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CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO CEARÁ
FACULDADE CEARENSE
CURSO DE SERVIÇO SOCIAL
EDILAINE SOUSA PEREIRA SANTOS
MULHERES E CRACK: UMA ANÁLISE SOBRE O CONTEXTO FAMILIAR DE
MULHERES USUÁRIAS DE CRACK ATENDIDAS NA SANTA CASA DE
MISERICÓRDIA EM FORTALEZA.
FORTALEZA- CEARÁ
2012
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EDILAINE SOUSA PEREIRA SANTOS
MULHERES E CRACK: UMA ANÁLISE SOBRE O CONTEXTO FAMILIAR DE
MULHERES USUÁRIAS DE CRACK ATENDIDAS NA SANTA CASA DE
MISERICÓRDIA EM FORTALEZA.
Monografia submetida à
aprovação da Coordenação do
Curso de Serviço Social da
Faculdade Cearense como
requisito parcial para obtenção
de título de Bacharel em
Serviço Social.
Orientadora: Profª. Ms. Socorro
Letícia Fernandes Peixoto.
FORTALEZA- CEARÁ
2012
2
S237m Santos, Edilaine Sousa Pereira.
Mulheres e crack: uma análise sobre o contexto familiar de mulheres
usuárias de crack atendidas na Santa Casa de Misericórdia em Fortaleza /
Edilaine Sousa Pereira Santos. – 2012.
74 f.
Orientador: Profª. Ms. Socorro Letícia Fernandes Peixoto.
Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) – Faculdade Cearense,
Curso de Serviço Social, 2012.
1. Drogas - crack. 2. Mulheres - dependência química. 3. Políticas
públicas. I. Peixoto, Socorro Letícia Fernandes. II. Título.
CDU 364.692:615.2:615.015.6
CDU 364.662:331.56
CDU 657
Bibliotecária Maria Albaniza de Oliveira CRB-3/867
3
EDILAINE SOUSA PEREIRA SANTOS
MULHERES E CRACK: UMA ANÁLISE SOBRE O CONTEXTO FAMILIAR DE
MULHERES USUÁRIAS DE CRACK ATENDIDAS NA SANTA CASA DE
MISERICÓRDIA EM FORTALEZA.
Monografia como pré- requisito para
obtenção do título de Bacharel em
Serviço Social, outorgado pela
Faculdade Cearense – FaC, tendo
sido aprovada pela banca
examinadora composta pelas
professoras.
Data de aprovação ____/___/____
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________
Profª. Ms. Letícia Fernandes Peixoto. – Orientadora
Faculdade Cearense – FaC
______________________________________________
Profª. Ms. Rúbia Cristina Martins Gonçalves
Faculdade Cearense – FaC
______________________________________________
Profª. Ms. Valney Rocha Maciel
Faculdade Cearense - FaC
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Aos meus AMADOS pais Maria Edneuma Costa de Souza e
Antônio Constantino Pereira. Ao meu esposo André Sousa.
Aos irmãos Alisson Souza e Adisson Victor. Ao Pastor Leandro
e à Missionária Wilma. A todos os meus amigos e amigas
especialmente os que torceram por mim. Aos professores que
contribuíram com a minha formação e especial minha
orientadora Socorro Letícia Fernandes Peixoto que com o
desempenho de um ilustre e brilhante trabalho contribuiu para
que essa produção acadêmica se tornasse possível.
5
AGRADECIMENTOS
Primeiramente agradeço a Deus por ter sido comigo até aqui, pela vida e por
todas as bênçãos já concedidas.
Aos meus pais Edneuma e Antônio pela dedicação ao me ensinarem os
verdadeiros valores de vida e pelo amor que expressam.
Ao meu marido e melhor amigo de sempre, André, pelo seu companheirismo
em todas as vezes que ficou acordado enquanto eu realizava as leituras e pesquisas
para a construção desse trabalho e pelo empenho em me fazer feliz todos os dias.
À minha orientadora e mestre Socorro Letícia Fernandes Peixoto pela
excelência da execução do seu trabalho de orientação, por escutar as angústias e
medos que tive na construção dessa monografia e pela força durante todo o tempo
com sua frase de “vai dar tudo certo”.
A todos os professores que contribuíram sobremaneira para a minha
formação acadêmica.
Ao Pastor Leandro e a Missionária Wilma pela compreensão na dispensa das
atividades do cargo eclesiástico.
Aos meus amigos Micheline Soares, Rose Carolyne, Fernanda Gadelha e
Jaílson Gadelha, pessoas especiais aos quais compartilhei momentos de muita
alegria, aprendizado e companheirismo.
À Banca Examinadora, às excelentíssimas mestres Rúbia Gonçalves e
Valney Rocha, que prontamente aceitou o convite.
À Raimunda Félix, coordenadora da saúde mental da Prefeitura de Fortaleza,
por ter me orientado quanto à algumas bibliografias relacionadas ao uso do crack e
campo da pesquisa desse trabalho.
As assistentes sociais da Maternidade Escola Assis Chateaubriand (MEAC)
por terem proporcionado riquíssimo conhecimento para a minha formação como
assistente social, sobretudo, a Angélica Barbosa, Ana Isabel e Tereza Sampaio,
excelentes profissionais.
6
As pedras preciosas nascem brutas e, mesmo se preciosas, têm uma aparência
normal, quando não até feias. Mas, lapidadas, são maravilhas aos olhos [...] E se a
vida nos lapida, a outra parte cabe a nós de arredondar, colocar formas, dar brilho e
fazer diferença no mundo (THOMPSON, 2007).
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RESUMO
Essa pesquisa tem como objetivo analisar as relações familiares das mulheres
usuárias de crack atendidas na Santa Casa de Misericórdia em Fortaleza. Dialoga-
se com as categorias analíticas: uso de crack, família, e gênero. A metodologia
utilizada pautou-se em pesquisa de natureza qualitativa, utilizando-se como técnica
de coleta de informações, durante o trabalho de campo, a entrevista semiestruturada
e a observação participante junto a duas mulheres na idade de 19 e 25 anos, que se
encontram em situação de internação hospitalar devido o uso e abuso de crack.
Utilizou-se também a pesquisa bibliográfica e documental sobre o tema ora
estudado para fundamentação teórica do trabalho.Dentre os resultados alcançados,
destaca-se que outras expressões da questão sociais decorrem também do uso da
droga, podemos citar a violência contra as mulheres, a prostituição e o furto. O
rompimento dos vínculos familares devido o uso do crack foi algo constatado na
pesquisa. Outra questão identificada foi a necessidade do apoio da família na
reabilitação da usuária.
Palavras-chaves: Família, Gênero, Uso do crack.
8
ABSTRACT
This research has as objective to analyze the familiar relations of taken care of the
using women of crack in the Santa Casa de Misericórdia in Fortaleza. It is dialogued
with the analytical categories: use of crack, family, and sort. The methodology used
was pautou in research of qualitative nature, using itself as technique of collection of
information, during the work of field, the semistructuralized interview and the
participant comment next to two women in the age of 19 and 25 years, that if find in
situation of hospital internment which had the use and abuse of crack. The
documentary on subject however studied bibliographical research was also used and
for theoretical recital of the work. Amongst the reached results, it is distinguished that
other expressions of the social matter also elapse of the use of the drug, we can cite
the violence against the women, prostitution and the robery. The disruption of the
bonds familares had the use of crack was something evidenced in the research.
Another identified question was the necessity of the support of the family in the
whitewashing of the user.
Keywords: Family. Gender.Use of crack.
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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
ABEAD – Associação Brasileira de Álcool e outras Drogas
CAPS – Centro de Atenção Psicossocial
CAPSAD – Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas
CRAS – Centro de Referência da Assistência Social
CREAS – Centro de Referência Especializado de Assistência Social
CEBRID – Centro Brasileiro de Informações Sobre Drogas
COELCE– Companhia Energética do Ceará.
MEAC – Maternidade Escola Assis Chateaubriand
OMS – Organização Mundial da Saúde
PNAD – Política Nacional AntiDrogas
SENAD – Secretária Nacional AntiDrogas
SISNAD – Sistema Nacional de Política Públicas sobre Drogas
SUS – Sistema Único de Saúde
UNIFESP– Universidade Federal do Estado de São Paulo
UNIFOR – Universidade de Fortaleza
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...........................................................................................................11
CAPÍTULO I - OLHARES E TRAJETÓRIAS METODOLÓGICAS SOBRE O
OBJETO DE ESTUDO...............................................................................................14
1.1. A importância do estudo para o exercício profissional do assistente
social..........................................................................................................................17
1.2. Caminho percorrido na apreensão do objeto......................................................20
1.3 Caracterizando os sujeitos da pesquisa...............................................................25
CAPÍTULO II - USO DO CRACK E RELAÇÕES DE GÊNERO: INTERFACES DO
REAL..........................................................................................................................29
2.1. Considerações sobre o significado e a emergência do crack.............................29
2.2. O uso do crack na sociedade brasileira..............................................................31
2.3. Políticas Públicas de enfrentamento ao uso de drogas: Breves
considerações............................................................................................................39
2.4. Diferentes sujeitos, diferentes percursos: as mulheres e o uso do crack...........42
CAPÍTULO III - FAMÍLIA E MULHERES DEPENDENTES QUÍMICAS DO CRACK:
LUGAR DE REFÚGIO OU DE REPÚDIO?...............................................................50
3.1. Da família patriarcal às configurações familiares na contemporaneidade..........50
3.2 As mulheres usuárias de crack e as mudanças ocorridas nas suas relações
familiares....................................................................................................................55
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................64
5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................67
APÊNDICE.................................................................................................................69
11
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo analisar as relações familiares das
mulheres usuárias de crack, abordando as mudanças que ocorreram após o uso da
droga e o papel dessas mulheres no interior de suas famílias.
Dentre os questionamentos feitos na problematização desse estudo,
destacam-se: Como esses sujeitos se percebem como mulher e usuária de crack?
Quais as mudanças em suas vidas após o início do uso do crack? Qual o significado
da família para as mulheres usuárias de crack? Como a família passou a tratá-las
após a dependência química do crack? Como se dá o relacionamento dos familiares
com elas? Quais os preconceitos enfrentados pelas usuárias de crack por parte de
seus familiares?
As motivações para a construção desse trabalho surgiram a partir da
experiência de estágio de serviço social na Maternidade Escola Assis Chateaubriand
(MEAC) por três semestres. Era crescente o número de atendimentos de mulheres
gestantes e puérperas usuárias de crack, fato este que apontou grande interesse
para estudo.
Além disso, o uso do crack, como uma das expressões da questão social,
tornou-se um fenômeno mundial e, possui vários desdobramentos na vida dos
sujeitos que o consome. É perceptível que a relevância do tema na
contemporaneidade tem merecido destaque no âmbito jurídico, da sociedade civil e
da mídia em geral.
É sabido que o uso de drogas sempre existiu, porém o abuso das substâncias
psicoativas tem se acentuado de forma rápida e complexa no contexto atual. A
epidemia do uso do crack, como expressão da questão social, interfere diretamente
na vida dos indivíduos em múltiplos aspectos, como: saúde, educação, segurança
pública, assistência social e, a cada dia, desafia o Estado e a sociedade civil a
buscar alternativas para o seu enfrentamento.
Não podemos hoje atrelar o uso do crack à incapacidade de acesso das
informações. Pelo contrário, a pobreza não é pré- requisito para o uso. Ainda se fala
12
que a pobreza e miséria são os principais fatores determinantes que levam o
indivíduo a situação de vulnerabilidade e, portanto, de uso de drogas. Porém,
podemos constatar que o crack não escolhe classe social, etnia ou sexo, apesar das
situações de vulnerabilidade e a ausência de políticas públicas de educação, saúde,
trabalho e lazer sejam potencializadores do uso.
O uso de crack por mulheres tem suas particularidades. Ressaltamos que as
mulheres, ao longo da história, vêm passando por vários tipos de estigmas. Embora,
atualmente, as mulheres tenham rompido com vários preconceitos, a tentativa de
imbuir os papéis sociais de gênero (dona de casa, mãe, esposa, entre outros) ainda
é algo forte na sociedade. Ser mulher e ser usuária de crack ao mesmo tempo, é
romper com os valores construídos pela família e pela sociedade sobre o significado
do feminino.
Na pesquisa bibliográfica são utilizados autores tais como: Alves (2011);
Bourguignon (2008); Deslandes (2007); Goffman (1988); Martinelli (1999); Melloto
(2009); Minayo (2010); Motta (2009); Peixoto (2010); Pereira (2011); Scott (1989);
Zilberman (1998), entre outros. As categorias que permeiam esse estudo são: uso
do crack, gênero e família. Sendo a pesquisa de campo de natureza qualitativa.
O presente trabalho foi estruturado em três capítulos, sendo em todos eles,
constituídos dos relatos dos sujeitos pesquisados relacionando-os com as teorias
expostas.
O Primeiro capítulo denominado: “OLHARES E TRAJETÓRIAS
METODOLÓGICAS SOBRE O OBJETO DE ESTUDO” traz a discussão sobre o
percurso metodológico da pesquisa. É constituído das curiosidades que levaram a
escolha do objeto, dos objetivos propostos, da importância de se discutir o tema, das
estratégias metodológicas e do perfil dos sujeitos da pesquisa. É importante
ressaltar que as teorias que embasaram esse capítulo foram de suma importância
para o desenvolvimento da metodologia da pesquisa.
O segundo capítulo com o título: “USO DO CRACK E RELAÇÕES DE
GÊNERO: INTERFACES DO REAL” traz a definição do crack, da sua emergência
na sociedade brasileira, de como o uso da droga foi visto ao longo da história e, do
desenvolvimento de políticas públicas estatais para enfrentamento dessa
13
problemática. Outra discussão destacada nesse capítulo refere-se à categoria
gênero, assim abordamos: as várias definições da categoria gênero por alguns
autores, as relações de poder ente homens e mulheres, a emergência do movimento
feminista e da interface com os papéis sociais historicamente atribuídos às mulheres
no contexto familiar, as relações entre mulheres e dependência química do crack,
bem como os seus desdobramentos pelo uso.
O terceiro intitulado: “FAMÍLIA E MULHERES DEPENDENTES QUÍMICAS
DO CRACK: LUGAR DE REFÚGIO OU DE REPÚDIO?” apresenta o significado da
categoria família, desde as antigas configurações até à contemporaneidade. As
relações familiares das mulheres usuárias de crack, as dificuldades que elas
enfrentam por serem usuárias e as mudanças decorridas do uso do crack.
Por fim, a guisa de conclusão do trabalho expomos as considerações finais
em torno da discussão apresentada, as questões que foram percebidas desde o
levantamento bibliográfico sobre a temática até os relatos das entrevistadas da
pesquisa.
14
1- OLHARES E TRAJETÓRIAS METODOLÓGICAS SOBRE O OBJETO DE
ESTUDO
Este capítulo trata da trajetória metodológica para a construção do objeto da
pesquisa, a partir da nossa motivação e dos nossos questionamentos iniciais sobre
a temática abordada. Discorreremos sobre os objetivos da pesquisa, articulando-os
à relevância do tema na contemporaneidade. Apresentaremos ainda o campo da
pesquisa, através de um breve histórico da instituição de atendimento às usuárias e,
as estratégias metodológicas adotadas para a apreensão das informações e a
caracterização dos sujeitos da pesquisa. Abordaremos também a relação e a
importância desse estudo para a profissão do serviço social.
O principal objetivo desse trabalho é compreender como se dá a dinâmica
familiar das mulheres usuárias de crack assistidas na unidade de dependência
química da Santa Casa de Misericórdia de Fortaleza. Nesse sentido, buscamos
desvelar os impactos da situação de drogadicção dessas mulheres em suas
famílias, dada suas condições específicas de gênero. É sabido que, historicamente,
foram atribuídos às mulheres vários papéis sociais (mãe, dona de casa, esposa,
entre outros), sobretudo, no âmbito da família. Assim, quando as mulheres não
cumprem determinados papéis socialmente destinados a elas, estas enfrentam
inúmeros estigmas, a exemplo das mulheres em situação de drogadicção.
