CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL – HABILITAÇÃO EM PUBLICIDADE E PROPAGANDA
YAN GONÇALVES DE CASTILHOS
FILMES DE UM HOMEM SÓ:
A ONIPRESENÇA DE SHANE CARRUTH
CAXIAS DO SUL
2017
YAN GONÇALVES DE CASTILHOS
FILMES DE UM HOMEM SÓ: A ONIPRESENÇA DE SHANE CARRUTH
Trabalho de conclusão de curso apresentado como Requisito obrigatório para a obtenção do grau de Bacharel em Comunicação Social – Habilitação em Publicidade e Propaganda da Universidade de Caxias do Sul. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Ivana Almeida da Silva.
Caxias do Sul 2017
YAN GONÇALVES DE CASTILHOS
FILMES DE UM HOMEM SÓ: A ONIPRESENÇA DE SHANE CARRUTH
Trabalho de conclusão de curso apresentado como Requisito obrigatório para a obtenção do grau de Bacharel em Comunicação Social – Habilitação em Publicidade e Propaganda da Universidade de Caxias do Sul. Aprovado (a) em: __/12/2017.
Banca examinadora: ________________________________________ Prof.ª Dr.ª Ivana Almeida da Silva Universidade de Caxias do Sul ________________________________________ Prof. Me. Jacob Raul Hoffmann Universidade de Caxias do Sul ________________________________________ Prof.ª Esp. Flóra Simon da Silva Universidade de Caxias do Sul
Dedico esta monografia ao meu “eu do futuro”, esperando que seja uma pessoa feliz e com uma mente mais em paz. Dedico também a todos os espíritos livres deste mundo louco.
AGRADECIMENTOS
Antes de mais nada, preciso agradecer à minha pessoa favorita, Marliva Vanti
Gonçalves, carinhosamente apelidada de mãe. Agradeço por ser o melhor exemplo
possível, mesmo que eu não siga (embora devesse) esse exemplo em vários
momentos. Agradeço seu apoio em todas as decisões absurdas e incertas que já
tomei. Admiro o esforço por conseguir criar seus dois filhos sozinha e admiro seu
otimismo e a alegria com que vive a vida. Nunca terei palavras para expressar o que
sinto por ela.
Agradeço à minha orientadora, Ivana Almeida da Silva, pelos ensinamentos,
pela paciência e por sempre me apoiar quanto ao tema escolhido, não importando que
ele fosse difícil e que não possuísse muito referencial teórico (especialmente em
Português).
Agradeço também aos meus amigos verdadeiros, que me proporcionam o que
mais prezo na vida, o riso, sem o qual eu tenho certeza que não conseguiria
sobreviver.
“Agora estou perdido em algum lugar, entre um futuro brilhante
e um sonho terrível”.
Fictionist
RESUMO
O presente trabalho monográfico tem como tema a busca das marcas de Shane Carruth como diretor de cinema. A pesquisa gira em torno da questão norteadora, que procura entender de que forma Carruth, que participa de mais de uma área criativa de seus filmes, expressa sua marca pessoal em uma obra fílmica, quando se trata do cinema de caráter autoral. Para um melhor entendimento das marcas pessoais do diretor, foram analisados os filmes principais e mais conhecidos do cineasta, Primer (2004) e Upstream Color (2013). O método utilizado é a Análise de Conteúdo, proposto por Laurence Bardin (2011). Foram selecionadas cinco cenas de cada obra, para que fosse possível destacar os aspectos de direção, escrita (roteiro), edição, atuação e composição de trilha sonora do diretor. O principal resultado alcançado foi o de que essa direção onipresente deixa marcas únicas de seu criador, tornando seus filmes extremamente autorais. No caso de Carruth, uma forma de roteiro bastante mutável de um filme para o outro; uma direção focada em planos detalhe e composição de cena; um ritmo de edição frenético; uma atuação sem dramatização em excesso e uma ênfase na trilha sonora, sempre buscando sensibilizar a cena. O lado negativo depende do profissional que emprega este método de direção. No caso de Carruth, é sumarizado pela privação de ideias que poderia aderir de seus colegas de produção, sejam elas boas ou más. Palavras-chave: Cinema, Direção, Shane Carruth, Autor, Marca pessoal.
ABSTRACT This monographic work is about Shane Carruth’s marks as a film director. The research revolves around the guiding question, which aims to understand how Carruth, who participates in more than one creative area of his films, espresses his personal marks in a film work, when it comes to the Auteur Cinema. For a better understanding of the director personal traits, were analyzed the filmmaker’s main and most recognizable works, Primer (2004) and Upstream Color (2013). The method used is Content Analysis, proposed by Laurence Bardin (2011). Five scenes of each work were selected, where it was possible to highlight aspects about the filmmaker’s direction, writing (script), editing, acting and soundtrack composition. The main result was that his onipresent direction leaves unique marks of its creator, making the authorship of his movies extremely evident. In Carruth’s case, a very changeable script form from one film to another; a direction focused on close-ups and shot composition; a frenetic pace of editing; acting without overdramatizing and an emphasis on the soundtrack, always trying to sensitize the scene. The negative side depends on the professional who employs this method of directing. In Carruth’s case it is summarized by depriving himself from his co-workers’s ideas, wether good or bad. Key-words: Cinema, Directing, Shane Carruth, Auteur, Personal Mark.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Sir. Charles Spencer Chaplin......................................................................48
Figura 2: George Orson Welles..................................................................................50
Figura 3: Akira Kurosawa...........................................................................................51
Figura 4: Edward Davis Wood Jr................................................................................54
Figura 5: Stanley Kubrick...........................................................................................55
Figura 6: Os Coen......................................................................................................56
Figura 7: Fincher........................................................................................................61
Figura 8: Tarantino.....................................................................................................65
Figura 9: Anderson.....................................................................................................69
Figura 10: Boyle.........................................................................................................73
Figura 11: Shane Carruth...........................................................................................77
Figura 12: Pôster de Primer.......................................................................................78
Figura 13: Pôster de Upstream Color.........................................................................81
Figura 14: Carruth no set de Upstream Color............................................................89
Figura 15: Comparativo entre diretores autores contemporâneos e Carruth (arte do
pesquisador).............................................................................................................128
Figura 16: Comparativo entre diretores autores do passado e Carruth (arte do
pesquisador).............................................................................................................128
LISTA DE FOTOGRAMAS
Fotograma 1: Inside Llewyn Davis (2013)..................................................................60
Fotograma 2: The Curious Case of Benjamin Button (2008).....................................64
Fotograma 3: Inglourious Basterds (2009).................................................................68
Fotograma 4: The Darjeeling Limited (2007)..............................................................72
Fotograma 5: Trainspotting (1996).............................................................................75
Fotograma 6: Primer...................................................................................................90
Fotograma 7: Primer – Abe e Aaron...........................................................................91
Fotograma 8: Primer – Abe e Aaron no armazém......................................................92
Fotograma 9: Primer – Abe e Aaron dirigem..............................................................93
Fotograma 10: Upstream Color..................................................................................94
Fotograma 11: Upstream Color – Kris e Jeff..............................................................95
Fotograma 12: Upstream Color – Orquídea normal e orquídea infectada.................96
Fotograma 13: Upstream Color – Jeff e Kris começam a desvendar o caso.............97
Fotograma 14: Upstream Color – Kris tem uma visão...............................................97
Fotograma 15: Upstream Color – Kris e o leitão........................................................98
Fotograma 16: Primer – Cena 1...............................................................................100
Fotograma 17: Primer – Cena 2...............................................................................101
Fotograma 18: Primer – Cena 3...............................................................................103
Fotograma 19: Primer – Cena 4...............................................................................106
Fotograma 20: Primer – Cena 5...............................................................................110
Fotograma 21: Upstream Color – Cena 1................................................................112
Fotograma 22: Upstream Color – Cena 2................................................................114
Fotograma 23: Upstream Color – Cena 3 (arte do pesquisador).............................119
Fotograma 24: Upstream Color – Cena 4................................................................120
Fotograma 25: Upstream Color – Cena 5................................................................122
Fotograma 26: Primer – Créditos (arte do pesquisador)..........................................138
Fotograma 27: Upstream Color – Créditos (arte do pesquisador)...........................138
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO................................................................................................13
1.1 METODOLOGIA.............................................................................................18
1.1.1 Pesquisa qualitativa...................................................................................18
1.1.2 Pesquisa bibliográfica...............................................................................19
1.1.3 Análise de Conteúdo.................................................................................19
2. CINEMA............................................................................................................21
2.1 DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO E LINGUAGEM.....................................21
2.2 O CINEMA AUTORAL: SURGIMENTO E CARACTERÍSTICAS....................30
3. DIREÇÃO DE CINEMA....................................................................................38
3.1 O DIRETOR....................................................................................................38
3.2 OS PROCESSOS CRIATIVOS E AS MARCAS PESSOAIS..........................43
3.2.1 A velha guarda...........................................................................................47
3.3 DIREÇÃO COM PERSONALIDADE CONTEMPORÂNEA.............................55
3.3.1 Os Coen......................................................................................................56
3.3.2 Fincher........................................................................................................61
3.3.3 Tarantino.....................................................................................................65
3.3.4 Anderson....................................................................................................69
3.3.5 Boyle...........................................................................................................73
4. SHANE CARRUTH...........................................................................................76
4.1 O HOMEM POR TRÁS DA CORTINA............................................................77
4.2 ANÁLISE DE CONTEÚDO - FASE 1..............................................................90
4.2.1 Primer..........................................................................................................90
4.2.2 Upstream Color..........................................................................................94
4.3 ANÁLISE DE CONTEÚDO – FASE 2.............................................................98
4.3.1 Primer........................................................................................................100
4.3.1.1 Cena 1: Mais Uma Noite de Quarta........................................................100
4.3.1.2 Cena 2: Filé ou Tacos?...........................................................................101
4.3.1.3 Cena 3: A & B.........................................................................................103
4.3.1.4 Cena 4: Passo a Passo...........................................................................106
4.3.1.5 Cena 5: Herói..........................................................................................110
4.3.2 Upstream Color........................................................................................112
4.3.2.1 Cena 1: Sincronia....................................................................................112
4.3.2.2 Cena 2: Estorninhos................................................................................114
4.3.2.3 Cena 3: Conexão....................................................................................119
4.3.2.4 Cena 4: Descoberta................................................................................120
4.3.2.5 Cena 5: Tudo Está Bem..........................................................................122
4.4 ANÁLISE DE CONTEÚDO – FASE 3...........................................................123
4.4.1 Direção......................................................................................................123
4.4.2 Roteiro.......................................................................................................129
4.4.3 Edição.......................................................................................................132
4.4.4 Atuação.....................................................................................................134
4.4.5 Trilha sonora............................................................................................136
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................139
REFERÊNCIAS..................................................................................................144
ANEXO...............................................................................................................151
13
1. INTRODUÇÃO
“Nós pensamos demais e sentimos de menos.”
Charlie Chaplin
Existem diversos estudos sobre diretores cinematográficos. Existem ainda mais
estudos sobre a arte do cinema ou sobre diretores famosos que alcançaram a
grandeza. Alguns aspectos que não são tão difundidos são o cinema independente,
de baixíssimo orçamento; diretores amadores e autodidatas e, principalmente,
cineastas que passam pelo grande obstáculo que é fazer um filme praticamente
sozinhos.
Na presente monografia, busca-se, como objetivo geral, antes de mais nada,
entender, de que forma o diretor Shane Carruth, que assume diferentes domínios do
fazer cinematográfico e que produz um Cinema Autoral consegue expressar sua
personalidade, ideias e marcas pessoais em suas obras. Também procura-se
compreender, no âmbito do cinema e mapeando historicamente na cinematografia
mundial, a presença de diretores com a habilidade de atuar em várias frentes.
Logo, deverá se adentrar ao que é necessário para ser um diretor de cinema.
Como objetivo especifico, procura-se entender a área da direção cinematográfica e,
de forma mais específica, os profissionais dessa área que assumem diferentes
competências no fazer fílmico. Posteriormente, como objetivo específico, busca-se
entender o que são marcas pessoais, como elas conseguem aparecer em uma obra
fílmica e o que isso revela sobre quem as produziu. O cinema de caráter autoral será
muito abordado, visto que tenta, entre outras questões, elucidar de quem é o controle
criativo de um filme. Como objetivo específico, busca-se aprender o que define o
Cinema Autoral e qual o impacto que essa abordagem traz ao universo
cinematográfico.
Shane Carruth foi o diretor escolhido para análise, justamente em função de se
encaixar nos temas descritos anteriormente. Um diretor “faz tudo”, independente e
autodidata, que imprime em seus filmes marcas características, mas que também
possui suas falhas, demonstrando que o fazer fílmico “onipresente” não está livre de
defeitos. É, um dos objetivos específicos, inteirar-se acerca desse diretor, para fazer
14
uma análise mais aprofundada de suas obras. Outro objetivo especifico é analisar
brevemente os aspectos positivos e negativos relacionados à onipresença de um
cineasta em seus filmes.
Tudo que é relevante deixa marcas. No cinema, isso não é diferente. Filmes
deixam impressões duradouras no indivíduo, memórias que vão perdurar para
sempre. Um dos maiores responsáveis por esses momentos é o diretor, pois ele deve
dar o “tom” e a atmosfera do filme e, consequentemente, gravar sua marca pessoal
nas obras.
O fazer fílmico passou por muitas transformações, desde os nickelodeon1 em
1905, até os cinemas IMAX2, de hoje. Depois de todo esse tempo, torna-se
praticamente incontestável dizer que a experiência audiovisual é uma arte. Mais do
que arte, também é uma linguagem. Um dos primeiros “mágicos” do cinema foi
Georges Méliès, que entendeu que a arte tinha mais potencial do que simplesmente
capturar o mundano dia a dia.
A bem dizer, o cinema foi uma arte desde suas origens. Isso é evidente na obra de Méliès, para quem o cinema foi o meio, com recursos prodigiosamente ilimitados, de prosseguir suas experiências de ilusionismo e prestidigitação do Teatro Robert-Houdin: existe arte desde que haja criação original (mesmo instintiva) a partir de elementos primários não específicos, e Méliès, enquanto inventor do espetáculo cinematográfico, tem direito ao título de criador da sétima arte (MARTIN, 2003, p. 15).
Os filmes foram se ajustando, juntamente com seu público, ao constante
aperfeiçoamento da tecnologia, que permitiu aos diretores experimentarem novas
maneiras de fazer sua arte. Isso levou os filmes a patamares que eram, antes,
impensáveis. A tecnologia limitadíssima dos primórdios cinematográficos apresentava
muitos obstáculos para os pretensos diretores: sem cores e sem som; a montagem
que precisava ser cautelosamente editada à mão; filmes que, muitas vezes,
precisavam ser filmados em ordem. Essas obras “cruas”, sem muitos enfeites ou
1 Os nickelodeon (do Inglês estadunidense: nickel = moeda de 5¢, Grego: Odeion = teatro coberto) constituíram um tipo de primitivas e pequenas salas de cinema do início do século XX. Em locais onde a concorrência fosse maior, era frequente disporem de um piano ou de um órgão, onde se tocava a música que o pianista ou organista julgasse apropriada para cada cena. Disponível em https://historictheatres.org/blog/2016/11/14/behind-the-curtain-at-the-nickelodeon-americas-first-movie-theatre/ - Acessado em 10/06/2017 2 Image Maximum (IMAX) é um formato de filme criado pela empresa canadense IMAX Corporation que tem a capacidade de mostrar imagens muito maiores em tamanho e resolução do que os sistemas convencionais de exibição de filmes. Disponível em http://www.fundinguniverse.com/company-histories/imax-corporation-history/ - Acessado em 10/06/2017
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efeitos, serviam para proporcionar um entretenimento barato para o grande público,
mas que, certamente, foram necessárias para originar o cinema de hoje.
Com a evolução irrefreável da tecnologia, os filmes ganharam mais
possibilidades, montagens mais ousadas e criativas, enquadramentos nunca antes
vistos, qualidade de vídeo superior, som, cores. Conforme essas mudanças ocorriam,
o cinema foi ficando mais imersivo, ganhou consistência. Hoje, cineastas continuam a
extrapolar o que se considera já explorado. Filmes em 8mm, câmeras digitais,
programas para editar no conforto de casa em um computador, tecnologias cada vez
mais versáteis, que permitem a muito mais pessoas se aventurarem no audiovisual.
Filmes feitos inteiramente por celulares, como é o caso de Tangerine (Baker,
2015), fazem refletir que qualquer pessoa, com um mínimo de domínio da tecnologia
existente, pode fazer um filme, basta ter a determinação.
Um filme é feito de várias centenas de fragmentos cuja continuidade lógica e cronológica nem sempre é suficiente para tornar seu encadeamento perfeitamente compreensível ao espectador; ainda mais que, na narração fílmica, a cronologia muitas vezes é desrespeitada e a representação do espaço sempre foi das mais audaciosas (MARTIN, 2003, p. 16).
A edição é, talvez, o principal processo que se transformou para melhor se
aproximar das vidas apressadas que se têm hoje. Cortes rápidos, cenas que duram
pouquíssimos frames para condizer com essa era de curta atenção do mundo digital
podem exemplificar as escolhas feitas pelos diretores.
Mesmo assim, ainda existem diretores “puristas” que mantém um estilo clássico
de cenas mais lentas, mas eles constituem uma minoria e isso é ainda mais evidente
no cinema norte-americano.
(...) o cinema tornou-se pouco a pouco uma linguagem, ou seja, um meio de conduzir um relato e de veicular ideias: os nomes de Griffith e Eisenstein são os marcos principais dessa evolução, que se fez pela descoberta progressiva de procedimentos de expressão fílmicos cada vez mais elaborados e, sobretudo, pelo aperfeiçoamento do mais específico deles: a montagem (MARTIN, 2003, p. 16).
De acordo com Rabiger (2007), o cinema conquistou seu lugar por ser um meio
de comunicação coletivo, e não individualista. Pode-se entender que um filme é o
resultado do esforço de um time. Time este composto por roteiristas, que
proporcionam a parte vital do filme, a narrativa e as ideias que serão manipuladas na
tela; atores, que darão vida à história e farão a principal conexão com o público, sendo
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eles os únicos a serem vistos no transcorrer da obra; produtores, que possibilitam,
antes de mais nada, o próprio fazer do filme, dando o apoio financeiro necessário.
Dentre muitos outros membros do time, há também o diretor. Cabe a ele orientar tudo
e todos. É ele quem dá a palavra final e é o responsável pelo filme como um todo.
Há diretores que “quebram” um pouco o molde de orientador. Cineastas que
querem participar ao máximo de seus filmes, um Cinema Autoral que não é visto com
muita frequência. Há, também, diversos estilos: diretores que editam seus próprios
filmes, como era o caso de Akira Kurosawa; diretores que escrevem seus roteiros,
como os irmãos Coen; diretores que gostam de aparecer tanto na frente das câmeras
quanto de operá-las, como Clint Eastwood. E há ainda casos mais raros de diretores
que ocupam três e, às vezes, mais posições dentro de seu filme.
Shane Carruth não se limita apenas a “sentar na cadeira” do diretor, mas
também atua, escreve, edita, produz e compõe a trilha sonora de seus filmes. É uma
combinação perigosa e experimental e, muitas vezes, o diretor que se aventura a ser
tão onipresente em seus filmes tem resultados desagradáveis. Foi o caso de Ed Wood,
notório pelos seus filmes de qualidade mais que duvidosa e por muitos considerado o
pior diretor de todos os tempos.
Entende-se que, mesmo o profissional mostrando competência em tantos
campos diferentes de seu filme, ainda há pessoas para auxiliá-lo, sejam eles os
figurinistas, seus colegas atores, ou o próprio cinegrafista. O cinema realmente é uma
arte coletiva, sendo quase impossível e, provavelmente, não recomendável, fazer uma
obra audiovisual de modo totalmente “eremítico”, mas, mesmo assim, o caráter
experimental do cinema permanece como um traço forte, mesmo depois de todos
esses anos, a partir de seu início, com os irmãos Lumière e seu cinematógrafo, em
1895. Rabiger (2007) explica que para se tornar um bom diretor de cinema é preciso
ter uma identidade clara e forte em relação ao mundo ao seu redor e uma
compreensão nítida do que significa dramaturgia.
Um filme que tem seus aspectos-chave (direção, atuação, roteiro, conceito)
realizados pela mesma pessoa estabelece uma relação curiosa com a arte de uma
forma mais antiga. Como um pintor e seu pincel, dando vida a sua tela trivial, tornando-
a a mais improvável das belezas; apenas um homem e seu vislumbre de grandeza,
sua obra é sua essência e de mais ninguém, suas sensíveis marcas expostas. Um
diretor e sua câmera, capturando o comum de forma deslumbrante.
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O ser humano vive em um mundo comunicativo, trocando informações com as
pessoas, expondo ideias e opiniões para fazer-se entender e para se expressar. Mas,
as pinturas rupestres, gravadas em cavernas de tempos imemoráveis, provam que
sempre se sentiu a necessidade de ir além da simples troca de informações;
necessidade essa de passar uma sensação, de capturar um momento seu e
compartilhar com os outros. Necessidade de fazer arte, de ser compreendido. Logo,
afirma-se que expressar-se é vital nessa vida, e o audiovisual é uma das formas que
permite a expressão mais completa. Imagens, sons, música, roteiro, sentimento. Tudo
se une para formar a experiência única do filme.
O estudo da direção e seus diferentes estilos e marcas complementa a vida de
qualquer comunicador, pois é importante apreender diferentes métodos de diálogo,
ter a habilidade de desconstruir uma obra e entender o que se passa por trás de um
dos meios com o qual mais se convive no dia a dia, a partir da tão complexa arte do
cinema. Desse modo, pode-se ter um melhor aprendizado sobre como as marcas
pessoais, que se constroem consciente ou inconscientemente, são concebidas e o
que querem dizer sobre nós mesmos.
Um dos principais fatores que faz com que se volte de novo e de novo para o
cinema é a conexão com o filme. Acontece quando o público se identifica com o que
está assistindo e isso realmente muda a experiência de assisti-lo. O cinema não está
preso à realidade; nele, tudo é possível. Nesse sentido, Bernardet (2004) explica que
no cinema, fantasia ou não, a realidade se impõe com toda a força.
Mesmo quando se trata de algo que sabemos não ser verdade, como O Mágico de Oz, ou em um filme de ficção científica como 2001 ou Contatos Imediatos do Terceiro Grau, a imagem cinematográfica permite-nos assistir a essas fantasias como se fossem verdadeiras; ela confere realidade a essas fantasias (BERNARDET, 2004, p. 13).
O diretor que consegue se manifestar de forma tão competente é mesmerizante
por si só, mas há aqueles que se aprofundam mais ainda e se manifestam em mais
de uma área. E todo diretor, de propósito ou não, acaba por exprimir seu estilo na tela,
seja por meio de suas vivências, bagagem cultural e emocional, ideais ou mesmo de
seus gostos pessoais.
Depois de se elencar todos estes aspectos do cinema, pode ser traçada a
questão norteadora desse estudo: “de que forma Shane Carruth, que participa de
mais de uma área criativa de seus filmes, expressa sua marca pessoal em uma
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obra fílmica, quando se trata do cinema de caráter autoral? ” Para descobrir a
resposta e com os, já mencionados, objetivos definidos, o trabalho é organizado em
cinco capítulos. Após o Capítulo 1, que se constitui desta introdução, o Capítulo 2 trata
da história do cinema, desde antes de sua concepção até a maturidade da arte. O
Capítulo 2 também é composto pelo surgimento e pelas características do Cinema
Autoral. Já o Capítulo 3 introduz, de forma mais aprofundada, a figura dos diretores
de cinema, tanto os da antiguidade quanto os da contemporaneidade, juntamente com
suas marcas pessoais e processos criativos. Seletos diretores e seus estilos são
analisados mais “a fundo”. No Capítulo 4, é analisado o objeto de estudo dessa
monografia: Shane Carruth, que se destaca, principalmente, por ser independente e
participar de todas as áreas criativas de seus filmes. A análise será elaborada a partir
de suas duas obras e do que foi estudado nos capítulos anteriores. No Capítulo 5 são
feitas as considerações finais.
Roger Ebert (2004, p.11) disse melhor quando pronunciou que “(...) cinema é,
entre todas as artes, aquela que tem o maior poder de empatia, e bons filmes farão
de nós seres melhores”.
1.1 METODOLOGIA
O presente trabalho monográfico tem o viés qualitativo. O pesquisador utilizou-
se da pesquisa bibliográfica como procedimento metodológico e da Análise de
Conteúdo como método, com base em Laurence Bardin (2011).
1.1.1 Pesquisa qualitativa
Nesta monografia são analisadas as obras do diretor cinematográfico Shane
Carruth, e de que forma ele consegue expressar suas ideias e marcas pessoais nos
filmes, participando de todas as etapas de sua criação. Para isso, utiliza-se o viés
qualitativo. Para Marconi e Lakatos (2008), a metodologia qualitativa preocupa-se em
analisar e interpretar aspectos mais profundos, descrevendo a complexidade do
comportamento humano, por meio de detalhes sobre os hábitos, atitudes e tendências
de comportamento.
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(...) estas pesquisas partem do pressuposto de que as pessoas agem em função de suas crenças, percepções, sentimentos e valores e que seu comportamento tem sempre um sentido, um significado que não se dá a conhecer de modo imediato, precisando ser desvelado (ALVES-MAZZOTTI; GEWANDSNAJDER, 1999, p. 131).
Por conta das obras de Carruth serem produções com caráter subjetivo é
excluída a possibilidade de ser feita uma pesquisa quantitativa, porque esta tem um
caráter mais voltado ao uso de números e estatísticas.
1.1.2 Pesquisa bibliográfica
A pesquisa bibliográfica é o procedimento que acompanha a monografia, desde
seu início até o final.
É o planejamento global inicial de qualquer trabalho de pesquisa que vai desde a identificação, localização e obtenção da bibliografia pertinente sobre o assunto, até a apresentação de um texto sistematizado, onde é apresentada toda a literatura que o aluno examinou, de forma a evidenciar o entendimento do pensamento dos autores, acrescido de suas próprias ideias e opiniões (STUMPF, 2014, p. 51).
Gil (2008, p. 71) afirma que a pesquisa bibliográfica é desenvolvida tendo como
base materiais já elaborados, como livros e artigos científicos, por exemplo. “A
principal vantagem da pesquisa bibliográfica reside no fato de permitir ao investigador
a cobertura de uma gama de fenômenos muito mais ampla do que aquela que poderia
pesquisar diretamente”.
1.1.3 Análise de Conteúdo
O método de Análise de Conteúdo, com base em Laurence Bardin (2011),
conta com três fases: pré-análise (ou coleta do material), exploração do material e,
por fim, sua análise, inferências e interpretação. O principal foco de estudo deste
trabalho monográfico são obras cinematográficas. Por isso, é preciso compreender
não só as imagens, como também o roteiro, a atuação, a trilha sonora, a edição, a
direção com seus planos e enquadramentos, etc. Isso leva à primeira fase: pré-análise
ou coleta do material.
Bardin (2011, p. 124) evidencia que a pré-análise engloba três aspectos: “a
escolha dos documentos a serem submetidos à análise, a formulação das hipóteses
20
e dos objetivos e a elaboração de indicadores que fundamentem a interpretação final”.
A autora ainda explica que “antes da análise propriamente dita, o material reunido
deve ser preparado e é aconselhável que se prevejam reproduções em número
suficiente. Neste trabalho, são analisados os filmes Primer (2004) e Upstream Color
(2013), do diretor Shane Carruth.
A segunda fase é a exploração do material. De acordo com Bardin (2011), é
nesse momento que o pesquisador seleciona recortes do material que será analisado.
Ela continua: “esta fase, longa e fastidiosa, consiste essencialmente de operações de
codificação, desconto ou enumeração, em função de regras previamente formuladas”.
Por isso, todo o material recolhido será dividido em categorias. No caso desta
monografia, é feita a decupagem de cinco cenas de cada um dos dois filmes
escolhidos e serão descritos, tanto os enquadramentos e a direção de cena, a
inserção de trilha sonora e os processos de edição (que se intuem a partir da descrição
das cenas), quanto o diálogo dos personagens.
A terceira fase é a análise, propriamente dita. Para Bardin (2011), a Análise de
Conteúdo procura conhecer aquilo que está por trás das palavras sobre as quais se
debruça. Por se tratarem de obras fílmicas, a análise de imagens igualmente é de
suma importância, já que servem para estudar o produto do trabalho do diretor e sua
equipe.
A imagem só existe para ser vista, por um espectador historicamente definido (isto é, que dispõe de certos dispositivos de imagens), e até as imagens mais automáticas, as das câmeras de vigilância, por exemplo, são produzidas de maneira deliberada, calculada, para certos efeitos sociais. Pode-se pois perguntar a priori se, em tudo isso, a imagem tem alguma parte que lhe seja própria: será tudo, na imagem, produzido, pensado e recebido como momento de um ato – social, comunicacional, expressivo, artístico etc? (AUMONT, 2004, p. 197).
As conclusões do pesquisador foram feitas após a decupagem de todas as
cenas elencadas. Bardin (2011, p. 31) explica que “o analista, tendo à sua disposição
resultados significativos e fiéis, pode então propor inferências e adiantar
interpretações a propósito dos objetivos previstos – ou que digam respeito a
descobertas inesperadas”.
21
2. CINEMA
“Nossa originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é
que esta fome, sendo sentida, não é compreendida.”
Glauber Rocha
O presente capítulo tem como principal objetivo contextualizar o cinema. Assim,
quando os próximos capítulos forem apresentados pode-se ter um entendimento
prévio e a familiarização com os temas. Neste capítulo, também busca-se abarcar as
mudanças e as evoluções primárias que ocorreram na fórmula fílmica, tanto na parte
técnica, quanto na artística e na sua linguagem. A história do cinema é muito mais
difícil de se datar do que parece. Pensando nisso, este capítulo procura, ainda,
evidenciar os fundamentais pré-cinemas. Depois disso, mais especificamente, há a
contextualização do Cinema Autoral, seus conceitos-chave, principais autores e até
teorias que o contradizem. O estilo Cinema Autoral será de suma importância para o
restante deste trabalho monográfico, visto que lida com a individualidade e a
autoridade do diretor, contrapondo o cinema arte ao cinema indústria.
2.1 DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO E LINGUAGEM
De acordo com Comolli (apud MACHADO, 2002), o início do cinema é um
marco muito difícil de especificar. Não há consenso sobre um ponto de partida para
se dizer: aqui começa o cinema. Segundo o autor, outros especialistas como Sadoul
(1946), Deslandes (1966) e Mannoni (1995) apresentam alguns pontos de referência
da linha do tempo do cinema antes do cinema: os teatros de luz, encabeçados por
Giovanni dela Porta (século XVI), as projeções criptólogicas de Athanius Kircher
(século XVII), a lanterna mágica de Christiaan Huygens, Robert Hooke, Johannes
Zahn, Samuel Rhaenus, Petrus van Musschenbroek e Edme-Gilles Guyot (séculos
XVII e XVIII), o Panorama de Robert Barker (século XVIII), a fotografia por Nicéphore
Nièpce e Louis Daguerre (século XIX), os exercícios de decomposição do movimento
por Étienne-Jules Marey e Eadwerd Muybridge (século XIX), onde, usando 24
câmeras geraram-se 24 frames, evidenciando o galopar de um cavalo de corrida.
Finalmente, a junção de todas essas invenções e descobertas em um único aparelho
22
foi patenteada por Thomas Edison e William Dickson em 1891: o Cinetoscópio,
aparelho este que foi aperfeiçoado ainda mais por Louis e Auguste Lumière,
resultando no Cinematógrafo.
Mesmo com tudo isso em mente, Machado (2002) acredita que técnicas e
costumes de tempos ainda mais imemoráveis também têm correlação com o cinema.
No século X, o astrônomo e matemático árabe Al-Hazen havia estudado diversos
procedimentos que, hoje, percebe-se serem cinematográficos. Na antiguidade, o
próprio Platão descreveu até os mínimos detalhes de como funcionaria o mecanismo
(na época ainda imaginário) da câmara escura de projeção, enquanto Lucrécio já se
referia ao dispositivo de análise de movimento em fotogramas separados.
Machado (2002) continua em sua explicação, propondo que o cinema é ainda
mais ancestral do que se pode conceber, já que ainda na Pré-História o homem
primitivo já esboçava algum raciocínio cinematográfico. Ele conta que os estudiosos
que se dedicam a pesquisar a cultura da era pré-histórica não têm dúvidas ao concluir
que nossos antepassados iam às cavernas para fazer sessões de “cinema” e assistir
a elas. As pinturas rupestres encontradas nas paredes rochosas de Altamira, no
Brasil, e Lascaux e Font-de-Gaume, na França, foram gravadas em relevo na pedra e
seus sulcos pintados com cores variadas. Enquanto o observador se locomove pela
caverna e a luz de sua lanterna ilumina e escurece parte dos desenhos, cores se
sobressaem umas às outras, enquanto algumas se apagam e, conforme o observador
continua caminhando, as figuras parecem se movimentar em relação a ele.
O que estou tentando demonstrar é que os artistas do paleolítico tinham os instrumentos do pintor, mas os olhos e a mente do cineasta. Nas entranhas da terra, eles construíam imagens que parecem se mover, imagens que ‘cortavam’ para outras imagens ou dissolviam-se em outras imagens, ou ainda podiam desaparecer e reaparecer. Numa palavra, eles já faziam cinema underground (WACHTEL apud MACHADO, 2002, p.14).
Desde o nascimento das imagens em movimento, os filmes eram
predominantemente monocromáticos, o que não quer dizer preto e branco e sim, um
único tom de cor. Preto e branco era apenas a opção mais barata, já que outros
pigmentos custavam muito caro na época. Ana Stamato, Gabriela Staffa e Júlia Von
23
Zeidler (2013)3 descrevem que os primeiros filmes coloridos feitos por Méliès, Pathé
e Gaumont, eram pintados à mão por operários.
As pesquisadoras se utilizam de Dalpizzolo (2007) para evidenciar que,
conforme os filmes foram ficando maiores, o processo se provou trabalhoso demais.
Houve o método chamado tintagem, em que a película era tingida de cores uniformes,
cada uma representando algo em especifico: o azul simbolizava a noite e o verde era
usado para paisagens, por exemplo. Posteriormente, foram utilizados filtros, onde
cada cena era filmada diversas vezes com vários filtros, criando imagens bicolores.
Em 1902, Edward Turner produziu os primeiros filmes utilizando-se de cores
naturais ao invés de técnicas de coloração. Stamato, Staffa e Zeidler (2013) explicam
que, em 1930, criou-se a empresa Technicolor, que inventou uma película com três
cores, estas primárias, dando maior realismo aos filmes. O primeiro filme lançado pela
Technicolor foi Becky Sharp, de Rouben Mamoulian, em 1935. Houve o receio de que
as cores roubassem a atenção dos espectadores em relação ao enredo e aos atores
dos filmes. O público em geral, no início, também não acreditava que as cores seriam
mais um complemento narrativo para o cinema.
Na década de 1950, a porcentagem de filmes coloridos passou a 51% e nos
anos de 1960, filmes coloridos viraram o padrão. Por volta de 2010, os filmes coloridos
foram suplantados pela cinematografia de cor digital. “A cor começou a ser utilizada
tão intensamente que foram retratando os sentimentos e as personalidades dos
personagens pela cor, como em Moulin Rouge que utilizavam o vermelho para indicar
paixão” (BUNGARTEN apud STAMATO; STAFFA; ZEIDLER, 2013, s.p.).
Antonioni (apud MARTIN, 2003, p. 87), diz que “a cor é uma relação entre o
objeto e o estado psicológico do observador, no sentido em que ambos se
sugestionam reciprocamente”, ou seja, as cores podem nos influenciar tanto quanto
nós, os seres humanos, as influenciamos.
Juntamente com o movimento das cores no universo fílmico, na década de
1920 ocorreria uma mudança igualmente poderosa: o som. Entretanto, Demian Garcia
(2014)4 discorda que o primeiro uso de som tenha sido no famoso The Jazz Singer
3 STAMATO, Ana; STAFFA, Gabriela; ZEIDLER, Júlia Von. A Influência das Cores na Construção
Audiovisual. Disponível em: http://portalintercom.org.br/anais/sudeste2013/resumos/R38-1304-1.pdf –
Acessado em 28/08/2017
4 GARCIA, Demian. O som no cinema e a música concreta. Disponível em http://www.fap.pr.gov.br/arquivos/File/DemianGarcia_Artigo_Cientifica_V10.pdf – Acessado em 28/08/2017
24
(Alan Crosland, 1927) e defende que o cinema, mesmo antes do seu nascimento,
sempre foi sonoro. Os pré-cinemas dos teatros de sombras, lanternas mágicas, teatro
ótico e outras formas de apresentações eram acompanhados por sons e músicas.
