
da relação mantida entre as normas convergentes, só se podendo cogitar de conflito aparente
quando não houver “neutralidade” entre elas ou, dito de modo inverso, quando entre elas houver
“incompatibilidade” ou “excesso de atração”272.
Rios e Laufer diferenciam o concurso de crimes e o conflito de normas, assim:
haverá concurso aparente de normas quando possam ser aplicados a uma ação pelo
menos dois tipos penais, mas em vista da relação de subordinação entre os preceitos
concorrentes entre si resultará que apenas um deles possa ser aplicado.
Contrariamente poderá ocorrer que todos os tipos reclamem sua aplicação e neste caso
incidirá a categoria do concurso de delitos.273
Não obstante a menção pontual à unidade de ação, ambos os autores ressalvam, em
momento posterior, a possibilidade de que o conflito aparente ocorra também em caso de mais
de uma ação274. Na verdade, o apego aqui demonstrado à questão do número de ações praticadas
267 WELZEL, 1956, p. 228 (tn). 268 BACIGALUPO, 1999, pp. 569-570 (tn). 269 DOTTI, 2010, p. 364. 270 MIR PUIG, 2015, p. 662 (tn). 271 SOLER, 1992, p. 210 (tn). 272 SOLER, 1992, p. 210. 273 RIOS; LAUFER, 2011, p. 140. 274 RIOS; LAUFER, 2011, p. 149.
56
decorre da orientação da doutrina tradicional, que estipulava como requisito do conflito
aparente a unidade de ação delitiva (ação única). Ver-se-á a seguir, porém, que não tem
relevância o número de ações praticadas, e sim, o significado normativo que em conjunto
revelam.
Já o concurso próprio de crimes, como adiantado, consiste em examinar se uma única
conduta se subsome ao mesmo tempo a mais de um tipo penal (concurso ideal/formal) ou se o
autor, tendo realizado duas ou mais ações, deverá responder também por dois ou mais crimes
(concurso real/material ou crime continuado). Nos termos da legislação repressiva nacional, o
concurso formal observa a regra da exasperação, ou seja, aplica-se a pena mais graves das
cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada em qualquer caso de um sexto até
metade (CP, art. 70). O concurso material, por sua vez, observa a regra da cumulação, ou seja,
as penas dos crimes são somadas aritmeticamente (CP, art. 69)275.
A justificativa político-criminal do tratamento penal mais brando reservado ao concurso
formal é de que um único fato, ainda quando infrinja diferentes normas penais (concurso
heterogêneo) ou a mesma diversas vezes (concurso homogêneo), deve ser valorado com um
conteúdo de culpabilidade inferior ao de uma pluralidade de fatos, pois, afinal, há uma única
conduta contrária ao Direito, e não várias separadas no tempo e no espaço276. Em paralelo, o
concurso formal abrange mais de um desvalor do resultado a partir de um só desvalor de ação,
pesando menos, portanto, que o concurso material, que conta com mais de um desvalor de
resultado e também mais de um desvalor de ação.
A legislação nacional prevê ainda duas espécies de concurso formal: o próprio (ou
perfeito), quando o agente deseja realizar apenas um crime, mas comete mais de um; e o
impróprio (ou imperfeito) quando, embora com uma única conduta, o agente deseja cometer
mais de um crime com consciência e vontade em relação a cada um deles (desígnios
autônomos). Neste último caso, excepcionalmente o concurso formal passa a ser regulado pelo
sistema do cumula material, ou seja, é tratado como se concurso material fosse (CP, art. 70,
§2º), pois “os vários eventos, nesse caso, não são apenas um, perante a consciência e a vontade,
embora sejam objeto de uma única ação”277. Com efeito, o pressuposto do concurso formal é a
275 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral 1. 20.ed. São Paulo: Saraiva,
2014. p. 791. Assim também: HORTA, 2007, p. 52. 276 JESCHECK; WEIGEND, 2002, p. 774 (tn). Sem embargo, deve-se reconhecer a razoável crítica de um
setor da doutrina no sentido de que a censura penal mais branda do concurso formal acaba favorecendo “o agente
mais escrupuloso”, que logra vulnerar mais bens jurídicos por um esforço maior de planejamento, cf. CRUZ, 2014,
p. 542. 277 BITENCOURT, 2014, pp. 791-792.
57
unidade de conduta, mas o tratamento penal mais brando (exasperação) somente terá lugar caso,
além dela, haja também unidade de vontade (elemento subjetivo único)278.
Quanto ao crime continuado, não cabe aqui aprofundá-lo (com o exame, por exemplo,
das divergências entre as teorias objetiva e subjetiva). Porém, para se evitar lacunas, cabe referir
que se trata de uma pluralidade de ações puníveis de igual espécie, reconhecidas como uma
unidade delitiva por questão de política criminal279, porquanto, as ações isoladas acham-se de
tal forma concatenadas no tempo, no espaço e na forma de execução que uma pode ser entendida
como continuação da outra, compondo todas uma unidade delitiva de gravidade especial, daí
porque, o princípio regente é o da exasperação da pena (CP, art. 71)280.
Em termos práticos e de acordo com o ordenamento jurídico nacional, o concurso
efetivo ou próprio enseja sempre uma punição maior ao autor (princípio da exasperação ou da
cumulação, a depender da modalidade de concurso) comparativamente ao concurso aparente.
Enquanto naquele consideram-se aplicáveis ao mesmo tempo as diversas normas penais
incidentes ou uma mesma mais de uma vez (o que necessariamente incrementa a carga penal),
neste somente a norma prevalente é tida como infringida, sendo sua sanção considerada
suficiente para dar a resposta jurídica adequada e suficiente ao caso concreto. E nisto reside a
importância fundamental da distinção entre o concurso de crimes e o conflito aparente: o rigor
da punição.
Para finalizar o exame das premissas conceituais do conflito aparente, cumpre analisar
a questão sobre se esse fenômeno tem lugar em caso apenas de unidade de conduta punível ou
também de pluralidade de ações. Ou seja, se é pressuposto do conflito aparente a unidade de
ação punível.
2.4.1 Unidade ou pluralidade de ação como pressuposto do concurso impróprio?
Tem se mostrado imprecisa e insuficiente a posição da doutrina tradicional de que o
conflito aparente de normas se resume a uma exceção ao concurso ideal/formal de crimes. Para
ela, a unidade de ação punível é pressuposto indispensável do conflito aparente. Como
representantes estrangeiros dessa corrente, confiram-se as lições clássicas de Mezger281 –
278 CARVALHO FILHO, 2009, pp. 21-22. 279 REALE JÚNIOR, 2009, p. 436; CARVALHO FILHO, 2009, p. 22. 280 SANTOS, 2006, p. 415. 281 MEZGER, Edmund. Derecho penal. Parte general. Buenos Aires: Editorial Bibliografica Argentina,
1958. pp. 345 e 346.
58
embora com uma compreensão muito mais generosa do que seja fato punível unitário,
admitindo essa hipótese mesmo em caso de incurso pelo agente em mais de um tipo legal, desde
que ao menos parte das ações praticadas coincidam na formação de ambos os delitos282 –, de
Welzel283 – para quem a unidade de ação é constituída da conjugação do fator final com o fator
normativo284 – e de Bettiol – este também com uma compreensão ampla de unidade de conduta
punível, ao preconizar que a ação (complexa), “embora cindível nos vários atos que se realizam
sucessivamente”, cada um dos quais adstritos a “uma disposição de lei penal”, pode ser
considerada “única desde que julgada em seu complexo”285. Sem embargo, os três autores
referem os atos anteriores e posteriores impunes (que necessariamente envolvem mais de uma
conduta punível) como grupo de casos de resolução de conflito aparente de normas, não a ponto,
contudo, de reconsiderar o pressuposto da unidade de ação. Bettiol, aliás, agrega ao termo “ação
unitária” o predicado “complexa” justamente para explicar a consideração de condutas
ajustadas a mais de um tipo penal como uma só286.
Entre os clássicos brasileiros, aquela premissa (unidade de ação ou de fato) é encontrada,
por exemplo, nas lições de Stevenson287, Aníbal Bruno288, Fortes Barbosa289, Frederico
Marques290 e Mayrink da Costa291. Por sua vez, Magalhães Noronha292, Regis Prado293 e
Bitencourt294 utilizam as expressões “unidade de ação” para tratar do concurso formal e
“unidade de fato” para se referir ao concurso aparente de normas, sem indicar, contudo, as
razões pela opção de uma e outra. Hungria, de sua parte, utiliza a expressão “fato”295 no singular
ao conceituar o conflito aparente, mas ao explicar o critério da consunção, ressalva a hipótese
de exclusão de uma norma por outra, mesmo quando “não haja unidade de fato ou um só
contexto de ação”296. Esse é um tópico cujo enfrentamento direto parece ser evitado, carecendo
de resposta explícita sobre como se daria o ajuste do critério da consunção com o pressuposto
282 MEZGER, 1958, pp. 337-339. 283 WELZEL,1956, p. 228. 284 WELZEL, 1956, pp. 216-217. 285 BETTIOL, 1971, p. 329. 286 BETTIOL, 1971, p. 330. 287 STEVENSON, Oscar. Concurso aparente de normas penais. Estudos de Direito e Processo Penal em
homenagem a Nélson Hungria. Rio/São Paulo: Forense, 1962. p. 31. 288 BRUNO, 1967, p. 260. 289 BARBOSA, 1976, pp. 13/15. 290 MARQUES, 1997, p. 437. 291 COSTA, 1998, p. 422. 292 NORONHA, 1978, pp. 285 e 293. 293 PRADO, 2013, pp. 273 e 591. 294 BITENCOURT, 2014, p. 254. 295 HUNGRIA; DOTTI, 2014, p. 95. 296 HUNGRIA; DOTTI, 2014, p. 97.
59
da unidade de ação (cf. se verá adiante, a consunção resolve o conflito aparente de normas nos
casos de pluralidade de condutas puníveis).
Dotti opta por não restringir o conflito aparente à hipótese de uma única ação ou fato
punível, centrando-se mais na fenomenologia do instituto do que em seus pressupostos, assim:
“quando algumas normas estão umas para com as outras em relação de hierarquia, no sentido
precisamente de que a aplicação de algumas delas exclui, sob certas circunstâncias, a
possibilidade de eficácia cumulativa de outras”297. Essa é também a forma de abordar o tema
de Assis Toledo298 e Cirino dos Santos299. Este, aliás, formula a problemática nestes termos: “o
conteúdo de injusto de um tipo legal compreende o conteúdo de injusto de outro tipo legal e,
assim, o tipo legal primário exclui o tipo legal secundário, que não contribui para o injusto
típico, nem para a aplicação da pena”300. Fragoso, por sua vez, embora indique como
pressuposto a unidade de ação, reconhece que o critério da consunção regula o conflito aparente
em caso de “pluralidade de fatos”301.
Sem olvidar que o original e principal esforço da doutrina (notadamente a alemã) foi
distinguir o concurso ideal do conflito aparente, conforme anotam Zaffaroni302, Jiménez de
Asúa303 e Horta304, ao aludirem ao tratamento teórico dispensado por Merkel, Mezger, Binding
e Beling (este último, por exemplo, dizia que o conflito aparente é de prévia resolução ao
concurso ideal), modernamente tem-se entendido que o conflito aparente incide tanto em caso
de unidade como de pluralidade de condutas puníveis, de modo que ambas as hipóteses podem
levar ao reconhecimento da unidade delitiva para efeito de enquadramento típico, com
aplicação de apenas uma das normas penais em tensão305.
Segundo Schmidt, o “concurso ilusório” (i.e., conflito aparente de normas) pode ocorrer
tanto em caso de conduta única, quando se perceber não ser o caso de um concurso formal,
como em caso de pluralidade de condutas, caso não se justifique o concurso material: “pode-se
297 DOTTI, 2010, pp. 363 e 364. 298 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 1994. pp.
50/54. 299 SANTOS, 2006, p. 417. 300 Itálicos do original. 301 FRAGOSO, 2006, 455 e 458. 302 ZAFFARONI, 2002, p. 868. 303 JIMÉNEZ DE ASÚA, 1958, p. 142. 304 HORTA, 2007, pp. 33-34. 305 Defendendo a incidência do concurso aparente inclusive em caso de pluralidade de ações puníveis:
JESCHECK; WEIGEND, 2002, pp. 789-790; ROXIN, 2014, p. 997; MIR PUIG, 2015, p. 662; ZAFFARONI,
2002, p. 868; HORTA, 2007, p. 34. Paradigmaticamente: CRUZ, 2014, passim (pp. 712, 737, 801).
60
chegar à conclusão, pois, que a unidade ou pluralidade de condutas são comuns, tanto no
concurso ilusório como no real”306.
Tavares, por sua vez, refere como pressuposto do “concurso de leis” a unidade delitiva,
classificando, na sequência, o conflito aparente em duas espécies a partir de “como se
manifesta” essa unidade de delitos: se formal ou material307. Nas palavras do autor: “há
concurso formal de leis quando uma só lei deva ser aplicada a uma manifestação de unidade de
delito. Haverá concurso material de leis quando uma só lei deva ser aplicada à pluralidade de
manifestações de unidade de delito, como ocorre nos antefatos e pós-fatos impuníveis”308.
Entre as regras mais comuns de resolução do conflito aparente de normas, uma delas
tem lugar sempre em caso de unidade de ação punível (especialidade), enquanto outra é
recorrente em casos de pluralidade de ações delitivas (consunção). Segue-se, portanto, que pela
consunção se reconhece o conflito aparente de normas em casos que, de outro modo, caberia
aplicar o concurso material de crimes. Portanto, sob a perspectiva dos pressupostos do conflito
aparente, não se mostra bizantina a discussão conceitual de ação, resultado e fato punível na
teoria do concurso.
Insista-se que as legislações e a doutrina empregam tais expressões, o que obriga a
literatura a responder se esses termos se equivalem e sobretudo a esclarecer qual o efeito disso
sobre a disciplina do conflito aparente. O Código Penal espanhol (1995), vale repetir, prevê em
seu art. 8, o conflito aparente de normas a “fatos suscetíveis de ser qualificados” (tn) em dois
ou mais preceitos. Como se trata de uma legislação recente, pode-se afirmar que ela endossou
a tendência doutrinária de admitir o concurso de leis a casos de pluralidade de fatos ou ações
típicas309.
Portanto, como pela consunção o intérprete aplica apenas uma única norma penal,
apesar da pluralidade de condutas (ou fatos) puníveis310, com o que se reconhece o episódio
como um conteúdo de injusto unitário para efeito de reprovação311, obtêm-se, então, um útil
critério de distinção entre o concurso material e a consunção: nesta, uma única norma penal é
aplicada a mais de uma ação punível porque, afinal, considera-se o conjunto de ação puníveis
306 SCHMIDT, 2001, p. 76 307 TAVARES, 2009, p. 510. 308 TAVARES, 2009, p. 510. 309 RIOS; LAUFER, 2011, p. 166. Os autores pontuam que pela ancoragem do concurso de normas (em
sentido amplo) em uma “concepção valorativa”, a sistemática do conflito aparente é perfeitamente aplicável aos
casos de pluralidade de condutas. 310 Acolhe-se, aqui, a orientação que considera essas expressões equivalentes (teoria unitária). 311 HERRERA, 2004, pp. 128-129.
61
como uma unidade delitiva (complexa)312 para efeito de reprovação penal; naquele, as diversas
ações puníveis não permitem leitura outra que não seja a pluralidade real de fatos puníveis,
obrigando, assim, o tratamento punitivo mais severo.
Essa distinção se justificará ainda mais quando se analisarem os parâmetros ao
reconhecimento da consunção, regra de resolução de conflito aparente de que se ocupa esta
pesquisa primordialmente, quando, então, a noção de substrato fático unitário em meio à
pluralidade de ações (unidade delitiva com conteúdo de injusto único) fará mais sentido e
justificará a racionalidade jurídica da incidência isolada da norma penal prevalente.
312 CARVALHO FILHO, 2009, pp. 29, 89 e 92.
62
3 OS CRITÉRIOS DE SOLUÇÃO DO CONFLITO APARENTE DE NORMAS
3.1 FUNDAMENTAÇÃO HERMENÊUTICA E DOGMÁTICA
O fenômeno de conflito de tipificação penal (unidade de lei) e o consequente receio do
exercício abusivo do poder punitivo (judicial) impeliram a literatura a sistematizar as hipóteses
de identificação e de resolução desse desafio hermenêutico. É lugar-comum entre os clássicos
a menção às ideias de equidade e de justiça como determinantes do exame do conflito aparente
previamente à adoção da disciplina do concurso próprio.
Magalhães Noronha pontuava, por exemplo, que o fundamento central corresponde à
equidade: “não porque isto seja imposto por um rígido conjunto de lógica, mas porque a
aplicação de tôdas as normas concorrentes chocar-se-ia com a necessidade prática de avaliação
do fato. E encontrar-nos-íamos em colisão com as mais elementares exigências de justiça”.313
Carvalho Filho, em obra recente, enfatiza a imperatividade da unidade de lei “como medida de
justiça e equidade”, apoiando-o no “princípio da justa aplicação da lei repressiva”314. A doutrina
tradicional alude ainda à necessidade de que a ordem jurídica mantenha coerência e unidade,
com o que não se aceita a aplicação de sanções duplicadas, segundo as lições de Aníbal Bruno315
e Hungria316. Zaffaroni assinala que a precedência do conflito aparente relaciona-se com o
princípio da legalidade, com o princípio do ne bis in idem e inclusive com problemas de
extradição; conclui, então, que se trata de uma questão central, cujo descuido leva ao risco de
“fazer naufragar várias garantias constitucionais e internacionais, e de permitir um exercício
completamente irracional do poder punitivo”317.
É recorrente, portanto, a referência de que a obrigação de se examinar o conflito aparente
deriva, em última análise, do ideal de justiça, sob a premissa de que colidiria com o Estado de
direito a possibilidade de punição desproporcional ou em duplicidade.
Embora não sejam incorretos tais raciocínios, parece necessário justificar a temática em
estudo em algo mais concreto, pelo alto grau de abstração e até a inegável ambivalência do
conceito de justiça. Do mesmo modo que signos como equidade e justiça podem obrigar o
exame do conflito aparente com base nas relações lógica e axiológica entre os tipos, poderiam
313 NORONHA, 1978, p. 349. 314 CARVALHO FILHO, 2009, pp. 37-38. 315 BRUNO, 1967, p. 260. 316 HUNGRIA; DOTTI, 2014, p 95. 317 ZAFFARONI, 2002, pp. 856-857 (tn).
63
servir também para justificar a preferência pelo concurso próprio, já que não se pode negar a
incidência formal cumulada dos preceitos. Ou seja, enquanto justiça, para alguns, corresponde
à intransigente e criteriosa observância às regras do ne bis in idem e da proporcionalidade, para
outros, melhor consiste na concreção do postulado tot poena quot delicta (vedação da punição
insuficiente)318. Portanto, a exigência de depuração da concorrência típica requer ancoragem
em fundamentos menos etéreos.
O princípio da lesividade (ofensividade) confere ao direito penal uma coloração liberal-
democrática, pois impede a punição com base em mera desobediência ou infidelidade à ordem
jurídica. O comportamento passível de reprovação é somente aquele portador de certa
danosidade social; a constatação burocrática de infração literal à norma não determina por si só
a punição. Nesse sentido, a lesividade é o mecanismo que vincula o direito penal à proteção dos
“instrumentos” (bens jurídicos) necessários à “livre autorrealização” do ser humano na
sociedade319, razão pela qual reclama o exame da magnitude da ofensa ao bem jurídico para a
operação de subsunção da norma penal320. Como acentua Batista, o “bem jurídico põe-se como
sinal da lesividade (exterioridade e alteridade) do crime que o nega, ‘revelando’ e demarcando
a ofensa. Essa materialização da ofensa, de um lado, contribui para a limitação legal da
intervenção penal, e de outro a legitima”321.
Assim sendo, o resultado lesivo (desvalor do resultado) é sempre necessário à
configuração do injusto sob um direito penal assentado no princípio da lesividade, não se
podendo confundir resultado normativo (sempre necessário) com resultado empírico ou
sensível (inerente aos chamados crimes de resultado material). Vale dizer, a lesão ou perigo a
bem jurídico é requisito de todos os injustos penais (inclusive dos tipos de mera atividade)322.
E é em razão da dimensão material dos tipos penais que o silogismo jurídico não se contenta
com a constatação simbólica ou in thesi da correspondência literal entre o comportamento e o
318 CRUZ, 2014, pp. 305-306. Como observa Flavio Cruz, no âmbito do direito penal, o princípio da vedação
da proteção insuficiente tem amplitude mitigada, diante da proeminência do postulado da ultima ratio: “Pode-se
até conceber que o Estado tenha deveres especiais de tutela - a proteção da vida de crianças, por exemplo -, mas
disso não decorre que deva necessariamente socorrer-se da repressão criminal, sobremodo quando presentes
eventuais outros mecanismos, de menor violência e maior efetividade (o que ganha significativo relevo quando se
tem em conta o caráter criminógeno da própria repressão criminal, dado o efeito iatrogênico da pena).” 319 SILVA SÁNCHEZ, 1992, pp. 291-292 (tn). 320 BUSTOS RAMÍREZ, Juan. Introducción al Derecho Penal. 2.ed. Santa Fe de Bogotá: Editorial Temis
S.A., 1994. p. 29. 321 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p.
95. 322 MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, pp. 273-274.
64
preceito penal323. Disso resulta que no processo de subsunção jurídica há sempre um imperativo
axiológico relacionado à lesividade social do comportamento (associada, por sua vez, à lesão
ou ao perigo de lesão ao bem jurídico), que obrigatoriamente conduz à ponderação entre as
normas punitivas convergentes para determinar se todas ou apenas uma ou algumas delas serão
aplicadas ao fato. Com efeito, na configuração do injusto penal haverá sempre um resultado
para compor com a ação324. Essa realidade hermenêutica ajuda a ilustrar a complexidade do
processo de subsunção, que envolve juízos valorativos e lógicos, e em tudo se distingue de
automatismos. Soler é enfático:
A subordinação de um fato a determinada figura delitiva não é sempre uma operação
simples que resulta do exame sumário e mecânico da lei, porque as figuras e os tipos
não são nem valores numéricos nem puros conceitos lógicos, senão normas dotadas
de um conteúdo que cria um complexo sistema de relações entre um tipo e outro. Para
se chegar ao enquadramento correto, sempre é necessário saber que tipo escolheremos
dentre os vários que às vezes reclamam aplicação sobre um fato. (tn)325
Essa dimensão material do injusto se justifica ainda mais em razão da inclinação da
dogmática a diretivas político-criminais (com esteio na teia axiológica constitucional),
conforme vem argumentado Roxin desde a década de 70 sob o modelo teleológico-racionalista
(neo-neokantismo)326. Se a formulação do sistema jurídico-penal deve observar finalidades
valorativas – o que na atualidade poucos teóricos parecem dispostos a rechaçar327 – e se, dentre
essas finalidades, está a proteção subsidiária de bens jurídicos contra especiais formas de ataque
(as mais graves, seja mediante ações planificadas ou mediante infrações ao cuidado devido), a
produção do resultado proibido (lesão ao bem jurídico) passa a ser um referencial de
configuração do injusto inegociável328.
Também com base no modelo dogmático de Roxin, outro critério político-criminal que
justificaria o dever de se examinar a dimensão material do injusto poderia corresponder ao
323 GUARAGNI, Fábio André. As teorias da conduta em direito penal: Um estudo da conduta humana do
pré-causalismo ao funcionalismo pós-finalista. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. pp. 235-236 e 244. 324 Se bem que no âmbito do direito penal socioeconômico, não raro se encontram tipos de perigo abstrato
“puramente formais”, ou seja, delitos de “pura desobediência”, destituídos de toda restrição típica material. Como
anota Martínez-Buján, trata-se de “autênticos ilícitos administrativos cuja elevação à categoria de infração penal
é criticável”: MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, p. 209 (tn). 325 SOLER, 1992, p. 204. 326 ROXIN, 1997, p. 203. 327 SILVA SÁNCHEZ, José Maria. Política criminal y nuevo Derecho Penal. Libro Homenaje a Claus
Roxin. Barcelona: JMB, 1997. p. 18. Não obstante o modelo funcional de Roxin seja paradigmático, cabe pontuar
que há vários outros propostos. 328 ROXIN, 1997, p. 324. “A ação típica, enquanto unidade de fatores internos e externos (incluindo o
resultado), é o objeto da norma de determinação e de valoração em que se baseia o injusto” – tn. O resultado é um
referencial indispensável do injusto, pois dita o grau de perturbação determinado pela conduta punível; é ele, afinal,
que manifesta o desvalor da ação em todo seu sentido (ROXIN, 1997, p. 325).
65
“juízo abstrato de necessidade de pena”, que “se vê substancialmente influído pela produção ou
não produção do resultado”329. Segundo o autor alemão, a necessidade preventiva da punição
depende essencialmente do resultado, pois diante da ausência de “perturbação da paz jurídica”,
se poderia renunciar à reação jurídico-penal – tome-se como exemplo o princípio da
insignificância, embora a exclusão da responsabilidade, na jurisprudência nacional, se dê por
atipicidade, e não por desnecessidade de pena330. De qualquer forma, esta última perspectiva
(necessidade de pena) pode ser levada em conta por meio do princípio da proporcionalidade,
um critério relativo mais ao juízo de reprovação do que ao objeto de reprovação.
Portanto, sob um sistema pautado em valores e atento a demandas político-criminais
(especialmente o concebido por Roxin, que aceita limites externos ontológicos à construção
normativista331), impõem-se ainda com mais razão a conjugação dos conceitos-chave de
desvalor de ação e de resultado para efeito de configuração do injusto – que, como se verá no
próximo capítulo, são referenciais dogmáticos essenciais à consunção, critério mediante o qual
se reconhece que em determinadas situações de fato o conteúdo de desvalor de um tipo penal
está contido em outro de maior alcance.
Rememore-se com Figueiredo Dias que a “unidade da norma ou de lei” reclama o estudo
das relações entre as normas incriminadoras, com o que se chega à conclusão de que “à luz
da(s) norma(s) prevalecente(s) se pode já avaliar de forma esgotante o conteúdo de ilícito (e de
culpa) do comportamento global”332. Com efeito, a aptidão da norma prevalecente de apreender
o conteúdo do ilícito (diríamos injusto) e da culpabilidade do “comportamento global” está na
base da relação consuntiva, e isso requer, naturalmente, referenciais dogmáticos para viabilizar
esse exame valorativo, como, por exemplo, o desvalor da ação e do resultado.
A partir disso, a “coerência interna” do sistema como justificativa para o
reconhecimento da unidade de lei, na esteira das lições de Aníbal Bruno333 e Hungria334, ganha
em sentido. Destaque-se, também, a lição de Palma Herrera:
Desde um ponto de vista valorativo, na medida em que um único preceito seja capaz
de valorar jurídico penalmente o comportamento em questão, a aplicação de um novo
preceito com sua correspondente sanção implicaria, em primeiro lugar, uma
incoerência inadmissível do ordenamento jurídico-penal, que deve mostrar-se como
um todo consistente, isento de contradições, e no que um princípio de economia evita
a reduplicação de comportamentos tipificados. Mas implicaria, além disso, uma
329 ROXIN, 1997, p. 326 (tn). 330 ROXIN, 1997, p. 226. 331 SILVA SÁNCHEZ, 1997, p. 25. 332 DIAS, 2007, p. 992. 333 BRUNO, 1967, p. 260. 334 HUNGRIA; DOTTI, 2014, p 95.
66
infração do ne bis in idem que proíbe desvalorar e, em consequência, castigar duas
vezes os mesmos fatos335.
O princípio da proporcionalidade é outro elemento essencial à verificação da unidade
de lei/concurso impróprio336 – se bem que a proporcionalidade é mais um corretivo de
reprovação do que de definição do injusto penal; vale dizer, o exame de adequação e
necessidade parece ter mais a ver com a mensuração da censura justa do que com a delimitação
do objeto de reprovação. Referido princípio evoca a regra do non bis in idem337 que,
sinteticamente, proíbe a atribuição de “responsabilidade várias vezes a uma pessoa pela mesma
reprovação”, conforme Roxin338. Adiante-se: o bis in idem de que se trata aqui é o material, não
o processual, relativo à coisa julgada. É mesmo comum a referência ao cânon do non bis in
idem339 (material) para legitimar a consunção como regra autônoma de resolução do concurso
de leis. Se pelo princípio da proporcionalidade a pena deve ter correspondência valorativa com
o fato punível “contemplado na globalidade de seus aspectos”; ou seja, como por esse vetor
interpretativo se proíbe a imposição de pena superior à gravidade do delito, relacionada ao grau
de dano social causado340, a punição de um mesmo fato mais de uma vez pelo mesmo
fundamento jurídico ou conteúdo de desvalor (bis in idem) não se ajustaria a esse princípio.
A ideia reitora da regra do non bis in idem341 é a impossibilidade de se considerar um
mesmo motivo de reprovação penal ou aspecto de conteúdo de injusto para se castigar mais de
uma vez. Ou, noutras palavras, a impossibilidade de se reprovar em duplicidade alguém pelo
mesmo aspecto de desvalor de uma entidade jurídica. Na síntese de Figueiredo Dias, “a
proibição de dupla valoração do mesmo substrato material”342. Observe-se que a falta de
previsão solene e formal no direito interno da regra do non bis in idem não prejudica sua
335 HERRERA, 2004, p. 40. 336 Para um estudo do princípio da proporcionalidade a partir da obra de Carlos Bernal Pulido. confira-se:
CRUZ, 2014, pp. 262 e ss. 337 A associação entre o princípio da proporcionalidade, sob a perspectiva da proibição de excesso, e o ne
bis in idem é destacada por Caro Coria com base na jurisprudência do Tribunal Constitucional peruano: “o TC
peruano considera que o ne bis in idem material se fundamenta por um lado no princípio da proporcionalidade
vinculado à chamada ‘proibição de excesso’, fundamento indiscutível se se tem em conta que impor mais de uma
sanção pelo mesmo conteúdo de injusto implica impor ‘uma dupla carga coativa’...” (tn). CARO CORIA, Dino
Carlos. El principio de “ne bis in idem” en la jurisprudencia del Tribunal Constitucional. In: ARÚS, Francisco
Bueno; DALBORA, José Luis; MAÍLLO, Afonso Serrano (coords.). Derecho penal y criminología como
fundamento de la política criminal: estudios en homenaje al profesor Alfonso Serrano. Madrid: Dykinson, 2006.
pp. 655-683. 338 ROXIN, 2014, pp. 997-998 (tn). 339 MIR PUIG, 2015, p. 662. 340 SILVA SÁNCHEZ, 1992, p. 260 (tn). 341 Trata-se de regra, não de princípio, pois uma vez configurada, não admite ponderação, cf. CRUZ, 2014,
p. 303. 342 DIAS, 2007, p. 978.
67
imperatividade, seja pela relação havida com o princípio da proporcionalidade, seja porque
consta indiretamente em outras regras do ordenamento nacional, seja ainda, por sua presença
explícita em pactos internacionais dos quais o país é signatário343.
O Tribunal Europeu de Direitos Humanos da União Europeia, em 2014, ao julgar o caso
“Grande Stevens”344, reconheceu a violação ao non bis in idem entre a infração administrativa
italiana de veicular informações falsas ou enganosas no mercado de capitais e o crime correlato.
Entendeu-se que o componente bis significa a dupla punição, não importando o rótulo legal:
naquele caso concreto, a severidade da sanção administrativa franqueou a conclusão de que ela
equivaleria à sanção criminal, com o que se reconheceu a repetição de punição. Quanto ao
componente idem, entendeu-se que equivale à “identidade substancial dos fatos sancionados”,
i.e., à dupla punição pelo mesmo “motivo de uma infração”, na esteira do art. 4, §1º, da
Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais345.
Segundo García Cavero, o bis in idem pressupõe identidade de sujeito, fato e
fundamento346. Quando a uma mesma pessoa e pela prática do mesmo fato (compreendido
simplesmente como acontecimento histórico) se pune mais de uma vez com repetição da
apreciação do sentido de desvalor jurídico (mesmo fundamento valorativo), tem-se, em
princípio, dupla punição indevida347. Com efeito, a regra do non bis in idem (material),
emergida do princípio da proporcionalidade, responde em grande parte pela operação
hermenêutica, cogente, de se escolher uma única norma penal incriminadora dentre as
conflitantes porque a descrição jurídica da norma prevalente (dominante) esgota a totalidade do
desvalor (de ação e resultado) do fato realizado348, consubstanciando uma unidade normativa
de delito, independentemente do número de ações puníveis passíveis de identificação.
343 Apesar da ausência de declaração solene do non bis in idem, considere-se a previsão deste princípio em
documentos internacionais dos quais o Brasil é signatário, como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos
da ONU (Cláusula 7ª, art. 14), ratificado e promulgado no Brasil pelo Decreto nº 592/1992, e o Pacto de São José
da Costa Rica (cláusula 4ª, art. 8), ratificado e promulgado no Brasil pelo Decreto nº 678/92. Ademais, merecem
alusão as previsões do art. 61 e do art. 8º, ambos do CP. Pela primeira, proíbe-se a consideração de agravantes que
simultaneamente constituam ou qualifiquem o crime. Pela segunda, a pena cumprida no estrangeiro atenua a pena
imposta no Brasil pelo mesmo crime, quando diversas, ou nela é computada, quando idênticas. Ambas trazem em
essência a proibição de duplicidade de repressão com base no mesmo fundamento. 344 Processo nº 18640/18 do TEDH, de 4 de março de 2014, cf. referido em: BURNIER DA SILVEIRA,
Paulo. O direito administrativo sancionador e o princípio non bis in idem na União Europeia: uma releitura a partir
do caso “Grande Stevens” e os impactos na defesa da concorrência. Revista de Defesa da Concorrência, vol. 2,
nº 2, Nov. 2014. pp. 5-22. 345 BURNIER DA SILVEIRA, 2014, pp. 17-18. 346 GARCÍA CAVERO, 2014, p. 235. 347 GARCÍA CAVERO, 2014, pp. 236-237. 348 BUSATO, 2017, p. 877.
68
Convém consignar, aqui, a posição divergente de Schmidt, para quem somente o critério
da especialidade seria governando pela vedação à dupla punição pelo mesmo fato; a consunção,
ao contrário, não se justificaria na proibição do bis in idem, mas em puro imperativo de
proporcionalidade, pois em casos tais existe pluralidade de condutas puníveis, de modo que a
punição autônoma de cada uma estaria “legitimada internamente”. Segundo o autor, o
fundamento da consunção seria, então, a ilegitimidade “externa” da pluralidade de punições,
“visto não ser justo punir mais de uma vez um criminoso que ofendeu um só objeto jurídico de
uma mesma vítima, apesar de tal lesão restar consolidada mediante mais de uma conduta
criminosa”349.