Assim, outro objetivo deste trabalho é compreender as percepções dessas
mulheres sobre si mesmas, dada sua condição de gênero. Sabemos que a
identidade feminina é pautada na constituição de atributos ligados a delicadeza, a
fragilidade, a sensibilidade, dentre outros. Assim, em razão da construção social da
identidade feminina e masculina, o uso de drogas por homens é mais “naturalizado”
socialmente do que pelas mulheres.
Entender esse contexto foi primordial para o alcance dos objetivos deste
estudo, uma vez que, analisar essa realidade de dentro para fora, propicia o
desvendamento dos questionamentos que motivaram a construção de tal trabalho.
15
Tentamos perceber as possíveis dificuldades enfrentadas pelas mulheres em
seu contexto familiar, a partir de sua condição de usuária de crack. Analisamos
ainda, a rotina das mulheres na unidade de saúde a qual estão sendo atendidas. A
relação existente de ser mulher e pessoa adicta do crack é também uma questão
indagada neste trabalho.
Um fator relevante que motivou a escolha deste objeto se deu a partir da
nossa experiência de estágio na Maternidade Escola Assis Chateaubriand (MEAC).
Foi através desta vivência que pudemos identificar a crescente incidência de
mulheres envolvidas com o uso de crack. Por percebermos a necessidade de tratar
o fenômeno da drogadicção, a partir desta experiência, é perceptível e relevante a
demanda dessa expressão da questão social, que cresce a cada dia, sobretudo,
junto às mulheres usuárias de drogas, principalmente do crack. Ressaltamos que
muitas delas têm as ruas como moradia.
O uso de drogas se tornou um problema atual e cada vez mais torna- se
visível na sociedade, uma vez que, o uso de substâncias psicoativas, além de
causar problemas de saúde, gera também problemas econômicos e sociais. Neste
sentido, faz- se necessário um debate teórico, político e social a partir dessa
expressão da questão social, para que haja uma intervenção por parte dos entes
governamentais e da sociedade civil, na busca de melhorias para a população
assistida e que, de alguma forma, possibilite às mulheres novas possibilidades de
exercício da cidadania, mediante o exercício e a garantia dos seus direitos.
O assistente social como um profissional crítico, propositivo, interventivo e
político, deve a partir do seu conhecimento e intervenção sobre a realidade dar
conta desse fenômeno, que se evidencia a cada instante. A abordagem
investigativa desse tema propiciará uma maior qualidade ao exercício profissional,
através da ampliação do conhecimento e de suas especificidades.
Tivemos muitas dificuldades de encontrarmos bibliografias que tratem
especificamente do tema, até porque essa discussão é recente, principalmente
quando se trata gênero feminino. Até recentemente, o uso e abuso de drogas
psicoativas era considerado um problema estritamente do gênero masculino, bem
como suas formas de intervenções e de tratamentos. No entanto, cada vez mais,
16
percebemos o envolvimento de mulheres com o uso e abuso de crack, mudando o
“cenário” desta problematização.
Uma pesquisa publicada pela Associação Brasileira de Álcool e outras drogas
(ABEAD) em setembro de 2012, constatou que entre os usuários do crack, as
mulheres chegam a 54% dos dependentes químicos, enquanto que os homens são
42%, denotando uma diferença considerável do uso e abuso desta droga entre os
gêneros, seja ela consumida de forma aspirada ou fumada, utilizada através do pó
ou das pitadas de cachimbo.
A supracitada pesquisa apontou ainda que no Brasil soma-se 2,6 milhões de
usuários destas substâncias. De acordo com esse estudo, a dependência da droga
por parte dos indivíduos do sexo feminino é justificada através de explicações
biológicas. Segundo ABEAD:
A estrutura hormonal feminina já apareceu como uma das razões para as jovens entre 24 e 35 anos serem líderes em consumo exagerado de álcool [...]. Por causa dos hormônios, a conexão das drogas com o cérebro é mais rápida. Elas “precisam de menos quantidade e menos tempo de uso de tóxico para ficarem viciadas”. (ABEAD, 2012).
1
O II Levantamento Domiciliar realizado pela Secretaria Nacional Antidrogas
(SENAD), pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID) e
pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) no ano de 2005, comprova que o uso
do crack dobrou em nível nacional, passou de 0,4% para 0,8% de uso de vida. Após sete
anos, cotidianamente, nos espaços públicos vimos que essa problemática tem se ampliado
de forma extraordinária. O que outrora, era considerado pela sociedade como algo
esporádico, hoje tem se “naturalizado”, tornou-se banal, principalmente pela mídia.
Podemos ainda colocar que a expansão, complexidade e a diversidade que
envolve a questão da drogadicção, têm demandado a necessidade de estudos nesta
área, analisando não só o individuo e a substância, mas todo o contexto social em
que ele está inserido e, por conseguinte, um olhar diferenciado para o trato e as
formas de intervenção sobre a problemática.
1 A referida citação está contida no estudo que, por sua vez, não é apresentado em documento
paginado. Está disponível em: http://www.abead.com.br/midia/exibMidia/?midia=9340.
17
Segundo Olívio e Graczyk:
Portanto, apresenta-se como necessário a toda intervenção profissional a
mulheres [...] usuárias de crack, especificamente na saúde, uma análise
cada vez mais aprofundada do fenômeno da drogadição [...] Análise esta
que ultrapasse os limites do senso comum e da culpabilização individual
das mulheres - reduzidas à suas funções maternas - tendo em vista o
significado social atribuído a maternidade bem como ao uso e a
dependência química. (OLÍVIO e GRACZYK, 2011, p. 9).
Os impactos do uso e abuso do crack por mulheres, dado o crescimento do
consumo por parte delas, contrariam, muitas vezes, as expectativas vinculadas
socialmente aos papéis de gênero, sobretudo, àqueles que tratam da condição de
ser mãe, cuidadora da família e dos filhos. No entanto, de acordo com Oliveira,
Paiva e Valente (2007), numa escala mundial ainda é maior o consumo de
substâncias psicoativas entre os homens. Esses autores utilizam a expressão
“igualdade de gênero” para explicar como as mudanças do perfil dos usuários, no
que diz respeito, às mulheres são relacionadas aos novos estilos de vida, nas
últimas décadas. Ou seja, as mulheres têm ocupado espaços no mundo público,
principalmente pela inserção crescente no mercado de trabalho, isso possibilita
mudanças gradativas nos seus papéis sociais.
1.1. A importância do estudo para o exercício profissional do assistente
social
Sabemos que a questão social constitui-se como matéria-prima do trabalho
do assistente social, dada sua inserção na divisão social e técnica do trabalho.
Segundo Iamamoto:
A questão social expressa, portanto, desigualdades econômicas, políticas e culturais das classes sociais, mediatizadas por disparidades nas relações de gênero, características étnico-raciais e formações regionais, colocando em causa amplos segmentos da sociedade civil no acesso aos bens da civilização. (IAMAMOTO, 2008, p. 160)
Portanto, para compreensão das múltiplas expressões da questão social, uma
das principais tendências da profissão de serviço social tem sido a realização
constante da pesquisa acerca da realidade social, como elemento importante para a
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produção de práticas mais qualificadas. No entanto, a interface do serviço social
com outras disciplinas advindas das Ciências Sociais, como a sociologia e a
antropologia, é importante para a compreensão das nuanças dos inúmeros objetos
de estudo vinculados a esse campo do conhecimento.
É preciso compreender que as sociedades humanas vivem um presente,
marcado por uma historicidade e configurações culturais em contínua
transformação. Sabemos que o objeto das ciências sociais é histórico, nessa ótica, é
necessário no processo investigativo, ultrapassar a imediaticidade dos fatos, ou seja,
o que está posto na contemporaneidade.
Segundo Minayo (2010), as sociedades humanas passam por um processo
constante de reconstrução sobre o que está dado ao novo que surge, levando- se
em consideração tanto as especificidades dos espaços aos quais os sujeitos estão
inseridos, quanto a sua formação social e as suas configurações culturais. Ainda
sobre a investigação, a autora ressalta que:
Toda investigação social precisa registrar a historicidade humana, respeitando a especificidade da cultura que traz consigo e, de forma os traços dos acontecimentos de curta, média e longa duração, expressos em seus bens materiais e simbólicos. (MINAYO, 2010, p. 39).
Na verdade, é necessário analisar as particularidades, compreendendo as
relações macro e micro que cercam os sujeitos. Nesse sentido, é relevante
reconhecer o sujeito na sua singularidade articulado ao seu modo de vida e a sua
experiência social. A ampliação do olhar torna a pesquisa mais completa e rica de
informações que, por conseguinte, possibilita a interpretação da realidade a partir de
uma análise mais aprofundada sobre o que está sendo pesquisado.
Cabe ressaltar, oportunamente, que não é apenas o investigador que propicia
o sentido da pesquisa e a fundamentação desta, mas também todos os sujeitos
envolvidos na mesma, partindo do princípio do que Minayo (2010) chama de
consciência histórica. Assim num trabalho investigativo, os seres humanos, grupos e
a sociedade são entes fundamentais que propiciam significados e intencionalidades,
fatores capazes de dar conta da interpretação das ações e construção destas.
19
Portanto, o pesquisador como parte do processo de conhecimento mantém
uma relação com os sujeitos, uma vez que, estão inseridos na sociedade e
dialeticamente são atores e frutos, ao mesmo tempo, do mesmo período histórico.
Assim, sobretudo, na profissão de serviço social, o pesquisador deve, além de
construir conhecimentos em torno dos fenômenos da realidade, buscar formas de
interagir com as pessoas e o meio em que vivem a partir do desenvolvimento de
práticas que tem as relações sociais, como seu campo prioritário de seu trabalho.
É a partir da investigação social que o assistente social atua mediante sua
prática interventiva, com base nas dimensões teórico-metodológicas, ético- políticas
e técnico-operativas. Historicamente, mesmo com a prevalência do aspecto técnico-
operativo da sua prática, ou seja, do caráter eminentemente interventivo da
profissão, faz- se necessária a pesquisa, pois é a partir dela que o profissional é
capaz de compreender a realidade e propor transformações, visando a melhoria das
condições de vida dos usuários e possibilitando a esses sujeitos o reconhecimento e
a busca pelos seus direitos, conforme os princípios previstos no projeto ético político
da profissão.
Neste caso, as condições das mulheres em situação de drogadicção do crack,
através da pesquisa, ganhará relevância diante da visibilidade da realidade que as
mesmas vivenciam, tanto para o desenvolvimento deste estudo, quanto no
fortalecimento de uma atuação mais incisiva sobre a problemática apresentada. De
acordo com Bourguignon:
A pesquisa deve destinar-se não só a compreender as questões estruturais, mas numa pesquisa de totalidade o processo de reprodução material e espiritual da existência do ser humano [...] o grande desafio do pesquisador assistente social, que se preocupa com a centralidade do sujeito enquanto condição ontológica e não como estratégia metodológica de pesquisa, é possibilitar através da pesquisa maior visibilidade ao sujeito, à sua
experiência e a seu conhecimento (BOURGUIGNON, 2008, p. 303).
O assistente social é capaz de compreender a realidade a partir da
perspectiva da totalidade, analisando todos os fatores que a engloba. Com o
desvendamento da natureza propiciada pela pesquisa, esse profissional tem
potencial de desenvolver suas práticas pautadas no Código de Ética da profissão,
capaz de buscar respostas às demandas postas no real.
20
No tocante a essa pesquisa, propomos trazer à tona as vivências das
relações familiares das mulheres drogadictas que correspondem aos sujeitos dessa
pesquisa. A partir disso, é importante compreender suas experiências e os
significados atribuídos por elas a essa relação entre ser mulher e ser usuária de
crack, sobretudo, no interior de suas famílias. Desse modo, buscamos com esse
estudo propiciar um maior conhecimento não só para os assistentes sociais, mas
para outros profissionais que lidem com esse público. Bourguignon ainda diz que:
A preocupação com a centralidade que o sujeito ocupa nas pesquisas do serviço social não é ocasional, mas revela uma profissão que tem suas ações pautadas nas demandas dos usuários dos serviços sociais, que se expressam nas histórias de vida que trazem as organizações sociais, nas relações que movimentam no seio da família, do trabalho e da sociedade, nas raízes e expressões culturais que demostram, nas carências socioeconômicas e politicas que exigem posicionamentos do assistente
social (BOURGUIGNON, 2008, p. 304).
Diante do exposto cabe a aproximação do pesquisador com o sujeito, uma
interação necessária capaz de dar relevância à realização de pesquisas na área
social. Em relação ao serviço social, a relação do profissional com os usuários pode
adquirir um caráter crítico e sensibilizador de mudanças nos seus modos de vida.
1.2. Caminho percorrido na apreensão do objeto
As aproximações sucessivas em torno do objeto de estudo pautam-se num
arsenal de teorias e metodologias capazes de compreender e, ao mesmo tempo de
criticar, o fenômeno estudado. Sabemos que a abordagem no campo das ciências
sociais é imprescindivelmente qualitativa, a realidade social, portanto, deve ser
analisada a partir de critérios que possibilitem uma amostragem dotada de
significados como forma de garantir a qualidade da pesquisa. Segundo Minayo
(2010), isso propicia a enumeração dos fatos que apresentam elementos de
homogeneidade e regularidade da situação investigada envolvendo os indivíduos e a
sociedade. Essa mesma forma de analisar a realidade demonstra não só uma forma
teórica da abordagem da investigação social, mas também o pensamento e, até
mesmo, incita um discurso político e crítico, valendo-se de instrumentos eficazes,
numa elaboração de um trabalho rico de informações.
21
Em face das nossas inquietações em torno do objeto da pesquisa, surgiram
alguns questinamentos, sendo elas: Será que ser homem usuário de crack tem uma
maior aceitação do uso da droga, do que ser mulher usuária de crack? É possível o
cumprimento dos papéis sociais e familiares atribuídos pela sociedade sendo mulher
dependente química do crack? As relações familiares se dão do mesmo modo com
uma usuária de crack do sexo feminino? Será que essas mulheres percebem suas
identidades femininas de acordo com o que a sociedade dita ser o ideal? O convívio
familiar dessas mulheres se dá num cenário de passividade ou de conflitos?
Portanto, através dessas hipóteses e curiosidades foi possível desenvolver uma
característica investigativa, requerendo de nós uma maior abertura e
desprendimento para a realização da pesquisa.
Segundo Deslandes (2007, p.46) a metodologia, quanto a sua definição, exige
do pesquisador uma dedicação e cuidado, pois por mais que haja a descrição formal
dos métodos e técnicas que serão utilizadas na pesquisa, há a indicação formal e a
leitura do quadro teórico realizada pelo pesquisador, bem como seus objetivos de
estudo.
E foi embasada nesse discurso que o tipo de pesquisa ao qual se utiliza neste
trabalho é a pesquisa qualitativa. Esta é capaz de nos mostrar a realidade dos
sujeitos, os seus significados e suas experiências de vida, suas relações com os
outros e com a sociedade. Nela não cabe apenas as opiniões do pesquisador, mas a
participação do sujeito contendo suas histórias de vida, suas experiências e visões
de mundo, tendo ele um valor significativo na coleta de informações.
Martinelli (1999) enfatiza alguns pressupostos que fundamentam o uso de
metodologias qualitativas de pesquisa. A primeira destacada por ela trata do
reconhecimento da singularidade do sujeito. Explicando que cada sujeito é singular,
único. E que para conhecer essa singularidade é necessário conhecer e entender
seu contexto de vida e isso só se dá através das aproximações sucessivas com a
realidade dele. O segundo pressuposto destacado pela autora trata do
reconhecimento da importância de se conhecer a sua experiência social, analisando
não os fenômenos que culminam das circunstâncias de vida e sim do modo de vida
contemplando seus valores, crenças, sentimentos, costumes e práticas sociais do
dia- a dia. E por fim, o terceiro, pressupõe reconhecer que o modo de vida do sujeito
22
parte de sua experiência social, o viver histórico desse sujeito emana de uma cultura
estabelecida ou reinventada que determina essa experiência social. Ainda sobre a
experiência social, a autora diz:
É em direção a essa experiência social que as pesquisas qualitativas, que se valem de fonte oral, se encaminham, é na busca dos significados de vivências para os sujeitos que se concentram os esforços do pesquisador [...] podemos afirmar que, nessa metodologia de pesquisa, a realidade do sujeito é reconhecida a partir de significados que por ele lhe são atribuídos (MARTINELLI, 1999, p. 23).