Desde a primeira exibição dos irmãos Lumière, A chegada do trem na estação
(1895), ao som de um piano, a música fez parte das projeções do cinematógrafo e de
todos os outros dispositivos cinematográficos depois dele. Porém, no início, essa trilha
musical externa talvez tivesse motivos primários, como, por exemplo, abafar o som
dos velhos projetores, animar a plateia, bloquear os ruídos vindos das ruas, etc. O
estímulo de incrementar a narrativa era mínimo. Sendo assim, e ainda segundo Garcia
(2014), o cinema sempre foi sonoro, pois o que ocorreu em 1927 teria sido apenas a
sincronização.
Odil Miranda Ribeiro (2013)5 explica que o resultado do cinema sonoro foi
polarizante, criando um movimento tradicional do cinema mudo versus o movimento
do cinema falado. Esses movimentos, por sua vez, exacerbaram um embate entre o
cinema de vanguarda não narrativo, que tem na imagem autônoma a sua grande força
expressiva e de representação do mundo, e o cinema mais narrativo subordinado à
representação de uma “realidade”. Nas palavras de André Bazin (apud RIBEIRO,
2013, s.p.): “(...) distinguirei no cinema de 1920 a 1940 duas grandes tendências
opostas: os diretores que acreditam na imagem e os que acreditam na realidade”.
Com base nessas informações, é possível compreender um pouco o motivo pelo qual
o público, que não tinha conhecimento prévio do cinema sonoro, se sentia apreensivo.
Por isso, não é surpreendente que a chegada do “cinema falado” tenha encontrado, a partir dessas duas atitudes, duas respostas radicalmente diferentes. Para alguns, o cinema sonoro, depois falado, foi saudado como a realização de uma verdadeira “vocação” da linguagem cinematográfica – vocação que fora até então suspensa por falta de meios técnicos. No limite, chegou-se a considerar que o cinema começava de fato com o cinema falado... para os outros, ao contrário, o som era muitas vezes recebido como um verdadeiro instrumento de degenerescência do cinema, como uma incitação a justamente fazer do cinema uma cópia, um duplo do real, às custas do trabalho sobre a imagem ou sobre o gesto. Essa posição foi adotada – às vezes até de maneira excessivamente negativa – por um bom número de diretores, alguns dos quais demoram muito para aceitar a presença do som nos filmes (AUMONT, 2004, p. 47-48).
5 RIBEIRO, Odil Miranda. Imaginários sonoros em obras cinematográficas: um estudo sobre os filmes limite e sudoeste. Disponível em http://www.humanas.ufpr.br/portal/imaginariossonoros/files/2014/02/Odil-Imagin%C3%A1rios-2013.pdf – Acessado em 28/08/2017
25
Após The Jazz Singer se provar um sucesso, a Warner Bros Studios lançou
filme após filme com a sonoplastia sincronizada. Walt Disney “embarcou” no
movimento e lançou sua primeira animação sonora, estrelando Mickey Mouse
Steamboat Willie (1928). Após o embate dos filmes mudos versus os filmes falados
(chamados talkies), em meados de 1930 os filmes com som sincronizado viraram a
norma nos Estados Unidos e, em seguida, seriam a regra nos demais países e
continentes.
A partir daí, o visual se tornou audiovisual e, hoje, tanto o som quanto a trilha
sonora são tão importantes quanto o que se desenrola visualmente e, juntos, formam
uma experiência completa, podendo ditar desde o tom de uma cena ou mesmo do
filme como um todo.
No início, a duração da maioria dos filmes consistia de aproximados dez
minutos, pois era essa a capacidade do rolo de filme. Comédias normalmente
contavam com dois rolos, totalizando 20 minutos. O primeiro filme a ser considerado
um longa-metragem foi o australiano The Story of the Kelly Gang (Charles Tait, 1906)
com 60 minutos de duração. Historiadores especulam que foi a competitividade entre
o cinema e a televisão que resultou no aumento da duração dos filmes. A norma foi
de 90 minutos em 1931 para 120 minutos em 1960.
Machado (2002) explica que o que caracterizava o primeiro cinema era o fato
de tudo ser colocado de forma simultânea dentro do quadro. Por exemplo, o
desenrolar de uma cena acontecia ao mesmo tempo em um único quadro. Para os
que faziam cinema, essa simultaneidade dos dados começava a ficar problemática, à
medida que as histórias levadas à tela se tornavam cada vez mais complexas. Pode-
se concluir que havia diversos problemas com o uso dessa técnica. “Por exemplo,
como ter garantias de que os olhos do espectador não iriam se ‘distrair’, movendo-se
em direção a detalhes não necessariamente importantes para o desenvolvimento da
trama? ” (MACHADO, 2002, p. 100, grifo do autor).
Machado (2002) argumenta que essa preocupação - que não fazia sentido num
primeiro momento, mesmo porque o cinema ainda nem “contava” histórias – só
aparece por “culpa” do público, que era incapaz de perceber qualquer coerência na
“confusão” do quadro primitivo. Pode-se concluir que, ao invés da cena discorrer toda
de uma só vez, o melhor era mostrar uma coisa de cada vez, desfiando-se, como um
novelo. “Isso é exatamente o que chamamos a linearização do signo icônico e a
construção de uma sequência diegética pelo desmembramento dos elementos da
26
ação em fragmentos simples e unívocos, os planos” (MACHADO, 2002, p.102, grifo
do autor).
David Wark Griffith foi um dos pioneiros a introduzir a figura do diretor, um
narrador invisível que guia as histórias a seu modo. Machado (2002) salienta que foi
a partir do filme The Drunkard’s Reformation (1909) que Griffith começou a tomar
consciência da ligação lógica que existe entre os pontos de vista específicos de cada
uma de três “entidades”: a câmera, o personagem e o espectador. Logo em seguida,
o cineasta se deu conta do poder autônomo que tem a câmera de fixar livremente o
ângulo de tomada, a distância, a duração e a escala de planos mais conveniente para
implicar o espectador na trama que se desenrola na tela.
Assim, os afetos, os processos de identificação, os saberes e as ignorâncias
do espectador em relação à história e aos personagens passam a ser trabalhados
pelo narrador com vistas a resultados mais ou menos calculados por meio dos planos,
de modo a produzir uma presença dinâmica do espectador na cena. Jogando-se com
o que o espectador sabe ou não sabe, pode-se controlar seus afetos e o modo como
reagirão aos fatos encenados.
Um dos aspectos que mais evoluiu durante o percurso do cinema foi a edição,
a chamada montagem. Ela dita o ritmo do filme. Marcel Martin (2003) diz que um filme
“normal” contém cerca de 500 a 700 planos. Um filme como Antoine et Antoniette
(Becker, 1947), com seus 1250 planos constituí uma exceção bastante notável, ao
passo que I Vitelloni (Fellini, 1952) ou Le Vacances de Mr. Hulot (Tati, 1953),
característicos pela lentidão (intencional) de ritmo, não contam com mais de 400
planos. Ossessione (Visconti, 1943) com sua duração de duas horas e 15 minutos
conta com menos de 350 planos. Ou seja, o número de planos e a sua velocidade
dependem de decisões do diretor.
Martin (2003) ainda afirma que Méliès, preso pela fixidez da câmera, não
compreendeu a natureza da montagem nem suspeitou de suas possíveis
contribuições. The Great Train Robbery (Edwin Stanton Porter, 1903) pode ser
considerado o primeiro filme contendo o essencial do cinema: a montagem narrativa.
Mas foi Griffith quem deu o avanço decisivo à linguagem fílmica. Martin (2003) se
utiliza da observação do teórico de cinema francês Jean Miltry: “Se não foi ele o
inventor da montagem alternada nem do primeiro plano (...), pelo menos foi o primeiro
a saber organizá-los e fazer deles um meio de expressão” (Miltry apud MARTIN, 2003,
p. 135). Com isso nasceu a montagem expressiva.
27
Logo no final do cinema mudo e no começo dos talkies, em meados das
décadas de 1920 e 1930, Martin (2003) elucida que o frenesi da montagem expressiva
chegava ao delírio. Por exemplo, filmes como Vosstaniye rybakov (Piscator, 1932)
contêm dois mil planos, e alguns outros da época chegam a três mil. Estes filmes
fazem parte da grande época da montagem impressionista, onde o diretor se utilizava
de uma edição ultra-rápida; hoje, é um recurso praticamente extinto, pois se achava
estreitamente ligado ao cinema mudo. Tantos planos eram usados para compensar a
falta de falas ou de um narrador. Sendo assim, seria correto afirmar que a montagem
narrativa existiu por pura necessidade.
E foram os soviéticos que levaram a montagem ao seu apogeu, sob a forma de
um terceiro avanço decisivo – a montagem intelectual ou ideológica. Seu principal
praticante foi Eisenstein, que a aplica no cinema em Stachka (1925). Eisenstein (apud
MARTIN, 2003, p. 136) define esse tipo de montagem como sendo “(...) todo momento
agressivo – isto é, todo elemento teatral que faz o espectador sentir uma pressão
sensorial ou psicológica (...) de modo a produzir esta ou aquela emoção-choque”. A
partir daí, incontáveis vertentes de novos tipos e subtipos de montagem foram criados
e modificados e continuam a surgir até os dias de hoje.
Na maioria dos casos, uma montagem normal pode ser considerada caracteristicamente narrativa; já a montagem muito rápida ou muito lenta é antes de tudo expressiva, pois o ritmo da montagem desempenha então um papel diretamente psicológico (MARTIN, 2003, p. 134).
Ismail Xavier (2003) observa que as montagens produzem um efeito no
imaginário humano que, muitas vezes, acaba nos enganando e criando significados
que só existem na tela. O filme, como qualquer outra obra de arte, após ser lançado
ao mundo, se torna aberto a interpretações. Além, ainda, de caracterizar a leitura das
imagens como produção do ponto de vista do observador. Independentemente da
objetividade da imagem, o resultado da filmagem será a composição efetuada por
esse espectador e não o que diretamente a imagem permite mostrar quando isolada
dos demais elementos fílmicos. Ou seja, é uma questão de subjetividade e conteúdo,
também por parte do espectador.
As imagens têm muito poder na concepção do nosso imaginário. Pode-se
produzir, a partir da visão do cineasta, diversos significados para cada uma delas e
ainda, um novo significado quando observadas em uma sequência. Segundo Xavier
(2003), por isso o cinema nos remete ao engano, porque se deduz, perante um
28
movimento de câmera, situações não existentes criadas no imaginário, de acordo com
o que é mostrado, sem indagar a veracidade dos fatos. Quando se assiste a um filme
de ficção, a preocupação não é se faz ou não sentido a junção daqueles fragmentos
de imagens. O público deseja apenas ver e crer no que é mostrado. Esse é o propósito
do cinema, segundo Xavier (2003, p. 35), ou seja, “instaurar um mundo imaginário”.
Ainda assim, o cinema lida com a ficção, incluindo os filmes baseados em fatos
reais, pois sempre há atores e atrizes interpretando, um diretor para guiá-los e um
roteiro a ser seguido. Currie (in Ramos, 2005) discorre sobre como o cinema e o teatro
não são locais especiais onde se assiste àquilo que não existe. Tampouco oferecem
experiências alucinatórias durante as quais pensa-se ver o que não está lá; a maior
parte do tempo, sabe-se que se enxerga apenas imagens em uma tela ou atores sobre
um palco. Esse pensamento se contrapõe ao “instaurar um mundo imaginário” de
Xavier (2003).
Os romances não nos dão os mundos ficcionais que criam: eles os descrevem para nós, fazendo a mediação entre ficção e leitor. É por esse motivo que falamos de narração literária. Meu argumento foi o de que filmes e peças também operam dessa forma. São narrações disponibilizadas por outros meios, por meio de objetos e imagens apresentados de forma visual. E, da mesma maneira que os romances, solicitam nossa participação na imaginação ou como testemunhas silenciosas – nos eventos que descrevem (CURRIE in RAMOS, 2005, p. 188).
Aumont (2004, p. 83) reflete sobre a “ligação emocional e cognitiva do
espectador com a imagem”. Segundo ele, “a arte imita a natureza, e essa imitação
gera um sentimento prazeroso”. De acordo com o autor, o cinema nada mais é que o
espelho do mundo. E assim como as artes plásticas, também foi influenciado pela era
moderna, onde começou a olhar para si mesmo. Para Aumont (2004), se equivale à
literatura.
Ainda sobre linguagem, Martin (2003) apresenta três principais “pontos fracos”
do cinema. Ele argumenta que o cinema é fragilidade, por estar preso a um suporte
material extremamente delicado e suscetível aos estragos dos anos; por ser objeto de
registro legal somente há pouco tempo, e porque o direito moral dos seus criadores é
mal reconhecido; por ser considerado uma mercadoria, e porque o proprietário tem o
direito de destruir os filmes como bem lhe aprouver. Ele é futilidade, por ser a mais
jovem de todas as artes, nascida de uma técnica comum de reprodução mecânica da
realidade; por ser considerado pela imensa maioria do público uma simples diversão
29
que se frequenta sem cerimônia; porque a censura, os produtores, os distribuidores e
os exploradores podem cortar os filmes à vontade. Ele é facilidade, por apresentar-
se, geralmente, sob a capa do melodrama, do erotismo ou da violência; por consagrar,
numa grande parte de sua produção, o triunfo da estupidez. O autor conclui que essas
taras profundas prejudicam o desabrochar estético do cinema.
Convertido em linguagem graças a uma escrita própria que se encarna em cada realizador sob a forma de um estilo, o cinema tornou-se por isso mesmo um meio de comunicação, informação e propaganda, o que não contradiz, absolutamente, sua qualidade de arte (MARTIN, 2003 p. 16).
Conclui-se que o cinema está num processo constante de mudança e evolução
e em uma luta ininterrupta entre seu estado de obra de arte e as necessidades do
mercado como indústria cinematográfica. Martin (2003) diz que o cinema foi da
linguagem ao estilo e afirma que essa evolução da linguagem cinematográfica se
evidencia há algum tempo, como também coloca André Bazin:
“Fazer cinema hoje é contar uma história numa linguagem clara e perfeitamente transparente (...) Pela primeira vez desde as origens do cinema, os cineastas trabalham, no que diz respeito à técnica, nas condições normais do artista (...) O estilo do cineasta moderno cria-se a partir de meios de expressão perfeitamente dominados e tornados tão dóceis quanto o estilógrafo” (BAZIN apud MARTIN, 2003, p. 239).
Depois foi da fascinação à liberdade e após isso foi da imagem à realidade
onde o autor sintetiza que os diretores têm dois modos fundamentais de abordar o
mundo: um é mais cerebral e conceptual e o outro, prioritariamente sensorial e
intuitivo.
Enquanto os meios podem ser “dóceis”, também há a indústria com suas
exigências “cruéis” que influenciam os meios. Ou seja, os diretores nem sempre fazem
o que querem.
Entretanto, ainda segundo Martin (2003), uma “ameaça” paira sobre o universo
do cinema. O imperialismo hollywoodiano, onde é o dinheiro que comanda os filmes
e não mais seus próprios criadores. E os distribuidores-divulgadores têm a
preocupação prioritária de atender a pretensa demanda de um público cada vez mais
condicionado pela uniformização do “espetáculo” audiovisual que lhe é proposto.
O autor concorda que a situação é bastante crítica, mas também afirma que ela
não é desesperadora para o cinema: bastará sempre que haja alguns
30
experimentadores, alguns exploradores de caminhos novos, para que seu futuro
esteja assegurado.
2.2 O CINEMA AUTORAL: SURGIMENTO E CARACTERÍSTICAS
Sobre o Cinema Autoral ou Cinema de Autor, Gustavo Faria e Stefânia Pereira
(2015)6 elucidam que esse tipo de produção cinematográfica elege o diretor como
principal foco e força criativa na realização de um filme. O fundamento principal dessa
teoria é que o diretor, por ter uma visão global da produção (áudio e imagens do filme)
deve ser considerado mais o autor da obra do que o roteirista, pois são os
enquadramentos de câmera, a iluminação, a duração da cena e todos os outros
elementos decididos pelo diretor que definirão os significados expressos pelo filme,
colocando o roteiro abaixo dessa hierarquia.
Pode-se dizer que nesse estilo de fazer, o filme acaba se configurando no
diretor, fazendo possível uma liberdade maior de criação mesmo com baixo
orçamento. Poderia-se dizer que os cinemas underground, independente ou
alternativo são subtipos do Cinema Autoral e que têm uma mesma linha de
pensamento: produzir filmes, preservá-los e distribuí-los à margem dos esquemas
comerciais da indústria cinematográfica. Segundo Faria e Pereira (2015) filmes de
Cinema Autoral normalmente têm uma maior expressão artística, pois respeitam a
liberdade de seu realizador (no caso, o diretor), diferente de filmes relacionados a
grandes estúdios, que atendem primariamente pedidos de uma produção executiva
ou elementos que envolvem marketing.
Faria e Pereira (2015) contam que as teorias e práticas do Cinema Autoral
surgiram através do cinema francês no final dos anos 1940 e as duas pedras
fundamentais desse cinema foram os influentes críticos e teóricos André
Bazin e Alexandre Astruc. O movimento Nouvelle Vague7 foi uma das primeiras
manifestações desse novo paradigma do cinema, e contou com a ajuda da revista
francesa Cahiers du Cinemá, que foi muito representativa na difusão dessas ideias.
6 FARIA, Gustavo; PEREIRA, Stefânia. O cinema autoral? A história do cinema autoral e a perspectiva de Barthes e Foucault aplicado ao modelo cinematográfico. Disponível em http://www.ufrgs.br/alcar/encontros-nacionais-1/encontros-nacionais/10o-encontro-2015/gt-historia-da-midia-audiovisual-e-visual/o-cinema-autoral-a-historia-do-cinema-autoral-e-a-perspectiva-de-barthes-e-foucault-aplicado-ao-modelo-cinematografico – Acessado em 31/08/2017 7 Nova Onda (Tradução do pesquisador).
31
Nouvelle Vague foi uma nova estética de cinema criada na França, em 1958, como
reação contrária às superproduções hollywoodianas da época, encomendadas pelos
grandes estúdios. A contraproposta eram filmes mais pessoais e baratos. Ambos os
teóricos usaram a palavra auteur8 para distinguir cineastas cuja obra tem a força de
uma afirmação pessoal em termos de estilo e tema, envolvendo também, no caso,
diretores subordinados aos grandes estúdios. Faria e Pereira (2015) explicam que a
política dos autores da Nouvelle Vague consistia na ideia da subjetividade do diretor
sobre a obra, fazendo com que a “genialidade” pudesse advir exclusivamente do
diretor, que não mais poderia ser descrito como um mero funcionário de estúdio.
Diretores como Hitchcock, Ford, Hawks, Griffth serviam como uma das bases
da “política de autores”, já que deixavam suas marcas nos filmes, quase que uma
assinatura, como os cenários de Ford e as aparições de Hitchcock em seus filmes.
Diretores como Bergman, Fellini e Truffaut, cujos trabalhos eram tão distintos e
controlados do início ao fim, foram logo considerados autores.
Os autores também explicam que cineastas como Jean-Luc Godard e François
Truffaut deram importantes contribuições ao desenvolvimento da teoria do Cinema
Autoral. Entretanto, o Cinema Autoral foi muito além dos dois diretores e ultrapassou
a barreira do tempo.
No Brasil, pode-se dizer que Glauber Rocha, diretor/roteirista/editor de filmes
como Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e Terra em Transe (1967) foi um cineasta
brasileiro que pode ser considerado "autoral" e que é respeitado no mundo todo. Outro
diretor brasileiro, Fernando Meirelles, também tem traços do Cinema Autoral. Sabe-
se que Meirelles recusa filmes de grandes estúdios e, certa vez, recusou-se a dirigir
um filme da saga Crepúsculo e outro de James Bond9. Meirelles optou por um projeto
menor, mais ousado e que lhe desse mais liberdade de ação. Essa pode ser
considerada uma característica de diretores autorais. Daí seu envolvimento com O
Jardineiro Fiel (2005). Apesar de seu filme mais famoso, Cidade de Deus (2002), ter
tido uma grandiosa repercussão pelo mundo, a obra não abandonou um estilo de
Cinema Autoral, já que evidenciava as marcas pessoais do diretor, como por exemplo,
seu interesse no comportamento e na moralidade humana.
8 Autor (Tradução do pesquisador). 9 Disponível em https://www.jamesbondbrasil.com/2012/08/fernando-meirelles-revela-que-recusou-dirigir-um-filme-de-james-bond/ - Acessado em 31/08/2017
32
O Cinema Autoral, atualmente, pode ser considerado aquele que origina os
filmes mais voltados para expressões artísticas. Também pode ser o que origina o
filme que tem como maior foco o diretor, independente de indústria ou segmento, seja
um filme alternativo ou independente. Alguns festivais e mostras de cinema tem como
foco destacar filmes de Cinema Autoral. É o caso do Festival de Sundance (EUA); do
Festival de Berlim (Alemanha) e do Festival de Veneza (Itália).
Algumas produtoras/distribuidoras incentivam filmes autorais, como é o caso
da Imovision, que lançou o aclamado Azul é a Cor Mais Quente (Abdellatif Kechiche,
2013).
A evolução recente de um certo cinema de autor caracteriza-se pelo recurso sistemático ao plano-sequência, frequentemente ligado à grande duração do filme (...) essa evolução foi preparada pelas pesquisas de alguns mestres do underground, em particular Andy Warhol e Michael Snow, que já há algum tempo vêm realizando filmes extremamente longos (chegando a seis ou oito horas de duração, no caso de Warhol) e contendo pouquíssimos planos (as vezes um só), e sempre planos fixos (MARTIN, 2003 p. 133).
O que Martin (2003) expressa é que o plano-sequência não é algo comum e,
muitas vezes, é associado ao estilo e personalidade do diretor. Assim como foi
evidenciado anteriormente, a quantidade de planos influencia muito a percepção de
uma obra. Para contextualizar o conceito de autor, Faria e Pereira (2015) se utilizam
de Barthes em um sentido literário, mas que se aplica muito bem ao contexto fílmico.
O Autor, quando se acredita nele, é sempre concebido como o passado do seu próprio livro: o livro e o autor colocam-se a si próprios numa mesma linha, distribuída como um antes e um depois: supõe-se que o Autor alimenta o livro, quer dizer que existe antes dele, pensa, sofre, vive com ele; tem com ele a mesma relação de antecedência que um pai mantém com um filho (BARTHES apud FARIA; PEREIRA, 2015, s.p.).
Faria e Pereira (2015) apresentam o artigo que Astruc escreveu em março de
1948 para a revista L’écran Français, a publicação “Nascimento de uma nova
vanguarda: a caméra-stylo”. Nela, o cinema é tratado como uma nova linguagem tão
completa e complexa quanto a escrita (stylo significa caneta, na tradução para o
Português) ou a pintura, capaz de expressar com perfeição qualquer tipo de
pensamento de um determinado sujeito. Astruc (apud FARIA; PEREIRA, 2015) ainda
afirma que qualquer pessoa poderia ser autor ao pegar uma câmera 16mm e se filmar,
falando de qualquer coisa, tal qual escrevesse, e as pessoas iriam passar a alugar
33
esse conteúdo. A internet e seus “youtubers”, hoje, podem ser vistos quase como a
concretização de sua “profecia”.
Em seu artigo, Astruc (apud FARIA; PEREIRA, 2015, s.p.) traz um dos
principais ideais do Cinema Autoral: para ser autor, o roteirista deveria ser também o
diretor. Para ele, a distinção entre roteirista e diretor não faz sentido no cinema de
autor. “O autor escreve com a câmera como o escritor escreve com a caneta”. (apud
FARIA; PEREIRA, 2015, s.p.).
É impossível que o cinema não se desenvolva. Essa arte não pode viver com os olhos voltados para o passado, remoendo lembranças, nostalgias de uma época encerrada. Seu rosto já está voltado para o futuro e, tanto no cinema quanto fora dele, não há outra preocupação possível exceto o futuro (ASTRUC apud FARIA, PEREIRA, 2015, s.p.).
Criar e manter um estilo reconhecível se transformou na característica definitiva
e no objetivo para qualquer aspirante a Cinema Autoral pelo mundo afora. O
pesquisador Alfredo Manevy (apud FARIA; PEREIRA, 2015) aponta que Bazin pensa
em sentido contrário.
O mérito das grandes obras de Hollywood está justamente no modo de produção coletivo, não no talento pontual dos autores. Bazin acreditava que um grande diretor pode realizar filmes menores e bons filmes podem surgir de maus autores, em razão do ‘gênio do sistema’ que está por trás (MANEVY apud FARIA; PEREIRA, 2015, s.p.).
Faria e Pereira (2015) também trazem os pontos de vista do crítico americano
de cinema Andrew Sarris, que analisa a política de autores como uma classificação
do cinema americano em específico, visto que esse tipo de cinema fornece bases
mais sólidas para a criação dos diretores. Porém, Sarris não pensava o mesmo sobre
o cinema europeu, pois, segundo ele, não seria um mérito tão grande a realização de
um filme autoral, já que as condições favoreciam um cinema mais ligado à arte. O que
defende Sarris é que o verdadeiro autor é quem enfrenta essas barreiras e, ainda
assim, consegue impor seu estilo.
Os autores também se utilizam das ideias de Pauline Kael, uma crítica
americana. Kael tinha uma linha de pensamento totalmente contrária à de Sarris. Além
de refutar o crítico, relativizando os termos aplicados por ele, ela desmonta uma das
principais referências quando o assunto é autor: Orson Welles. Para ela, a genialidade
34
do filme Citizen Kane (1941) está longe de ser de inteira responsabilidade de Welles.
Segundo Kael, seria de Joseph Mankiewcz, roteirista da obra.
David Tregde (2013)10 se utiliza de Janet Staigner, ao afirmar que “a autoria
importa” porque expressa o problema de reconhecer o crédito por trás de uma obra.
Segundo o artigo, quando se abordam as partes específicas de um filme, é importante
saber por que tal análise é necessária, seja para entender de quem é o crédito quando
se trata de uma premiação ou então, descobrir por que a obra falhou.
Mas, ao dizer que o diretor é o autor de um filme se estariam excluindo editores,
compositores, atores, roteiristas, etc. e, nos tempos atuais, sabe-se que tanto o senso
comum quanto a indústria do cinema ditam que a autoria de um filme é claramente
compartilhada. Tanto que em festivais ou até no Oscar, os prêmios são divididos por
categorias. Faria e Pereira (2015) dão o exemplo da editora dos filmes de Martin
Scorsese, Thelma Schoonmaker, que recebeu três Oscars e ainda foi indicada outras
vezes, mas dessas premiações, Scorsese ganhou o prêmio de melhor diretor apenas
uma vez. Para os autores, as teorias citam a importância do diretor enquanto autor
por diferentes motivos. Compreende-se ser um filme uma obra coletiva, mas o diretor
assume a função principal por coordenar os setores, dando fluidez ao unir o melhor
de cada elemento.
Os autores ainda apresentam um aspecto muitas vezes negligenciado pelas
teorias: o espectador. Eles discorrem que poucas pessoas se importam se o filme a
que assistem é do diretor X ou Y. Por exemplo, não importaria o quão genial Clint
Eastwood pudesse ser, se o público não concordasse com ele ou não gostasse de
suas ideias. Se fosse assim, ele não seria o autor que é.
Basak Göksel Demiray (2014)11 traz o artigo de Jenefer M. Robinson, intitulado
Estilo e Personalidade no Trabalho Literário. Nele, Robinson condensa o que foi
apresentado até aqui, mas no contexto da literatura. Ela divide os estilos de autores
em duas categorias principais: geral e individual.
10 TREDGE, David. A case study on film authorship: exploring the theoretical and pratical sides in film production. Disponível em http://www.elon.edu/docs/e-web/academics/communications/research/vol4no2/01davidtregdeejfall13.pdf – Acessado em 01/09/2017 11 DEMIRAY,Basak Göksel. Authorship in cinema: author & reader. Disponível em https://cinej.pitt.edu/ojs/index.php/cinej/article/download/62/343 – Acessado em 01/09/2017
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If a work belongs to a general style category, then, although it may have formal and expressive qualities that are distinctive of that style, it may nevertheless remain “characterless”: no personality “informs” the work. Alternatively, there may be personality traits expressed but they do not seem to belong to any particular individual. The work has an “anonymous” air about it, because the artistic acts are performed in a way which is common to a large number of different writers […] the defining quality of an individual style is that it expresses a coherent set of attitudes, qualities of mind and so on which seem to belong the individual writer of the work: a work which has an individual style expresses the personality of the implied author of that work. (ROBINSON apud DEMIRAY, 2014, s.p.).12
Demiray (2014) acredita que, ao contrário de artes pessoais como a pintura ou
a literatura, cinema é uma arte feita por um time. Entretanto, o autor aponta o diretor
como um indivíduo que se coloca como uma autoridade ímpar no processo fílmico,
controlando todos os departamentos da produção e liderando-os, por meio de suas
escolhas e decisões. Demiray lança a si mesmo um questionamento: “e se não há
autor (diretor) no filme? Ele ainda terá um estilo? Qual estilo predominará: do diretor
de fotografia, do diretor de arte, do roteirista, do ator, do editor, do produtor ou do
público? ” (DEMIRAY, 2014, s.p.).
Ele procura responder, ressaltando que se um filme não tem um autor
especifico, acaba caindo num estilo eclético ou no “estilo geral” proposto por Jenefer
M. Robinson. E é nessa instância que cabe ao leitor, ao público enfim, revelar esse
“estilo” único de um autor – talvez com a necessidade de idealizá-lo ou de glorificá-lo
ou ainda, a partir da tendência de se identificar com ele.
Segundo Demiray (2014), Barthes e Foucault manifestavam a “morte do autor”
e o “nascimento do leitor”, porém, o pesquisador não concorda que, no cinema, o autor
precisa morrer para o leitor/espectador nascer, visto que é uma arte baseada em
exibição em lugares públicos. Cinema não é uma forma de arte para o autor produzir
e, depois, apreciá-la sozinho, em casa, sem mostrá-la a ninguém.
Sendo assim, o leitor/espectador é tão importante quanto o autor neste
processo, e o significado que o leitor/espectador deriva do “texto” entendido aí como
o filme, em si, é tão importante quanto o significado criado pelo autor. Além disso,
12 Se um trabalho pertence a uma categoria de estilo geral, então, mesmo tendo qualidades formais e expressivas que são distintas desse estilo, pode, mesmo assim, permanecer “sem carisma”: nenhuma personalidade “informa” a obra. Alternativamente, podem existir traços de personalidade expressos, mas eles não parecem pertencer a nenhum individuo em particular. O trabalho tem um ar “anônimo”, pois os atos artísticos são executados de uma forma que é comum para um grande número de escritores diferentes (...) a qualidade definitiva de um estilo individual é que expressa uma coleção de atitudes coerentes, qualidades mentais e assim por diante, que pareçam pertencer a um escritor individual da obra: um trabalho que contém um estilo individual expressa a personalidade do dito autor daquela obra (Tradução do pesquisador).
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esses dois significados não precisam ser os mesmos, visto que serão produzidos por
duas mentes diferentes. Às vezes, o leitor/espectador pode analisar aspectos
diferentes dos filmes, dos quais o autor nem está ciente, pelo menos conscientemente.
Entretanto, sem matar o autor e sua autoridade, o leitor/espectador deve levar o texto
em conta de maneira criteriosa, estudando os significados que percebeu nos filmes
do dito autor. Ele não deve ignorar o autor empírico e seus elementos, que distinguem
esse autor de todos os outros, mas, por outro lado, não pode se ater a eles cegamente.
Contudo, se um leitor/espectador não conseguir se manter longe da autoimagem do
autor, não conseguirá perceber um ponto de vista distinto. Ou seja, muitas vezes, para
fazer com que um filme pertença à categoria de Cinema Autoral, precisa-se da
participação intelectual/subjetiva do espectador.
Mas, além da teoria do autor, algumas outras teorias “concorrentes” foram
propostas. David Tregde (2013) comenta sobre a teoria do escritor. Geralmente
apresentando a supremacia do diretor na construção de um filme, a teoria do autor
ignora os escritores, os estúdios e toda a colaboração que está presente para
completar um longa-metragem. O pesquisador se utiliza do jornalista de arte, David
Kipen, que considera sua teoria do escritor digna do mesmo reconhecimento obtido
pela teoria do autor, justamente por considerar a parte que cria ao invés da parte que
conta. Kipen (apud TREDGE, 2013) afirma que o roteirista é a pessoa mais importante
de Hollywood.
Nos filmes mudos, o diretor era supremo, por não haver, à época, nenhum tipo
especifico de roteiro. O hábito de escrever um roteiro derivou-se, mais tarde, do teatro.
Tregde (2013) resume:
Simply put, one cannot build a skyscraper without a blueprint. So who writes the story? As basic as it may sound, the individual or group who put the words to paper creates the story. A writer is the architect of the movie, while the director and his crew are the foreman and construction workers. Buildings are credited to their architect, not their builder (TREDGE, 2013).13
A teoria do escritor pode ser refutada devido ao controle criativo. Uma vez que
o roteiro é vendido a um estúdio ou diretor, o escritor perde o direito do resultado final
13 Não se pode construir um arranha-céu sem as plantas. Então, quem é que escreve as histórias? Por mais básico que possa parecer, é o indivíduo ou o grupo, que põe as palavras no papel quem cria a história. O roteirista é o arquiteto do filme e o diretor e o resto da equipe são os construtores. E uma construção é sempre creditada ao arquiteto, seu criador, e não ao seu construtor (Tradução do pesquisador).
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gerado por sua ideia. Já os diretores estão livres para editar, mudar, adicionar ou
remover o que quiserem da história.
Tredge (2013) comenta que o crítico Richard Corliss admite que roteiristas
sofrem por não serem creditados por nenhum trabalho ou por serem creditados pelo
trabalho que não fizeram ou quando são múltiplos escritores creditados pelo mesmo
trabalho. Kipen (apud TREDGE, 2013, s.p.) diz que isso confunde a ideia da teoria do
autor, já que se torna muito difícil analisar escritores e autores quando não há
consistência sobre como suas contribuições são creditadas. Ele afirma que
“colaboração não se opõe à análise, apenas torna significativamente mais difícil de
“dar crédito quando o crédito é necessário”.
Mais uma teoria que difere da teoria do cinema autoral é a teoria colaborativa.
Desta vez, Tregde (2013) apresenta o escritor Paul Sellors, que afirma que a autoria
- seja para livros, filmes, ou outro tipo de arte – é uma questão de intenção. Ele
argumenta que todo o grupo por trás da comunicação da mídia em questão é o autor,
mas o conceito não é exclusivo a uma pessoa. Ao invés disso, pode ser aplicado ao
estúdio, ao diretor e ao escritor se todos desempenharam um papel na finalização da
obra.
Contudo, a teoria colaborativa enfrenta problemas semelhantes à teoria do
escritor. É mais fácil apontar membros da equipe com cargos altos como autores do
que explorar “a fundo”, nos créditos, para explicar a autoria coletiva. Embora esta seja
muito mais agradável para um estudo realista sobre filmes, uma autoria mais
especifica é necessária para discutir com eficácia um filme, como em análises críticas.
Tredge (2013) reconhece que as teorias do autor e do escritor apresentam formas
muito mais simples de debater autoria em esferas acadêmicas e públicas por causa
da facilidade de entendimento, não necessitando de uma pesquisa empírica.
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3. DIREÇÃO DE CINEMA
“O indivíduo é sempre considerado louco quando ele
descobre algo que os outros não conseguem compreender.”
Ed Wood
Neste capítulo será dada uma breve contextualização sobre o que é ser diretor
de cinema e qual o seu papel na criação das obras cinematográficas. Após, será
aprofundada a questão das marcas pessoais e dos processos criativos. Marcas, no
sentido do que é que o diretor consegue deixar em um filme para que o espectador
possa dizer: “este filme é claramente de Spike Jonze” ou “este filme é claramente de
Denis Villeneuve”. Para essas marcas existirem são necessários os abstratos
processos criativos. Cada diretor tem o seu, e um dos temas deste capítulo é explorar
como certos diretores autores se utilizam de suas bagagens, ideais e estilos para,
através de seus processos criativos, imprimir sua marca pessoal nos filmes. Primeiro,
serão levados em conta diretores de tempos passados e que fazem parte da fundação
do cinema hoje. Após, serão analisados seletos diretores bem-sucedidos do período
contemporâneo e que costumam trabalhar em mais de uma área do fazer fílmico.