Politoff L., Matus A. e Ramirez G., por sua vez, fundamentam a consunção no princípio
da insignificância, argumentando que as “relações empíricas entre os fatos puníveis suscetíveis
de ser qualificados por dois ou mais preceitos” permitem que se considere um deles
“insignificante” frente a outro de “intensidade criminal” maior. Nesse caso, o castigo da norma
principal é suficiente e proporcional para reprovar o agente por seu comportamento global,
porque o delito acompanhante carece de “significação autônoma” no caso concreto, i.e., revela-
se insignificante perante a norma prevalente350.
Não obstante os argumentos da proporcionalidade e da insignificância sejam
persuasivos e convincentes, parece possível, em caráter complementar, associar o critério da
consunção também à regra do non bis in idem, como o faz a doutrina majoritária351. Como no
conflito aparente a norma prevalecente reúne em si a totalidade do desvalor do fato punível,
esgotando em plenitude a reprovação jurídica do comportamento global352, a aplicação
concorrente da norma descartada consubstanciaria dupla punição, pois negaria a aptidão da
norma dominante de expressar o desvalor global do fato, bem assim, sua proeminência
axiológica. Em se negando a relação lógica-valorativa entre os tipos legais, a norma descartada
não teria outra finalidade a não ser repetir a punição, cujo desvalor a norma prevalente já
contemplou na totalidade, segundo as balizas do caso concreto. Confira-se a síntese de Muñoz
Conde sobre a assimilação da carga material de um injusto por outro: “quando a conexão entre
os diversos delitos é tão íntima que, na falta de um deles, não se praticaria o outro, deve-se
349 SCHMIDT, 2001, p. 79. 350 POLITOFF L.; MATUS A.; RAMIREZ G., 2004, pp. 457-458 (tn). Assim também: MATUS ACUÑA,
2005, p. 485. 351 RIOS; LAUFER, 2011, pp. 160-161; TAVARES, 2009, p. 516. 352 STRATENWERTH, 2005, p. 540.
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considerar todo o complexo delitivo como uma unidade, e não como dois delitos”353. Portanto,
o ne bis in idem encarna a condição de fundamento concorrente, independentemente de se poder
identificar uma razão ainda mais específica para justificar a consunção. Ao se declarar a
absorção material de uma norma em outra, declara-se, junto, a repetição de juízo de reprovação
que a aplicação concorrente das normas resultaria. Está-se, portanto, evitando-se punir em
duplicidade.
Conquanto o exposto, disso não segue que um mesmo comportamento delitivo não
possa ser reprovado sob mais de um ângulo valorativo, como foi pontuado no capítulo anterior
(a pedra lançada que simultaneamente destrói a vidraça e fere a vítima, encontra reprovação
também simultânea nos crimes de dano e lesões corporais, porque consubstanciam infrações
com conteúdo e significado próprios)354. O que se veda é a reprovação em duplicidade de uma
mesma expressão de desvalor (ou “mesma propriedade jurídico-penal relevante”355). Assim,
aquele que mata alguém não pode responder pelo crime de homicídio e também pelo crime de
lesões corporais, pois toda a gravidade do fato punível está prevista na norma que proíbe matar;
ou, então, quem falsifica um documento e por meio dele engana obtendo vantagem patrimonial,
não pode responder ao mesmo tempo pelos crimes de falsificação e estelionato, pois este último
contempla como modo de execução a fraude documental, congregando em si todo o desvalor
jurídico do evento criminoso – o que, porém, não se trata de um raciocínio a priori; essa
conclusão dependerá das circunstâncias do caso concreto.
Também por isso, se nenhum dos preceitos convergentes puder traduzir sozinho a
totalidade de desvalor do fato punível, pela independência valorativa (ou neutralidade) mantida
entre si, haverá fatalmente concurso de crimes (formal, material ou crime continuado). Caso,
porém, se constate a propriedade de uma das normas exaurir o desvalor do fato concreto e
mesmo assim se determine a aplicação das demais que com ela aparentemente concorram, a
conclusão só poderá ser o malogro à regra que proíbe punir em duplicidade pelo mesmo
fundamento de direito e, portanto, um resultado injusto, porque desproporcional. A abstenção
do exame da relação lógica ou valorativa (teleológica) entre as normas punitivas para delas
extrair a resposta jurídica proporcional e adequada ao caso concreto, conduziria a um
inadmissível automatismo na aplicação das leis, a revelar um apego cínico pelas fórmulas em
353 MUÑOZ CONDE, Francisco. Teoria geral do delito. Trad. Juarez Tavares e Luiz Regis Prado. Porto
Alegre: Fabris, 1988. p. 219. 354 GARCÍA CAVERO, 2014, pp. 236-237. 355 MATUS ACUÑA, Jean Pierre. Los criterios de distinción entre el concurso de leyes y las restantes
figuras concursales en el código penal español de 1995. Anuario de derecho penal y ciencias penales, Madrid,
v. 58, n. 2, p. 463-493., mai./ago. 2005. p. 474 (tn).
70
detrimento do ser humano, em clara hecatombe ao dogma da racionalidade da pena e ao sentido
antropológico do direito penal democrático356. É por isso que, segundo a orientação dominante,
a aplicação das regras do concurso ideal e do concurso real depende da prévia rejeição do
concurso de leis, cujas regras resolutivas são “elementos negativos à definição das figuras
concursais comuns”357. Entre nós, Flavio Cruz enfatiza a precedência do concurso impróprio
ao próprio358.
Agora, não obstante a fundamentação hermenêutica e dogmática da unidade de lei, ainda
poderia subsistir a pergunta: mas como tornar ainda mais previsível a resolução da unidade de
lei? Considere-se especialmente a hipótese de consunção, cujo conteúdo é valorativo/axiológico
e depende das circunstâncias do caso concreto (cfe. o próximo capítulo), o que prejudica uma
pretensão metodológica de exatidão matemática359. Embora controlar o intérprete seja
praticamente impossível, especialmente porque as leis não têm conteúdo inequívoco360, é
possível exercer um controle mínimo sobre a racionalidade judicial para o equacionamento da
consunção – a regra de resolução da unidade de lei mais controversa. O que em si já é bastante,
pois seria impensável o controle total da atividade hermenêutica. Tampouco se podem esperar
respostas únicas, apenas respostas melhores361. O fundamental é que com os critérios sugeridos
se possa obter, na sentença, um parâmetro argumentativo claro e delimitado, e que exatamente
por isso permita a crítica e o contraponto, analogicamente ao que ocorre na dosimetria da pena.
Nesse sentido, uma última palavra deve ser dita a respeito do papel da dogmática
jurídico-penal relativamente ao exercício do poder de punir. Conforme Gimbernat, a dogmática
tem a importante função de orientar a “aplicação segura e calculável do Direito penal”,
subtraindo-lhe a “irracionalidade, a arbitrariedade e a improvisação”. Afinal, “quanto menos
desenvolvida esteja uma dogmática, mais imprevisível será a decisão dos tribunais, mais
dependerá do azar e de fatores incontroláveis a condenação ou a absolvição”. Na lúcida
percepção do referido autor, “quanto menor for o desenvolvimento dogmático, mais loteria, até
chegar a mais caótica e anárquica aplicação de um Direito penal de que – por não ter sido objeto
de um estudo sistemático e científico – se desconhece seu alcance e seu limite”362.
356 ZAFFARONI; PIERANGELLI, 2007, p. 316. 357 MATUS ACUÑA, 2005, pp. 464-465 (tn). Vide também: BACIGALUPO, 1999, p. 572. 358 CRUZ, 2014, p. 679. 359 CRUZ, 2014, p. 227. 360 CRUZ, 2014, p. 262. 361 CRUZ, 2014, p. 276. 362 GIMBERNAT, Ordeig. ¿Tiene um Futuro la Dogmática Juridicopenal? p. 9 (tn). Disponível em:
<https://www.unifr.ch/ddp1/derechopenal/articulos/a_20080521_84.pdf>. Acesso em: 6 de junho de 2018.
71
No fim das contas, portanto, o que interessa é investir a decisão de racionalidade,
tornando-a suscetível ao controle e à crítica, ainda que não se possa antever com segurança o
resultado. O fato de se evitar o decisionismo já é um avanço.
3.2 OS CRITÉRIOS EM ESPÉCIE
Quanto ao número de critérios (ou relações363) de resolução do conflito aparente de
normas e, principalmente, o conteúdo de cada um, não é nenhum exagero afirmar que impera a
confusão na doutrina. Trata-se de campo em que a literatura penal diverge
consideravelmente364. Não há unanimidade tanto em relação ao elenco de hipóteses de
resolução, quanto ao conteúdo delas. E em relação aos casos de aplicação desses parâmetros,
pode-se dizer que as dissidências atingem “proporções caleidoscópicas”, na metáfora Horta365.
Essas dificuldades não são recentes. Oscar Stevenson já afirmava que
não é só o cabimento do processo lógico-sistemático e a aplicabilidade de normas em
função desses princípios, ou regras, que tem suscitado fundas discordâncias entre os
doutrinadores. Mas é igualmente o rol dêles, a sua índole e o ajustamento de um dado
fato a um princípio que não outro, como na elisão da tentativa pelo crime consumado
e do delito de perigo pelo de dano366.
Pela amplitude dessas questões, este trabalho naturalmente não se ocupará de catalogar
toda opinião a respeito, mesmo porque, uma tal tarefa seria própria de Sísifo, dada a profusão
não só de posições como de autores. Sendo assim, serão destacados os pontos congruentes entre
os marcos teóricos aqui adotados e as conclusões mais sólidas e operativas pragmaticamente.
Vale dizer, a escolha por determinada opinião observa critérios como operatividade prática e
coerência lógico-jurídica, a fim de se tentar chegar a resultados satisfatórios para a resolução
de casos concretos de concurso aparente, em especial a consunção, revigorada no âmbito do
direito penal econômico. Afinal, a abstenção de escolha diante de um cenário de divergências
teóricas só conduziria à paralisia. Isso, porém, não significa que as opções aqui adotadas sejam
necessariamente as melhores e mais justas, pois uma tal postura seria não apenas não científica
como pedante.
363 DOTTI, 2010, p. 364. O autor esclarece que o termo “princípios” não é adequado, pois pelas regras se
decide “o que é verdadeiro e falso” no momento da aplicação da lei. 364 MARQUES, 1997, p. 437. 365 HORTA, 2007, p. 98. 366 STEVENSON, 1962, p. 37.
72
Os mesmos critérios que resolvem casos de concurso impróprio também os identificam,
apresentando-se como ferramentas hermenêuticas com dupla função, a saber: identificação e
resolução367. De acordo com a doutrina majoritária, são eles: especialidade (Lex specialis
derogat legi generali), subsidiariedade (Lex primaria derogat legi subsidiarie) e consunção
(Lex consumens derogat legi consumptae). A alternatividade (para a qual não há brocardo
correspondente368) seria um quarto critério, mas sua autenticidade é muito questionada.
Enquanto um setor da doutrina afirma que nessa hipótese não há verdadeiro conflito aparente,
senão mais de uma forma de incurso na mesma norma penal369 ou mais de uma lei à disposição
do julgador para basear alternativamente sua decisão (como, p.ex., “nos tipos mistos
alternativos ou nas hipóteses de dificuldade na apreciação dos fatos”370), outro setor sequer a
refere como regra pertencente ao rol de resolução371. Observam Rios e Laufer que nas
dogmáticas alemã e italiana o critério da alternatividade foi praticamente abandonado pelos
doutrinadores372; a doutrina espanhola, por sua vez, “tem conferido um tratamento sui generis
a esta categoria”373. Tal postura é compreensível, pois o Código Penal espanhol reconhece a
alternatividade na 4ª regra do art. 8: “Em não se aplicando os critérios anteriores, o preceito
penal mais grave excluirá os que castiguem o fato com pena menor” (tn)374. Considerando,
portanto, a intensa controvérsia e a identidade movediça da alternatividade, ela não será aqui
tratada, até porque a doutrina nacional tradicional não a reconhece375.
Em caráter sumular, considere-se que há especialidade quando uma norma especial
contém estruturalmente a norma geral, acompanhada de elementos que a especializam, com o
que oferece um nível de detalhamento de configuração típica maior que o contemplado na
norma base376. Haverá subsidiariedade quando um preceito se subordinar ao outro na proteção
de um mesmo bem jurídico, sendo que sua incidência dependerá da não aplicação daquele dito
principal, podendo esse caráter residual ser expresso ou tácito377. A consunção, por sua vez, se
verifica quando uma das normas puder englobar, axiologicamente, o conteúdo de desvalor de
367 HORTA, 2007, p. 87. 368 RIOS; LAUFER, 2011, p. 151. 369 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 17. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2015. p. 81. 370 TAVARES, 2009, p. 512; ZAFFARONI, 2002, p. 871. 371 Nesse sentido, vide: HUNGRIA; DOTTI, 2014, p. 95 et seq. FRAGOSO, 2006, p. 455 et seq. TOLEDO,
1994, p. 50 et seq. 372 JESCHECK; WEIGEND, 2002, p. 791. 373 RIOS; LAUFER, 2011, p. 159. Vide também: ALBERO, 1995, p. 401. 374 MATUS ACUÑA, 2005, p. 480. “En defecto de los criterios anteriores, el precepto penal más grave
excluirá los que castiguen el hecho con pena menor”. 375 ZAFFARONI; PIERANGELI, 2007, p. 628. 376 PRADO, 2013, p. 275; ZAFFARONI; PIERANGELI, 2007, p. 629. 377 HUNGRIA; DOTTI, 2014, p. 97; ZAFFARONI; PIERANGELI, 2007, p. 629.
73
outra (conteúdo de injusto), segundo a moldura fática do caso concreto, de modo que mediante
uma interpretação valorativa/substancial considera-se um dos crimes (normalmente
considerado crime-meio, mas nem sempre) absorvido por outro (dito crime-fim), achados em
relação de acessório e principal (acompanhante e dominante)378. Há, na consunção, um
“fechamento material” entre os tipos, pois um “consome ou exaure o conteúdo proibitivo” do
outro379.
O aprofundamento de cada mecanismo de resolução de conflito aparente será realizado
a seguir. Não obstante, com elas já se sinalizam as compreensões que neste trabalho se julgam
mais satisfatórias. Atente-se que referida classificação se confirma desde uma concepção
pluralista (ou clássica), que admite a existência de mais de uma regra de resolução da
convergência aparente. Embora minoritária, não se podem deixar de referir as concepções
monistas, que arbitram um único critério de resolução. Dentre seus adeptos, cite-se Puppe380 e
Jakobs381, para os quais o critério da especialidade bastaria à resolução de todo caso de conflito
aparente382, e a posição do italiano Antolisei, que originalmente reconhecia a especialidade e
um outro critério denominado por ele de progressão383, mas em trabalho posterior passou a
admitir apenas a especialidade384. Entre nós, Fortes Barbosa também encampou o monismo,
mas elegia a consunção como critério definitivo385.
Na plêiade de divergências relacionadas ao rol de critérios (desde as concepções
pluralistas/clássicas), há quem opte por apenas duas regras, com exclusão de uma terceira
(geralmente, a subsidiariedade ou a consunção são descartadas). Em caráter meramente
ilustrativo, mencionem-se as posições de Schmidt (que aceita apenas a especialidade e a
consunção386), Mezger (pela especialidade e consunção387), Figueiredo Dias (que reconhece a
consunção, mas a situa fora da temática do conflito aparente388), Cirino dos Santos (que sustenta
a tendência de a consunção sofrer “sua própria consunção” por outros critérios, especialmente
o da especialidade e o do antefato e pós-fato copunidos389), Fontán Balestra (pela especialidade
378 BUSATO, 2017, p. 879; MATUS ACUÑA, 2005, p. 483 et seq. 379 ZAFFARONI; PIERANGELI, 2007, p. 629. 380 ROXIN, 2014, p. 1000. Examinando em detalhe a perspectiva teórica da professora Ingeborg Puppe,
vide: CRUZ, 2014, pp. 572 e ss. 381 HORTA, 2007, p. 105 et seq. 382 Em relação às abordagens de Jakobs e Puppe, confira-se a análise de: CRUZ, 2014, p. 741. 383 GARCIA, 1972, p. 511. 384 BRUNO, 1967, p. 261; CARVALHO FILHO, 2009, p.78. 385 BARBOSA, 1976, pp. 31-32. 386 SCHMIDT, 2001, p. 80. 387 MEZGER, 1958, p. 346. 388 DIAS, 2007, p. 1002. 389 SANTOS, 2006, p. 420.
74
e subsidiariedade390), Frosali (igualmente pela especialidade e subsidiariedade391) e, por fim, o
clássico trabalho de Klug, que examinando o tema a partir das relações lógico-conceituais entre
as normas, atribui relevância à especialidade e à subsidiariedade392. Na verdade, a única regra
que conta com apoio praticamente unânime é a relação de especialidade393. Embora as posições
sejam defensáveis e disponham de argumentos razoáveis, convém reconhecer a relevância dos
três critérios, na esteira dos marcos teóricos adotados neste trabalho. Tavares apregoa a respeito
o seguinte:
diante da complexidade do fato e ainda da dubiedade dos procedimentos
interpretativos, parece ser adequado a uma argumentação delimitativa que se proceda
a uma diferenciação dos critérios da especialidade propriamente dita, que seleciona a
lei aplicável segundos as particularidades da configuração típica do injusto, daqueles
outros casos, de subsidiariedade e consunção, nos quais fatos diversos se integram ao
mesmo conteúdo de injusto em face, respectivamente, da gradação na violação do bem
jurídico ou do sentido imprimido à realização da conduta e do resultado.394
Para isso, contudo, é preciso encontrar um sentido estrito para as regras de solução do
concurso impróprio, capaz de lhes conferir significação autônoma, com o que se rejeitam
enunciados retóricos ou excessivamente genéricos, que apenas dificultam a compreensão das
relações de conflito. É que boa parte da divergência doutrinária se deve a formulações
excessivamente amplas dos conceitos, levando alguns a afirmar a inutilidade de determinado
critério, e outros a eleger um único aplicável. Assim, por exemplo, caso se tome a especialidade
em sentido genérico ou lato, todos os casos de conflito se resolveriam por ela, pois sempre seria
possível afirmar que o predomínio de uma norma sobre outra se deve a que a lei precedente
descreve melhor e mais especificamente o fato395. Mesma lógica se aplicaria à relação de
subsidiariedade, pois em um sentido amplo, o predicado subsidiário indica que alguma coisa
prefere outra396 (p.ex., o direito penal, enquanto ramo do direito, é subsidiário ao direito civil e
ao direito administrativo). Até mesmo a consunção sofreria com uma definição genérica dessa
natureza, caso fosse considerada, simplesmente, como o fenômeno pelo qual uma norma
390 BALESTRA, Carlos Fontán. Derecho penal. Introducción y Parte general. Buenos Aires: Abeledo-
Perrot, 1998. p. 117. 391 FROSALI, Raoul Alberto apud CRUZ, 2014, p. 770. 392 KLUG, Ulrich. Sobre el concepto de concurso de leyes: análisis lógico de una regulación lingüística de
la dogmática penal. Problemas de la filosofía y de la pragmática del derecho. [S.l.]: Distribuciones Fontamara,
1992. pp. 57-75. 393 HORTA, 2007, p. 93. 394 TAVARES, 2009, p. 513. 395 TAVARES, 2009, p. 513. 396 HORTA, 2007, pp. 131-132.
75
absorve outra, tal como a declarava Beling397, afinal, em todo caso de conflito aparente é
possível afirmar, formalmente, que ocorre a absorção de uma norma pela outra398.
Portanto, convém descortinar o sentido estrito dos conceitos, pois somente assim é
possível lhes reservar autonomia e relevância dogmática. Registre-se, por fim, que há quem
sustente a possibilidade de coincidência de regras na resolução de determinando conflito
aparente, entendendo, assim, pela ausência de incompatibilidade entre os critérios, a obrigar
que se opte por um em detrimento necessário de outro399.
A fim de facilitar a compreensão dos critérios abordados nos tópicos seguintes, é
importante esclarecer, desde logo, que enquanto as relações de especialidade e de
subsidiariedade são explicadas desde uma perspectiva lógico-conceitual das normas em conflito
(plano abstrato), a consunção resulta da relação teleológico/valorativa entre as normas
incriminadoras a que se chega mediante um processo de interpretação do caso concreto e de sua
expressão de desvalor400. Não que na consunção prescinda-se totalmente da relação lógica entre
as normas em tensão; é que essa relação lógica não deriva propriamente do conteúdo abstrato
dos tipos penais (como na especialidade ou na subsidiariedade – esta em menor intensidade,
pois ela também não olvida totalmente a relação valorativa entre os tipos), mas da interação
valorativa entre as normas, aferida empiricamente, segundo as circunstâncias do caso
concreto401. Na consunção, portanto, predominam critérios teleológicos/axiológicos em atenção
ao caso concreto, sendo inserível a mera relação lógico-formal entre os tipos402.
Justamente pelo predomínio dessa perspectiva material, Figueiredo Dias acaba situando
a consunção fora do problema do conflito aparente, tratando-a como um caso de “concurso
impuro ou impróprio”, que se resolve com o reconhecimento da unidade delitiva, já que “os
sentidos e os conteúdos singulares dos ilícitos se interceptam e se cobrem mutuamente, de tal
397 BELING, Ernst Von. Esquema de derecho penal: la doctrina del delito-tipo. Buenos Aires: Librería EL
FORO. 2002. pp. 168-169. 398 ALBERO, 1995, p. 382-383. É por essa razão que o argentino Carlos Fontán Balestra a rejeita
(BALESTRA, 1998, p. 117). Confira-se o rol de autores mencionados por Rios e Laufer que rejeitam a consunção
por considerarem-na um conceito coincidente que a definição geral do fenômeno do conflito de leis: RIOS;
LAUFER, 2011, p. 159 (nota 98). 399 HORTA, 2007, p. 150; CARVALHO FILHO, 2009, pp. 106 et seq. 400 RIOS; LAUFER, 2011, p. 160. Nas palavras dos autores: “Não é demais apontar que entre os aspectos
distintivos entre a consunção e a regra da especialidade e da subsidiariedade, reside que para estes dois últimos
são determinantes as relações abstratas entre os preceitos. De outra sorte, a consunção opera sempre sobre um viés
concreto, e realizado por meio de razões valorativas que determinam o predomínio de uma norma incriminadora
sobre a outra”. Assim também, Figueiredo Dias: a consunção “é agora repensada não sob o prisma das relações
entre normas, mas de relações entre sentidos dos ilícitos singulares no contexto da realidade da vida constituída
pelo comportamento global” (DIAS, 2007, p. 1012). Vide ainda: HORTA, 2007, p. 149. 401 ALBERO, 1995, p. 386. 402 RIOS; LAUFER, 2011, p. 160; CRUZ, 2014, p. 745; HORTA, 2007, pp. 147-149.
76
modo que valorá-los na sua integralidade significaria violação da proibição de dupla
valoração”403. O autor português assim conclui porque concebe o conflito aparente só em caso
de unidade de conduta delitiva404. Mesma posição é compartilhada por Aníbal Bruno405.
No entanto, caso se atribua maior importância às relações pelas quais se reconhece a
unidade delitiva, não haveria por que apartar a consunção das hipóteses de conflito aparente.
Noutras palavras, parece possível incluir a consunção no rol de critérios, desde que se priorize
o entendimento sobre o reconhecimento da unidade normativa de delito, independentemente do
número de condutas: mais importante do que o número de comportamentos reprováveis
praticados é a carga de desvalor jurídico por eles revelada, com o que se admite que a magnitude
de injusto de uma única conduta seja, eventualmente, mais intensa que a adstrita a várias.
Refira-se, em complemento, que a ideia mestra da unidade de lei é a aptidão de um dos tipos
penais convergentes ser “suficiente para englobar completamente o sentido jurídico-penal da
conduta realizada”, cf. Garcia Cavero406. Portanto, o decisivo ao reconhecimento do conflito
aparente não é o número de condutas puníveis, mas a caracterização da unidade delitiva em
meio à pluralidade de normas em tese incidentes.
3.2.1 Relações lógico-formais: a contribuição de Ulrich Klug
A essa altura, torna-se obrigatório referir a monografia de Klug, vastamente citada pela
literatura no bojo da temática do conflito aparente de normas. Em seu trabalho El concurso de
Leys (apresentado na jornada dos professores de Direito Penal em 1955407), o autor investigou
as relações lógico-conceituais existentes entre preceitos incriminadores, fornecendo um
caminho dogmático elucidativo à temática da convergência de normas. Klug preconiza haver
quatro tipos de relações, a saber: heterogeneidade, identidade, subordinação e interferência.
Haverá heterogeneidade quando um objeto que incidir sob o conceito A não puder
incidir simultaneamente sob o conceito B, vale dizer, quando um fato não puder se enquadrar
ao mesmo tempo nos conceitos A e B (p. ex.: furto – CP, art. 155 – e apropriação indébita –
CP, art. 168)408. Em casos tais, não se cogita de concurso ideal, tampouco de conflito aparente
403 DIAS, 2007, p. 1002. 404 DIAS, 2007, p. 992. 405 BRUNO, 1967, p. 263. 406 GARCÍA CAVERO, 2014, p. 709. 407 RIOS; LAUFER, 2011, p. 153. 408 KLUG, 1992, p. 62.
77
de normas, pois os preceitos são absolutamente independentes. Portanto, quando preenchidas
ambas as normas, haveria concurso real de crimes necessariamente.
Haverá relação de identidade quando um objeto puder incidir ao mesmo tempo sob os
conceitos de A e B e vice-versa, de modo que uma norma se confunde com a outra409; i.e., um
tipo de pleonasmo legal. No entender do autor, essa relação seria anacrônica se o ordenamento
jurídico se pretende coerente, pois não há fundamento para tipos penais diversos proibirem uma
mesma conduta410.
Com influência, agora, sobre a temática em estudo, há relação de subordinação
(inclusão) “quando cada objeto que cair sob o conceito A também o fizer sob o conceito B sem
que seja cabível o inverso”.411 A e B não são idênticos, mas A (subordinado) está contido em
B (considerado subordinante ou abrangente). A ilustração pertinente é a dos círculos
concêntricos. Os exemplos clássicos são a relação lógico-formal entre o roubo (CP, art. 157) e
o furto (CP, art. 155), e entre o peculato (CP, art. 312) e a apropriação indébita (CP, art. 168)412.
No primeiro caso, o crime de furto está subordinado (contido) no de roubo; no segundo, o de
apropriação indébita integra conceitualmente o de peculato.
A última relação, também pertinente ao tema em apreço, é a de interferência (intersecção
ou cruzamento), verificada quando “pelo menos um objeto que incide sob o conceito A recai
também sob o conceito B e ao menos um objeto que cai sob o conceito A não recai ao mesmo
tempo sob o conceito B”.413 Nesse caso, os tipos legais se interferem, pois dispõem de partes
comuns. A ilustração clássica são os círculos secantes. Exemplo desta relação é a falsidade
ideológica (CP, art. 299) ou o uso de documento falso (CP, art. 304) com o estelionato (CP, art.
171), pois aqueles delitos podem constituir uma das formas pelas quais se comete o último414.
Com Klug conclui-se, portanto, que os únicos fundamentos lógico-conceituais que estão
na base das regras de resolução de conflito aparente de normas são a subordinação e a
interferência415; a heterogeneidade remeteria necessariamente ao concurso próprio de crimes e
a identidade seria inoportuna no mesmo ordenamento jurídico. Estabelece o autor, então, que a
regra da especialidade corresponde à relação de subordinação, ao passo que a regra da
409 KLUG, 1992, p. 62. 410 KLUG, 1992, pp. 62 e 71. Não obstante, como anota o próprio Klug, essa relação tem importância no
âmbito do direito penal comparado, direito penal internacional e em material de extradição. 411 KLUG, 1992, 62 (tn). 412 HORTA, 2007, p. 67. 413 KLUG, 1992, 63 (tn). 414 HORTA, 2007, p. 71. 415 KLUG, 1992, p. 71.
78
subsidiariedade remete à relação de interferência416. E só na presença dessas duas hipóteses de
relações lógico-conceituais entre as normas seria possível conceber a exclusão de um preceito
pelo outro já no plano abstrato417.
Ocorre que, como Klug mesmo reconhece, o exame lógico-conceitual é insuficiente para
distinguir o conflito de normas do concurso ideal, pois essa perspectiva não responde por que
uma norma deve ceder em função da outra. É por isso que o autor acrescenta ainda outro
aspecto, que denomina teleológico:
A relação de interferência ou de subordinação que se constatou entre os tipos em pauta
tem, todavia, de ser considerada sob o aspecto teleológico, pois é claro que a
constatação de que os tipos legais se encontram entre si na relação lógica da
interferência ou da subordinação nada diz, porém, acerca do que se infere a respeito
da aplicação destes tipos. Somente quando se dispõem de diretivas adicionais podem
ser inferidas as consequências para a aplicação da lei determinadas pela averiguação
da relação lógica existente entre os tipos legais. Estes princípios teleológicos que
devem derivar da obra legislativa podem ser mencionados expressamente pelo
legislador ou estar tacitamente previstos.418
Com efeito, na especialidade, o “respectivo sentido teleológico é sempre tão
inequivocamente reconhecível que não necessita nenhuma referência especial do legislador
com respeito ao fundamento ao efeito derrogante do tipo especial”419. Quanto à subsidiariedade,
o princípio geral é de que em caso de interferência entre as normas, deve-se reconhecer o
concurso ideal, a não ser que haja referência expressa pelo legislador da relação de
subsidiariedade420. A subsidiariedade tácita, por sua vez, é concebível, mas como exceção; ela
requer uma “fundamentação teleológica inequívoca que, afastando-se do princípio já
mencionado, justifique a suposição de que o legislador em lugar do concurso ideal pressupôs
tacitamente a subsidiariedade”421. Quanto à consunção, seu fundamento também seria a relação
lógico-conceitual de interferência, mas Klug entende que ela seria supérflua, pois não passaria
de um caso de subsidiariedade tácita especial: “como no caso da subsidiariedade, a consunção
subjaz a relação conceitual da interferência. Sem maiores dificuldades, pode ser entendida como
416 KLUG, 1992, p. 64. 417 Quanto à alternatividade, Klug a interpreta de dois modos: se existir heterogeneidade entre as normas
(p.ex., furto e apropriação indébita), não se cogita de conflito de leis; se, porém, houver relação de subordinação,
porque duas normas proíbem o mesmo fato sob diferentes pontos de vista jurídicos (com o que se considera uma
incluída na outra), a hipótese seria de um caso especial de concurso de leis: “a diferença com a especialidade não
consiste na estrutura lógica, senão nas diferentes consequências que na aplicação da lei se retiram da mesma
constelação de conceitos”. (KLUG, 1992, pp. 61; 68-70 – tn). 418 KLUG, 1992, p. 71 (tn). 419 KLUG, 1992, p. 73 (tn). 420 KLUG, 1992, pp. 73 e 75. 421 KLUG, 1992, p. 73 (tn).
79
subsidiariedade tácita e com isso resulta ser igualmente supérflua na teoria do concurso de
normas”.422 Não obstante as ponderações de Klug, considere-se o seguinte: na subsidiariedade,
reconhece-se justamente a incidência da norma subsidiária; na consunção, ao contrário,
descarta-se a norma subsidiária (em sentido amplo). Portanto, consunção e subsidiariedade não
se confundem.
O estudo de Klug é uma referência indispensável pela clareza com que examina as
hipóteses de relações lógico-formais entre normas e, especialmente, pela indicação da relação
lógica de interferência na base da subsidiariedade tácita e do concurso ideal, acompanhada do
elemento teleológico como conceito-chave para distingui-los423. Embora de notável avanço
dogmático, a formulação de Klug não alcança, porém, todas as formas de interação entre as
normas, pois ao centrar o exame nas relações lógico-formais em abstrato e, mais ainda, limitar
o conflito de normas a situações de conduta punível única424, olvida a possibilidade de
interferência valorativa/axiológica no momento da concreta subsunção das normas ao fato
punível (i.e., a relação entre conteúdos de desvalor dos preceitos incriminadores) e, portanto, a
dimensão material de que a consunção se ocupa425. Por outro lado, os casos de antefatos e pós-
fatos coapenados ou impuníveis ficariam sem resposta segundo a concepção de conflito
aparente de normas formulada por Klug, pois não podem ser explicadas conforme as relações
lógico-conceituais entre as normas:
Isto se deve à existência de uma pluralidade de condutas cronologicamente separadas
com a devida relação material entre o comportamento anterior ou posterior e a
estrutura e significado valorativo essencial da norma incriminadora prevalente, cujo
cerne é o aproveitamento ou a garantia da posição obtida através do fato antecedente
sem, no entanto, resultar na aplicação dos efeitos do concurso real426.
Como observa Palma Herrera, o próprio Klug acabou reconhecendo a insuficiência das
relações lógicas para a solução dos casos de conflito aparente, pela inevitabilidade de
parâmetros axiológicos para a resolução de casos em que a relação lógico-conceitual não
ajuda427. Não obstante, o sentido teleológico (que Klug até refere como de importância similar
422 KLUG, 1992, pp. 67 e 74 (tn). 423 RIOS; LAUFER, 2011, p. 158. 424 KLUG, 1992, p. 58. 425 Se bem que Klug trata intencionalmente da convergência de normas em um sentido estritamente formal,
sem a pretensão de equipara-la à problemática da superposição de normas na apreciação valorativa do fato (KLUG
1992, pp. 57; 71 e 74). A propósito da insuficiência da abordagem de Klug relativamente às hipóteses de unidade
de lei, vale a pena conferir ainda as ponderações de Flavio Cruz (CRUZ, 2014, p. 722). 426 RIOS; LAUFER, 2011, p. 162. 427 HERRERA, 2004, p. 29.
80
a das relações lógicas428) pode ser tomado como um reforço ao imperativo de identificação de
relações jurídico-valorativas para absorção do conteúdo de injusto de um tipo penal pelo outro
no plano concreto429, inclusive entre aquelas que mantém relação lógica de heterogeneidade
entre si430 (considerem-se, a propósito, os casos de antefatos e pós-fatos coapenados)431.
3.2.2 Especialidade
A especialidade é uma regra de resolução identificada pela relação lógico-formal de
subordinação conceitual entre as normas. É a forma de manifestação mais evidente e de
“aplicação mais segura do concurso de leis”432. Seu exame se resolve já no plano lógico-
abstrato433, antes, portanto, de eventual avaliação dos sentidos de desvalor revelados pelas
normas casuisticamente. Essa relação se dá quando um dos tipos, considerado especial, contém
outro, chamado geral, e pelo menos uma característica a mais, fazendo com que a hipótese fática
deva ser considerada desde um particular ponto de vista434; vale dizer, o suposto de fato do tipo
especial contém todos os elementos do geral, além de um ou outros aspectos conceituais a
mais435.
Por sua maior completude conceitual, a norma especial tem preferência sobre a geral.