Então podemos entender que o conhecimento do percurso de vida dos
sujeitos é de suma importância para a validação da pesquisa qualitativa. Ele propicia
recursos que subsidiam uma análise subjetiva do objeto ao qual se está
pesquisando, com uma riqueza de informações bastante significativas e com
maiores possibilidades de se atingir os objetivos propostos, para além de dados
objetivos, como podemos ver na pesquisa quantitativa.
A relevância de se observar e levar em consideração o sujeito na sua
historicidade, a dinâmica que perpassa a problemática, a análise do passado e da
contemporaneidade numa perspectiva macroscópica que envolve as várias
instâncias ao qual o sujeito pertence é imprescindível para um processo de
investigação social.
Analisar a realidade sem observar sua constância, torna a pesquisa
desmedida, focada, limitada e objetiva, sabendo que a subjetividade é um elemento
importante nas discussões na profissão do serviço social. Transitar pela evolução ou
regressão, num espaço histórico é estar à frente do que está colocado. É apreender
o conhecimento do processo histórico a partir de critérios de totalidade e
universalidade numa visão social da realidade. Portanto, a dialética proporciona as
bases para a interpretação da realidade, que é dinâmica e totalizante que subsidiará
uma melhor compreensão e articulação com o objeto estudado.
Dada a natureza qualitativa da pesquisa, utilizamos a entrevista semi-
estruturada para analisar, através dos seus relatos de experiências de vida, como se
dão as relações sociais, sobretudo familiares, das mulheres dependentes químicas.
A entrevista semi- estruturada para Deslandes “combina perguntas fechadas e
23
abertas, em que o entrevistado tem a possibilidade de discorrer sobre o tema em
questão sem se prender à indagação formulada”. (DESLANDES, 2007, p. 261-262)
Essa técnica foi escolhida por se tratar de um instrumento que dá condições
de flexibilidade no momento da coleta de dados. A entrevista semi- estruturada foi
realizada através de um roteiro de perguntas previamente estabelecidas, não se
limitando apenas a estas, permitindo assim que outras perguntas pudessem ser
realizadas no momento da entrevista, relevando e observando os elementos da
conversa. Ressaltamos que foi traçado um breve perfil de cada entrevistada, a fim
de caracterizá-las dando melhores condições de analisar e compreender da
realidade dessas mulheres, principalmente, nas suas relações com a família, a fim
de, chegarmos às possíveis respostas que contemplassem as nossas indagações
em torno do objeto em estudo.
As perguntas que compõem a estrutura do roteiro da entrevista partiram das
categorias de análise da pesquisa que foram: gênero, o uso de drogas e família, em
vista de atingir os seus objetivos propostos. É importante destacar que no
desenvolvimento do instrumental da pesquisa, tivemos a preocupação da linguagem
adotada no roteiro, para a melhor compreensão dos sujeitos, pois é necessário o
máximo de clareza para se investigar.
Utilizamos ainda da observação participante como técnica integrante do
nosso estudo. Através das nossas inúmeras idas e vindas ao local pesquisado,
observamos os gestos, os comportamentos, os silêncios, as entonações de vozes
das mulheres entrevistadas, sendo esses olhares fundamentais no processo de
elaboração da pesquisa. A relação destas com o espaço institucional e as
permissões e resistências, mesmo que veladas, dos profissionais também foram
questões observadas ao longo do trabalho de campo.
Segundo Minayo, a observação participante pode ser considerada parte
essencial do trabalho de campo da pesquisa qualitativa. Esta se caracteriza pela
presença do observador numa situação social, com a finalidade de realizar uma
investigação científica (Minayo, 2010).
Conforme descrito anteriormente, o campo de realização da pesquisa foi o
hospital da Santa Casa de Misericórdia em Fortaleza. A necessidade de construi-la
24
ocorreu no ano de 1839, diante de uma calamidade na saúde no Estado do Ceará,
numa das epidemias da malária, porém naquele presente momento não foi
construída. Somente tempos depois, por conta de uma epidemia de febre amarela
foi que iniciou a construção, embora ainda não terminada no ano de 1851. Com o
estado sanitário de Fortaleza precário, foram abertas duas enfermarias da instituição
aos doentes mais carentes, já lotando as unidades. Mesmo com esse episódio a
inauguração só se deu em 1861, pois até então o hospital dividia espaço com o
Liceu.
Inicialmente, a instituição foi construída com recursos do Governo da
Província para resolver os problemas de saúde decorridos da ultima epidemia de
febre amarela. Seu funcionamento não era prioritário devido a divisão do espaço
estrutural com a biblioteca e com o colégio Liceu, pois havia uma pressão dos
intelectuais da época e de famílias abastadas que desejavam ver seus filhos
estudando.
No ano de 1915, com a seca no Estado do Ceará, a Santa Casa passou a
atender uma grande massa de retirantes sofrendo das mazelas provocadas por uma
das maiores secas já registradas. Após dez anos do ocorrido, foi que o hospital
passou a ser considerado com um hospital tecnologia avançada para a época,
sendo o pioneiro por introduzir o serviço de radiologia, inaugurando o primeiro
aparelho de raio X do Estado.
A unidade de dependência química foi inaugurada em 28 de abril de 2011
com seis pacientes do sexo masculino e, somente no dia 02 de maio de 2011 foi
admitida a primeira paciente do sexo feminino. A unidade tem capacidade para
atendimento de 12 pacientes sendo 8 homens e 4 mulheres. O trabalho
desenvolvido pela equipe da unidade é multidisciplinar. A equipe é composta por:
um médico, um psiquiatra que atuam durante o dia, tendo um médico de sobre aviso
para atendimento noturno e fins de semana; De segunda a sexta- feira conta com
um assistente social, uma coordenadora que é psicóloga, três enfermeiras, um
massoterapeuta, um terapeuta ocupacional, um professor ocupacional. Os usuários
também recebem as visitas de discentes da Universidade de Fortaleza (UNIFOR)
que desenvolvem um trabalho na promoção da qualidade de vida em saúde, de um
artista musical que uma vez por semana se apresenta na instituição para esses
25
usuários. Os mesmos também participam de um trabalho desenvolvido pelo
Programa de Educação pelo Trabalho para a saúde (PET) também com foco na
promoção da qualidade de vida. Não existem documentos sobre fundação da
unidade, as informações colhidas sobre quando o serviço foi criado foram advindas
do endereço eletrônico da instituição, através do relato da primeira profissional de
enfermagem da unidade de dependência química e dos arquivos do setor.
1.3 Caracterizando os sujeitos da pesquisa
Os sujeitos da pesquisa são mulheres na fase adulta da faixa etária de 19 e
25 anos, usuárias em situação de dependência química de crack, com perdas de
vínculos familiares e comunitários, dada situação de risco social, internadas na
unidade de dependência química da Santa Casa de Misericórdia de Fortaleza.
No tocante ao modelo de família, ressalta-se que os dois sujeitos da pesquisa
pertencem à família ampliada2. Caracterizando uma singularidade entre esses entes
entrevistados.
Nesse momento, é importante ressaltar as inúmeras dificuldades encontradas
durante a realização do trabalho de campo, sendo estas, partes importantes que
caracterizam essa pesquisa, dada a peculiaridade das situações em que se
encontram os sujeitos entrevistados.
Uma das dificuldades foi o acesso às usuárias, pois por “dezessete vezes”,
fomos ao campo da pesquisa e em “quinze delas”, as usuárias internadas naquele
período estavam sob efeito de medicamentos impedindo a realização da entrevista,
pois quando medicadas ficam sonolentas e perceptivelmente não detém de
condições cognitivas para responder as entrevistas. A permanência dessas usuárias
também é dada num período muito curto, se dá apenas por quinze dias e a unidade
de dependência química do campo da pesquisa só possui quatro leitos, que por todo
o processo da realização desta nunca estiveram todos ocupados, não pela baixa
2 De acordo com a Lei Nacional de adoção 12.010/2009 no artigo 25, parágrafo único: “Entende- se por família
extensa e ampliada aquela que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade de casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantem vínculos de afinidade e afetividade”.
26
demanda, mas pela burocratização da internação, pois todas elas são
encaminhadas pelos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPSad) e
durante um período da pesquisa esteve de greve. Outro problema que inviabilizou a
participação de mais usuárias na pesquisa se deu pelas crises de abstinências em
muitas delas, causando relutância e agressividade no momento das abordagens.
Somente por duas vezes, foi possível em cada uma, conversar com uma usuária.
Durante o processo de investigação, outra dificuldade foi a timidez, tanto no
momento do convite quanto durante o processo de entrevista. O uso do gravador foi
de suma importância, pois a fala das usuárias já eram bem delimitadas e objetivas,
com a utilização dessa técnica foi possível registrar tudo o que foi possível para a
construção das análises. Todas as entrevistadas tiveram o mesmo receio, achavam
que fazíamos parte da polícia e que estávamos querendo investigar a vida delas.
Precisamos mostrar nossa identidade estudantil, pois mesmo com o termo de
consentimento para realização da pesquisa, elas não acreditavam que era apenas
um estudo acadêmico. Embora com toda essa desconfiança, nenhuma delas foram
forçadas a participarem da pesquisa, só foi necessário esclarecer melhor do que se
tratava.
Outra característica singular era o olhar das entrevistadas. Percebi, a partir da
técnica da observação participante, que as mulheres não olhavam nos olhos em
nenhum momento da entrevista, pareciam envergonhadas, a impressão que dava
era que estivessem cometido algum crime. Após a realização das perguntas, as
entrevistadas ficavam pensativas e, por vários momentos, não respondiam, tendo
que passarmos para as demais perguntas. Mesmo, ao utilizarmos a técnica da
entrevista semi- estruturada, que dá condições de no decorrer da entrevista,
façamos outras perguntas, dependendo da resposta do sujeito, foi difícil obtermos
respostas mais livremente das mulheres.
Observamos que as suas mãos, no decorrer das entrevistas, não paravam.
Os dedos eram inquietos, se movimentavam rapidamente. Por alguns momentos, as
falas seguiam um curso calmo e vagaroso, não obstante, por muitas vezes, não
seguiam uma mesma linha de raciocínio, no momento das respostas. Em várias
situações, tivemos que refazer algumas perguntas por pedidos das próprias
entrevistadas, por não saberem e mesmo querendo responder, sentiam dificuldades.
27
Ressaltamos que os nomes das entrevistadas, dada a necessidade de
resguardar o sigilo e garantir o anonimato das suas identidades, foram todos
fictícios, vinculados aos nomes de flores.
[...] não sei o que é ser mulher [...] eu sei o que é ser mulher, mas dizer com palavras é muito difícil [...] Acho que ser mulher é [...] hum [...] acredito que ser mulher é [...] peraí [...]sei lá, sei não. (Orquídea, 19 anos)
O estado físico de todas as usuárias também eram bem similares umas das
outras. Bem magras e com muitas cicatrizes no corpo, os traços femininos já não
eram os mesmos, elas mesmas se diziam diferentes, após o uso do crack.
Eu era bem bonita viu [...] tú é doida máh [...] parecia uma princesinha, dava era gosto de me olhar no espelho. Hoje tô só o resto, se você visse minha foto e botasse aqui perto de mim, nem dizia que era eu, dizia que era outra pessoa, dizia que era mentira minha. (Margarida, 25 anos).
Sabe o que é isso aqui? Isso tudo foi chibata. Nunca aguentei desaforo de ninguém, aí o nêgo vem querendo tirar onda da sua cara [...] tá pensando o quê? Parto pra cima mesmo, não como partido de ninguém [...] sou pior que um homem quando quero. (Margarida, 25 anos).
As mãos eram bem envelhecidas, haviam marcas de queimaduras nos dedos,
que segundo elas eram decorrentes do uso do crack. Margarida, uma das
entrevistadas, nem tinha mais a digital de um dos dedos de tanto queimar a pedra
do crack no momento do uso.
Mesmo sabendo das particularidades que compõem a identidade de cada
uma dessas mulheres, buscaremos a seguir traçar um breve perfil de cada uma
delas.
Orquídea é natural de Fortaleza-Ceará; tem 19 anos; solteira;
desempregada, nunca trabalhou. Estudou até a 3ª série do ensino
fundamental, disse que não quis mais estudar. Mãe de dois filhos tem
como residência a casa do pai e do irmão mais novo no bairro do Bom
Jardim, em Fortaleza, porém admite que atualmente seu lar é na rua. O
28
principal provedor familiar é o pai de Orquídea que recebe apenas um
salário mínimo. Não possui religião, diz acreditar em Deus, já participou
ativamente da igreja católica, mas não é praticante.
Margarida é natural de Fortaleza-Ceará; tem 25 anos; solteira;
desempregada, recentemente trabalhou numa empresa prestadora de
serviços da COELCE como entregadora de correspondências com
aviso de corte por um ano e oito meses, embora estivesse constando
na sua carteira de trabalho a função serviços gerais. Concluiu o ensino
médio e diz que nunca se interessou pelos estudos, não possui filhos,
é homossexual. Reside “de favor” na casa de uma irmã mais velha e
de um sobrinho deficiente auditivo há um ano no bairro do Bonsucesso,
segundo ela não mora com a mãe porque esta tem problemas de
saúde e o uso das drogas fez com que ela fosse morar com a irmã e o
sobrinho. A irmã possui uma lanchonete em frente a uma escola do
bairro e o sobrinho recebe beneficio pela previdência social. Também
diz que não tem religião, mas acredita em Deus.
Sabendo que o uso do crack manifesta-se, conforme já relatado, como uma
das muitas expressões da questão social que assola a nossa sociedade,
compreender a interface entre o fenômeno do crack e sua utilização pelas mulheres
será algo exposto no próximo capítulo, mediante os relatos destas em articulação
com as reflexões teóricas.
29
2 - USO DO CRACK E RELAÇÕES DE GÊNERO: INTERFACES DO REAL
O presente capítulo traz um breve resgate histórico de como o uso do crack
inicialmente, foi identificado na sociedade, principalmente, na sociedade brasileira,
como o olhar para esse problema foi se modificando ao longo do tempo, quais foram
às formas de atuação do Governo Federal em relação à criação de políticas públicas
que lidam com a problemática até o presente momento.
As relações de gênero também serão discutidas nesse capítulo. As
discussões em torno dessas relações se dão sobre as várias definições sobre o
conceito de gênero, numa sociedade ainda predominantemente sexista, pautada por
relações de subordinação e/ ou submissão. Outros pontos também discutidos são as
relações entre ser mulher e a dependência química, sobretudo o uso do crack, a
prostituição e a violência.
2.1. Considerações sobre o significado e a emergência do crack
Segundo a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD), a
Organização Mundial da Saúde, define que droga é qualquer sustância não
produzida pelo organismo humano, tendo assim, propriedade de atuar sobre um ou
mais de seus sistemas, causando alterações no seu funcionamento de ordem:
fisiológica, psicológica e social (SENAD, 2010).
A palavra Crack surgiu a partir da forma que era utilizada. Os cristais/
“pedras” eram fumadas em cachimbos, que expostos ao fogo, “estalavam”, o que no
inglês significa Cracking (Ogata e Ribeiro, 2010). De acordo com Cruz, Vargens e
Ramôa:
O crack é uma forma distinta de levar a molécula de cocaína ao cérebro. Sabe-se que a cocaína é uma substância encontrada em um arbusto originado de regiões dos Andes, sendo a Bolívia, o Peru e a Colômbia seus principais produtores. Os nativos desta região mascam das folhas da coca desde antes dos conquistadores espanhóis no século XVI. No século XIX, a planta foi levada para a Europa onde se identificou qual era a substância que provocava seu efeito. Esta foi chamada cocaína. (CRUZ, VARGENS E RAMÔA, 2011, p. 2).