Escrevendo o roteiro de seus próprios filmes, por exemplo. Tudo isso para melhor
entender como pensam, por que dirigem do jeito que dirigem e por que se destacam
tanto dentre outros diversos profissionais.
3.1 O DIRETOR
Dentro da linguagem fílmica existem inúmeros processos em ação e todos
devem ter equilíbrio entre si. Quem orienta e controla esses processos é o diretor.
O Diretor é a pessoa que manda no filme, junto com o produtor [...]. Ele é quem vai dar a palavra final nas decisões. O Diretor, além de ser o chefe, também tem a função de dirigir os atores, definir qual tipo de iluminação vai ser utilizada no filme, qual o cenário ele quer, quais as posições das câmeras, qual roupa os personagens irão usar, etc. O Diretor não precisa saber a fundo sobre todas as áreas do cinema, mas ele precisa ter, ao menos, conhecimentos básicos sobre elas (CASTILHO, 2013, p.24).
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Gilka Padilha de Vargas (2014)14 comenta sobre como o trabalho em equipe é
importante em uma produção cinematográfica e como o diretor deve colaborar com
diversos profissionais para alcançar o mesmo objetivo, que é o de concretizar o roteiro;
cada um deles, munido de seu arsenal de instrumentos de trabalho, de sua bagagem
cultural, de seu repertório visual. O artigo traz a seguinte fala da premiada diretora de
arte Patrizia Von Brandestein:
[...] convém nunca esquecer que um filme é um empreendimento coletivo. Diretores de arte e diretores de fotografia são como unha e carne. Nossos respectivos trabalhos são completamente interdependentes. As idéias do diretor de arte devem se encaixar com as do diretor de fotografia. Jamais me ocorreria utilizar uma cor em um ambiente sem ter consultado previamente o diretor de fotografia. Durante a filmagem é essencial estar em contato constante com o diretor e com o diretor de fotografia (BRANDESTEIN apud VARGAS, 2014).
Martin Scorsese (2004, p. 19) afirma que, apesar de admirar quase todos os
diretores de cinema, sempre teve maior interesse por aqueles que driblavam o sistema
para colocar sua visão na tela. “Às vezes, parecia que tudo conspirava para impedi-
los de alcançar a expressão pessoal. Pois havia regras, muitas regras, no jogo de
poder de Hollywood.”.
O autor continua, ao salientar que um poeta ou pintor pode ser solitário, mas o
diretor de cinema tem que ser, antes de tudo, membro de uma equipe. Sobretudo em
Hollywood. Para ele, a colaboração mais importante sempre foi entre diretor e
produtor. “Nos velhos tempos o diretor lidava com mandachuvas e grandes estúdios;
hoje ele enfrenta executivos e corporações gigantescas. Mas existe uma regra que
nunca mudou: cada decisão é modelada pela percepção que os homens do dinheiro
têm daquilo que o público quer” (SCORSESE, 2004, p. 20).
Para esses diretores sobreviverem e para que pudessem controlar o processo
criativo, Scorsese explica que cada cineasta teve que desenvolver sua própria
estratégia. Alguns, como Frank Capra, Cecil B. De Mille ou Alfred Hitchcock, cavaram
um nicho para si próprios, destacando-se num certo tipo de história e sendo
identificados com ele. Seus próprios nomes tornaram-se chamarizes de bilheteria.
14 VARGAS, Gika Padilha de. Direção de arte: a imagem cinematográfica e o personagem. Disponível em http://www.uel.br/eventos/encoi/anais/TRABALHOS/GT3/DIRECAO%20DE%20ARTE%20A%20IMAGEM%20CINEMATOGRAFICA.pdf – Acessado em 20/09/2017
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Alguns poucos até alcançaram o sonho de Capra e garantiram que seu nome fosse
escrito “acima do título”.
Eles tinham diretores maravilhosos na MGM, mas você não sabia quem eram. Nunca ouvia seus nomes. Mas ouvia falar de mim. Eu fazia meus próprios filmes e todo mundo sabia disso. Eu era o inimigo do grande estúdio. Acreditava na divisa “um homem, um filme”. Acreditava que um homem deveria fazer o filme e que o diretor deveria ser esse homem. Um homem deveria fazê-lo – não importa quem – mas o diretor era o mais indicado. Eu simplesmente não conseguia aceitar a arte como algo feito por um comitê. Só conseguia aceitar a arte como extensão de um indivíduo (CAPRA apud SCORSESE, 2004, p. 31).
Aumont (2004) comenta sobre a “luta” entre o diretor e o roteirista; o último, por
exemplo, tendo obtido no cinema francês, na década de 1930, o título de autor do
filme. Trata-se, no fundo, da célebre “querela” entre René Clair e Marcel Pagnol, um
querendo que o filme fosse criado na filmagem e montagem; o outro, que fosse apenas
a consequência de uma adaptação correta de seu roteiro. Luta entre diretor e produtor,
em contexto mais hollywoodiano, como testemunham, por exemplo, as memórias de
Frank Capra. Luta, às vezes, até entre diretor e fotógrafo, no período do cinema mudo,
durante o qual a imagem aparecia como veículo essencial do sentido de qualidade do
filme. Todos disputando a autoria.
Aumont (2004) discorre que para Jean-Claude Biette (2001), o termo neutro e
técnico é “diretor”, e deve apenas entrar nos créditos dos filmes com os outros
técnicos. Para Biette, o termo diretor significa técnico de filmagem, nada mais. Ele,
entretanto, dá a alternativa de mais três definições: autor, metteur en scène e cineasta.
Matteur en scène é aquele que se dispõe a exercer arte dentro da indústria fílmica. O
autor é aquele que pretende se igualar ao autor da literatura e, portanto, também deve
exercer o domínio sobre a história contada.
O cineasta é aquele que exprime um ponto de vista sobre o mundo e sobre o cinema e que, no próprio ato de fazer um filme, realiza essa dupla operação que consiste em cuidar, ao mesmo tempo, de manter a percepção particular de uma realidade (...) e de exprimi-la com base em uma concepção geral da fabricação de um filme” (BIETTE apud AUMONT, 2004, p. 147).
O cineasta Jean Cocteau tem uma reflexão similar quanto ao conceito de
cineasta de Biette e sobre a autoridade do diretor nas obras fílmicas.
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Não há dúvidas que o autor do filme é o diretor – aquele que produz as imagens -, contanto que seja também o autor do roteiro e, sobretudo, contanto que fosse mais geral e profundamente em tudo um sonâmbulo mergulhado em uma espécie de sono estafante (COCTEAU apud AUMONT 2004, p. 149).
Aumont (2004) conclui que o cineasta de Biette e o de Cocteau são menos
fazedores do que fomentadores de obra; permitem que esta advenha, e a ela se
dedicam por inteiro, mas, ao mesmo tempo, ela os ultrapassa e surpreende.
Para ser um bom diretor, Michael Rabiger (2007) elucida que é preciso ter uma
identidade clara e forte em relação ao mundo ao seu redor e uma compreensão nítida
do que significa dramaturgia. O autor se utiliza do exemplo do diretor Ingmar Bergman,
que avisa que o cinema é um esforço coletivo no qual a criatividade compartilhada
produz algo maior que a simples soma de suas partes. Rabiger (2007) acredita que o
artista, como individualista convicto, é uma invenção muito recente e não é a única,
nem a melhor, fonte de produção artística duradoura.
Do ponto de vista técnico, Rabiger (2007) aponta a importância da mise-en-
scène para distinguir cineastas. A mise-en-scène inclui: marcação de cena, câmera,
projeto da imagem, conteúdo dramático e sonoplastia. Ela tem de ser decidida para o
todo e, em um esboço abrangente, para o roteiro inteiro; depois, cada cena pode ser
planejada dentro das intenções da estrutura maior de forma prática e não racional,
pelo diretor.
O diretor deve conhecer as opções existentes e saber como discuti-las com o
diretor de fotografia, que para Rabiger (2007), é o colaborador mais importante
durante as filmagens. Também seria esse o momento para os diretores sucumbirem
à “famosa teimosia” dos diretores de fotografia. E esse seria mais um convite para
abdicar do papel do diretor.
O diretor Raoul Walsh (apud SCORSESE, 2004, p. 33) diz que “se você não
tem a história, você não tem nada”. Scorsese (2004) concorda que essa é uma regra
fundamental no cinema. Ele comenta que o cineasta norte-americano sempre se
interessou mais por criar ficção do que por revelar a realidade. Desde cedo, o gênero
documentário foi descartado ou relegado a uma condição marginal. Para Scorsese
(2004), o diretor de Hollywood é um homem do entretenimento: seu negócio é contar
histórias. Em consequência disso, ele está atrelado a convenções e estereótipos,
fórmulas e clichês, limitações que foram codificadas em gêneros específicos.
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O autor comenta que as plateias amavam filmes de gêneros específicos e os
velhos mestres nunca relutaram em abastecê-las. Dá o exemplo da apresentação de
John Ford, em uma reunião de diretores em 1950, que se apresentou do seguinte
modo: “Meu nome é John Ford. Eu faço faroestes” (FORD apud SCORSESE, 2004,
p. 33). O diretor tem filmes reverenciados como The Informer (1935) e The Grapes of
Wrath (1940), mas os faroestes eram aquilo de que mais se orgulhava - ou, pelo
menos, era nisso que queria que se acreditasse, ainda segundo Scorsese (2004). Os
gêneros cinematográficos serviram para organizar uma linha de produção: cada
estúdio fazia tantos faroestes, tantos musicais e assim por diante. O primeiro mestre
contador de histórias do Ocidente foi, como já comentado no capítulo anterior, Griffith.
O diretor tinha uma sensibilidade movida por uma tradição literária, advinda de
Dickens e Tolstói, Frank Norris e Walt Whitman.
Scorsese (2004), porém, concorda que os gêneros nunca foram rígidos e
cineastas criativos não cessavam de alargar suas fronteiras. Para ele, o cinema é uma
arte clássica em que a expressão pessoal sempre foi estimulada, e não inibida, pela
disciplina. O autor elucida que não basta ao diretor ser apenas um contador de
histórias. Para implementar sua visão, precisa ser um técnico e até mesmo um
ilusionista. Isso significa conhecer e dominar “a fundo” o processo técnico. O diretor
também esclarece que a indústria norte-americana do cinema nunca deixou de
assimilar novos avanços tecnológicos. De alguma maneira, ela progrediu mais
depressa e de modo mais decisivo que suas rivais estrangeiras.
Como disse o cineasta King Vidor (apud SCORSESE, 2004, p. 77), “o cinema
é o mais grandioso meio de expressão já inventado. Mas é uma ilusão mais poderosa
que qualquer outra e por isso deveria estar nas mãos dos mágicos e feiticeiros que
são capazes de lhe dar vida”.
Embora o sistema fílmico seja complexo e técnico, ele não é a prova de
brechas. Para Scorsese (2004), por essas brechas se infiltram contantemente
oportunidades e projetos que permitem a expressão de sensibilidades diferentes,
temas originais ou até mesmo concepções politicas radicais. “Quanto menos dinheiro,
mais liberdade” (SCORSESE, 2004, p. 113).
Talvez por isso mesmo o cinema independente seja tão sedutor a diretores,
tanto os amadores quanto os profissionais. O universo dos “filmes B” era mais propício
à experimentação e à inovação. Produções de baixo orçamento podem ter muito mais
controle criativo e ainda menos executivos vigiando suas obras. Os diretores podem
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introduzir toques incomuns, tramar enredos inesperados e, às vezes, transformar um
material rotineiro numa expressão muito mais pessoal. Para Scorsese (2004), em
certo sentido, os diretores se tornaram contrabandistas. Trapaceiam e, de algum
modo, escapam impunes.
O autor conclui que em Hollywood também há os diretores chamados de
iconoclastas: visionários, desbravadores e renegados, que desafiam abertamente o
sistema e expandem as barreiras da arte. Muitas vezes derrotados, por vezes fazendo
o sistema trabalhar a seu favor. “Hollywood sempre teve uma relação de amor e ódio
com aqueles que violam suas regras, exaltando-os num momento e queimando-os no
momento seguinte” (SCORSESE, 2004, p. 159). Para ele, a indústria do cinema
frequentemente confundiu entretenimento com escapismo. Mas, desde a época do
cinema mudo, alguns poucos cineastas desafiaram os ideais de “glamour” e diversão
sadia ao injetar uma dose de realidade em seus filmes, geralmente dentro da moldura
do melodrama.
3.2 OS PROCESSOS CRIATIVOS E AS MARCAS PESSOAIS
De acordo com Marty Neumeier (2009), marca não é apenas o logotipo ou a
propaganda da empresa, mas a percepção intuitiva de um cliente em relação a um
produto, serviço ou à própria empresa. No cinema, isso não é diferente. E o resultado
é aquele saber quase instintivo de que você está assistindo um filme feito por alguém
especifico, como Ingmar Bergman ou Andrei Tarkovski. Por que é possivel discernir
tal informação antes dos créditos aparecerem? Porque os diretores deixam marcas
pessoais em seus filmes. Atributos únicos de cada um, vestígios de sua
personalidade.
Para Catherine Kaputa (2008), as nossas muitas influências afetam nossas
marcas. Muitas podem ser explicadas e analisadas. Outras, não. Causa e efeito são
certos somente na ciência. A autora afirma que todas as experiências são dignas de
nota, visto que ajudam na complexidade e no estilo das marcas, mas é a sua inserção
que as torna boas ou más. Kaputa (2008) determina que a regra fundamental para
boas marcas é ser diferente das outras. Copiar é imitar, e quando se copia, não se
está sendo autêntico. Para a autora, é a autenticidade que define uma boa marca:
“quem você é e o que pode ser, não quem você quer ser ou quem os outros querem
44
que você seja. É preciso descobir o que há de diferente em você e quais são suas
habilidades. E capitalizar em cima delas” (KAPUTA, 2008, p. 43).
É importante para um cineasta ser reconhecido por suas marcas pessoais
justamente para despertar no público o desejo de acompanhar seu trabalho. Roberto
Álvarez del Blanco (2010) expõe que o ativo mais importante de uma pessoa é o seu
nome. Uma boa reputação traz bons relacionamentos. Um nome sem brilho cria
dificuldades e frustração. Ainda mais grave, e muito complicado, é desfazer uma
reputação desfavorável. O autor explana que cada pessoa é uma marca, representada
por seu nome e sua personalidade. A marca pessoal se torna, portanto, um acúmulo
de tudo que a pessoa já fez, está fazendo ou irá realizar. Como Miguel de Cervantes
escreveu em Dom Quixote: “Mais vale um bom nome do que muitas riquezas”
(CERVANTES apud BLANCO, 2010, p. 11).
A personalidade e as marcas de um diretor podem transparecer na tela de
inúmeras formas, como por meio dos enquadramentos ou de uma sonoplastia distinta,
porém, um dos aspectos mais importantes que podem ditar o tom e a personalidade
de um filme é sua montagem, isto é, sua edição. Um dos grandes visionários dessa
área foi o já citado Griffith.
Meio século depois, Stanley Kubrick talvez estivesse pensando em Griffith quando observou que o verdadeiramente original na arte do cinema, aquilo que a distingue de todas as outras artes, é o processo de montagem ou edição (SCORSESE, 2004, p.78).
A edição dita o ritmo do filme, a ordem dos acontecimentos e é onde o cineasta
mais tem liberdade para se expressar. Eisenstein (2002) afirma que a cinematografia
é, em primeiro lugar e antes de tudo, montagem. O autor também elucida que a
montagem é o mais poderoso meio de composição para se contar uma história. “A
montagem nada mais era do que a marca, mais ou menos perfeita, da marcha real de
uma percepção de um acontecimento reconstituído através do prisma de uma
consciência e de uma sensibilidade de artista” (EISENSTEIN, 2002, p. 11).
Tânia Siqueira Montoro e Michael Peixoto (2009)15 tratam da figura do diretor
como um verdadeiro artista e como cada um pode deixar a própria marca pessoal em
suas obras. Os autores explicam que o exemplo mais difundido pelos críticos
15 MONTORO, Tânia Siqueira; PEIXOTO, Michael. O diretor enquanto artista. Disponível em http://www.cult.ufba.br/enecult2009/19375.pdf – Acessado em 20/09/2017
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franceses do diretor que conseguiu driblar o sistema “clássico” do fazer fílmico
hollywoodiano foi Orson Welles, que, desde o seu primeiro filme, soube imprimir a sua
marca pessoal. Aliás, para muitos, Citizen Kane representa o marco inaugural da
passagem do “cinema clássico” para o moderno.
Depois do filme de Welles, continuará a fabricação de produtos normatizados, conforme as regras mais ou menos lógicas, mais ou menos universais, elaboradas por Hollywood, mas se saberá que existe outra possibilidade de cinema, que não apenas autoriza a virtuosidade narrativa – misturar os tempos e as vozes -, de como permite reivindicar a responsabilidade plena e inteira do dizer e do dito, em suma, de comportar-se como autor de filmes, seguindo o modelo então confesso do romancista. André Bazin, sempre perceptivo, não se enganou quanto a isso, ao declarar que, com e depois desse filme, 'o cinema é, enfim, igual à literatura'. O igual: não o vassalo, não o equivalente, não uma vaga lembrança, e não, também não, o concorrente. '“Fazer cinema’ é igual a ‘fazer literatura (AUMONT, 2004 p. 32, grifos do autor).
Marcelo Moreira Santos (2015)16 salienta que o fato de o cineasta tomar as
decisões cruciais quanto à realização do filme não tira a coautoria dos outros agentes
nem o caráter poético de suas funções no que tange à confecção do filme. Seguindo
essa perspectiva, o que se constata é que “essas interações que compõem e moldam
a realização de um filme configuram-se como sistêmicas, isto é, há um conjunto de
agentes semióticos com funções específicas que interagem e se integram na
realização da obra” (MORIN apud SANTOS, 2015, s.p.).
O diretor de cinema concebe suas marcas pessoais por meio de processos
criativos. Para Lígia Dabul e Bianca Pires (2008)17 esses processos podem ser vistos
como rituais únicos de cada artista. Elas evidenciam que o processo criativo se deve
a diferentes práticas e formações das experiências vividas como excepcionais durante
a concepção de suas obras, incluindo aqueles estados especiais de inspiração.
Há registros das mais diferentes formas de os artistas alcançarem, inclusive
deliberadamente, essas situações especiais que se identificam com a criação artística.
Por exemplo, o ato de sentar-se em uma poltrona e deixar que cenas de seu filme
“passem” pela sua cabeça; colocar a tela em um cavalete e constatar que
imediatamente uma pintura “aparece”; situar-se em posição de “detetive” para
16 SANTOS, Marcelo Moreira. A direção de arte no cinema: uma abordagem sistêmica sobre seu processo de criação. Disponível em https://periodicos.ufsm.br/revislav/article/view/23914 – Acessado em 20/09/2017 17 DABUL, Lígia; PIRES, Bianca. Set e “ação”: notas sobre processos criativos no cinema. Disponível em http://www.poiesis.uff.br/PDF/poiesis12/Poiesis_12_setacao.pdf – Acessado em 21/09/2017
46
“descobrir” a história que se está criando, são procedimentos que, apesar de
deflagrados muitas vezes em circunstâncias de solidão, o que na criação em literatura
parece consistir na regra, não devem ser necessariamente analisados como
experiências estritamente individuais. Para explicar, as autoras citam o precoce
criativo Fellini:
Gosto de estar sozinho comigo mesmo, refletir. Contudo, só sei estar só no meio das pessoas. Só penso bem se estou com pressa, pressionado, em meio a dificuldades, com assuntos por tratar, problemas a resolver, feras a domesticar. Isto me esquenta, me põe em forma. Nem sempre fui assim. Antes de começar a dirigir, achava assustadora a idéia de ter que criar no meio da confusão. (...) E, agora, cheguei a tal ponto que não consigo produzir se não houver à minha volta uma grande confusão (FELLINI apud DABUL; PIRES, 2008, s.p.).
Dabul e Pires (2008) também dão o exemplo de Akira Kurosawa, que formula
de maneira singular a incidência de fluxos criativos e de inesperados afloramentos de
personagens. Para ele, o momento da filmagem é único e por mais que escrevesse
roteiros e esperasse determinadas atuações e desenvolvimentos definidos dos
personagens, a própria interpretação dos atores acabava por transformá-las.
Ainda segundo as autoras, Kurosawa afirma que é dentro do set de filmagem
que os personagens ganham vida, e que nada seria mais prejudicial a um filme que o
diretor tentar cortar e conter ações bem-sucedidas de atores apenas para se manter
fiel a um roteiro: “personagens têm existência própria num filme. O diretor não é livre
para lidar com eles. Se insiste em manter sua autoridade perde a vitalidade”
(KUROSAWA apud DABUL; PIRES, 2008, s.p.).
Portanto processos criativos estão relacionados aos momentos de inspiração.
Fayga Ostrower (2010) situa o sentimento de inspiração como um momento decisivo
e criativo, o desfecho do fazer. Mas, a autora também discorre que a inspiração nasce
do trabalho, das tentativas que a precederam. Ela afirma que pensar na inspiração
como um instante aleatório que venha a desencadear um processo criativo é uma
noção romântica. Ostrower (2010) reafirma que não há como a inspiração ocorrer
desvinculada de uma elaboração já em curso, de um engajamento constante e total,
embora, talvez, não consciente.
47
Ocorrem momentos em nossa vida, momentos conscientes, pré-conscientes, inconscientes, de grande intensidade emocional. Eles podem induzir em nós novas forças, estimular todo nosso ser, trazer novas ideias, reorientar-nos na vida. Podem oferecer propostas de trabalho, hipóteses de ordenação. Mas igual a outras, também essas ideias, propostas, hipóteses teriam que passar por um processo de elaboração subsequente a fim de evidenciarem sua validez. Talvez tenham sido ideias inspiradas, e talvez não (OSTROWER, 2010, p. 73).
Sobre a criatividade, Ostrower (2010) a define como um potencial inerente ao
homem, e a realização desse potencial, uma de suas necessidades.
A natureza criativa do homem se elabora no contexto cultural. Todo indivíduo se desenvolve em uma realidade social, em cujas necessidades e valorações culturais se moldam os próprios valores da vida (...) outra ideia é a de que criar corresponde a um formar, um dar forma a alguma coisa. Sejam quais forem os modos e os meios, ao se criar algo, sempre se o ordena e se o configura (OSTROWER, 2010, p. 5).
Pode-se concluir que é através dos processos criativos que cada cineasta
imprime sua diferenciada marca pessoal. Todo artista trabalha de uma forma diferente
e age por diferentes meios para apresentar uma narrativa. Cada um, com seus
próprios processos, formados por suas crenças, conhecimento, ideas, personalidade
e bagagem de vida. Orson Welles costumava fazer a sugestão de que o individuo
precisa criar seu estilo próprio, um estilo único e de fácil identificação para os outros.
3.2.1 A velha guarda
As primeiras décadas do cinema pareciam ter a questão da autoria muito
proeminente. Artistas dos primeiros filmes mudos e primeiros curtas cinematográficos
como Méliès precisavam participar de diversas áreas da criação fílmica para que sua
obra ficasse pronta. Porém, é provável que esse controle criativo, juntamente com as
marcas fílmicas, se devesse principalmente à falta de opção e não à escolha do
diretor. Por carência de pessoal especializado, mão-de-obra e tecnologia, os
cineastas daquela era inicial precisavam improvisar e, querendo ou não, passavam a
produzir filmes autorais com suas marcas pessoais muito presentes. Tudo isso, em
decorrência de participarem de modo direto em diversas áreas da produção.
Um importante autor surge nessa época: Charlie Chaplin, que
surpreendentemente produzia, dirigia, escrevia, atuava, editava e compunha a própria
48
trilha sonora de seus filmes. Carl Davis (2011)18 alega que o estímulo de Chaplin era
como o de qualquer palhaço: a criação de um personagem. Com extenso controle
sobre suas obras, Chaplin imprimia seu estilo em todos os projetos. Davis (2011)
evidencia que Chaplin rebateu a vinda do cinema sonoro, mantendo seu personagem,
“Carlito”, mudo; mas, criando trilhas sonoras magníficas. Por não haver som nos
primeiros filmes, o cineasta se forçava, cada vez mais, a se concentrar no estilo do
filme para compensar e acabou criando um dos mais marcantes.
Stephen M. Weissman (2008) indaga de quem é a “psique” (do grego antigo,
originalmente "respiração", "sopro", era, entre os gregos, um conceito que definia o
self - si mesmo - abrangendo as ideias modernas de alma, ego, mente e espírito19)
que um filme expressa: do diretor? Do ator? Do escritor? Do editor? Do produtor?
Como cada um desses indivíduos é um profissional treinado, quando críticos de
cinema tentam abordar a origem criativa de dada obra, acabam pesando a
participação de cada profissional. Por isso, Weissman (2008) acredita que a grande
maioria dos filmes não é apta a uma profunda análise sistemática da “psique” dos
indivíduos envolvidos.
Todo o trabalho de Chaplin pode ser analisado do ponto de vista psicanalítico,
pois não há problema de atribuição. Seus filmes eram exclusivamente sua própria
18 DAVIS, Carl. Charlie Chaplin’s film music. Disponível em: https://www.theguardian.com/culture/2011/jan/01/carl-davis-charlie-chaplin-soundtracks – Acessado em 21/09/2017 19 Disponível em http://www.theoi.com/Ouranios/Psykhe.html - Acessado em 21/09/2017
Figura 1: Sir. Charles Spencer Chaplin
Fonte: lefis.ufsc.br/files
49
expressão. Weissman (2008) conta que o filho de Chaplin, Charlie Chaplin Jr.
confessou que, se o pai tivesse o tempo necessário, teria produzido também as
vestimentas dos personagens. Weissman (2008) conclui que Chaplin era um
“workaholic” perfeccionista. O total controle sobre todos os aspectos de suas obras é
uma “lenda” em Hollywood.
In order to analyze the creative origins of a film as if it were the expression of one person’s psyche, academic film critics came up with the auteur theory. That theory makes the theoretical assumption--for rhetorical purposes--that films can be legitimately discussed as the creative expression of the director’s personal psychology. What co-contributors like Marlon Brando, Tennessee Williams and Bud Schulberg might have felt about Elia Kazan’s being credited as the auteur of films like Streetcar Named Desire or On The Waterfront is not known—and is certainly questionable (WEISSMAN, 2008, p. 222).20
Quando o público e os críticos passaram a ver o cinema como uma mídia mais
definida, estúdios começaram a gerar mais dinheiro e, sendo assim, os diretores
tiverem acesso à uma gama de possibilidades aumentada e à mais liberdade criativa.
Peter Wollen (1972) exemplifica a partir de Orson Welles, tomando-o como um
cineasta-autor que possuía, além de marcas pessoais evidentes em todas as suas
obras, também um controle criativo abrangente sobre elas, sendo que escreveu e
dirigiu todos os seus filmes e produziu mais da metade.
20 Para analisar as origens criativas de um filme como se ele fosse a expressão da psique de uma pessoa, críticos acadêmicos e filmes inventaram a teoria do autor. Essa teoria assume teoricamente – para propósitos retóricos – que filmes podem ser legitimamente discutidos como se fossem a expressão criativa, pessoal e psicológica do diretor. O que contribuidores como Marlon Brando, Tennessee Williams e Bud Schulberg podem ter sentido quanto a Elia Kazan ser creditada como a autora de filmes como Um Bonde Chamado Desejo ou Sindicato de Ladrões não é sabido – e é certamente questionável (Tradução do pesquisador).
50
Wollen (1972) evidencia que uma das principais marcas de Welles era o uso
do foco profundo, uma técnica que requeria iluminação mais poderosa do que a luz
natural podia providenciar. Outra técnica era a de evidenciar o valor ou as emoções
do personagem através de enquadramentos e ângulos de câmeras antes não usados.
Por exemplo, quando um personagem se sentia empoderado e fazia um discurso
importante, a câmera o fitava de baixo, salientando a magnitude de sua fala. Wollen
(1972) afirma que Welles era visto, na época, como um inovador, um perigoso
experimentalista.
Porém, ele comenta que, hoje, essas afirmativas parecem absurdas. “Houve
uma total mudança de foco que tornou a história do cinema muito diferente. Eisenstein
ou Vertov parecem contemporâneos ao invés de antigos. Welles ou Jennings parecem
extremamente velhos e ultrapassados” (WOLLEN, 1972, p. 156). O autor propõe duas
respostas para os motivos dessa inversão: uma foi o surgimento do cinema
“underground” (um cinema que se encontra fora do padrão, seja ele de estilo, gênero
ou financiamento) e a outra foi Godard, com seu cinema Nouvelle Vague.
Akira Kurosawa foi outro diretor a mudar para sempre o universo fílmico. Ingmar
Bergman teria chamado seu próprio filme, The Virgin Spring (1960), de uma “imitação
barata de Kurosawa” (BERGMAN apud GADO, 1986, p. 241). A lista de fãs
hollywoodianos de Kurosawa conta com nomes como Altman, Coppola, Spielberg,
Figura 2: George Orson Welles
Fonte: http://www.bfi.org.uk/sites/bfi.org.uk/files
51
Lucas, Scorsese, entre outros. O diretor pode ser considerado um visionário,
improvisando técnicas, como filmar cenas com as lentes viradas para o sol, um feito
nunca antes realizado. Federico Fellini, diz que “Akira Kurosawa é o maior exemplo
vivo do que um autor de cinema deveria ser” (FELLINI apud CARDULLO, 2006, p. 49).
A dissertação “Akira Kurosawa An Auteur” (2015)21 aponta que um dos
principais aspectos da marca pessoal de Kurosawa era o fato de que sua “voz”
começava na sala dos roteiros e terminava na sala de edição. O diretor escrevia,
produzia, dirigia e editava seus próprios filmes. A dissertação ressalta o fato de que
um diretor passa a maior parte da vida em um único filme. Para Kurosawa, esse filme
poderia ser o “de época”, gênero em que ele trabalhou quase todas as vezes. O Japão
medieval era perfeito para Kurosawa, pois tinha valor sentimental. Entre outros
motivos, um era o de que seu pai descendia de samurais.
21 Disponível em https://www.ukessays.com/essays/film-studies/akira-kurosawa-an-auteur-film-studies-essay.php – Acessado em 21/08/2017
Figura 3: Akira Kurosawa
Fonte: imdb.com
52
O texto afirma que Kurosawa era um artista, antes de tudo, visual. Desde
pequeno, ele queria ser um pintor ou desenhista e isso fica óbvio ao se prestar atenção
a seus enquadramentos. Todos contêm a sensibilidade de um artista. Além disso, o
diretor procurou exercer total controle sobre tudo o que se passava na tela: da
composição à escolha da câmera. Ele queria pintar frame por frame. Ainda segundo
a dissertação, Kurosawa teria dito: “eu explico a imagem desejada em detalhes, não
apenas para o cinegrafista, mas também para todos os membros da equipe e os faço
fazer o máximo para produzir à melhor semelhança possível aquilo que imaginei”.
Porém, uma das maiores características do diretor era mesmo a sua forma de editar.
Todos que trabalhavam com ele apontavam a edição como a parte mais importante
de seu trabalho. Ele próprio, frequentemente teria dito que costumava fazer um filme
apenas pelo prazer de editá-lo depois.
Do “outro lado da moeda” há Ed Wood, um diretor famoso, não por ter sido
revolucionário ou por ser bom naquilo que fazia, e sim, por ser considerado um dos
piores diretores de todos os tempos. A reportagem “The Cinema of Ed Wood” (2011)22
contempla o fato do diretor ter extrapolado a teoria do cinema autoral até seu limite.
Mesmo considerados ruins, seus filmes são “distintamente dele”. Wood, apesar de
sem talento, escrevia seus filmes, os produzia e os dirigia, realizando-os onde e
quando podia, juntando o dinheiro necessário, alugando pequenos estúdios de som
para arquitetar seus mundos fantasiosos e trabalhando com talentos de Hollywood
cujos dias de glória já haviam há muito passado.
22 Disponível em http://www.forcesofgeek.com/2011/02/cinema-of-ed-wood.html – Acessado em 21/08/2017
53
Alguns de seus roteiros eram estranhamente pessoais, como o caso de Glen
or Glenda (1953), cuja história aborda o caso de um homem que gosta de se vestir de
mulher (coisa que o diretor fazia em segredo). Porém, os filmes de Wood podem ter,
sobre o espectador, um efeito peculiar: são prazerosos de assistir, apesar de mal
feitos. São filmes divertidos e o espectador pode rir com eles.
Trabalhar em diversas áreas da produção requer um grandioso nível de
profissionalismo, mas pode resultar em um filme com personalidade, seja boa ou ruim.
A reportagem conclui, evidenciando que hoje, quase 40 anos depois de sua morte, fãs
do cinema conhecem o nome Ed Wood e ainda estão falando sobre seu trabalho. É
difícil pensar em um legado melhor do que esse. Tim Burton, fã do trabalho de Ed
Wood e diretor do filme baseado em sua vida teve o seguinte a dizer sobre suas obras:
Figura 4: Edward Davis Wood Jr.
Fonte: https://uinterview.com
54
The films are unusual; I've never seen anything like them, the kind of bad poetry and redundancy; saying in, like, five sentences what it would take most normal people one, which I can also relate to. Yet still there is a sincerity to them that is very unusual, and I always found that somewhat touching; it gives them a surreal, weirdly heartfelt feeling (BURTON, 1994).23
A autoria e a personalidade andam de “mãos dadas” com o controle e a visão
criativa da obra. Para Joshua Greally (2013)24 um dos grandes autores foi Stanley
Kubrick. O autor escreve que Kubrick era um artista com criatividade de sobra. E que,
embora se inspirasse em livros com frequência, mudava o material de origem (o que,
muitas vezes, irritava os autores originais) para ficar de acordo com os seus ideais.
Ele também mantinha um seleto grupo de profissionais em muitos dos seus projetos.
James Liggat, seu diretor de elenco; sua filha, Vivian Kubrick, como atriz e Margaret
Adams, como gerente de produção. Greally (2013) diz que Kubrick tinha um estilo
muito reconhecível e distinto. Além de seu perfeccionismo, que beirava a obsessão,
ele gostava do uso de cores frias para causar o sentimento de isolamento, além de
tomadas longas, que perduravam por mais tempo do que outros filmes ousariam para
criar um sentimento de desconforo.
23 Os filmes são incomuns; eu nunca vi nada como eles, é o tipo de poesia ruim e redundante; dizendo em tipo, cinco frases o que uma pessoa normal diria em uma, com o que eu também consigo me identificar. E ainda há uma honestidade neles que é bem incomum, e que eu sempre achei de algum modo tocante; dá a eles um sentimento surreal, estranho e sincero (Tradução do pesquisador) Entrevista concedida a Gavin Smith em 1994 Disponível em https://nofilmschool.com/2013/08/tim-burton-explores-mediocrity-of-ed-wood - Acessado em 21/08/2017 24 GREALLY, Joshua. Auteur theory – Stanley Kubrick. Disponível em: https://prezi.com/pwicc1aicv3t/auteur-theory-stanley-kubrick/ – Acessado em 22/09/2017
55
Esses elementos, juntamente com muitos outros aspectos, alimentavam um
dos temas principais do diretor: o medo. “O medo da raça humana e para onde ela se
dirige, onde ela se encontra e como chegou a este ponto” (GREALLY, 2013). Kubrick,
como outros diretores já citados, gostava de ter “as rédeas” de seus projetos nas
próprias mãos e era bem comum que, além de dirigir seus filmes, também os
escrevesse e os produzisse. Greally (2013) concede que muitos filmes de Kubrick
podem ser relacionados a gêneros específicos, mas como um verdadeiro autor, ele
conseguiu trabalhar dentro do confinamento de um gênero e fazê-lo seu.