Portanto, é a maior exatidão descritiva da norma prevalente na operação de encaixe da situação
fática que conduz ao afastamento da norma geral436. Frise-se que a subordinação do tipo geral
no especial é puramente conceitual, não valorativa. Portanto, o tipo especial, embora contenha
o geral, atribuirá ao fato uma pena diferente (maior ou menor) em razão de algum de seus
atributos de especialização437. Conforme a doutrina majoritária e abstraindo-se as insuperáveis
polêmicas, os delitos complexos revelam relação de especialidade relativamente às normas
penais que o compõem438. Assim também, os tipos qualificados ou privilegiados em relação
428 KLUG, 1992, pp. 57 e 74. 429 MEZGER, 1958, p. 306; RIOS; LAUFER, 2011, p. 160. 430 Nesse sentido: CRUZ, 2014, p. 816. Como refere Horta, entre tipos heterogêneos não há somente
incompatibilidade e, portanto, relação de exclusão recíproca; é possível haver concurso ideal entre tipos
heterogêneos, desde que não sejam incompatíveis entre si: HORTA, 2007, pp. 73-74. 431 MIR PUIG, 2015, pp. 667-668; JESCHECK; WEIGEND, 2002, pp. 793-794. 432 ROXIN, 2014, p. 1000; ALBERO, 1995, p. 321. 433 FRANCO; STOCO, 2007, p. 387; MEZGER, 1958, p. 346. 434 JESCHECK; WEIGEND, 2002, p. 790. 435 ROXIN, 2014, p. 999; JIMÉNEZ DE ASÚA, 1958, p. 146; MATUS ACUÑA, 2005, p. 470. 436 FROSALI, Raoul Alberto apud CRUZ, 2014, p. 752. 437 SOLER, 1992, p. 223; HORTA, 2007, pp. 123 e 128. 438 KLUG, 1992, p. 64; JESCHECK; WEIGEND, 2002, p. 790; ROXIN, 2014, p. 1002; HORTA, 2007, p.
119; STRATENWERTH, 2005, p. 542; CRUZ, 2014, p. 767.
81
aos simples439. Em ambos os casos, o preceito geral está subordinado conceitualmente ao
especial, podendo-se reconhecer a relação de gênero e espécie.
Embora se considere a especialidade o mecanismo de solução do concurso impróprio
menos tormentoso440, isso não significa que ela seja sempre observada e que suas hipóteses de
incidência sejam necessariamente triviais. No âmbito do direito penal econômico, destacam-se,
aqui, dois casos.
O primeiro, de percepção mais simples, é a relação de especialidade entre o art. 334, do
CP (contrabando) e o crime do art. 56, da Lei 9.605/98 (Lei de crimes ambientais), analisada
nos autos do REsp 1524517, do STJ441. A conduta punível de importar produto proibido (no
julgado examinado, pneus usados) para fins de comercialização ilegal, embora ofenda tanto o
bem jurídico supraindividual meio ambiente como a administração pública, se amolda com
mais precisão no delito da lei de crimes ambientais. Em se tratando de pneus usados (ou de
qualquer outro bem de consumo nocivo ao meio ambiente), é mais forte e exerce força atrativa
a peculiaridade de se tratar de produto nocivo “à saúde humana ou ao meio ambiente”, em
comparação com a previsão geral que proíbe, genericamente, a importação fraudulenta de
produtos sob a rubrica do descaminho. Afinal, há especialidade também quando “uma figura
importa em uma descrição mais próxima ou minuciosa de um fato”, conforme Soler442. O
Ministério Público recorreu pleiteando o reconhecimento do concurso ideal/formal, mas o STJ
desproveu o REsp ministerial ao considerar que a lei ambiental “prevê uma forma especializada
de contrabando de objeto nocivo ao meio ambiente e à saúde humana”, assentando, em
conclusão, que:
o objeto jurídico aqui tutelado não é o interesse estatal na importação de qualquer
mercadoria proibida (art. 334 do CP) mas de produto ou substância tóxica, perigosa
ou nociva à saúde humana e ao meio ambiente, em desacordo com as exigências
estabelecidas em leis ou nos seus regulamentos – critério especializante –, a exemplo
da importação de medicamentos adulterados ou corrompidos (art. 273 do Código
Penal) ou com finalidade lucrativa (§1º do art. 273, CP), e do tráfico de armas e
munições (arts. 18 e 19 da Lei 10.826/03).
É verdade que se pode objetar esse raciocínio com este argumento: caso se considere
como ratio legis do crime de contrabando apenas a proteção da indústria nacional da
439 JESCHECK; WEIGEND, 2002, p. 790; ROXIN, 2014, p. 1000; BACIGALUPO, 1999, p. 572; DIAS,
2007, p. 994; HORTA, 2007, p. 116. 440 BACIGALUPO, 1999, p. 572. 441 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1524517/BA, Rel. Min. Nefi Cordeiro. 6ª Turma. Julgado
em 17/08/2017. DJe 29/08/2017. 442 SOLER, 1992, p. 223 (tn). Assim também: TAVARES, 2009, p. 512 e HORTA, 2007, p. 115.
82
concorrência estrangeira (política econômica), então em princípio não se poderia falar em
especialidade, já que o fundamento da proibição de importação de pneus usados é mais
precisamente a proteção da saúde e do meio ambiente (política ambiental). Assim, como os
interesses protegidos pelas normas em conflito em nada se confundiriam, o concurso de crimes
seria a melhor saída hermenêutica. Contudo, caso se entenda que a razão de ser do contrabando
não se restringe à proteção econômica da produção da indústria nacional, mas abrange, também,
outras finalidades, como, p.ex., a proteção da saúde443, a proibição da lei ambiental pode ser
considerada apenas uma especificação de um dos (diversos) motivos para se proibir a
importação de determinados produtos, podendo ser considerada, nesse passo, especial.
Há, igualmente, especialidade entre o crime do art. 272, do CP, e o art. 7º, IX, da Lei
8.137/90, com a interessante peculiaridade de o tipo especial estar previsto na lei geral444.
Partindo-se da lição de Matus Acuña, a norma do Código Penal que proíbe a comercialização
de produto alimentício corrompido é uma espécie do “gênero conceitual” mercadoria, sendo,
portanto, um caso de especialidade por “especificação”, já que ela “supõe conceitualmente”445
os elementos do inciso IX, do art. 7º, da lei dos crimes contra as relações de consumo (produto
alimentício corrompido ou adulterado é uma espécie do gênero mercadoria imprópria ao
consumo)446. Em consequência, caso se constate que um produto destinado ao consumo de
natureza alimentícia tenha sido corrompido, adulterado, falsificado ou alterado, vale a previsão
do Código Penal; se, porém, a conduta for simplesmente a de expor a venda alimento em
condições impróprias ao consumo, sem que se constate alguma das modalidades de intervenção
previstas na lei geral (corrupção, adulteração, falsificação e alteração447), a norma penal da lei
especial deverá prevalecer. A lei especial, ao tratar de mercadoria imprópria ao consumo em
sentido amplo, acaba assumindo conotação geral, enquanto a norma do Código Penal, ao
443 Vide, a propósito, a doutrina de Luiz Regis Prado, que entende estar abrangido no crime de contrabando
“a proteção à saúde, à segurança pública, à moralidade pública, no que se refere à proibição de importação de
mercadorias proibidas...”. PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, vol. 4: parte especial, arts. 289
a 359-H. 4.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 505. 444 Note-se que não é empecilho à especialidade a fato de uma das normas estar prevista na legislação comum
e a outra em lei extravagante, como observa Figueiredo Dias (DIAS, 2007, p. 995). 445 MATUS ACUÑA, 2005, p. 470. 446 Semelhante classificação é compartilhada pelo italiano Frosali, que subdivide o critério em especialidade
por “especificação” e por “adjunção”. No primeiro caso, a especialidade decorre de um maior detalhamento ou
especificação de algum elemento do tipo geral (ex., a qualidade da vítima como qualificadora no crime de lesões
corporais contra pessoa do convívio doméstico – CP, art. 129, §9º –; no segundo, a especialidade é fruto da adição
de algum elemento não previsto no tipo-base. (FROSALI, Raoul Alberto apud CRUZ, 2014, pp. 753 -754). 447 Cf. Silva Franco e Rui Stoco, todos os verbos típicos do caput do art. 272, do CP, pressupõem uma
conduta comissiva de alteração do alimento em sentido amplo, a fim de lhe retirar o valor intrínseco ou “inferioriza-
lo” (FRANCO; STOCO, 2007, pp. 1304-1305). Isso difere, naturalmente, de uma conduta criminosa resultante da
violação ao dever de cuidado de manutenção do produto alimentício em condições adequadas ao consumo.
83
delimitar uma espécie do gênero bem de consumo (alimento) e prever formas específicas de
torná-lo impróprio ao consumo (corrupção, adulteração etc.), assume, excepcionalmente,
conotação especial. Ademais, observe-se que o crime do art. 7º não protege apenas a saúde do
consumidor, tendo alcance mais amplo. É por isso que a jurisprudência do STJ endossa, em
regra, o enquadramento típico na figura do inciso IX, do art. 7º, da Lei 8.137/90, quando o caso
é de exposição à venda de alimento vencido448.
Observe-se, por fim, que não é possível concordar com Horta no ponto em que sustenta
haver uma “presunção absoluta de especialidade das normas ou das leis extravagantes”, nos
termos do art. 12, do CP, “ainda que a norma codificada apresente uma descrição mais detalhada
do fato”449. Estima-se que uma leitura tão rígida desse dispositivo comprometeria a unidade
conceitual da regra em questão, conquanto o preceito realmente priorize a aplicação das normas
extravagantes, como se infere: “as regras gerais deste Código aplicam-se aos fatos incriminados
por lei especial, se esta não dispuser de modo diverso”. Uma leitura muito ortodoxa
neutralizaria a aplicação de normas incriminadoras que, embora previstas no Código Penal,
podem ser consideradas especiais relativamente a outras extravagantes, como no caso do crime
do art. 272, do CP, frente ao do inciso IX, do art. 7º, da Lei 8.137/90.
3.2.3 Subsidiariedade
A subsidiariedade é uma regra que também leva em conta a relação lógico-abstrata entre
os tipos penais, mas repousa, ao contrário da especialidade, na relação de interferência450. Essa
interferência decorre de que as normas em relação de subsidiariedade têm um âmbito de
proteção comum de determinado bem jurídico451, sendo que uma preferirá a outra porque,
ostentando “uma mesma propriedade jurídico-penalmente relevante”452, sua aplicação conjunta
significa dupla punição indevida. Vale dizer, como as normas interferentes compartilham
alguma propriedade jurídico-penal equivalente, sua aplicação conjunta não se ajustaria ao
princípio do ne bis in idem. No concurso ideal, ao contrário, normas interferentes obrigam a
aplicação conjunta porque não compartilham propriedades jurídicas comuns, mostrando-se
448 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1582152/PR. Rel. Min. Reynaldo Soares da
Fonseca. 5ª Turma. Julgado em 20/04/2017. DJe 28/04/2017. 449 HORTA, 2007, p. 118. 450 ROXIN, 2014, p. 1003; JESCHECK; WEIGEND, 2002, p. 791; MATUS ACUÑA, 2005, p. 474. 451 JIMÉNEZ DE ASÚA, 1958, p. 147; DIAS, 2007, pp. 997-999; BITENCOURT, 2014, p. 255; SANTOS,
2006, p. 419. 452 MATUS ACUÑA, 2005, p. 475 (tn).
84
neutras ou indiferentes em termos de expressão de desvalor (v.g. causar dano e lesões corporais
mediante uma só conduta)453.
O raciocínio fundamental dessa relação é a incidência da norma subsidiária apenas
quando não se puder aplicar a norma principal454, o que a qualifica como uma norma auxiliar,
ou então, um “soldado de reserva”, na célebre metáfora de Hungria455. Sua lógica subjacente é
evitar que a ausência de determinados requisitos deixe sem sanção um fato que, de outro modo,
pode ser sancionado por outro preceito que não os exige. Daí que, em caso de aplicação da
norma principal, sai necessariamente de cena a subsidiária456.
A doutrina divide a subsidiariedade em expressa e tácita457. A subsidiariedade expressa
(ou formal) se define pela declaração legal categórica de preferência do preceito legal com
exclusão de outro na qualificação jurídica do fato punível (ou fatos)458, e depende de uma
coincidência pelo menos parcial de proteção do bem jurídico, como preconiza a doutrina alemã.
Um exemplo clássico de subsidiariedade expressa é o art. 132, do CP (perigo para a vida ou
saúde de outrem), em relação ao crime do art. 121, do CP (homicídio), expressa na fórmula: “se
o fato não constitui crime mais grave” – aquele só se aplica quando este for descartado459.
Considerando que não raro a subsidiariedade expressa (ou formal) é ampla e absoluta,
ou seja, nem sempre observa os critérios inerentes à subsidiariedade tácita ou em sentido estrito
(p.ex., proteção do mesmo bem jurídico e norma de gravidade menor preterida pela de
gravidade maior), Zaffaroni a trata como uma hipótese de especialidade para manter a unidade
conceitual do instituto460. Essa é a mesma posição de Soler461. Roxin compreende, igualmente,
que em casos de subsidiariedade em sentido estrito, o tipo preferente mais rigoroso deve
“proteger ao menos parcialmente o mesmo bem jurídico que o tipo subsidiário e estar
tipicamente vinculado a ele”462. Resistem os mencionados autores, portanto, a considerar como
caso de subsidiariedade propriamente dita hipóteses que não conservam minimamente os
453 MATUS ACUÑA, 2005, pp. 474-475. 454 JIMÉNEZ DE ASÚA, 1958, p. 146; JESCHECK; WEIGEND, 2002, p. 791; MATUS ACUÑA, 2005,
p. 473. 455 HUNGRIA; DOTTI, 2014, p. 97. Expressão também encontrada em: ALBERO, 1995, p. 333. 456 ROXIN, 2014, p. 1003; MUÑOZ CONDE; GARCÍA ARÁN, 2010, p. 472; SOLER, 1992, p. 226. 457 Na síntese de Albero: “A subsidiariedade de um preceito pode deduzir-se diretamente de seu teor literal,
posto que existe uma cláusula de inaplicação expressa em favor de outro, ou bem do sentido e finalidade do
preceito, através de uma interpretação teleológica e sistemática. Ambas as classes se referem respectivamente à
subsidiariedade expressa e tácita.” (ALBERO, 1995, p. 334). 458 MUÑOZ CONDE; GARCÍA ARÁN, 2010, p. 472; DIAS, 2007, pp. 997. 459 TOLEDO, 1994, pp. 51-52. 460 ZAFFARONI, 2002, pp. 869-870. 461 SOLER, 1992, p. 226. 462 ROXIN, 2014, p. 1006 (tn).
85
pressupostos do instituto463. Um exemplo disso é o art. 177, §1°, do CP (“incorrem na mesma
pena, se o fato não constitui crime contra a economia popular”): sua aplicação não está
condicionada apenas à configuração de um crime mais grave pertinente ao mesmo bem jurídico.
Baseado nisso, Horta diferencia os casos de subsidiariedade propriamente dita da
subsidiariedade como fenômeno formal de simples preferência de uma norma por outra464.
Albero, por sua vez, prefere a divisão da subsidiariedade expressa em absoluta (quando a norma
subsidiária deixa de ser aplicada por força de qualquer outro tipo penal) e relativa (quando ela
dá lugar a um crime com pena superior)465.
A subsidiariedade tácita (ou material), por sua vez, se baseia na ideia de que os graus de
afetação mais próximos a um mesmo bem jurídico preferem aos mais afastados, e prescinde de
previsão expressa porque essa relação de absorção assenta em critérios lógicos e valorativos466.
Bem por isso, a subsidiariedade tácita pressupõe com mais razão a tutela do mesmo bem
jurídico pelas normas em conflito e uma relação de minus e plus467. Na expressão de Jescheck
e Weigend, a subsidiariedade se caracteriza pela “mesma direção de ataque”468 e, na elaboração
de Zaffaroni, a ideia governante dessa regra é de “progressão da afetação típica”469. Pressupõe-
se, portanto, estágios de proteção distintos pelos normas quanto ao mesmo bem jurídico: o tipo
que prevê um ataque mais intenso descarta o que abarca um grau menor de afetação470. Essa
superposição parcial na proteção de um mesmo bem jurídico é justamente a propriedade
jurídico-penal compartilhada pelas normas. Atente-se, porém, que quando se fala em “mesmo
bem jurídico”, não se descarta a hipótese de eventual bem jurídico albergar conceitualmente
outro, como na relação havida entre integridade física e vida.
Embora seja possível estimar a subsidiariedade tácita a partir da relação lógico-formal
de interferência entre os tipos penais, a opção por uma em detrimento de outra se dá desde um
sentido valorativo/teleológico, associado aos diferentes níveis de gravidade e de punição dos
injustos471. Portanto, ao contrário da especialidade, o exame lógico não é puramente conceitual,
463 ALBERO, 1995, p. 334-335. 464 HORTA, 2007, p. 135. 465 ALBERO, 1995, pp. 334-335. 466 MATUS ACUÑA, 2005, pp. 471 e 476; BITENCOURT, 2014, p. 256; CRUZ, 2014, pp. 762-763;
CARVALHO FILHO, 2009, p. 80; TOLEDO, 1994, p. 51; HORTA, 2007, p. 136. 467 MIR PUIG, 2015, p. 665; ZAFFARONI, 2002, p. 870; MARQUES, 1997, p. 439; CARVALHO FILHO,
2009, pp. 74 e 80. 468 JESCHECK; WEIGEND, 2002, p. 791 (tn). Stratenwerth também utiliza essa expressão:
STRATENWERTH, 2005, p. 544. 469 ZAFFARONI, 2002, p. 870 (tn). 470 TAVARES, 2009, p. 514. 471 ALBERO, 1995, p. 351; ZAFFARONI, 2002, p. 870; DIAS, 2007, p. 997; MATUS ACUÑA, 2005, p.
476; HORTA, 2007, pp. 129-130.
86
mas também valorativo. Por isso, a subsidiariedade é eventualmente associada à consunção472.
Contudo, as ideias particulares da subsidiariedade (tácita) são os diferentes estágios de proteção
de um mesmo bem jurídico e a relação principal-acessório entre as normas extraída
axiologicamente da progressão na agressão ao interesse tutelado penalmente473. A consunção,
por sua vez, se baseia nas relações empírico-valorativa das normas conforme a magnitude do
injusto verificada no caso concreto e, portanto, independentemente de eventual relação lógica
de interferência entre os preceitos, além de não ter como pressupostos necessários a identidade
de bem jurídico protegido e a progressão de ataque de menos para mais; a ela interessa apenas
se uma das normas pode esgotar o sentido de desvalor (de ação e de resultado) de outra na
dinâmica do caso concreto, a partir da relação empírica de conexão valorativa de uma em
função da outra474.
Na subsidiariedade tácita, em meio a muita divergência, incluem-se475: a) os atos
preparatórios autonomamente puníveis – ou seja, os antefatos coapenados cujo bem jurídico é
o mesmo da norma principal correlata (p.ex., o delito de possuir petrechos de falsificação em
relação ao delito de falsificação de moeda); b) o crime progressivo (p.ex., o autor que, num
mesmo contexto de fato, resolve passar de lesões corporais para o homicídio – não haverá,
porém, subsidiariedade tácita, caso a norma de passagem apresente um desvalor próprio e
autônomo no caso concreto)476; c) os crimes de perigo concreto em relação ao crime de dano.
Nota-se, portanto, a possibilidade eventual de haver subsidiariedade tácita inclusive em
hipóteses nas quais o agente pratica mais de uma conduta punível477.
No âmbito do direito penal econômico, a subsidiariedade ganha especial destaque e
repercussão na interação entre os crimes de perigo e de lesão. Como regra geral, concebe-se
que somente o crime de perigo concreto é subsidiário ao de dano, excluindo-se dessa hipótese
472 No sentido de que a subsidiariedade e a consunção regulam-se “por critérios de valoração jurídica”, e
não apenas lógicos, como a especialidade, Fragoso (FRAGOSO, 2006, p. 455). Para Toledo, é difícil “distinguir
com clareza” a subsidiariedade da consunção (TOLEDO, 1994, p. 52). 473 ZAFFARONI, 2002, pp. 869-870. MIR PUIG, 2015, p. 665; JIMÉNEZ DE ASÚA, 1958, p. 147;
STRATENWERTH, 2005, p. 544; BACIGALUPO, 1999, p. 573; TAVARES, 2009, p. 515. 474 ROXIN, 2014, p. 1012. 475 Sobre a classificação aqui adotada, conferir: JESCHECK; WEIGEND, 2002, p. 792; WELZEL, 1956, p.
229; ZAFFARONI, 2002, pp. 870-871; ROXIN, 2014, pp. 1006 et seq.; MATUS ACUÑA, 2005, p. 475; DIAS,
2007, pp. 999-1000; SANTOS, 2006, p. 419; HORTA, 2007, p. 136 et seq. (Note-se, porém, que Dias e Horta
excluem da subsidiariedade a hipótese do delito progressivo). 476 CRUZ, 2014, p. 766. Embora considerando o crime progressivo como caso de consunção, Regis Prado
fornece a seguinte definição didática de crime progressivo: “o delito menos grave abstratamente considerado é
meio ou passagem obrigatória para o delito mais grave (do menor ao maior/minus a maius) com ofensa de crescente
gravidade a um mesmo bem jurídico ou a um outro bem jurídico de superior relevância. Essa forma de delito
pressupõe um só fato, e se distingue da progressão delitiva, em que existe uma pluralidade de fatos diferentes que
se sucedem no tempo, de modo sequencial e em âmbito unitário (PRADO, 2013, p. 278). 477 JIMÉNEZ DE ASÚA, 1958, p. 147; HORTA, 2007, p. 138.
87
os crimes de perigo abstrato478. Não se trata, porém, de uma regra absoluta. Segundo Roxin, a
subsidiariedade do crime de perigo abstrato frente ao de perigo concreto, e de ambas as classes
de perigo frente ao delito de lesão “somente se dá se nas distintas fases ou etapas da ameaça
delitiva se protege o mesmo bem jurídico”479. Segue daí que, se eventual crime de perigo
abstrato proteger “algo a mais” que o objeto lesionado, não se falará em subsidiariedade, mas
sim, em concurso ideal480. E faz todo sentido, pois se não houver coincidência de bens jurídicos
e seus respectivos titulares entre a norma de perigo e a de lesão, não se poderá cogitar de unidade
delitiva (complexa) e, portanto, de concurso impróprio: haverá fundamento idôneo para cada
norma incidir autonomamente, porque não haverá mais perfeita relação de minus a plus.
Portanto, não haverá subsidiariedade tácita se a norma penal de perigo abstrato tutelar
bem jurídico supraindividual que abarque interesses estranhos ao bem jurídico individual
tutelado pelo delito de lesão, com o que não se poderá falar em simples antecipação da proteção
penal481. Nesse caso, em se constatando violação a ambos os preceitos, impõe-se, em regra, o
concurso próprio, e não a punição do crime de perigo abstrato apenas na ausência do crime de
lesão. Segue daí que somente se o crime de perigo abstrato tiver como referência interesses e
valores equivalentes aos do crime de lesão (concluindo-se, portanto, que a norma acessória
protege, na verdade, apenas ameaças menos intensas ao mesmo objeto de proteção penal),
poderá se falar em preferência do tipo mais grave com o reconhecimento de que o conteúdo de
injusto da norma menos grave está logica e valorativamente contido naquele482.
O concurso entre os crimes de homicídio culposo no trânsito – Lei 9.503/98, art. 302 –
e de embriaguez na condução de veículo automotor – Lei 9.503/98, art. 306 – suscitava até
pouco tempo essa discussão. Quem entendia que o interesse sob a tutela do segundo crime
(incolumidade pública vulnerada pela condução em estado de embriaguez) não se exauria na
proteção da vida, de que se ocupa o primeiro mais grave, defendia o concurso próprio. Quem,
porém, compreendia que o crime de embriaguez representa um simples estágio anterior de
proteção da vida, sustentava o concurso impróprio483. Não obstante, com as alterações
478 JESCHECK; WEIGEND, 2002, p. 792; MIR PUIG, 2015, p. 666. 479 ROXIN, 20014, pp. 1009-1010. Matus Acuña também reconhece essa possibilidade, mas a considera um
caso de consunção (MATUS ACUÑA, 2005, p. 487). 480 GARCÍA CAVERO, 2014, p. 710; STRATENWERTH, 2005, p. 545; MATUS ACUÑA, 2005, pp. 487-
488. 481 ROXIN, 2014, p. 1010. 482 HORTA, 2007, pp. 138-143. 483 Nesse sentido: ARANA, 2007, p. 315-371. Embora no presente tópico se aborde a subsidiariedade, o
STJ já reconheceu a consunção (absorção material) entre esses crimes. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça.
AgRg no AREsp 611237/MS. Rel. Min. Nefi Cordeiro. 6ª Turma. Julgado em 15/12/2016. DJe 02/02/2017: “O
delito previsto no art. 306 do CTB (condução de veículo automotor sob influência de álcool) constitui crime de
perigo, tendo o dano se materializado na efetiva colisão entre o veículo do acusado e a motocicleta das vítimas,
88
promovidas pela Lei 13.546/17 no Código de Trânsito Brasileiro, a hipótese de concurso
próprio parece ter perdido força. Agora, o homicídio culposo no trânsito sob a influência de
álcool é um crime qualificado (art. 302, §3º) e de natureza complexa (fusão de dois crimes em
uma só norma). Haverá, portanto, um único crime (mais grave) caso se cometam as infrações
simultaneamente.
Em vista dos pressupostos referidos (caráter auxiliar da norma subsidiária, diferentes
estágios de agressão ao mesmo bem jurídico, relação de minus a plus), é possível sustentar
subsidiariedade tácita, por exemplo, entre os crimes do art. 41 (provocar incêndio em mata ou
floresta) e do art. 38 (destruir ou danificar floresta), ambos da Lei 9.605/98 (lei de crimes
ambientais). Ambas as normas protegem o mesmo bem jurídico (mediatamente, o meio
ambiente, e imediatamente a flora), sendo que o incêndio (previsto no tipo menos grave) e um
dos meios possíveis (interferência) para a destruição de floresta (tipo mais grave). Horta
sustenta também haver subsidiariedade tácita entre o crime do art. 52 da lei de crimes
ambientais (penetrar em Unidade de Conservação sem licença portando instrumentos para a
exploração de produtos florestais) e o crime do art. 40 da mesma lei (dano à Unidade de
Conservação), quando os instrumentos proibidos forem todos utilizados para causar dano484.
Estima-se, também, subsidiariedade tácita entre o crime do art. 15 da Lei 10.826/03
(disparo de arma de fogo) e o delito de porte ilegal de arma de fogo (seja o de uso permitido –
art. 14 – seja o de uso restrito – art. 16), a partir da noção de progressão de ataque. Levando em
conta que essas normas tutelam o bem jurídico supraindividual incolumidade pública com o
mesmo alcance, faz sentido pensar na aplicação da norma menos grave (disparo) apenas quando
não incidente a mais grave (porte) – não obstante, a jurisprudência costuma declarar a relação
de absorção material entre ambas (consunção)485. Pela mesma razão, o delito de porte ilegal
(art. 14 ou art. 16) pode ser considerado subsidiário frente ao delito mais grave de tráfico
internacional de armas (art. 18), caso por alguma razão este não incida no caso concreto (relação
minus e plus). Anote-se, porém, que há bastente divergência jurisprudencial em relação a essa
última hipótese486.
causando-lhes lesão corporal (art. 303 do CTB), de modo que, considerando-se a completa vinculação entre as
condutas, o primeiro delito restou absorvido pelo segundo. Precedentes.” 484 HORTA, 2007, p. 145. 485 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp 635.891/SC. Rel. Min. Jorge Mussi. 5ª Turma.
Julgado em 17/05/2016. DJe 25/05/2016. No mesmo sentido: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no
REsp 1347003/SC. Rel. Min. Moura Ribeiro. 5ª Turma. Julgado em 17/12/2013. DJe 03/02/2014. 486 No sentido de que há concurso próprio entre esses crimes: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp
1661226/RS. Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura. 6ª Turma. Julgado em 16/05/2017. DJe 24/05/2017.
Admitindo, por outro lado, a absorção da norma menos grave com base na subsidiariedade: PORTO ALEGRE/RS.
89
3.2.4 Consunção
Considerando que este trabalho se ocupa primordialmente do critério da consunção e
que não são poucos os aspectos que o distinguem, ele será analisado com a atenção que merece
no capítulo seguinte, em conjunto com casos concretos selecionados da experiência
jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça. Trata-se da hipótese mais recorrente de
concurso impróprio no âmbito do direito penal econômico aplicado, com uma fenomenologia
bem peculiar. É o único critério que conta com verbete sumular dos Tribunais Superiores
(Súmula 17/STJ: “Quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é
por este absorvido”)487. Tanto por sua dimensão marcadamente material, i.e., sua carga
valorativa/axiológica, como pela generalizada divergência quanto aos seus pressupostos488, a
consunção é comumente olvidada ou indevidamente descartada no exame dos casos concretos
relacionados ao direito penal secundário. Seu reconhecimento parece ser dificultado ainda por
uma certa antipatia em se declarar a absorção material de uma norma por outra, já que ela
pressupõe o preenchimento formal pleno e logicamente independente da norma de menor
alcance substantivo – do contrário sequer se poderia cogitar de conflito aparente. Não obstante,
essa operação interpretativa se deve à melhor técnica, não se confundindo com benevolência
ou indulgência.
Tribunal Regional Federal da 4ª Região. ACR 5000582-41.2012.404.7017. 8ª Turma. Rel. Gilson Luiz Inácio.
Juntado aos autos em 30/09/2014. 487 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmulas. Enunciados. Disponível em:
<http://www.stj.jus.br/SCON/sumulas/enunciados.jsp>. Acesso em 6 nov. 2017. 488 ALBERO, 1995, p. 382.
90
4 A CONSUNÇÃO NO DIREITO PENAL ECONÔMICO
4.1 CONSUNÇÃO: DELIMITAÇÃO
Abstraindo-se as insuperáveis divergências, é razoável considerar que a relação de
consunção se confirma quando um dos preceitos penais convergentes contempla de modo
exaustivo o desvalor ou o conteúdo material do fato punível visto em perspectiva, mostrando-
se repetido e, portanto, desarrazoado o castigo autônomo previsto na norma penal meramente
acompanhante489. Nas palavras de Zaffaroni, a consunção (ato ou efeito de consumir) ocorre
quando um dos tipos, chamado consuntivo, “consume o conteúdo material” de outro,
denominado consunto490. Segundo Tavares, quando a relação concreta entre os delitos “indicar
que o conteúdo de injusto de cada um está comprometido com o do outro, de modo a impor
uma avaliação conjunta de ambos e exaurir-se, portanto, em único processo de imputação a fim
de evitar o bis in idem”491. Já na formulação de Cirino dos Santos, a consunção surge quando
“o conteúdo de injusto penal do tipo principal consume o conteúdo de injusto do tipo
secundário, porque o tipo consumido constitui meio regular (não, porém, necessário) de
realização do tipo consumidor”492.
A propósito dessa última definição, é praticamente unânime na literatura nacional a
referência à relação de meio e fim entre as normas acompanhante e principal como condição à
consunção. Nesse sentido, as lições de Hungria493, Fragoso494, Marques495, Prado496, Tavares497,
Bitencourt498, Cirino dos Santos499, Busato500 e Schmidt501. Embora essa mecânica explique, de
fato, a maioria dos casos, o fenômeno não se restringe à absorção do crime meio no crime fim;
há hipóteses de condensação valorativa de uma conduta punível posterior ao comportamento
489 ALBERO, 1995, p. 382; MATUS ACUÑA, 2005, pp. 483 e 485; HORTA, 2007, p. 148; BUSATO,
2017, p. 879; FRAGOSO, 2006, p. 457; COSTA, 1998, p. 428. 490 ZAFFARONI, 2002, p. 869 (tn). 491 TAVARES, 2009, p. 516. 492 SANTOS, 2006, p. 420. 493 HUNGRIA; DOTTI, 2014, p. 97. 494 FRAGOSO, 2006, p. 457. 495 MARQUES, 1997, p. 441. 496 PRADO, 2013, p. 276. 497 TAVARES, 2009, p. 515. 498 BITENCOURT, 2014, p. 256. 499 SANTOS, 2006, p. 420. 500 BUSATO, 2017, p. 879. 501 SCHMIDT, 2001, p. 87.
91
delitivo ajustado à norma principal (são os chamados pós-fato coapenados ou impuníveis502).
Portanto, mais precisa parece a posição de Matus Acuña, que opta pelo conceito de ato
acompanhante em sentido lato (propriamente acompanhante ou posterior)503. Assim, embora na
maioria dos casos de relação consuntiva realmente se constate que um dos preceitos é “meio,
etapa ou forma comum, mas não necessária, de cometimento de outro”504, o fundamento
essencial é de que uma das normas incidentes (a dominante) pode assimilar a expressão de
desvalor da considerada meramente acompanhante que, por sua vez, encerra integralmente seu
conteúdo material naquela, conforme as particularidades do caso concreto505.
A consunção é uma regra cuja aplicação é empírica e casuística, como amplamente se
consigna, pois depende da forma concreta com que o ato típico acompanhante se manifesta. Ela
não regula segundo as relações lógico-formais das normas convergentes, tanto que, por se ater
apenas ao conteúdo valorativo dos tipos, pode se confirmar tanto diante de relações de
interferência como de heterogeneidade506. Isso não significa, é claro, que não seja possível
estabelecer seus pressupostos teóricos de incidência; ocorre que são as relações de desvalor
exprimidas pelas normas na dinâmica do caso concreto que permitem dizer sobre seu efetivo
cabimento. Portanto, o atendimento aos critérios que a identificam só se satisfaz mediante o
exame das relações empírico-valorativas estabelecidas entre as normas penais conforme o
comportamento punível manifestado concretamente507. O casuísmo, portanto, não estaria na
falta de critérios teóricos, mas na impossibilidade de se admitir a consunção aprioristicamente,
sem exame do desvalor externado concretamente. Como isso se percebe que a consunção é uma
espécie de antípoda da especialidade: enquanto nesta uma norma abrange conceitualmente outra
desde o ponto de vista formal, naquela, uma norma abrangerá materialmente outra se a
casuística do caso concreto o permitir; em ambas, de todo modo, reconhece-se a inclusão de
uma norma em outra508.
502 Reconheça-se, porém, não haver unanimidade quanto à inclusão dos pós-fatos coapenados na regra da
consunção. 503 MATUS ACUÑA, 2005, pp. 485 e 486. 504 TAVARES, 2009, p. 515. 505 BUSATO, 2017, p. 879; DOTTI, 2010, p. 365. 506 ROXIN, 2014, p. 1012; BUSTOS RAMÍREZ, 1997, p. 100; CRUZ, 2014, p. 769; HORTA, 2007, pp.