De acordo com os autores, a cocaína passou a sofrer processos químicos,
ao ponto de se tornar em pó branco, chamado de cloridrato de cocaína.
30
De acordo com Ogata e Ribeiro (2010), na década de 1970, o consumo de
cocaína era realizado pela via pulmonar, o hábito de fumar as pastas da folha da
coca, foi alargado e ganhou mais popularidade tanto nos países que a produziam,
quanto nos Estados Unidos. Já o crack, surgiu em meados da década de 1980, mais
especificamente, entre os anos de 1984 e 1985 nos bairros pobres e marginalizados
de Los Angeles, Nova York e Miami, sendo obtida através de um processo caseiro,
utilizada em casas precarizadas por meio de grupos.
Segundo Nappo (2004), logo no início da sua descoberta, o crack chamou a
atenção pelo seu alto poder de indução à dependência, além das várias estratégias
que os usuários realizavam para mantê-la, como por exemplo, crimes, roubos, troca
por sexo, entre outros atos.
Já em 1990, o crack ganha ascensão, tornando- se potencialmente forte, no
que diz respeito, ao seu uso, além de ter sido mercantilizada com mais ênfase na
economia capitalista. Foi justamente nesta década, nos Estados Unidos, que o uso
do crack tornou mais ainda popular, principalmente pela camada mais pobre da
sociedade. Culminou numa espécie de epidemia entre a população mais pobre da
região americana, trazendo sofrimento para os jovens da época.
Com o passar dos anos, o cenário muda. A droga também conseguiu
“seduzir” pessoas das classes média e alta, até porque o crack, não só as atraiam
pelo baixo custo de aquisição, mas também pelos efeitos de euforia que produz.
Mesmo que por pouco tempo, a fissura e o desejo de se consumir mais, fez do ser
humano um escravo, fazendo uso e tornando-se um adicto desta droga.
Nappo (2004) afirma que, o consumo de crack pelas populações de baixa
renda trata-se de uma utopia. Segundo a autora:
[...] esse preço mais acessível é ilusório. Considerando que o efeito do crack dura apenas 5 minutos, que o uso compulsivo e o padrão bingede consumo estabelecem-se muito rapidamente e, ainda, que nessa fase o usuário consome crack até a exaustão ou até findar seu suprimento de droga, comparativamente ao uso de cocaína por outras vias, o usuário de crack consome muito mais droga, tendo de despender maior quantidade de recursos em sua obtenção. (NAPPO, 2004, p 19)
Essa droga era utilizada por usuários de cocaína, que em sua maioria, eram
jovens, que adicionaram o crack no seu padrão de consumo, por vários motivos.
31
Dentre eles, podemos citar: o baixo custo e efeitos intensos causados pelo uso.
Segundo Melotto (2009) o crack pode ser encarado com uma nova roupagem da
administração da cocaína, ou seja, uma nova versão de uma droga já conhecida
pela sociedade.
2.2. O uso do crack na sociedade brasileira
Para entendermos melhor o uso do crack na sociedade brasileira realizamos
um resgate histórico do seu aparecimento até a contemporaneidade. O consumo de
substâncias psicoativas, sempre esteve sob efeitos de regulação social. Conforme
Alves (2011), nos primórdios da civilização ocidental, as condicionalidades do uso de
drogas eram estabelecidas pelo contexto sociocultural específicos de cada
sociedade, que por conseguinte, possuíam suas normas e regras.
Anteriormente, o uso de drogas era permitido. As substâncias psicoativas
faziam parte da prática religiosa como objeto ritualístico, na busca de atingir a
transcendência na elevação da consciência a partir do uso.
Com o advento da modernidade, é modificado esse paradigma. Assim os
próprios religiosos, passam a encarar a situação com pecado diante dos olhos de
Deus, devido o agravamento do uso. Motta (2009), diz que a atual história do uso de
drogas decorre de uma série de ações realizadas pela Modernidade cujo objetivo é
substituir antigas formas de controle social, constituindo-se em uma invenção desta
sociedade, mesmo sabendo que o fenômeno da intoxicação já estivesse sido
identificado em sociedade pré-modernas.
Nas comunidades indígenas não existia, antes da chegada do homem
“branco”, uma “consciência” de que o consumo de drogas psicoativas seja uma
forma de “fuga” dos sentimentos negativos oriundos das relações sociais entre os
homens. Neste cenário, o uso de drogas são se remitia à lógica capitalista, mas sim
às tradições e aos costumes específicos desses grupos, sendo o uso dessas
substâncias algo do natural.
32
A partir do século XIX, com a crescente industrialização e o isolamento dos
princípios ativos, foi que o uso dessas substâncias se intensificou, gerando novos
comportamentos e implicações sociais.
Conforme Alves (2011):
No contexto de revolução industrial, aqueles que se encontravam numa condição de “desrazoados” (fora de si) não estavam preparados para o mercado de trabalho. De certa forma isso se reproduziu no contexto de usuários de drogas, que uma vez “desrazoados” também não estariam aptos para exercer com eficiência suas funções laborativas. Daí a forma como se resolveu o que fazer com essas populações: para os loucos, o manicômio e para os usuários de drogas a prisão mediante a proibição do uso. (2011, p. 12).
Assim, o uso de drogas passou a ser sinônimo de alterações no campo das
subjetividades humanas, atingindo o centro da racionalidade do homem, sendo
considerada como objeto no campo das patologias, devido o uso e, controlado pela
segurança pública. Segundo Motta (2009), por mais que as substâncias psicoativas
tenham sido produzidas em larga escala, através da Revolução Industrial,
contraditoriamente a isso, a moralidade ao que diz respeito ao seu uso, coloca
claramente a sua repulsa quanto aos efeitos causados por elas.
A civilização moderna destaca que, o fato de isolar o princípio ativo do ópio da
coca não tinha, inicialmente, o intuito de induzir as pessoas ao vício. Com os
estresses causados pela avassaladora modernidade e o desenvolvimento da
sociedade capitalista, era necessário desenvolver drogas mais “potentes” que
pudessem dar conta da realidade do capitalismo selvagem e das inúmeras formas
de exploração dos trabalhadores.
Ainda no início do século XX, não havia restrição na comercialização de
inúmeras drogas, dentre elas a cocaína, substância base para o preparo do crack.
Porém, o uso de drogas se agrava cada vez mais e já não era controlável pelas
normas sociais estabelecidas, sendo necessário se pensar em alternativas que
colaborassem para esse controle. As consequências à saúde e os riscos sociais
causados pelo uso de drogas impulsionaram a criação de políticas públicas de
33
enfrentamento ao uso de drogas tendo foco, atualmente, nas ações destinadas a
redução de danos3.
Segundo Alves:
Essas políticas públicas sobre drogas foram se constituindo em importantes dispositivos de criminalização e medicalização (criminoso- prisão na segurança, dependente- internação na saúde), cujos efeitos passaram a recair sobre grupos sociais vulneráveis e estigmatizados, frequentemente associados a qualquer uma das etapas dos processos de produção, circulação, comércio e consumo de substâncias qualificadas como ilícitas. (ALVES, 2011, p. 12).
No tocante à história da constituição de políticas públicas sobre as drogas,
desde a Lei 6.368/764 até a Lei 11.343/065 é perceptível o tensionamento que se dá
entre duas arenas distintas. De um lado, a preocupação eminentemente com o
problema pelo viés da saúde pública e, de outro, a discriminação pela associação
dessa questão social como questão polícia, tendo por gênese o comportamento
criminoso e desviante, cabendo às autoridades da segurança pública a
responsabilidade de resolução.
O que há na verdade é a busca de se achar um culpado e um agente
solucionador para resolver o problema. A mídia, com suas exacerbadas críticas vem,
na maioria das vezes, culpabilizando o uso e abuso de drogas por quase todos os
problemas sociais, principalmente, a partir da existência do crack. É bem verdade
que a associação aos demais problemas sociais como, violência e assaltos vem
numa crescente, porém cabe ressaltar que as condições de vida e a organização de
uma sociedade também impactam sobre os efeitos e o sentido que as drogas tem
sobre qualquer individuo nela inserido.
3Segundo Camelo (2011) redução de danos é uma estratégia de saúde pública que busca controlar possíveis
consequências ao consumo, lícito ou ilícito, sem necessariamente interromper o uso, lutando pela inclusão social para os usuários de drogas, assegurando o seu direito de cidadão e uma melhor qualidade de vida. 4A referida lei dispõe sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias
entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica, e dá outras providencias. 5 Essa lei trata da instituição do sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas- Sisnad; preescreve outras
medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de droga; define crimes e dá outras providencias.
34
O que tem se discutido também é a relação entre a pobreza e o uso de
drogas. Não obstante, as condições sociais que contribuem para o uso e
comercialização, principalmente, do crack estão relacionadas as populações em
situação de pobreza. No entanto, não podemos dizer que somente essas pessoas
são consumidoras dessa droga.
O crack é percebido como um problema que deve ser enfrentado. Atualmente,
percebemos um esforço institucional, principalmente da segurança pública, para
criminalização do uso. Nesse sentido, a materialização de ações de enfrentamento
ao uso e abuso do crack é algo que precisa ser problematizado, diante da ausência
de informações e escassez de recursos voltados para essa problemática, bem como
em vista dos seletivos serviços de atendimentos destinados para esses usuários, na
rede pública. É necessário colocarmos em pauta que, a problemática do uso do
crack, além de uma prática delituosa, chega a ser uma expressão emergente da
questão social que, por sua vez, torna o individuo vulnerável, requerendo um olhar
diferenciado pelos entes governamentais, tendo como foco a redução dos danos que
esta droga causa.
Mesmo com a descaracterização do sujeito enquanto ser social pela
criminalização do uso, a sua exclusão frente aos direitos que só o marginaliza, é
possível enxergar que a sociedade civil, tem lutado frente às organizações de
direitos humanos, pela maior atuação do setor público, em vistas de compreender o
fenômeno e eliminar os métodos de enfrentamento do problema, através do
cerceamento de liberdade e exclusão. É necessário acabar com a “demonização” da
droga e trazer para o centro das discussões o reconhecimento de uma epidemia,
tratando o usuário do crack como cidadão de direitos frente ao resgate dos seus
direitos.
São poucas as informações sobre a chegada do crack no Brasil, os principais
indicadores que propiciaram algumas destas, segundo Ogata e Ribeiro (2010) são
provenientes:
[...] da imprensa ou de órgãos policiais. As apreensões de crack realizadas pela Polícia Federal se iniciaram a partir dos anos 90, aumentando 166 vezes no período de 1993- 1997 [...] Algumas evidencias apontam para o surgimento da substância em bairros da Zona Leste [...] para em seguida alcançar a região da Estação da Luz (conhecida como “Cracolândia”) no centro da cidade [...] A partir daí, espalhou- se para vários pontos da cidade,
35
estimulado pelo ambiente de exclusão social [...] e pela repressão policial no centro da cidade ... (OGATA e RIBEIRO, 2010, p. 66)
Embora o crack tenha recentemente chegado ao Brasil, é notória que essa
problemática já é bastante discutida na mídia e tem sido pauta das políticas
públicas. O crack tem sido encarado com uma espécie de epidemia pela sociedade.
Segundo Pereira (2011), na década de 1990, a proporção de usuários de
crack passou de 17% em 1990, para 64% em 1994. A primeira pesquisa
investigativa6 sobre o consumo de droga no Brasil se deu através de um estudo
realizado no Estado de São Paulo, com a participação de 25 usuários da substância.
Dez anos depois, em 2000, de acordo com estudos de Ogata e Ribeiro (2010)
as instituições relacionadas à infância, juntamente com a imprensa, propagaram
uma possível redução do consumo de crack em São Paulo, ao mesmo tempo em
que se reduz também, a procura por atendimento da rede pública do município.
Ogata e Ribeiro (2010) colocam ainda que, nos anos de 2001 e 2005, foram
realizados dois levantamentos domiciliares realizados pelo Centro Brasileiro de
Informações sobre Drogas (CEBRID). Esses estudos mostraram que o consumo de
crack aumentou consideravelmente.
De acordo com o II Levantamento Domiciliar em 2005, realizado pela SENAD,
pelo CEBRID e pela UNIFESP, como já citado anteriormente, o número de usuários
dobrou em relação ao I Levantamento Domiciliar7 realizado em 2001. Também,
comparando essas informações, foi possível constatar que os índices por região
também cresceram com a mesma proporção, revelando que o consumo do crack,
num curto período de tempo, ganha grandes dimensões.
6
Através deste estudo, foi possível destacar o perfil de usuários de crack: homens, menores de 30 anos, desempregados, com baixa escolaridade, provenientes de famílias de baixo poder aquisitivo. Os usuários de crack manifestaram um consumo maior da droga, comparando com os usuários de cocaína, tendo também maior participação em atos ilegais, como já citado anteriormente, como a prostituição e crimes 7 O primeiro levantamento ocorreu de forma aleatória e contou com a participação de 8.589 entrevistados,
com faixa etária de 12 a 65 anos, de 107 cidades brasileiras. O segundo levantamento seguiu a mesma metodologia, apenas com a diferença no número de cidades que participaram da pesquisa, que em vez de 107 foram 108 avaliadas, pois neste período usou-se como parâmetro o número de habitantes de 200.000, e que neste segundo levantamento, uma das cidades alcançou esse quesito.
36
Nesse período, as motivações quanto ao uso e abuso do crack também se
modificam. Segundo Ogata e Ribeiro (2010), em meados dos anos 1990, a
contemplação do prazer era o principal motivo do consumo do crack, segundo a
grande maioria dos usuários. No final da mesma década, os problemas familiares, a
dependência e a compulsão eram os novos fatores que determinavam e justificavam
o seu uso.
Na sociedade contemporânea, o uso e abuso do crack se tornou um problema
complexo, sendo hoje considerado como uma das drogas mais letais do mundo.
Embora se identifique a escassez de estudos voltados para o crack, a partir de
levantamentos epidemiológicos realizados, já se apontavam a problemática e os
efeitos que ela ocasiona.
Segundo Pereira (2011), o fato da droga ser fumada chega mais rápido ao
cérebro, aumentando as chances de dependência, logo na primeira utilização,
devido a rapidez e intensidade dos seus os efeitos.
Melotto apud Uchôa (2009) destaca que:
O crack leva de cinco a dez segundos para ir do pulmão ao cérebro. Viagem rápida quase instantânea. Seu pico de ação é entre dois e três minutos. O êxtase não ultrapasse 10 minutos. O coração fica descompassado. Pode chegar de 180 a 240 batimentos por minuto, dependendo de quantidade de droga. A potência do crack em relação à cocaína cheirada ou endovenosa (injetável), por exemplo, pode ser medida pelos efeitos, velocidade de ação no organismo. No caso da cocaína injetável o “back”os efeitos surgem depois de três, quatro minutos e duram de meia hora a 45 minutos. Entre dez, quinze minutos começa a fazer efeito a cocaína em pó, cheirada. A “viagem” pode durar uma hora. O crack é veloz tanto no Tempo de início de ação, que acontece em segundos, quanto na duração do “barato”, poucos minutos... (MELOTTO, 2009, p. 16).
A segunda questão destacada pela autora deve-se à comercialização do
crack. Por ser “barato”, o crack diferente das outras drogas, torna- se acessível a
qualquer individuo. Por ter um baixo custo em relação à cocaína em pó e, por
parecer mais eficiente do que ela, propicia o aceleramento do mercado de vendas
da droga. Outro ponto apontado neste estudo é que sendo o lucro menor por
unidade, o que vai diferenciar é a quantidade, o volume de comercialização, até por
ter os efeitos intensos e de curto prazo.
Segundo Ogata e Ribeiro:
37
Nos últimos anos, segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU), a demanda por cocaína tem declinado nos mercados tradicionais, como os Estados Unidos, e ganhando espaço em outros, especialmente na Europa e em países emergentes- na primeira, esse número dobrou de 2.0 milhões em 1998, para 4.1 milhões de usuários em 2008. Entre os europeus, Espanha, Reino Unido e Itália tiveram os crescimentos mais significativos. Entre os emergentes, Venezuela, Equador, Brasil, Argentina e Uruguai, bem como nos países da América Central (Guatemala e Honduras) e do Caribe (Jamaica e Haiti). O Brasil constitui o maior mercado na América do Sul em números absolutos: mais de 900.00 usuários de cocaína no Brasil.(OGATA e RIBEIRO, 2010, p. 69).