3.3 DIREÇÃO COM PERSONALIDADE CONTEMPORÂNEA
Hoje em dia, parece um pouco mais raro para diretores participarem tanto das
produções a ponto de atuarem, editarem, dirigirem e escreverem. Uma possível
explicação seria a de que os estúdios querem ter o maior controle possível de um
filme ao invés do diretor. Mesmo assim, há alguns que se destacam por escreverem
e dirigirem ou produzirem e dirigirem. Todos que serão analisados em seguida se
destacam por apresentarem processos criativos diferenciados e marcas pessoais que
Figura 5: Stanley Kubrick
Fonte: ecufilmfestival.com
56
se sobressaem até para o espectador mais distraído. Esses diretores não precisam,
necessariamente atuar em mais de uma área criativa de suas obras, visto que isso
não é, em específico, o que os torna especiais. O que se leva em conta é o fato de
serem considerados autores, peculiares e bem-sucedidos.
3.3.1 Os Coen
Jon Lewis (in TASKER, 2002) comenta sobre os irmãos Joel e Ethan Coen e
seu estilo cinematográfico. Ele explica que autoria e independência na Hollywood do
século XXI se intersectam de formas interessantes, e os irmãos Coen se apresentam
bem no meio dessa intersecção. Eles produzem, escrevem e dirigem todos os seus
filmes. A quantidade de controle que exercem sobre suas obras, portanto, é bastante
extensa.
A habilidade de financiar os filmes quando a grande maioria deles fracassa nas
bilheterias sugere um projeto de autor, um conjunto de obras unidas de forma
independente de suas motivações financeiras. Lewis (in TASKER, 2002) propõe a
teoria de que a noção de cinema independente é intrínseca ao constante fracasso dos
irmãos em fazerem muito dinheiro nas bilheterias.
Figura 6: Os Coen
Fonte: telegraph.co.uk
57
O autor levanta a questão: “o que há nos irmãos Coen que os mantém no radar?
Que permite aos dois, acesso ao financeiro? Que os mantém interessantes?” (LEWIS
in TASKER, 2002, p. 108). Ele explica que há duas possíveis respostas para essas
perguntas, ambas relacionadas mais ou menos com o “velho conceito” de autoria.
Primeiro, é que os estúdios sabem o que esperar dos Coen. Os irmãos têm marcas
pessoais e processos criativos bastante pronunciados. Segundo, é que eles
conseguiram explorar o “comércio da autoria”. Apesar da falta de retorno financeiro
das bilheterias, mantêm uma aura de “autor-celebridade” em todas as suas obras.
Ainda segundo Lewis (in TASKER, 2002), esse estilo marcante foi evidenciado
já no primeiro longa dos diretores, Blood Simple (1984), apresentado em um festival
de filmes em Nova York, onde se destacou dos demais por ser diferente. Nas palavras
dos críticos da época: “mais mal feito do que os concorrentes”. Mas, de alguma forma,
o filme teve um efeito positivo na plateia, que o aplaudiu.
Boy do the Coen brothers have style. Amplified chunks of face are shoved up close to our dumbstruck gaze, prosaic household objects are given the fisheye and magically attain ominous connotations that don't mean anything in particular . . . Most of this vacant virtuosity is what the American screen can't get enough of and emphatically doesn't need (STEIN apud LEWIS in TASKER, 2002, p. 110).25
O autor ainda dá o exemplo da crítica de cinema Pauline Kael, que foi bastante
dura em relação aos irmãos. Ela os define como “autores da terceira geração”. Explica
que a primeira geração de autores era composta por figuras como Coppola, Altman e
Scorsese. Seus filmes, de acordo com ela, eram ótimos, originais e modernistas. A
segunda geração teria sido composta por diretores como Spielberg e Lucas, jovens
que “estragaram tudo para todos” quando trocaram seus talentos pelo simples e vazio
entretenimento hollywoodiano. Finalmente, a terceira onda geracional é composta por
profissionais como Tarantino e os Coen. Kael afirma ser a geração menos talentosa
das três. E prossegue: “essa jovem geração de autores tem conhecimento
enciclopédico do cinema, porém não possuem a experiência de mais nada” (KAEL
apud LEWIS in TASKER, 2002, p. 110). A crítica reclama que essa geração produziu
filmes baseados puramente em referências e alusões, e não em temas e enredos.
25 Cara, mas os imãos Coen têm estilo. Pedaços de rostos são enfiados à frente de nosso olhar embasbacado, objetos domésticos prosaicos são evidenciados em olho de peixe e magicamente se tornam conotações sinistras que não significam nada em particular... A maior parte dessa vaga virtuosidade é o que a tela americana não consegue saciar e enfaticamente não precisa (Tradução do pesquisador).
58
Segundo Kael, filmes da terceira geração são passageiros e irônicos e despedaçaram
os gêneros clássicos do cinema.
Lewis (in TASKER, 2002) explica que, na época de Blood Simple, o cinema já
tinha caído no estilo vazio de Hollywood graças aos populares filmes de Steven
Spielberg e George Lucas. Mas, apesar de Blood Simple ter sido feito para audiências
mais elitizadas, ainda assim, segundo o autor, é apenas mais um filme “cínico”, tal
como Star Wars (1977), de Lucas ou Indiana Jones (1981), de Spielberg.
Lewis (in TASKER, 2002) aponta um possível motivo para o filme dos irmãos
Coen ter feito tanto sucesso: foi apresentado para uma classe de críticos de filme
ansiosa para ser entretida. “E o estilo independente, porém comercial dos irmãos,
levanta uma pertinente questão: podem filmes independentes serem classificados em
termos de prazer? Um prazer acessível? Um prazer visceral? ” (LEWIS in TASKER,
2002, p. 111).
Pode-se pensar que a razão para os irmãos serem tão importantes no cinema
contemporâneo é a sua insistência de que filmes independentes não precisam ser
intelectuais e elitistas, não precisam se levarem tão a sério, não requerem nenhum
tipo de real sofisticação para serem apreciados e compreendidos.
O autor acredita que haja duas chaves para o estilo dos Coen: ritmo e distância
crítica. Blood Simple é quase parado, completamente o oposto dos filmes “neo-noir”
da época. Isso também pode ser dito de outras obras dos irmãos, como Barton Fink
(1991), Miller’s Crossing (1990) e Fargo (1996). Porém, obras como The Hudsucker
Proxy (1994) são muito rápidas, assim como duas comédias dirigidas pelos irmãos:
Raising Arizona (1987) e The Big Lebowski (1998). Ambas se caracterizam pelo
humor atrapalhado e “lá pela metade”, se degeneram em uma sequência de cenas de
perseguição.
Todos os filmes citados são sobre “pessoas estúpidas” ou com problemas
quanto ao entendimento intelectual do mundo. Ironicamente, os Coen têm ensino
superior e são filhos de professores universitários. Outra característica quanto aos
personagens é que eles raramente morrem. Os diretores preferem muito mais deixá-
los vivos para sofrerem a troco de uma risada ou de uma “imagem legal”, levando a
um distanciamento quanto à história narrada.
Além disso, os personagens, nos longa-metragens dos Coen, sempre se
encontram em situações familiares pertinentes ao gênero do filme, seja uma comédia
59
ou um drama. A diferença é que esses personagens reagem de maneira louca ou
estúpida às situações.
Há o exemplo de Jerry, em Fargo, cujo plano para mudar de vida acaba da
forma como a maioria dos filmes dos Coen termina: com corpos destroçados e carros
destruídos. Jerry recorre ao crime quando seu plano (sequestrar a própria esposa e
pedir o dinheiro de resgate para o sogro) vira uma bagunça. Tudo começa porque seu
plano original, o de construir um estacionamento, não dá certo. Há pelo menos quatro
cenas em estacionamentos no filme, todas fundamentais para o enredo e cercadas
de centenas de vagas vazias.
De acordo com Lewis (in TASKER, 2002), os irmãos também parecem ser
especialmente maldosos com os personagens que são parecidos com eles próprios,
em especial judeus. Como por exemplo, no filme onde a história não chega a lugar
nenhum, The Big Lebowski. Um dos personagens, Walter, se converte ao judaísmo
com tamanha seriedade que acaba por não fazer sentido nenhum ao protagonista ou
mesmo aos próprios Coen. Quando o protagonista do filme pede a Walter para dirigir
no Sabbath, o homem enlouquece com a ideia de transgredir uma tradição que já dura
três mil anos. É um sarcasmo evidente em todas as obras. “O que não é motivo de
piada para os irmãos Coen?” (LEWIS in TASKER, 2002, p. 113).
Conforme o tempo passou, Joel e Ethan se tornaram muito bons na arte de
dirigir atores e atrizes. O que ajuda é que os irmãos têm o hábito de trabalhar com as
mesmas pessoas (um hábito comum na indústria fílmica). Mais algumas
características de seus filmes são o uso de narração e sequências fantasiosas
(normalmente sonhos). Os diretores também aparentam se preocupar em deixar o
público desconectado da ação, tanto que é difícil saber se qualquer coisa que
acontece deve ser levada a sério. A população dos filmes normalmente é composta
mais por caricaturas grotescas do que por personagens, o que afasta a identificação.
Além disso, Lewis (in TASKER, 2002) salienta que a violência é explícita e
penetrante, o que faz as obras parecerem pertencer a um cinema alternativo com
raízes em gêneros mais sensacionalistas. Por causa das cenas “fortes”, os irmãos
podem brincar com a expectativa do espectador. Miller’s Crossing, por exemplo, um
filme repleto de violência, apresenta na cena do clímax o protagonista Tom, que
decide poupar a vida do personagem Bernie na floresta, apenas para matá-lo
momentos depois.
60
Outra cena do mesmo filme faz referência ao diretor Rainer Fassbinder, em seu
filme Fox and his Friends (1974). Assim como Tarantino e outros tantos autores da
“terceira geração”, os Coen fazem alusão a uma gama variada de filmes. Após o
mafioso Leo levar um tiro na cabeça, um garoto se aproxima do corpo e rouba sua
peruca. Esse tipo de violência é essencial até em The Big Lebowski, um filme feito
exclusivamente para as risadas. Nesse caso, a violência é usada justamente para
fazer rir do infortúnio do protagonista. Lewis (in TASKER, 2002) cita a sugestão de
Freud: as coisas são engraçadas quando acontecem com outra pessoa.
Fotograma 1: Inside Llewyn Davis (2013)
61
3.3.2 Fincher
Devin Orgeron (in TASKER, 2002) afirma que o diretor David Fincher é uma
espécie de “anomalia”, visto como um cineasta que trabalha com grandes orçamentos,
filmes hollywoodianos comerciais, conceitos gigantescos e repletos de atores e atrizes
famosos. Porém, como Stanley Kubrick antes dele, Fincher dá um jeito de, dentro do
sistema, fazer filmes que são críticos ao sistema; seus filmes são especialmente
críticos quanto ao desejo aparente da geração de Fincher por estabilidade e estrutura.
Segundo Orgeron (in TASKER, 2002), Fincher é o mais novo cineasta pensante
de Hollywood, e também o link para mostrar que Kubrick não foi apenas um acaso
feliz. A utilização de temas como a alienação e o descontentamento presentes no final
do século XX, juntamente com o design visual de seus filmes, é descendente, sob
muitas formas, do estilo de Kubrick. E, também como Kubrick, os filmes de Fincher
(especialmente Fight Club, de 1999) foram motivo para debates muito acalorados,
especialmente quanto à contribuição do diretor naquilo que o próprio se propõe a
criticar. Talvez o filme em que Fincher melhor imprime a sua marca de “crítica do
século XX” é Seven (1995), onde ele expressa a opinião de que a complacência desse
século beirava a apatia.
Fonte: http://www.artofthetitle.com/designer/david-fincher/
Figura 7: Fincher
62
Ainda conforme Orgeron (in TASKER, 2002), a noção “kubrickiana” do “homem
perdido no universo que ele criou para si mesmo” é um dos temas que Fincher explora
frequentemente em seus filmes. Um exemplo disso se mostra novamente no filme
Seven, onde o sentimento de isolamento é expresso por Fincher e seu diretor de
fotografia, Darius Khondji, através de uma cinematografia composta por ângulos
amplos de câmera, porém, com foco superficial. No filme, o espaço está ameaçando
engolir os personagens e prendê-los em seu próprio anonimato. Essas mesmas ideias
foram exploradas elegantemente e de forma bem literal por Kubrick no filme 2001: A
Space Odyssey (1968), onde é abordada a questão da exploração do espaço e o lugar
do indivíduo nele. Em Seven, o senso do isolamento de Fincher é mais palpável nas
partes em que o detetive Sommerset se encontra sozinho em seu apartamento,
contemplando seu envolvimento no caso do “serial killer” John Doe.
Ainda de acordo com Orgeron (in TASKER, 2002), outra característica de
Fincher é a tentativa de abrandar as especificidades, como por exemplo, a escolha de
localizar Seven em uma cidade qualquer, sem nome dado e sem características
marcantes. Até o momento histórico do filme é difícil de especificar. Personagens não
estão vestidos com roupas ligadas a modismos de qualquer década em particular.
Enquanto a tecnologia sugere o período dos anos de 1990, o trabalho de escritório
em terminais monocromáticos parece ter saído direto de um filme noir dos anos 1940.
O alto contraste das cores e o filtro amarelado com pouca iluminação também são
uma marca registrada do diretor26. Uma obra menos famosa é The Game (1997), onde
Fincher continua sua crítica em relação à complacência. O filme também um protótipo
para o caos da hiper-realidade de Fight Club. Fincher arranjou os detalhes da narrativa
de tal forma que é possível tirar satisfação até ao assistir o protagonista infeliz,
Nicholas Van Orton, ser abalado “até os ossos” em uma clássica forma
“Hitchcockiana”. Por isso, se assemelha à North by Northwest (1959), de Hitchcock.
Em ambos os filmes se vê um protagonista não muito “gostável”, arrogante, distante
e extremamente rico. Apesar de tudo, perdoável. No final do filme, após o distorcido
jogo ser terminado e o protagonista chegar ao “fundo do poço”, ele renasce, separado
de sua vida confortável, previsível, segura e de sua existência aparentemente sem
26 Leva-se em conta as participações e contribuições de seus diretores de fotografia, principalmente Jeff Cronenweth, que o auxiliou a passar suas marcas para a tela de forma mais eficiente. Esses profissionais se encarregam mais especialmente da iluminação, cor e do cenário da obra e são chefes da equipe de câmera e luzes, sendo resposáveis por tomar decisões artísticas e técnicas relacionadas com a imagem.
63
emoção. Dois anos mais tarde, essa será a ideia no coração de Fight Club. O filme
continua perpetuando o que são claras obsessões temáticas de seu diretor: as cores
fracas e a pouca iluminação.
Outro tema constante em suas obras é a aparente repulsa pela “cidade”: como
a vida na cidade grande, cheia de confortos, pode destruir o homem. Isso leva a outro
aspecto importante de seus filmes: o estado emocional e psicológico do homem norte-
americano. Orgeron (in TASKER, 2002) evidencia que os filmes de Fincher não
possuem mulheres tridimensionais e, normalmente, marginalizam as personagens
femininas. Em Fight Club, as ideias de Fincher sobre o indivíduo na sociedade
contemporânea são melhor articuladas. E ainda mantém o interesse do diretor pelo
estado contemporâneo da masculinidade. Fight Club é remanescente de mais um
filme de Stanley Kubrick, A Clockwork Orange (1971), tanto em seus temas quanto na
crítica. Centrado na “ultraviolência” dos filmes de Kubrick, Fight Club é sobre homens
que, na superfície, parecem indiferentes às mulheres. É, finalmente, um filme crítico
quanto a seu próprio público.
O protagonista sem nome (ocasionalmente referindo-se a si próprio como
Jack), de Fight Club, é o que a jornalista Susan Faludi identifica como:
The modern male predicament: fatherless, trapped in a cubicle in an anonymous job, trying to glean an identity from Ikea brochures, entertainment magazines and self-help gatherings. Jack traverses a barren landscape familiar to many men who must contend with a world stripped of socially useful male roles and saturated with commercial images of masculinity (FALUDI apud ORGERON in TASKER, 2002, p.157).27
O argumento de Faludi de que o filme é “um conto quase feminista” se deve a
sua leitura do final clássico de filmes antigos de Hollywood, onde o desinteressado
protagonista dá as mãos (e suas forças) à única personagem feminina do filme, Marla,
cuja neurótica existência separada do “sistema” permaneceu invisível para ele até o
final do filme. O alter-ego do protagonista, Tyler Durden, é sua visão fantasiosa e
derivada da mídia de como seria a independência masculina. Tyler é a versão
hollywoodiana de um individualista: bonito, forte, e que mantém relações sexuais sem
laços ou emoções.
27 O moderno dilema masculino: sem pai, preso em um cubículo em um trabalho anônimo, tentando obter uma identidade através de panfletos da Ikea, revistas de entretenimento e grupos de autoajuda. Jack atravessa um terreno estéril familiar a muitos homens que devem se contentar com um mundo desprovido de papéis masculinos socialmente úteis e saturado com imagens comerciais de masculinidade (Tradução do pesquisador).
64
Orgeron (in TASKER, 2002) afirma que Tyler é como um filme e filmes
seduzem. No decorrer de Fight Club, a noção de atingir o “fundo do poço” de Tyler é
sedutora, tanto para o protagonista quanto para o público. O “Projeto Mayhem” de
Tyler se torna uma operação fascista e militar, outro traço reminiscente de Kubrick;
neste caso a primeira metade de Full Metal Jacket (1981). Contudo, o filme, como
todas as obras de Fincher, tem bastante cuidado para não culpar o indivíduo pelos
problemas. O culpado derradeiro é sempre o sistema. O sistema inescapável, corrupto
e capitalista que desfaz o indivíduo.
Apesar de tudo isso, há um problema fundamental com os ideais de Fincher.
Apesar de suas pesadas críticas sobre a sociedade consumista, ele acabou por
participar dela de diversas formas. O diretor começou sua carreira trabalhando para
George Lucas, juntamente com um emprego em uma produtora, sendo que ele diz
não acreditar em escolas/cursos de cinema. Depois disso, trabalhou na direção de
videoclipes para artistas pop como Madonna e a banda Aerosmith. Ele fez comerciais
para marcas gigantes e inteiramente ligadas ao consumismo, como Coca-Cola, Pepsi
e Nike.A imagem do diretor é irônica e complicada. Orgeron (in TASKER, 2002)
conclui que Fincher não obedece ao típico padrão hollywoodiano, mas se coloca como
o modelo pós-moderno perfeito de paixão pela imagem. O amor quase infantil de
Fincher por coisas que parecem “legais” o mantém trabalhando em um reino visual
mais amplo, não limitado apenas ao nível cinematográfico.
Fotograma 2: The Curious Case of Benjamin Button (2008)
65
3.3.3 Tarantino
Mauro Baptista (2002)28 apresenta três aspectos que fazem o cinema de
Quentin Tarantino: cenas do cotidiano, momentos exploitation e o jogo. O autor
acredita que o cinema do diretor surge de uma oscilação entre esses três modos de
representação que implicam notórias mudanças de tom e provocam reações de
natureza diversa no espectador, como o horror, o riso e a cumplicidade. Baptista
(2002) resume o cinema exploitation como filmes de baixo orçamento feitos fora da
indústria, que mostram mais violência, sexo e drogas do que as produções
majoritárias. No Brasil, os filmes do Zé do Caixão foram um exemplo do cinema
exploitation. O autor ainda afirma que Tarantino efetuou uma apropriação desse tipo
de cinema, similar à realizada por Truffaut e Godard com o cinema de gênero norte-
americano.
28 BAPTISTA, Mauro. O cinema de Quentin Tarantino e suas três principais formas de representação: as cenas do cotidiano, os momentos exploitation e o jogo num cinema de gênero paródico. Disponível em http://www.contracampo.uff.br/index.php/revista/article/download/467/232 – Acessado em 22/09/2017
Figura 8: Tarantino
Fonte: https://www.business2community.com
66
Sobre as cenas do cotidiano, Baptista (2002) afirma que Tarantino mescla uma
situação típica do gênero do crime com aspectos próprios do banal, do rotineiro. Essa
situação híbrida sofre uma virada repentina, provocada pelo acaso, que detém o
avanço lógico da trama, para criar um aparente hiper-realismo que, rapidamente,
passa a ser absurdo e irreal. “O ponto inicial é o seguinte: você tem personagens de
gênero em situações de gênero que você já assistiu em outros filmes, mas, de repente,
sem razão aparente, eles são colocados em regras da vida real” (TARANTINO apud
BAPTISTA, 2002).
A estratégia baseia-se numa inversão das prioridades do gênero. Aspectos que
eram secundários se tornam principais, em detrimento da história central do gênero.
Em lugar do realismo, o espectador se vê perante uma magnificação do banal e do
acidental. Há a colisão do exploitation com seu lado contrário, as cenas do cotidiano.
Nos momentos mais comuns da história, Tarantino agrega a extrema violência, drogas
e outras bizarrices que chocam e agridem o espectador. Momentos que, graças à
paródia e ao “humor negro”, provocam emoções contraditórias e reações diversas
que, pela ambivalência proposital das cenas, dependem bastante do estado de
espírito do espectador. Baptista (2002) considera Tarantino o primeiro diretor de
grande porte a incorporar filmes exploitation a um cinema contemporâneo criativo.
O autor discorre que os momentos exploitation de Tarantino pertencem à
tradição lúdica do cinema de atrações, conceito desenvolvido pelo professor de arte
histórica, Tom Gunning, para estudar o cinema não-narrativo dos primeiros tempos.
O cinema de atrações, modo dominante até 1906-07, não teve como prioridade contar
uma história, mas sim, mostrar imagens excêntricas que chocavam, provocavam
surpresa e divertiam o público. Gunning (apud BAPTISTA, 2002) extrai o termo
atração do artigo de Sergei Eisenstein, sobre um novo modelo para o teatro.
Atração, para Eisenstein (2002) é todo elemento que submeta o espectador a
uma ação sensorial ou psicológica com o propósito de produzir nele certos choques
emocionais. Anti-ilusionista, a atração lembra continuamente o espectador que ele
está vendo um espetáculo. Gunning (apud BAPTISTA, 2002) assinala que, apesar da
supremacia do cinema narrativo, o cinema de atrações ainda persiste corno forma
secundária, e parte essencial do cinema popular. A estética das atrações pode não
dominar todo um longa-metragem, mas fornece uma corrente subterrânea que flui sob
a narrativa lógica e o realismo diegético. Tarantino se utiliza do cinema exploitation
para interromper o transcurso da história linear em direção a um objetivo.
67
Baptista (2002) apresenta outro procedimento que suspende o envolvimento
do espectador: o jogo. Os filmes de Tarantino recorrem a diversas ferramentas para
distanciar o espectador da ficção. É uma marca pessoal muito saliente do diretor.
Alguns exemplos dessas ferramentas e técnicas são: letreiros que definem o
significado de “pulp” no início de Pulp Fiction (1994). Letreiros com os nomes dos
personagens em Reservoir Dogs (1992). Letreiros indicando onde e quando se passa
a história em Django Unchained (2012). Além disso, o uso de voice overs, câmera
lenta combinada com música, elementos lúdicos e excêntricos, não naturalistas, como
o quadrado que Mia Wallace desenha no ar em Pulp Fiction.
Baptista (2002) ainda evidencia que as técnicas que distanciam o espectador
podem criar, em certas ocasiões, passagens de metaficção, no sentido de projetar
imagens não do mundo, mas imagens que a comunicação construiu para representar
esse mundo. Quando o boxeador Butch escolhe a espada de samurai e desce a
escada em posição de combate, Pulp Fiction joga com imagens típicas de filmes de
artes marciais, com influências de Seven Samurai (1964) de Kurosawa.
Quando a imagem dos personagens Pumpkin e Honey Bunny, com as armas
empunhadas, se congela, evoca o similar procedimento de congelar os frames em
The Bad, the Good and the Ugly (1968), de Sergio Leone. Quando Jackie, em Jackie
Brown (1997), uma aeromoça, percorre o aeroporto ao som da música soul "110
Street", de Bobby Whomack, ou quando Mia Wallace desenha o quadrado no ar, pode-
se recordar procedimentos da primeira fase de Godard, em especial o minuto de
silêncio que os personagens e a narração fazem em Bande Apart (1964). A metaficção
implica evocar, citar, aludir, parodiar obras do passado. Tarantino parte de histórias e
técnicas presentes em outros filmes e marca diferenças, distanciando-as do
naturalismo.
Jennifer Holshausen (2013)29 salienta que os temas e mise-en-scène de
Tarantino têm seu estilo e marca pessoal, mas o diretor também se qualifica no sentido
literal de “autoria”, no sentido de que ele escreve os próprios roteiros e se envolve
profundamente na produção de seus filmes. Então, embora o status de autor de um
diretor seja normalmente baseado em uma personalidade única ou uso de mise-en-
29 HOLSHAUSEN, Jennifer. Is Quentin Trantino an auteur? Disponível em https://medium.com/beyond-words/the-autuer-polemic-as-applied-to-quentin-tarantino-b18b7f740fd7 – Acessado em 22/09/2017
68
scène característico, no caso de Tarantino, essas características comuns se
estendem para o próprio roteiro. Holshausen (2013) confirma que todos os filmes do
diretor levam sua marca registrada, seja em ângulos de câmeras, temas centrais da
história, estilo dos personagens e outros detalhes técnicos. Por isso, ela acredita que
Tarantino se qualifica para ser um diretor autor, para aqueles inclinados a aceitar tal
teoria.
Fotograma 3: Inglourious Basterds (2009)
69
3.3.4 Anderson
James MacDowell (2011)30 situa o diretor Wes Anderson dentro da
sensibilidade peculiar do cinema independente americano dos anos 1990 e 2000,
assim como Spike Jonze, Charlie Kaufman, etc. Segundo o pesquisador, o “peculiar”
é melhor reconhecido por sua comédia, um estilo visual que visa a artificialidade, o
interesse pela infância e a inocência e – de forma mais generalizada – um tom que
balança entre o distanciamento irônico e uma conexão sincera. MacDowell (2011)
aponta esta como uma das principais marcas pessoais de Anderson: balançar a ironia
e a sinceridade, o que constitui a expressão mais pura, para o autor, do que seja a
sensibilidade subjacente.
Elena Boschi e Tim McNelis (2011)31 apontam que os filmes de Anderson se
utilizam de uma simbiose entre visuais, canções e diálogo. A trilha sonora, por
exemplo, impulsiona a narrativa e enriquece a história dos personagens. O diretor
30 MACDOWELL, James. Wes Anderson, tone and the quirky sensibility. Disponível em http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/17400309.2012.628227 – Acessado em 23/09/2017 31 BOSCHI, Elena; MCNELIS, Tim. ‘Same old song’: on audio-visual style in the films of Wes Anderson. Disponível em http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/17400309.2012.631174 – Acessado em 23/09/2017
Figura 9: Anderson
Fonte: http://lounge.obviousmag.org
70
ainda se utiliza da música para criar um sentimento de nostalgia e estruturar suas
sequências características. Boschi e McNelis (2011) salientam que o silêncio e a
música são favorecidos, ao invés de sons mais convencionais, para intensificar
momentos importantes da narrativa, além da trilha sonora adicionar camadas
emocionais extras. Os autores afirmam que estas técnicas audiovisuais fazem parte
do estilo de Anderson e são uma de suas distintas marcas pessoais.
Porém, a marca mais reconhecível de Anderson é a sua simetria. Humberto da
Cunha (2009)32 concorda que o diretor imprime um forte estilo visual em suas obras.
A maneira metódica de filmar inclui os ângulos de câmera de 90 graus, alinhamento
de formas paralela e perpendicularmente, e o constante uso da simetria. Cunha (2009)
aponta o uso de cores primárias e tons pastéis como outro traço do estilo do cineasta.
O autor define Anderson como um bom exemplo do diretor que faz escolhas
autorais na produção de seus filmes, limitando o designer de produção. Ele também
diz que, em sua filmografia, Anderson explora os mesmos temas, muitas vezes
trabalhando com os mesmos atores e equipe. Isso estabelece uma relação entre todos
os seus filmes, como se pertencessem ao mesmo universo de criação do diretor. Esta
é outra marca do diretor, a importância do design de produção, a cargo dele próprio.
O design caracteriza o universo do diretor e trabalha ativamente na narrativa.
Os objetos e cenários dos filmes são utilizados como elementos presentes da narrativa, podendo explicar um pouco mais sobre os personagens e o universo em que habitam. Como esses objetos e cenários são trabalhados de forma não naturalista, utilizando cores primárias bem fortes, acabam chamando atenção para si e evidenciando o elemento da narrativa para a qual foram concebidos (...) os figurinos estabelecem relação com o espectador por se tratarem de roupas comuns, mas chamam atenção para si intencionalmente por serem trabalhadas utilizando cores primarias forte e por suas repetições o que as torna como uniformes. Nos filmes de Wes Anderson o design de produção não se restringe só ao filme, mas também está presente em seus produtos relacionados como pôsteres, capas e menus de DVD (...) (CUNHA, 2009, s.p.).
Mark Browning (2011) afirma que a reputação de Anderson como um diretor
autor se deve ao fato de que o cineasta é um raro exemplo de um diretor
contemporâneo que participa de muitas áreas de seus filmes. Anderson dirige,
escreve, às vezes produz e desenvolve seus sets de maneira quase obsessiva. Tudo
32 CUNHA, Humberto Thimoteo da. O design de produção nos filmes de Wes Anderson. Disponível em http://tede.anhembi.br/tedesimplificado/bitstream/TEDE/1575/1/Humberto%20Thimoteo%20da%20Cunha.pdf – Acessado em 23/09/2017
71
isso resulta em um estilo distinto, que separa seus filmes dos demais. Browning (2011)
salienta o fato de que o diretor faz parte da “moda” de diretores autodidatas.
O autor explana que o fato de Anderson escrever seus filmes (e não basear
seus roteiros em nenhuma obra já existente, tornando-os “originais”) fez com que o
diretor criasse uma voz distinta e individual, claramente diferente daqueles ao seu
redor e uma preocupação pelo estilo do ramo em que trabalha. Ainda segundo
Browning (2011), o fato de Anderson produzir roteiros originais é um de seus aspectos
mais louváveis. Em especial, quando se olha para a indústria de Hollywood, com medo
de correr riscos, onde roteiros são quase sempre baseados em textos pré-existentes.
Browning (2011) também comenta que a simetria de Anderson para equilibrar
cada cena lembra as técnicas utilizadas pela pintura. O autor vai mais longe, ao
afirmar que a maioria dos frames dos filmes de Anderson, quando congelados,
poderiam ser usados como o próprio pôster dos filmes, de tanto cuidado com cada
cena individual.
Anderson, vez ou outra, gosta de dar uma atmosfera “amadora” para seus
filmes. É o caso dos momentos em que se utiliza do zoom “chicote”, onde acontece
rapidamente um zoom in (aproximação da cena ou de um objeto). Porém, Browning
(2011) explica que o diretor nunca se utiliza de ferramentas que chamam demais a
atenção para elas mesmas, como, por exemplo, o dissolver de uma cena para a outra.
Além de todos esses aspectos, sua mise-en-scène peculiar também é
composta por takes que duram mais tempo do que o normal e quase nenhum
movimento de câmera. O diretor gosta de se utilizar de câmera de púlpito (câmeras
especiais usadas para animar objetos parados) e lentes grande-angulares que
capturam uma quantidade maior de detalhes na tela.
Outra característica interessante é que Anderson gosta de se utilizar de
pinturas para passar sentimentos específicos sobre determinada cena e, muitas
vezes, a pintura é usada como cenário. Na obra The Aquatic Life with Steve Zissou
(2004) há exemplos dessa técnica, onde pinturas são presentes no decorrer do filme
e costumam fazer parte importante do cenário. Browning (2011) elucida que Anderson
parece gostar de trabalhar em comerciais. Não querendo testar neles novos aspectos
técnicos do fazer fílmico, como David Fincher. Sua atração a eles parece se dever à
velocidade com que eles podem ser feitos.
Pode-se observar muitas similaridades entre o cinema de Anderson e os filmes
mudos. Browning (2011) explana que, mesmo que os filmes do diretor tenham muita
72
música e cuidado com as cores, os filmes mudos sempre possuíam algum tipo de
composição para acompanhar as imagens e processos, como a tintagem (vista no
Capítulo 2), que podia dar uma forte impressão nas cores. O diretor também costuma
filmar muito rápido, com o processo normalmente durando apenas algumas semanas,
e a maioria das cenas, são feitas em apenas um take.
Ainda fazendo conexões com o ínicio do cinema, nos filmes de Anderson há
uma tendência de mostrar e contar (especialmente com texto na tela); de contratar os
mesmos atores e fazer que trabalhem a partir de personagens padronizados; de
humor físico (slapstick); de animações muito parecidas com os stop-motion de Méliès;
de quebra da quarta parede, entre diversos outros aspectos.
As sequências mais poderosas em seus filmes, normalmente, são montagens
não com diálogo, mas com música. The Darjeeling Limited (2007), um filme onde a
maiorias de suas cenas se passa dentro de um trem, assim como muitos dos primeiros
filmes mudos, é um exemplo dessa técnica, onde, sempre que algum personagem
passa por mudanças significativas, o momento é acompanhado por música e não por
falas.
Fotograma 4: The Darjeeling Limited (2007)
73
3.3.5 Boyle
Danny Boyle tem distintas marcas que são demonstradas constantemente em
seus filmes. Danielle Wickingson (2011)33 aponta que os filmes do diretor,
normalmente, tratam de algum indivíduo desafortunado, cuja história é contada por
meio de flashbacks, além do uso de lentes grande-angulares, movimentos de câmera
cinéticos, com bastante energia e movimento e também uma edição “picotada”. Um
de seus filmes em que se pode ter uma noção dessas marcas é 127 hours (2010).
Wickingson (2011) explica que o filme também demonstra a predileção de Boyle por
sequências de abertura poderosas.
Segundo a pesquisadora, a abertura de 127 hours é um exemplo da ironia
latente do diretor: na sequência, são evidenciadas multidões de diversos países, e
logo, Aron Ralston, o protagonista do filme, vai estar completamente sozinho, longe
de qualquer tipo de civilização. Ainda na abertura, os closes (enquadramento muito
próximo, fechado) característicos de Boyle são evidenciados, enquanto Aron se
33 WICKINGSON, Danielle. An auteur study of diretor Danny Boyle. Disponível em http://dwickingson.yolasite.com/resources/Form%20and%20Style%20of%20Danny%20Boyle.pdf – Acessado em 24/09/2017
Figura 10: Boyle
Fonte: revistadonjuan.com
74
prepara para sua aventura nos cânions de Utah (EUA). Isso, combinado com os cortes
rápidos, pretende dar ao público uma sensação de incerteza. Algumas cenas depois,
Aron é mostrado, pedalando por um terreno arenoso e Boyle, mais uma vez, faz uso
de suas lentes grande-angulares para destacar o vermelho brilhante da região. Toda
a mise-en-scène tem como objetivo emanar uma falsa sensação de segurança. Como,
em um lugar tão belo, algo poderia dar errado? O uso de câmera cinético é aplicado
para evidenciar a energia, confiança e vivacidade de Aron, até o momento em que,
finalmente, uma rocha esmaga sua mão, prendendo-o embaixo de um cânion. Closes
apertados são realizados, o que transpira o sentimento de claustrofobia. Daí em
diante, uma das marcas de Boyle, os flashbacks são empregados para dar mais
complexidade ao personagem, fazer o público se identificar com o mesmo e explicar
os hábitos tolos que acabaram por prendê-lo ali, em primeiro lugar.
Todos os fatores trabalhados pela cinematografia e edição são amplificados
pela trilha sonora, como explica Wickingson (2011). A música eletrônica intensa é
comum nos filmes do diretor. Boyle tem a sensibilidade de se utilizar da sonoplastia
em seu favor, como no caso onde Aron precisa cortar o nervo de seu braço. A cada
toque no nervo, a música irradia eletricidade, o que praticamente obriga o público a
sentir a dor junto ao personagem. Boyle tenta, constantemente, trazer seus filmes à
vida. No filme mais bem-sucedido de Boyle, Slumdog Millionaire (2008), suas marcas
também estão bem evidenciadas. O protagonista desfortunado da vez é Jamal Malik.
Logo na sequência de abertura, diversos traços do estilo distinto do diretor são “postos
em ação”. A cena é muito brilhante e vívida, com o contraste elevado. O close na face
sem esperança de Jamal é, novamente, claustrofóbico.