129 e 148; MATUS ACUÑA, 2005, p. 484 (tn). Matus Acuña, porém, não menciona a hipótese de
heterogeneidade; contenta-se com a menção à interferência, “sempre que os preceitos não tenham nenhuma
propriedade jurídico-penalmente relevante comum”. 507 ALBERO, 1995, p. 383; STRATENWERTH, 2005, p. 543; DIAS, 2007, p. 1012; RIOS; LAUFER, 2011,
p. 160; TAVARES, 2009, p. 516; MATUS ACUÑA, 2005, pp. 485 e 486; MEZGER, 1958, p. 346; HORTA,
2007, p. 149; CARVALHO FILHO, 2009, pp. 87 e 88. 508 MATUS ACUÑA, 2005, p. 485; HORTA, 2007, p. 148.
92
Como na consunção se investiga a continência da carga de desvalor de uma norma pela
outra, i.e., a propriedade da norma prevalente/consuntiva de absorver o conteúdo de desvalor
da norma consunta, é indiferente que as normas convergentes tutelem bens jurídicos distintos509.
E nisso a consunção se distingue com nitidez da subsidiariedade tácita: não se trata de normas
interferentes em função dos estágios distintos de proteção ao um mesmo bem jurídico, mas de
uma unidade delitiva complexa (ou unidade de fato punível) derivada da sobreposição de
normas penais com objetividades jurídicas distintas que, à vista da magnitude do injusto
externada no caso concreto, revelam entre si uma atração valorativa indisfarçável que cancela
a neutralidade requerida pelo concurso ideal ou real510. A isso se deve acrescentar que, enquanto
a subsidiariedade tácita é regra que define a incidência do tipo subsidiário quando impossível a
aplicação do principal, a consunção implica no reconhecimento da absorção do tipo
acompanhante no tipo principal. São, portanto, regras que não se confundem.
Destarte, se abstratamente ou a priori é prematuro dizer sobre a consunção de uma
norma por outra511, concretamente será possível reconhecer essa continência do sentido
material (conteúdo de desvalor). É por isso que, nos termos da Súmula 17/STJ, quando a norma
subordinada não “esgotar sua potencialidade lesiva” na principal, não poderá ser por ela
absorvida512. Ou seja, quando a norma acompanhante manifestar uma carga de desvalor
autônoma e transcendente à da norma principal, já não se poderá falar em absorção. Trata-se,
portanto, de operação hermenêutica na qual se examina a atração axiológica irresistível que
uma norma incriminadora exerce sobre outra na moldura do caso concreto, e a incorporação ou
condensação valorativa (material) disso resultante513.
Tampouco a propriedade absorvente (consumptiva) é prerrogativa exclusiva da norma
de maior gravidade514. Embora o comum seja a assimilação material da norma abstratamente
menos grave pela mais grave (major ab absorbet minorem), só com base no caso concreto se
pode dizer qual das normas apresenta maior conteúdo de desvalor efetivo (e, portanto, é
relativamente a mais grave) a ponto de absorver a carga valorativa de outra. Apesar das
divergências doutrinárias e jurisprudenciais quanto ao ponto, a Súmula 17/STJ515 é um reforço
509 ROXIN, 2014, p. 1012; ALBERO, 1995, p. 390; TOLEDO, 1994, pp. 52-53; CRUZ, 2014, p. 805;
HORTA, 2007, p. 150. 510 SOLER, 1992, p. 210. 511 MATUS ACUÑA, 2005, p. 486. 512 TOLEDO, 1994, p. 53. 513 CRUZ, 2014, p. 768. 514 ROXIN, 2014, p. 1013; STRATENWERTH, 2005, p. 543; MATUS ACUÑA, 2005, p. 486; HORTA,
2007, p. 151; CARVALHO FILHO, 2009, p. 105. 515 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmulas. Enunciados. Disponível em:
<http://www.stj.jus.br/SCON/sumulas/enunciados.jsp>. Acesso em 6 nov. 2017.
93
à corrente que rejeita a exigência estreita da relação menor-maior516. Afinal, a falsificação de
documento público admite absorção pelo estelionato, conquanto sua pena abstrata seja mais
rigorosa517. De qualquer forma, é discutível se em casos tais a situação seria realmente a de
absorção da norma mais grave pela menos grave. Ora, como a consunção regula segundo o
conteúdo material do fato punível global manifestado no caso concreto, mostra-se incompleta
a relação de gravidade entre as normas aferidas apenas abstratamente: será o caso concreto, em
última análise, que permitirá dizer qual das normas, relativamente, é a mais grave (não é difícil
imaginar, afinal, uma hipótese em que a magnitude de injusto de um estelionato seja maior do
que a de uma falsidade).
Não obstante, há uma corrente jurisprudencial vigorosa do Superior Tribunal de Justiça
que veda o reconhecimento da consunção justamente com base nos dois aspectos mencionados
acima: a) a diversidade de bens jurídicos tutelados pelas normas penais em conflito518; b) a
maior gravidade abstrata do crime-meio em relação ao crime-fim519.
Além dos argumentos já expostos pela incorreção dessa posição, pode-se ainda
acrescentar os seguintes: a) a exigência de ofensa ao mesmo bem jurídico para o
reconhecimento da absorção material é própria do critério da subsidiariedade; na medida em
que se concebe a consunção como uma regra autônoma de resolução do concurso impróprio520,
não se justifica o traslado de um pressuposto de regra diversa para limitar sua abrangência; b)
as objeções, além de suplantarem e tornarem inoperante a ideia central de absorção (assimilação
casuística do conteúdo material do tipo legal acompanhante pelo principal), acabam
restringindo de tal forma o instituto que o reconhecimento do concurso próprio (material ou
formal) se imporia quase sempre; c) ambas as exigências olvidam os casos tradicionais de
516 HORTA, 2007, p. 152. 517 CRUZ, 2014, p. 775. 518 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 390945/SP. Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz. 6ª Turma.
Julgado em 05/10/2017. DJe 16/10/2017. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1682928/MG.
Rel. Min. Felix Fischer. 5ª Turma. Julgado em 14/09/2017. DJe 25/09/2017. BRASIL. Superior Tribunal de
Justiça. AgRg no REsp 1619960/MG. Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca. 5ª Turma. Julgado em 27/06/2017.
DJe 01/08/2017. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AgRg no REsp 1547489/MG. Rel. Min.
Sebastião Reis Júnior. 6ª Turma. Julgado em 28/06/2016. DJe 03/08/2016. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça.
AgRg no REsp 1580693/RS. Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura. 6ª Turma. Julgado em 05/04/2016. DJe
15/04/2016. 519 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 405448/MS. Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca. 5ª
Turma. Julgado em 19/09/2017. DJe 26/09/2017. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp
1274707/PR. Rel. Min. Leopoldo de Arruda Raposo. 5ª Turma. Julgado em 01/10/2015. DJe 13/10/2015. BRASIL.
Superior Tribunal de Justiça. REsp 1168446/MG. Rel. Min. Laurita Vaz. 5ª Turma. Julgado em 13/11/2012. DJe
23/11/2012. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1084877/SP. Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima. 5ª
Turma. Julgado em 23/06/2009. DJe 03/08/2009. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 886068/RS. Rel.
Min. Felix Fischer. 5ª Turma. Julgado em 10/05/2007. DJ 03/09/2007. 520 ROXIN, 2014, p. 1012.
94
consunção, como a falsificação de documento em função do estelionato ou a invasão de
domicílio absorvida pelo crime-fim de furto. Cabe, então, concluir com Bitencourt:
Não é, por conseguinte, a diferença dos bens jurídicos tutelados, e tampouco a
disparidade de sanções cominadas, mas a razoável inserção na linha causal do crime
final, com o esgotamento do dano social no último e desejado crime, que faz as
condutas serem tidas como únicas (consunção) e punindo-se somente o crime último
da cadeia causal, que efetivamente orienta a conduta do agente.521
A despeito dessa corrente jurisprudencial mais rígida, mencione-se a existência de outra
diretriz que se ajusta melhor aos pressupostos atribuídos pela doutrina (pelo menos por uma
parte dela) à consunção. Confira-se, por todos, este julgado também do STJ, proferido pelo
Min. Reynaldo Soares da Fonseca quando ainda aderia à corrente mais generosa:
O princípio da consunção pressupõe que um delito seja meio ou fase normal de
execução de outro crime (crime-fim), ou mesmo conduta anterior ou posterior
intimamente interligada ou inerente e dependente deste último, mero exaurimento de
conduta anterior, não sendo obstáculo para sua aplicação a proteção de bens jurídicos
diversos ou a absorção de infração mais grave pelo de menor gravidade.522
Ressalte-se, em complemento, que a 3ª Seção do STJ, em sede de recurso repetitivo,
adotou a orientação segundo a qual a consunção não exige que a norma prevalente (crime-fim)
seja mais grave do que o comportamento típico acompanhante, como se infere: “o delito de uso
de documento falso, cuja pena em abstrato é mais grave, pode ser absorvido pelo crime-fim
de descaminho, com menor pena comparativamente cominada, desde que etapa preparatória ou
executória deste, onde se exaure sua potencialidade lesiva. Precedentes”523.
O âmbito de aplicação ordinário da consunção são, por excelência, os casos em que há
pluralidade de condutas puníveis524, o que em nada compromete sua caracterização, pois,
conforme já acentuado, o que distingue o conflito aparente do concurso de crimes não é a
521 BITENCOURT, Cezar Roberto. Direito Penal da Licitações. São Paulo: Saraiva, 2012. pp. 165-168. 522 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp 672170/SC. Rel. Min. Reynaldo Soares da
Fonseca. 5ª Turma. Julgado em 02/02/2016. DJe 10/02/2016. Neste mesmo sentido: BRASIL. Superior Tribunal
de Justiça. AgRg no AREsp 993670/MG. Rel. Min. Nefi Cordeiro. 6ª Turma. Julgado em 20/06/2017. DJe
26/06/2017. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp 691844/PA. Rel. Min. Ribeiro Dantas. 5ª
Turma. Julgado em 09/03/2017. DJe 17/03/2017. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp
1472834/SC. Rel. Min. Sebastião Reis Júnior. 6ª Turma. Julgado em 07/05/2015. DJe 18/05/2015. 523 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1378053/PR. Rel. Min. Nefi Cordeiro. 3ª Seção. Julgado
em 10/8/2016. DJe 15/08/2016. 524 HUNGRIA; DOTTI, 2014, p. 97; JESCHECK; WEIGEND, 2002, pp. 789-790; ROXIN, 2014, p. 997;
MIR PUIG, 2015, p. 662; ZAFFARONI, 2002, p. 868; RIOS; LAUFER, 2011, p. 166; FRANCO; STOCO, 2007,
p. 388; BITENCOURT, 2014, p. 258; HORTA, 2007, p. 34.
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unidade ou pluralidade de ações puníveis exatamente525, mas a viabilidade de se reconhecer a
unidade delitiva complexa (unidade de fato punível) em face da sobreposição de normas penais;
ou, como prefere Dias, a “conexão de sentido dos ilícitos compreendidos pelos tipos legais
preenchidos pelo comportamento total”526. No raciocínio preciso do autor português, a ideia
central da consunção é a de que:
situações da vida existem em que, preenchendo o comportamento global mais que um
tipo legal concretamente aplicável, se verifica entre os sentidos de ilícito coexistentes
uma conexão objectiva e/ou subjectiva tal que deixa aparecer um daqueles sentidos
de ilícito como absolutamente dominante, preponderante, ou principal, e hoc
sensu autónomo, enquanto o restante ou os restantes surgem, também a uma
consideração jurídico-social segundo o sentido, como dominados, subsidiários ou
dependentes; a um ponto tal que a submissão do caso à incidência das regras de
punição do concurso de crimes constantes do art. 77.° seria desproporcional, político-
criminalmente desajustada e, ao menos em grande parte das hipóteses,
inconstitucional.527
Embora a formulação de Dias de unidade delitiva (complexa) com base na conexão
valorativa entre os tipos seja precisa, é bom registrar que o autor português vai além em relação
às hipóteses comumente referidas pela doutrina como de unidade de sentido de ilícito. Assim,
por exemplo, haveria unidade de delito: derivada do sentido social do comportamento, da
condição de crime-meio, do desígnio criminoso único, da conexão espaço-temporal das
realizações típicas e dos diferentes estágios de intensidade de realização global (quando não for
o caso de subsidiariedade)528. Seja como for, essas hipóteses específicas mencionadas por Dias
podem vir a determinar o reconhecimento da unidade delitiva complexa sempre que os
pressupostos gerais do instituto estejam presentes.
A doutrina nacional, reverberando a estrangeira, também diverge em relação aos
pressupostos e aos grupos de casos adstritos à consunção. Toledo529, Franco e Stoco530,
Bitencourt531, Horta532 e Carvalho Filho533 reconhecem os mesmos requisitos aqui adotados,
como a absorção operável mesmo entre normas protetivas de bens jurídicos diferentes, a relação
ordinária de meio e fim entre o ato típico acompanhante e o preceito principal, sem a exigência
525 Enfatizando que a pluralidade de fatos não exclui a possibilidade de apreciar o concurso de leis, conferir:
MIR PUIG, 2015, p. 665 (nota 56). Entre nós: CRUZ, 2014, pp. 737 e ss. 526 DIAS, 2007, p. 1014. 527 DIAS, 2007, p. 1014. 528 DIAS, 2007, p. 1016 et seq. 529 TOLEDO, 1994, pp. 52-54. 530 FRANCO; STOCO, 2007, pp. 388-389. 531 BITENCOURT, 2014, pp. 256-258. 532 HORTA, 2007, p. 147 et seq. 533 CARVALHO FILHO, 2009, p. 85 et seq.
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de que a norma consumida seja “etapa ou passagem necessária” ou menos grave relativamente
à consuntiva, o esgotamento do desvalor da norma acompanhante no tipo legal principal e, por
fim, a inclusão dos casos de pós-fato coapenados (abaixo examinados) na consunção.
A literatura nacional majoritariamente dissente da orientação aqui adotada de que é
indiferente a menor gravidade do crime consunto. Em defesa da necessária relação de minus e
plus, ou seja, da absorção de uma norma de menor gravidade por uma mais grave, Hungria534,
Stevenson535, Frederico Marques536, Mayrink da Costa537, Prado538, Fragoso539 e Schmidt540.
É também lugar-comum (ao menos entre os clássicos) a menção de que o crime
progressivo e o crime complexo são casos de consunção541, o que não é incorreto,
principalmente quando se tem em mente a relação material entre os tipos. Porém, com base no
raciocínio imanente à subsidiariedade tácita, segundo o qual é subsidiário o tipo menos grave
na condição de passagem necessária do ataque ao bem jurídico determinado pelo mais grave, o
crime progressivo revela melhor uma relação lógica de subsidiariedade tácita (aplicando-se a
norma subsidiária quando inviável a norma principal). Quanto ao crime complexo, em se
tratando da fusão de dois injustos em um (crime complexo em sentido estrito), também faz
sentido considerar a consunção, não obstante as considerações acima referentes ao critério da
especialidade. Sem embargo, essas são divergências compreensíveis.
Mencione-se, por fim, que a consunção é tida como um critério residual de concurso de
leis, “ao qual se deve acudir quando um dos preceitos em jogo for suficiente para valorar
completamente o fato e não existir uma forma mais específica de solução de concurso de
leis”542. Disso resulta que as hipóteses de consunção não são taxativas nem definitivas,
especialmente porque será o caso concreto que permitirá dizer, em última análise, se realmente
um ato típico é apenas acompanhante ou acessório em relação a outro543.
534 HUNGRIA; DOTTI, 2014, p. 97. 535 STEVENSON, 1962, p. 41. 536 MARQUES, 1997, p. 442. 537 COSTA, 1998, p. 429. 538 PRADO, 2013, p. 277. 539 FRAGOSO, 2006, pp. 457-458. 540 SCHMIDT, 2001, p. 88. Atento ao fato de que há casos de absorção material de uma norma mais grave
por uma menos grave (v.g. falsum documental e estelionato), Schmidt sugere o reconhecimento da consunção com
o acréscimo de uma causa de aumento. 541 NORONHA, 1978, p. 293; GARCIA, 1972, p. 509; MARQUES, 1997, p. 442 e COSTA, 1998, pp. 430-
432. 542 MIR PUIG, 2015, p. 666. Também no sentido de que a consunção abrange os casos não solucionados
pela especialidade e pela subsidiariedade: TOLEDO, 1994, p. 52. 543 ALBERO, 1995, p. 383. Assim também: POLITOFF L.; MATUS A.; RAMIREZ G., 2004, pp. 461-462.
97
4.1.1 Atos típicos acompanhantes e atos posteriores coapenados (ou copunidos)
Apesar da interminável divergência a respeito, tem-se que a consunção engloba os
chamados atos concomitantes ou acompanhantes típicos e os atos (ou fatos) posteriores
coapenados/copunidos544, situações nas quais há pluralidade de ações puníveis545. Atos
acompanhantes, entendidos como comportamentos paralelos ao tipo legal prevalente, mas a ele
vinculados, são, p.ex., a invasão de domicílio (CP, art. 150) para a prática de furto (CP, art.
155)546, a falsidade ideológica (CP, art. 299) temporalmente conjugada ao estelionato (CP, art.
171)547, a calúnia (CP, art. 138) seguida do delito de denunciação caluniosa (CP, art. 339) e,
mais controversamente, o porte ilegal de arma de fogo (Lei 10.826/03, art. 14) especificamente
orientado para a prática do homicídio (CP, art. 121) – desde que todo o potencial lesivo do
crime (meio) de perigo abstrato contra a incolumidade pública tenha se exaurido no crime (fim)
contra a vida548.
Exemplos de atos típicos posteriores, assim considerados os crimes cometidos enquanto
desdobramento natural e ordinário do delito principal para seu exaurimento, são a destruição da
coisa (CP, art. 163) após o furto consumado (CP, art. 155)549, a falsificação de moeda (CP, art.
289) e a subsequente introdução em circulação (CP, art. 289, §1°)550, a falsificação de
documento (CP, art. 297) e o seu uso subsequente (CP, art. 304)551 ou, ainda, a exposição à
venda de produto fabricado com violação de patente (Lei 9.279, art. 184, I) após a prática do
crime de fabricação de produto objeto de patente de invenção ou de modelo de utilidade sem
autorização do titular (Lei 9.279, art. 183, I)552.
Em relação à terminologia, Roxin observa que o mais adequado seria falar em “fato”
posterior, em vez de “ato”, pois “às vezes a conduta típica posterior coapenada pode não ser
544 Nesse sentido: ROXIN, 2014, p. 1011; ZAFFARONI, 2002, p. 869; JESCHECK; WEIGEND, 2002, p.
793; MIR PUIG, 2015, pp. 666-667; MATUS ACUÑA, 2005, p. 466; BACIGALUPO, 1999, p. 574; WELZEL,
1956, p. 229; CRUZ, 2014, p. 798; HORTA, 2007, pp. 34 e 152. 545 CRUZ, 2014, p. 788 e ss. 546 HORTA, 2007, p. 154; WELZEL, 1956, p. 229. 547 TOLEDO, 1994, p. 53. 548 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1351249/RS. Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz. 6ª Turma.
Julgado em 01/06/2017. DJe 09/06/2017. 549 Mencione-se, a propósito, a posição do Superior Tribunal de Justiça no seguinte julgado, reconhecendo
o delito de porte ilegal de arma de fogo (Lei 10.826/03, art. 14) como hipótese de pós-fato coapenado em relação
ao furto (CP, art. 155), em hipótese na qual entre os bens subtraídos em poder do réu se encontrou uma arma de
fogo: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1503548/SC. Rel. Min. Sebastião Reis Júnior. 6ª Turma.
Julgado em 06/08/2015. DJe 26/08/2015. 550 FRAGOSO, 2006, p. 459. 551 RIOS; LAUFER, 2011, p. 167. 552 Essa hipótese foi reconhecida no seguinte julgado: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC
56.097/MG. Rel. Min. Og Fernandes. 6ª Turma. Julgado em 17/11/2009. DJe 07/12/2009.
98
ativa, mas omissiva”553. Em relação aos termos “coapenado” e “impunível”, Rios e Laufer
sustentam ser mais correto o primeiro, tendo em vista que o ato típico acompanhante em sentido
lato não consiste propriamente em uma conduta impune, mas sim, em um comportamento cuja
pena se atrela ao crime da conduta principal554. No mesmo sentido é a doutrina de Palma
Herrera, que sustenta não ser o ato posterior causa de impunidade (em que não se discute a
realização do crime), mas de suficiência da sanção principal para abranger todos os atos
reconhecidamente praticados555. Se bem que a expressão “coapenado” não exprime com
exatidão o aspecto de o tipo acompanhante e sua respectiva pena serem descartados. Sob essa
perspectiva (desconsideração da punição endereçada na norma descartada), fato “impune” faria
mais sentido. A não ser que se entenda possível considerar o ato típico posterior para efeito de
valoração das circunstâncias judiciais, na conjuntura do caso concreto (CP, art. 59) – o que em
princípio não está descartado, cfe. se analisará no próximo capítulo. Nessa hipótese, a
terminologia “coapenado” faz mais sentido.
Quanto ao antefato coapenado, discute-se se são casos adstritos à consunção ou à
subsidiariedade556. Apesar das infindáveis divergências, assume-se, aqui, a posição de que se a
conduta punível antecedente consistir em norma penal protetiva do mesmo bem jurídico, mas
em menor intensidade comparativamente à norma principal, em função da qual serve como
etapa ou passagem necessária, há subsidiariedade tácita557. Até porque, em casos tais,
regularmente o que se tem é uma efetiva unidade de ação punível558, e não ações puníveis
diversas conectadas normativamente vindo a caracterizar uma unidade delitiva complexa. Se,
porém, a conduta antecedente se adscrever à norma penal cujo bem jurídico divirja do tutelado
pela norma dominante, revelando simples relação de meio e fim (não essencial), poderá haver
553 ROXIN, 2014, p. 1013 (tn). 554 RIOS, LAUFER, 2011, p. 164. Em igual sentido: HORTA, 2007, p. 156 (nota 262). 555 HERRERA, 2004, pp. 15-16. 556 Sobre isso, vale conferir as ponderações de Rios e Laufer: “no sistema clássico, via de regra, os atos
prévios são tratados na subsidiariedade e os atos posteriores na consunção. (...) Outros autores aglutinam ambas
as categorias sob o manto exclusivo da consunção, alicerçados no estudo de Honig”. (RIOS, LAUFER, 2011, pp.
164-165). Para Zaffaroni (ZAFFARONI, 2002, p. 870) e Welzel (WELZEL, 1956. p. 229) o antefato coapenado
é hipótese de subsidiariedade. Para Jiménez de Asúa (JIMÉNEZ DE ASÚA, 1958 p. 148), Soler (SOLER, 1992,
p. 221), Muñoz Conde (MUÑOZ CONDE; GARCÍA ARÁN, 2010, p. 473) e Fragoso (FRAGOSO, 2006, p. 458)
é, porém, caso de consunção. Frosali, por sua vez, considera os comportamentos copunidos como hipóteses de
subsidiariedade (FROSALI, Raoul Alberto apud CRUZ, 2014, p. 797). 557 ZAFFARONI, 2002, p. 832 (“Subsidiário é o que substitui ou pode substituir ao principal, de modo que
enquanto o principal está operando, o subsidiário fica relegado ou interferido” – tn). Considerando, portanto, o
raciocínio segundo o qual a tipicidade posterior cancela a anterior, atos anteriores (ou antefatos) coapenados são
subsidiários à norma principal, desde que haja coincidência de bem jurídico tutelado. Neste mesmo sentido:
MATUS ACUÑA, 2005, p. 487. Caso, porém, a conduta antecedente viole norma cujo bem jurídico divirja do
tutelado pela norma principal, sem que constitua uma etapa necessária para a prática desta, só se poderá falar em
consunção (TOLEDO, 1994, pp. 52-54). 558 RIOS; LAUFER, 2011, p. 164.
99
consunção, desde que presentes os pressupostos necessários ao seu reconhecimento – esse seria
o caso, por exemplo, da prática com antecedência temporal de um falsum documental (CP, arts.
297, 298 ou 299) que vem a se exaurir em um estelionato posterior (CP, art, 171), assim
reconhecido pela Súmula 7/STJ já transcrita; a falsidade não é etapa necessária à prática de
estelionato, tampouco tutela o mesmo bem jurídico559.
Há, ainda, quem atribua ao pós-fato coapenado a condição de categoria autônoma,
dissentindo da orientação doutrinária predominante que o inclui na consunção, especialmente
porque ele não se ajusta à orientação hermética segundo a qual o conflito aparente só cabe em
caso de unidade de conduta punível560.
As ideias governantes da absorção dos atos típicos acompanhantes e posteriores pela
norma penal dominante são a de que, no primeiro caso, o desvalor de “uma característica
eventual” da conduta global subsumida ao tipo acompanhante já está compreendido ou é
abarcado materialmente pela norma principal e, no segundo caso, a etapa posterior à
consumação do delito principal, embora possua expressão típica autônoma, não tem outro
objetivo senão o de “esgotar o conteúdo proibitivo ou desvalorante do delito”, ou seja, exaurir
ou aproveitar o crime já consumado561, não dando lugar a uma conduta punível autônoma562.
Neste último caso, o sujeito ativo, como regra geral, também deve cometer o fato posterior para
desfrutar das vantagens derivados do fato principal563. No raciocínio de Roxin, o
aproveitamento do ato delitivo prévio é um comportamento “tipicamente vinculado com ele e,
portanto, não requer punição própria”564. Nas palavras de Soler, a ação típica acompanhante
será absorvida quando traduzir “aquilo que geralmente acontece” relativamente à figura
principal, nesta estando prevista explicita ou implicitamente565.
Em qualquer caso, não se justifica a punição autônoma porque o conteúdo de desvalor
do fato global está totalmente abarcado pela norma principal ou consumptiva, de modo que o
ato típico acompanhante em sentido amplo, embora formalmente típico e com identidade
própria de desvalor, no caso concreto perde essa autonomia pela relação de dependência
empírica com a conduta principal. Nas palavras de Palma Herrera:
559 CRUZ, 2014, p. 805. 560 Nesse sentido: STRATENWERTH, 2005, p. 545; BRUNO, 1967, p. 263. Vide ainda as observações de
Roxin (ROXIN, 2014, p. 1014) e de Bacigalupo (BACIGALUPO, 1999, p. 574). 561 TOLEDO, 1994, p. 54. 562 ZAFFARONI, 2002, p. 869. 563 JESCHECK; WEIGEND, 2002, p. 793. 564 ROXIN, 2014, p. 1014. 565 SOLER, 1992, pp. 221-222 (tn).
100
Respondendo à natureza do concurso de normas, a causa explicativa de que o ato
copunido não se castigue de maneira autônoma, senão através da pena prevista pelo
legislador para o fato principal, está em que o seu conteúdo desvalorativo é captado
pelo preceito que resulta aplicável ao fato principal. Por isso, podemos definir no teor
literal de um preceito distinto a aquele no qual é o fato principal, ao que precede ou
segue, é, sem embargo, captado integralmente em seu desvalor pelo último preceito.566
Segue então que não se cogitará de absorção, caso o desvalor do ato típico
acompanhante em sentido lato extravase ou transcenda o sentido material da norma principal567;
vale dizer, “transborde o necessário para cometer o delito ou assegurar o fim delitivo”568 ou
ainda, como enuncia a jurisprudência iterativa, não esgote no crime principal sua potencialidade
lesiva569.
Especificamente no caso do pós-fato coapenado, a consunção também será em princípio
afastada se a conduta subsequente consubstanciar uma lesão autônoma com objetividade
jurídica distinta (dano a um novo bem jurídico), reveladora de um incremento de desvalor do
crime já consumado570 ou, na formulação de Horta, quando a conduta posterior “importar em
incremento quantitativo ou qualitativo da ofensa reprimida pela norma prevalente e não puder
ser tida como uma decorrência normal e corriqueira” (aumento do dano do crime principal,
portanto)571.
Não obstante, é oportuna a advertência de Palma Herrera de que não é absoluto esse
critério de “incremento da ofensa”:
Tenha-se em conta que, quando falamos em 'fato posterior' nos movemos, em todo
caso, no terreno de comportamentos que resultam subsumíveis em um tipo delitivo, é
dizer, que dos mesmos se infere necessariamente um conteúdo desvalorativo, devendo
ser tomados como lesivos ou, quando menos, perigosos para um bem jurídico. Por
essa razão, pela própria definição, é impossível que esse fato posterior resulte neutro,
desde a perspectiva do bem jurídico afetado pelo fato principal; é impossível que não
promova um incremento do dano já ocasionado. Para que isto fosse assim teria que se
tratar de um comportamento alheio ao Direito Penal, é dizer, que nem sequer houvesse
sido previsto pelo legislador e reconhecido em um tipo delitivo, algo que, como
dissemos, escapa ao que é ato copunido572.
Realmente, em se tratando de um ato posterior previsto como crime, nunca haverá
neutralidade ofensiva. Por isso, nem todo incremento ofensivo pode cancelar o reconhecimento
566 HERRERA, 2004, p. 137. 567 JESCHECK; WEIGEND, 2002, p. 794; SOLER, 1992, pp. 222; BITENCOURT, 2014, p. 259. 568 GARCÍA CAVERO, 2014, p. 712 (tn). 569 TOLEDO, 1994, p. 53. 570 JESCHECK; WEIGEND, 2002, p. 793; ROXIN, 2014, p. 1014; MIR PUIG, 2015, p. 667; WELZEL,
1956, p. 230; STRATENWERTH, 2005, p. 545. 571 HORTA, 2007, p. 157. 572 HERRERA, 2004, p. 145.
101
da consunção na forma de pós-fato copunível. Flavio Cruz pontua que a esse óbice não se deve
atribuir rigor absoluto573. Observe-se que a jurisprudência do STJ reconhece, por exemplo, a
possibilidade de uma falsidade ideológica (CP, art. 299) cometida para assegurar a prática de
um crime de sonegação fiscal (Lei 8.137/90, art. 1º) ser absorvida por este, priorizando,
portanto, mais o sentido acompanhante ou o caráter assessório do ato típico posterior em relação
à norma principal (que nela esgota seu sentido material), do que a circunstância de haver uma
lesão autônoma a um bem jurídico distinto. Estima-se, aliás, que essa orientação faz mais justiça
ao princípio da isonomia, pois não haveria razão para se admitir a consunção num caso em que
o delito de falso tenha sido o meio regular para a prática da sonegação fiscal e, ao mesmo tempo,
negar-se a absorção material em outro caso em que o falsum tenha se prestado exclusivamente
a assegurar a prática da supressão tributária: em ambos os exemplos o ato típico acompanhante
em sentido lato representou uma lesão a um bem jurídico diverso, razão pela qual este não seria
um argumento suficiente para afastar a consunção na segunda hipótese. Confira-se, a propósito,
este julgado:
1. Segundo pacífico entendimento desta Corte, a contrafação ou uso do falsum quando
utilizados para facilitar ou encobrir falsa declaração, com vistas à efetivação do crime
de sonegação fiscal, é por este absorvido, ainda que sua apresentação à autoridade
fazendária seja posterior, pela aplicação do princípio da consunção.
2. Agravo Regimental improvido.574
Considerando que a consunção se apoia na premissa de que a magnitude do crime meio
se exaure ou é assimilada pelo conteúdo de injusto do crime fim, é preciso investigar, então,
com base em quais categorias será possível realizar esse exame. Vale dizer, sondar as possíveis
ferramentas dogmáticas pelas quais se poderá considerar que a carga de injusto de um crime
está contida em outro, segundo o conteúdo material do caso concreto.
4.1.2 Desvalor da ação e desvalor do resultado: critérios de aplicação da consunção
Seria enfadonho abordar neste tópico os conceitos de desvalor de ação e desvalor de
resultado desde sua concepção, evolução histórica e conformação atual segundo as mais
diversas abordagens teóricas. A análise desses conceitos está adstrita, aqui, à sua funcionalidade
573 CRUZ, 2014, p. 805. 574 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1360309/SE. Rel. Min. Nefi Cordeiro. 6ª Turma.
Julgado em 05/02/2015. DJe 20/02/2015. Consigne-se, porém, que há entendimento contrário: BRASIL. Superior
Tribunal de Justiça. HC 99244/RJ. Rel. Min. Felix Fischer. 5ª Turma. Julgado em 17/06/2008. DJe 18/08/2008.
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com o critério da consunção, enquanto elementos de sistematização da operação hermenêutica
pela qual se considera a magnitude do injusto de uma norma penal exaurida em outra575.
Sumariamente, por desvalor da ação se entende a conduta do sujeito contrária à norma, a
deliberada contradição com o comando legal (criação de um risco não permitido a um bem
jurídico) – mas que não se restringe a isso; o desvalor é fruto também do sentido negativo em
si mesmo da conduta (atentar contra a vida de outrem não é um erro apenas porque uma norma
jurídica assim dispõe). O desvalor do resultado (ou antijuridicidade material, para quem o aloca
na categoria antijuridicidade576), de sua parte, corresponde à vulneração, ao grau de ofensa ao
bem jurídico tutelado penalmente, e corresponde à perspectiva material do injusto penal.
Silva Sánchez consigna que majoritariamente se compartilha uma “concepção mista (ou
dualista) da antijuridicidade, na qual se somam o desvalor da ação (entendido como desvalor
da intenção) e o desvalor do resultado “(lesão de um bem jurídico)”577. Acrescenta o espanhol
que não se pode prescindir da referência aos bens jurídicos (desvalor do resultado), pois a
proibição de fatos destituídos de lesividade conduziria o direito penal à margem de sua
finalidade protetiva. Tampouco, porém, se poderia olvidar que o mecanismo de proteção de
bens jurídicos é a “motivação, ou seja, o estabelecimento de diretrizes de conduta sob a ameaça
de pena”578 (i.e., o desvalor da ação). Sob essa perspectiva, o injusto penal assume natureza
dual, portanto, congregando aspectos formais e materiais.
Estima-se que ambos os conceitos – com destaque maior para o desvalor do resultado –
podem servir de ferramenta para aclarar ou delimitar a operação hermenêutica mediante a qual
se considera uma das normas penais formalmente aplicáveis como meramente acompanhante
de outra, a partir de um ponto de vista material. Sem embargo, não são os únicos; a eles se deve
acrescentar outros critérios axiológicos, como logo abaixo se verá. Com isso se pretende reduzir
ou pelo menos ancorar minimamente a discricionariedade ínsita à operação valorativa de
reconhecimento da consunção. Não obstante a justificada abstenção do exame pormenorizado
das categorias, vale ao menos uma rápida análise histórica desses conceitos.
Sob o causalismo (sistema clássico), de base ontologicista, era decisivo à configuração
do injusto o desvalor do resultado579; a intenção do autor (dolo ou culpa) era questão a ser
analisada na culpabilidade. O resultado empírico determinado pela prática do crime era o fator
575 CRUZ, 2014, p. 691. 576 BUSTOS RAMÍREZ, Juan J.; MALARÉE, Hernán H. Lecciones de derecho penal. V. II. Madrid:
Trotta, 1999. pp. 31 e 36. Assim também: SILVA SÁNCHEZ, 1992, p. 384. 577 SILVA SÁNCHEZ, 1992, p. 385 (tn). 578 SILVA SÁNCHEZ, 1992, p. 385 (tn). 579 BUSTOS RAMÍREZ, 1999, p. 33.