E por último, a terceira questão destacada por Pereira (2011) remete-se as
situações dos familiares das pessoas usuárias, aos elevados índices de violência e
às condições vulneráveis dos usuários.
Segundo a fala de uma das entrevistadas:
Por causa desse negócio de droga, sai da casa da minha mãe, porque eu dava muita preocupação pra ela [...] Ela teve um A.V.C por causa das minhas coisas [...] eu saia a noite pra farriar, aí ela ficava preocupada [...] Deus me livre dela saber que eu uso crack [...] já foi muito difícil ela saber que eu era sapatão, imagine se ela sabe que eu uso [...] vixe Deus me livre [...]. (Margarida, 25 anos).
É sabido que vivemos na era da epidemia do crack, que se trata, portanto, de
um problema de saúde pública que, por conseguinte, gera graves consequências
sociais. A cada instante, os usuários tem iniciado o uso do crack cada vez mais
cedo. Essa droga não tem preconceito e nem discriminação de sexo, raça, classe
social e idade, tem avassalado a quem tiver acesso a ela.
Diante deste novo cenário, a busca de soluções para a resolutividade do
problema tem sido intensas, principalmente por parte da sociedade civil, a exemplos
das comunidades terapêuticas. Porém, elas não são suficientes para atender o
número de usuários que tem interesse no tratamento, gerando uma dificuldade nítida
para a erradicação da problemática apresentada. De acordo com Margarida:
Eu já passei pelo CAPS várias vezes, não aguento mais essa vida. O ruim é que aqui eu só vou passar de 10 à 15 dias internada. Se eu pudesse passava a vida toda aqui, porque eu tô me destruindo [...] Eu sei que assim que eu sair daqui vou voltar a fazer a mesma coisa [...] fumar crack. Você sabe que político nenhum quer saber da gente né? Ninguém tá nem um pouco preocupado com a gente máh [...] porque a gente não vale é nada. (Margarida, 25 anos)
38
Motta (2009) aponta que o aumento do uso de crack se dá devido à má
qualidade das escolas, que expõem os jovens à desqualificação e propicia escassas
oportunidades no mercado de trabalho, sendo os mesmo atraídos tanto pelas
drogas, quanto pelo tráfico. Logo, por saber disso, os traficantes se instalam nas
periferias, nos bairros mais pobres estrategicamente, para adquirir mão de obra
“barata”, oportunizando através de um forte fator de atração um ganho de vida. Não
obstante disso, segundo ele, o problema do abuso de drogas na sociedade atual se
refere também a um mal coletivo causado pelas patologias da pós- modernidade,
como:
A depressão, síndrome do pânico, anorexia, bulimia, transtorno obsessivo compulsivo (TOC), entre outras. Para além dos rótulos psiquiátricos existe um meio social que ao impulsionar a competitividade e o consumismo propiciam o fortalecimento de um contexto marcado pela exclusão social, gerando um cenário de abandono emotivo de grandes proporções. Não é de se admirar que tantas pessoas busquem nas substancias psicoativas o alívio para suas crises, que parecem tornar-se cada vez mais intensas na medida em que a lógica utilitarista do mercado prevalece sobre todas as outras (2009, p.166).
Na verdade, estamos tratando de um fenômeno social bastante discutido,
porém requer uma abordagem teórica bastante profunda, relevando seus
desdobramentos que são inúmeros. O que era antigamente uma prática ritualística
tornou-se um problema social mundial, sendo necessário lançar um olhar
diferenciado na busca de, através de políticas públicas, enfrentar esse mal que
vitimiza a cada instante mais pessoas.
Os usuários de crack são temidos pelo ato de usar a droga, sendo assim
estigmatizadas. Há de ressaltar que essa estigmatização decorre de uma série de
fatores determinantes que culturalmente vem sendo construídos.
A associação que se faz entre droga, violência e criminalidade, torna cada vez
mais preocupante a problemática. Por se tratarem de pessoas que realizam atos que
contrariam as regras impostas pela sociedade, ou seja, que correspondem a
comportamentos negativo perante os demais é que a questão do uso do crack
ganha cada vez mais visibilidade para discussão. Mediante esse contexto, os
governos são impulsionados a buscar alternativas para prevenção, combate e
controle desse problema.
39
2.3. Políticas Públicas de enfrentamento ao uso de drogas: Breves
considerações.
Sabemos que nas últimas décadas, houve o aumento do uso de drogas
ilícitas no Brasil e o que o trato dessa problemática até então, tinha sido realizada a
partir de medidas exclusivamente repressivas, faz-se necessário ações integradas,
construídas mediante dados científicos como forma de lidar com as diversas
demandas decorridas desse uso.
Em 1998, foi realizado em Brasília o I Fórum Nacional Antidrogas que tinha
por objetivo, elaborar a Política Nacional Antidrogas (PNAD) (Alves, 2011). Somente
em dezembro de 2001, durante o II Fórum Nacional Antidrogras, a PNAD foi
elaborada e, em 26 de agosto de 2002, através do decreto presidencial, a mesma foi
formalmente instituída.
No ano de 2003, houve a necessidade de construção de uma nova agenda
nacional com ações que visam reduzir a demanda de drogas do país. Essa agenda
contempla três eixos: 1) integração das políticas públicas setoriais com a PNAD,
com vista a ampliação do alcance das ações; 2) descentralização das ações em
nível municipal, facilitando a condução local para atender as demandas e adequar
as ações de acordo com a realidade de cada município; e 3) estreitamento das
relações entre sociedade e comunidade cientifica.
Em 2005, a política passou a se chamar Política Nacional sobre Drogas
(PNAD). Nela estão contidos os fundamentos, os objetivos, as diretrizes e as
estratégias indispensáveis para que as ações voltadas para a redução da demanda
e da oferta de drogas possam ocorrer de forma planejada. Em 2006, o SENAD
pressionou e assessorou os parlamentares brasileiros no processo que se
consolidou na aprovação da Lei nº 11.343/ 06, que por sua vez, institui o Sistema
Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD) potencializando a legislação
sobre o tema.
A lei 11.343/ 06 retrata a diferenciação entre o uso e o tráfico que outrora se
confundiam, no que diz respeito, à segurança pública. Foi através desta legislação
que a problemática do uso de crack veio a ser considerado como questão de saúde
pública, deixando de ser apenas caso de polícia. Assim, embora tenha sido
40
esclarecida a diferença entre o uso e o tráfico, ainda existem alguns percalços que
distorcem essa distinção visto que,
Acaba com a pena de prisão para os usuários de drogas. No entanto, os procedimentos penais continuam os mesmos, ou seja, o individuo flagrado usando drogas é levado para a delegacia, assina o Termo Circunstanciado e se compromete a comparecer no Juizado Especial Criminal para a audiência judicial. Atualmente, o usuário pode ser submetido às seguintes medidas: advertência verbal, prestação de serviço à comunidade, medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo e, em ultimo caso, multa. (MENDONÇA FILHO, 2008, p. 01 apud MELOTTO,2009, p. 20).
Não podemos negar que essa lei permite que ocorra a descriminalização das
práticas de uso de drogas, porém é necessário o avanço quanto as penalidades
criminais que ainda são errôneas. Cabe uma análise voltada para as questões
sociais que envolvem o indivíduo, pois diferentemente do tráfico, o uso decorre de
uma série de fatores que podem não inviabilizar a conduta do cidadão. Desse modo,
uma política integrada para os usuários de crack deverá promover o controle do
consumo, garantindo seus direitos como cidadão e a melhoria da sua qualidade de
vida.
De acordo com o relato de uma das usuárias:
Conheci o crack num cabaré [...] uma das raparigas de lá me ofereceu [...] disse que era bom e tal [...] já tinha usado maconha e bebo muita bebida mesmo [...] mas o crack é diferente, gostei muito é muita adrenalina cara, não dá nem pra explicar. (Margarida, 25 anos).
Recentemente, em 20 de maio de 2010, através do decreto nº 7.179, o
Governo Federal lançou o Plano Nacional de Enfrentamento ao Crack e outras
Drogas, que recebeu nova roupagem em 2011 através do programa “Crack, é
possível vencer” criado em 2011, integrado ao Comitê de Enfretamento ao crack e
outras drogas. Este programa tem por objetivos: a prevenção através da educação,
informação e capacitação dos profissionais; aumento na oferta de tratamento à
saúde e atenção aos usuários e, por parte das autoridades, o enfrentamento ao
tráfico de drogas e às organizações criminosas.
41
De acordo com atual programa nacional (2011), o Governo Federal irá
repassar para o programa R$4 bilhões de recursos até o final de 2014 com o intuito
de ampliar e inovar a atuação no combate ao crack e outras drogas.
As principais ações do programa é o atendimento, acolhimento e atenção ao
usuário nos locais de concentração do crack. É importante ressaltar que as ações se
dão mediante encaminhamentos e atendimentos nas unidades de saúde, como os
Centros de Atenção Psicossocial - Álcool e Drogas (CAPsAD) e de assistência
social, como os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e os Centros
Especializados de Assistência Social (CREAS). Esse programa também propicia o
atendimento especializado às famílias dos usuários. Dentre as ações também
destacam-se os serviços relacionados ao atendimento nas comunidades
terapêuticas8.
Apesar dessa elaboração e estrutura, este plano tem recebido várias críticas.
Logo no início, as críticas se deram pela insuficiência do orçamento destinado às
suas ações que foram de R$ 410 milhões para serem distribuídos aos 27 estados do
país. Mesmo com a nova proposta orçamentária para financiamento das ações, há
algumas deficiências do programa que são importantes de serem debatidas.
A ideia da ampliação das unidades terapêuticas para os usuários, como forma
de tratamento, podem reduzir o tratamento à internação, impossibilitando a
reabilitação psicossocial do usuário, haja vista que muitas das comunidades
terapêuticas atuam baseadas em princípios e tratamentos religiosos, fugindo da
ideia de reintegração social. É importante ressaltar também que esse ato pode
incitar o retorno da prática manicomial, totalmente contrária à lógica do Sistema
Único de Saúde (SUS), que preconiza a redução de danos com
corresponsabilização do usuário no seu tratamento, tendo em vista a sua
reintegração social.
A instalação de 308 unidades de atendimento, os chamados “consultórios” na
rua, como filtro para internações compulsórias, criados nos principais pontos de
drogas, caracterizam práticas higienistas, sendo esta uma outra ação do programa
8 De acordo com a Resolução 101 da ANVISA, de 30 de maio de 2001, em seu artigo 1º define que
Comunidade terapêutica (CT) é o serviço de atenção a pessoas com problemas decorrentes do uso e
abuso de substâncias psicoativas, segundo modelo psicossocial.
42
que traz preocupação. Há de questionarmos como são selecionados os sujeitos para
o acolhimento? Como identificar a necessidade de cada um?
Neste sentido, destacamos que grande parte das propostas do programa são
plausíveis, mas também há um longo caminho a ser percorrido para atender as
necessidades da população usuária.
2.4. Diferentes sujeitos, diferentes percursos: as mulheres e o uso do crack
Apesar das significativas mudanças ao longo da história, os comportamentos
determinados socialmente às mulheres e aos homens revelam desigualdades
expressas num processo de maior valoração do masculino em relação ao feminino.
Nesse momento, abordaremos o debate em torno das diferenças entre ser homem e
ser mulher usuária de crack, com ênfase nas diferenças e desigualdades de gênero
que, historicamente, vêm sendo construídas.
As discussões sobre o conceito de gênero remetem a vários estudos que
contemplam a relação natureza-cultura, igualdade-desigualdade, dominação-
submissão entre homens e mulheres num contexto histórico e cultural. Os estudos
de gênero floresceram a partir dos estudos feministas. Assim, gênero é uma
categoria de análise que vem a refletir sobre as representações das relações sociais
entre masculino e feminino. O caráter relacional de gênero traz as relações de poder
como elemento fundamental que perpassam as relações entre o masculino e o
feminino. (AMARAL, 2005).
Para Santos (2004): gênero é, portanto, ação, relação e representação e, em
virtude de seu caráter relacional, torna-se impossível compreender a feminilidade
sem fazer referência à masculinidade e vice-versa. Segundo a autora, o conceito de
gênero envolve pelo menos duas dimensões: 1) o comportamento diferenciado entre
ser homem e ser mulher visto nas sociedades; e 2) a distribuição desigual de poder
entre os sexos. Sendo a primeira dimensão tendo o gênero como: “um produto
social, apreendido, representado, institucionalizado e transmitido ao longo das
gerações”. E a segunda evidenciando a posição subalterna das mulheres na
organização social, a partir da desigualdade de poder nas relações de gênero. Essa
concepção de poder possibilita a construção da visão clássica do “patriarcado
43
absoluto” em que as mulheres são apresentadas como “destituídas de todos os
poderes”.
Segundo Amaral (2005):
Diante das várias posições depreende-se que, para compreender a categoria gênero, é necessário desenvolver um pensamento antiessencialista e criticar a identidade universal de homens e mulheres; criticar a visão dualista produção- reprodução e criticar a concepção de mulher e homem como identidade dada pelo sexo. (AMARAL, 2005, p. 15).
É necessário lançar um olhar crítico e entender que os estereótipos9 de
gênero são construídos socialmente, sendo estes pautados nas diferenças
biológicas entre homens e mulheres.
De acordo com Scott (1989), o uso da palavra “gênero” iniciou-se
primeiramente entre as feministas americanas que construíram uma explicação
social para a diferença entre os sexos rejeitando, portanto, a explicação meramente
biológica das diferenças e uma suposta identidade universal e essencialista do ser
homem e ser mulher.
É sabido, que essa distinção entre ser homem e ser mulher foi influenciada
culturalmente nos mais variados espaços sociais, seja no âmbito familiar, nos grupos
de amigos, no trabalho e entre outros. Essa construção social de categorização de
gênero é alimentada por comportamentos, atitudes, dos valores e experiências
cotidianas.
Para Santos (2004) incorporar a questão de gênero à construção
sociohistórica não é eliminar da definição de gênero, o caráter biológico, mas sim
ampliar o olhar, considerando que essa definição não é concebida apenas pela
natureza fisiológica, mas também deve- se considerar os seres humanos também
como seres sociais.
De acordo com a fala de uma das entrevistadas:
Ser usuária de crack mulher é mais difíci que ser homem viciado em crack.
Porque eles entram numa bocada sem poblema já nóis [...] êiê [...] perde é
9 Estereótipos é uma resposta a determinados estímulos sociais que, por sua vez, são influências de
agentes sociais e que possuem uma percepção de diferenças reais atribuído ao individuo.
44
fêi, porque a negada se aproveita de todo o jeito [...] toma a nossa droga,
[...] a gente quando tâmo muito doida [...] né nada fácil. (Orquídea, 19
anos).
No tocante à questão histórica, o século XIX foi um período considerado rico
pelas polêmicas em torno das relações de gênero, que por sua vez, ganhou
importância nas sociedades ocidentais. Essa importância se originou devido a
profundas mudanças ocorridas a partir do desenvolvimento do capitalismo10, nas
sociedades europeias ocidentais. Foi nesse momento, que essa categoria passou a
ser estudada e debatida por intelectuais, médicos, pedagogos e moralistas, que
colaboraram para a formação de uma noção de feminilidade, caracterizada pela
expressão “anjo do lar”.
Na emergência da sociedade capitalista, também houve a ideia de divisão
entre as esferas públicas e privadas e isso afetou as relações de gênero. Assim, as
mulheres foram destinadas à esfera privada, ou seja, segundo essa ideologia, o
lugar próprio das mulheres é o doméstico, o trabalho do cuidado com as pessoas. Já
a esfera pública é considerada como espaço dos homens, dos iguais, do direito.