Momentos após a sequência de abertura, explica a pesquisadora, começam os
flashbacks. As cores e a iluminação do filme são sempre vibrantes, mesmo em seus
momentos mais obscuros, não importando se as cenas se passam na parte rica da
cidade ou nas favelas em que a família de Jamal morava. Para o público, pode-se
passar um constante sentimento de esperança, de que, no fim, tudo vai dar certo para
Jamal. Ainda segundo Wickingson (2011), uma vista panorâmica do ambiente que
Jamal habita exemplifica o lado artístico de Boyle, enquanto claramente mostra o
cenário, assim como o tom de uma cena especifica. O jogo de câmera cinética é usado
em instâncias, como quando Jamal ainda é uma criança e está correndo das
autoridades; ou quando ele e seu irmão pulam do topo de um trem e rolam ladeira
75
abaixo, uma técnica que funciona muito bem para trazer o público “para dentro” do
filme.
De acordo com Wickingson (2011), uma das mais impressionantes
demonstrações de estilo e também de excentricidade é a trilha sonora da obra.
Enquanto a maior parte é composta pela trilha original do filme, há também canções
de hip hop e pop. No final, escuta-se uma trilha que consiste de novos sons
eletrônicos, enquanto mantém um toque da tradicional música indiana. A trilha convém
à emoção de cada cena até nos mínimos detalhes, e o aspecto mais impressionante
é que ela nunca passa despercebida. Wickingson (2011) afirma que Slumdog
Millionaire demonstra perfeitamente a personalização que Boyle aplica a todos os
seus filmes. Está claro que este é um diretor autor e realmente faz filmes “seus”, não
importando o fato de que vai de um gênero a outro. Ele possui a distinta marca de
querer que o público experiencie os filmes juntamente com seus personagens, se
utilizando primariamente de movimentos de câmera cinéticos e closes, enquanto
apresenta imagens vivas em cada cena individual. Wickingson (2011) conclui que
Boyle é um dos melhores diretores da atualidade e que todos os seus futuros filmes
irão demonstrar as mesmas características de estilo e a mesma qualidade que todos
os diretores gostariam de ter.
Fotograma 5: Trainspotting (1996)
76
4. SHANE CARRUTH
“Se algo que seria difícil verbalizar pode ser explorado
ou iluminado, isso para mim é o que um filme deveria ser. É
como tentar explicar uma música. Você não consegue.”
“Eu vou fazer filmes e vou continuar trabalhando, não
importa o que eu tenha que fazer. E não pretendo pedir a
permissão de ninguém para isso.”
“Eu finjo ser um cineasta, na maior parte do tempo.”
Shane Carruth
Este capítulo reserva-se para compreender o objeto de estudo: o diretor
onipresente Shane Carruth. Melhor ainda, procura-se entender a pessoa por trás dos
filmes. A maior parte do primeiro subcapítulo é baseada em entrevistas concedidas a
jornais e revistas norte-americanos e ingleses. Após, busca-se analisar suas obras,
utilizando-se da metodologia de Laurence Bardin (2011) a respeito da Análise de
Conteúdo. Isso deverá conduzir a pesquisa às marcas pessoais de Carruth, que o
destacam dos demais diretores de cinema.
77
4.1 O HOMEM POR TRÁS DA CORTINA
Onipresença é uma palavra que provém do latim medieval. Ela significa “estar
presente em todos os lugares”34. Shane Carruth é um roteirista, editor, produtor,
compositor, ator e diretor de cinema. Em uma entrevista (2013)35 ao Los Angeles
Times, o artista revela ter nascido em Myrtle Beach, na Carolina do Sul (EUA), em
1972. Seu pai era um sargento das forças aéreas e, por isso, sua família se mudou
muito. Frequentou o ensino fundamental e médio em Dallas, Texas, que é onde vive
atualmente. Formou-se em Matemática pela Stephen F. Austin State University. Antes
de se tornar um cineasta, ele conta que também trabalhou como um desenvolvedor
de softwares para aviação.
34 Disponível em https://en.oxforddictionaries.com/definition/omnipresent - Acessado em 30/10/2017 35 Entrevista concedida ao Los Angeles Times em 14/01/2013. Disponível em http://articles.latimes.com/2013/jan/14/entertainment/la-et-mn-sundance-carruth-20130115 – Acessado em 30/10/2017
Figura 11: Shane Carruth
Fonte: wired.com
78
Em 2004, Carruth ganhou o prêmio mais prestigiado do Festival de Sundance,
o prêmio do Grande Júri, pelo seu primeiro longa-metragem: Primer. Além do festival
de Sundance, o longa arrebatou diversos prêmios em festivais menores. O cineasta
dirigiu, escreveu, editou, compôs a trilha e atuou como um dos protagonistas.
The film is hard sci-fi, a rarety in motion pictures even today. As a viewer, you’ll either love Primer or hate it. You will not understand it. At least not all of it on your first viewing. If you say you do, you’re lying or you just don’t realize you don’t (MCCONNELL, 2017).36
Para o cineasta independente Austin McConnell (2017)37, Primer se destaca
por dois motivos: ter um orçamento extremamente baixo e pelo diálogo técnico e
complexo. O autor afirma que a grande maioria dos filmes se utiliza de uma
“pseudociência”, um texto mais fácil para o público entender. Ao contrário, Carruth faz
36 O filme é ficção cientifica pesada, uma raridade em filmes até hoje em dia. Como um espectador, você vai amar Primer ou odiá-lo. Você não vai entendê-lo. Pelo menos não todo ele na sua primeira assistida. Se você disser que entendeu, você está mentindo ou simplesmente não sabe que não entendeu (Tradução do pesquisador). 37 MCCONNELL, Austin. Who is Shane Carruth? Redação audiovisual produzida em 20/04/2017. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=ietwEVmfZgA – Acessado em 30/10/2017
Figura 12: Pôster de Primer
Fonte: http://www.impawards.com/2004/primer.html
79
uso de seu conhecimento como engenheiro e de seu diploma em Matemática para
criar um diálogo denso e repleto de jargões utilizados por cientistas. McConnell (2017)
pondera que o filme não tem medo de se aprofundar na Física e nos detalhes técnicos
sobre viajar no tempo.
O autor continua, dizendo que o que chamou a atenção de todos no Festival de
Sundance de 2004 foi o fato de que ninguém jamais havia conseguido fazer um filme
tão complexo de ficção cientifica com um orçamento tão baixo (7 mil dólares) e ter um
lucro tão grande (425 mil dólares).
Shane’s strength wasn’t just in his writing. He was the quintessential jack of all trades: he produced, wrote, directed, edited, starred in and even wrote the music for the film. In a industry devoted in compartmentalizing itself, Shane stood out as a guy who chose to wear as many hats as possible on set. And here is the thing: it wasn’t just that he wore them, but that he wore them so well (MCCONNELL, 2017).38
Em uma entrevista para a revista britânica Dazed (2013)39, Carruth afirma que
sua paixão por roteiros começou na faculdade, mas não sabia como ganhar dinheiro
com a escrita. Depois de escrever Primer, o diretor resolveu se auto-ensinar sobre o
funcionamento de uma câmera de vídeo, seu diafragma, as lentes, etc. Na mesma
entrevista, Carruth explica o motivo de se envolver tanto em todas as áreas de seus
filmes:
It started off as necessity and just being naive – I didn’t know any musicians or how to hire them, so I just played around and it’s now the way it works. I know I’m not the best guy to be doing each of these jobs but I do think it adds a handcraftedness and makes it more singular. If the audience takes the film apart and dwells on it there’s something behind it. It’s not just a product of groupthink (CARRUTH, 2013).40
38 A força de Shane não era apenas a sua escrita. Ele era o pau para toda obra fundamental: ele produziu, escreveu, dirigiu, editou, estrelou e até compôs a música para o filme. Em uma indústria devota em se compartimentalizar, Shane se destacou sendo um cara que escolheu usar o máximo de chapéus possíveis no set. E é aí que está: não era apenas o fato dele usar os chapéus, mas o fato de que ele os usou tão bem (Tradução do pesquisador). 39 Entrevista concedida a Dazed em 19/08/2013. Disponível em http://www.dazeddigital.com/artsandculture/article/16889/1/shane-carruth-goes-upstream – Acessado em 30/10/2017
40 Começou como uma necessidade e ingenuidade – eu não conhecia nenhum músico e não sabia como contratá-los, então eu só fui brincando e agora é assim que funciona, eu sei que não sou o melhor para estar fazendo cada um desses trabalhos, mas acho que isso adiciona uma qualidade de feito à mão e torna a obra mais singular. Se o público analisa o filme a fundo, encontra algo por trás. Não é apenas um produto do pensamento de grupo (Tradução do pesquisador).
80
Para McConnell (2017), Carruth era como seu personagem em Primer: um
inventor jovem, ambicioso, talentoso, sempre tentando o diferente. Em uma entrevista
para a revista Filmmaker (2004)41, Carruth explana que o motivo de ter se escalado
como ator principal se deve ao fato de que estava sendo muito difícil achar atores que
não “dramatizassem” demais. Ele revela que a maior parte do elenco é formada por
amigos ou familiares. McConnell (2017) evidencia que Carruth criou algo tão único,
intrigante, independente e experimental que todos esperavam que sua carreira fosse
decolar. Porém, ele sumiu.
Na entrevista ao colunista Mark Olsen, do Los Angeles Times (2013), Carruth
revela que em 2010 começou um novo projeto intitulado “A Topiary”. O filme teria
muitos efeitos especiais, que estavam sendo realizados pelo próprio Carruth, mas,
após alguns anos, foi deixado de lado. O diretor afirma que o projeto foi um
desperdício de tempo e energia. Isso mostra que ele prefere desistir de um projeto
inteiro (mesmo estando perto da finalização) por não atingir suas expectativas: melhor
não apresentar a obra do que apresentar um filme inferior.
Olsen (2013) comenta também que, mesmo tendo 40 anos, o diretor continua
com uma aparência juvenil. O colunista diz que Carruth tem um charme quieto e
intenso, juntamente com um “misticismo controlado”. No decorrer do almoço entre os
dois, tudo o que ele pediu foi uma salada sem tempero e um copo d’água.
Wether on purpose or by accident, Shane’s reputation morphed from the future of indie film, to that of the reclusive visionary. Shane was a ghost (...) it would take nearly a decade after the release of Primer for the silence to finally be broken (MCCONNELL, 2017).42
Em janeiro de 2013, Carruth mostrou ao mundo seu segundo longa: Upstream
Color, que teve sua première novamente no Festival de Sundance. Carruth, mais uma
vez, dirigiu, compôs a trilha, editou, escreveu e atuou como um dos protagonistas. O
filme ganhou o prêmio de Melhor Design Sonoro e foi indicado nas categorias de
Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Atriz, Melhor Roteiro Original, Melhor
41 Entrevista concedida a Filmmaker em 2004. Disponível em http://filmmakermagazine.com/archives/issues/spring2004/features/tech_support.php#.WgzmNIj_rIW – Acessado em 30/10/2017 42 Tenha sido de propósito ou por acidente, a reputação de Shane foi de “o futuro do cinema independente” para o de “visionário recluso”. Shane era um fantasma (...) levou quase uma década depois do lançamento de Primer para que o silêncio fosse finalmente quebrado (Tradução do pesquisador).
81
Cinematografia e Melhor Trilha Sonora. O editor Keith Kimbell (2013)43 escreveu que
o filme era o mais antecipado (e o mais difícil de descrever) do Festival e que a maioria
dos críticos não conseguia parar de comentar sobre a obra.
Austin McConnell (2017) explana que Primer fora um filme repleto de denso
diálogo e logísticas e que Upstream Color mostrou um cinema mais experimental,
porém, se focou principalmente na estética e na emoção. O orçamento do filme foi
maior que o de Primer, totalizando 50 mil dólares. O lucro, no entanto, foi similar: 444
mil dólares.
Na entrevista para o jornal Los Angeles Times (2013), Carruth revela que lida
até mesmo com a distribuição de seus filmes, pois precisa ter controle sobre seus
projetos. Em outra entrevista sobre Upstream Color para a revista digital IndieWire
(2013)44, Carruth afirma que se dependesse dele, todo o filme já estaria totalmente
43 Crítica feita por Keith Kimbell em 28/01/2013. Disponível em http://www.metacritic.com/feature/sundance-film-festival-reviews-2013 - Acessado em 30/10/2017 44 Entrevista concedida a Indiewire em 03/04/2013. Disponível em http://www.indiewire.com/2013/04/shane-carruth-explains-why-upstream-color-isnt-so-difficult-to-understand-and-talks-about-his-next-project-39752/ – Acessado em 30/10/2017
Figura 13: Pôster de Upstream Color
Fonte: http://www.imdb.com/title/tt2084989/
82
organizado desde a etapa do roteiro. Admite não gostar de tomar decisões
importantes e mudar aspectos das obras na pós-produção.
Na mesma entrevista, o diretor comenta como se sente quando tem que dividir
sua visão e seus filmes com outros colaboradores. Segundo Carruth, se outras
pessoas conseguissem internalizar a história tão bem quanto ele, acreditaria em uma
verdadeira colaboração. Ele ainda afirma ter ficado muito contente por encontrar David
Lowery, que o ajudou a editar Upstream Color. Idem para o elenco do filme e o “resto
do pessoal” da produção. Mas, Carruth diz pensar que esse sentimento não seja algo
comum. Comenta que, às vezes, as pessoas podem trazer muito “ego” para um
projeto e sempre parecem saber o que é melhor para a história do filme.
Ele conclui, afirmando: “eu teria muito medo se tivesse que lutar pelo sentido
do filme. Eu preciso ter controle total” (CARRUTH, 2013). Paul Dallas, da revista
Interview (2013)45, indaga como Carruth conseguia editar enquanto filmava e ainda
dirigir e atuar quando o dia tem apenas 24 horas. O diretor confessa que, na época
de Upstream Color, estava dormindo em torno de 90 minutos por dia e que já estava
“enlouquecendo”. Segundo ele, o editor David Lowery salvou sua vida.
I didn’t expect it to work out nearly as well as it did. There’s two things: he innately understood the film, but at the same time we had lots of long conversations that made me confident that he really got it. He took what I’d already edited and the new material and seamlessly edited together things that were totally perfect. Once shooting was done, we were able to work together in the house for a couple weeks. His ideas are in the film as well—it was just a really great collaboration (CARRUTH, 2013).46
McConnell (2017) diz que, enquanto muitos se perguntavam se Carruth
finalmente veria a fama e o sucesso desta vez, alguns meses depois, ele sumiu de
novo.
Atualmente, surgiram notícias sobre o diretor estar trabalhando em seu próximo
filme: Modern Ocean. Detalhes são escassos, mas sabe-se que será um longa
baseado na vida das pessoas envolvidas em entregar encomendas internacionais por
45 Entrevista concedida a Interview em 03/04/2013. Disponível em https://www.interviewmagazine.com/film/shane-carruth-upstream-color – Acessado em 31/10/2017 46 Eu não esperava que fosse funcionar tão bem quanto funcionou. Há duas coisas: uma é que ele entendeu instintivamente o filme, mas ao mesmo tempo tivemos longas conversas que me deixaram confiante que ele realmente entendeu. Ele pegou o que eu já tinha editado e o material novo e conseguiu editar as coisas com fluidez perfeita. Depois que acabamos de filmar, nós pudemos trabalhar juntos no estúdio por algumas semanas. Suas ideias também estão no filme – foi uma ótima colaboração (Tradução do pesquisador).
83
via marítima. Esse será o primeiro filme de Carruth que contará com um grande
orçamento e um elenco de renome. Anne Hathaway, Keanu Reeves, Tom Holland e
Daniel Radcliffe são alguns dos atores divulgados. Porém, a notícia do site Collider47
é de 2015 e o paradeiro do longa-metragem continua um mistério.
Foi em uma entrevista para a Vice (2015)48, que o cineasta conta sobre o filme:
“Nós somos um mundo de nós mesmos, para nós mesmos, no oceano moderno”
(CARRUTH, 2015). Quando entrevistado pelo Collider (2017)49 sobre o filme, o novo
Homem-Aranha, Tom Holland, ator que faz o papel do herói, disse que sempre
pressiona seu agente para que ele tente dar “um empurrão” em Modern Ocean,
levando a que seja feito de uma vez. E quanto ao roteiro, o ator opina: “aquele é, eu
acho, o melhor roteiro que eu já li. É a ideia mais maluca para um filme, é demais”
(HOLLAND, 2017).
I like telling stories that are universal, that aren't about a certain culture or about a certain country or state or even way of thinking. I want a story where the characters are motivated by things that everyone would find within themselves (CARRUTH, 2015).50
O sigilo de Carruth quanto a todos os seus projetos e a sua vida pessoal leva
McConnell (2017) a crer que “Shane Carruth não diz nada, até ele ter algo a dizer”. O
autor explica que, atualmente, a indústria do cinema se encontra em uma era em que
filmes são anunciados muito antes de serem terminados, algumas vezes antes de
começarem a ser filmados - como é o caso da Marvel, que anunciou em 2014 o
terceiro e quarto filme dos Vingadores (que, a princípio, serão lançados em 2018 e
2019, respectivamente), sendo que o segundo nem havia sido lançado ainda. E para
complementar essa questão, os fãs são constantemente atualizados sobre o status
47 Notícia do Collider postada em 03/11/2015. Diponível em http://collider.com/anne-hathaway-daniel-
radcliffe-keanu-reeves-shane-carruth-modern-ocean/ - Acessado em 31/10/2017 48 Entrevista concedida a Vice Magazine em 12/08/2015. Disponível em
https://motherboard.vice.com/en_us/article/4x399m/we-talked-to-shane-carruth-about-the-human-drama-behind-the-modern-ocean – Acessado em 31/10/2017 49 Entrevista concedida ao Collider em 11/04/2017. Disponível em http://collider.com/tom-holland-the-
modern-ocean-current-war-interview/ - Acessado em 31/10/2017
50 Eu gosto de contar histórias que são universais, que não são sobre uma certa cultura ou sobre um certo país ou estado ou até mesmo um jeito de pensar. Eu quero uma história onde os personagens são motivados por coisas que todos poderiam encontrar dentro de si mesmos (Tradução do pesquisador).
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do filme via redes sociais e a internet, em geral. Esse fato torna o comportamento de
Carruth ainda mais intrigante.
Paul Dallas, da revista Interview (2013), questionou Carruth quanto à habilidade
de manter seus projetos em segredo. O diretor revela que passou a tomar mais
cuidado com essa questão depois que seu projeto “A Topiary” teve o script vazado na
internet: “mesmo eu sendo um ninguém, de lugar nenhum, o script achou seu caminho
para o online”. O fato de que seu filme estava sendo analisado e julgado, antes mesmo
de ter sido editado, o deixou com “os nervos à flor da pele”.
A partir disso, em Upstream Color, o diretor manteve o maior sigilo possível.
“Quando existir um filme pronto para ser visto, aí sim deixemos as pessoas saberem
que ele existe”, disse, na mesma entrevista. Para o Los Angeles Times (2013), Carruth
reafirma que não quer falar nem um pouco sobre os aspectos técnicos de Upstream
Color. Ele explica que ficou feliz por exaltarem Primer, mas revela que nunca mais
quer ouvir a frase: “era um ótimo filme pelo orçamento que teve”. Dessa vez, ele
realmente não quis revelar quanto dinheiro gastou e no que gastou.
Em outra entrevista para a revista Paper (2013)51, Carruth deu suas ideias
quanto aos bônus de DVD e Blu-Ray:
I don't want any! I don't want a director's commentary, I don't want behind-the-scenes stuff. I don't want any of that. I've gotten to the point where I feel like that's a distraction from the actual purpose of the narrative to cultivate this idea that the experience has something to do with being behind the scenes and getting into the production (CARRUTH, 2013).52
McConnell (2017) também conta que Carruth não possui uma conta de Twitter
para expor sua opinião sobre política, religião ou a mídia, por exemplo. Ele também
não possui um blog. Ele não dá atualizações de seus filmes via Instagram. O autor
conclui que, embora o fato de não se utilizar das mídias sociais para promover suas
obras seja considerado “suicídio” no mundo do marketing, Carruth parece encontrar o
sucesso mesmo assim. Dallas (2013) descreve os filmes desse diretor onipresente
51 Entrevista concedida a Paper Magazine em 04/05/2013. Disponível em http://www.papermag.com/upstream-color-director-shane-carruth-its-all-just-a-massive-lie-1426868277.html - Acessado em 01/11/2017 52 Eu não quero nenhum! Eu não quero comentários do diretor, eu não quero um “por trás das cenas”. Eu não quero nada disso. Eu cheguei num ponto onde sinto que essas coisas são uma distração do propósito verdadeiro da narrativa, algo para cultivar essa ideia de que a experiência tem algo a ver com estar por trás das cenas e saber sobre a produção (Tradução do pesquisador).
85
como “objetos feitos à mão”. O repórter ainda elogia o diretor por ter se auto-ensinado
cinematografia em 16mm para Primer, por fazer seus próprios efeitos especiais e por
ter filmado todas as cenas em apenas um take.
Dallas (2013) comenta que algumas das cenas mais “incríveis” de Upstream
Color lembram o cosmos nascente no filme Tree of Life (Terrence Malick, 2011). Isso
mostra que os “pequenos” filmes de Carruth podem estar, pelo menos para alguns,
em nível similar a filmes indicados ao Oscar. Na entrevista para a Paper (2013), o
diretor é questionado quanto ao seu autodidatismo. Ele confessa que não se lembra.
Simplesmente começou a “se ensinar” as técnicas necessárias quando sua ignorância
quanto a elas se tornou um problema. Outra qualidade de Carruth que McConnell
(2017) salienta é a de que o diretor, ao contrário da maioria dos cineastas
independentes, não pede dinheiro por meio de doações. Carruth junta seu próprio
dinheiro.
Carruth notou que se sentiu “ótimo” quando pôde lidar com a distribuição de
seus próprios filmes, justamente por tomar todas as decisões. Em entrevista
concedida para a Paper (2013) Carruth desabafa: “escolher um pôster que não vai
conter porcos, vermes e armas e sim pessoas perdidas, totalmente vestidas e
abraçadas em uma banheira, isso é algo que não posso abrir mão, agora que sei que
posso fazer isso”. Na entrevista para a revista Dazed (2013), o diretor promete que
nunca pedirá um dólar sequer para ninguém para fazer seus filmes. E todo o dinheiro
que ganhar com Upstream Color vai direto para seu próximo projeto. “Eu não posso
desperdiçar tempo tendo conversas idiotas com pessoas sobre financiamento. Isso
simplesmente não funciona para mim” (CARRUTH, 2013).
Shane doesn’t follow the rules of independent film. He doesn’t care about what is trending. Everything he makes is unlike anything else on the market. Where most filmmakers shamelessly copy and imitate what is known to work, Shane is in a constant pursuit to find that which is truly unique. He honestly seems to be in the game for the craft, not the cash. Shane wants to tell stories. He doesn’t wanna be a celebrity (MCCONNELL, 2017).53
53 Shane não segue as regras do cinema independente. Ele não se importa com os modismos. Tudo que ele faz é diferente de tudo mais que está no mercado. Onde a maioria dos cineastas copiam e imitam descaradamente o que é comprovado que funciona, Shane está em uma constante perseguição para achar aquilo que é verdadeiramente único. Ele honestamente parece estar nesse jogo pela arte e não pelo dinheiro. Shane quer contar histórias Ele não quer ser uma celebridade (Tradução do pesquisador).
86
Ainda na entrevista para a Paper (2013), quando questionado sobre sua
identidade como cineasta, Carruth teve o seguinte a dizer:
Two things about that. One, I know that I have this, I mean everybody does, this idea that you've built up an identity, you have your political, religious, cosmic beliefs, whatever. Everything that you see and everything that you say seems to be framed according to this identity. I know that I'm guilty, if that's even the right word, absolutely. But as far as my identity as a filmmaker, I really don't want one or have one. I don't want a career. I've been telling all of the people that would care that I'm not trying to build a career. I'm trying to be consumed by whatever story's in front of me. It was Upstream Color, I'm currently writing something else right now that I cannot wait to sink into. I don't want a personality and any time I use my name as sort of a brand I'm really just trying to do what I can. If there's any value in it at all to get the project out
and raise awareness of it (CARRUTH, 2013).54
Na mesma entrevista, Carruth esclarece melhor o motivo de querer fazer, ele
mesmo, até a trilha sonora:
With the music, I didn't set out thinking I wanted to compose music for film but when I know what I want the music to sound like exactly it just makes more sense for me to spend the time it takes to get it done instead of trying to explain it to somebody and then really frustrate them when they don't deliver precisely what's in my stupid head (CARRUTH, 2013).55
Porém, McConnell (2017) também evidencia que Carruth apresenta falhas em
seu processo criativo. O autor acredita que a teimosia do diretor pelo total controle
criativo sobre suas obras, provavelmente fechou algumas portas para oportunidades.
Mas, Carruth parece não se importar.
Outro ponto a ser explorado é o fato de que como o diretor gerencia
basicamente todos os aspectos de seus filmes, se a sua criação tem sucesso, ele
ganha todo o crédito. Se, por outro lado, ela falha, leva toda a “culpa”. Felizmente,
54 Duas coisas sobre isso. Uma, eu sei que eu tenho isso, quero dizer, todo mundo tem, essa ideia que você construiu uma identidade, que você tem suas crenças políticas, religiosas, cósmicas, o que seja. Tudo que você ê e tudo que você diz parece estar enquadrado nessa identidade. Eu sei que sou culpado disso, se é que essa é a palavra certa, certamente. Mas em relação à minha identidade como cineasta, eu realmente não tenho uma. Eu não quero uma carreira. Eu venho dizendo para todas as pessoas que eu me importo que eu não estou tentando construir uma carreira. Eu estou tentando ser consumido por qualquer que seja a história que está na minha frente. Foi Upstream Color, e agora estou escrevendo outra coisa que mal posso esperar para mergulhar fundo. Eu não quero uma personalidade e todas as vezes que eu utilizar meu nome como um tipo de marca, é porque só estou tentando fazer o que eu posso. Se houver qualquer valor nisso para fazer o projeto ser feito e visto (Tradução do pesquisador). 55 Com a música, eu não saí pensando que queria compor música para filmes, mas quando eu sei como eu quero que a música seja exatamente, simplesmente faz mais sentido eu mesmo gastar o tempo necessário para que seja feita ao invés de explicar para alguém e depois frustrá-los quando eles não entregam precisamente o que estava na minha mente estúpida (Tradução do pesquisador).
87
para Carruth, até agora o retorno foi positivo. McConnell (2017) salienta que os filmes
de Carruth, embora obscuros, foram aclamados pela crítica.
O colunista Tim Robey, do jornal britânico The Telegraph (2013)56, chama
Carruth de “o estranho autor”, devido a sua natureza pitoresca e filmes de caráter
autoral. Quando questionado por Robey (2013) sobre sua satisfação quanto a Primer,
Carruth admite não sentir prazer em assistir ao filme, demonstrando, com isso, uma
grande dose de senso crítico e busca pela perfeição. Talvez, humildade.
You know what? I am not happy with it. I see nothing but rough edges. I don’t enjoy looking at it. I don’t enjoy listening to it. I'm embarrassed by it, and I think of it as something that was made in eighth grade that I wish could not be attributed to me. At the same time, I could not be more grateful for how it’s been received or that anybody likes it, so it’s this very weird thing. I wouldn’t touch it for the world, but that’s mainly because of how I’ve been informed by George Lucas changing his works and stuff. I have a strong opinion about whether work should be revisited or whether it should be left how it was (CARRUTH, 2013).57
Robey (2013) acredita que os filmes de Carruth são obras “belíssimas,
estonteantemente espertas e o produto de uma mente intimidante”. Ele aponta que
Upstream Color é “o bebê” de Carruth, sendo que ele editou até mesmo o trailer, criou
o pôster e fez o design das embalagens de DVD e Blu-ray. Na entrevista, o diretor
afirma que o filme já é diversivo simplesmente por estar tentando algo novo.
Quando questionado pela revista New York (2013)58, sobre suas maiores
influências culturais, Carruth evidencia 20 delas. Entre essas, estão os filmes Pierrot
le Fou (1965) e Vivre Sa Vie (1962), de Jean-Luc Godard (mencionado no capítulo 2
como um dos pioneiros do cinema autoral); a trilha sonora de Ascenseur Pour
L’échafaud (1958), composta por Miles Davis; os jogos de videogame Grand Theft
56 Entrevista concedida ao Telegraph em 29/08/2013. Disponível http://www.telegraph.co.uk/culture/film/10255533/Shane-Carruth-interview-the-awkward-auteur.html - Acessado em 01/11/2017 57 Sabe de uma coisa? Eu não estou feliz com o filme. Eu não vejo nada a não ser pontas brutas sem lapidação. Eu não gosto de olhar para ele. Eu não gosto de escutar ele. Eu tenho vergonha dele, e eu penso nele como algo feito na oitava série que eu gostaria que não fosse atribuído a mim. Ao mesmo tempo, eu não poderia ser mais grato por como ele foi recebido e por alguém gostar dele, então é uma coisa muito estranha. Eu não mexeria nele por nada neste mundo, mas isso é, na maior parte, por causa de como fui influenciado por George Lucas ficar mudando seu trabalho e coisas do tipo. Eu tenho uma opinião forte quanto a se um trabalho deve ser revisitado ou se deve ser deixado como está (Tradução do pesquisador).
58 Entrevista concedida a New York em 15/04/2013 Disponível http://www.vulture.com/2013/04/shane-carruth-explains-his-cultural-influences.html - Acessado em 01/11/2017
88
Auto IV (2008) e Portal (2007); o website Etsy; a série de televisão It’s Always Sunny
in Philadelphia (2005) e visitar mercearias abertas tarde da noite. O diretor diz que
andar pelos corredores das mercearias o acalma e o ajuda a pensar em novas ideias.
Isso tudo condiz com o que Dabul e Pires (2008) discutem no capítulo 3, sobre a
importância dos processos criativos, concebidos como rituais únicos de cada artista,
experiências vividas durante a concepção de suas obras.
É muito difícil conhecer o “lado pessoal” de Carruth. McConnell (2017) acredita
que o público cria muitas projeções quanto ao diretor. Para ele, existem “dois Shanes”:
a persona e a pessoa. A persona é o cineasta visionário recluso. Ele é, para seus fãs,
um gênio. Para seus críticos, esnobe. Para os estúdios, a aposta mais arriscada. Este
Carruth é uma combinação de aproximações. McConnell (2017) reflete que
preenchemos os espaços em branco com o que “parece” certo. E, por outro lado, há
a pessoa. Se você não for um familiar ou amigo, essa pessoa se mantém um mistério.
Talvez o “verdadeiro” Carruth possa ser, provavelmente, um meio termo entre esses
dois aspectos.
McConnell (2017) conclui que, no decorrer dos anos, Carruth amadureceu. Ele
foi do diretor de 30 anos de idade com o brilho nos olhos, tentando entender o por quê
de ser tão aclamado para um artista mais equilibrado e reservado que toma extremo
cuidado com o que fala. Acredita ainda que Carruth não se leva tão a sério quanto os
outros o levam. “Talvez ele tenha tudo planejado em sua cabeça ou talvez ele vá
improvisando conforme as coisas se desenrolam”. McConnell (2017) conclui que se
sabe, com certeza, apenas duas coisas sobre Carruth: que ele tem histórias para
contar e que leva um bom tempo para contá-las. Sobre perspectiva, o autor afirma ter
certeza que Carruth ainda está no jogo do fazer fílmico, lentamente conseguindo os
recursos para seu próximo filme.
It’s clear that he is talented and driven. Able to craft cool concepts for movies, but he is yet to really refine those concepts in a way that is coherent enough for mainstream audiences to understand. I don’t think that he has created his masterpiece yet, but I’m almost certain that one day he will. Untill then we will have to keep our eyes in the shadows for hints of movement and, if the time comes, when he has something to say, you can rest assured of one thing: he knows his way out of the darkness and into the light, to speak (MCCONNELL, 2017).59
59 Está claro que ele é talentoso e determinado. Capaz de criar conceitos de filmes legais, mas ele ainda tem que refinar esses conceitos de uma forma que seja coerente o suficiente para a massa entender. Eu não acho que já criou sua obra-prima, mas tenho quase certeza que um dia ele vai. Até lá, devemos manter nossos olhos nas sombras, em buscas de rastros de movimento e, se o momento
89
É importante ressaltar que, apesar de Carruth não ter lançado nenhum longa
desde 2013, continua aparecendo em algumas obras. O diretor estrelou o curta
Everything & Everything & Everything (2014), produzido pela companhia de mídia
digital, Vice. Em 2015, estrelou mais dois curtas: We’ll find something e Memory Box.
Carruth trabalhou com o diretor/editor/roteirista vencedor do Oscar, Steven
Soderbergh (que também começou sua carreira tendo notoriedade no Festival de
Sundance).
Para Soderbergh, Carruth compôs a trilha sonora de sua série de TV, The
Girlfriend Experience (2016). Atuando na série e também como co-criadora, está Amy
Seimetz, a protagonista de Upstream Color, que também escreve, dirige, estrela e
edita suas próprias obras. Carruth se casou com Amy em 2016. Soderbergh teve a
dizer quanto ao estilo de Carruth: “eu o vejo como o filho ilegítimo de David Lynch e
James Cameron”60. Ainda em 2016, Carruth fez uma pequena ponta no filme Swiss
Army Man (Scheinert), estrelado por Daniel Radcliffe e em 2017, dirigiu um episódio
da série de televisão Breakthrough.
chegar, quando ele tiver algo para dizer, você pode ficar sossegado sobre uma coisa: ele sabe o caminho para fora da escuridão até a luz, para falar (Tradução do pesquisador).
60 Entrevista concedida a EW em março de 2013. Disponível em
www.ew.com/ew/article/0,,20685815,00.html – Acessado em 01/11/2017
Figura 14: Carruth no set de Upstream Color
Fonte: https://nofilmschool.com/2013/02/panasonic-gh2-shane-carruth-upstream-color-musgo
90
4.2 ANÁLISE DE CONTEÚDO – FASE 1
Para a pré-análise ou coleta do material foram escolhidas as duas obras pelas
quais o diretor é mais reconhecido: seu primeiro filme, Primer (2004), e o segundo,
Upstream Color (2013). A seguir, encontra-se um resumo dos dois filmes,
evidenciando os aspectos mais importantes de cada um e que auxiliaram a execução
da fase 2, ressaltando as categorias para análise, adiante determinadas.
4.2.1 Primer
Quatro engenheiros – Aaron (Carruth), Abe, Robert e Phillip trabalham em uma
grande corporação durante o dia e, à noite, administram um pequeno negócio paralelo
na garagem de Aaron, onde constroem e vendem chips e circuitos. Depois de uma
discussão para decidir qual seria o próximo projeto do grupo, Aaron e Abe,
independentemente, resolvem ir atrás de tecnologias que alterem o peso de objetos.
Apesar do aparelho que construíram parecer funcionar como planejado, ele tem um
efeito colateral: um relógio deixado dentro do aparelho experienciou 1300 vezes mais
tempo do que quem estava do lado de fora. Abe teoriza que eles criaram uma máquina
do tempo.
Fotograma 6: Primer
91
Depois de alguns testes, Abe, secretamente, monta um protótipo grande o
suficiente para abrigar uma pessoa e, depois de viajar para mais cedo daquele mesmo
dia, relata os resultados a Aaron. Abe e Aaron criam mais uma máquina (mais tarde
chamada de “a caixa”) e decidem cortar Robert e Phillip da descoberta, com a mentira
de que a garagem precisa ser fumigada. Abe e Aaron começam a usar a máquina do
tempo para ganhar dinheiro na bolsa de valores, mas, conforme seu conhecimento de
como a máquina funciona evolui, eles começam a ser mais aventureiros em suas
viagens.
Seus experimentos são interrompidos pela presença inesperada de Thomas, o
pai da namorada de Abe, Rachel, cujo apoio financeiro o grupo buscava conseguir.
As viagens temporais de Thomas o deixaram em estado de coma e nenhum dos dois
engenheiros consegue entender como ele descobriu “a caixa”. Abe fica
particularmente perturbado com esses eventos e conclui que as viagens no tempo são
perigosas demais e não devem prosseguir. Ele tenta prevenir o seu “eu do passado”
para não usar a máquina do tempo, e assim tornar nulas todas as suas
consequências. Para fazer isso, constrói outra máquina, que pensa ser à prova de
falhas. Esta, ele construiu às escondidas para viajar para “um ponto antes” de sua
primeira viagem e antes também de seu debate sobre viagens temporais com Aaron.