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decisivo de configuração típica: “[o] tipo é a descrição objetiva de uma modificação no mundo
exterior”580. Na esteira da dogmática de Franz von Liszt, o acento era positivista naturalista e a
episteme empirista581. Por sua vez, os neokantianos (sistema neoclássico) voltaram-se ao
mundo do dever ser (valores) e à metodologia teleológica, afastando-se do cientificismo
naturalista, tendo entre seus expoentes Honig, Radbruch e Mezger582. Sob essa concepção,
mesclaram-se aspectos subjetivos e objetivos ao tipo (embora o dolo ainda fosse tratado na
culpabilidade), que passou a ostentar um conteúdo material (lesividade social)583. Dentre os
legados do neokantismo, destacam-se “a materialização das categorias do delito e a construção
teleológica de conceitos”, revisitadas posteriormente pelas concepções funcionalistas584. A
inclinação ao dever-ser reconfigurou o desvalor do resultado de uma perspectiva naturalista
para normativa – em vez de modificação física no mundo, ofensa a bem jurídico; aliás, o bem
jurídico como elemento essencial do desvalor do resultado vem do neokantismo. Não obstante,
essa abordagem não prosperou em seu tempo, entre outras razões, pelo radical antagonismo
entre realidade e mundo dos valores, o que lhe rendeu a acusação de relativismo valorativo585.
Já com o finalismo de Hans Welzel e o resgate do ontologicismo (neo-ontologicismo),
atribuiu-se importância decisiva ao desvalor da ação com o tipo sendo ancorado integralmente
na dimensão subjetiva (agir final)586. Sob essa concepção, o desvalor do resultado passou a ter
importância reduzida para a caracterização do injusto587: “[o] tipo torna-se a descrição de uma
ação proibida [...]. O ilícito, materialmente, deixa de centrar-se no dano social, ou ao bem
jurídico, para configurar um ilícito pessoal”588. Esse modelo foi o mais difundido na doutrina e
teve grande receptividade em âmbito legislativo (do que é exemplo a reforma penal brasileira
de 1984)589. Porém, a demanda por condicionamentos político-criminais impulsionada pela
crescente normativização do direito penal (neo-neokantismo) determinou a perda de
rendimento do finalismo590. Vicejaram, então, as concepções funcionalistas. Dentre elas,
destacam-se os modelos de Roxin (funcionalismo teleológico-racionalista) e o de Jakobs
580 GRECO, Luís. Introdução à dogmática funcionalista do delito – Em comemoração aos trinta anos de
“Política criminal e sistema jurídico-penal” de Roxin. Revista Brasileira de Ciências Criminais, Vol. 32/2000,
p. 120-163, Out-Dez/2000. p. 123. 581 CRUZ, 2014, p. 337; BUSATO, 2017, pp. 203-207. 582 CRUZ, 2014, p. 338. 583 BUSATO, 2017, pp. 213 e 214. 584 GRECO, 2000, p. 126. 585 GRECO, 2000, p. 127. 586 BUSATO, 2017, pp. 216. 587 BUSTOS RAMÍREZ, 1999, p. 33. 588 GRECO, 2000, pp. 128 e 129. 589 BUSATO, 2017, pp. 219. 590 BUSATO, 2017, pp. 219; GRECO, 2000, p. 129.
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(funcionalismo sistêmico), estruturalmente distintos, mas alinhados quanto à construção do
sistema dogmático conforme os fins do direito penal (funcionalização dos conceitos)591. As
diferenças entre um e outro renderia um capítulo à parte. Consigne-se, apenas, em ousada
síntese, a predileção do sistema de Jakobs com o desvalor de ação – sob a noção de papéis
sociais – e o cuidado do sistema de Roxin de não olvidar o desvalor de resultado, ao reputar útil
a teoria do bem jurídico para o controle de legitimidade da intervenção penal592. O presente
estudo se alinha com o funcionalismo “moderado” de Roxin que, sintetizando categorias
ontológicas e valorativas593, perfilha uma concepção mista de injusto, em cuja essência
convergem o desvalor da ação e o desvalor do resultado594.
Independentemente, porém, do modelo dogmático específico que se acolha, há aceitação
ampla na doutrina das categorias do desvalor de ação e do desvalor do resultado como
elementos do injusto penal595. Sem embargo, não apenas elas devem orientar o reconhecimento
da consunção, como já pontuado. À luz do caso concreto, convém também trabalhar o exame
de absorção material entre tipos com o juízo de proporcionalidade entre a reprovação e a
magnitude do injusto, que perpassa a natureza dos bens jurídicos envolvidos596 e a finalidade
perseguida pelo agente597. Na verdade, a unidade delitiva complexa (unidade de lei) é produto
da conjugação de diferentes critérios valorativos imbricados entre si.
O desvalor da ação diz em boa medida com o dolo, a “realização do plano” perseguido
pelo autor com cujas consequências anuiu598 (ou, então, desde uma perspectiva atributiva, o
compromisso com a vulneração do bem jurídico, à luz da concepção significativa de ação599).
Na dimensão subjetiva, o ato típico acompanhante em sentido lato acaba encontrando sua razão
de ser na prática da infração dominante, à qual se subordina e se mostra dependente600 – o que
não se confunde, porém, com a exigência de que o crime consunto seja logicamente necessário
591 GRECO, 2000, p. 132. 592 ARANA, Raul Pariona. El derecho penal “moderno” sobre la necesaria legitimidad de la intervenciones
penales. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 68, p. 315-371, Set–Out/2007. 593 ABANTO VÁSQUEZ, Manuel A. ¿Normativismo radical o normativismo moderado? Revista Peruana
de Doctrina y Jurisprudencia Penales, n. 5, pp. 17-82, 2004 (pp. 78-79). 594 GRECO, 2000, p. 137. 595 ROXIN, 1997, pp. 319 e ss. 596 RIOS; LAUFER, 2011, p. 158; CRUZ, 2014, pp. 358 e 805. 597 Quanto à importância do exame do dolo, vide: CRUZ, 2014, p. 804. 598 ROXIN, 1997, p. 417. 599 MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, p. 365; BUSATO, 2017, p. 391. 600 CRUZ, 2014, p. 804.
105
à prática do crime consuntivo; basta que simplesmente seja uma forma idônea ou regular à
realização da figura principal601.
Já o desvalor do resultado, atrela-se ao “esgotamento da potencialidade lesiva” (nos
termos da jurisprudência) do ato típico acompanhante na infração dominante e, portanto, diz
com a natureza de vulneração dos bens jurídicos envolvidos. Deve ser possível estabelecer que
a ofensividade do tipo penal consunto tenha se esgotado no consuntivo, ainda que os bens
jurídicos não sejam equivalentes602. Aqui, ganha ainda mais força a premissa de que somente o
caso concreto autorizará o reconhecimento da consunção. A ofensividade de que se trata é a
concreta, não a abstrata com a qual se afere a legitimidade da prescrição penal. Somente a
moldura do caso concreto permitirá a conclusão de que a ofensividade concreta da norma
acompanhante se esgotou na norma dominante, o que justifica adjetivá-las casuisticamente
como tais (i.e., consunta e consuntiva).
Tome-se como exemplo de ausência de relação consuntiva o crime de associação
criminosa (CP, art. 288), que pune o ajuste de mais de 3 pessoas para a prática (indeterminada)
de crimes. Caso comprovada a intenção dos agentes de se associarem de forma estável e
permanente para a prática de diversos estelionatos (CP, art. 171), ainda que, em dado caso
concreto, eles tenham logrado cometer apenas um único estelionato antes de serem descobertos,
não se poderá falar em absorção pela constatação de que tanto o desvalor da ação como do
resultado do crime de associação criminosa transcenderam o conteúdo de injusto daquele único
crime que vieram a cometer. O plus da ofensa está na ameaça da paz pública enquanto pendia
a determinação do grupo de cometer um número indeterminado de crimes. Haverá, nesse caso,
concurso de crimes603.
601 TOLEDO, 1994, pp. 52-54; FRANCO; STOCO, 2007, pp. 388-389; BITENCOURT, 2014, pp. 256-258;
HORTA, 2007, p. 147 et seq.; CARVALHO FILHO, 2009, p. 85 et seq. 602 CRUZ, 2014, p. 805. 603 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 70919. Rel. Min. Sepúlveda Pertence. 1ª Turma. Julgado em
14/12/1993. DJ 29.04.1994: “I. Quadrilha: requisitos de fundamentação da sentença condenatória. 1. O crime de
quadrilha se consuma, em relação aos fundadores, no momento em que aperfeiçoada a convergência de vontades
entre mais de três pessoas, e, quanto aqueles que venham posteriormente a integrar-se ao bando já formado, no
momento da adesão de cada qual; crime formal, nem depende, a formação consumada de quadrilha, da realização
ulterior de qualquer delito compreendido no âmbito de suas projetadas atividades criminosas, nem,
consequentemente, a imputação do crime coletivo a cada um dos participes da organização reclama que se lhe
possa atribuir participação concreta na comissão de algum dos crimes-fim da associação. 2. Segue-se que a
fundamentação da sentença condenatória por quadrilha bastara, a rigor, a afirmação motivada de o denunciado se
ter associado a organização formada de mais de três elementos e destinada a prática ulterior de crimes; não é
necessário, pois, que se demonstre a sua cooperação na prática dos delitos a que se destine a associação, aos quais
se refira a denúncia, a título de evidencias da sua formação anteriormente consumada. II. Quadrilha armada:
caracterização. Incide a causa especial de duplicação da pena, quando a própria inteireza logica da imputação
formulada na denúncia e acolhida na sentença reclama a circunstância de a associação dispor de armamentos, na
medida mesma em que uma das suas atividades-fim seria a eliminação física de intrusos não desejados na
exploração cartelizada da contravenção, a que se dedicavam os seus integrantes.”
106
Sob essa perspectiva, ganha destaque a visão de Matus Acuña, no sentido de que o
princípio da insignificância explicaria a absorção da expressão material de uma norma
incriminadora por outra: a declaração da aptidão consuntiva da norma principal implica
reconhecer que, no caso concreto, a norma acompanhante teria revelado um conteúdo de injusto
insignificante. Nas palavras do autor chileno:
Nestes casos, a aplicação da pena correspondente ao delito de menor intensidade se
justifica, porque ao ser o fato coapenado insignificante em relação ao principal, o
castigo por este parece suficiente para assinalar tanto ao autor como ao resto da
população, a reprovação jurídica de sua conduta, parecendo desproporcionado
castigar, ademais, pelos fatos acompanhantes que, na consideração do caso concreto,
não têm uma significação autônoma. (tn)604
Colhe-se da jurisprudência do STJ este interessante julgado, em que a perspectiva da
insignificância foi explorada em conjunto com a proporcionalidade:
Na espécie, não obstante, à primeira vista, a valoração dos fatos postos em discussão
aponte, em tese, para o possível cometimento, em concurso, dos crimes de tráfico de
drogas e de falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins
terapêuticos ou medicinais, certo é que o fato rendeu a prática de um único crime. Com
efeito, há de se analisar o contexto fático em uma perspectiva axiológica da realidade,
de modo a se admitir serem várias as interpretações possíveis dessa realidade em
confronto com as condutas que venham a ensejar a intervenção penal. Em uma análise
global (conjunta) dos fatos criminosos, um deles se mostra valorativamente
insignificante - embora não insignificante, se isoladamente considerado - diante de
outro (ou de outros), de modo a perder seu significado autônomo. Nesse contexto, não
se mostra plausível sustentar a prática de dois crimes distintos e em concurso material
quando, em um mesmo cenário fático, se observa que a intenção criminosa era dirigida
para uma única finalidade, visto que, no caso em apreço, a conduta criminosa, desde o
início da empreitada, era orientada para, numa sucessão de eventos e sob a fachada de
uma farmácia, falsificar e vender produtos falsificados destinados a fins terapêuticos ou
medicinais. Essa unidade de valor jurídico da situação de fato justifica, no caso
concreto, a aplicação de uma só norma penal. Perfeitamente factível, portanto, a
consunção, aplicável quando a intenção criminosa una é alcançada pelo cometimento
de mais de um crime, devendo o agente, no entanto, ser punido por apenas um delito,
de forma a, também e principalmente, obviar a sobrecarga punitiva, incompatível com
a proporcionalidade da sanção, princípio regente no processo de individualização da
pena.605
A compreensão de que o ato típico acompanhante é insignificante perante a norma
dominante na dinâmica do caso concreto acaba sendo, em última análise, o reconhecimento de
que houve o exaurimento do desvalor da ação e do resultado de uma norma em outra, afinal, o
agente deve ter se orientado à prática do crime principal valendo-se de outro, cuja
604 MATUS ACUÑA, 2005, pp. 466 e 485. 605 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1537773/SC. Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, Rel. p/
acórdão Min. Rogerio Schietti Cruz. Julgado em 16/8/2016. DJe 19/9/2016.
107
potencialidade lesiva deve ter se encerrado no tipo penal eleito suficiente para a reprovação e
prevenção do crime (CP, art. 59).
A maior concreção do desvalor do resultado demandaria, ainda, aprofundamento na
teoria do bem jurídico e das respectivas técnicas de proteção, o que nesta sede, porém, não se
mostra possível606. Não obstante, tenha-se em mente a importantíssima função do bem jurídico
de conectar dogmática penal com política criminal607. A vulneração ao bem jurídico com a
prática da infração pode funcionar como um filtro valorativo que impede a censura penal sob a
insígnia do concurso próprio apenas com base na verificação da subsunção formal à norma
penal608. O exame da relação material entre os tipos e, portanto, do conteúdo de desvalor que
compartilham na dinâmica do caso concreto permite que se analise funcionalmente as ofensas
perpetradas e se reconheça a absorção valorativa de uma norma por outra, não obstante a
constatação da múltipla transgressão formal. Se se parte da premissa de que compete ao direito
penal a “proteção subsidiária de bens jurídicos”609, para o que a pena cumpre determinados
fins610, não parece haver óbice ao juízo axiológico pelo qual se declara casuisticamente o
desvalor de uma norma contido em outra, conforme a ofensividade revelada no caso concreto.
Afinal, como pontuado, os injustos penais estão impregnados de atributos valorativos,
axiológicos, o que demanda análise sobre a afetação do bem jurídico que tutelam (designada
antijuridicidade material)611.
Por fim, o princípio da proporcionalidade, em sua formulação tradicional, pode
complementar a operação hermenêutica como um referencial para a sintetização ou
entrelaçamento dos demais critérios axiológicos. Nas palavras de Flavio Cruz:
O postulado da proporcionalidade fornece uma perspectiva interessante para se aferir
a racionalidade de determinadas tipificações penais. Em princípio, ele permite aferir
se o grau de privação de liberdade, imposto ao agente, é razoável/adequado, frente ao
grau de efetiva proteção ao bem jurídico das potenciais vítimas, pretensamente
asseguradas mediante incriminação.612
606 Para um estudo mais aprofundado da teoria do bem jurídico: CRUZ, 2014, pp. 331 e ss. 607 CRUZ, 2014, p. 334. 608 CRUZ, 2014, p. 805. 609 ROXIN, 1997, p. 51. Ou, como prefere Silva Sánchez, a “proteção de determinados bens jurídicos através
de uma estratégico preventiva que passa por dirigir imperativos de conduta aos cidadãos que os motivem
mediamente a ameaça de pena a realizar condutas conforme a tais imperativos” (tn). (SILVA SÁNCHEZ, 1992,
p. 385). 610 GRECO, 2000, p. 132. 611 CRUZ, 2014, pp. 351 e 354. 612 CRUZ, 2014, p. 328.
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Com efeito, em se aferindo a dependência axiológica de um crime em relação a outro,
ou, dito de modo inverso, caso não se constate a transcendência da magnitude do injusto
(desvalor) do ato típico acompanhante frente à norma principal, o princípio da
proporcionalidade e a regra do non bis in idem determinarão o reconhecimento da unidade
delitiva complexa. Nesse caso, não se poderá cogitar do tot poena quot delicta, ou seja, do
dogma da vedação à punição insuficiente613. Não seria possível justificar político-
criminalmente a punição autônoma prevista na norma penal acompanhante caso se possa
considerá-la materialmente contida na norma principal. Nessa hipótese, seria indisfarçável a
desproporção da punição, notadamente caso se parta da perspectiva funcionalista de direito
penal de Roxin. Ora, se o conteúdo material de um injusto estiver assinalado em outro, só
sobrará a violação pura da proibição ou do mandado plasmados na norma (exclusivo desvalor
de ação), que não pode legitimar o castigo penal614.
Não se ignora que a pretensão de sistematização da consunção exigiria também
abordagem quanto às técnicas de proteção ao bem jurídico (lesão e perigo abstrato,
especialmente) e como elas se relacionariam entre si axiologicamente (ou seja, se haveria
alguma metodologia para se antever relações consuntivas). No entanto, reconhece-se esse
âmbito de discussão como um dos limites da presente investigação – o que sugere
aprofundamento em um eventual estudo posterior. Reconheça-se, contudo, a relevância dessa
abordagem para a proposta de sistematizar a consunção, já que, à vista da vocação preventiva
do direito penal econômico e da recorrente antecipação de tutela que o caracteriza, o concurso
de normas entre normas de lesão e de perigo tende a ser ainda mais frequente.
Em conclusão, registre-se que não se pretende dar uma resposta definitiva ao desafio
hermenêutico em questão. A pretensão deste estudo é de se efetuar uma análise inicial e
provisória de critérios julgados pertinentes, sujeita, naturalmente, a questionamento e
aprofundamento, até porque, se há algo unânime nesse âmbito dogmático é a divergência.
Reconheça-se, também, que o amadurecimento de critérios ainda assim não impede a utilização
de expedientes retóricos para se afastar a consunção em casos nos quais ela poderia ser
reconhecida. Em se tratando de um juízo eminentemente valorativo, há uma insuperável
margem de discricionariedade615. Assim, a sondagem de marcos hermenêuticos pode permitir
algum controle da atividade judicial, mas não o controle pleno. Afinal, sempre se poderá afirmar
(retoricamente) que o conteúdo de injusto de um dos crimes transcendeu o de outro, em vista
613 CRUZ, 2014, p. 801. 614 BUSTOS RAMÍREZ, 1999, p. 36. 615 Como pontua Flavio Cruz, nesse âmbito nada é matemático: CRUZ, 2014, p. 805.
109
das particularidades da norma penal sob análise; o direito admite sofismas. Ilustrativamente,
tome-se o exemplo da falsidade ideológica orientada ao estelionato, exemplo clássico de
consunção (Súmula 17/STJ): não seria difícil justificar a punição autônoma do falsum a partir
de alguma peculiaridade de sua ratio legis, a despeito da presença dos requisitos para a operação
de absorção material. Ou seja, com algum esforço retórico, a consunção poderia afastada em
todo e qualquer caso, à vista de sua natureza axiológica e parcialmente discricionária. Nem por
isso, contudo, deve-se abdicar do esforço de sistematização.
110
5 CASUÍSTICA: A JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Neste tópico se pretende ilustrar a consunção com algumas hipóteses frequentes de
conflito aparente no âmbito do direito penal econômico. Há inúmeras discussões dessa natureza
nos tribunais, não sendo possível, tampouco pertinente esgotar os exemplos616. Os casos abaixo,
extraídos da inteligência jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça, têm caráter
meramente exemplificativo e foram escolhidos porque permitem explorar em boa medida os
critérios indicados no capítulo precedente. Esse é um âmbito realmente controverso e
espinhoso, o que desencoraja a pretensão de oferta de respostas definitivas. Para os fins desta
pesquisa, supõe-se suficiente a exposição dos problemas com a indicação dos caminhos
possíveis, bem assim de seus eventuais obstáculos.
5.1 Sonegação fiscal e falsidade ideológica
No âmbito do DPE, a hipótese mais comum de conflito aparente de normas ocorre entre
o crime do art. 1º, da Lei 8.137/90 (sonegação fiscal) e o crime do art. 299, do CP (falsidade
ideológica)617. O crime tributário é cravejado de elementos típicos-normativos como:
“declaração falsa”, “fraudar a fiscalização”, “falsificar ou alterar”, “utilizar documento que
saiba ou deva saber ser falso ou inexato”618. De fato, uma das maneiras mais comuns de se
suprimir tributo é falsificando um documento fiscal, o que explica a insistente menção do
legislador a esse modus operandi. Como o crime tributário remete a outro comportamento típico
(falsum)619, o questionamento sobre a ocorrência de concurso próprio ou impróprio torna-se
inevitável. Embora até seja razoável sustentar a especialidade do delito da lei de crimes contra
a ordem tributária perante o de falsidade ideológica com base nas elementares-típicas indicadas
acima, a consunção tem sido o critério preferencial da jurisprudência, mediante o exame da
relação axiológica/valorativa entre os injustos620. Essa é a hipótese que conta com maior número
de precedentes no STJ, dos quais se destacam estes:
616 Cf. Carvalho Filho, “exemplos poderiam ser multiplicados à exaustão, se convocássemos para nosso
estudo os milhares de julgamentos judiciais que consagram o cânon do conflito aparente de lei” (CARVALHO
FILHO, 2009, p. 109). 617 Essa afirmação leva em conta a frequência de casos semelhantes na jurisprudência do STJ. 618 MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, p. 244. 619 RIOS; LAUFER, 2011, p. 172. 620 Se bem que os especiais fins de agir presentes no tipo de injusto do Código Penal são mais amplos que
o do crime da Lei 8.137/90: “com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato
111
[...] A jurisprudência desta Corte Superior orienta-se no sentido de que o crime de
falso, quando cometido única e exclusivamente para consumar a sonegação de
tributos, é absorvido por este último delito, em observância ao princípio da consunção.
[...].621
[...] A jurisprudência deste Sodalício consolidou-se no sentido de que os crimes de
falso praticados com o fim próprio de suprimir ou reduzir tributos restam absorvidos
pelo de sonegação fiscal, na medida em que a potencialidade lesiva daqueles se exaure
no injusto fiscal. [...].622
[...] O uso de documento falso pelo recorrido teve como único fim a execução do
crime de sonegação fiscal, e, sendo o meio pelo qual se buscou alcançar a finalidade
de sonegar o imposto de renda, quer não recolhendo nenhum valor, quer pagando a
menor quantia, inexiste, por essa razão, potencialidade lesiva para o cometimento de
outros crimes, o que atrai a incidência do instituto da consunção. [...]623
[...] Conforme o quadro fático delineado no acórdão hostilizado, o crime contra o
Sistema Financeiro Nacional, consistente em prestar informação falsa em operação de
câmbio – crime meio – foi praticado para efetivar o pretendido crime de sonegação
fiscal – crime fim –, localizando-se na mesma linha de desdobramento causal de lesão
ao bem jurídico, integrando, assim, o iter criminis do delito-fim. Restou comprovado
que as ações estavam unidas por um único contexto, isto é, o sistema de
subfaturamento de exportações. 2. Constatado que os Recorridos apresentaram
valores inverídicos às autoridades públicas com o fim único e específico de reduzir a
carga tributária incidente sobre suas exportações, visando, exclusivamente, à
sonegação de tributos, e que a lesividade da conduta não transcendeu o crime fiscal,
incide, na espécie, mutatis mutandis, o comando do Enunciado n.º 17 da Súmula do
Superior Tribunal de Justiça, ad litteram: "Quando o falso se exaure no estelionato,
sem mais potencialidade lesiva, é por este absorvido". 3. No contexto em que o crime
de sonegação fiscal foi praticado, as falsidades documentais não podem ser punidas
de forma autônoma, ainda pela aplicação do princípio da especialidade, tendo em vista
que os incisos do art. 1.º da Lei n.º 8.137/90 as constituíram como elementos
essenciais desse crime complexo. [...]624
Notem-se estas referências: “quando cometido única e exclusivamente para consumar a
sonegação”, “praticado com o fim próprio de suprimir ou reduzir tributos”, “sendo o meio pelo
qual se buscou alcançar a finalidade de sonegar o imposto”, “a potencialidade lesiva daqueles
[crimes de falso] se exaure no injusto fiscal” e “exaurir a potencialidade lesiva”. Os julgados
reproduzidos servem bem à avaliação dos critérios mencionados no tópico anterior e é
principalmente por isso que neste estudo se optou por tratar da hipótese mais clássica de unidade
juridicamente relevante”, o que dificulta a conclusão de que a falsidade ideológica estaria logicamente subordinada
ao crime de supressão fiscal. 621 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp 350.211/PE. Rel. Min. Nefi Cordeiro. 6ª Turma.
Julgado em 17/05/2016. DJe 25/05/2016. 622 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1343464/MG. Rel. Min. Jorge Mussi. 5ª Turma.
Julgado em 07/04/2015. DJe 15/04/2015. 623 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1411730/MG. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze.
5ª Turma. Julgado em 18/03/2014. DJe 26/03/2014. 624 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 908.704/RS. Rel. Min. Laurita Vaz. 5ª Turma. Julgado em
15/10/2009. DJe 09/11/2009.
112
de lei no DPE. As premissas trazidas nos precedentes como condição ao reconhecimento da
consunção evocam especialmente o desvalor da ação e o desvalor do resultado, embora não
estejam assim referidos.
A indicação “como meio para” explicita a razão de ser do ato típico acompanhante e,
portanto, a dependência de sentido mantida com a norma dominante, com o que se depreende
a acessoriedade teleológica entre as normas. Concebe-se, assim, que o desvalor da ação do
injusto acompanhante não pode ser explicado sem referência à norma principal, de modo que o
desvalor da ação de um crime acaba implicando necessariamente, na dinâmica do caso concreto,
no desvalor de ação do outro. Mas somente o desvalor da ação não é suficiente.
A partir da indicação “exaurir a potencialidade lesiva”, constata-se a necessidade de que
também o desvalor do resultado do crime acessório esteja visceralmente atrelado ao da norma
principal, com o detalhe fundamental de que não exprima potencialidade lesiva autônoma, ou
seja, que a ofensa ao bem jurídico se esgote totalmente na norma dominante. Com efeito,
eventual falsidade que permita a prática indeterminada de sonegações não poderia ser
considerada consumida, por revelar desvalor autônomo e potencial danoso independente625; não
se cogitaria, nesse caso, de força atrativa material entre os tipos forte o suficiente para que um
pudesse descartar axiologicamente o outro. Afinal, a ideia mestra da consunção é que o desvalor
de um injusto seja consumido pelo desvalor de outro, ambos plenamente configurados.
Esse caso paradigmático (e tão bem conhecido) de consunção é um interessante ponto
de partida para os demais, na medida em que dele se extraem as diretrizes básicas para a solução
da unidade da lei sob o critério em exame. Essa lógica explica o enunciado da Súmula 17/STJ,
concebido para o tratamento hermenêutico da relação entre o falsum e o estelionato, muito
similar ao exemplo em questão: “Quando o falso se exaure no estelionato, sem mais
potencialidade lesiva, é por este absorvido”626. No estelionato, que é uma fraude orientada à
obtenção de vantagem contra o patrimônio individual, a falsidade pode operar da mesma forma.
A diferença entre os casos, essencialmente, é que a vantagem, no estelionato, não transcende a
dimensão privada, ao passo que na sonegação fiscal agride um bem jurídico coletivo.
Embora tenha se dado preferência, aqui, ao crime econômico do art. 1º, da Lei 8.137/90,
mesmo entendimento se aplica ao crime socioeconômico do art. 337-A, do CP (sonegação de
contribuição previdenciária), que contém as previsões: “omitir de folha de pagamento”, “deixar
625 RIOS; LAUFER, 2011, p. 173. 626 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmulas. Enunciados. Disponível em:
<http://www.stj.jus.br/SCON/sumulas/enunciados.jsp>. Acesso em 6 nov. 2017.
113
de lançar mensalmente”, “omitir, total ou parcialmente”627. Destaque-se, ainda, a correta
admissão da consunção na condição de pós-fato coapenado ou impunível quando o falsum é
utilizado para encobrir o crime tributário, ou seja, para assegurar a prática já ocorrida da
infração principal628:
[...] Segundo pacífico entendimento desta Corte, a contrafação ou uso do falsum
quando utilizados para facilitar ou encobrir falsa declaração, com vistas à efetivação
do crime de sonegação fiscal, é por este absorvido, ainda que sua apresentação à
autoridade fazendária seja posterior, pela aplicação do princípio da consunção. [...]629
[...] A declaração falsa inserida na Declaração de Ajuste Anual do Imposto de Renda
da Pessoa Física nada mais é do que a representação da informação contida no
documento ideologicamente falsificado, do qual se utiliza o agente para obter a
redução ou supressão do referido tributo, circunstância que impede a incidência dos
tipos penais previstos no artigo 299 e 304 do Código Penal, para que não ocorra o
vedado bis in idem. 2. O fato do sujeito passivo da obrigação tributária apresentar o
documento ideologicamente falsificado à autoridade fazendária, quando chamado a
comprovar as declarações prestadas em momento anterior, configura mero
exaurimento da conduta necessária para a configuração do delito de sonegação fiscal,
já que desprovido, neste momento, de qualquer outra potencialidade lesiva que exija
a aplicação autônoma do delito descrito no artigo 304 do Estatuto Repressor. [...]630
Uma vez analisada a relação de consunção, é oportuna uma palavra sobre o exame da
unidade e pluralidade de condutas relativamente ao crime do art. 1º, da Lei 8.137/90. Quando
se abordou a unidade e pluralidade de ações puníveis como questão prévia à distinção entre
concurso próprio e unidade de lei, mencionou-se (item 2.2) a operação hermenêutica pela qual
é possível considerar várias condutas típicas de mesma natureza como um único delito (crime
continuado verdadeiro). Destacou-se a lição de Zaffaroni e Pierangelli de que a figura do art.
71, do CP, é, na verdade, um “falso crime continuado”, pois o dispositivo não estabelece em
quais casos várias condutas típicas semelhantes poderiam ser consideradas uma só (delito
único); apenas prevê um tratamento punitivo mais brando para uma situação especial de
concurso material631.
Esse tratamento mais brando da lei brasileira para o que na verdade é um concurso
material atenuado (quando os crimes subsequentes, de mesma espécie, podem ser tidos como
627 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp 386.863/MG. Rel. Min. Sebastião Reis Júnior.
6ª Turma. Julgado em 06/08/2015. DJe 26/08/2015. 628 RIOS; LAUFER, 2011, p. 175. 629 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1360309/SE. Rel. Min. Nefi Cordeiro. 6ª Turma.
Julgado em 05/02/2015. DJe 20/02/2015. 630 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1347646/MG. Rel. Min. Jorge Mussi. 5ª Turma.
Julgado em 05/02/2013. DJe 15/02/2013. 631 ZAFFARONI; PIERANGELI, 2007, p. 625.
114
continuação do primeiro pelas semelhantes condições de tempo, lugar e maneira de execução)
não se confunde com a análise mediante a qual se considera um único delito a prática reiterada
de condutas semelhantes, todas ajustadas formalmente à mesma redação típica. Sob essa
operação, chega-se à valoração jurídica única de uma série de ações típicas semelhantes
conectadas temporal e espacialmente de forma estreita, reveladoras de um significado social
igualmente único632.
O crime do art. 1º, da Lei 8.137/90, possui um bem jurídico imediato (considerando-se,
aqui, a formulação teórica de Martínez-Buján, para quem o injusto em questão apresenta um
bem jurídico mediato, consubstanciado no correto funcionamento da ordem econômica-
tributária, e outro imediato, com função representativa, retratado no patrimônio do Erário633)
cuja lesão demanda geralmente a prática de mais de um ato típico semelhante pelo agente; esse
crime pressupõe um determinado montante de imposto suprimido a que se chega eventualmente
mediante a prática de mais de uma ação típica, devidamente apurado em procedimento
administrativo específico – aqui, a unidade de ação normativa em sentido amplo não se
depreende da redação do tipo, mas de uma valoração conjunto dos atos individuais634. Tal como
o clássico exemplo de crime continuado verdadeiro635 (o furto cometido repetidas vezes pela
empregada doméstica contra a mesma vítima, cujo saldo final é a subtração do valor total y
composto de x + x + x...), o crime de sonegação fiscal admite a reunião de ações típicas isoladas
semelhantes que, conjuntamente consideradas, podem ser tidas como um só injusto penal –
ainda que de especial gravidade; nesse caso, “existe uma unidade objetiva e/ou subjetiva que
permite considerar os distintos atos, por si sós delitivos e não produzidos em forma de unidade
natural de ação, como parte de um processo continuado unitário. Se fala neste caso de uma
unidade jurídica de ação”636.
É decisivo o fato de que a configuração desse crime somente ocorre com a constituição
definitiva do crédito tributário, nos termos da Súmula vinculante 24/STF: “não se tipifica crime
material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º. incisos I a IV, da lei nº 8.137/90, antes do
lançamento definitivo do tributo”637. Considerando, portanto, que sob uma única inscrição em
632 BACIGALUPO, 1999, pp. 582/583. 633 MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, p. 175. 634 ROXIN, 2014, p. 949. 635 Ou na esteira da compreensão alemã de unidade natural de ação segundo a “normal concepção de vida”:
ROXIN, 2014, p. 950. 636 MIR PUIG, 2015, p. 652 (tn). 637 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmulas Vinculantes. Disponível em:
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaSumulaVinculante. Acesso em 26 fev.
2018.
115
dívida ativa geralmente há um feixe de ações típicas isoladas semelhantes e, o mais importante,
que corre um único prazo prescricional contado desde o lançamento definitivo638, parece não
ser possível identificar concurso de crimes entre ações individuais que admitem reunião sob o
raciocínio do crime continuado verdadeiro para apresentar um só desvalor jurídico-penal639.
Não obstante, a jurisprudência geralmente olvida esse detalhe, e mesmo considerando
apenas um prazo prescricional contado da constituição definitiva do crédito tributário (condição
indispensável à configuração típica), entende haver concurso (em regra o crime continuado –
CP, art. 71) entre as ações isoladas, como se retratassem crimes autônomos. O que se tem,
portanto, é uma inconsistência em termos de aperfeiçoamento do injusto (admitindo-se, aqui,
como dogmaticamente correta a orientação da Súmula vinculante 24/STF): um só prazo
prescricional, mas a aplicação da disciplina de concurso próprio levando em conta a prática de
ações individuais semelhantes e conectadas entre si – não obstante o injusto penal se encontre
no todo, com a consideração global dos fatos640. Portanto, em relação ao crime do art. 1º, da
Lei 8.137/90, é comum a prática de diversas condutas pontuais de sonegação, que não
necessariamente consubstanciam crime continuado, pois a ofensa ao bem jurídico admite
gradação e, portanto, franqueia a conclusão de que as várias condutas típicas isoladas compõem
um todo unitário normativo, representante de um só crime de supressão fiscal.
5.2 Empreendimento causador de dano à unidade de conservação ambiental mediante a conduta
de impedir regeneração de floresta
Outro caso de consunção aparentemente simples (pelo menos em teoria), mas
controvertido na experiência forense, é a relação axiológica entre os crimes ambientais dos arts.