Santos (2004), diz que a distinção sobre o papel da mulher neste período, não
se dá apenas pelo debate do conteúdo de relatar que as atividades femininas são
estritamente domésticas de acordo com a tradição patriarcal, mas, na verdade,
mudam os termos que se fundamentam sobre o novo discurso da domestidade,
convertendo a mulher como sacerdotisa do lar, sendo um dever dela e não uma
tarefa, uma espécie de abnegação. Essa reprodução se faz em torno de um
ceticismo burguês que se reproduziu ao longo do século.
A igreja católica, durante muito tempo, exerceu um domínio no campo
simbólico contribuindo na vida da sociedade feminina, representações sociais,
regulamento principalmente a sexualidade e as relações de gênero. Ainda segundo
a autora: “Os discursos da época afirmam que a natureza moral, mental e física do
10
O capitalismo é um sistema econômico que se caracteriza pela propriedade privada dos meios de produção que necessita de força de trabalho para utilização desses meios. Os trabalhadores, ao deterem a força de trabalho, são desprovidos dos meios de produção, produzindo no processo de exploração do trabalho a mais- valia. Esses trabalhadores tem a mercadoria como produto final do seu trabalho. As desigualdades sociais, portanto, são frutos do desenvolvimento do capitalismo.
45
homem e da mulher decretam sua função social, definindo sobre onde devem estar
e o que devem fazer na vida” (SANTOS, 2004, p. 84).
De acordo com o relato de uma das entrevistadas:
O povo acha que mulher é pra tá dentro de casa fazendo as coisa [...] lavando roupa, cuidando de menino [...] eu não quis isso não [...] e nem
quero arrumei um bucho bem novinha [...] e tô pra descansar desse aqui
[...] mas assim que eu puder volto pra rua [...] não consigo me acostumar
mais dentro de casa não, ninguém aceita eu usar a pedra em casa [...] meu destino é na rua mesmo, vou ganhar o mundo, ficar em casa sendo besta
pros outros, não vou mesmo, vai pra lá [...]. (Orquídea, 19 anos).
Com isso, percebemos que nos dias atuais a população feminina,
principalmente no caso desta usuária de crack, pensa e se comporta diferente. As
configurações do que é ser mulher e ser homem na sociedade contemporânea não
se limitam mais a dogmas religiosos, os novos valores e comportamentos adotados
socialmente pelas mulheres, a exemplo da situação em questão, dada sua condição
de drogadicção e não aceitação por parte de familiares, que por sua vez,
colaboraram para a construção de novos papéis sociais exercidos por ela, inclusive
a não materialização da função materna, algo histórico vinculado à identidade
feminina.
Desse modo, a emergência do uso de contraceptivos nos anos 1960 que
separaram o sexo da reprodução, a inserção das mulheres no mercado formal de
trabalho, dentre outras mudanças, alteraram o papel das mulheres na sociedade.
Segundo uma das entrevistadas:
Trabalhava de entregar avisos de cortes da COELCE de porta em porta, o povo pensava que eu não iria aguentar só porque eu era mulher, nem me levava a sério, mas eu surpreendi. O que me derrubou na verdade foi a maldita dessa pedra do cão estou recebendo seguro desemprego, mas mês que vem acaba preciso trabalhar pra sustentar meu vício porque acho muito
feio roubar [...]. (Margarida, 25 anos).
Embora ainda existam essas fortes concepções de diferenças entre
masculino e feminino, no mundo do uso de crack, percebemos que isso não é
considerado um grande problema. Mesmo havendo uma predominância do uso por
parte do homem, as mulheres se enxergam como iguais, no que tange, ao
tratamento entre os usuários.
46
[...] Na hora da nóia a gente tem que tá ligada só pros caras não se aproveitarem, mas na hora do negócio todo mundo se respeita, se a gente racha a pedra com algum homem ele queima a parte dele e eu a minha, não é porque eu sou mulher que tenho que ganhar menos não nesse mei nós sempre se ajeita, só tem que se ligar pra galera não dar o grau, porque se
vacilar eles pegam mesmo [...]. (Orquídea, 19 anos).
[...] Quando eu uso crack eu saio é com os caras. Não é porque eu sou
mulher que tenho que sair com mulher não pra queimar não. Às vezes é até milhor porque ninguém mexe com você e outra coisa os caras são limpeza,
nunca tive pro com eles [...]. (Margarida, 25 anos).
As falas dessas mulheres retratam pouca preocupação quanto aos riscos
enfrentados. Ao mesmo tempo, elas assumem sua fragilidade mediante sua
condição de mulher em situação de drogadicção. A prostituição é um outro
fenômeno que faz parte dessa realidade no que diz respeito ao sustento do vício de
uma das entrevistadas.
Segundo as falas das entrevistadas:
Esse filho que eu tô esperando foi de um dos programas que fiz [...] foi só quinze conto e me trouxe todo esse prejuízo aqui que você tá vendo [...] tô muito arrependida o pior é que esse dinheiro só deu pra comprar duas pedras e uma merenda nesse dia e tem mais, eu não sei nem quem é o pai. (Orquídea, 19 anos).
Ser usuária mulher não é a mesma coisa de ser homem. Porque os homens se aproveitam das mulheres depois de usar [...] e outra coisa o povo tem mais preconceito com a gente, porque ser homem viciado e uma coisa, mas ser mulher é horrível. Se eu pudesse tinha nascido era homem, mas a natureza não permitiu. (Margarida, 25 anos).
Fiz várias vezes programa pra sustentar meu vício, porque o crack é assim, passa bem pouquim tempo e já dá vontade de novo [...] não gosto de falar sobre isso, porque eu me lembro [...] .Outra vez tive que transar com um traficante pra poder pagar uma dívida, ele me bateu porque eu tava devendo [...] não tinha donde tirar. Foi muito ruim [...] ele abusou demais de
mim por causa de 40 reais. (Orquídea, 19 anos).
Nesse caso, além da necessidade relatada para subsidiar o vício através da
prostituição, o sujeito fez uso do seu corpo para pagamento de uma dívida devido a
sua dependência química que, por conseguinte, causou traumas até o presente
momento da pesquisa. Zilberman (1998) vai dizer que, uma linha de pesquisa que
investiga as relações de uso de drogas e a prostituição identificou que as prostitutas:
[...] em comparação comum grupo de mulheres presas, haviam experimentado e consumiam com maior frequência e tinha iniciado o uso de [...] drogas em idade mais precoce, sugerindo que a prostituição nestas
47
mulheres estaria associada à necessidade de conseguir recursos para comprar drogas [...]. (ZILBERMAN 1998, p. 21).
No caso de violência para com essas mulheres, no campo social, diversos
estudos comprovaram que os relatos de estupros são mais comuns nas mulheres
quimicamente dependentes, quando comparadas às mulheres no geral. Outro dado
é que as mulheres vítimas de violência fazem uso das drogas ilícitas com mais
frequência. Com isso, podemos dizer o fato de a mulher ser usuária a torna mais
vulnerável, dado os riscos que a situação potencializa, mesmo porque grande parte
das dependentes químicas do crack tem por lares a própria rua, ficando expostas a
qualquer tipo de situação e dispostas a qualquer tipo de ato para manutenção do
uso da droga e de sua própria sobrevivência.
O estudo realizado por Nappo (2004), já descrito anteriormente, com
mulheres usuárias de crack, também identificou que nos discursos11das
entrevistadas, uma parte delas se prostituíam por droga e 52% delas sofriam
violência dos seus clientes.
A estigmatização dos sujeitos também foi algo identificado na pesquisa. Numa
das perguntas, uma das entrevistadas retrata que:
Sofro muito por ser usuária, os vizinhos da minha mãe deixaram de falar comigo, pensam que eu vou é roubar [...] as pessoas olham pra você como se fosse um bicho bem ruim [...] um doente [...] mas não era assim não, antes de eu ser viciada todo mundo lá da rua gostava de mim, falava comigo, hoje parece que eu nem existo, só querem falar mal de mim [...] ajudar? Ninguém quer [...]. (Margarida, 25 anos).
Na questão apresentada por Margarida, podemos dizer que se trata da perda
da identidade perante aos outros. Partindo do princípio que ela se tornou diferente
dos membros do grupo ao qual ela pertencia, sua imagem já passou por um
processo de avaliação, sendo identificado que a sua conduta não condizia com a
dos demais, causando a sua exclusão e o repúdio dele. Isso porque ela assumiu
uma postura diferente, passou a agir contra os princípios deste.
Segundo Goffman (1998), a sociedade estabelece maneiras de classificar
pessoas e categorizar o total de atributos dados como naturais e comuns para os
11
A autora não citou número de entrevistadas, nem estimou percentual dos sujeitos da pesquisa.
48
membros de cada uma dessas classificações. Os grupos sociais estabelecem essa
classificação de pessoas que tenham características semelhantes, como se fosse
uma união de afinidades. Quando um indivíduo faz parte desse grupo e possui um
atributo que diverge dos demais membros passa a ser enxergada com menosprezo
e facilmente é diminuída. Inicia quando os padrões estabelecidos pelo grupo ou
sociedade ao qual está inserido não foram incorporados e trazem uma espécie de
vergonha ao grupo e até mesmo cause medo.
De acordo com Zilbeman (1998), as mulheres usuárias de drogas sempre
foram mais criticadas do que os homens. Desde a civilização romana, as mulheres
que adulteravam e faziam uso de drogas eram condenadas, pois tendo qualquer um
dos dois comportamentos ela se tornava agressivas e promiscuas.
Segundo esse autor, estudos mostram que a proporção de homens e
mulheres que fazem uso de drogas e álcool na população geral se aproxima de 2
para 1. No que diz respeito ao tratamento, são em torno de 5 homens para uma
mulher. Isso se dá, de acordo com autora, pelo fato de a mulher ser considerada
mais imoral, agressiva e de comportamento sexual inadequado quando usuárias,
pois em função da vergonha que sente procura o tratamento menos que o homem.
Percebemos, portanto que, a relação entre ser mulher e ser usuária de crack
na sociedade contemporânea carrega suas especificidades no tocante às relações
de gênero. A condição de ser usuária de crack faz com que essas mulheres
permaneçam por mais tempo no mundo público da rua, mundo este não legitimado
socialmente quando se trata do uso de drogas. Além disso, ao estarem nesses
espaços e fazerem uso de substâncias psicoativas essas mulheres rompem com os
papéis historicamente atribuídos a elas como ser esposa e ser mãe.
49
3- FAMÍLIA E MULHERES DEPENDENTES QUÍMICAS DO CRACK: LUGAR DE
REFÚGIO OU DE REPÚDIO?
O presente capítulo irá abordar o significado da categoria família, a partir do
resgate histórico das antigas e novas configurações familiares. Discutiremos também
as relações familiares dos sujeitos da pesquisa, mediante a condição de usuárias do
crack. Serão abordados os problemas enfrentados pelas mulheres, as mudanças
ocorridas em suas vidas, após a dependência química e como elas se enxergam
como membros dessas famílias.
3.1. Da família patriarcal às configurações familiares na contemporaneidade
Nos dias atuais, abordar a categoria família é essencialmente tratar de um
tema bastante importante, é falar em novas configurações e padrões difusos de
relacionamentos, assim, se torna difícil definir os contornos que a delimita.
Queremos, portanto, tratar da concepção de família para além de uma definição de
natureza biológica e jurídica, ou seja, discutir as configurações de família a partir do
contexto histórico e cultural que as mulheres drogadictas estão inseridas.
Desse modo, entendemos que a família ultrapassa os critérios de
consanguinidade e parentesco e, constitui-se a partir de características que são
culturalmente construídas ao longo da história, tanto nas relações internas entre
seus membros, como nas relações sociais. Sarti (2008) coloca que vivemos numa
época como nenhuma outra, em que a família é a mais naturalizada das esferas
sociais e tem sido alvo de interferências externas, além dos abalos internos que
existem no seio familiar.
Osterne (2004) esclarece que a família é um princípio de construção da
realidade incorporada pelos próprios indivíduos, partindo de algo do imposto pelo
coletivo e socialmente construído.
Historicamente, a estrutura familiar patriarcal, presente na época do Brasil
Colônia, conforme assinala Osterne (2004), instalava-se nas regiões de grandes
unidades rurais de produção e se mantinha por meio de incorporação de novos
50
membros, normalmente parentes, como forma de garantir o poder, além da
construção de uma estrutura econômica forte que tinha por característica a
descentralização administrativa local e natureza pessoal das relações políticas e
sociais. A estrutura doméstica patriarcal era caracterizada pela primazia do núcleo
conjugal e predominância da autoridade masculina, vista na figura do chefe,
“coronel”. Esse modelo também apresentava a imposição seguida de rigidez e
hierarquização ao determinar os papéis dos membros da família e, principalmente, o
controle da sexualidade feminina.
A família patriarcal era nada mais do que uma forma dominante de
constituição social e política, mesmo não sendo o único modelo de organização de
família da época, esta teve uma grande influência histórica no ordenamento social e,
atualmente, podemos encontrar fortes resquícios em nossa sociedade.
A posição da mulher era de subordinação e dava supremacia ao legado
masculino, no respaldo dos privilégios dos homens e sua condição de subjugação
perante ele.
O advento da industrialização modificou o status atribuído à família. O
capitalismo industrial proporcionou duas mudanças cruciais nessa instituição, sendo
a primeira, a união da família para vencer as controvérsias da luta pela vida e, a
segunda transformação foi enfraquecimento como grupo extenso, não tendo
condições de subsistir perante o ambiente de proletarização.
A divisão social de classes advinda da sociedade industrial provocou uma
segregação entre casa e local de trabalho, fazendo com que houvesse grandes
alterações na família, a exemplo das mudanças nos papéis sociais dos membros da
família e no favorecimento de uma nova estrutura familiar menor e mais intimista.
Destarte, o modelo de família nuclear burguesa, ou seja, aquela formada por
pai, mãe e filhos, adquire centralidade no século XVIII, na Europa ocidental. No
Brasil, esse modelo de família após a chegada da Corte portuguesa, o que trouxe
consigo novas exigências à sociedade brasileira.
De acordo com Osterne (2004) essa família é interiorizada socialmente como
natural. Esse modelo de família teria sido instalado, primeiramente junto a
51
burguesia, antes de ser estendido para toda as demais classes sociais,
caracterizando-se pela autoridade restrita aos pais, sendo centrado na criança no lar
e no patrimônio.
Osterne (2004) relata que:
Com o aparecimento da escola, da privacidade do lar, da ênfase na igualdade entre os filhos, da manutenção das crianças, junto aos pais no núcleo conjugal, do sentimento de família em íntima relação com o sentimento de classe, valorizado pelas instituições, sobretudo pela igreja, inicia-se o que se convencionou chamar: família nuclear burguesa. (Osterne, 2004, p. 35).
Não obstante, ideologicamente, as famílias que não obedecem a esses
parâmetros, são consideradas desestruturadas, diferentes do que é tido como
“normal” pela sociedade, assumindo uma postura que contradiz os princípios da
família burguesa.
Na década de 1950, a família brasileira passou a ter outro formato, diferente
da família burguesa. Destacamos que as reflexões marxistas também tiveram
grande contribuição para se discutir criticamente a condição da mulher na família e
seu papel na reprodução da força de trabalho.
Nos anos 1960, o aparecimento da pílula anticoncepcional contribuiu para
mudanças nas funções das mulheres na família, através da separação da
sexualidade feminina da maternidade, desenvolvendo-se a dimensão da escolha.
Isso possibilitou as condições necessárias para a emancipação das mulheres
deixando de ter sua imagem ligada diretamente ao papel de mãe e aos cuidados
domésticos. Essa mudança de postura surgiu também devido a expansão do
feminismo neste mesmo período.
A associação desses dois acontecimentos, o aparecimento da pílula
anticoncepcional e a efervescência do feminismo, fizeram com que as mulheres
buscassem novos horizontes que até então eram considerados tabus, como sua
inserção do mercado de trabalho, pois precedente a essa emancipação feminina, o
homem era considerado chefe da família e a mulher chefe da casa. Sendo o homem
responsável único pela manutenção do lar e a mulher a cordial dona de casa, mãe e
esposa fiel, que se dedica apenas pela educação dos filhos e união dos membros
52
familiares. Em 1980, as novas tecnologias reprodutivas12 separaram a gravidez da
relação sexual entre homem e mulher.