Fotograma 7: Primer - Abe e Aaron
92
Abe viajou quatro dias no passado até o ponto de encontro e, sendo assim, ele
vai encontrar Aaron. Porém, Abe entra em colapso e desmaia. Depois que ele se
recompõe, Aaron revela que, sem o conhecimento de Abe, ele havia descoberto sua
máquina “à prova de falhas” e a usou para tomar o controle da situação. Aaron trouxe
consigo outra caixa, criando um falso ponto de encontro para fazer Abe crer que ainda
havia uma máquina à prova de falhas funcionando e esperando por ele. Assim, Abe
não conseguiu desfazer as ações de Aaron.
Aaron, então, revela que estava usando um gravador para recitar a conversa
de ambos de um período mais antigo. Ele explica como o encontrou, lutou e foi vencido
por uma versão dele mesmo que usou a máquina para voltar e fazer gravações, depois
de ter drogado o Aaron original. Porém, ele havia convencido sua outra versão de que
já que possuía as gravações feitas, poderia continuar a agir como Aaron. Essa versão
de Aaron, então, volta para o seu próprio tempo, deixando o “Aaron original” para
realizar seu plano de refazer os eventos de uma festa, em que um ex-namorado de
Rachel tenta disparar contra ela. Aaron a salvaria, sendo considerado um herói.
Fotograma 8 Primer - Abe e Aaron no armazém
93
Abe concorda em tentar alterar os eventos da festa e os dois conseguem fazer
isso (embora não fiquem claras quantas tentativas foram necessárias). Suas
decepções e suas diferentes visões de como usar a máquina do tempo, infelizmente,
destruíram sua amizade. O uso contínuo da máquina também causou danos
cerebrais. Aaron parece sofrer um derrame, quando sangue flui de suas orelhas. Mais
tarde, no filme, ele reclama que sua caligrafia está piorando e já não consegue mais
ler.
Abe alerta Aaron para que não tente mais interferir com seus dublês de outras
linhas temporais e parte para seu plano de impedir que ambos descubram a máquina
do tempo. Sua ideia é alterar as máquinas para que o primeiro experimento com o
relógio não funcione. Enquanto isso, o outro Aaron, o que voltou no tempo para
realizar as gravações, fala no telefone com um sujeito não especificado. O filme
termina com uma cena onde Aaron comanda um time de trabalhadores franceses na
construção do que parece ser uma versão tamanho prédio da “caixa”.
Fotograma 9: Primer - Abe e Aaron dirigem
94
4.2.2 Upstream Color
O filme começa com um homem (nós créditos chamado de “ladrão”) que parece
estar cultivando um tipo de larva com o objetivo de aproveitar-se dos estranhos efeitos
que ela tem sobre a mente humana, quando ingerida. O “ladrão” possui o que parecem
ser pupilos, que fazem chás com as larvas e exploram seus efeitos. Em uma boate,
Kris, a protagonista, é sequestrada pelo “ladrão”. Ele droga Kris com uma estranha
cápsula, induzindo-a a um estado de hipnose que deixa sua mente extremamente
sugestionável, o que o “ladrão” explora. Ele se utiliza de elaboradas distrações, como
por exemplo, fazendo-a criar uma corrente de papéis, onde cada pedaço contém
partes escritas do livro “Walden”. Tudo isso para distraí-la, enquanto ele executa seu
controle mental.
O “ladrão” a manipula para liquidar suas economias e também rouba uma
valiosa coleção de moedas raras. Através da hipnose, Kris é proibida de consumir
comidas sólidas. Ela só pode beber pequenas porções de água em intervalos
regulares, porções que ela é levada a crer que são incrivelmente refrescantes e
deliciosas. A cápsula administrada a Kris contém uma larva viva, encontrada entre as
folhas das especiais orquídeas azuis do “ladrão” – uma larva que está infectada com
uma lombriga que, mais tarde, também infecta o corpo de Kris.
Ela é liberta de sua suspensão de fome pelo “ladrão”, provavelmente para
incitar o crescimento da lombriga. Kris devora muitas refeições e cai no sono,
acordando em sua casa, depois, descobrindo muitas lombrigas se mexendo sob sua
pele. Kris tenta removê-las com uma faca de cozinha, porém, sem sucesso. Mais
Fotograma 10: Upstream Color
95
tarde, um fazendeiro criador de porcos (que tem como hobby coletar os sons da
natureza com aparelhagem de estúdio) - chamado de o “coletor” - atrai Kris para sua
fazenda usando infrassônicos que, por sua vez, atraem as lombrigas.
O “coletor”, silenciosamente, executa uma transfusão na qual ele transfere o
verme do corpo de Kris para o corpo de uma jovem porca. Kris acorda em uma
caminhonete, abandonada na estrada, sem memória de todos esses eventos
traumáticos. Quando chega em sua casa desorganizada, ela nota sangue no chão e
nos lençóis de sua cama e considera chamar a polícia. Kris percebe, porém, que não
tem informação nenhuma para dizer a eles e interrompe a ligação. Depois de limpar a
casa, vai para o trabalho, onde é demitida por culpa de sua inexplicada ausência. A
ida a uma loja revela a Kris que toda sua poupança se foi, roubada pelo “ladrão”.
Um ano mais tarde, Kris conhece um homem chamado Jeff (Carruth) em um
trem e, sem perceber, se conecta com ele, aparentemente em um nível telepático.
Kris e Jeff saem diversas vezes, antes de finalmente passarem a noite juntos. Logo
após, percebem que ambos têm cicatrizes idênticas, resultado das transfusões
esquecidas. Os dois logo entendem que possuem experiências similares. Jeff perdeu
seu emprego por ter mudado os fundos da companhia para encobrir dinheiro roubado
por ele. Já que não se lembra disso, Jeff atribui o incidente ao abuso de drogas.
Ao mesmo tempo, é deixado claro para o público que existe um paralelo entre
as emoções que Kris e Jeff andam sentindo e as de dois porcos, um dos quais possui
o parasita de Kris e um outro, que possui o parasita de Jeff. Por exemplo: Kris,
erroneamente, acha que está grávida, ao mesmo tempo que “sua” porca está, de fato,
Fotograma 11: Upstream Color - Kris e Jeff
96
prenha. Após consultar um médico, ela é diagnosticada com câncer de endométrio
que, aparentemente, foi removido com sucesso. Ela é informada que o suposto câncer
não é mais uma ameaça para seu corpo, mas deixou-a infértil. Isso tudo provém da
transfusão feita pelo “coletor”.
Este, descobre que a porca que contém o parasita de Kris está muito próxima
ao porco com o parasita de Jeff. O resultado foi que a porca deu à luz dois leitões. Ele
os joga em um saco, que atira em um rio. Este evento coincide com a cena em que
Jeff e Kris sentem um sentimento extremo de perda, frustração e tristeza. Ambos
agem como se algo terrível estivesse acontecendo a eles. Jeff, de livre e espontânea
vontade, arruma briga com dois colegas de trabalho, enquanto Kris revira a casa,
procurando algo que não perdeu.
Os dois, em seu estado de pânico, se reúnem e vão à casa de Kris, onde juntam
mantimentos, incluindo uma arma, e se abrigam na banheira do apartamento,
esperando o pior. Enquanto isso, o saco que contém os leitões é visto apodrecendo e
uma substância azul flui dos cadáveres dos leitões, enchendo as águas até a raíz das
plantas próximas. Plantas como as orquídeas que, com o tempo, se tornam do mesmo
tom azul, devido ao contato com a substância.
Fotograma 12: Upstream Color - Orquídea normal e orquídea infectada
97
As flores são coletadas por fazendeiros, que as vendem na vizinhança onde o
“ladrão” vive. Esses eventos parecem desencadear mudanças. Kris e Jeff começam
a lembrar as histórias pessoais um do outro como se fossem deles. Jeff descobre Kris
murmurando frases do livro “Walden” enquanto nada. E é nesse momento que os dois
passam a desvendar o que aconteceu a eles.
Em uma sequência parecida com um sonho, Kris, Jeff e o “coletor” sentam-se
em uma mesma mesa, em um quarto branco e vazio. Kris revela ao “coletor” que está
ciente sobre ele; e este cai no chão, com o que parece ser um ataque cardíaco. A
cena corta para a fazenda de porcos, onde Kris dá um tiro e mata o fazendeiro. Kris e
Jeff roubam da fazenda uma caixa cheia de anotações, revelando outras pessoas que
foram drogadas da mesma forma que eles.
Fotograma 14: Upstream Color - Kris tem uma visão
Fotograma 13: Upstream Color - Jeff e Kris começam a desvendar o caso
98
A dupla chama as outras vítimas, enviando as anotações e cópias de “Walden”
para cada uma delas. Todos se reúnem na fazenda e a remodelam, pintam suas
instalações e cuidam de seus porcos. Como resultado, mais nenhum porco é afogado
e as orquídeas no rio não se tornam mais azuis. O “ladrão” vasculha as floriculturas,
em vão, procurando suas orquídeas especiais. Não há mais larvas. A história termina
com Kris acariciando um leitão adormecido em seu colo. Como se, por um momento,
estivesse em paz.
4.3 ANÁLISE DE CONTEÚDO – FASE 2
Para a decupagem, foram escolhidas cinco cenas de cada filme. O critério para
a escolha de cenas foi o de que elas expressassem, de alguma forma, as marcas
pessoais de Carruth. Elas devem evidenciar os aspectos importantes de sua direção,
edição, atuação, roteiro e composição da trilha sonora. As cenas estão organizadas
na ordem cronológica em que aparecem nos filmes. Para melhor entendimento dos
enquadramentos e das terminologias usadas, segue uma pequena legenda61:
61 Site utilizado para definir os planos e enquadramentos de câmera. Disponível em http://www.primeirofilme.com.br/site/o-livro/enquadramentos-planos-e-angulos/ - Acessado em 01/11/2017
Fotograma 15: Upstream Color - Kris e o leitão
99
Close: a figura humana é enquadrada dos ombros para cima, ou então, apenas o seu
rosto.
Plano médio: a figura humana é enquadrada da cintura para cima.
Plano geral: ângulo visual bem aberto. A câmera revela o cenário à frente e a figura
humana ocupa espaço bastante reduzido na tela.
Plano americano: a câmera enquadra a figura humana do joelho para cima.
Plano detalhe: é o enquadramento de uma parte do rosto ou do corpo. Também
utilizado para destacar objetos, como uma caneta sobre a mesa.
Panorâmica: movimento de câmera da esquerda para a direita ou vice-versa, a partir
de um grande Plano Geral.
Passeio: câmera acompanha o movimento do personagem ou outra coisa que se
mova, na mesma velocidade.
Zoom: câmera aproxima-se do objeto (zoom in) ou afasta-se dele (zoom out).
Voice over: palavras que estão sendo ditas por alguém que não está sendo visto.
Fade: quando uma cena se desvanece na próxima, normalmente expressando a
passagem de tempo.
(’): minuto.
(’’): segundo.
100
4.3.1 Primer
Ano: 2004 Direção: Shane Carruth Produção: Shane Carruth Roteiro: Shane
Carruth Fotografia: Shane Carruth Música: Shane Carruth Montagem: Shane
Carruth Elenco: David Sullivan, Shane Carruth, Casey Gooden, Anand Upadhyaya,
Carrie Crawford, Samantha Thomson, Brandon Blagg Duração: 77 min.62
4.3.1.1 Cena 1: Mais Uma Noite de Quarta (45’’)
A cena começa com um zoom out da porta que dá acesso da casa para a
garagem. A trilha sonora é sensível, calma. Por essa porta, entra um homem, (Phillip),
distraído com um copo de café. Conforme o zoom out continua, percebem-se dois
homens (Aaron e Abe), mexendo com algum tipo de produto químico que produz muita
fumaça. Ambos usam máscaras.
ABE: Espere. Phillip, não vai querer vir até aqui. Phillip! Ponha uma máscara, certo?
Depois de tomar um gole do café, Phillip finalmente busca uma máscara,
enquanto Aaron e Abe continuam seu trabalho. O zoom out se encerra, enquanto a
62 Disponível em http://www.imdb.com/title/tt0390384/ - Acessado em 25/11/2017
Fotograma 16: Primer - Cena 1
101
cena se dissolve para um momento mais tarde por meio de fades. Nesse instante, os
quatro engenheiros (Robert se juntou a eles) estão reunidos, conversando sobre uma
mesa cheia de entulhos, circuitos e peças de metal. Não há nenhum som a não ser a
tocante trilha sonora.
Phillip alcança a Abe um sanduíche; alguns deles sorriem enquanto conversam.
Mais um fade e vê-se um momento ainda mais tarde da noite, com o portão da
garagem se fechando. A câmera continua a observar os personagens através das
janelas embaçadas do portão, agora totalmente fechado. Somente quatro retângulos
de imagem são vistos na cena, o resto é escuridão. O único som continua sendo a
trilha sonora, notas de piano bem pronunciadas. O zoom out recomeça. Lá dentro, os
amigos se movimentam, enquanto discutem ideias para projetos. Com uma última
nota de piano, o fade vai para o preto.
4.3.1.2 Cena 2: Filé ou Tacos? (45’’)
Abe acorda as 19h em seu apartamento, depois de trabalhar no projeto da
máquina do tempo até a completa exaustão. Aaron liga para Abe, fazendo pressão
para que saiam para comer algo. Um homem identificado apenas como “Brad” está
no sofá de Abe. A sequência começa com um plano geral de Aaron e Abe, andando
em direção à caminhonete de Aaron para guardar peças de uma geladeira.
Fotograma 17: Primer – Cena 2
102
AARON: Quanto tempo ele disse que ficaria?
ABE: Não muito.
AARON: Só acho que se ele tem problemas, ele precisa consertá-los. Você não é o
pai do cara.
ABE: Eu sei. Só pensei que seria legal fazer algo... caridoso.
AARON: Definitivamente é caridade. Pelo menos você admite isso.
Por alguns instantes, corta-se para um plano geral da parte dianteira da
caminhonete e dos protagonistas, de cima de um prédio. Agora, a cena alterna entre
plano médio de Aaron e Abe, enquanto conversam apoiados na caçamba da
caminhonete.
AARON: Ei. Está a fim de um filé? – Abe fica em silêncio - Para comer!
ABE: Não, não quero um filé. Vamos só pegar uns tacos no caminho à loja. Têm umas
coisas que eu quero tentar.
AARON: Está bem. Podemos pegar uns tacos no caminho, ou podemos comer um
filé mais tarde.
ABE: Do que você está falando? Eu não vou pagar por um filé.
Aaron fica em silêncio, esperando que Abe se dê conta de algum fato. Um fato
que mereça ser comemorado com filé. Aaron faz gestos com a cabeça, incentivando
Abe a encontrar a resposta.
ABE: Está estável? – Aaron dá tapas na caçamba da caminhonete e embarca no
assento do motorista - Aaron, está estável?
Termina com o plano geral de cima do prédio, mas agora, da traseira da
caminhonete, enquanto Aaron dá a partida no motor.
103
4.3.1.3 Cena 3: A & B (2’ 13’’)
Abe fez testes, colocando relógios, tanto analógicos quanto digitais, na
máquina do tempo. Ele conta suas descobertas para Aaron e insiste para que o amigo
também faça o experimento. A cena começa na garagem, plano detalhe da mão de
Aaron enquanto segura um alicate, abrindo-o e fechando-o, impaciente. A câmera
sobe para um close de seu rosto, enquanto ele olha, apreensivo, para o relógio na
parede. No decorrer de toda essa sequência em que os personagens conversam, são
usados diversos planos detalhe (ocasionalmente, alguns com zoom) para mostrar
suas mãos mexendo na caixa, nos relógios de pulso, colocando os relógios dentro da
caixa ou retirando-os e mexendo nos demais aparelhos e botões. Há também closes
em seus rostos. A edição é frenética.
ABE: Pensamos que estávamos diminuindo a gravidade, certo? Que estávamos
bloqueando essa informação. Mas acho que fazemos mais que isso, acho que
bloqueamos mais que isso. Você notou? Quando controlava a alimentação, notou que
era parabólica? Ei, é importante. Parábolas são importantes. Aqui, dê uma olhada.
AARON: Eu não sei Abe...
ABE: Agora vou ligar e deixar rodar por 60 segundos com nada dentro ok? Está vazia
dessa vez.
Fotograma 18: Primer - Cena 3
104
AARON: ... isso dá 22...
ABE: Em todas as equações que descrevem movimento, calor e entropia...
AARON: Só, só um minuto... um segundo.
ABE: Em todos os diagramas de Feynman, qual é a variável que pode virar negativa
e ainda dar respostas racionais?
AARON: Me dá um minuto!
ABE: Não é massa, não é...
AARON: 22 horas e 27 minutos na caixa.
ABE: É um número ímpar.
AARON: Quantos minutos é isso? São 1347 minutos.
ABE: Ok, é. 1347, cara, você pegou rápido.
AARON: Como sabia que seria ímpar?
ABE: Porque é assim. Isso é o que acontece: Tem uma ponta A e uma ponta B.
Digamos que a ponta A seja 12:00, e a ponta B seja 12:01. Certo? Ligamos a máquina
com o boneco na ponta A. Ele viaja para a frente...
Plano detalhe da mão de Aaron, enquanto ele apanha uma prancheta e mais
um, enquanto pega a caneta do bolso da camisa.
AARON: Você tem que anotar isso.
ABE: Aaron, não há nada para anotar.
AARON: Então eu vou anotar.
Seguem vários planos detalhe das anotações de Aaron, em sua maior parte
desenhos de parábolas e flechas levando a ponta A ou B para lá e para cá.
ABE: Certo. Ele viaja para a frente normalmente, em direção à ponta B. E quando
chega lá, a alimentação reduz parabolicamente até onde devia parar, mas não para.
Ela se curva novamente em direção à ponta A. E quando chega de volta em A... faça
uma curva aí. O boneco experimentou um total de 2 minutos, e novamente se curva...
AARON: Se curva de volta. Curva-se parabolicamente.
ABE: Certo, curva-se de volta novamente e faz isso umas 1300 vezes, e quando
finalmente sai na ponta B, já viajou um número ímpar de vezes para a frente e para
trás.
105
AARON: O que há de tão especial em 1300? Por que cerca de 1300? Por que não dá
exato? Isso não é empírico.
ABE: Me dá isso.
Plano detalhe da mão de Abe, apanhando um dos relógios de pulso que estava
em cima da mesa e colocando-o dentro da máquina.
ABE: Não sei por que não dá exato. Aí tem algum tipo de probabilidade. Cada vez
que chega na ponta B, há uma chance... uma pequena chance de que não se curve
em direção à ponta A. E por alguma razão, leva umas 1300 viagens até que aconteça.
Mas ele tem que sair, senão não poderíamos vê-lo depois. Certo, vamos dar uma
olhada nisso... - Ele retira o relógio de dentro da caixa - 22 horas e 14 minutos.
AARON: ... 1334 minutos.
ABE: Par.
AARON: Entra na ponta B... sai na ponta B.
Um plano detalhe de Aaron, fazendo o círculo com a caneta em suas
anotações. De B até B. Close no rosto de Abe, esbaforido.
106
4.3.1.4 Cena 4: Passo a Passo (3’)
Enquanto pensam em uma forma de ganhar dinheiro com a descoberta da
máquina do tempo, Aaron questiona o passo a passo para Abe, que já a usou uma
vez em si mesmo. A sequência parte de um plano geral dos dois personagens,
sentados na parte de fora de algum café, ao entardecer.
AARON: Por que não a loteria?
ABE: Podemos, se você quiser, mas só abre no sábado. E mesmo se ganharmos
todos os 10 milhões, são apenas 200 mil pelos próximos 30 anos.
AARON: Apenas?
ABE: E isso é apenas uma boa transação.
AARON: Alguns dias assim...
ABE: Eu só estava testando. Entrei e saí.
AARON: Quero fazer o que você fez, ok? Exatamente o que você fez.
Plano americano de uma manhã típica na casa de Aaron. Ele toma café e ajuda
a filha de uns cinco anos com a mochila. A partir de agora, todo o diálogo é em voice
over, já que se passa na parte de fora da cafeteria, enquanto as cenas são de algum
dia mais à frente.
Fotograma 19: Primer - Cena 4
107
ABE: Tá bom, a primeira coisa que fiz foi ligar para o trabalho, avisando que estava
doente.
AARON: Certo, eu fiz isso.
ABE: Depois, fui até o armazém.
AARON: Ok, mas tenho que deixar Lauren na escola primeiro.
Plano geral de Aaron e Abe, chegando em seus respectivos veículos. Cortes
rápidos, mas sem mudar o plano, mostram Aaron entrando no carro de Abe e ambos
saindo de cena. A trilha sonora é bem presente no restante dessa sequência. Uma
trilha composta por notas de piano, simples e tristes.
ABE: Então, me encontre lá. Vamos precisar dos dois carros. Temos que estacionar
o seu na estrada, fora da vista do armazém.
AARON: Por que estamos fazendo isso?
ABE: Precisamos de uma carona pra casa.
AARON: O que isso...
ABE: Fará sentido.
AARON: Tá, serei paciente.
Plano geral da parte de dentro do armazém. O portão é aberto e vê-se Aaron e
Abe de pé, do outro lado. Depois disso, diversos planos detalhe das mãos dos
engenheiros manuseando fitas, caixas e a máquina do tempo dentro do armazém.
ABE: Quando cheguei ao armazém, enchi a caixa com argônio e tive que ajustá-la
bem para tapar os vazamentos.
AARON: Têm vazamentos?
ABE: Sempre têm vazamentos. Às 8:30 da manhã ajustei o timer para 15 minutos,
entrei no carro e dirigi até Russellfield.
Plano médio de ambos no carro. Abe dirige.
AARON: Tá, me perdi.
ABE: Que foi?
108
AARON: Por que o timer?
ABE: Porque o momento que ligarmos aquelas máquinas será o momento que
sairemos delas e...
AARON: Certo. Entendi. Desculpe.
Plano detalhe da máquina, ligando.
ABE: ... não quero estar por perto quando fizerem isso. Enquanto eu estava na
estrada, às 8:45, a máquina ligou por conta própria e por volta de 8:49, já estava
completamente aquecida.
Volta para o plano geral de ambos, no carro. Plano americano de Abe e Aaron,
fechando as cortinas do quarto de hotel.
ABE: Em Russellfield, fui a um hotel e tentei me isolar.
AARON: Espera, o que quer dizer com “isolar”?
Plano detalhe de mãos, puxando tomadas de todos os tipos, da parede. Plano
médio de Aaron, fechando o armário da TV. Plano detalhe de Abe, colocando a placa
de “não perturbe” na porta do quarto.
ABE: Quero dizer que fechei as janelas, desliguei tudo no quarto, telefone, TV, relógio,
rádio, tudo. Não queria correr o risco de encontrar algum conhecido ou de ver algo
nos noticiários que pudesse... se estivermos lidando com casualidade, e... eu nem
tenho certeza de saber... eu só...
AARON: O quê?
Plano geral de ambos, em pé, no centro do quarto.
ABE: Me tirei da equação.
AARON: Errou por precaução.
ABE: Isso.
AARON: Então, o que você fez o dia todo?
109
Plano detalhe da parte de cima de uma mesa, enquanto os dois jogam objetos
por cima. Um baralho de cartas, dados e diversos jogos de tabuleiro.
ABE: Eu só sentei lá. Tinham uns livros, mas...
AARON: O quê? Estava nervoso?
ABE: É. É que é tão difícil tentar prever tudo.
Plano médio de perfil dos protagonistas. Ambos estão comendo sanduíches,
enquanto brincam com um jogo de palavras. Abe tenta pegar a sobremesa de Aaron,
que a toma de volta. Mas, no fim, aceita trocá-la pela de Abe. Aaron, brincando com
o jogo das palavras, fala na cena de fato, sem o voice over:
AARON: Evacipar! (Palavra fictícia, criada por Carruth, que quer dizer “desfazer
as consequências de suas ações, apagar a sua própria história”).
Plano geral dos dois, procrastinando, jogando bolinhas de papel no lixo e se
divertindo. Plano geral de ambos, saindo de uma loja com um tanque de oxigênio e
entrando no carro. O diálogo volta a ser em voice over.
ABE: Às 14:30, passei na Suprimentos Médicos Williams e peguei um tanque de
oxigênio classe E e uma máscara. Liguei para minha companhia de investimentos e
perguntei quais ações em seu fundo tiveram a maior porcentagem de lucro no dia. A
ideia era apenas obter informações suficientes para uma boa transação.
A câmera os segue, em plano geral, visto de cima, enquanto caminham por
uma biblioteca.
AARON: Quando formos, podemos apenas baixar os dados e fazer transações em
cada movimento?
ABE: É, mas se fizermos isso, quero usar a biblioteca, em Russellfield. Usar os
computadores deles.
A cena retoma para o plano médio dos engenheiros dentro do carro e depois,
corta para um plano geral dos dois, andando pelos corredores do armazém.
110
4.3.1.5 Cena 5: Herói (1’ 37’’)
No decorrer do filme, em alguns momentos, escuta-se a narração de Aaron,
como se estivesse falando ao telefone com alguém. Sendo assim, o diálogo dessa
cena é feito totalmente por voice over. Aaron e Abe, após uma discussão, resolvem
voltar no tempo para remodelar os acontecimentos de uma festa em que a namorada
de Abe, Rachel, foi quase morta por um ex-namorado, que invadiu, armado, uma festa
que ela estava dando. A sequência é repleta por planos gerais, detalhe, closes e
planos médios. A sala da casa está cheia de convidados, que conversam e bebem.
Os únicos sons que se ouvem são os da narração de Aaron e da trilha sonora, baixa
e misteriosa, com notas sutis de piano e violino.
AARON: Posso dizer, com certeza, o que fiz naquela noite, quando era a minha vez.
Mas acho que não ajudaria, porque o que o mundo se lembra, a realidade, a última
revisão, é o que conta, aparentemente. Então, quantas vezes Aaron levou... enquanto
fazia o ciclo das mesmas conversas, a fazer a trivial sincronização labial de novo e de
novo. Quantas vezes seriam necessárias até que ele conseguisse fazer direito? Três?
Quatro? Vinte?
Fotograma 20: Primer - Cena 5
111
Plano americano de Aaron, conversando em diversos círculos de pessoas,
sorrindo e cumprimentando-as. Corta para um plano médio de Aaron e Abe na
cozinha, observando o ex-namorado de Rachel entrar na casa, transtornado. A
câmera, rapidamente, alterna entre closes do ex-namorado, Rachel, Abe e Aaron.
AARON: Decidi acreditar que só mais uma bastaria. Quase posso dormir de noite se
só tiver mais uma. Lenta e metodicamente, ele reconstruiu um momento perfeito. Ele
pegou de suas redondezas o que lhe era preciso e transformou em algo mais.
Plano americano de Aaron e Abe do lado de fora da casa, na escuridão. Abe
apanha um pé de cabra, o enrola em um pano e ameaça quebrar a janela do carro do
ex-namorado. Aaron o impede, para mostrar que a porta nem estava trancada.
Diversos planos detalhe mostram os dois, vasculhando o veículo até encontrarem a
espingarda. Aaron retira as balas.
AARON: E uma vez que os detalhes haviam sido arranjados com sucesso, não
haveria mais nada a fazer, a não ser esperar pelo conflito.
O ex-namorado, suficientemente bêbado, começa a brigar com Rachel em
plano médio. Plano americano de Aaron e Abe fingindo uma conversa, enquanto o ex-
namorado sai da casa para buscar sua arma.
AARON: Talvez o esperado debate moral do último minuto até que o barulho na sala
aumentasse até virar em pânico e em gritos ao fundo enquanto o atirador entra. E,
eventualmente, ele deve ter conseguido perfeitamente e deve ter sido lindo. Com
todos os elogios e adoração que teria. Ele provavelmente tinha salvo vidas, no fim das
contas.
Um plano geral da sala (cena do fotograma 15, onde Abe e Aaron estão
conversando e o atirador é posicionado entre os dois). Enquanto as pessoas gritam e
apontam para o atirador, Aaron se vira e caminha em sua direção, calmamente.
AARON: Quem sabe o que teria acontecido se ele não estivesse lá?
112
A sequência termina com um plano geral em panorâmica da parte da frente da
casa. As luzes de seu interior fazem contraste com a escuridão da noite.
4.3.2 Upstream Color
Ano: 2013 Direção: Shane Carruth Produção: Shane Carruth Produtores
associados: Casey Gooden, Ben Leclair, Scott Douglass Roteiro: Shane Carruth
Fotografia: Shane Carruth Música: Shane Carruth Montagem: David Lowery e
Shane Carruth Elenco: Amy Seimetz, Shane Carruth, Andrew Sensenig, Thiago
Martins Duração: 96 min.63
4.3.2.1 Cena 1: Sincronia (4’)
Antes de mais nada, se ouve a trilha sonora com o fundo preto. Uma música
emocionante. Em plano detalhe, o sol da manhã ilumina sacos de lixo repletos de
correntes. Cada um de seus elos, feito de papel. A câmera acompanha os pés do
homem (“ladrão”) que está jogando fora os sacos de lixo. Dois meninos o seguem de
suas bicicletas em plano geral. A trilha não para por nenhum segundo, o ritmo do piano
aumenta e diminui, suavemente. Um sussurro indecifrável percorre a cena, enquanto
mostra o close de um dos meninos. Corta para o homem, dirigindo o carro em plano
médio.
63 Disponível em http://www.imdb.com/title/tt2084989/ - Acessado em 25/11/2017
Fotograma 21: Upstream Color - Cena 1
113
O “ladrão” chega a seu destino, uma floricultura. A trilha ganha força. Neste
momento, muitos cortes, todos em plano detalhe. As costas do homem. Seu rosto à
procura de algo. Seus dedos percorrem as folhas das plantas, sentindo a textura. Seus
olhos parecem encontrar o que procurava. Plano detalhe do homem retirando seu
canivete do bolso. Ele raspa, com a lâmina, a folha da planta, para ter certeza. Um
pigmento azul é extraído, confirmando que essa é a flor que procura. Ele retira um
pouco de terra do vaso e, em sua palma, encontra vermes no meio da terra. Plano
americano do homem, levando muitas dessas flores na caçamba de sua caminhonete.
Quando chega em casa, plano detalhe do homem, enquanto abre algumas
flores, revelando uma tonalidade azul dentro de suas pétalas. Em seguida, em plano
médio, queima todas as plantas, mantendo somente a terra dos vasos. Plano detalhe,
mostrando que ele usa a peneira, até pegar os vermes que aparecem, um a um. Ele
os leva para o quarto, em plano médio, e os analisa cuidadosamente, colocando-os
na palma da mão e, em seguida, em potes de vidro.
Ele os separa em dois potes distintos. A trilha diminui um pouco o ritmo e a
cena corta para um dos meninos (menino 1), andando de bicicleta em plano geral. Ele
chega a uma casa, onde encontra um rapaz (menino 2), que entrega um copo cheio
de uma substância escura para outro garoto (menino 3). Este a ingere e devolve o
copo. O outro rapaz enche o copo novamente e ingere a bebida também. Em um close
de seus pés, percebe-se que ficam de frente, um para o outro.
MENINO 2: Feche os seus olhos. Feche-os.
Ele passa a mão pelos olhos do garoto e fica ao seu lado, também fechando os
olhos. Ambos levantam o braço em perfeita sincronia, mesmo com os olhos fechados.
Fazem os mesmos gestos com a mão. Enquanto isso, o menino da bicicleta os
observa.
MENINO 2: Você vê por quantos tem que passar para conseguir um bom?
O garoto está ensinando o menino 1 e se refere aos vermes que está
analisando em potes de vidro. Ele põe um deles em um coador e prepara um chá.
Corta para a água do chá se enchendo com pigmento azul. Corta para o que parecem
ser bolhas dentro do chá, que vão estourando, uma a uma. O rapaz termina a bebida
114
e prepara mais uma para o menino da bicicleta, enquanto um homem os observa da
entrada do quarto. Corta para ambos os rapazes em uma espécie de garagem.
MENINO 2: Você está pronto?
MENINO 1: Não.
O homem os observa do lado de fora da casa, enquanto o menino 2 tenta dar
um soco no menino 1, que o bloqueia com graça, mesmo olhando para o lado. A trilha
sonora ganha força. Os dois garotos começam a bater as mãos e se empurrar,
suavemente. Seus movimentos, em perfeita sincronia.
4.3.2.2 Cena 2: Estorninhos (4’ 43’’)
Por culpa dos parasitas que habitaram seus corpos e das experiências
traumáticas que sofreram, Jeff e Kris começam a embaralhar suas próprias memórias.
Eles chegam ao ponto de trocar suas memórias e não saberem mais de quem é o
quê.
Kris e Jeff estão dentro do carro. Um close de perfil alterna entre ambos os
personagens, enquanto acontece um voice over da cena seguinte.
KRIS: Há... há uma direção em que você se sinta... que você está mais inclinado a
seguir?
JEFF: Eu não sei. Há uma que você se sinta mais inclinada a seguir?
Fotograma 22: Upstream Color - Cena 2
115
A cena muda para um plano americano das costas dos dois personagens. Eles
pararam o carro e estão decidindo para qual lado de uma bifurcação devem seguir a
pé.
KRIS: Eu digo direita.
JEFF: Esquerda.
KRIS: Tem certeza?
JEFF: Não. Então, vamos para a direita. Eu vou para onde você for. Você sabe disso.
KRIS: Eu sinto como se você soubesse.
Enquanto os personagens conversam, eles se dão as mãos. Um plano geral
mostra que já não estão mais de mãos dadas e parecem perdidos. Eles permanecem
em silêncio, enquanto observam a bifurcação.
A partir de agora, a cena é editada de forma que muitos locais e planos são
mostrados, a maioria durando apenas alguns segundos. Com isso, notam-se
fragmentos das conversas dos protagonistas, uma conversa que se complementa e
faz parte de um assunto maior. A trilha sonora é sensível e tranquila.
QUARTO DE HOTEL – DIA
JEFF: Devíamos fazer uma viagem.
INTERIOR DE UM CARRO – NOITE
JEFF (VOICE OVER): Ir para algum lugar.
QUARTO DE HOTEL – DIA
KRIS: Para onde nós iríamos?
JEFF: Algum lugar claro.
Ambos se beijam, brevemente. Um plano detalhe de suas mãos, enquanto
andam pela bifurcação. Um plano médio os mostra em uma rua, à noite, conversando,
rindo e se beijando. Plano médio das costas desfocadas dos personagens, enquanto
eles observam uma árvore repleta de pássaros, ao crepúsculo.
116
KRIS: Eles poderiam ser estorninhos. – Ela bate palmas e espanta os pássaros da
árvore.
RUA - CREPÚSCULO
KRIS: Quando eu era pequena, meu amigo Renny ia me visitar. E eu ficava brava
porque toda vez que minha mãe ia fazer biscoitos...
JEFF: Eu conhecia um garoto chamado Renny...
KRIS: Ele comia todos...
JEFF: Esse garoto gordo.
KRIS: Ele era gordo, meu vizinho Renny. Eu que te contei essa história.
Um plano geral do banheiro. Enquanto Kris maquia seus olhos, Jeff a observa.
KRIS: Não parece uma melhoria?
JEFF: Está bem melhor.
KRIS: Muito melhor, né?
JEFF: Eu achei.
Close de perfil de ambos, comendo comida chinesa em um restaurante e, logo
após, corta para a cena anterior, com os dois observando os pássaros.
JEFF: Quem disse que eles eram grackles? (Espécie de pássaro preto).
KRIS: Grackles. Eles poderiam ser estorninhos.
RUA – CREPÚSCULO
KRIS: Aí eu estava bem ansiosa para ir nadar.
JEFF: Sim.
KRIS: E ele nem teve a chance de me contar que tinha cocô de pássaro por todo o
escorregador, então eu desci mesmo assim.
JEFF: Espera.
KRIS: Renny.
JEFF: Certo.
KRIS: Meu vizinho. Você, você está fazendo de novo! (Risos)
JEFF: O garoto quase me afogou!
117
Enquanto os personagens conversam em seu quarto de hotel, a cena “pula”
por várias imagens. Plano geral de ambos, levando mobília para dentro de uma casa;
plano americano de Jeff em algum quarto; plano detalhe de uma antiga TV; close dos
personagens, rindo, à noite, enquanto caminham pela rua; o banheiro onde Kris se
maquia e o quarto de hotel onde está ocorrendo, de fato, a conversa.
JEFF: Nós devíamos fazer uma viagem. Ir para algum lugar.
KRIS: Para onde iríamos? Para Vermont? Aquele lugar que você conhece?
JEFF: Talvez.
KRIS: Como se chega lá?