48 e 64, da Lei 9.605/98 (respectivamente, impedir regeneração natural de vegetação e construir
em solo não edificável sem autorização). É o caso do agente que realiza, sem autorização do
órgão competente, obra em solo não edificável assim considerado por seu valor
ambiental/ecológico, impedindo com isso a regeneração da vegetação ali existente. O Superior
Tribunal de Justiça já se pronunciou sobre a possibilidade de absorção material entre esses
crimes (consunção), como se depreende destes julgados:
638 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 1031806 AgR. Rel. Min. Dias Toffoli. 2ª Turma. Julgado em
30/06/2017. DJe 10/08/2017. 639 JESCHECK; WEIGEND, 2002, pp. 767-770. 640 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1533316/RS. Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz. 6ª Turma.
Julgado em 17/05/2016. DJe 24/05/2016.
116
[...] 2. O crime de destruir área de preservação permanente dá-se como meio
necessário da realização do único intento de construir edificação em solo não
edificável, sendo o crime-meio de destruição de vegetação absorvido pelo crime-fim
de edificação proibida. 3. Recurso especial improvido.641
[...] 2. O crime de destruir floresta nativa e vegetação protetora de mangues dá-se
como meio necessário da realização do único intento de construir casa ou outra
edificação em solo não edificável, em razão do que incide a absorção do crime-meio
de destruição de vegetação pelo crime-fim de edificação proibida. 3. Dá-se tipo penal
único de incidência final (art. 64 da Lei n. 9.605/98), já em tese crime uno,
diferenciando-se do concurso formal, onde o crime em tese é duplo, mas
ocasionalmente praticado por ação e desígnio únicos. 4. Recurso especial
improvido.642
Rios e Laufer encampam essa orientação observando que se a situação concreta admitir,
pode-se considerar “englobada” e ser encarada como um pós-fato coapenado a conduta
subsumida ao crime do art. 48 (impedir regeneração) da lei dos crimes ambientais no delito do
art. 64 (construir em solo protegido) da mesma lei, “pois se trata de decorrência axiológica”, ou
“consequência natural e necessária”: ao manter a construção em local não edificável, parece
“lógico” que a vegetação nativa ali existente fique impedida de se recuperar643.
Embora efetivamente se trate de caso de consunção, talvez se possa esmiuçar ainda mais
a relação valorativa entre esses injustos para se concluir pela concorrente interação lógica entre
ambos, analogicamente ao que ocorre nos casos de subsidiariedade tática, sob a noção de
progressão de ataque ao bem jurídico. É que, sem prejuízo da conexão de desvalor material
entre referidas normas penais, há mesmo alguma interferência lógica entre elas, pois quem
empreende sem autorização necessariamente impede a regeneração da vegetação no local
existente. Assim, não se trataria tanto de ato típico acompanhante por conveniência prática
(como no caso da sonegação acompanhada da falsidade), mas de ato típico colateral
logicamente necessário, na medida em que o crime-fim (edificar em local sob restrição) implica
necessariamente no posterior ato coapenado ou copunível de impedir regeneração.
Semelhante raciocínio pode ser transportado para os crimes dos arts. 48 e 63, também
da lei ambiental (respectivamente, impedir regeneração e alterar estrutura de edificação ou de
local protegido sem autorização). Afinal, essa hipótese distingue-se da situação acima apenas
em relação ao verbo “alterar”, em lugar de “promover construção”; vale dizer, um crime é
construir (art. 64) enquanto o outro é alterar local sem permissão (art. 63), não diferindo
641 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1376670/SC. Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz. Rel. p/
Acórdão Min. Nefi Cordeiro. 6ª Turma. Julgado em 16/02/2017. DJe 11/05/2017. 642 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1639723/PR. Rel. Min. Nefi Cordeiro. 6ª Turma. Julgado
em 07/02/2017. DJe 16/02/2017. 643 RIOS; LAUFER, 2011, p. 176.
117
essencialmente. Não obstante, o STJ já negou a relação de consunção entre os crimes do art. 48
e art. 63, da lei ambiental, ao argumento de que o primeiro é delito permanente, o que,
teoricamente, comprometeria o raciocínio do esgotamento da potencialidade lesiva:
[...] 6. As condutas do art. 48 da Lei 9.605/98 (Impedir ou dificultar a regeneração
natural de florestas e demais formas de vegetação) e do art. 63 da mesma Lei (Alterar
o aspecto ou estrutura de edificação ou local especialmente protegido por lei, ato
administrativo ou decisão judicial, em razão de seu valor paisagístico, ecológico,
turístico, artístico, histórico, cultural, religioso, arqueológico, etnográfico ou
monumental, sem autorização da autoridade competente ou em desacordo com a
concedida) são autônomas, não se podendo tratar a primeira delas como crime meio
para a construção ou alteração de edificação. Reforça essa ideia o fato de que o crime
previsto no art. 48 da Lei de Crimes Ambientais é delito permanente, cuja
potencialidade lesiva se protrai no tempo, não se esgotando na construção de
edificação. Precedentes desta Corte. 7. Recurso a que se nega provimento.644
Sem embargo, não se pode desconsiderar que o ato típico principal conduz logicamente
ao ato típico posterior, revelando conexão valorativa necessária (não há como se empreender
em local protegido por motivo ecológico sem ao mesmo tempo bloquear a regeneração natural
da vegetação). Estando imbricados o desvalor de ação e o desvalor de resultado de cada crime,
a absorção de um pelo outro parece um caminho coerente, inclusive por questão de
proporcionalidade.
Há, porém, um relevante argumento contrário ao reconhecimento da consunção em
casos tais. Os bens jurídicos imediatos tutelados pelas normas são distintos, o que pode
eventualmente dificultar a assimilação do desvalor do resultado de uma norma no de outra: no
do art. 48, a flora, ao passo que no do art. 64, o ordenamento urbano e o patrimônio cultural.
Assim sendo, somente seria inequívoco o reconhecimento do pós-fato copunível caso o solo
não edificável seja considerado como tal em razão de seu valor ecológico. Se ele não admitir
intervenção em razão de seu valor artístico, p ex., seria difícil considerar o desvalor do resultado
do crime de edificar sem autorização (art. 64) implicado no de impedir regeneração (art. 48).
Vale dizer, a inequívoca interação de expressão de desvalor dos crimes é mais bem percebida
quando a proibição de edificar se dá por motivo ecológico, com o que a obstrução da
regeneração da vegetação ali existente acaba sendo um consectário lógico: destruiu-se a
vegetação porque se empreendeu, e como se empreendeu, obstruiu-se a vegetação. Há, nesse
caso, conexão material irresistível, mas que deixa de ser evidente quando a obra corrompe,
p.ex., o valor histórico ou religioso do local e ainda por cima agride a flora. Lembre-se que a
644 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RMS 49.909/SC. Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca. 5ª
Turma. Julgado em 16/05/2017. DJe 21/06/2017.
118
proteção do solo, nos termos do art. 64, não se dá apenas em razão de seu valor
ambiental/ecológico, mas também por motivo paisagístico, turístico, artístico, histórico,
cultural, religioso, arqueológico, etnográfico ou monumental.
Vale notar, contudo, que a razão de ser da opção pelo concurso próprio, nessa última
hipótese, não seria propriamente a diversidade de bens jurídicos tutelados, mas a dificuldade de
considerar o desvalor do resultado de um crime plenamente absorvido no de outro. Essa linha
de argumentação talvez possa explicar a aparente ausência de consunção entre o crime do art.
55, da Lei 9.605/98, que pune a conduta de extrair recursos minerais sem competente
autorização, no interesse do bem jurídico coletivo meio ambiente, e o delito do art. 2º, caput,
da Lei 8.176/91, que criminaliza a exploração de matéria-prima pertencente à União sem
autorização legal ou em desacordo (usurpação), norma penal orientada à proteção do patrimônio
da União. A não ser que se entenda o patrimônio da União como um bem jurídico macro, no
qual esteja contido o meio ambiente, é difícil conceber que o desvalor do resultado do crime
ambiental possa se exaurir completamente no do delito de usurpação, e não propriamente
porque os bens jurídicos são diversos645, mas porque hierarquicamente é difícil estabelecer qual
deles tem precedência para que, a partir disso, seja possível entender que um dos atos típicos
cumpriu mera função acompanhante relativamente ao outro dominante. Ou seja, é difícil
estabelecer (apesar da pena sensivelmente mais severa do crime da Lei 8.176/91) qual bem
jurídico é o mais relevante para a partir disso identificar a norma penal dominante aplicável.
Não obstante, não se descarta a consunção se, por exemplo, no caso concreto ficar claro
o propósito do agente de usurpar o patrimônio da União ao explorar indevidamente local
passível de liberação ambiental, concluindo-se com isso que a falta de licença ambiental ocorreu
mais por falta de zelo do agente do que pela impossibilidade mesma de ali se extrair matéria-
prima desde uma perspectiva ecológica. Assim, caso se demonstre ser possível a exploração
ambiental da área, conquanto a ausência de permissão concreta, talvez se possa considerar o
desvalor do resultado do crime ambiental insignificante (já que a liberação ambiental era
factível) perante o crime de usurpação de patrimônio da União, mais grave.
5.3 Apropriação de valores de instituição financeira e gestão fraudulenta
645 No sentido de que a diversidade de bens jurídicos impede a consunção neste exemplo: BRASIL. Superior
Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1580693/RS. Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura. 6ª Turma. Julgado em
05/04/2016. DJe 15/04/2016.
119
Possivelmente, a hipótese de consunção em apreço é uma das mais controversas e
problemáticas no âmbito do direito penal econômico. Trata-se da possível relação axiológica
entre os crimes do art. 4º e 5º, da Lei 4.792/86, respectivamente, gerir fraudulentamente
instituição financeira e apropriar-se ou desviar ativos de que o agente tenha posse (esses são
crimes próprios, cujos sujeitos passivos são as pessoas elencadas no art. 25, da mesma lei, não
obstante a eles se sujeitem também particulares que concorram como coautores ou partícipes,
nos termos do art. 30, do CP646). Realmente não há consenso quanto ao tipo de concurso, se
próprio ou impróprio. As soluções são as mais variadas.
Como anotam Rios e Laufer, há quem entenda haver concurso formal ou material entre
tais crimes e há quem compreenda ser o crime do art. 5º especial em relação ao crime do art.
4º647. Também há os que consideram o art. 5º um pós-fato impunível e aplicam a regra
consuntiva para subsistir apenas o delito do art. 4º, assim como há quem entende haver
consunção entre os crimes, só que para declarar o injusto penal do art. 4º absorvido pelo do art.
5º, independentemente de a pena cominada deste ser menor do que a prevista para aquele648.
No Superior Tribunal de Justiça, há precedentes refratários à possibilidade de consunção
entre o crime de gestão fraudulenta e os demais da Lei 7.492/86 (como o de apropriação/desvio
financeiro); outros, porém, a admitem. Como exemplos da primeira corrente:
[...] 4. Quanto aos crimes tipificados nos arts. 4º e 5º da referida lei, é inviável a
aplicação do princípio da consunção, uma vez que os crimes de gestão fraudulenta e
de peculato-apropriação se diferenciam quanto ao tipo objetivo, objeto material e
consumação, atingindo objetos materiais distintos. Precedentes. [...]649
[...] 4. Não há que se falar em consunção entre os crimes de gestão fraudulenta e de
desvio de dinheiro de instituição financeira de que o agente tenha posse, mas, sim, em
concurso formal, no qual um mesmo comportamento acarretou vários resultados,
ofendendo objetos jurídicos diversos. Inviável cogitar-se da incidência dos princípios
da consunção ou especialidade, porquanto incorreram os agentes nas sanções previstas
nos arts. 4º e 5º da Lei nº 7.492, por meio de diversas condutas não vinculadas umas
às outras, sem que haja qualquer relação de instrumentalidade entre elas,
configurando, na hipótese, crimes diferentes. [...]650
646 BITENCOURT, Cezar Roberto; BREDA, Juliano. Crimes contra o Sistema Financeira Nacional &
contra o Mercado de Capitais. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2010. p. 80. Os autores advertem, porém, que o
particular responde desde que tenha consciência da qualidade especial do controlador ou administrador da
instituição financeira, sob pena de caracterizar erro de tipo. 647 Entendendo que os demais crimes da Lei 7.492/86 são especiais em relação ao delito do art. 4º (gestão
fraudulenta): ROSA, 2005, p. 467-472. 648 RIOS; LAUFER, 2011, p. 181. 649 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 351.960/SP. Rel. Min. Sebastião Reis Júnior. 6ª Turma.
Julgado em 20/06/2017. DJe 26/06/2017. 650 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1099342/PR. Rel. Min. Adilson Vieira Macabu. 5ª Turma.
Julgado em 02/06/2011. DJe 02/02/2012.
120
Em comum, ambos os precedentes referem divergências de tutela entre as normas penais
(v.g. credibilidade do sistema financeiro vs. patrimônio dos investidores). São exemplos da
segunda orientação (pela admissão):
[...] Os crimes dos arts. 5.º ("Apropriar-se, quaisquer das pessoas mencionadas no art.
25 desta lei, de dinheiro, título, valor ou qualquer outro bem móvel de que tem a posse,
ou desviá-lo em proveito próprio ou alheio"), 6.º ("Induzir ou manter em erro, sócio,
investidor ou repartição pública competente, relativamente a operação ou situação
financeira, sonegando-lhe informação ou prestando-a falsamente") e 10 ("Fazer
inserir elemento falso ou omitir elemento exigido pela legislação, em demonstrativos
contábeis de instituição financeira, seguradora ou instituição integrante do sistema de
distribuição de títulos de valores mobiliários") podem, eventualmente, ser perpetrados
de forma autônoma e dissociada da conduta delituosa inserta no art. 4.º ("Gerir
fraudulentamente instituição financeira"), todos da Lei n.º 7.492/86.
Não obstante, no caso em apreço, a Corte Regional entendeu que as condutas
capituladas nos arts. 5.º, 6.º e 10 da Lei n.º 7.492/86 estavam todas no mesmo contexto
a partir do qual se concluiu pela existência do crime do art. 4.º da mesma lei (gestão
fraudulenta) e, portanto, este deveria absorver aqueles.
A prática do crime do art. 5.º pode significar, como no caso, um exaurimento do crime
do art. 4.º, configurando uma ampliação da lesão ao bem jurídico tutelado pela norma,
a autorizar a incidência do princípio da consunção. O mesmo se diga em relação ao
art. 6.º e ao art. 10.
O tipo legal do art. 19 pressupõe a existência de fraude anterior, voltada para a
finalidade de obtenção do financiamento em instituição financeira. Já o tipo inserido
no art. 20 pressupõe a regular obtenção de financiamento, mas com desvio de
finalidade na sua aplicação.
Assim, eventualmente, pode-se admitir a absorção do art. 20 pelo art. 19, como
vislumbrou a Corte Regional, quando, dentro de um mesmo contexto fático, o desvio
de finalidade se apresenta como um exaurimento da conduta delituosa de fraudar a
obtenção do financiamento. Ou seja: mais uma vez se está diante de uma ampliação
da lesão ao bem jurídico tutelado pela norma, a ensejar a incidência da consunção.
[...]651
[...] 6. Consunção do post factum pelo crime anterior mais grave e como resultado
dele - sem ser o único resultado - é idéia, parece-me, mais adequada à interpretação
valorativa. Procedência das razões do primeiro e segundo recorrentes. Lei 7.492/86:
delitos consumptos: art. 5º, caput (desvio/apropriação); e art. 9º (fraude à fiscalização
ou ao investidor); delito consumptivo: art. 4º, caput (gestão fraudulenta). A norma do
artigo 4º, caput, da Lei 7.492/86, não incrimina resultado material, naturalístico, que
porventura venha a ocorrer e que, por lógico, diz respeito à obtenção de alguma
vantagem indevida - patrimonial, ainda que indireta. Se, porém, a vantagem
patrimonial indevida é conseqüência da própria gestão, o resultado material não
demandaria outra classificação de conduta, sendo suficiente para a punição a norma
definidora da gestão fraudulenta. O crime definido no artigo 4º, in casu, absorveu os
delitos de apropriação/desvio e de fraude a investidor. A mesma relação consuntiva
há de ser negada entre a norma do artigo 4º e a do artigo 7º, inciso IV.
7. Recurso parcialmente provido para reconhecimento quanto à absorção dos delitos
de desvio/apropriação (art. 5º, caput) e fraude à fiscalização ou ao investidor (art. 9º)
651 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1290073/ES. Rel. Min. Laurita Vaz. 5ª Turma. Julgado em
13/05/2014. DJe 23/05/2014.
121
pela norma incriminadora da gestão fraudulenta (artigo 4º, caput) e conseqüente
modificação no quantum de pena aplicada a cada um dos Recorrentes. [...]652
Antes de se examinar como eventualmente se dá a interação valorativa entre os injustos,
cabe ressaltar a necessidade de que haja conexão estreita de sentido entre os crimes, o que
permitirá a investigação sobre se o desvalor de um pode se exaurir no de outro. Resgata-se,
aqui, a noção – tantas vezes aqui repetida – de unidade delitiva complexa, pela qual menor
importância têm o número de condutas típicas pontualmente praticadas, frente à conexão de
sentido entre elas e à expressão de desvalor global do fato. Segue daí que se os comportamentos
forem “absolutamente dissonantes e distantes em sua forma de consecução”653, o caminho
inevitável é o reconhecimento do concurso próprio entre os crimes, formal ou material654.
Disso também decorre que sempre é preciso aplicar ao fato a norma penal que melhor
se ajuste a ele. Assim, caso se constate a prática de apropriação ou desvio de recursos
financeiros e nada mais, só se poderá cogitar do crime do art. 5º, ainda que mediante esforço
semântico seja possível argumentar que tais condutas não deixam de ser formas de
comportamento fraudulento e, portanto, passíveis de subsunção no art. 4º655. De fato, até seria
possível considerar o crime de gestão fraudulenta, o mais grave de lei, residual em relação aos
demais em função da abrangência e alcance do seu conteúdo proibitivo – uma espécie de norma
coringa, o que, porém, não afasta o imperativo de subsunção jurídica mais precisa possível
(especialidade). Apenas se não for possível subsumir em algumas das hipóteses mais
específicas de ofensa ao objeto tutelado pela Lei 7.492/86, cogitar-se-ia do tipo aberto de gestão
fraudulenta656. Com a compreensão de que o conceito de fraude do art. 4º tem uma amplitude
maior do que os comportamentos insidiosos pontuais previstos nos demais delitos contra o
sistema financeiro, confira-se o acórdão proferido no HC 285.587/SP do STJ, de cujo voto se
destaca: “o fato de os pacientes haverem sido absolvidos em relação ao crime de emissão de
652 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 575.684/SP. Rel. Min. Hamilton Carvalhido. Rel. p/
Acórdão Min. Paulo Medina. 6ª Turma. Julgado em 04/10/2005. DJ 23/04/2007. 653 RIOS; LAUFER, 2011, p. 180. 654 O STJ já se pronunciou sobre a inexistência de consunção em caso de “condutas bastante diferenciadas,
que comprometeram a liquidez da instituição de forma perigosa aos investidores e causando lesão a um grande
número deles, consumando crimes distintos”. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 946.653/RJ. Rel. Min.
Laurita Vaz. 5ª Turma. Julgado em 02/06/2011. DJe 23/04/2012. 655 TRAUCZYNSKI, Nicole. Gestão fraudulenta e concurso de normas na lei dos crimes contra o
sistema financeiro nacional. Dissertação (mestrado) – Universidade de São Paulo, Faculdade de Direito,
Mestrado em Direito Penal, Criminologia e Medicina Forense. São Paulo, 2014. pp. 76; 84 e 85. 656 RIOS; LAUFER, 2011, p. 189.
122
títulos fraudulentos não significa, a rigor, que não devessem ser condenados por gestão
fraudulenta”657.
Se bem que não se pode deixar de registrar as noções de permanência ou reiteração
ínsitas ao conceito de gestão, que acenam para a razoável exigência de atos de gestão, enquanto
grupo ou reunião de procedimentos. A gestão fraudulenta deve pressupor que o patrimônio de
todos os titulares foi posto em risco ou em desconfiança. Essa forma de compreender esse
injusto tornaria sua aplicação mais limitada, afastando a hipótese de concurso em casos nos
quais sequer se poderia cogitar de sua incidência por falta de preenchimento do tipo objetivo.
Não seria, nesse caso, uma norma coringa, mais um tipo especialmente grave para os casos de
desfaçatez no exercício da administração da instituição financeira. Porém, em prol de um
desafio maior no tratamento hermenêutico dos casos envolvendo a prática desse crime, há a
orientação jurisprudencial dominante no sentido de que se trata de um “crime habitual
impróprio, bastando uma única ação para que se configure”658. E em sendo possível sua
incidência mediante a prática de um único ato de gestão, está pavimentado o caminho da
discussão sobre sua aplicação concorrente com outros tipos que genuinamente se configuram
com a prática de um único ato.
A consunção pressupõe incurso formal e literal simultâneo nas duas normas em conflito,
etapa posterior à conclusão de que não é mesmo possível a incidência abstrata de apenas uma,
ante a impossibilidade de contemplar plenamente todas as circunstâncias do fato. O bem
jurídico supraindividual tutelado pelos crimes previstos na Lei 7.492/86 é prioritariamente a
higidez do sistema financeiro nacional contra atos que, “de maneira espúria ou irresponsável,
incrementem sobremaneira o risco inerente ao próprio sistema financeiro, destituindo-lhe de
parcela da confiança do mercado”659. Apenas “secundariamente” protegem-se outros bens
jurídicos, como “o patrimônio da própria instituição financeira ou dos seus investidores”660.
Nas palavras de Paulo Cezar da Silva, em comentários ao tipo de injusto do art. 4º, por
meio da tutela penal pretende-se cuidar “para que as operações atribuídas às instituições
financeiras ou a entes assemelhados se realizem de forma regular e honesta, zelando pela
657 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 285.587/SP. Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz. 6ª Turma.
Julgado em 15/03/2016. DJe 28/03/2016. 658 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 284.546/SP. Rel. Min. Jorge Mussi. 5ª Turma. Julgado em
01/03/2016. DJe 08/03/2016. 659 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 285.587/SP. Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz. 6ª Turma.
Julgado em 15/03/2016. DJe 28/03/2016. 660 BITENCOURT; BREDA, 2010, p. 79.
123
estabilidade e credibilidade de Sistema Financeiro Nacional”661. Compreensão similar é a de
Tortima, ao anotar que “em primeiro plano”, tutela-se “a estabilidade e higidez do Sistema
Financeiro Nacional, indispensável à eficiente execução da política econômica do governo.
Secundariamente, protegem-se (...) os investidores e o próprio mercado financeiro”662. Não
obstante, tomando-se como marco teórico a teoria do bem jurídico na concepção de Martínez-
Buján, a estabilidade ou higidez do sistema financeiro seria mesmo o bem jurídico mediato,
enquanto o patrimônio ou direitos correlatos dos correntistas corresponderiam a bens jurídicos
imediatos com função representativa.
A doutrina em geral enxerga no delito do art. 5º a proteção primeira da credibilidade do
Sistema Financeiro Nacional, apesar de algumas divergências, como a de Bitencourt e Breda,
para quem a tutela prioritária desse crime “á a inviolabilidade patrimonial da própria instituição
financeira, dos investidores, em particular, e da coletividade, em geral”663. Seja como for, é
inegável que a ratio legis do crime de apropriação indébita financeira corresponde à higidez
desse âmbito organização social, ainda que o crime tenha como bem jurídico imediato a
proteção do patrimônio de sujeitos determinados: é que a proteção do patrimônio particular não
deixa de ser um instrumento de garantia do funcionamento íntegro e regular do sistema
financeiro.
É importante lembrar, também, a distinção existente entre objeto jurídico e objeto
material do crime (p.ex., no caso da falsidade ideológica, o bem jurídico é a fé pública, enquanto
o objeto da ação é o documento falsificado)664. Nesse caso, deve-se ponderar se o patrimônio
dos investidores é realmente um bem jurídico autônomo ou se não passa do objeto material no
qual se materializa a ofensa ao bem jurídico supraindividual primordial da Lei 7.492/86665. De
qualquer forma, não se identifica divergência significativa entre os propósitos das normas
penais.
Se é certo que eventual divergência entre os bens jurídicos tutelados pelas normas em
conflito não compromete o reconhecimento da consunção, como já salientado666, não menos
correto que a grande semelhança das objetividades jurídicas de cada uma pode pavimentar o
caminho para o reconhecimento da unidade de lei, pois facilita o juízo axiológico pelo qual se
661 SILVA, Paulo Cezar da. Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional. São Paulo: Quartier Latin,
2006. p. 110 662 TORTIMA, José Carlos. Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional (Uma contribuição ao Estudo
da Lei nº 7.492/86). 2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 30. 663 BITENCOURT; BREDA, 2010, p. 80. 664 ROXIN, 1997, p. 62. 665 ROSA, 2005, p. 467-472. 666 RIOS; LAUFER, 2011, p. 185 e TRAUCZYNSKI, 2014, p. 73.
124
reconhece o desvalor da ação e do resultado de uma norma absorvidos (ou esgotados) nos de
outra.
O crime de gestão fraudulenta (art. 4º) é reconhecidamente aberto e genérico, assumindo
papel central na configuração do injusto o elemento normativo fraude (acoplado ao verbo
“gerir”), não se exigindo a ocorrência de resultado material667. É o crime a que se comina pena
mais grave (3 a 12 anos de reclusão), elemento que aumenta a pertinência do princípio da
proporcionalidade na solução do problema hermenêutico668. E é crime de perigo abstrato669 que,
enquanto tal, antecipa consideravelmente a tutela jurídica para punir condutas que “geralmente”
põem em perigo o bem jurídico670, ainda que no caso concreto não se constate a produção de
perigo efetivo (funcionamento regular do sistema financeiro). Nesse delito, o desvalor do
resultado é visto em perspectiva e sua caracterização observa as fronteiras mais etéreas do bem
jurídico supraindividual que se presta a tutelar. Na compreensão de Cerezo Mir, o desvalor do
resultado nos crimes de perigo abstrato está associado à “perturbação das condições de
segurança que são imprescindíveis para um desfruto despreocupado dos bens”, e vem
assinalado nas ações “que geralmente põe em perigo o bem jurídico protegido”671.
Apesar de o crime de gestão fraudulenta exigir um desvalor de resultado cuja
configuração é muito mais normativa do que ontológica (o que franqueia alegações de
vulneração ao bem jurídico mediante puro exercício semântico), isso não significa a
impossibilidade de se considerarem eventuais agressões mais sensíveis (ou menos retóricas) ao
bem jurídico como desdobramentos ordinários da(s) conduta(s) de perigo abstrato praticada(s).
Vale dizer, embora a configuração desse crime se dê com a prática de conduta(s) empiricamente
perigosa(s) ao bem jurídico, isso não compromete sua aptidão de apreender materialmente
eventuais resultados lesivos previstos como crimes autônomos, tornando-os pós-fatos
667 TRAUCZYNSKI, 2014, p. 75. 668 Mais grave não apenas pelas penas mínima e máxima cominadas, mas pelo intervalo entre elas (3-12),
que aumenta o impacto de cada circunstância judicial na determinação da pena. Com efeito, a culpabilidade
negativa de um crime cuja pena seja de 2 a 8 anos não tem o mesmo peso da culpabilidade atrelada ao qual é
sancionado com pena de 3 a 12. 669 SILVA, 2006, p. 133. O STJ, ao demandar a análise ex post de que a conduta seja apta a produzir o dano,
faz da gestão fraudulenta um crime de perigo concreto: “[...] 5. Cumpre registrar que o delito descrito no art. 4° da
Lei n. 7.492/86 é formal e de perigo concreto, bastando para sua consumação a comprovação da gestão fraudulenta,
independentemente da existência ou não da efetiva lesão ao patrimônio de instituição financeira e prejuízo dos
investidores, poupadores ou assemelhados. Em outras palavras, para a consumação do delito em comento, não é
necessária a verificação de um resultado natural externo à conduta do agente, devendo ser demonstrada a
potencialidade do perigo, mas não a sua ocorrência. [...]”. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp
1133948/RJ. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze. 5ª Turma. Julgado em 10/06/2014. DJe 24/06/2014. 670 CEREZO MIR, 2002, p. 47. 671 CEREZO MIR, 2002, p. 64.
125
coapenados672. Afinal, enquanto delito mais severamente reprimido na Lei 7.492/86, não parece
absurdo sustentar que a técnica de perigo abstrato foi pensada mais para permitir a antecipação
de tutela do que para criar uma figura penal absolutamente indiferente a eventuais resultados
lesivos673. Fosse mesmo essa norma penal totalmente indiferente aos resultados derivados da
gestão fraudulenta, seria, então, difícil negar a ofensa à proporcionalidade ao se comparar seu
apenamento com o de outros tipos de lesão, como o do art. 5º (apropriação indébita
financeira)674 ou o do art. 9º (falsidade ideológica financeira)675. Também no sentido de que o
crime do art. 4º prefere materialmente os demais, Rios e Laufer: “o desvalor da ação atinente à
gestão fraudulenta já englobaria o desvalor de todo e qualquer desvio ou apropriação que venha
a ocorrer no iter do cometimento da gestão fraudulenta”676.
Com posição inversa, Carvalho Filho677, que utiliza como exemplo o crime do art. 17
(operação de crédito à pessoa proibida) e a precedência material deste sobre a gestão
fraudulenta, considerada por ele mero antefato impunível do crime fim de crédito indevido.
Conquanto as posições antagônicas, os resultados lesivos advindos da gestão
fraudulenta podem ser considerados pós-fato coapenados678. Porém, deve existir uma conexão
de sentido muito clara entre as condutas679. Veja-se este julgado do STJ:
[...] 2. Os crimes previstos nos arts. 299 do CP e 22 da Lei nº 7.492/96 restaram
absorvidos pelo delito mais grave e sofisticado, in casu, a administração fraudulenta,
nela amoldando-se as irregularidades perpetradas pelos gerentes e diretores do banco
estadual. Assim, não há falar em condutas autônomas e independentes dos injustos de
falsidade ideológica e evasão de divisas. [...]680
Assim também, o HC 285.587/SP acima reproduzido, em que o Min. Rel. Rogério
Schietti Cruz atestou a possibilidade de que o crime do art. 7º, da Lei 7.492/86 (negociação de
títulos fraudulentos) “integre a cadeia de toda a gestão efetivada de forma fraudulenta, hipótese
esta que poderia eventualmente atrair a incidência do princípio da consunção (o desvalor da
gestão englobaria o desvalor da emissão, do oferecimento ou da negociação)”. No REsp
672 TRAUCZYNSKI, 2014, pp. 74 e 84. 673 TRAUCZYNSKI, 2014, p. 76. 674 BITENCOURT; BREDA, 2010, p. 93; SILVA, 2006, p. 153. Assim também: MAIA, Rodolfo Tigre.
Dos crimes contra o sistema financeiro nacional – anotações à lei federal n. 7.492/86. 1.ed. São Paulo:
Malheiros, 1999. p. 66. 675 BITENCOURT; BREDA, 2010, p. 93; SILVA, 2006, p. 173; MAIA, 1999, p. 88. 676 RIOS; LAUFER, 2011, p. 188. 677 CARVALHO FILHO, 2009, p. 105. 678 RIOS; LAUFER, 2011, p. 187. 679 TRAUCZYNSKI, 2014, p. 85. 680 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1115275/PR. Rel. Min. Adilson Vieira Macabu. 5ª Turma.
Julgado em 13/09/2011. DJe 04/11/2011.
126
575.684 (cuja ementa já se transcreveu), o Rel. Min. Paulo Medina, assentou que: “o
desvio/apropriação ‘não exaure a potencialidade lesiva’ da gestão fraudulenta. O contrário, ou
seja; a consunção do post factum pelo crime anterior mais grave e como resultado dele – sem
ser o resultado único –, é ideia, parece-me, mais adequada à ‘interpretação valorativa’.” E no
REsp 1290073/ES (igualmente já reproduzido), a Min. Rel. Laurita Vaz, consignou: “a prática
do crime do art. 5.º pode significar, como no caso, um exaurimento do crime do art. 4.º,
configurando uma ampliação da lesão ao bem jurídico tutelado pela norma, a autorizar a
incidência do princípio da consunção. O mesmo se diga em relação ao art. 6.º e ao art. 10”.
5.4 Ausência ilegal de licitação e peculato de prefeito
Outra hipótese interessante de conflito aparente no âmbito do direito penal econômico
é a eventual relação consuntiva entre o crime do art. 89 da Lei 8.666/93 e o delito do art. 1º,
inciso I, do Decreto-Lei 201/67. A primeira figura reprime a dispensa ou a inexigibilidade de
licitação fora das hipóteses legais e busca assegurar a lisura e transparência na contratação
pública, cobrando “retidão no processo licitatório para permitir ampla competição observando
a regra da isonomia concorrencial”681. O segundo injusto, por sua vez, censura o gestor
municipal ímprobo, que desvia recursos em proveito próprio ou alheio, tutelando, portanto, “o
patrimônio da Administração Pública Municipal”682.
Sob uma perspectiva em abstrato, a prática de um crime não implica no outro, não se
podendo falar em especialidade ou subsidiariedade, especialmente pela divergência de bens
jurídicos tutelados e ausência de conexão lógica entre os preceitos. Mas é possível que em
determinado caso concreto haja relação de meio e fim entre as infrações penais, dando azo à
discussão sobre o reconhecimento da consunção. Pense-se no caso hipotético em que um
prefeito favorece empresa de um familiar, desobrigando-a de licitação em contrato com valor
superfaturado às expensas dos cofres públicos. Poder-se-ia argumentar que a ausência de
licitação se orientou ao desvio de recursos em favor do contratado.