Segundo Peixoto (2010),
a transição de um modelo tradicional de maternidade, no qual a mulher era definida exclusivamente como mãe e cuidadora da prole, para um modelo moderno de maternidade, em que as mulheres poderiam optar por menos filhos e planejar a gravidez, deu-se com o avanço da industrialização e da urbanização, no decorrer do século XX. (PEIXOTO, 2010, p. 72).
Sarti assinalam que: “A pílula abala o valor sagrado da maternidade e a
identificação entre mulher e mãe, ao permitir autonomia da sexualidade feminina
sem sua inexorável associação com a reprodução” (SARTI, 2008, p. 22).
Para a autora (2008), a constituição da família opera uma tensão entre
escolha e destino. Embora as tecnologias de anticoncepção e reprodução assistida
tenham dado espaço à mulher à busca de novas experiências, além daquelas
atribuídas como suas pela sociedade, como ser dona de casa, mãe, esposa, entre
outras, ainda não foi possível dissociar a noção de família da natureza biológica.
Podemos dizer que isso se dá no curso das experiências vividas e simbolizadas na
família, pois ela é uma referência na sociedade, é uma forma de organização de
sobrevivência do indivíduo, que assume vários significados.
Família pra mim [...] significa tudo [...] tinha tudo pra ser direita, mas não quis, fui procurar o errado. Desde pequenininha minha mãe me ensinava o que era certo e o que era errado. Meu pai sempre trabalhou pra sustentar a gente, já minha mãe era dona de casa, viveu a vida toda só pra cuidar dos filhos [...] deu educação pra tudim, tudim mesmo [...] nunca tratou ninguém diferente [...] lá em casa era assim: as meninas tinham que varrer a casa, lavar os pratos [...] ajudar nas coisas né, já os meninos não faziam nada só estudava e ficava brincano [...] dava era raiva [...]. (Orquídea, 19 anos).
É notório que embora Orquídea não siga os padrões tidos como “normais” de
família, há um sentido de família atribuído por ela que é importante em sua vida.
Ressaltamos que seus olhos lacrimejaram ao responder essa pergunta. Em sua fala,
podemos ver que ao longo do seu processo de socialização da infância à vida adulta
12
As novas tecnologias reprodutivas são as técnicas avançadas que propiciam a geração do feto, não se utilizando dos meios naturais, pois quando usadas é porque esse meio não foi suficiente para a realização desse fenômeno. Entre elas podemos citar: inseminação artificial e fertilização in vitro.
53
foi tentado ensinar as regras sociais consideradas como legítimas pela família e pela
sociedade, a partir da definição dos papéis de gênero, mas a mesma não as
incorporou e/ou aderiu.
Destacamos ainda que, a construção dos modelos de família são
influenciados pela mídia, pelas instituições religiosas e pelos dispositivos jurídicos.
Os valores e as crenças também têm um grande poder de influência na vida dos
indivíduos. Os padrões determinados pela sociedade contribuem para a construção
das relações sociais, sendo o individuo tensionado a cumprí-los. Assim, mesmo a
família sendo uma instituição de natureza privada, suas relações estão imbricadas
com as demais instituições e ordens simbólicas, tornando os membros que não
cumprem as regras socialmente aceitas como diferentes e “anormais”.
Sarti (2008) traz que no Brasil, a Constituição Federal de 1988 possui duas
profundas alterações com referência a família. A primeira é a mudança da chefia
conjugal masculina, fazendo com que homens e mulheres na sociedade conjugal
compartilhem os mesmos direitos e deveres. A segunda transformação refere-se ao
reconhecimento dos direitos de todos os filhos, ou seja, a paternidade confirmada
através de exame de DNA, independe se os filhos são frutos do casamento legal.
Vale ressaltar que esse direito foi reiterado pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente.
Diante desse contexto de mudanças, percebemos que atualmente é difícil
sustentar a ideia de um modelo único e “adequado” de família. O peso da tradição e
dos costumes vêm dando espaço para relações mais fluídas, para novas
configurações e arranjos familiares, a exemplo das famílias monoparentais, a partir
do aumento do número de mulheres chefes de família, as famílias ampliadas que
extrapolam o núcleo familiar de pai, mãe e filhos, mediante a presença de outros
membros da família, como avós, sobrinhos, etc e, as denominadas famílias
recompostas, pois com o aumento do número de separações entre casais, as novas
uniões fazem com filhos de outras relações convivam numa mesma família.
Destacamos ainda a emergência das famílias homoafetivas, ou seja, de casais do
mesmo sexo.
54
Osterne (2004) esclarece que o amor, o casamento, a família, a sexualidade e
o trabalho, antes vivenciados a partir de papéis preestabelecidos, hoje são
concebidos como parte de um projeto em que a individualidade prevalece e adquire
importância social, colocando como problema atual a necessidade de
compatibilizara individualidade e a reciprocidade entre familiares. As pessoas
parecem estar querendo aprender a serem sós e a serem juntas.
Margarida, uma das entrevistas, apontou esse novo pensamento de
individualidade:
[...] Amo muito minha mãe, mas pro bem dela prefiro ficar longe [...] não dá certo viver com ela por causa desse meu problema [...] na verdade não dá certo é com ninguém [...] o melhor que se faz é morar sozinho (ela por vários momentos quando vai se referir à ela mesma, utiliza palavras no gênero masculino, por ser homossexual), porque ninguém fica mandando na sua vida, dizendo que você tem que fazer. Pense numa coisa chata é as pessoas ficarem dizendo as coisas já basta os vizinhos falando mal da sua vida [...] assim que eu sair dessa vida vou arrumar um emprego e alugar um cantinho pra mim. Vou viver é só mesmo. (Margarida, 25 anos).
Por não cumprir as normas consideradas como importantes no seio familiar,
Margarida diz que, por estar em condição de dependência química do crack, a
família a tem como “diferente” e sua mãe é prejudicada diante dos seus
comportamentos decorridos do uso da droga.
Diante das várias configurações de famílias apresentadas na
contemporaneidade e analisando mudanças históricas nas formas de organização
destas, percebe-se que mesmo com a emancipação das mulheres podemos ainda
enxergar a predominância do pensamento tradicional de forma intensa, no que diz
respeito, aos papéis sociais que cada membro familiar deve desempenhar. Nessa
ótica, a estigmatização da mulher dependente química do crack no seu próprio lar
será uma das discussões abordadas a seguir. Iremos discutir as dificuldades
enfrentadas nas relações familiares por essas mulheres, devido sua condição de
drogadicção.
55
3.2 As mulheres usuárias de crack e as mudanças ocorridas nas suas relações
familiares
Segundo Peixoto (2010) a valorização da maternidade tem contribuído ao
longo da história para a naturalização dos papéis sociais desempenhados pelas
mulheres na sociedade. Desse modo, as transformações na condição feminina não
foram suficientes para modificar o papel social de responsável direta pela educação
dos filhos. Ser “boa mãe”, portanto, é algo que garante qualidade ao significado de
ser mulher na sociedade.
De acordo com Orquídea, um dos sujeitos da pesquisa, o fato de ser mulher e
usuária simultaneamente, é algo estritamente delicado, pois se “choca” com os
valores da sua família. Ela coloca que:
É muito difícil mesmo óh. Viver nessa vida, sendo mãe e bem novinha é uma desgraça. O povo da minha família e os da rua vivem me chamando de nome, dizem que sou isso e aquilo outro. Tipo assim, que eu não tenho condições nem de dar conta de mim quanto mais do meu filho. Sabe como é? Minha família tem razão de não me querer lá, mas é muito difícil passar um tempo longe de casa. (Orquídea, 19 anos).
A rejeição da família é algo claro no discurso de Orquídea, durante toda a
entrevista ela estava “chorosa”13, não se continha ao falar da família. Percebemos
que embora triste, o fato de usar crack justifica o trato de seus familiares para com
ela. Mesmo com todo o receio de falar sobre sua vida, em vários momentos da
entrevista, ela expôs seu sentimento de afeto ao falar da sua família e se julga
culpada por seu afastamento.
O imperativo da maternidade ainda é algo construído em torno da identidade
feminina, as mulheres que fogem a isso, muitas vezes, carregam um forte
sentimento de culpa, além do estigma social.
Nesta circunstância, Orquídea por estar sob condição de dependência
química não consegue, segundo suas próprias palavras, durante um dado momento
13
Quando for mencionada a palavra chorosa, significa dizer, emocionada no sentido de demonstrar tristeza.
56
da entrevista, cuidar dos filhos até porque, se julga incapaz de ser um exemplo para
ele. Suas palavras são:
Deus me livre do meu filho me ver assim, quando ele tiver mais sabidinho eu vou ficar só me comunicando por telefone. Eu não quero que ele seja que nem eu, desvalorizada, esculambada, sem rumo. Dá certo não. E outra coisa [...] eu não tenho nada a oferecer pra ele, ele não merece a mãe que tem [...] tenho é pena do bichim. (Orquídea, 19 anos).
Ao terminar essas palavras, Orquídea se emocionou bastante, abaixou a
cabeça e lágrimas discretas saiam de seus olhos, ficou olhando para os dedos das
mãos, bem desgastados fisicamente devido o uso da droga e, ficou tocando- os
como se estivesse querendo pegar algo deles. Ali permaneceu por um longo período
de tempo.
Diante do exposto podemos afirmar que para a sociedade, a figura de mãe
ainda está associada a condição de responsável direta pela educação da prole,
como já assinalamos anteriormente. Essa determinação de o que é ser mãe, da
“sacralização” desse lugar na família, de certa forma, prejudica a relação que
Orquídea poderia ter com seu filho. Porém, ela mesma por já ter incorporado as
normas sociais que balizam as relações do que é certo e do que é errado, já se
considera incapaz devido a sua situação de dependente química do crack.
Peixoto apud Badinter (2010) relata que a exaltação do amor materno
desenvolve-se no último terço do século XVIII. Um dos discursos da época era de
que o cuidado para com as crianças, realizado pelas serviçais, poderia ocasionar
doenças e mortalidade infantil que, por sinal, era alta nos séculos XVII e XVIII.
Assim, a transformação da imagem de mãe, seu papel e sua importância
modificaram-se, operando uma espécie de revolução nas mentalidades, embora os
comportamentos tardem um pouco a se alterar. A mulher é chamada a desempenhar
o papel de boa mãe, através do desenvolvimento de cuidados e da atenção para
com os seus filhos.
Orquídea, ainda está no quinto mês de gestação, ela diz que não sabe o que
fazer com o bebê após o seu nascimento. Por morar na rua, diz não ter perspectivas
de vida. Segundo ela:
57
Não sei o que vou fazer com esse aqui [...] acho que vou é dar [...] mas não vou dar meu filho pra ninguém judiar não [...] quero dar pra quem eu conheça [...] não dá pra mim criar esse na rua e pra casa do pai, meu irmão não vai querer [...]. (ORQUÍDEA, 19 anos).
Pelo seu relato percebemos como a relação “mãe” e “filho” se torna
banalizada pelas condições de vida de Orquídea. Devido às relações com seus
familiares, principalmente com o seu irmão, ela se vê sozinha no momento que
precisa de ajuda. É perceptível também, o desapego que ela tem para com o seu
filho fruto de uma gravidez indesejada. Segundo suas palavras, ela se diz
prejudicada.
Não sei nem como foi que peguei esse menino, é muito ruim pra mim tá buchuda, quando tô muito afim de queimar uma pedra faço programa, não gosto muito, mas é o jeito, e como é que faz buchuda? Ninguém quer [...] (ORQUÍDEA, 19 anos).
A gravidez, nessa circunstância, para Orquídea se tornou um problema,
diante a necessidade de manter o uso do crack. A prostituição foi uma forma de
conseguir dinheiro para a manutenção do uso da droga. Na sua fala a ausência do
denominado “instinto materno” é notória, isso afirma que para além das questões
biológicas, a maternidade é uma construção social e histórica. Assim, na medida em
que esse fenômeno é positivo ou negativo para aquela mãe é que se definem os
vínculos amorosos entre mãe e filho.
Para Olívio e Graczyk (2011), a maternidade é mitificada, tão somente
como função biológica é perpassada por aspectos sociais, culturais, políticos,
ideológicos, econômicos que servem de afirmação do sistema de dominação-
exploração das mulheres, eles trazem que:
Apresentando-se a partir de um cenário que envolve a representação mulher-mãe sob as formas de perfeição dos sentimentos para com seus filhos. Tal construção, envolta nas teias de representações reduzidas, conformam uma armadilha para qualquer trabalho que se volte na garantia do acesso a direitos dos sujeitos [...]. (OLÍVIO E GRACZYK, 2011, p. 4).
No tocante ao tratamento da dependente química, vimos que a família
depende diretamente do Estado no trato das formas de lidar com a problemática das
drogas, nas ações dos processos de controle do uso e da assistência ao usuário.
58
Com isso, consideramos que quanto mais houver a intervenção do Estado no âmbito
da prevenção e assistência à mulher em situação de drogadicção do crack, menor
será a intervenção da família e outras formas de controle informal.
Até o início da industrialização, o uso de drogas era regulado por controles
sociais informais e pelo autocontrole dos indivíduos. Contudo, a partir do
aparecimento do chamado Estado- nação, os interesses politico- econômicos
tornaram-se uma preocupação, originando-se na regulamentação das drogas na
Europa e nas Américas.
Trad (2010) sinaliza ainda que em relação ao usuário, até o começo da
Revolução Industrial, o Estado mantinha uma postura liberal diante do uso de
drogas, permitindo os controles informais e o autocontrole, ou seja, não detinha a
responsabilidade de administrar o uso. Todavia, com a mudança para a sociedade
urbano- industrial, a medicina, enquanto instituição social juntamente com o Estado,
através da segurança pública, passou a assumir papel de instâncias máximas na
regulação das drogas e também dos dependentes químicos, fundamentando o
chamado “modelo proibicionista de drogas”. Nesse momento, a problemática passou
a ser encarada como uma anormalidade ao qual o usuário era o protagonista, sendo
ele um doente e considerado um delinquente. No Brasil, diante da aliança entre o
Estado e a medicina houve a hegemonia do paradigma médico- jurídico na
prevenção de drogas.
A participação da medicina e da psiquiatria foi decisiva na construção do
problema das drogas no Brasil, tanto do ponto de vista jurídico quanto por parte do
debate público em torno do problema. As pré- concepções que diziam que a
delinquência social eram decorridas do uso de drogas, após a metade do século XX,
se agravaram posteriormente.
O processo de regulação e normatização do consumo de drogas do modelo
proibicionista recebeu várias críticas. Uma delas foi a ausência de um tratamento
sistemático, unitário e interdisciplinar sobre as substâncias, havendo uma deficiência
no trato dessa expressão da questão social. Visto que, não refletiu apenas no
processo de classificação das drogas como consumo, mas também na ausência da
59
definição de drogas psicoativas e na conformação das politicas de prevenção que se
tinha.
Isso fez com que, houvesse outras propostas. Uma delas foi trazer a família
como ente importante no processo de mediação entre o indivíduo, o uso de drogas e
a sociedade. A partir da reforma sanitária e da criação do SENAD, surgiram novas
ações de serviços públicos de saúde. No campo jurídico foi possível o favorecimento
da adoção de algumas iniciativas voltadas para abordagens mais próximas da
família.
A família é uma instituição importante para a mulher dependente química do
crack, no que diz respeito às condições de apoio e cuidados à elas. Pois, diante de
todo o preconceito que elas enfrentam na sociedade, é na família que elas podem
encontrar um suporte, sendo esta uma esfera de proteção social.
Porém as atitudes familiares tanto podem se dar através da proteção ou
rejeição, repúdio.
Minha irmã nem fala comigo quando eu tô muita doida, sabe como é? [...] não pergunta nem se eu quero comer, seu eu tô bem [...] se to sentindo alguma coisa. [...] quando eu to boa ela já fala comigo bem direitin parece que eu sou outra pessoa pra ela [...] quando eu uso fico muito elétrica, aí ela fica escondendo as coisas de mim [...] ela pensa que eu sou abestada e não vejo o jeito que ela fica quando eu chego [...] mas eu não mexo com ninguém [...] é sério [...] o povo pensa que todo usuário é agressivo, violento, nem bem assim não chapa [...]. (Margarida, 25 anos).