RUA – CREPÚSCULO
KRIS: Renny costumava nos visitar e comer todos os biscoitos de chocolate.
JEFF: Não, não, não. Estou falando de outro Renny. (Risos)
KRIS: Renny é o meu amigo! (Risos)
JEFF: Com a piscina e o escorregador.
KRIS: Com a piscina e ele tentando me afogar, sim! Eu te conto uma história, então
você a pega e faz como se fosse sua. Você faz isso o tempo todo.
HOTEL - DIA
KRIS: Como você chega lá? No lugar onde você e sua família iam passar as férias,
em Vermont.
JEFF: Você dirige, Kris.
KRIS: Que estrada você pegaria?
JEFF: Eu teria que arranjar um mapa.
KRIS: Você não se lembra?
JEFF: É só uma estrada qualquer do interior. Eu tinha seis anos.
KRIS: Não. Eu tinha seis anos.
BANHEIRO - NOITE
KRIS: Eu te contei aquela história.
JEFF: Não, você não contou, não.
KRIS: Sim, ele me segurou embaixo d’água, lembra? Ele me segurou embaixo.
118
RUA - NOITE
KRIS: Então, eu não tenho permissão para falar sobre a minha infância? (Raiva)
JEFF: Fale o quanto quiser, só não fale da minha.
KRIS: Você acha que é a sua infância?
COZINHA - DIA
JEFF: E quanto ao trampolim? Com o Mick? (Raiva)
KRIS: Não, essa é sua. Essa é sua.
JEFF: Ah, essa é minha? Uau, obrigado por isso. E quanto ao Renny?
KRIS: Não.
JEFF: Que quase me afogou. Depois mentiu para a minha mãe sobre isso.
KRIS: Não, essa é minha.
JEFF: Ah, essa é você, claro. Ok.
KRIS: Isso aconteceu comigo! (Raiva)
JEFF: Kris!
RUA - NOITE
KRIS: Não só isso, mas você também está querendo me dizer que... – Homem
assobia, chamando a atenção dos dois por estarem brigando alto demais. Kris e Jeff
sorriem. Jeff olha para Kris, ainda sorrindo.
A cena final é com o mesmo plano das costas dos personagens, enquanto
observam os pássaros voarem da árvore, ao entardecer.
JEFF: Eles poderiam ser estorninhos.
KRIS: Eles poderiam ser estorninhos.
119
4.3.2.3 Cena 3: Conexão (1’ 10’’)
Os porcos que contêm o parasita de Jeff e Kris tiveram seus filhotes mortos
pelo “coletor”. A dor e desespero dos porcos se reflete em Jeff e Kris, mesmo que eles
não saibam o por quê se sentem daquele jeito.
Um plano geral mostra o carro de Jeff, subindo o meio fio da casa de Kris e
entrando, apressadamente, na garagem aberta. Plano médio das costas dos
protagonistas dentro do carro, Jeff está dirigindo. Diversos cortes rápidos, todos em
plano detalhe, evidenciam os personagens saindo, atrapalhados e apressados, do
carro, em direção à casa. Kris se atrapalha com as chaves, mas consegue, enfim,
abrir a porta. Ambos vasculham a casa, freneticamente. Plano detalhe em zoom de
uma tigela com frutas. Ambos vasculham a casa, freneticamente. Plano detalhe em
zoom de garrafas d’água. Ambos vasculham a casa, freneticamente. Plano detalhe
em zoom de uma bandeja com kit de primeiros socorros. Ambos vasculham a casa,
Fotograma 23: Upstream Color - Cena 3 (arte do pesquisador)
120
freneticamente. Plano detalhe em zoom de uma grande lanterna. Ambos vasculham
a casa, freneticamente. Plano detalhe em panorâmica de uma arma em cima da cama.
Plano detalhe de seus pés, correndo em direção ao banheiro. A câmera os
segue e eles fecham a porta. Corta para um plano geral, enquanto a câmera passeia
em direção a Jeff e Kris, abraçados, dentro da banheira. Mantimentos diversos estão
empilhados ao lado, juntamente com um machado. As luzes estão apagadas, mas
eles deixaram a grande lanterna acesa. Jeff fecha a cortina da banheira. Plano médio
de ambos em seu casulo, enquanto Kris abraça Jeff. Close de seus rostos. Jeff está
pensativo e Kris parece ter adormecido. Plano geral dos dois, deitados, entrelaçados
dentro da banheira. Enquanto Jeff fecha os olhos, Kris os abre e olha, apreensiva,
para o nada. Corta para close da face de dois porcos. Eles estão com um olhar
cansado e triste, suas faces encostadas uma na outra. Os porcos fecham os olhos.
4.3.2.4 Cena 4: Descoberta (3’ 53’’)
Esta é a sequência em que Jeff e Kris percebem estar conectados, de alguma
forma, ao livro “Walden”. Ambos sabem todos os versos e começam a se lembrar dos
eventos traumáticos pelos quais passaram. A cena abre com um close das costas de
Kris, enquanto ela está nadando na piscina de um ginásio, à noite. Sem foco, Jeff
aparece na outra ponta, carregando consigo o livro “Walden” e um saco de pedras.
Plano detalhe dos pés de Jeff, subindo os degraus que levam para a beira da
piscina. Um plano médio o mostra, deixando as pedras embrulhadas caírem no fundo
da piscina. Plano detalhe das pedras, caindo e afundando. Close de Kris, inspirando
Fotograma 24: Upstream Color - Cena 4
121
fundo e mergulhando para buscá-las, uma a uma (passatempo que ela costuma
adotar quando nada sozinha). Plano médio de Kris embaixo d’água, nadando em
direção às pedras.
A sequência a seguir, novamente conta com inúmeros cortes rápidos, em sua
maioria planos detalhe. Jeff lê algum verso aleatório do livro e quando Kris volta das
profundezas para deixar uma pedra na borda da piscina, continua ou termina o verso.
Quando ela volta a mergulhar, Jeff lê mais algum trecho.
JEFF: Economia. Quando eu escrevi as seguintes páginas, ou melhor, a maior parte
delas, eu vivia sozinho na floresta, uma milha de distância de qualquer vizinho, em
uma casa que eu mesmo construí, na costa de Walden Pond. E meu ganha pão era o
trabalho que eu fazia com minhas próprias mãos, e apenas isso...
KRIS: ... eu vivi lá por dois anos e dois meses. Atualmente, sou novamente um
passageiro temporário da vida civilizada.
JEFF: Ele ouviu um som baixo e distante, porém grandioso e impressionante.
Diferente de qualquer coisa que ele já tenha ouvido...
KRIS: ... gradualmente aumentando e ficando mais forte...
JEFF: ... como se fosse ter um final universal e memorável...
KRIS: ... um rugido mal-humorado e apressado.
JEFF: Os raios que aparecem através da persiana...
KRIS: ... não serão mais lembrados quando a persiana for removida.
JEFF: As melhores qualidades de nossa natureza...
KRIS: ... como o florescer das frutas, podem ser preservadas.
JEFF: Um rio correndo naquela direção, através de um vale arborizado...
KRIS: ..., mas não havia nenhum rio.
JEFF: Estou contente por ter bebido água por tanto tempo...
KRIS: ... pela mesma razão pela qual prefiro o céu natural.
Kris termina de buscar as pedras. Close do rosto de Jeff, pensativo. Close no
rosto de Kris, enquanto se prepara para mergulhar mais uma vez. Plano médio de
Kris, embaixo d’água, e algo a surpreende. Planos detalhe em zoom de orquídeas
submersas e amarelas. Porém, dentro de suas pétalas, há uma estranha tonalidade
azul. A trilha sobe, emocionante. Kris estende a mão para um dos ramos de flores e
conforme vai se aproximando, a trilha cresce, aumenta o volume com notas de piano
122
e sintetizadores. Quando Kris aperta as flores, corta para flashes de um outro lugar.
Isso a assusta, ela recua a mão. Passado um momento, ela aperta as flores
novamente, e de novo e de novo. A cada apertão, sons altos e indistintos são seguidos
por flashes de algum lugar; planos detalhe que giram, enquanto a câmera se aproxima
e faz o foco: um galho, uma pedra, um riacho, folhas, são imagens de uma fazenda.
Kris fita as orquídeas uma última vez e passa seus dedos delicadamente pelas
pétalas, antes de voltar à superfície.
4.3.2.5 Cena 5: Tudo Está Bem (1’ 15’’)
Após o “coletor” ser morto e a fazenda restaurada por todos aqueles que foram
vítimas tanto do “ladrão”, quanto do “coletor”, o ciclo das orquídeas azuis foi quebrado.
Plano médio do “ladrão” em uma floricultura. Ele observa, apreensivo, toda a
floricultura. A trilha é calma e tocante. Muitos planos detalhe de seus dedos, passando
pelas folhas para sentir a textura, procurando na terra dos vasos. Um de seus pupilos,
o menino 1, está ajudando o “ladrão” a procurar, levando alguns vasos até ele. Close
de perfil do “ladrão”, enquanto ele raspa, com seu canivete, a folha de uma planta.
Porém, desta vez, o pigmento azul não aparece. Ele balança a cabeça negativamente,
desolado.
Corta para a fazenda, com a luz da manhã iluminando alguns leitões em plano
geral. A trilha é contínua, forte, porém tranquila. Em plano americano, vê-se Kris
sentada no chão de um dos viveiros, observando os leitões. Close em um dos leitões.
A câmera segue sua face feliz, enquanto ele é erguido por Kris. Ela aproxima seu
Fotograma 25: Upstream Color - Cena 5
123
rosto do dele e faz barulhos inaudíveis com a boca, como se estivesse contando uma
história para uma criança. Em plano médio, ela beija o leitão suavemente e o põe para
descansar em seu ombro. Em close, ela o nina lentamente, enquanto ele começa a
adormecer. A trilha é calma e poderosa. A câmera se move do leitão para o rosto de
Kris, em paz.
4.4 ANÁLISE DE CONTEÚDO – FASE 3
Nesta fase, será analisado o estilo de Carruth ao fazer seus filmes, focando-se
em sua direção, edição, atuação, escrita (roteiro) e composição da trilha sonora. Cada
uma das categorias (exceto a da direção, onde já houve o terceiro capítulo dessa
monografia) terá uma pequena nota de rodapé para contextualização. Serão feitas
conexões com os capítulos anteriores, juntamente com as cenas decupadas. Algumas
informações complementares de entrevistas, que esclarecem ainda mais o estilo
quase desconhecido do artista, serão acrescidas.
4.4.1 Direção
Ao contrário de Primer, Upstream Color é muito abstrato. Na entrevista para
Indiewire (2013), Carruth salienta que seus filmes não têm explosões ou tiroteios, mas
apresentam um pequeno e atraente quebra-cabeças que ele espera que o público
queira desvendar. Carruth explana que seu planejamento quanto à cinematografia é
juntar praticidade, o isolamento dos personagens e uma experiência subjetiva, sem
ter que se apoiar em planos de POV (point of view64). Quando uma cena muda, a
música muda com ela e esses dois elementos, segundo o diretor, equilibram o roteiro.
Upstream Color é filmado com pouca profundidade de campo, o que deixa
todos os objetos e pistas visuais em extrema evidência. Por meio de closes táticos,
Upstream Color lhe ensina como assisti-lo. Essa pode ser considerada uma das
marcas de Carruth: guiar o público para assistir seus filmes de uma certa maneira. E
ele faz isso de uma forma mais veemente que muitos outros diretores. Na entrevista
64 Ponto de vista (Tradução do pesquisador)
124
à organização Film Society of Lincoln Center (FSLC) (2013)65, Carruth explica que se
utilizou de pouca profundidade de campo justamente pelo filme tratar de aspectos tão
naturais, como plantas e solo. Ele queria trazer essas texturas para a obra. Podem
ser traçados paralelos a Boyle (visto no Capítulo 3), que também possui essa
característica, de querer que o público “sinta” a cena enquanto a assiste.
Muitos aspectos da história são comunicados sem diálogo, como se pode
perceber na decupagem. Na entrevista para a revista Interview (2013), Carruth afirma
que para cada emoção que a personagem Kris sentia, ele se utilizava de diferentes
técnicas de câmera. Em seus momentos calmos ou “normais”, planos simples,
comuns e fixos. Nos sentimentos subjetivos, o diretor explica que precisava se utilizar
de toda ferramenta não-verbal que conseguisse. Planos mais criativos e fragmentados
foram usados para tentar expor esses sentimentos.
Na entrevista à FSLC (2013), o diretor afirma que todas as cenas da
cinematografia existiram em storyboard. O storyboard sempre servia como o plano
“A”. Quando os enquadramentos do plano previsto não funcionavam, só restava o
improviso.
A evolução da direção de Carruth fica evidente de um filme para o outro. A
primeira mudança que se nota é a qualidade da imagem. Em Primer, por causa do
equipamento semiprofissional, é possível perceber muito ruído nas imagens,
especialmente à noite. Mas, um dos aspectos consistente em seus dois filmes são os
enquadramentos, precisamente planejados. Quase cada plano poderia funcionar
como uma pintura. Carruth tem a sensibilidade, a paciência, a criatividade e a
preocupação de apresentar suas obras do jeito mais esteticamente atraente possível.
Tudo isso é muito semelhante ao modo, mencionado no Capítulo 3, como Wes
Anderson forja suas cenas, sendo cada detalhe cuidadosamente pensado, embora,
no caso de Carruth, com um pouco menos de simetria. Cenas como “Estorninhos”,
“Passo a passo”, “Descoberta” e “Tudo está bem” demonstram exatamente essa
marca pessoal do diretor.
Na cena “Conexão”, em Upstream Color, nota-se a criatividade do diretor.
Enquanto os personagens reviram a casa, mostra-se, em evidência o próximo item
importante que eles vão, eventualmente, pegar. Carruth dá, de modo visual, pistas do
que vai acontecer na cena e cabe ao público completar os eventos, mesmo que
65 Entrevista concedida a Film Society of Lincoln Center em 06/04/2013 Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=5cjq_Lb2F2I – Acessado em 02/11/2017
125
subconscientemente. Carruth se utiliza de diversos planos e enquadramentos para
contar suas histórias, mas um que predomina nas duas obras analisadas é o plano
detalhe. Em quase todas as cenas de seus dois filmes, o plano detalhe é
predominante, normalmente combinado com uma edição rápida – e por vezes
frenética.
Além disso, todas as cenas contam com um esforço consciente de promover
planos inusitados. O melhor exemplo seria o da cena “Filé ou tacos? ” onde se
posicionou a câmera em cima de um prédio para serem usados míseros segundos a
fim de compor a cena. Ao final de Upstream Color, “Tudo está bem” é possivelmente
a melhor cena, visto que engloba todos os aspectos da direção de Carruth e todos se
complementam perfeitamente. A resolução positiva, com Kris segurando o leitão, a
atuação singela da atriz Amy Seimetz, e a trilha sensível e reconfortante. “Ao mesmo
tempo em que a cena é pacífica, o contexto geral é terrível. Kris não poderá ter filhos
e os seus leitões nunca retribuirão seu amor da mesma forma” (CARRUTH, 2013). A
cena demonstra apenas uma felicidade passageira. Uma paz que não durará por
muito tempo. Isso condiz com uma das marcas do diretor, exemplificada pelo que
Carruth disse à revista Paper (2013): “eu não acredito em finais”.
Como o diretor filmou as cenas de Primer com apenas um take cada para
poupar tempo e dinheiro (similar a como Anderson costuma filmar suas obras, como
foi visto no Capítulo 3), quando havia algum erro (de continuidade, por exemplo), isso
resultava em horas de edição extras para consertar. É importante ressaltar o quão
absurdo ou incrível isso é, para um diretor em seu primeiro filme, fazer todas as cenas
na primeira tentativa e se auto-ensinar edição logo após. O já mencionado no terceiro
capítulo, Ed Wood, era um diretor “profissional” que tinha o costume de filmar suas
cenas apenas uma vez. O resultado eram filmes terrivelmente mal feitos, com erros
de continuidade grotescos. Isso mostra que Carruth tem um talento natural para o
cinema.
Pode-se dizer, de acordo com o segundo capítulo dessa monografia, que a
direção de Carruth é extremamente autoral. Ele, como diretor, tem total controle
criativo em relação a suas obras. Porém, isso se deve ao fato de que ele também é o
roteirista, editor, etc. de seus filmes. Foi visto que a Nouvelle Vague consistia na
proposta de filmes mais pessoais e baratos, não atrelados a grandes estúdios.
Dependendo do ponto de vista, ele também se encaixa em todas as teorias contrárias
a do cinema autoral ou ainda, nenhuma se aplica a ele. Observou-se, por exemplo,
126
que a crítica Pauline Kael afirmava que o autor seria o roteirista e não o diretor. No
mesmo Capítulo 2 é dito que o cinema autoral de hoje em dia pode ser considerado
aquele que origina os filmes mais voltados para expressões artísticas, sejam
alternativas ou independentes.
Ainda no Capítulo 2, Astruc (1948) afirma que para um diretor ser considerado
autor, ele precisa ser o roteirista e essa distinção entre as duas áreas não faz o menor
sentido. Carruth, novamente, se encaixa nesta definição de autor, já que escreveu
todos os filmes que dirigiu. No Capítulo 3, Vargas (2014) se utilizou de Brandestein
para afirmar que um filme é um esforço coletivo. No mesmo capítulo, Scorsese (2004)
demonstra sentimentos parecidos ao expressar que o diretor é o membro de uma
equipe e não um poeta solitário. No segundo capítulo, também se viu que Demiray
(2014) acredita que, ao contrário das artes pessoais, como pintura ou literatura, o
cinema é uma arte feita por um time. Demiray ainda questiona qual estilo predomina
em uma obra fílmica: se é o do diretor, o do roteirista, o do produtor, o do editor.
Carruth, apesar de contar com uma pequena equipe, faz seus filmes praticamente
sozinho. Nesse sentido, fica muito próximo de um pintor, que cria sua obra do início
ao fim e o único estilo que predominará, ao final, é o seu próprio.
Ainda no segundo capítulo, Faria e Pereira (2015) comentam sobre a política
dos autores da Nouvelle Vague, que consistia na ideia da subjetividade do diretor na
obra, fazendo com que a “genialidade” viesse exclusivamente dele. As autoras dão o
exemplo de Bergman, Felini e Truffaut, que possuíam trabalhos tão distintos e
controlados do início ao fim, que foram logo considerados autores. As pesquisadoras
frisam que criar e manter um estilo reconhecível se transformou na característica
definitiva e no objetivo para qualquer aspirante a Cinema Autoral. Com isso, não há
dúvidas que Carruth pode ser considerado um autor.
No Capítulo 3, Rabiger (2007) elucida como uma mise-en-scene é importante
para distinguir um cineasta de outro. No mesmo capítulo, Scorsese (2004) afirma que
em uma produção cinematográfica, quanto menos dinheiro, maior é a liberdade.
Carruth, conhecido por seus filmes de baixíssimo orçamento, se utiliza de toda a
liberdade possível para forjar sua mise-en-scene peculiar. Esta poderia ser
considerada mais uma marca pessoal do diretor, embora ela pareça ser provisória,
pois seu próximo filme indica um grande orçamento. Apesar disso, provavelmente, a
liberdade continuará lá.
127
O diretor/autor parece se encaixar no que Scorsese (2004) chama de
“iconoclasta”, no Capítulo 3. Scorsese (2004) afirma admirar os diretores, visionários,
desbravadores e renegados, que desafiam abertamente o sistema e expandem as
barreiras da arte. Também no terceiro capítulo, Blanco (2010) salienta que a marca
pessoal é importante, pois uma boa reputação traz bons relacionamentos. Ele ainda
diz que cada pessoa pode ser uma marca. Carruth encontrou muito sucesso em suas
duas obras, isso parece lhe ter rendido boas relações, visto que seu terceiro filme
supostamente conta com um grande orçamento e artistas de renome.
Por trabalhar em praticamente todas as áreas de suas obras, Carruth remonta
aos diretores do passado, como visto no Capítulo 3, onde era mais comum esse tipo
de prática. É impossível deixar de traçar comparativos com Charlie Chaplin, também
comentado no terceiro capítulo como um dos únicos artistas a se equipararem a
Carruth no quesito do controle total sobre suas obras. Chaplin também dirigia,
escrevia, estrelava, editava e compunha a trilha de seus filmes. No mesmo capítulo,
Weissman (2008) questiona de quem é a “psique” que um filme expressa: se é do
diretor, do escritor, etc. Weissman (2008) acredita que a maioria dos filmes não é apta
a uma análise psicanalítica profunda. Mas, este não é o caso de Chaplin, nem de
Carruth. O que condiz com a já mencionada, entrevista à Dazed (2013): quando se
analisa seus filmes encontra-se algo verdadeiramente próprio “por trás”, não é “só” o
pensamento de um grupo.
Um outro aspecto, evidenciado no terceiro capítulo, que diretores autores do
passado como Kurosawa e Kubrick gostavam de fazer para ter controle de seus filmes
era o de manter as rédeas da produção. Tornar-se produtor foi uma das primeiras
atitudes que Carruth tomou ao iniciar sua carreira.
128
Pode-se ver um declínio nas áreas de participação do diretor entre as figuras
15 e 16. Carruth se encaixa mais entre os diretores do passado, em especial Chaplin.
Wood protagonizou um de seus filmes e editou outro, mas por serem casos isolados,
o diretor não foi considerado, de fato, um editor ou ator, pelo menos nesta pesquisa.
É o caso de Welles, que editou alguns projetos e curtas, mas não editava seus filmes
principais. De acordo com as figuras 15 e 16, as áreas mais comuns em que os
diretores autores preferem ter controle são a roteirização e a produção, enquanto a
composição de trilha sonora parece ser um dom para poucos diretores. Por exemplo,
apesar de Welles ser músico, ele não tinha o costume de compor para seus filmes.
O diretor/autor também teve cuidado quanto à iluminação de seus filmes,
utilizando-se de um filtro amarelado para Primer, com alto contraste. Esse tipo de
coloração lembra a técnica, mencionada no Capítulo 3, utilizada por Fincher na
maioria de seus filmes. Para Upstream Color, o diretor usou, na maior parte,
iluminação natural, compondo as imagens com tons de azul, um paralelo às orquídeas
do filme. No Capítulo 2, por meio do artigo de Stamato, Staffa e Zeidler (2013)
Figura 15: Comparativo entre diretores autores contemporâneos e Carruth (arte do pesquisador)
Figura 16: Comparativo entre diretores autores do passado e Carruth (arte do pesquisador)
129
entende-se, que, a partir da inovação das cores no cinema, a arte fílmica se utilizou
delas para transmitir emoções e sentimentos. Isso também é uma forma de conduzir
o público a assistir o filme de uma certa maneira, o que condiz com a marca pessoal
de Carruth de guiar o público tanto quanto possível. Como viu-se no Capítulo 2, a
figura do diretor introduzida por Griffith é a do narrador invisível, que guia as histórias
ao seu modo. Portanto, pode-se concluir que Carruth e os novos diretores que surgem
são o resultado de toda a evolução do cinema, estudada no segundo capítulo.
Ressalta-se ainda, que Carruth parece querer testar novos padrões e limites -
inclusive pessoais - em cada obra. Ele é um experimentador ousado. Como se viu no
Capítulo 2, foi a linha de cinema experimental que impulsionou essa arte a evoluir.
Carruth foi descoberto no Festival de Sundance, uma premiação que recompensa,
anualmente, a inovação e a experimentação. Como percebe-se, também por meio do
Capítulo 2, o cinema sempre foi experimentação desde seus primórdios. Seus
aparatos tecnológicos também fazem parte do resultado e do processo de
experimentação, desde o cinematógrafo até os filmes feitos com celulares. A arte, em
si, foi e continua sendo um experimento.
A experimentação é uma das maiores marcas de Carruth. E como Martin (2003)
explanou, no final do segundo capítulo, sempre há a ameaça do “imperialismo
hollywoodiano”, onde o dinheiro comanda os filmes e não seus criadores. Martin
(2003) diz também que o cinema estará a salvo desde que haja exploradores de novos
caminhos e experimentadores. Não há exemplo maior, atualmente, do que Shane
Carruth.
4.4.2 Roteiro66
Carruth demonstra uma espécie de “quase egoísmo” por seus roteiros. Em
Primer, ele escreveu uma história com falas e jargões que apenas
engenheiros/cientistas poderiam compreender, pelo menos em um primeiro momento.
66 Ao roteirista cabe bem mais do que a elaboração dos diálogos. Na verdade, essa parte da tarefa acaba até sendo o menor dos problemas. O conceito com que todo roteirista deve lidar é o da visão fundamental da sequência de eventos, e isso inclui não só os diálogos ditos pelos atores como também a atividade física que exercem, o ambiente que os cerca, o contexto dentro do qual a história se desenrola, a iluminação, a música e os efeitos sonoros, os figurinos, além de todo o andamento e ritmo da narrativa. Mas não termina aí o trabalho do roteirista porque, além de todas essas considerações, o roteiro precisa ter clareza suficiente para que o diretor, fotógrafo, técnico de som e todos os outros profissionais criem um filme que se assemelhe às intenções originais do roteirista (HOWARD; MABLEY, 2002, p. 30).
130
Claro que isso não acontece em todo o filme, mas o diretor parece não se preocupar
muito com o que o público vai absorver de fato, pois não muda o diálogo para se tornar
mais compreensível. Aos seus olhos, parece que seria um erro facilitar quanto à
linguagem, já que o “diálogo verdadeiro” não se passaria assim.
Na entrevista para o Los Angeles Times (2013), sobre Upstream Color, quando
questionado sobre o público-alvo do filme, Carruth apenas respondeu que para as
pessoas que gostarem. Ele parece não se importar, de fato, com quem vai ver seus
filmes. Está mais interessado em criar uma obra que acredita ser boa e, antes de mais
nada, ele a cria para si e espera que a recepção seja positiva. Carruth acredita em
vender um filme pelo que ele é e não pelo que um distribuidor mais convencional
possa querer que ele seja.
Na questão de roteiro, Upstream Color se difere (e muito) de Primer, sendo
aquele um filme mais íntimo e comovente; emocionalmente direto, enquanto
narrativamente abstrato. Carruth, porém, disse à revista digital Indiewire (2013) que,
apesar de Color ter menos diálogo, sente-se que o diálogo que possui é muito
substancial.
Upstream Color tem uma narrativa quase puramente visual e sonora, onde o
diálogo é minimizado ao máximo. Primer, por outro lado, não tem o que se poderia
chamar de “momentos emocionantes”. O que ele possui é um roteiro denso e bem
pensado. Para a Indiewire (2013), Carruth disse que a parte de Primer que considera
atraente é a lógica do tempo e as pessoas que observam o desenrolar dos eventos.
Muitos críticos chamaram o filme de “incompreensível”, rótulo que Carruth descreveu
como não agradável e espera tê-lo evitado em Upstream Color: “eu não quero este
conceito de que ‘Primer é um quebra cabeças’ ou ‘Color é um quebra cabeças’”
(2013). Como foi citado anteriormente, se fosse por ele, tudo já estaria decidido desde
o roteiro, toda a trilha, todos os takes, tudo!
O diretor tem o hábito de compor a trilha sonora conforme escreve o roteiro,
tanto que quando termina de escrever, já tem a trilha pronta. Sendo assim, pode-se
dizer que essas duas partes estão mais conectadas do que as outras, constituindo-se
em uma das marcas pessoais de Carruth, ou seja, a conectividade ente a narrativa de
uma cena, seu diálogo e a música que a acompanha. Mas, na mesma entrevista para
a Indiewire (2013), o diretor aponta que, às vezes, isso não dá tão certo. Em Upstream
Color, teve que jogar metade da trilha “no lixo”, pois, como ele conta, ao invés de estar
compondo para as experiências subjetivas dos personagens, estava compondo para
131
as experiências do público. E só percebeu isso quando estava “bolando” os
enquadramentos.
Está claro que o roteiro é uma das maiores preocupações de Carruth, se não a
maior. Segundo uma entrevista para a revista Interview (2013), o diretor pensa na
narrativa como duas metades: a exploração e o entretenimento minuto a minuto. Ele
afirma que, enquanto a exploração é importante, deve-se ter algo que mantenha o
público prestando atenção, se não o filme terá teses secas e ideias que ninguém vai
querer entender. Na mesma entrevista, Carruth foi questionado sobre a estrutura
narrativa de Upstream Color e o motivo de ser tão interessante. O diretor explica que,
um pouco, é por causa de sua própria estética de apresentar informação. Mas, ele
disse gostar de olhar a história do filme em três partes: uma, é objetiva; uma, tem um
tom mais subjetivo e a última parte é uma confusão de emoções, motivações e
entrelinhas. A linguagem do roteiro tem que fazer jus às três partes. “É cada vez
menos importante falar sobre tudo e cada vez mais importante ficar em silêncio. E se
falarmos, quebraremos o encanto”, afirma Carruth.
Como muito do filme é não-verbal, a maioria das coisas é sugerida e não dita,
de fato. Essa parece ser a principal característica do roteiro de Upstream Color. A
maior parte dos acontecimentos do filme é expressa sem diálogo, em um tipo próprio
de linguagem cinematográfica, onde nunca se utilizam exposição ou explicações
sobre o que está acontecendo.
Para o jornal Telegraph (2013), Carruth admite que a narrativa do filme é
“opaca” e densa, mas acredita que, em uma boa assistida, é possível entendê-la. E
se precisar de mais de uma, ele espera que não seja algo árduo de se fazer. Na
entrevista para a revista Paper (2013), Carruth admite que o único tipo de narrativa
que tem paixão por escrever é o “tipo universal”, ou seja, aquela que tem potencial
para ser importante no futuro. O diretor diz que jamais faria um roteiro sobre a eleição
de Barack Obama, por exemplo, pois isso seria muito temporal. Porém, afirma que
“adoraria” fazer um roteiro sobre como o poder corrompe. Por isso, quanto à estrutura
do roteiro, prefere escrever histórias que envolvam cidades sem nome; histórias que
possam ser sempre reformuladas. Carruth dá o exemplo do conto da lebre e da
tartaruga, algo atemporal que pode ser contado de muitos jeitos. Para ele, a narrativa
precisa ter uma base sólida para permitir-se ser explorada depois.
Em uma entrevista para a FSLC (2013), Carruth afirma que o roteiro minimalista
de Upstream Color resultou dos diálogos complexos de Primer, como uma espécie de
132
pedido de desculpas. Ainda na mesma entrevista, Carruth revela que muito pouco de
Color foi improvisado; o roteiro foi seguido “à risca”. A única instância em que ele se
recorda de haver improvisação, por parte do elenco, foi na cena “Estorninhos”. Para
ele, aquele é um tipo de cena em que a improvisação funciona melhor do que aquilo
que possa se escrever em um roteiro. Pode-se refletir que se a colaboração de outros
no processo criativo dá certo, o diretor não tem problemas em aceitar isso, mesmo
que as ideias não tenham partido dele.
Talvez nenhuma cena demonstre melhor a “incompreensibilidade” de Primer
do que “A & B”. O diálogo demonstra a preocupação de Carruth com o realismo e
como o diálogo do filme é rápido e opaco. Já em Upstream Color, pode-se ver um
estilo oposto de narrativa, evidenciada pela cena “Conexão”, onde o roteiro foi apenas
direção de cena. É possível que o aspecto “roteiro” seja o que mais se diferencia de
um filme para o outro. Enquanto em todas as outras áreas podem se traçar
comparativos, na questão da narrativa, os filmes são quase opostos.
A cena “Herói”, de Primer, é repleta de diálogo, sem nenhum momento
silencioso. Já em Upstream Color não é o diálogo que impulsiona a história. Uma das
exceções é a cena “Descoberta”, onde o diálogo foi fundamental para que a história
seguisse em frente. Mesmo assim, logo após servir a seu propósito, acabou-se. Tanto
foi assim que esta é a última cena falada do filme. Ao contrário de Primer, Color pode
ser considerada uma obra “quieta” e abstrata.
No segundo capítulo dessa monografia, Ismail Xavier (2003) discorre sobre
como os filmes, depois de lançados ao mundo, se tornam abertos a interpretações.
Esse é exatamente um dos objetivos de Carruth, que evita ao máximo, responder
perguntas sobre a narrativa de suas obras. Provavelmente, quer que o público pense
por si mesmo.
4.4.3 Edição67
Embora muito de Upstream Color tenha sido editado por Carruth, ele
necessitou da ajuda de David Lowery. Na entrevista para a revista Interview (2013),
67 Numa obra audiovisual, o ritmo de uma cena depende de muitas coisas (roteiro, decupagem, direção e forma de interpretação do ator), mas ele se cristaliza na montagem/edição. O montador, ao retirar ou acrescentar fotogramas/frames a cada início ou fim de plano, está criando, de forma artificial, o ritmo da narrativa (GERBASE, 2003, p. 110).
133
Carruth revela que não dormia direito e a produção do filme estava ficando para trás
porque ele não conseguia editar rápido o suficiente. Após finalmente ceder e pedir
ajuda a Lowery, Carruth se surpreendeu porque, segundo ele, o editor entendeu
instintivamente o filme. Ele olhou o que Carruth já tinha editado e montou o resto com
um resultado, de acordo com o diretor, “perfeito”. Lowery chegou ao ponto de adicionar
pequenas ideias à edição que Carruth não tinha sequer imaginado.
A questão de ser um diretor “onipresente” pode ser considerada uma das
“fraquezas” de Carruth, visto que ele mesmo reconhece que o editor trouxe boas ideias
para o filme. Pode-se refletir, portanto, que o diretor perde ideias valiosas de outros
colaboradores por querer trabalhar quase exclusivamente sozinho.
A edição de Carruth é uma marca presente em quase todos os momentos de
ambas as suas obras, a partir da característica de velocidade. Como foi visto no
Capítulo 2, Martin (2003) salienta que, enquanto uma montagem “normal” é
basicamente narrativa, uma montagem muito rápida é, antes de tudo, expressiva. O
ritmo da edição desempenha um papel diretamente psicológico. A montagem de
Carruth é frenética e devido ao favoritismo por planos detalhe, pode se tornar
“estonteante”. Talvez devido ao roteiro mais monótono de Primer, Carruth quis
compensar na edição, o que funciona. Todas as cenas apresentam um corte de
imagens criativo, nunca parecendo aleatório. E, mesmo no filme mais calmo e etéreo
que é Upstream Color, a edição continua rápida. Na entrevista para a revista Dazed
(2013), Carruth afirma que seu desejo é que os filmes se movam rápido e que sejam
atraentes minuto a minuto.
Talvez a melhor relação sobre a velocidade na edição possa ser feita entre as
cenas “Passo a passo”, de Primer, e a cena “Estorninhos”, de Color. As cenas são
parecidas em muitos aspectos. Ambas possuem voice-overs (o que pode-se
considerar também uma marca de Carruth) e montagem rápida que passa por
diversos planos e enquadramentos, quase sem nenhum espaço para respiro. A edição
de Carruth é tão frenética que quando ela finalmente para por mais de alguns
segundos em algum enquadramento, o público sabe que existe motivo. Algo na cena
é importante e merece atenção.
No Capítulo 3, Eisenstein (2002) salienta que a edição é o mais poderoso
instrumento de composição para se contar uma história. Ele afirma que a montagem
é a marca da percepção de um acontecimento através do prisma sensível de um
134
artista. Carruth demonstra um esforço visível para manter a edição criativa e que
engaje o público. Mais uma de suas marcas.
4.4.4 Atuação68
Como já foi evidenciado neste capítulo, o principal motivo para Carruth ter se
escolhido como um dos protagonistas em Primer, foi o de que ele interpretaria o papel
sem ser dramático demais. Na entrevista para a revista Dazed (2013), Carruth afirma
que, em alguns momentos de Upstream Color, ponderou a ideia de contratar outro
ator para o seu papel. Ele conta que já recebeu tweets reclamando de sua atuação
em Color, mas isso não o abala, ele acha até engraçado. Revela que atuou como um
protagonista por necessidade e também, simplesmente, porque tinha vontade de
atuar; para manter as coisas “menores” e ter uma pessoa a menos para agendar
horários. Essa preferência por um elenco menor pode ser confirmada em seus filmes,
pelo fato de que os dois contam com uma dupla de protagonistas. Abe e Aaron em
Primer e Kris e Jeff em Upstream Color.