Ambas as Turmas do Superior Tribunal de Justiça (5ª e 6ª) têm rechaçado a possibilidade
de consunção entre esses injustos penais. Confiram-se os argumentos:
[...] 4. Esta Corte Superior já rechaçou a alegada absorção do crime descrito no art. 89
da Lei n. 8.666/1993 pelo ilícito previsto no art. 1º, I, do Decreto-Lei n. 201/1967,
681 BITENCOURT, 2012, p. 132. 682 BITENCOURT, 2012, p. 117.
127
tendo consignado que não há subsunção entre os crimes em comento, cujos bens
jurídicos tutelados são distintos, não se podendo afirmar que o primeiro seria meio
necessário para o último. [...]683
[...] 1. A alegada absorção do delito de fraude à licitação pelo ilícito previsto no artigo
1º, inciso I, do Decreto-lei 201/1967, além de demandar o estudo aprofundado do
conjunto probatório produzido no feito, já foi rechaçada por esta colenda Quinta
Turma, que consignou que não há subsunção entre os crimes em questão, cujos bens
jurídicos tutelados são distintos, não se podendo afirmar que o primeiro seria meio
necessário para o último. [...]684
3. Ordem denegada.
[...] 1. Não há subsunção dos crimes de fraude em licitação (arts. 90 e 92 da Lei n.º
8.666/93) no de desvio de verba pública (art. 1.º, inciso I, do Decreto-Lei n.º 207/67),
cujos bens jurídicos tutelados são notoriamente distintos, sendo que aqueles não são
meio necessário para este. Na linha do parecer ministerial, "Aquele que, como os
Recorrentes, frustra a competitividade de licitação, e, além disso, apropria-se dos
recursos públicos relativos ao respectivo contrato, comete dois delitos, em concurso
material [CP: art. 69 (caput)]." [...]685
Em que pese a sintonia teórica da atual orientação jurisprudencial do STJ, a diversidade
de bens jurídicos tutelados pelas normas não pode, por si só, obstar a consunção, conforme já
salientado nesta pesquisa686. As objetividades jurídicas distintas, sem referência a critério
adicional que indique a inconveniência de se declarar o desvalor de um crime exaurido em
outro, não pode ser suficiente para se descartar a priori a hipótese de concurso impróprio. Essa
premissa desnatura as ideias fundamentais do critério, consubstanciadas, de um lado, na
interpretação do fato global como uma unidade delitiva complexa a partir da interferência
axiológica irresistível entre os diferentes delitos e, de outro, na sobrecarga punitiva derivada da
aplicação autônoma dos injustos sem exame da interação ou da interconexão material de seus
desvalores concretos.
Tampouco pode ser idônea a referência de que a consunção pressuporia relação de
“meio necessário” entre os crimes. Já se viu que a condição de um injusto pressupor
logicamente outro é o que identifica a especialidade; a consunção se distingue das demais regras
justamente pelo fato de o ato típico descartado poder ser considerado, no mais das vezes, como
“normalmente acompanhante”687 da norma dominante – afinal, o furto não requer
683 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 261.766/BA. Rel. Min. Sebastião Reis Júnior. 6ª Turma.
julgado em 27/02/2018. DJe 08/03/2018. 684 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 275.909/MG. Rel. Min. Jorge Mussi. 5ª Turma. Julgado em
05/05/2015. DJe 14/05/2015. 685 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1293176/PR. Rel. Min. Laurita Vaz. 5ª Turma.
Julgado em 20/02/2014. DJe 07/03/2014. 686 ROXIN, 2014, p. 1012; ALBERO, 1995, p. 390; TOLEDO, 1994, pp. 52-53; CRUZ, 2014, p. 805;
HORTA, 2007, p. 150. 687 MIR PUIG, 2015, p. 666 (tn).
128
necessariamente a invasão de domicílio. Nesse sentido em particular, foi acertada a decisão da
6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no REsp 705.636, julgado em agosto de 2006, quando
considerou a condição de meio do crime licitatório para a prática do peculato pelo gestor
municipal, reconhecendo a consunção: “a ausência de licitação, na verdade, é apenas um dos
atos praticados em uma série, com o objetivo de lesar o patrimônio público, sendo absorvido
pela conduta mais grave, mais abrangente, qual seja o peculato previsto em lei especial”688. Não
surpreende, realmente, que um prefeito possa burlar a lei de licitações objetivando desviar
recursos.
Embora os precedentes do STJ não declarem, a antipatia à consunção parece decorrer
da compreensão de que entre os crimes em análise vige uma autonomia axiológica plena, que
impediria a consideração de um deles como simples ato acompanhante de outro. Ou seja, o que
talvez se queira dizer com a menção às objetividades jurídicas distintas é que o desvalor de um
deles não se exaure no de outro pelo potencial lesivo particular e especialmente grave inerente
à cada norma: num caso, a probidade do chefe do Poder Executivo municipal com impacto na
integridade do patrimônio comum; no outro, o ataque à transparência e à isonomia na disputa
por contratos com o Poder Público, a implicar em favorecimento indevido. Em comum, há o
trato da coisa pública como privada, em prejuízo do interesse público e dos cofres públicos.
Portanto, nas entrelinhas da rejeição à consunção está o reconhecimento de que a potencialidade
lesiva (desvalor do resultado) do crime meio nunca se esgotaria totalmente no crime fim:
haveria interesses maculados com a prática do crime licitatório que não estariam todos
submetidos aos interesses ofendidos com o desvio de recursos por um gestor municipal.
Sem embargo, o exame da consunção pode ganhar alcance renovado caso se levem em
conta as condições que a jurisprudência tem construído para a configuração típica do crime do
art. 89, da Lei 8.666/93. Já está de certa forma consolidado o entendimento de que referido
injusto penal, assim como o do art. 90 (fraude de certame licitatório para obtenção de vantagem
indevida), demanda dolo específico de lesar o Erário (desvalor da ação) e, pelo menos para
alguns, pressupõem ainda prejuízo concreto aos cofres públicos (desvalor do resultado)689.
Trata-se, pontue-se, de uma compreensão moderna, que enxerga um elemento subjetivo diverso
688 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 705.636/PR. Rel. Min. Paulo Medina. 6ª Turma. Julgado
em 22/08/2006. DJ 25/09/2006. 689 “É pacífico hoje na jurisprudência desta Corte Superior e do Supremo Tribunal Federal o entendimento
de que a configuração do crime previsto no art. 89 da Lei n. 8.666/1993 depende da presença do dolo específico
de causar dano ao erário e a caracterização do efetivo prejuízo. Precedentes.” BRASIL. Superior Tribunal de
Justiça. AgRg no AREsp 263.820/DF. Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca. 5ª Turma. Julgado em 08/02/2018.
DJe 21/02/2018.
129
do dolo estranho à previsão típica literal. Essa orientação – sujeita, naturalmente, à
reconsideração – pode facilitar a admissão da consunção. É que esses requisitos de configuração
típica revelam a proeminência conferida à proteção do patrimônio público no âmbito dos crimes
licitatórios, ainda que componham a ratio legis da norma outros interesses, como a lisura do
procedimento, a igualdade de competição entre os participantes e até mesmo o respeito aos
princípios da Administração Pública – a vulneração somente a eles, contudo, não atrai a
previsão típica, cfe. a jurisprudência majoritária. Ao se acentuar a dimensão patrimonial do
crime de dispensa ilegal de licitação, identifica-se uma aproximação empírica com os interesses
tutelados pelo crime de peculato cometido por prefeito (sem, naturalmente, se confundir),
pavimentando o caminho para o reconhecimento casuístico do esgotamento do dano social deste
naquele. Em uma palavra: os atributos de índole patrimonial estipulados para a configuração
típica do crime da lei de licitações acentuam seu pendor pela tutela do patrimônio público (cfe.
a jurisprudência pretoriana, a intenção não é punir criminalmente o “administrador inapto”, mas
o “administrador ímprobo”690), aproximando-o do objeto de proteção do peculato de prefeito e,
pela mesma razão, homogeneizando o desvalor de resultado de cada injusto.
Não obstante, é inegável o especial desvalor de ação daquele que, visando à apropriação
de recursos públicos, fulmina a mecânica normativa para a lisura das contratações pelo poder
público. Isso suscita a questão sobre se convém considerar na dosimetria penal esse modus
operandi mais reprovável – já que consubstancia um crime autônomo com relação lógica de
heterogeneidade relativamente ao principal. Trata-se de uma discussão em aberto. Em
princípio, não se descarta essa hipótese, na esteira da tradição doutrinária alemã691. Assim, por
exemplo, consignava Welzel: “o fato posterior impune não é completamente irrelevante no
sentido do direito penal. Pode ser tomado em consideração na aplicação das penas”692.
Igualmente Jescheck e Weigend: “também na determinação da pena pode ser tida em conta com
efeitos agravatórios a norma descartada pela unidade de lei; isso pode ocorrer na medida em
que não se trata de elementos que pertençam ao tipo da disposição penal aplicável”693. Mesma
posição é a de Roxin: “...o tipo penal descartado foi preenchido – portanto, não é que seja
inexistente –, e isto tem a consequência de que a lei descartada pode contribuir na sanção de
690 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AP 971. Rel. Min. Edson Fachin. 1ª Turma. Julgado em
28/06/2016. DJe 10-10-2016. 691 Entre alguns espanhóis, há resistência quanto ao impacto da norma descartada sobre a pena, cfe. MIR
PUIG, 2015, p. 663 e BACIGALUPO, 1999, p. 571. Pela admissão de presença de efeitos residuais da norma penal
descartada na determinação da pena, vide: POLITOFF L.; MATUS A.; RAMIREZ G., 2004, p. 646. Assim
também: STRATENWERTH, 2005, p. 547. 692 WELZEL, 1956, p. 230 (tn). 693 JESCHECK; WEIGEND, 2002, p. 795 (tn).
130
diferentes maneiras quando o delito preferente, ou bem não pode ser sancionado, ou bem não
possibilita um castigo suficiente”694. Por fim, vale destacar a similar orientação de Matus
Acuña:
Salvo nos casos de especialidade em que se prefere um delito privilegiado, não parece
proibido pela lei, nem incompatível com a preferência dada à uma das normas
concorrentes, estimar as propriedades jurídico-penalmente relevantes da lei
descartada e que não se encontram compreendidas na preferente, como circunstâncias
do fato possíveis de se considerar na concreta determinação da pena, através das regras
previstas nos arts. 65 e ss. (se tais propriedades podem constituir circunstâncias
agravantes não compreendidas no delito preferente), e particularmente na regra do art.
69, quando tais propriedades não podem apreciar-se isoladamente na configuração das
circunstâncias agravantes.695
Destarte, sob as rubricas culpabilidade e circunstâncias específicas do crime (CP, art.
59), p.ex., parece haver espaço para ajustar a pena à especial gravidade do contexto delitivo,
não o suficiente para a admissão do concurso próprio entre as infrações penais, mas bastante
para refletir na pena o potencial lesivo do ato típico acompanhante descartado.
Contudo, isso inaugura a questão sobre em que medida a incorporação do crime
absorvido na dosimetria penal do crime dominante não vulneraria, de certo modo, o non bis in
idem material – lembre-se da distinção já feita neste trabalho entre as dimensões material e
processual dessa regra696. Trata-se, contudo, de discussão em aberto, em relação a qual cabe
avançar dogmaticamente. O que se pode adiantar é que, na perspectiva da insignificância do
ato típico acompanhante vinculado ao desvalor da norma penal dominante, cfe. a doutrina de
Politoff L., Matus A. e Ramirez G.697, ou ainda na perspectiva da consunção justificada pelo
imperativo da proporcionalidade, cfe. Schmidt698, as dificuldades seriam menores do que na
compreensão segundo a qual o fundamento da consunção é o non bis in idem. Vale dizer, se a
razão de ser da consunção repousa na proibição de se punir em duplicidade pela mesma
justificativa material (identidade de fundamento), o aumento de pena por um aspecto que o
crime prevalente cuidou de absorver poderia significar repetição de reprovação, afinal, a
694 ROXIN, 2014, p. 1017 (tn). 695 MATUS ACUÑA, Jean Pierre. La teoría del concurso aparente de leyes penales y el “resurgimiento” de
la ley en principio desplazada. Revista de Derecho-Facultad de Ciencias Jurídicas-Universidad Católica del
Norte, n. 9, 2002. pp. 27-68 (p. 61 - tn). 696 Como já destacado no item 3.1 do capítulo 3, o non bis in idem na perspectiva material consiste em
identidade de sujeito, fato e fundamento. Em complemento ao exposto anteriormente, confiram-se as
considerações de Schmidt, que examina a qualidade material da sanção no âmbito da identidade de fundamento
para efeito de identificação de bis in idem. SCHMIDT, Andrei Zenkner. Direito penal econômico: parte geral.
Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2015. pp. 264-275. 697 POLITOFF L.; MATUS A.; RAMIREZ G., 2004, pp. 457-458. Assim também: MATUS ACUÑA, 2005,
p. 485. 698 SCHMIDT, 2001, p. 79.
131
consunção requer que o desvalor do injusto penal acompanhante tenha se exaurido no
dominante, homogeneizando-se/condensando-se. Mas se o fundamento da consunção é
deslocado para a proporcionalidade ou para a insignificância da norma penal acompanhante, o
desvalor do crime consunto, embora absorvido pelo consumidor, pode reverberar na fixação da
pena da norma penal dominante, porque seu reconhecimento não significa o amálgama do
conteúdo de desvalor dos injustos, mas uma simples correção de excesso no contexto da
unidade delitiva complexa. Até porque, não parece coerente atribuir a mesma carga de
reprovação a um crime que se comete acompanhado de outro, daquele cometido sem esse modal
de realização.
Sem prejuízo da possibilidade de o tipo penal descartado impactar na determinação da
pena da norma penal prevalente, registre-se, em complemento, outra hipótese comum de
concurso impróprio em se tratando dos dois diplomas em análise: trata-se de eventual conflito
entre o peculato de prefeito e o crime de fraude ao caráter competitivo de licitação para obtenção
de vantagem (Lei 8.666/93, art. 90). Como anota Bitencourt, nesse caso o critério de resolução,
porém, não seria propriamente a consunção, mas sim, a especialidade699. A posição é coerente.
Embora os bens jurídicos não se confundam (lisura dos procedimentos licitatórios, de
um lado, e patrimônio da Administração Pública, de outro), o elemento normativo “vantagem”
da infração penal licitatória não esconde seu pendor à proteção do patrimônio público. Referida
expressão engloba as noções de bens e rendas, previstas no peculato de prefeito. Nas palavras
de Bitencourt, “o art. 90, caput, in fine, como exposto, traz a mesma proibição de o agente,
mediante algum expediente, se beneficiar economicamente da coisa pública, seja a vantagem
para si ou para outrem”700. Sob o conceito de que a norma especial reúne todos os elementos da
geral, acrescidos de mais alguns, denominados especializantes, é possível considerar realmente
o crime da Lei 8.666/93 como de caráter especial, cuja relação se resolve em abstrato com o
confronto conceitual dos crimes: o art. 90 é, em suma, uma especial formal de o gestor
municipal se apropriar de “bens ou rendas públicas”701. Também no sentido de que os prefeitos
municipais se sujeitam à Lei 8.666/93, no âmbito das práticas licitatórias, a doutrina de Marcelo
Leonardo702.
699 BITENCOURT, 2012, p. 117. 700 BITENCOURT, 2012, p. 123. 701 BITENCOURT, 2012, pp. 119-120. 702 LEONARDO, Marcelo. Crimes de responsabilidade fiscal: crimes contra as finanças públicas; crimes
nas licitações; crimes de responsabilidade de prefeitos. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 78.
132
Por fim, e sem prejuízo da identificação de outras hipóteses de conflito aparente de
normas entre os diplomas, refira-se a antinomia existente entre a figura penal do inciso XI, do
art. 1º, do primeiro diploma, que reprime a aquisição de bens e a realização de serviços e obras
em desobediência à lei (contratação sem licitação fora das hipóteses legais) e o injusto do art.
89, da lei de licitações, que trata da dispensa e inexigibilidade ilegais. Reconhecendo a
impossibilidade de vigência simultânea entre os injustos, porquanto equivalentes, o Superior
Tribunal de Justiça pacificou o entendimento de que o crime de lei de licitações, por ser mais
recente (critério cronológico), revogou a conflitante previsão do Decreto-Lei 201/67703.
5.5 Lavagem, exaurimento do crime antecedente e consunção
O crime de lavagem, previsto na Lei 9.613/98, é um pós-fato cuja repressão é
demandada político-criminalmente em diversos países. Há um esforço comum de órgãos
nacionais e internacionais pela adoção de políticas específicas para a prevenção e repressão
desse crime que, em essência, consiste em expedientes (omissão e dissimulação) para a
desvinculação dos ativos sujos da atividade criminosa que lhes precedeu, com sua consequente
inserção na economia legal704.
Não fosse o vigoroso compromisso político-criminal de alcance internacional705 com a
criminalização do disfarce ou encobrimento do produto de crime, enquanto estratégia
fundamental de combate ao crime organizado706, talvez fosse mais fácil trabalhar
dogmaticamente o confronto do desvalor desse comportamento com o de outras condutas
puníveis para se identificar eventual aptidão absortiva. Mas o destaque axiológico atribuído ao
703 “Conquanto o Decreto-Lei nº 201/67 seja norma especial porque institui crimes próprios praticados por
prefeitos e vereadores, a Lei nº 8.666/90 também é especial porque tipifica os crimes praticados em procedimentos
licitatórios, disciplinando especificamente o tema relativo às licitações públicas. 2. Tratando-se de normas com
equivalência hierárquica e incidência nos âmbitos municipal, estadual e federal, resta dirimir o conflito aparente
de normas pelo critério cronológico, prevalecendo o artigo 89 da Lei nº 8.666/90 para os atos praticados após a
sua entrada em vigor.” BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1288855/SP. Rel. Min. Maria Thereza de
Assis Moura. 6ª Turma. Julgado em 17/10/2013. DJe 29/10/2013. 704 PITOMBO, Antônio Sérgio A. de Moraes. Lavagem de dinheiro: a tipicidade do crime antecedente.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 38. Diz o autor: “a lavagem de dinheiro consiste em ocultar ou
dissimular a procedência criminosa de bens e integrá-los à economia, com aparência de terem origem lícita.”
Não obstante o acerto dessa definição, a configuração do crime não requer a realização de todas as fazes da
lavagem, bastando, p.ex., a prática de mera ocultação, desde que orientada à quebra do vínculo causal com o crime
antecedente: BADARÓ; BOTTINI, 2016, p. 33. 705 Sobre a característica transnacional do crime de lavagem e a necessidade de cooperação internacional
para combatê-lo, vide: MORO, Sergio Fernando. Crime de lavagem de dinheiro. São Paulo: Saraiva, 2010. pp.
23 e ss. 706 PITOMBO, 2003. pp. 21-23. Nas palavras do autor: “Crime organizado e lavagem de dinheiro mostram-
se temas tão interligados que parece impossível escrever sobre um sem analisar o outro”.
133
delito de lavagem para que receba atenção especial dos órgãos de repressão, tendo em vista a
complexidade imanente à criminalidade moderna (divisão de tarefas, estrutura hierárquica,
impessoalidade e ocultação de instâncias de comando etc.707), singulariza-o frente às demais
figuras penais quando com elas conflitante. O legislador se preocupou em demarcar essa
característica ao consignar ser indiferente ao crime de lavagem a existência de processo e
julgamento relativo às infrações penais antecedentes (Lei 9.613/98, art. 2º, II), embora tenha
compensado essa previsão com a exigência de que a denúncia deve ser instruída com “indícios
suficientes da existência da infração penal antecedente” (Lei 9.613/98, art. 2º, §1º). A lavagem,
portanto, é um crime acessório ou derivado (“acessoriedade limitada”), pois pressupõe um
injusto precedente, mas é dotada de autonomia708.
Essa predileção pelo reconhecimento do concurso próprio aumenta a pertinência da
delimitação daquilo que consubstancia lavagem daquilo que constitui apenas o exaurimento do
crime antecedente (um indiferente penal). Por ocultar (esconder) e dissimular (disfarçar) o
produto de crime se deve entender o comportamento mendaz suficientemente idôneo para
desvirtuar os laços que ligam o patrimônio espúrio ao seu proprietário. O ardil, por mais sutil
que seja, deve estar presente para a configuração da lavagem709. Trata-se, portanto, da criação
de um risco não permitido ao bem jurídico mediante comportamento tendente a dificultar o
vínculo entre o produto de crime e seu detentor. Na lição de Carla Veríssimo de Carli, a essência
da lavagem é a separação dos ativos sujos do delito antecedente mediante movimentos ou
operações que obnubilam essa relação de causa e efeito, permitindo, assim, a reinserção
disfarçada do produto de crime na economia legal710.
Em vista disso, sedimentou-se a orientação de que o mero exaurimento do delito
antecedente não se confunde com lavagem. Não fosse isso, a lavagem faria concurso próprio
com qualquer figura penal da qual resultassem dividendos materiais. É importante, assim,
demarcar aquilo que significa o simples desfrute de produto de crime, daquilo que significa
expediente de legalização ou branqueamento para descaracterizar a origem criminosa dos bens.
O simples proveito econômico do crime antecedente, sem a intenção de disfarçar a natureza
espúria dos ativos, não caracteriza a figura penal em exame. A “lavagem não se configura nem
com a guarda do dinheiro auferido ilicitamente nem com o gasto não falseado dessa quantia,
707 BADARÓ; BOTTINI, 2016, p. 30. 708 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RHC 41.203/SP. Rel. Min. Nefi Cordeiro. 6ª Turma. Julgado em
03/05/2016. DJe 12/05/2016. 709 RIOS; LAUFER, 2011, p. 193. 710 CARLI, Carla Veríssimo de. Lavagem de dinheiro – ideologia da criminalização e análise do
discurso. Porto Alegre: Ed. Verbo Jurídico, 2008. pp. 117 e 118.
134
pois tais ações não guardam qualquer relação com a reinserção fraudulenta ou ardilosa do
dinheiro ilícito na economia oficial”711. Nas palavras de Caiero, não se pune a “simples
detenção das vantagens e a sua utilização ‘normal’, conaturais ao facto precedente”; em
contrapartida, legitimam a repressão penal as condutas que constituem “um modo
particularmente eficiente de garantir a conservação das vantagens ilicitamente obtidas, em
detrimento da pretensão estadual à sua detecção e subsequente perda”712. Extrai-se da
jurisprudência do STJ, a propósito disso:
[...] I - O mero proveito econômico do produto do crime não configura lavagem de
dinheiro, que requer a prática das condutas de ocultar ou dissimular. Assim, não há
que se falar em lavagem de dinheiro se, com o produto do crime, o agente se limita a
depositar o dinheiro em conta de sua própria titularidade, paga contas ou consome os
valores em viagens ou restaurantes. [...]713
Essa orientação é complementada pelo entendimento de que a lavagem requer ainda o
elemento subjetivo específico de “emprestar aparência de licitude aos valores”714, i.e., a prática
das ações de adquirir, receber, guardar ou ter em depósito devem “atingir o propósito de ocultar
ou dissimular a utilização” de ativos provindos de crime715. Portanto, não se configura referido
crime quando não for possível concluir que o agente quis disfarçar a origem ilícita dos ativos
sujos.
A demarcação da fronteira entre o comportamento caracterizador do injusto em estudo
daquilo que se deve considerar atípico viabiliza a posterior reflexão sobre a absorção
(consunção) da lavagem pelo crime antecedente (e vice-versa), lembrando-se que a consunção
pressupõe a superação do exame prévio de (a)tipicidade716.
O compromisso com a “prevenção e repressão da atividade criminal”, ao “privar o
criminoso dos ganhos decorrentes de sua atividade”717, e a justificativa político-criminal
segundo a qual: “provar o crime de lavagem e a sua autoria pode ser mais fácil do que provar a
711 RIOS; LAUFER, 2011, p. 193. 712 CAIERO, Pedro. A consunção do branqueamento pelo facto precedente. (em especial: (i) as implicações
do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n. 13/2007, de 22 de Março; (ii) a punição da consunção impura)”.
In: ANDRADE, Manuel da Costa; ANTUNES, Maria João; SOUSA, Susana Aires de (org.). Estudos em
Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias. Coimbra: Coimbra Editora, 2010. pp. 187-222 (p. 189). 713 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. APn 458/SP. Rel. p/ Acórdão Min. Gilson Dipp. Corte Especial.
Julgado em 16/09/2009. DJe 18/12/2009. 714 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp 328.229/SP. Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz.
6ª Turma. Julgado em 15/12/2015. DJe 02/02/2016. 715 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. APn 472/ES. Rel. Min. Teori Albino Zavascki. Corte Especial.
Julgado em 01/06/2011. DJe 08/09/2011. 716 ZAFFARONI, 2002, p. 867; POLITOFF L.; MATUS A.; RAMIREZ G., 2004, p. 464. 717 MORO, 2010, p. 16.
135
condição do chefe de mandante dos crimes praticados na base da organização”718 poderiam ser
tomados, em princípio, como obstáculo à admissão da absorção da lavagem pelo antefato.
Poder-se-ia argumentar, nesse sentido, que a consideração da lavagem como pós-fato
coapenado solaparia a estratégia de combate ao crime organizado, por se reservar a ela papel
punitivo secundário.
Mas o enfoque no combate ao crime organizado, se bem analisado, não se mostra
suficiente à rejeição do concurso impróprio na hipótese de o autor do crime antecedente ser o
mesmo que o da lavagem (autolavagem). Afinal, com a reprovação penal pelo crime
antecedente já se obtém o resultado condenatório e o seu efeito correspondente: o confisco do
produto do crime. Em paralelo, a admissão da consunção no caso de autolavagem não significa
obstáculo à condenação por lavagem do corréu a quem não se pôde atribuir o crime antecedente.
É dizer, o objetivo político-criminal fundamental do injusto de lavagem ainda estaria
preservado, pois só se falaria em consunção em caso de equivalência de autoria entre as
infrações penais, preservando a possibilidade de punição autônoma por lavagem daquele
resguardado da censura pelo delito antecedente. E como não se pode considerar frequente a
punição conjunta pelo crime antecedente, a consunção, restrita à autolavagem, não poderia ser
vista como obstáculo real ao combate ao crime organizado.
Em verdade, as categorias do desvalor da ação e do resultado revelam, aqui também,
importância invulgar ao exame de eventual consunção719. A rejeição (ou aceitação) do concurso
impróprio pode ser melhor explicada sob a perspectiva do específico desvalor da lavagem
(ocultação e dissimulação), à luz de sua peculiar objetividade jurídica. É o alcance atribuído ao
bem jurídico da lavagem que dirá sobre a possibilidade de sua assimilação material pelo
conteúdo de desvalor de outra norma penal. Com efeito, em não se podendo considerar a
lavagem um desdobramento regular, ordinário ou esperado do crime antecedente, por se reputá-
la uma forma de ataque especialmente relevante à administração de Justiça (ou à ordem
econômica), prejudicado estará o reconhecimento do exaurimento de sua potencialidade lesiva
no crime antecedente (interação material irresistível entre os conteúdos de injusto de cada tipo).
Como o antefato e o pós-fato coapenados pressupõem, relativamente ao comportamento
típico principal, a existência de uma “relação tal que permita asseverar que o legislador, na hora
de prever a pena para o tipo de delito no qual encaixa o fato principal, tenha considerado a
prévia ou subsequente realização deste outro fato”720, não se poderá reservar à lavagem a
718 MORO, 2010, p. 18. 719 BUSATO, 2017, p. 877. 720 HERRERA, 2004, p. 265.
136
condição de ato típico acompanhante ou dominado caso se tenha como inequívoca a intenção
do legislador de torná-la um fato típico autônomo dotado de gravidade invulgar e inegociável.
Nessa hipótese, encarar a lavagem como um pós-fato coapenado seria ignorar sua razão de
ser721.
Não obstante, em se adotando orientação menos hermética quanto ao alcance atribuído
à objetividade jurídica da lavagem, será menos tormentoso o caminho para considerá-la
casuisticamente um pós-fato coapenado – pensando-se, aqui, na autolavagem. Consoante
Badaró e Bottini, a identificação do bem jurídico protegido pela norma penal de lavagem
permite “a solução de situações complexas de concurso de normas, e sobre a incidência do bis
in idem em determinados casos”722. Nessa ordem de ideias, acaso entendida apenas como um
reforço ao confisco, sob a perspectiva de ofensa exclusiva à administração da Justiça (obstrução
ao rastreamento do produto de crime pelas autoridades públicas e ao controle de atividades
ilícitas723), já não haveria óbice à consunção; antes o contrário, ela calharia para evitar a dupla
reprovação pelo mesmo conteúdo de desvalor. Afinal, o confisco estaria atendido com a
condenação do mesmo autor pelo crime antecedente (trata-se de efeito da condenação, nos
termos do art. 91, II, do CP).
Essa compreensão deflui da Convenção sobre Lavagem, Identificação, Apreensão e
Confisco de Produtos do Crime, aprovada pelo Conselho da Europa, que recomenda a não
sujeição ao delito de lavagem de quem cometeu a infração antecedente724. Delmanto adota essa
orientação, ao registrar que a punição do autor pelo crime antecedente e o consequente confisco
do produto do crime (efeito da condenação) esgotaria a necessidade de sua punição autônoma
pela lavagem, analogicamente ao que ocorre com o crime do art. 349, do CP (favorecimento
real)725.
Porém, caso se identifique no bem jurídico da lavagem uma significação de desvalor
transcendente ao objetivo de confisco como, por exemplo, a percepção de que é essencial à
organização social a circulação de ativos lícitos na economia para a preservação da livre
721 RIOS; LAUFER, 2011, p. 191. 722 BADARÓ; BOTTINI, 2016, p. 81. 723 BADARÓ; BOTTINI, 2016, p. 85. Em outra passagem, sustentando ser a administração da Justiça o bem
jurídico tutelado pela lavagem, os autores acentuam que: “a ideia da norma, bem como das diretivas internacionais
sobre o tema, é usar o direito penal para suprir a incapacidade do Estado de investigar o crime antecedente da
lavagem de dinheiro e rastrear seu produto”. 724 PITOMBO, 2003, p. 76. 725 DELMANTO, Roberto; DELMANTO JUNIOR, Roberto; ALMEIDA DELMANTO, Fabio M. Leis
penais especiais comentadas. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2014. pp. 691-694.
137
iniciativa e concorrência, p.ex. (atribuindo à lavagem a tutela da ordem econômica, portanto726),
então será difícil pretender que o desvalor da lavagem seja um mero ato típico acompanhante,
eclipsado pela expressão de desvalor da norma penal principal. Ou seja, se os atos de reciclagem
de capital espúrio são censurados penalmente também porque desestabilizam a ordem
econômica, a livre iniciativa, o sistema concorrencial, as relações de consumo, a transparência,
enfim, porque representam “abuso de instrumentos da vida econômica”727, consolida-se a
natureza plenamente autônoma do desvalor da lavagem. Nesse caso, fica difícil concebê-la
como desdobramento regular e, portanto, contida na expressão de desvalor do antefato
(exaurimento de potencialidade lesiva). Não se poderia falar em insignificância, à luz da
compreensão dogmática de Politoff L., Matus A. e Ramirez G.728.
Note-se que o aspecto central não é tanto a divergência entre os bens jurídicos dos
crimes antecedentes e o da lavagem, mas a característica singular atribuída à última (desde um
enfoque político-criminal), que dificulta a assimilação axiológica de uma norma penal por outra
(absorção da expressão de desvalor – especialmente do resultado). Essa forma de pensar
justifica a repressão à autolavagem sob a forma de concurso próprio, pois as condutas
praticadas, apesar da identidade de autoria, revelam expressão de desvalor autônomo (de ação
e de resultado) e lesões qualitativamente bem independentes729. Vale, aqui, a advertência de
Badaró e Bottini: “encontrar na ordem econômica o bem protegido pela norma legitima a
punição em concurso material do crime antecedente e da lavagem, quando praticados pelo
mesmo autor, sem a caracterização do bis in idem”730.
De fato, o Superior Tribunal de Justiça tem atribuído à lavagem desvalor autônomo,
negando a consunção em casos de autolavagem:
[...] 12. Embora a tipificação da lavagem de dinheiro dependa da existência de um
crime antecedente, é possível a autolavagem - isto é, a imputação simultânea, ao
mesmo réu, do delito antecedente e do crime de lavagem -, desde que sejam
726 MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, p. 184; TIEDEMANN, 2010, p. 344. Entre nós: PITOMBO, 2003, pp. 77-
79. Esse autor acentua: “No exercício da atividade empresarial, o crime organizado acaba adotando práticas que
atingem a livre-iniciativa, a propriedade, a concorrência, o consumidor, o meio ambiente, o patrimônio histórico,
enfim, vários, aspectos da ordem econômica”. 727 BADARÓ; BOTTINI, 2016, p. 87. 728 POLITOFF L.; MATUS A.; RAMIREZ G., 2004, pp. 457-458 (tn). Assim também: MATUS ACUÑA,
2005, p. 485. 729 LORENCINI, Bruno César; CAVALI, Marcelo Costenaro. Separando joio, peste e praga: “caixa dois”
eleitoral, corrupção e lavagem de dinheiro. In: FILHO, Alexandre Jorge Carneiro da Cunha et al. Direito,
Instituições e Políticas Públicas – O papel do jusidealista na formação do Estado. São Paulo: Quartier Latin,
2017. p. 41. 730 BADARÓ; BOTTINI, 2016, p. 85.
138
demonstrados atos diversos e autônomos daquele que compõe a realização do
primeiro crime, circunstância na qual não ocorrerá o fenômeno da consunção. [...]731
[...] 7. Por definição legal, a lavagem de dinheiro constitui crime acessório e derivado,
mas autônomo em relação ao crime antecedente, não constituindo post factum
impunível, nem dependendo da comprovação da participação do agente no crime
antecedente para restar caracterizado. [...]732
Questão em aberto, por fim, é se a lavagem eventualmente poderia assimilar o desvalor
do antefato copunível, exaurindo-o materialmente. Essa possibilidade poderia, aliás, compensar
a “desproporção” de o crime de lavagem eventualmente ser mais severamente sancionado do
que a infração antecedente (v.g. contravenção penal), à luz dos princípios da razoabilidade e da
proporcionalidade733 – que também constituem vetores ao exame da consunção, como
salientado supra. Posicionando-se pela possibilidade de a lavagem assimilar materialmente o
crime antecedente (consunção), mas considerando não propriamente o bem jurídico, e sim, os
“concretos sentidos de ilícito do caso (do ‘grande facto’), no seu significado social”,
independentemente do enunciado abstrato das normas (na linha do magistério de Figueiredo
Dias), vide a doutrina de Caiero734. Anote-se que esse não é um caminho excêntrico, como se
infere deste precedente do STJ:
[...] 3. Concluindo as instâncias ordinárias que "o crime contra o sistema financeiro
nacional se constituiu numa das etapas para emprestar efetividade ao delito de
lavagem de dinheiro, sendo por este absorvido", não há como inverter o decidido sem
reexaminar o acervo fático probatório dos autos. Incidência do enunciado nº 7/STJ.
[...]735
Bittencourt da Rosa, com orientação parecida, defende o concurso de leis quando um
dos crimes em conflito tutela “indiretamente” o bem jurídico protegido diretamente pelo outro,
ilustrando esse raciocínio com a relação havida entre o crime de evasão de divisas, cuja tutela
primeira seria o sistema financeira nacional, e o de lavagem, que embora prioritariamente tutele
a administração da Justiça, indiretamente protege o “sistema financeiro nacional” (melhor seria,
talvez, referir a ordem econômica), “porque afeta-se a integridade das finanças, desvirtuando-
731 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. APn 856/DF. Rel. Min. Nancy Andrighi. Corte Especial. Julgado
em 18/10/2017. DJe 06/02/2018. 732 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1342710/PR. Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura. 6ª
Turma. Julgado em 22/04/2014. DJe 02/05/2014. 733 RIOS, Rodrigo Sánchez. Alterações na lei de lavagem de dinheiro: breves apontamentos críticos.