A fala acima retrata bastante a questão da diferença de ser ou não usuária
de crack. No caso, de Margarida, ela mesmo percebe o preconceito dentro de casa.
E ainda complementa que a sociedade, quando ela se refere ao povo, já tem uma
imagem das pessoas usuárias, sendo isso a materialização dos estigmas em
relação a elas. É percebido por Margarida, de acordo com suas palavras, que o fato
de ela ser usuária de droga, tem menos valor do que um próprio animal de
estimação.
Ela relata que:
Duvido que se eu não fosse usuário [...] a minha família me tratava assim, tem nem perigo [...] te digo com toda a certeza do mundo, que só minha mãe me ama, os outros [...] me aguentam porque é o jeito, é parente né? Até o cachorro dela (ao se referir à irmã que mora com ela) recebe mais
60
atenção do que eu [...] é por isso também que tenho que procurar um canto
pra mim, presta não morar com família. (Margarida, 25 anos).
De acordo com as entrevistadas houve muitas mudanças após o início do uso
do crack. Orquídea disse que tinha tudo em casa e que após ter iniciado o uso do
crack, a família passou a enxergá-la diferente, com desconfiança e vergonha.
Já fumo pedra há mais de quatro anos [...] perdi um tempo legal da minha adolescência [...] poderia ter sido diferente se eu não tivesse conhecida essa porcaria. Agora não dá mais sair dela. Meu irmão deixou de falar comigo por causa desse meu vício, a gente era muito amigo. Se abraçaava e tudo, hoje nem vejo mais ele. Ele tem teve até um filho agora, queria conhecer, mas ele tem vergonha de mim. Ele acha que eu não deixo porque eu não quero diz que é sem vergonhice, mas quem é que gosta de uma vida dessa? Se acabando desse jeito sem nada na vida? (Orquídea, 19 anos).
É notório, pelas palavras de Orquídea, que houve mudanças nas relações
familiares, através dos vínculos rompidos com o irmão. Diz Schowoel (2008), que
uma vez que a família é um dos elos mais fortes do individuo diante da multifacetada
cadeia que forma o uso de drogas, ela é uma entidade participante para a promoção
do tratamento deste, como por exemplo, nas abordagens terapêuticas. Porém, a
família por inúmeros motivos não quer ou não pode participar do processo de
recuperação do indivíduo, fazendo com que as relações minimizem ou até mesmo
se eliminem devido os problemas causados por essa problemática. De acordo com o
autor, diferentes autores chegaram a algumas conclusões convergentes, em relação
ao universo familiar e a adicção do uso de drogas. Sendo elas:
a) uma série de fatores familiares tem relação com o processo adctivo; b) o início do abuso de drogas e de overdoses pode ser precipitado pelo rompimento familiar, estresse e perdas; c) o modelo dos pais no que se refere ao uso de drogas e álcool é importante ou pode servir como uma forma de mobilizar os pais do adicto para tratamento; e) outros membros da família podem “facilitar” comportamentos que perpetuem o abuso de substância por um dos seus membros (SCHOWOEL, 2008, p. 23).
A partir dessas considerações podemos dizer, que o uso está direta ou
indiretamente relacionado às relações familiares do indivíduo. De acordo com
Orquídea, o início o uso de crack por ela se deu pela convivência com um primo,
61
que a ofereceu. Tempos depois, ele foi assassinado por estar envolvido com as
drogas.
Nem sabia fumar cigarro quando aprendi a queimar pedra [...] parecia uma abestada. Meu primo [...] me oferecia várias vezes, até que um dia eu aceitei. Ele sabia bem direitinho e foi ele quem me ensinou a usar a lata. Na primeira vez fiquei muito mal, mas depois foi muito bom. Tú é doido cara a gente fica muito bem, a sensação é inexplicável, se você provar vai ver porque tanta gente é viciada e destruída ao mermo tempo. (Orquídea, 19
anos).
Entretanto, no caso de Margarida, ninguém da sua família é dependente
químico. Nonticuri (2010) discute o comportamento do usuário de crack na família.
De acordo com sua obra, o impacto do uso do crack no seio familiar é muito sofrido,
também em razão da violência praticada pelo usuário. Geralmente, os dependentes
químicos em geral, não dialogam e, quando contrariados respondem
agressivamente, não sabendo a família como lidar com a situação. Em vários
casos, a família fica dividida entre a denúncia pela agressão sofrida e o amor e o
zelo pelo familiar.
A autora assinala que: “Identificam-se sentimentos ambivalentes em relação
ao familiar usuário de crack: vontade de ajudar, desespero, raiva, tolerância,
impotência diante da droga” (Nonticuri, 2010, p. 73). No caso de Orquídea, a opção
de morar na rua é por não conseguir manter o vício sem subtrair os bens da casa do
pai.
Eu não quero dar mau exemplo pro meus filhos [...] já basta essa vida que levo. E tem outra meu pai não merece, já sustenta minha filha de 3 anos e meu irmão quer falar besteira por causa do meu vício também [...] teve foi uma vez que peguei a rede do meu pai e vendi com lençol e tudo (ela rir ao mencionar esse episódio)e meu irmão quis me bater, tudo que vejo lá quero empenhar. Peguei a faca e fui pra cima dele. Agora pronto querer botar moral em mim nem meu pai. Pelo gosto do meu pai eu morava lá, mesmo com tudo isso ele gosta de mim e sei que fica triste porque moro na rua, ele se preocupa mesmo (Orquídea, 19 anos).
Margarida contempla que o uso do crack, foi mais um fator que contribuiu
para um maior afastamento dos seus familiares:
Ser viciada e ainda ser sassá (ela diz que sassá é a forma de dizer “sapatão”, lésbica) né moleza não. Minhas irmãs moram tudo longe de mim. Essa com quem eu moro é a melhorzinha. Assim ela não me aceita, desde que eu disse que gostava de mulher muita coisa mudou pro meu lado. Eu
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notei o jeito do pessoal lá de casa me tratar. Mas assim só quem sabe que eu uso crack é essa minha irmã, ela fala comigo, mas eu percebo que é só fala porque é o jeito. Ela não aceta porque eu sou homossexual e viciada. (Margarida, 25 anos).
Num terreno de grandes conflitos como esses, percebemos como são
inúmeras e diversas as consequências que o uso do crack causa na vida dessas
mulheres e de suas famílias. Os aspectos subjetivos de suas identidades, suas
angústias e seus transtornos são visíveis nas falas delas. Sentimentos e razões se
misturam. É importante ressaltarmos também que os níveis de reflexões sobre suas
vidas são práticas pouco exercitadas por elas, dada a peculiar condição em que se
encontram.
É claro que, o despreparo do Estado brasileiro quanto ao atendimento das
famílias com membros que sofrem com esse problema, é um fator predominante
para o agravamento dessas conflituosas relações. Há de ser dizer, que além das
famílias das usuárias, toda a sociedade sofre as consequências dessa avassaladora
expressão da questão social.
63
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com a pesquisa podemos afirmar que o crack, não é apenas uma substância
psicoativa. As consequências e os impactos que ele tem causado ao longo do
tempo, nas famílias e nas demais instituições sociais aos quais o indivíduo pertence,
são muito fortes.
Quem de nós não vivencia em casa ou conhece alguém que sofre com esse
problema? A verdade é que essa problemática se apresenta por todos os lados, seja
diretamente pelo o uso, seja através de outras expressões da questão social que
decorrem do uso da droga.
Sabemos que o uso de drogas sempre existiu, mas porque só hoje se fala
tanto em crack, dependência química e política de redução de danos? A visibilidade
que essa problemática ganhou, possibilita um olhar e uma preocupação diferente
para com o seu trato. A escassez de políticas públicas voltadas para essas usuárias
necessariamente os dependentes químicos, os familiares e amigos que
acompanham esse drama também sofrem as consequências.
As limitações das políticas públicas existentes não conseguem confortar uma
sociedade que já não consegue mais conviver com o problema e, através da
sociedade civil constrói formas de lidar com o problema, como é o caso dos centros
de recuperação de natureza filantrópica. A sociedade civil e as entidades religiosas
têm tomado para si a responsabilidade que é do Estado. Destacamos que esse fato
está diretamente ligado ao processo de contrarreforma do Estado neoliberal.
O campo de realização da pesquisa, por exemplo, atende tanto usuários do
sexo feminino quanto masculino. Nesta, os usuários permanecem por no máximo
quinze dias. Na verdade, trata-se de uma internação provisória na instituição de
saúde, uma espécie de “férias” que os usuários tem durante um determinado tempo.
O tratamento é substancialmente realizado a base de medicamentos e, para a
realização de atividades, os mesmos só contam com a ajuda de profissionais
voluntários, conforme descrito anteriormente. Após sua liberação, o usuário passa a
ser acompanhado pelo CAPS, que por sua vez, ocorre mediante a participação dos
64
usuários nas atividades realizadas na instituição. A ausência de atividades voltadas
para a família é nítida nas políticas públicas de atendimentos dos dependentes
químicos de crack.
No desenvolver dessa pesquisa, percebemos que a família assume um
importante papel no tratamento dessas pessoas. Segundo Margarida:
Ninguém da minha família vem me visitar [...] todo mundo sabe que eu tô aqui, mas ninguém liga pra mim [...] só quem não tá sabendo é minha mãe. Toda vida no horário de visita, os outros pacientes tem visita, menos eu [...] dá é desgosto [...] as vezes a gente quer sair dessa vida, mas é essas coisas que fazem com que a gente queira fumar de novo [...]. (Margarida, 25 anos).
A ausência da família de Margarida a angustia, de forma a fazê- la pensar em
voltar a fazer uso do crack. Sua condição vulnerável de usuária fez com que a
família se distanciasse, ficando apenas uma irmã e um sobrinho próximo dela. Assim
como Margarida, inúmeras usuárias de crack passam pela mesma situação de
abandono e distanciamento dos familiares.
Ainda durante os momentos de realização desse estudo, foi possível
identificar que o trabalho do assistente social da instituição se dava de forma
pontual, muitas vezes, restringia-se a chamar a família quando o usuário queria
“fugir” da instituição ou manifestava vontade própria de ir embora. Não observamos
e nem nos foi informada nenhuma outra atividade realizada pelo profissional de
Serviço Social.
Isso nos chama a atenção haja vista a necessidade de ultrapassarmos a
dimensão da execução e, trabalharmos de forma crítica e propositiva. A partir das
reflexões teórico- críticas, é necessário compreendermos a complexidade e a
dinâmica da realidade e não nos deixarmos levar pela rotina.
Diante da problemática apresentada nesse trabalho, o assistente social é
chamado para intervir de forma a garantir os direitos dos usuários em todas as suas
especificidades, devendo atuar no âmbito das políticas públicas como agente de
viabilizador de direitos em interface com outras políticas públicas. Nesse caso
específico, através a rede psicossocial.
Apesar das conquistas, a luta pela criação de mais políticas públicas que
atendam mulheres usuárias de crack, deve ser contínua e incessante, haja vista
65
também as especificidades no tocante às questões de gênero. O uso do crack na
nossa sociedade é algo real e merece destaque, não pelos noticiários
sensacionalistas que banalizam o problema, mas pelos entes públicos.
É necessário que o Estado brasileiro e a sociedade civil organizada reflitam,
elaborem e executem propostas viáveis de enfrentamento dessa expressão da
questão social, que a cada momento escraviza os usuários, dada a condição em que
se encontram. É importante destacar também o fortalecimento das ações
multiprofissionais no trato com usuários em situação de dependência química e a
potencialização da rede de atenção psicossocial, enxergando o uso do crack como
uma questão que abrange múltiplos olhares e saberes.
66
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ZILBERMAN, M. L. Características clínicas da dependência de drogas em
mulheres. São Paulo, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, 1998.
(Tese apresentada à Faculdade).
71
Apêndice 1
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Título da Pesquisa:
MULHERES E CRACK: UMA ANÁLISE SOBRE O CONTEXTO FAMILIAR DE
MULHERES USUÁRIAS DE CRACK ATENDIDAS NA SANTA CASA DE
MISERICÓRDIA EM FORTALEZA.
Pesquisador: Edilaine Sousa Pereira Santos
Orientadora: Profª Socorro Letícia Fernandes Peixoto
O Sr. (Sra.) está sendo convidado(a) a participar desta pesquisa que tem
como finalidade analisar as relações familiares das mulheres usuárias de crack,
abordando as mudanças que ocorreram após o uso da droga e o papel dessas
mulheres no interior de suas famílias. Tal pesquisa é requisito para a conclusão do
curso de Bacharelado em Serviço Social pela Faculdade Cearense.
Ao participar deste estudo, o Sr. (Sra.) permitirá que o pesquisador utilize
suas informações para a realização desta pesquisa. Entretanto, os dados obtidos
serão mantidos em sigilo, somente o pesquisador e sua orientadora terão
conhecimento dos dados. O participante tem a liberdade de desistir a qualquer
momento do estudo caso julgue necessário, sem qualquer prejuízo. A qualquer
momento poderá pedir maiores esclarecimentos sobre a pesquisa através do
telefone do pesquisador.
O maior benefício para o participante será a sua contribuição pessoal para o
desenvolvimento de um estudo científico de grande importância, onde o pesquisador
se compromete a divulgar os resultados obtidos. O Sr. (Sra.) não terá nenhum tipo
de despesa para participar desta pesquisa, bem como nada será pago por sua
participação.
Após estes esclarecimentos, solicito o seu consentimento de forma livre para
participar desta pesquisa.
72
CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Tendo em vista os esclarecimentos apresentados, eu, de forma livre e
esclarecida, manifesto meu consentimento em participar da pesquisa “Mulheres e
crack: uma análise sobre o contexto familiar de mulheres usuárias de crack
atendidas na Santa Casa de Misericórdia em Fortaleza”.
____________________________________________
Nome do participante
____________________________________________
Assinatura do participante
____________________________________________
Assinatura do pesquisador
____________________________________________
Profª Socorro Letícia Fernandes Peixoto
Orientadora/ Faculdade Cearense
TELEFONES:
Pesquisador: (85) 96485669
Orientadora: (85) 87961318
73
Apêndice 2
Roteiro de entrevista
Dados Pessoais
Idade_________ Naturalidade_________________________________
Escolaridade_________________________
Ocupação_________________________________
Bairro da residência___________________________
Estado civil:__________________________________ Tempo:
_________________
Composição familiar (n° de pessoas / especificar):
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
__________________________________________________
Número de filhos/ Idade:____________________________________
Renda familiar: __________________ Principal provedor:
___________________________
Religião________________________
MULHER E DROGADIÇÃO:
O que é ser mulher? Como você se percebe como mulher na sociedade?
O que é ser usuária de drogas e mulher ao mesmo tempo?
Você acha que há diferenças entre ser mulher usuária de crack e ser homem
usuário de crack? Se sim, quais?
Como você se via antes do uso do crack e como você se vê hoje?
Houve algo que você deixou de fazer e o que passou a fazer depois de se tornar
dependente química do crack?
74
Você já sofreu algum tipo de preconceito pela sociedade, por sua condição de ser
mulher usuária de crack ?
MULHER, FAMÍLIA E DROGADIÇÃO
Qual o significado de família para você?
Como é sua relação com as pessoas da sua família? Detalhar.
Você acha que o uso do crack modificou a sua convivência familiar? Se sim, em
que?
O que é ser mãe e usuária de crack?
Alguma pessoa da sua família faz ou já fez uso da mesma droga? Se sim, quem?
DROGADIÇÃO
De que forma conheceu o crack?
Há quanto tempo usa crack?Como foi a sua primeira experiência de uso do crack?
Qual o significado do crack na sua vida?
Há diferenças entre o crack e as outras drogas? Se sim, quais?
Com que frequência faz o uso do crack?
Qual o local que você faz o uso?
Se você pudesse voltar no tempo, faria o uso novamente?
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