Boletim IBCcrim, ano 20, nº 237, ago./2012. p. 3. Assim também: MORO, 2010, p. 46. 734 CAIERO, 2010, pp. 202-204. 735 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1277194/RS. Rel. Min. Maria Thereza de Assis
Moura. 6ª Turma. Julgado em 10/12/2013. DJe 17/12/2013.
139
se sua destinação”736. De todo modo, o exemplo é interessante porque expressa um caso de
antefato coapenado (impunível) no âmbito do crime de lavagem: haja vista, de um lado, a
primazia político-criminal do injusto de ocultar ou dissimular produto de crime e, de outro, a
possibilidade de que o crime-meio encontre sua razão de ser plena no crime-fim, na moldura
do caso concreto, a interconexão ou interseção entre os desvalores de resultado em razão de
similaridades em suas objetividades jurídicas poderá, eventualmente, conduzir ao exaurimento
do antefato punível na lavagem, fazendo com que apenas este delito prevaleça no caso concreto.
Em síntese: tomando-se a lavagem como um crime pluriofensivo ou complexo, cujo
objeto prioritário de proteção (não obstante o dissenso doutrinário737) é a administração da
Justiça, que deve ser entendida em seu sentido “mais genérico e abrangente de quaisquer
manifestações da Justiça no atingimento de suas metas e finalidades”738, mas sem a exclusão
de outros bens jurídicos que proteja indireta ou colateralmente, pensa-se ser possível especular
sobre a assimilação, pela lavagem, do desvalor de injusto antecedente com objetividade jurídica
similar. Assim, se no caso concreto ficar evidenciado que a infração penal antecedente, com
bem jurídico equivalente ao tutelado mediatamente pela lavagem, foi acessório ao objetivo final
de reciclagem de ativos ilícitos, poderá esta última norma penal ser considerada exaustiva do
desvalor material global do fato, inclusive por questão de proporcionalidade.
5.6 Corrupção e delitos econômicos
Muito mais poderia ser dito em relação à consunção no âmbito da criminalidade
socioeconômica. Como já pontuado, o objetivo aqui não é exaurir as hipóteses nas quais a
absorção material entre os delitos concorrentes pode se operar. Não obstante, uma palavra final
deve ser dita quanto ao crime de corrupção, que embora para a maioria não represente um delito
econômico propriamente dito739, guarda estreita relação com essa categoria, ante o intenso
intercâmbio entre o bem jurídico administração pública e as mais variadas atividades
econômicas – entre as diversas finalidades perseguidas por um agente corruptor,
definitivamente não são exóticas as de conotação econômicas, ainda mais em um ambiente de
crescente regulação e de protagonismo econômico-privado. Como a tônica político-criminal
736 ROSA, 2005, p. 467-472. 737 DELMANTO; DELMANTO JUNIOR; ALMEIDA DELMANTO, 2014, pp. 687-690. Rejeitando a
compreensão de que seja crime pluriofensivo: BADARÓ; BOTTINI, 2016, p. 93. 738 MAIA, Rodolfo Tigre. Lavagem de dinheiro (lavagem de ativos provenientes de crime): Anotações
às disposições criminais da Lei n. 9.613/98. São Paulo: Malheiros, 1999. pp. 53 e 54. 739 MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, p. 126.
140
dos injustos contra a administração pública é a reprovação pela obtenção de vantagem com
abuso de poder ou perversão entre público e privado740, não poderia surpreender a presença de
traços econômicos no contexto típico.
Adán Nieto Martín chama a atenção para a vinculação entre o crime de corrupção e os
de natureza econômica à luz da política-criminal global que conclama o setor privado a
colaborar na luta contra a corrupção com programas de compliance741. Sustenta o autor que a
Foreing Corrupt Practives Act (1977) introduziu a compreensão de que os “efeitos prejudiciais
da corrupção não radicam somente no dano gerado à administração pública, mas afeta também
a livre concorrência e lesa os investidores”742; em síntese: o suborno seria não apenas uma
forma de concorrência desleal entre agentes privados, mas representaria também uma utilização
temerária do dinheiro de acionistas (“administração desleal do patrimônio societário”743).
Abanto Vásquez, por sua vez, avaliando a corrupção sob uma perspectiva internacional, anota
que a “danosidade deste tipo de corrupção [internacional] assenta em suas implicações político-
sociais, pois, não raro, empresas transnacionais elaboram suas estratégias prevendo linhas de
atuação corruptoras e se aproveitando de seu poder para pressionar e chantagear a classe política
dos países onde operam”744. Acrescenta referido autor que a corrupção internacional “não
somente afeta o país do funcionário corrupto, mas também o país de quem realiza o ato de
corrupção, pois sua indústria perde confiança internacional com a consequente afetação do
sistema competitivo nacional”745. Sem prejuízo, porém, dessas questões dogmáticas, é inegável
a conexão social entre crimes contra a administração pública e os crimes econômicos
tradicionais, o que, no plano jurídico, suscita intensamente o problema do concurso, próprio e
impróprio.
Nos poucos precedentes colhidos da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça
relativos ao tema, nota-se certa resistência em se declarar a consunção em casos de corrupção746.
740 GRECO, Luís; TEIXEIRA, Adriano. Aproximação a uma teoria da corrupção. In: LEITE, Alaor;
TEIXEIRA, Adriano (orgs.). Crime e política: corrupção, financiamento irregular de partidos políticos, caixa dois
eleitoral e enriquecimento ilícito. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2017. p. 28. 741 MARTÍN, Adán Nieto. La privatización de la lucha contra la corrupción. In: ZAPATERO, Luis Arroyo;
MARTÍN, Adán Nieto (dire.). El Derecho Penal Económico en la era Compliance. Valencia: Tirant lo Blanch:
2013. pp. 192 e 193. 742 MARTÍN, 2013, p. 194 (tn). 743 MARTÍN, 2013, p. 195. 744 ABANTO VÁSQUEZ, Manuel A. La lucha contra la corrupción en un mundo globalizado. In: PREDA,
Ricardo (coord.). Apuntes de Derecho Penal Económico III. Asunción/PY: ICED, 2013. p. 57 (tn). 745 ABANTO VÁSQUEZ, 2013, p. 57 (tn). 746 Assim, por exemplo: “Não há que se falar em consunção entre o crime de falsidade ideológica e o de
corrupção passiva na medida em que aquele não se mostra meio necessário para a configuração deste. Concurso
material que deve ser aplicado quando houver dolo específico na conduta delitiva.” (BRASIL. Superior Tribunal
de Justiça. REsp 1106603/SP. Rel. Min. Moura Ribeiro. 5ª Turma. Julgado em 18/06/2014. DJe 27/06/2014). E
141
Mas da jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 4ª Região extrai-se o exemplo abaixo
(alinhado com outros precedentes da mesma Corte), no qual se admitiu a absorção material do
crime de corrupção passiva (CP, art. 317) pelo de facilitação de contrabando/descaminho (CP,
art. 318):
[...] 8 Cometem os delitos de corrupção passiva e facilitação ao
contrabando/descaminho, os agentes policiais que, mediante o recebimento de
propinas, permitem a entrada de mercadorias contrabandeadas ou descaminhadas no
território nacional. 9. Hipótese em que se reconhece a consunção entre os delitos do
artigo 317, caput, e 318, ambos do Código Penal. Delito-meio com pena mais grave
absorve crime-fim. [...]747
Do bojo desse acórdão destaca-se esta conclusão:
[...] no caso concreto, o dolo dos servidores públicos estava, indubitavelmente,
voltado para a obtenção da vantagem indevida, no exercício da função (corrupção
passiva), e, para a obtenção dessa vantagem indevida (objetivo final), o único modo
possível era atuar em violação a dever funcional (na espécie, a prática da facilitação
ao contrabando e/ou descaminho).
Destacou, então, o relator que estaria evidenciado o “nexo de dependência entre as
condutas”. Em complemento, assentou-se que, à época dos fatos, o crime de corrupção passiva
contemplava pena mais branda (1 a 8 anos, pois antes da vigência da Lei 10.763/03) para, a
partir disso, adotar-se a regra do maior absorve o menor e estabelecer punição apenas pelo
crime-meio de facilitação de contrabando e descaminho – em que pese em outros julgados a
Corte tenha priorizado a corrupção passiva em atenção à sua condição de crime-fim.
É interessante frisar a referência ao “nexo de dependência” entre as condutas. Embora
o aresto tenha emprestado maior importância à unidade de desígnios, revelada pela relação de
meio e fim entre as infrações a partir do dolo dos agentes, a expressão “nexo de dependência”
acabou deixando implícito o reconhecimento da interação entre o conteúdo de desvalor de cada
crime, com o que se entendeu que a ofensividade exprimida por um estaria abarcada na do
outro.
também: “EXCESSO ACUSATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE DA PRATICA DO CRIME PREVISTO NO
ARTIGO 96, INCISO V, DA LEI 8.666/1993 E ABSORÇÃO DO DELITO DE CORRUPÇÃO ATIVA PELO
ILÍCITO PREVISTO NO ARTIGO 90 DA LEI DE LICITAÇÕES. CONTRATO DE AQUISIÇÃO DE
VEÍCULOS COM MANUTENÇÃO DA FROTA. INCIDÊNCIA DO ARTIGO 96, INCISO V, DA LEI
8.666/1993. PRÁTICA DOS DELITOS DE FRAUDE À LICITAÇÃO E CORRUPÇÃO ATIVA EM
MOMENTOS DISTINTOS. INAPLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. AUSÊNCIA DE
COAÇÃO ILEGAL. DESPROVIMENTO DO RECURSO.” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RHC
38.617/BA. Rel. Min. Leopoldo de Arruda Raposo. 5ª Turma. Julgado em 23/06/2015. DJe 03/08/2015). 747 PORTO ALEGRE/RS. Tribunal Regional da 4ª Região. ACR 0004487-05.2003.404.7002/PR. 8ª Turma.
Rel. Gilson Luiz Inácio. D.E. 24/04/2013.
142
Mas independentemente do fim perseguido pelo agente no caso concreto (opção
hermenêutica do aresto em análise), a contraposição das objetividades jurídicas dos crimes
permite identificar um plus no tocante ao objeto de tutela da figura do art. 318, do CP; além da
moralidade ou probidade da administração pública, referido injusto resguarda a arrecadação
tributária (descaminho) ou a ordem econômica (contrabando)748, revelando, assim, maior
abrangência comparativamente à corrupção passiva. Cabe, aqui, o parêntesis de que os bens
jurídicos protegidos pelo crime primo de descaminho (CP, art. 334) coincidem em certa medida
com a objetividade jurídica dos crimes tributários – na compreensão de Scandelari,
“imediatamente, um interesse arrecadatório, a receita pública ou a ordem tributária;
mediatamente, interesses coletivos, a sanidade da relação entre o particular e o Fisco e algumas
instituições do Estado”749. Logo, associam-se os crimes de descaminho e contrabando com o
DPE.
Embora o correlato crime de facilitação de contrabando e descaminho se dirija ao
funcionário público, a quem tem por dever reprimir a prática do descaminho ou contrabando,
sua objetividade jurídica não se restringe à probidade da administração pública. Observe-se,
com Tavares, que “a realização do contrabando ou descaminho” são o “resultado da
facilitação”750, devendo a ação de descaminho ou de contrabando ter pelo menos iniciado para
que se configure o tipo legal – trata-se de um “delito de omissão e resultado”, nas palavras desse
autor. Se a prática do descaminho ou contrabando integra o conteúdo de injusto do crime
funcional de facilitação, a objetividade jurídica deste último delito não poderia se restringir à
probidade da administração pública. Em complemento, reconheça-se a incidência do crime
residual de corrupção passiva caso se constate o recebimento de vantagem indevida, mas não
se comprove o início da internalização indevida de mercadorias; isso demonstra que o delito do
art. 318, do CP, tutela algo a mais do que o do art. 317, do mesmo diploma.
Assim sendo, como o delito do art. 318, do CP, não se limita à tutela da probidade
administrativa, no exame do caso concreto é possível compreender que ele abrange o desvalor
(de ação e de resultado) de outro crime contra a administração pública, como a corrupção
passiva, tal como entendeu o TRF4 no julgado reproduzido acima. Mesmo porque, é implícito
à facilitação de contrabando/descaminho eventual recebimento de vantagem que, embora não
748 FRANCO; STOCO, 2007, p. 1478. 749 SCANDELARI, Gustavo Britta. O crime tributário de descaminho. Porto Alegre: Magister, 2013. p.
121. 750 TAVARES, Juarez. Alguns aspectos da estrutura dos crimes omissivos. Revista Brasileira de Ciências
Criminais, vol. 15/1996, p. 125-127, Jul-Set/1996.
143
constitua uma elementar típica, não prejudica a conclusão de que essa circunstância compõe o
fato típico desde uma perspectiva lógica ou de racionalidade prática. Portanto, no exame da
relação valorativa entre corrupção passiva e facilitação de contrabando e descaminho é possível
cogitar da operação axiológica pela qual se opera o esgotamento material de um crime em outro,
o que é facilitado pelo fato de que o âmbito de tutela de um deles (CP, art. 318) abarca o do
outro (CP, art. 317).
144
CONCLUSÃO
O direito penal econômico é campo fértil para casos de concurso próprio e impróprio,
quer pelo aumento numérico de figuras penais, quer por sua peculiar forma de proteção ou,
ainda, pelo catálogo cada vez maior de interesses sob seus cuidados. Dependendo do apetite da
acusação, não é difícil o trânsito de denúncias com cargas acusatórias destemperadas,
pretextando a literalidade da lei sob raciocínio semântico trivial. Como o conflito aparente e a
concorrência típica real são recorrentes no âmbito da criminalidade socioeconômica, cresce o
interesse por delimitar cada fenômeno dogmático, inclusive em razão da discrepância
jurisprudencial pretoriana na estipulação de pressupostos gerais da consunção e no tratamento
de casos similares. Cabe à dogmática desenvolver critérios que tornem mais previsível e estável
a subsunção jurídica de episódios insertos no âmbito do direito penal econômico, especialmente
no tocante à interação valorativa/material entre os injustos virtualmente concorrentes
(consunção), almejando mais segurança e controle do poder punitivo e, portanto, concreção das
liberdades em sentido amplo.
No primeiro capítulo, viu-se que embora o direito penal econômico em sua manifestação
moderna tenha lugar cativo no plexo de opções normativas para a soluções de problemas
socioeconômicos no contexto da sociedade de risco/pós-industrial, é preciso estar atento quanto
a eventuais excessos derivados de silogismos empedernidos e literais. Um direito penal político-
criminalmente funcionalizado requer, por definição, atenção a atributos axiológicos e à
magnitude da ofensa aos interesses que protege, quer a título de dano, quer sob a forma de
perigo. O manuseio do sistema jurídico-penal à luz de fins político-criminais não coaduna com
expedientes literalistas e indiferentes à dimensão substancial das normas penais. É confortável
a interpretação literal, mas ela, sozinha, não basta. O contexto da criminalidade
socioeconômica, em que o discurso punitivo se volta mais à censura de meios reprováveis do
que de fins (geralmente lícitos e socialmente incentivados) e atinge estruturas organizadas,
evoca complexidade. Trata-se de uma dinâmica em que se pode subsumir o comportamento
global (divisível em unidades menores) não a uma norma penal, mas a várias, o que suscita a
questão do concurso de crimes, o próprio e impróprio. A superposição de normas penais é,
portanto, uma constante em âmbito socioeconômico; mas cabe atentar que nem sempre há
concurso real.
No segundo capítulo, viu-se que a consunção demoveu o pressuposto da unidade de
ação ou de fato como condição ao reconhecimento da unidade de lei/concurso impróprio. A
consunção evoca, em regra, uma pluralidade de condutas típicas, o que esvazia a discussão
145
tradicional referente ao número de comportamentos praticado pelo autor como fator de
distinção entre conflito aparente e concurso efetivo. Menor importância tem também a
discussão sobre o número de resultados/lesões formais. Mais importante é o tratamento
normativo do episódio, com o que se considera o fato global uma unidade delitiva complexa
(subsiste um só crime, não obstante a pluralidade de tipos formalmente preenchidos). Em meio
aos interesses sociais maculados pelo comportamento punível, o intérprete deve identificar
aquele proeminente capaz de absorver as demais normas formalmente incidentes, que doravante
exprimirá o conteúdo de desvalor global do fato. Em não sendo possível essa operação
hermenêutica, caberá reconhecer o concurso próprio e aplicar os injustos penais cumulativa ou
combinadamente (a depender da modalidade de concurso efetivo de que se trate), importando
em tratamento punitivo mais severo. A pluralidade de condutas típicas não é óbice, portanto,
ao fenômeno do conflito aparente de normas, ao contrário da compreensão clássica.
No terceiro capítulo, viu-se que a consunção pode assentar em fundamentos
hermenêuticos e dogmáticos concorrentes, como a regra do non bis in idem, o princípio da
proporcionalidade e, até mesmo, em juízo de insignificância – embora a doutrina majoritária
quase sempre refira apenas o primeiro aspecto. A imposição de se investigar a relação
axiológica entre as normas concorrentes decorre da inclinação do direito penal a finalidades
político-criminais, com destaque à função sistemática reservada ao princípio da lesividade.
Com efeito, a subsunção jurídica envolve necessariamente o exame da dimensão substancial
dos injustos em tese (desvalor de ação e desvalor do resultado), o que reclama análise de
eventual interação axiológica/valorativa entre eles e, portanto, de eventual concurso impróprio.
Em relação ao insuperável subjetivismo imanente a juízos axiológicos, não há solução perfeita.
Resta a fixação de critérios claros para garantir o controle da atividade judicial, devendo-se ter
presente, ainda, a relevância dos grupos de casos.
Na sequência, examinaram-se os critérios da especialidade e da subsidiariedade. Quanto
ao primeiro, pauta-se em relação lógica de subordinação entre os tipos penais em conflito, e é
expresso na ideia de que a norma especial contém todos os elementos da norma geral, mais
alguns elementos singularizantes. A partir do exame abstrato dos injustos, constata-se que um
contém conceitualmente o outro – conclusão de natureza estritamente lógica, não valorativa. A
subsidiariedade, por sua vez, conjuga relação lógica com valorativa. Haverá subsidiariedade
quando um preceito se subordinar ao outro na proteção de um mesmo bem jurídico, sendo que
sua incidência dependerá da não aplicação daquele dito principal, podendo esse caráter residual
ser expresso ou tácito. Ela leva em conta a relação lógico-abstrata entre os tipos penais, mas
repousa, ao contrário da especialidade, na relação de interferência. Essa interferência decorre
146
de que as normas em relação de subsidiariedade têm um âmbito de proteção comum de
determinado bem jurídico, sendo que uma preferirá a outra porque ostenta uma mesma
propriedade jurídico-penalmente relevante.
No quarto capítulo, demonstrou-se que a consunção é um mecanismo hermenêutico
eminentemente axiológico/valorativo dependente das relações empíricas verificadas no caso
concreto. Os preceitos em relação consuntiva não se contrapõem por motivos lógicos; com ela
se estabelece a relação material de principal e acessório entre as normas penais, com o
consequente reconhecimento de que o conteúdo de desvalor da norma penal dita dominante ou
principal absorveu ou exauriu o da norma meramente acompanhante, na dinâmica do caso
concreto. Por isso, menor importância tem a diversidade de bens jurídicos tutelados ou o fato
de não ser o crime consunto/absorvido um meio necessário ao crime consumidor. Os casos
clássicos de consunção ocorrem entre normas com objetividades jurídicas distintas e que se
acham em relação de etapa normal e não indispensável (p.ex.: falsidade ideológica e supressão
tributária). À consunção interessa apenas, portanto, se uma das normas pode esgotar o sentido
de desvalor (de ação e de resultado) de outra na dinâmica do caso concreto, levando-se em conta
a conexão empírico-valorativa entre ambas. Se o conteúdo material de um injusto estiver
assinalado em outro, só sobrará a violação pura da proibição ou do mandado plasmados na
norma, que não pode legitimar o castigo penal.
A ideia governante da absorção do ato típico posterior pela norma penal dominante é
também a de que a etapa posterior à consumação do delito principal, embora possua expressão
típica autônoma e eventualmente ofenda outro bem jurídico, não tem outro objetivo senão o de
esgotar o conteúdo proibitivo ou desvalorante do delito, ou seja, exaurir ou aproveitar o crime
já consumado. Assim, o ato típico acompanhante em sentido amplo (concomitante ou
posterior), embora formalmente típico e com identidade própria de desvalor, no caso concreto
perde essa autonomia pela relação de dependência empírica com a conduta principal, operando-
se a condensação valorativa.
Convém, porém, a delimitação de critérios para o reconhecimento da absorção
valorativa. O desvalor da ação e o desvalor do resultado têm papel destacado no exame da
relação material entre os tipos, especialmente porque o injusto requer ofensa efetiva ao bem
jurídico, seja como dano, seja como perigo. Mas além desses elementos, é importante observar
também o princípio da proporcionalidade e o sentido da conduta praticada pelo agente (o
compromisso antijurídico fundamental assumido pelo agente). O reconhecimento da unidade
delitiva complexa (unidade de lei) será produto, portanto, da conjugação de diferentes critérios
valorativos imbricados entre si. A pretensão deste estudo foi de efetuar uma análise inicial e
147
provisória de critérios considerados pertinentes, sujeita, naturalmente, a questionamento e
aprofundamento, até porque, se há algo unânime nesse âmbito dogmático é a divergência. Não
obstante, o amadurecimento de critérios não necessariamente impedirá a utilização de
expedientes retóricos para se afastar a consunção em casos nos quais ela poderia ser
reconhecida. A sondagem de marcos hermenêuticos pode permitir algum controle da atividade
judicial, mas não o controle pleno.
Finalmente, no quinto capítulo, ilustrou-se a regra da consunção com algumas hipóteses
no âmbito do direito penal econômico. Os casos extraídos da inteligência jurisprudencial do
Superior Tribunal de Justiça tiveram caráter meramente exemplificativo e foram escolhidos por
sua frequência e porque permitem testar os critérios sugeridos. O primeiro caso analisado
corresponde à relação material entre os crimes de sonegação fiscal (Lei 8.137/90) e de falsidade
ideológica (CP, art. 299), hipótese clássica e paradigmática no âmbito do DPE. Segundo a
jurisprudência, a falsidade é absorvida pela sonegação quando serve integralmente à esta, com
inolvidável acessoriedade teleológica (o desvalor da ação do injusto acompanhante não pode
ser empiricamente explicado sem referência à norma principal). Mas é preciso também – e
principalmente – que o desvalor do resultado do crime acessório esteja totalmente atrelado ao
da norma principal; ou seja, a potencialidade lesiva do ato acompanhante deve se esgotar
totalmente na norma dominante ou, dito de outro modo, exaurir nela seu sentido danoso. Por
fim, observou-se que o crime do art. 1º da Lei 8.137/90 envolve normalmente a prática de
diversas condutas pontuais de sonegação, que não necessariamente consubstanciam crime
continuado entre si (CP, art. 71), pois a ofensa ao bem jurídico admite gradação e, portanto,
franqueia a conclusão de que as várias condutas típicas isoladas semelhantes compõem um todo
unitário normativo, representante de um só crime de supressão fiscal, com prazo prescricional
único, contado da constituição definitiva do crédito fiscal.
O segundo caso corresponde à relação axiológica entre os crimes ambientais dos arts.
48 e 64, ambos da Lei 9.605/98, respectivamente, impedir regeneração natural de vegetação e
construir em solo não edificável sem autorização. O ato típico principal (construir em solo não
edificável) conduz logicamente ao ato típico posterior (impedir regeneração), revelando clara
conexão valorativa (não há como se empreender em local protegido por motivo ecológico sem
ao mesmo tempo bloquear a regeneração natural da vegetação). Estando imbricados o desvalor
de ação e o desvalor de resultado de cada crime, a absorção de um pelo outro (consunção) é de
rigor, inclusive por questão de proporcionalidade. Sem prejuízo, porém, da conexão de desvalor
material entre as normas, pode-se até sustentar interferência lógica entre elas, pois quem
empreende sem autorização necessariamente impede a regeneração da vegetação no local
148
existente. Trata-se, portanto, de ato típico colateral logicamente necessário, na medida em que
o crime-fim (edificar em local sob restrição) implica necessariamente no posterior ato
coapenado de impedir regeneração. Observe-se, porém, que essa conclusão é tranquila quando
o solo não pode ser edificado em razão de seu valor ecológico. Se, porém, o solo não admitir
intervenção em razão de seu valor artístico, p.ex., é mais difícil considerar o desvalor do
resultado do crime de edificar sem autorização (art. 64) implicado no de impedir regeneração
(art. 48). Ou seja, a interação de expressão de desvalor dos crimes é mais bem percebida quando
a proibição de edificar se dá por motivo ecológico: destruiu-se a vegetação porque se
empreendeu, e como se empreendeu, obstruiu-se a vegetação. Essa nítida conexão material
deixa de ser evidente quando a obra corrompe, p.ex., o valor histórico ou religioso do local e
ainda por cima agride a flora. A preferência pelo concurso próprio, nessa última hipótese, não
é propriamente a diversidade de bens jurídicos, mas a dificuldade de considerar o desvalor do
resultado de um crime plenamente absorvido no de outro.
O terceiro caso corresponde à relação axiológica entre os crimes do art. 4º e 5º, da Lei
4.792/86, respectivamente, gerir fraudulentamente instituição financeira e apropriar-se ou
desviar ativos de que o agente tenha posse. Essa é uma das hipóteses de concurso mais
controversas. As soluções propostas são as mais variadas. Na jurisprudência do STJ, há julgados
que admitem a consunção e outros que a rejeitam. Se é certo que eventual divergência entre os
bens jurídicos das normas em conflito não compromete o reconhecimento da consunção, não
menos correto que eventual semelhança entre eles facilita o juízo axiológico de condensação
valorativa entre as normas. O bem jurídico supraindividual tutelado pelos crimes previstos na
Lei 7.492/86 é prioritariamente a higidez do sistema financeiro nacional e o paradigma
normativo, a propósito desta finalidade, é o crime de gestão fraudulenta (art. 4º). Embora o
crime de apropriação indébita financeira (art. 5º) tenha como bem jurídico imediato a proteção
do patrimônio de sujeitos determinados, a higidez do sistema financeiro nacional compõe sua
ratio legis. Assim, a proteção do patrimônio particular não deixa de ser um instrumento de
garantia do funcionamento íntegro e regular do sistema financeiro. Além da semelhança de
objetividades jurídicas facilitar o reconhecimento da consunção, o fato de a configuração do
crime de gestão fraudulenta demandar um desvalor do resultado cujos contornos são menos
precisos não significa a impossibilidade de se considerarem eventuais agressões mais sensíveis
ao bem jurídico como desdobramentos ordinários da(s) conduta(s) de perigo abstrato
praticada(s). Vale dizer, embora a configuração desse crime se dê com a prática de conduta(s)
empiricamente perigosa(s) ao bem jurídico, isso não compromete sua aptidão de apreender
materialmente eventuais resultados lesivos previstos como crimes autônomos, tornando-os pós-
149
fatos coapenados. O crime de gestão fraudulenta é, afinal, o mais grave da Lei 7.492/86 – isso
aumenta a pertinência da proporcionalidade como subcritério da consunção. Assim, pela regra
da consunção é possível considerar a gestão fraudulenta a norma penal dominante e os
resultados lesivos dela advindos pós-fato coapenados, desde que haja inequívoca conexão de
sentido entre as condutas.
O quarto caso corresponde à relação valorativa entre os crimes do art. 89 da Lei 8.666/93
e do art. 1º, inciso I, do Decreto-Lei 201/67, respectivamente, ausência ilegal de licitação e
peculato de prefeito. O STJ tem se mostrado refratário ao reconhecimento da consunção. Os
argumentos mais comuns são os de que as objetividades jurídicas dessas normas incriminadoras
são distintas e que o crime de licitação não é meio necessário para a prática do peculato de
prefeito. Contudo, essas objeções, sem referência a critério adicional que indique a
inconveniência de se declarar o desvalor de um crime exaurido em outro, não pode ser suficiente
para se descartar a priori a hipótese de concurso impróprio. Embora os precedentes do STJ não
declarem expressamente, a antipatia à consunção parece decorrer da compreensão de que entre
os crimes vige uma autonomia axiológica plena, que impediria a consideração de um deles
como simples ato acompanhante de outro. Nas entrelinhas, portanto, parece estar a
compreensão de que o desvalor de um não pode se exaurir no de outro pelo potencial lesivo
particular e especialmente grave inerente à cada norma: num caso, a probidade do chefe do
Poder Executivo municipal com impacto na integridade do patrimônio comum; no outro, o
ataque à transparência e à isonomia na disputa por contratos com o Poder Público, a implicar
em favorecimento indevido. Não obstante, o acento patrimonial que a jurisprudência pretoriana
vem conferido ao crime de dispensa ilegal de licitação acaba aproximando-o dos interesses
tutelados pelo crime de peculato de prefeito, o que pavimenta o caminho para o reconhecimento
casuístico do esgotamento do dano social da fraude licitatória no peculato de prefeito. Ou seja,
os atributos de índole patrimonial estipulados pela jurisprudência para a configuração do crime
da lei de licitações acentuam seu pendor pela tutela do patrimônio público, aproximando-o do
objeto de proteção do peculato de prefeito e, pela mesma razão, permitem a condensação do
desvalor de resultado dos injustos. Não obstante, remanesce a questão sobre se convém
considerar na dosimetria penal esse modus operandi mais reprovável – já que o crime meio de
licitação mantém relação lógica de heterogeneidade com o crime principal de peculato. Parece
coerente ajustar a pena à especial gravidade do contexto delitivo, não o suficiente para a
admissão do concurso próprio entre as infrações penais, mas bastante para refletir na pena o
potencial lesivo do ato típico acompanhante descartado. Essa é uma discussão em aberto.
150
Analisou-se, também, eventual aptidão absortiva do crime de lavagem relativamente ao
crime antecedente que lhe pressupõe, e vice-versa. A predileção político-criminal atribuída à
lavagem singulariza-a frente às demais figuras penais quando com elas conflitante. Assim,
considerando a intenção do legislador de tornar a lavagem um fato típico autônomo dotado de
gravidade invulgar, é difícil, em princípio, reservar a ela a condição de ato típico acompanhante.
Essa preferência pelo reconhecimento do concurso próprio aumenta, antes de tudo, a pertinência
de se diferenciar a lavagem do simples exaurimento do crime antecedente: o simples proveito
econômico do crime antecedente, sem a intenção de disfarçar a natureza espúria dos ativos, não
caracteriza a figura penal em exame. Após a demarcação da fronteira entre o comportamento
caracterizador de lavagem daquilo que não passa de ato atípico, tem cabimento a reflexão sobre
a consunção da lavagem pelo crime antecedente (e vice-versa). A rejeição (ou aceitação) do
concurso impróprio pode ser melhor explicada sob a perspectiva do específico desvalor da
lavagem (ocultação e dissimulação), à luz de sua peculiar objetividade jurídica. Parece ser o
alcance atribuído ao bem jurídico da lavagem o aspecto decisivo à assimilação material do
conteúdo de desvalor entre as normas concorrentes. Em não se podendo considerar a lavagem
um desdobramento regular, ordinário ou esperado do crime antecedente, por se reputá-la uma
forma de ataque especialmente relevante à administração de Justiça (ou à ordem econômica),
prejudicado estará o reconhecimento do exaurimento de sua potencialidade lesiva no crime
antecedente. É dizer, caso se identifique no bem jurídico da lavagem uma significação de
desvalor transcendente ao objetivo de confisco como, por exemplo, a percepção de que é
essencial à organização social a circulação de ativos lícitos na economia para a preservação da
livre iniciativa e concorrência, p.ex. (atribuindo à lavagem a tutela da ordem econômica,
portanto), então será mais difícil pretender que o desvalor da lavagem seja um mero ato típico
acompanhante, eclipsado pela expressão de desvalor da norma penal principal. Essa forma de
pensar justifica a repressão à autolavagem sob a forma de concurso próprio, pois as condutas
praticadas, apesar da identidade de autoria, revelam expressão de desvalor autônomo (de ação
e de resultado) e lesões qualitativamente independentes. Não obstante, em se adotando
orientação menos hermética quanto ao alcance atribuído à objetividade jurídica da lavagem,
será menos tormentoso o caminho para considerá-la casuisticamente um pós-fato coapenado
(pensando-se, aqui, na autolavagem). Acaso entendida apenas como um reforço ao confisco,
sob a perspectiva de ofensa exclusiva à administração da Justiça (obstrução ao rastreamento do
produto de crime pelas autoridades públicas e ao controle de atividades ilícitas), já não haveria
óbice à consunção; antes o contrário, ela calharia para evitar a dupla reprovação pelo mesmo
151
conteúdo de desvalor. Afinal, o confisco estaria atendido com a condenação do mesmo autor
pelo crime antecedente (trata-se de efeito da condenação, nos termos do art. 91, II, do CP).
Por fim, examinou-se a relação entre o crime de corrupção e os delitos socioeconômicos.
Embora seja controversa a consideração da corrupção como um delito socioeconômico
propriamente dito, não se pode negar o intenso intercâmbio entre o bem jurídico administração
pública e as mais variadas atividades econômicas, o que, pelo menos no plano das relações
sociais, conecta o injusto de corrupção com o DPE. Os injustos contra a administração pública
contam com um forte acento político-criminal na questão da obtenção de vantagem indevida a
ensejar perversão entre público e privado. Em paralelo, intensifica-se a convocação do setor
privado a colaborar na luta contra a corrupção com a instituição de programas de prevenção
como o compliance. Esse intercâmbio entre corrupção e delitos socioeconômicos intensifica o
problema dos concursos próprio e impróprio. O STJ tem-se mostrado refratário em reconhecer
a consunção em casos de corrupção. Mas, no âmbito do TRF4, extrai-se a orientação pela
admissão da absorção material do crime de corrupção passiva (CP, art. 317) pelo de facilitação
de contrabando/descaminho (CP, art. 318), por exemplo. No precedente analisado, entendeu-se
pela caracterização do conflito aparente em razão do forte “nexo de dependência” entre as
condutas, com o que se admitiu a interação entre o conteúdo de desvalor dos crimes
concorrentes e, especialmente, a relação de meio e fim entre ambos. Não obstante a importância
do fim perseguido pelo agente, a contraposição das objetividades jurídicas permite identificar
um plus no tocante ao objeto de tutela da figura do art. 318, do CP, o que autoriza a compreensão
de que pode, eventualmente, vir a esgotar o conteúdo de desvalor da corrupção, absorvendo-a
em dado caso concreto. Além da probidade da administração pública, o crime de facilitação de
contrabando/descaminho alcança questões relativas à arrecadação tributária (descaminho) e à
proteção da ordem econômica (contrabando), o que lhe imbui de maior abrangência – a
configuração do injusto do art. 318, do CP, requer o início das ações de descaminho ou de
contrabando. Com efeito, esse delito pode vir a abranger o desvalor de ação e de resultado de
outro crime contra a administração pública, como a corrupção passiva, tal como entendeu o
TRF4 no julgado analisado.
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