É importante ressaltar que Carruth não se contenta com apenas uma ponta em
seus filmes, como por exemplo, Alfred Hitchcock. Nas duas obras, ele tem o papel de
um dos protagonistas. A performance de Carruth pode ser seca, principalmente em
Primer, mas não é desprovida de emoção. Na cena “Passo a passo”, Carruth
apresenta convincentemente seu personagem como ambicioso, um dos momentos do
filme em que se vê seu lado mais humano e descontraído. Já na cena “A & B”, onde
o diálogo é denso, em nenhum momento a atuação deixa de ser convincente. Talvez
possa-se dizer que a atuação de Carruth é profissional, porém “chata”. No máximo.
Em Upstream Color, um filme mais sensível, a atuação de Carruth é mais
silenciosa, mas não destoa de sua performance em Primer. Ela continua uma atuação
crível, como na cena “Estorninhos”, que equilibra emoções que vão da alegria à
confusão, da curiosidade à raiva. Na cena “Conexão”, Carruth precisa transmitir o
sentimento de desespero apenas pela linguagem corporal, sem o uso de palavras.
68 Considero o elenco parte integrante – e fundamental – do núcleo criativo de um filme. Creio que eles devem – na verdade, precisam – ler o roteiro na íntegra, conhecer todos os personagens e suas relações dramáticas, construir motivações internas para cada ação e ensaiarem muito (...) para que a interpretação seja a mais adequada em cada cena do filme/vídeo como um todo (GERBASE, 2003, p. 10).
135
Talvez pelo fato do diretor querer fugir do clichê da dramatização em excesso, isso
possa ter contribuído para que algumas pessoas achem sua atuação “contida”.
De todos os aspectos de seus filmes, a atuação parece ser aquele em que
Carruth coloca menos foco. Com certeza, na atuação o diretor não demonstra o
mesmo vigor de sua cinematografia, por exemplo. Carruth demonstra teimosia,
perfeccionismo e tudo precisa estar categoricamente planejado. Mas, como um bom
profissional ele entende que os improvisos são necessários, mesmo que devam ser
mínimos e passar, claro, pela sua aprovação. Como já foi evidenciado, a única cena
que o diretor se lembra de ter sido improvisada é “Estorninhos”, de Upstream Color.
Cena que, segundo ele, não funcionaria se fosse escrita. O resultado foi um dos
momentos mais emocionantes, naturais e bem executados do filme.
Carruth, como também já mencionado nesse capítulo, filmou todas as cenas
de Primer com apenas um take cada. Provavelmente por conta de seu orçamento
minúsculo e tempo apertado. É impossível saber ao certo, mas isso não parece ter
refletido significativamente na questão da atuação. Porém, com mais takes, é provável
que pudesse ficar ainda melhor.
Mas, igualmente, poderia se dizer que essa falta de foco na atuação se deve
simplesmente ao fato de que seus filmes ainda não necessitaram desse fator.
Levando-se em consideração o elenco de “estrelas” que está sendo planejado para
seu terceiro filme, o diretor parece ter mudado, dando mais foco à atuação. É
importante ressaltar ainda que Carruth demonstra estar se esforçando, cada vez mais,
para refinar sua própria atuação, aparecendo em diversos projetos de outros diretores
como ator. Talvez ele mesmo tenha percebido este como seu “ponto fraco”.
No princípio de sua carreira, ficou nítido que o diretor via a atuação como algo
prático, contratando seus amigos e familiares para atuar consigo, apenas pela
facilidade e por causa do pequeno orçamento. Em Upstream Color, houve um avanço
nessa questão, quando procurou atores profissionais que pudessem trazer ao filme
um novo nível de qualidade nesse quesito. Poderia se dizer que uma de suas marcas
é a produção de obras com menor foco na atuação, mas isso não parece ser correto,
visto que o diretor estava muito limitado financeiramente quanto às obras aqui tidas
como objeto de estudo, e também pelo fato de estar aperfeiçoando essa área, tanto
em relação à própria atuação quanto em relação à contratação de profissionais
experientes e famosos.
136
4.4.5 Trilha sonora69
Como já foi evidenciado, Carruth compõe a trilha enquanto escreve o roteiro.
Ele prefere que a trilha represente a experiência subjetiva dos personagens ao invés
de enquadrar a experiência do público. Esses ideais transformaram a música em algo
“menos orquestrado”. Na entrevista para a revista Paper (2013), Carruth expressa que
a trilha de Upstream Color é mais atmosférica e etérea e isso, em sua opinião, a torna
mais emocional. Além disso, a trilha tem um aspecto “sintético”, que deixa a
experiência do filme, como diz o diretor, “atmosférica”. É um contar de histórias sônico,
onde a música toma o lugar do diálogo em quase todos os momentos.
O ritmo do filme é desorientador, mas para o “cinéfilo intrépido”, oferece uma
experiência única: uma viagem paranoica, pontuada por momentos de
transcendência. A trilha sonora e o roteiro parecem ser os aspectos pelos quais
Carruth tem uma verdadeira paixão e onde ele deposita esforço extra. São habilidades
mais antigas que foram cultivadas, visto que o diretor se apaixonou pela escrita ainda
na faculdade e, provavelmente, aprendeu a tocar instrumentos musicais desde a
infância. É algo mais pessoal do que a cinematografia, edição e atuação, que foram
aprendidos, primeiramente, como obstáculos para concretizar o roteiro de Primer.
A trilha de ambos os filmes tem similaridades. São sensíveis, quase tristes.
Notas de piano são as mais pronunciadas (supõe-se ser o instrumento favorito de
Carruth, visto que ele o toca em outros curtas). Em Upstream Color, o foco na música
é maior do que em Primer. São raros os momentos em que não há um instrumental
presente nas cenas. É como se Carruth se utilizasse da trilha como roteiro. Em Primer,
pode-se perceber essa característica na cena “Mais uma noite de quarta”, uma rara
instância do filme em que há pouco diálogo. A cena “Sincronia”, de Color, mostra esta
qualidade ainda mais pronunciada. Contendo quase nenhum diálogo, todo o resto do
sentimento é transmitido pela música, mais segura e distinta.
Carruth, de certa forma, se utiliza de elementos do cinema mudo, como referido
no Capítulo 2, no sentido de que mesmo não havendo diálogo, a música era constante,
como se fosse uma ferramenta utilizada para transmitir emoção. Assim como Chaplin
69 Talvez a única definição suficientemente justa para a função da música no cinema é de que, de uma maneira ou de outra, ela existe para “tocar” as pessoas. “Tocar” pode ser emocionar, arrancar lágrimas, causar tensão, desconforto, incomodar, narrar um acontecimento (...) enfim, de um jeito ou de outro, a boa composição não existe em vão. Ela está lá por algum motivo, e ainda que não a ouçamos, podemos senti-la (BERCHMANS, 2006, p. 20, grifos do autor).
137
e Anderson, há muita ênfase na música em suas obras. O foco na trilha sonora é uma
das marcas pessoais de Carruth mais bem pronunciadas em suas obras. É quase
como se a música, em si, se tornasse, também, personagem dos filmes e uma
extensão ressonante de si mesmo.
138
Fotograma 26: Primer – Créditos (arte do pesquisador)
Fotograma 27: Upstream Color – Créditos (arte do pesquisador)
139
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
“O homem é um gênio quando está sonhando.”
Akira Kurosawa
O cinema é uma área muito estudada, mas por ser tão vasta, conta com
aspectos menos conhecidos. Alguns, esquecidos pelo tempo; outros, simplesmente
obscuros. Obscurecidos, muitas vezes, pelas áreas mais atraentes, como os
blockbusters multimilionários.
Quanto à questão norteadora dessa monografia: “de que forma Shane
Carruth, que participa de mais de uma área criativa de seus filmes, expressa sua
marca pessoal em uma obra fílmica, quando se trata do cinema de caráter
autoral? ”, pode-se concluir que foi respondida de modo satisfatório. O Cinema
Autoral é conhecido por originar um tipo de obra com as marcas pessoais do diretor
muito proeminentes e distintas. Foram analisados diversos diretores que se provam
autores no Capítulo 3 e pôde-se compreender como são variados os meios de fazer
uma boa obra fílmica.
Sobre os objetivos estipulados nessa monografia, partiu-se de um, geral:
desvendar de que forma o diretor Shane Carruth, que assume diferentes domínios do
fazer cinematográfico e que produz um Cinema Autoral consegue expressar sua
personalidade, ideias e marcas pessoais em suas obras. Pode-se dizer que ele foi
alcançado, já que se realizou uma longa e minuciosa análise sobre suas duas obras,
as quais puderam ser melhor interpretadas pelo pesquisador, a partir da aplicação da
Análise de Conteúdo.
Quanto aos objetivos específicos, o primeiro deles, o de entender a área da
direção cinematográfica e, de forma mais especifica, os profissionais dessa área que
assumem diferentes competências no fazer fílmico, também se entende como
atingido. Mesmo assim, é praticamente impossível a um indivíduo se inteirar sobre
toda a área da direção, que está em constante mudança e evolução, é ampla demais.
Mas, isso não é algo ruim, não se deve estabelecer como objetivo entender
absolutamente todos os aspectos da direção de cinema, pois no momento que se
pensa ter todo o conhecimento, limita-se e fecha-se a mente para mais aprendizado.
140
Cinema é uma arte para constante aperfeiçoamento, não se pode ficar satisfeito.
Nesse estudo, buscou-se, mais humildemente, entender com mais detalhes o que faz
um diretor de cinema especifico e como os profissionais que atuam em diferentes
áreas fílmicas se expressam.
Sobre mapear historicamente, na cinematografia mundial, a presença de
diretores com a habilidade de atuar em diversas frentes, pode-se declarar que o
objetivo foi alcançado. Foram vistos, no Capítulo 2, diretores “da velha guarda” que
eram autores, e no Capítulo 3, viu-se que eles não se limitavam a dirigir. O exemplo
mais marcante foi Charlie Chaplin, com quem Carruth pode traçar um paralelo na linha
do tempo, no quesito de multipresença. É interessante notar as similaridades que os
diretores com estilos muito marcantes e filmes de caráter autoral compartilham. Por
exemplo, a predileção por produzirem e escreverem seus próprios filmes e usar a
mesma equipe nas obras. A maioria dos diretores tem apenas um editor para seus
filmes e costumam escalar um elenco similar ao dos seus projetos passados.
Outro objetivo buscou inteirar-se acerca do diretor escolhido, Shane Carruth,
para análise de suas respectivas obras. Pode-se dizer que foi atingido, pois foi feita
uma grande análise de suas obras, seu estilo como cineasta e foram pesquisadas
diversas informações sobre “a pessoa” de Carruth, já que uma das marcas de todo
diretor é imprimir sua personalidade na obra. Só se conhece, de fato, um diretor
através de seus filmes, não há jeito melhor.
Além disso, um dos objetivos específicos era o de analisar os aspectos
positivos e negativos relacionados à onipresença do diretor. Pode-se considerar que
foi parcialmente atingido. Isso porque Carruth não apresentou reais aspectos
negativos para esse tipo de direção. Não era a intenção do pesquisador apresentar
apenas os pontos positivos de uma direção com controle total, mas ao que tudo indica,
os poucos diretores que conseguem se arriscar a agir assim são profissionais, em sua
maioria, competentes em diversas áreas. Além de Carruth, que foi bem-sucedido
quanto à crítica de suas obras, o único diretor que apresentou esse tipo de
onipresença foi Chaplin que, indiscutivelmente encontrou grande prestigio no universo
cinematográfico.
A pesquisa não evidenciou, de fato, os defeitos que esse tipo de direção pode
trazer. No caso desta monografia, a única questão que pode ser levantada é que
Carruth poderia tornar seus filmes melhores (ainda que um pouco menos autorais) se
contasse com a colaboração de outros membros da equipe cinematográfica, visto que
141
o mesmo se impressionou com as contribuições de David Lowery, que o ajudou a
editar Upstream Color; ou com os improvisos propostos por alguns atores em seus
filmes. O pesquisador tentou encontrar críticas negativas a Carruth e suas obras, mas,
em sua grande maioria, todas se limitavam a reclamações rasas e sem real
substância. Além disso, focavam-se em um único aspecto: o de que os filmes de
Carruth são difíceis de entender e muito abstratos. As críticas se apoiam no argumento
de que as obras são filmes independentes, pretensiosos, feitos justamente para não
serem compreendidos. Críticas dessa natureza não ajudaram o estudo, visto que todo
artista ou filme tem sua pequena ou grande legião de críticos.
Em relação a aprender o que define um Cinema Autoral e qual o impacto que
essa abordagem traz ao universo cinematográfico, pode-se considerar como mais um
objetivo alcançado. Foi dada, no Capítulo 2, uma explicação sobre o surgimento do
Cinema Autoral e suas características. Quanto ao impacto dessa abordagem, viu-se
que é deveras polêmica, sendo que muitos se opõem a ela e criaram teorias
divergentes a do Cinema Autoral.
Sobre a relevância dessa monografia, o pesquisador, como amante da Sétima
Arte, viu a chance de se inteirar sobre o que faz um diretor se destacar. Em um mundo
onde centenas de cineastas independentes fracassam todos os dias, Carruth, com
seu pequeno orçamento e grandes sonhos, obteve o que se pode chamar de “relativo
sucesso”. Entendeu-se a importância de uma boa marca pessoal, algo que é único de
cada pessoa, mas que devesse conseguir imprimir da melhor forma em tudo o que se
faz. A construção dessa marca vem das vivências e da bagagem cultural do diretor,
não negligenciando, claro, uma dose de determinação, para experimentar e aprender,
que permitem ao artista inteirar-se sobre os aspectos técnicos da produção fílmica e,
assim, dar vida aos seus projetos. É importante ressaltar também como uma boa
característica para a determinação de uma marca pessoal cada vez mais pronunciada,
a humildade de aprender com os erros e admitir quando se está errado.
Essa pesquisa monográfica é relevante também no sentido de fazer mais
pessoas se familiarizarem com o trabalho de Carruth, visto que não há muitos artigos
sobre o diretor. Este trabalho se aventura em algo novo. Um profissional
surpreendente e que, de alguma forma, consegue se manter recluso e afastado da
“máquina hollywoodiana”, merece mais reconhecimento. É extremamente difícil ser
selecionado para entrar no Festival de Sundance, milhares de curtas são enviados,
poucas dezenas escolhidos. E apenas um ganha o Prêmio do Grande Júri. Carruth
142
conseguiu tudo isso com seu primeiro filme, sem ter experiência na área. Um filme
com cenas gravadas em apenas um take cada, com uma edição e cinematografia que
ele mesmo “se” ensinou.
O pesquisador se identifica com Carruth. Sempre admirou autodidatismo, talvez
até o “egoísmo” de fazer algum tipo de trabalho quase inteiramente sozinho e receber
os créditos por isso. Vencer o Festival de Sundance ou criar belas obras com pouco
dinheiro é algo instigante. Afinal, o Festival de Sundance está muito mais próximo dos
desejos da pessoa comum do que a cerimônia do Oscar.
O nome de Shane Carruth aparecia constantemente em buscas relacionadas a
esses tópicos. E embora sempre tenha havido uma admiração pelo trabalho do diretor,
este pesquisador nunca, realmente, apreciou suas obras. Esta monografia mudou
essa visão, pois agora pensa-se que os filmes de Carruth são muito mais do que
apenas belos exemplos técnicos de cinema ou de alguém que decidiu trabalhar
sozinho porque não tinha dinheiro ou porque era autocentrado demais. O pesquisador
passou a vê-los como obras de arte profundas e interessantes.
Em um primeiro momento da pesquisa, pensou-se que Carruth revelaria ser
uma pessoa “chata” ou um esnobe intelectual. Entretanto, todas as vezes que a cortina
foi puxada para revelar o homem por trás dela, o que se encontrou mostrou-se
diferente. Durante a pesquisa, descobriu-se que, em diversos momentos, Carruth foi
tentado a dar algum tipo de resposta comprometedora, fazendo reclamação contra
Hollywood e seu modo capitalista de fazer filmes, mas, em nenhuma das ocasiões, o
diretor “mordeu a isca”. Em uma dessas entrevistas, alguém da plateia foi longe o
suficiente para perguntar a Carruth se ele se achava mais inteligente do que
Hollywood. Considerando a pergunta engraçada, a resposta foi um simples “eu não
me acho mais inteligente do que ninguém” (CARRUTH, 2013)70.
Nesse mesmo sentido, muitos questionamentos surgiam sobre o livro filosófico
Walden (1854, Thoreau), lido pelos personagens de Upstream Color. Nas entrevistas,
perguntava-se a Carruth se tinha tomado por base as teologias e ensinamentos do
livro para criar seu próprio roteiro. No entanto, o diretor admitiu que, na verdade, só
precisava de um livro que estivesse em domínio público e que fosse exaustivo de se
ler. Ao olhar do pesquisador, Carruth é um “cara” normal, porém talentoso. Um ser
humano “legal”, que quer contar histórias ‘legais”. Porém, este pesquisador não pensa
70 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=DtpXniXDLZU&t=130s – Acessado em 01/12/2017
143
que o diretor é livre de defeitos e nem concorda com o jeito que o cineasta é
endeusado em algumas entrevistas.
Carruth parece estar em uma jornada pessoal de autoaperfeiçoamento. Ele
testa seus limites constantemente, aprendendo técnicas novas para cada filme. Em
sua obra não terminada “A Topiary”, o diretor faria até os complexos efeitos especiais.
Seus filmes, muito antes de serem feitos para o público, são feitos para ele próprio.
Também é interessante observar o “tipo de humildade” expresso por Carruth
ou como ele ama seus projetos profundamente e, após terminados, os enche de
críticas – mas, se recusa a fazer qualquer modificação para melhorá-los. É importante
ressaltar também que, como produtor de suas obras, descobrir-se que o diretor gosta
de criar todos os materiais adjacentes, como trailer, cartaz, arte do DVD, provando
que os filmes são realmente dele e isso é algo que esse pesquisador faria, se algum
dia produzisse um filme.
O que contribui para a formação das marcas pessoais é a vivência do diretor,
sua bagagem cultural. Carruth era um engenheiro formado em Matemática, não uma
pessoa vinda das artes. Além de ser algo um tanto incomum, isso influencia, de
alguma forma, suas obras.
Por fim, conclui-se que esse trabalho monográfico foi de suma importância para
ter um melhor entendimento da arte cinematográfica e que, nessa arte, a maior parte
de seus aspectos não é “preto no branco”. Não existe uma fórmula exata para fazer
obras de sucesso. O estudo foi relevante, também, para o pesquisador, que tem
admiração pelo trabalho do diretor de cinema, em especial aquele que faz a maior
parte de seus filmes. Como futuro publicitário, será sempre uma busca inteirar-se, o
máximo possível, a respeito das diferentes formas de comunicação e, principalmente,
sua subjetividade e profundidade. O pesquisador também evoluiu durante o processo,
visto que passou a gostar da pesquisa, ganhou mais disciplina e maior contexto a
respeito de um assunto, que para ele, é muito relevante.
Espera-se que esta monografia sirva de inspiração para futuros estudantes de
Comunicação e/ou aspirantes ao cinema. Como Chaplin pronunciou: “o tempo é o
melhor autor, ele sempre escreve o final perfeito”. Mas, como diria Carruth “eu não
acredito em finais”.
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REFERÊNCIAS
LIVROS
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FILMOGRAFIA Primer. Direção: Shane Carruth (EUA, 2004). Inglourious Basterds. Direção: Quentin Tarantino (EUA/Alemanha, 2009). Inside Llewyn Davis. Direção: Joel Coen e Ethan Coen (EUA/França, 2013). The Curious Case of Benjamin Button. Direção: David Fincher (EUA, 2008). The Darjeeling Limited. Direção: Wes Anderson (EUA, 2007). Trainspotting. Direção: Danny Boyle (Reino Unido, 1996). Upstream Color. Direção: Shane Carruth (EUA, 2013).
151
ANEXO
PROJETO – MONOGRAFIA I
152
UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL
YAN GONÇALVES DE CASTILHOS
FILMES DE UM HOMEM SÓ:
A ONIPRESENÇA DE SHANE CARRUTH
Projeto de Trabalho de Conclusão de Curso
apresentado como requisito para aprovação
na disciplina de Monografia I.
Orientador (a): Profa. Dra. Ivana Almeida da
Silva
CAXIAS DO SUL
2017
153
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 03
1.1 PALAVRAS-CHAVE 06
2 TEMA 07
2.1 DELIMITAÇÃO DO TEMA 07
3 JUSTIFICATIVA 08
4 QUESTÃO NORTEADORA 09
5 OBJETIVOS 10
5.1 OBJETIVO GERAL 10
5.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS 10
6 METODOLOGIA 11
7 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA 14
7.1 DIREÇÃO 14
7.2 MARCA PESSOAL 17
7.3 CINEMA AUTORAL 18
7.4 SHANE CARRUTH 19
8 ROTEIRO DOS CAPÍTULOS 21
9 CRONOGRAMA 22
REFERÊNCIAS 23
154
1 INTRODUÇÃO
Tudo que é relevante deixa marcas. No cinema, isso não é diferente. Filmes
deixam impressões duradouras no indivíduo, memórias que vão perdurar para
sempre. Um dos maiores responsáveis por esses momentos é o diretor, pois é ele
quem deve dar o tom e a atmosfera do filme e, consequentemente, deixar sua marca
pessoal gravada nas obras.
O fazer fílmico passou por muitas transformações, desde o nickelodeon71 em
1905, até os cinemas IMAX72, de hoje. Depois de todo esse tempo, torna-se
praticamente incontestável dizer que a experiência audiovisual é uma arte. Mais do
que arte, também é uma linguagem.
A bem dizer, o cinema foi uma arte desde suas origens. Isso é evidente na obra de Méliès, para quem o cinema foi o meio, com recursos prodigiosamente ilimitados, de prosseguir suas experiências de ilusionismo e prestidigitação do Teatro Robert-Houdin: existe arte desde que haja criação original (mesmo instintiva) a partir de elementos primários não específicos, e Méliès, enquanto inventor do espetáculo cinematográfico, tem direito ao a título de criador da sétima arte (MARTIN, 1990, p. 15).
Os filmes foram se ajustando, juntamente com seu público, ao constante
aperfeiçoamento da tecnologia, que permitiu aos diretores experimentarem novas
maneiras de fazer. Isso levou seus filmes a patamares que eram, antes, impensáveis.
A tecnologia limitadíssima dos primórdios cinematográficos apresentava muitos
obstáculos para os pretensos diretores. Sem cores, sem som, a montagem que
precisava ser cautelosamente editada a mão; filmes que, muitas vezes, precisavam
ser filmados em ordem. Essas obras cruas, sem muitos enfeites ou efeitos, serviam
para proporcionar um entretenimento barato para o grande público, mas que
certamente foram necessárias para originar o cinema de hoje.
Com a evolução irrefreável da tecnologia, os filmes ganharam mais
possibilidades, montagens mais ousadas e criativas, enquadramentos nunca antes
71 Os Nickelodeons (do Inglês estadunidense: nickel = moeda de 5¢, Grego: Odeion = teatro coberto) constituíram um tipo de primitivas e pequenas salas de cinema do início do século XX. Em locais onde a concorrência fosse maior, era frequente disporem de um piano ou de um órgão, onde se tocava a música que o pianista ou organista julgasse apropriada para cada cena. 72 Imagem Maximum (IMAX) é um formato de filme criado pela empresa canadense IMAX Corporation que tem a capacidade de mostrar imagens muito maiores em tamanho e resolução do que os sistemas convencionais de exibição de filmes.
155
vistos, qualidade de vídeo superior, som, cores. Conforme essas mudanças ocorriam,
o cinema foi ficando mais imersivo, ganhou consistência. Hoje, cineastas continuam a
extrapolar o que achamos que já foi explorado. Filmes de super 8mm, câmeras
digitais, programas para editar no conforto de um computador, tecnologias cada vez
mais versáteis, que permitem que muito mais pessoas se aventurem no audiovisual.
Filmes feitos inteiramente por celulares, como é o caso de Tangerine (2015) fazem
refletir que qualquer pessoa, com um mínimo de domínio da tecnologia existente, pode
fazer um filme, basta ter a vontade.
Um filme é feito de várias centenas de fragmentos cuja continuidade lógica e cronológica nem sempre é suficiente para tornar seu encadeamento perfeitamente compreensível ao espectador; ainda mais que, na narração fílmica, a cronologia muitas vezes é desrespeitada e a representação do espaço sempre foi das mais audaciosas (MARTIN, 1990, p. 16).
A edição é, talvez, o principal processo que se transformou para melhor se
aproximar das vidas apressadas que temos hoje. Cortes rápidos, cenas que duram
pouquíssimos frames para condizer com essa era de curta atenção do mundo digital
podem exemplificar as escolhas feitas pelos diretores.
Mesmo assim, ainda existem diretores puristas que mantém um estilo clássico
de cenas mais lentas, mas eles são uma minoria e isso é ainda mais evidente no
cinema americano.
(...) o cinema tornou-se pouco a pouco uma linguagem, ou seja, um meio de conduzir um relato e de veicular ideias: os nomes de Griffith e Eisenstein são os marcos principais dessa evolução, que se fez pela descoberta progressiva de procedimentos de expressão fílmicos cada vez mais elaborados e, sobretudo, pelo aperfeiçoamento do mais específico deles: a montagem (MARTIN, 1990, p. 16).
De acordo com Rabiger (2003), o cinema conquistou seu lugar por ser um meio
de comunicação coletivo, e não individualista. Pode-se entender que um filme é o
resultado do esforço de um time. Time este composto por roteiristas, que
proporcionam a parte vital do filme, a narrativa e as ideias que serão manipuladas na
tela; atores, que darão vida à história e farão a principal conexão com o público, sendo
eles os únicos a serem vistos no transcorrer da obra; produtores, que possibilitam,
antes de mais nada, o próprio fazer do filme, dando o apoio financeiro necessário.
Dentre muitos outros membros do time, há também o diretor. Cabe a ele orientar tudo
e todos, é ele quem dá a palavra final e é o responsável pelo filme como um todo.
156
Segundo Eisenstein (ano, p.), a “(...) profissão de um diretor de cinema pode e deve
ser uma profissão tão preciosa e de prestigio; que nenhum homem que aspira a ela
pode desconsiderar qualquer conhecimento que o fará um melhor diretor ou ser
humano”.
Há diretores que quebram um pouco o molde de orientador. Filmmakers que
querem participar ao máximo de seus filmes. Um cinema autoral que não é visto com
muita frequência. Há diversos estilos: diretores que editam seus próprios filmes, como
era o caso de Akira Kurosawa; diretores que escrevem seus roteiros, como os irmãos
Coen; diretores que gostam de aparecer tanto na frente das câmeras quanto de operá-
las, como Clint Eastwood. E há ainda casos mais raros de diretores que ocupam três
e, às vezes, mais posições dentro de seu filme.
Shane Carruth não se limita apenas a sentar na cadeira do diretor, mas
também atua, escreve, edita, produz e compõe a trilha sonora de seus filmes. É uma
combinação perigosa e experimental e, muitas vezes, o diretor que se aventura a ser
tão onipresente em seus filmes tem resultados desagradáveis, como por exemplo, Ed
Wood, notório pelos seus filmes de qualidade mais que duvidosa e por muitos
considerado o pior diretor de todos os tempos.
Entende-se que mesmo o profissional tendo a competência em tantos campos
diferentes de seu filme, ainda vão haver pessoas para auxiliá-lo, sejam eles os
figurinistas, seus colegas atores, ou o próprio cinegrafista. O cinema realmente é uma
arte coletiva, sendo quase impossível e, provavelmente, não recomendável fazer uma
obra audiovisual de modo totalmente “eremítico”, mas, mesmo assim, o caráter
experimental do cinema permanece um traço forte, mesmo depois de todos esses
anos. Rabiger (2003) explica que para se tornar um bom diretor de cinema é preciso
ter uma identidade clara e forte em relação ao mundo ao seu redor e uma
compreensão nítida do que significa dramaturgia.
Um filme que tem seus aspectos chave (direção, atuação, roteiro, conceito)
realizados pela mesma pessoa estabelece uma relação curiosa com a arte de uma
forma mais antiga. Como um pintor e seu pincel, dando vida a sua tela trivial, tornando-
a a mais improvável das belezas; apenas um homem e seu vislumbre de grandeza,
sua obra é sua essência e de mais ninguém, suas sensíveis marcas expostas. Um
diretor e sua câmera, capturando o comum de forma deslumbrante.
157
1.1 PALAVRAS CHAVE
Direção. Marca pessoal. Cinema autoral. Shane Carruth.
158
2 TEMA
O papel do diretor em uma produção fílmica.
2.1 DELIMITAÇÃO DE TEMA
O cinema autoral do diretor de cinema Shane Carruth.
159
3 JUSTIFICATIVA
Nós vivemos em um mundo comunicativo, trocando informações com as
pessoas a nossa volta, expondo nossas ideias, opiniões, para nos fazer entender e
para nos expressar. Mas as pinturas rupestres, gravadas em cavernas de tempos
imemoráveis, provam que o ser humano sempre sentiu a necessidade de ir além da
simples troca de informações; necessidade essa de passar uma sensação, de
capturar um momento seu e compartilhar com os outros. Necessidade de fazer arte,
de ser compreendido. Logo, afirma-se que expressar-se é vital nessa vida, e o
audiovisual é uma das formas que permite a expressão mais completa. Imagens,
sons, música, roteiro, sentimento. Tudo se une para formar a experiência única do
filme.
Como foi mencionado na introdução, o filme vem do esforço conjunto de muitos
profissionais e um dos mais importantes é o diretor. O estudo da direção para um
melhor entendimento sobre o que é um bom diretor complementa a vida de qualquer
comunicador, pois é importante apreender formas de comunicar, ainda mais a partir
de uma tão complexa quanto é o cinema. Desse modo, pode ter um melhor
conhecimento de si próprio e aprender como se comunicar mais claramente.
Um dos principais fatores que nos faz voltar de novo e de novo para o cinema
é a conexão que fazemos com o filme. É quando você se identifica com o que está
assistindo que realmente muda a experiência. O cinema não está preso à realidade,
nele tudo é possível, como Méliès foi o primeiro a perceber. Bernardet explica que no
cinema, fantasia ou não, a realidade se impõe com toda a força.
Mesmo quando se trata de algo que sabemos não ser verdade, como O Mágico de Oz, ou em um filme de ficção científica como 2001 ou Contatos Imediatos do Terceiro Grau, a imagem cinematográfica permite-nos assistir a essas fantasias como se fossem verdadeiras; ela confere realidade a essas fantasias. (BERNARDET, 1980, p. 13).
O diretor que consegue se manifestar de forma tão competente é mesmerizante
por si só, mas há aqueles que se aprofundam mais ainda e se manifestam em mais
de uma área. Shane Carruth é de extrema relevância, um comunicador assombroso
que se difere dos demais por fazer seus filmes praticamente sozinho. Roger Ebert
(2002) disse melhor quando pronunciou que o “(...) cinema é, entre todas as artes,
aquela que tem o maior poder de empatia, e bons filmes farão de nós seres melhores”.
160
4 QUESTÃO NORTEADORA
De que forma um diretor expressa sua marca pessoal em uma obra fílmica,
quando tratamos do cinema de caráter autoral? Estudo de caso: Shane Carruth.
161
5 OBJETIVOS
5.1 OBJETIVO GERAL
Desvendar de que forma os diretores que assumem diferentes domínios do
fazer cinematográfico e que produzem um cinema autoral (em especial Shane
Carruth) conseguem expressar sua personalidade, suas ideias e suas marcas
pessoais em suas obras.
5.2 OBJETIVOS ESPECIFICOS
- Entender a área da direção cinematográfica e de forma mais específica os
profissionais dessa área que assumem diferentes competências no fazer fílmico;
- Mapear historicamente na cinematografia mundial a presença de diretores
com a habilidade de atuar em várias frentes;
- Inteirar-se acerca do diretor escolhido, Shane Carruth para análise de suas
respectivas obras;
- Analisar os aspectos positivos e negativos relacionados à onipresença do
diretor;
- Aprender o que define um cinema autoral e qual o impacto que essa
abordagem traz ao universo cinematográfico.
162
6 METODOLOGIA
O presente trabalho monográfico tem o viés qualitativo, no qual o pesquisador
se utilizou da pesquisa bibliográfica como procedimento metodológico e Análise de
Conteúdo para a decupagem, baseado em Laurence Bardin. E a principal ferramenta
metodológica será o estudo de caso.
6.1 PESQUISA QUALITATIVA
Nesta pesquisa serão analisadas as obras do diretor cinematográfico Shane
Carruth, e de que forma ele consegue expressar suas ideias e marcas pessoais em
seus filmes, participando de todas as etapas de sua criação. Para isso, essa
monografia se utiliza de métodos qualitativos. Para Marconi e Lakatos (2011), a
metodologia qualitativa preocupa-se em analisar e interpretar aspectos mais
profundos, descrevendo a complexidade do comportamento humano, por meio de
detalhes sobre os hábitos, atitudes e tendências de comportamento.
Por conta das obras de Carruth serem produções com caráter subjetivo é
excluída a possibilidade de ser feita uma pesquisa quantitativa, por ser uma forma em
que são usados, em grande maioria, números e estatísticas.
6.1.1 PESQUISA BIBLIOGRÁFICA
Antes que possam ser esclarecidas quaisquer questões ou alcançar qualquer
objetivo, uma pesquisa bibliográfica aprofundada é necessária. Gil (2008) afirma que
a pesquisa bibliográfica é desenvolvida tendo como base materiais já elaborados,
como livros e artigos científicos, por exemplo. “A principal vantagem da pesquisa
bibliográfica reside no fato de permitir ao investigador a cobertura de uma gama de
fenômenos muito mais ampla do que aquela que poderia pesquisar diretamente” (GIL,
2008, p.71).
6.1.2 ESTUDO DE CASO
Também será usado o estudo de caso. Segundo Robert Yin é: “[...] uma
inquirição empírica que investiga um fenômeno contemporâneo dentro de um contexto
163
da vida real, quando a fronteira entre o fenômeno e o contexto não é claramente
evidente e onde múltiplas fontes de evidência são utilizadas (YIN, 2001, p.32). Este
método foi escolhido pela facilidade de dar exemplos práticos a partir das teorias
analisadas na pesquisa qualitativa.
Dentro do estudo de caso há a análise fílmica que segundo Vanoye (2008, p.
15), significa “despedaçar, descosturar, desunir, extrair, separar, destacar e
denominar materiais que não se percebem isoladamente a olho nu”. Para que isso
posa acontecer, esta análise deve ir muito além do que apenas as imagens do filme,
buscando entender o processo criativo do fazer fílmico e todos os demais processos,
tanto os concretos quanto os subjetivos que englobam sua concepção como um todo.
6.1.3 ANÁLISE DE CONTEÚDO
O segmento de análise de conteúdo contará com três vertentes: pré-análise,
exploração do material e, por fim, análise do material. O principal foco de estudo desse
trabalho monográfico são obras cinematográficas, é preciso compreender não só as
imagens, como também o roteiro, atuação, trilha sonora, edição, direção,
enquadramentos, etc. Isso leva à primeira vertente: pré-análise (coleta do material).
Bardin evidencia que a pré-análise engloba três aspectos: “a escolha dos documentos
a serem submetidos à análise, a formulação das hipóteses e dos objetivos e a
elaboração de indicadores que fundamentem a interpretação final” (BARDIN, 2011,
p.124). A autora ainda explica que “antes da análise propriamente dita, o material
reunido deve ser preparado e é aconselhável que se prevejam reproduções em
número suficiente. Nesse trabalho serão analisados os filmes Primer (2004) e
Upstream Color (2013).
A segunda vertente é a exploração do material (decupagem). De acordo com
Bardin (2004), é nesse momento que o pesquisador seleciona recortes do material
que será analisado. Ela continua: “esta fase, longa e fastidiosa, consiste
essencialmente de operações de codificação, desconto ou enumeração, em função
de regras previamente formuladas. ” Por isso, todo o material recolhido será dividido
em categorias.
A terceira fase é a análise propriamente dita. Para Bardin (2004), a Análise de
Conteúdo procura conhecer aquilo que está por trás das palavras sobre as quais se
debruça. As conclusões do pesquisador serão tiradas após a decupagem de todas as
164
cenas elencadas. Bardin explica que “o analista, tendo à sua disposição resultados
significativos e fiéis, pode então propor inferências e adiantar interpretações a
propósito dos objetivos previstos – ou que digam respeito a descobertas inesperadas”
(BARDIN, 2011, p.31).
165
7 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
7.1 DIREÇÃO
Dentro da linguagem fílmica há inúmeros processos em ação e todos devem
ter equilíbrio entre si. Quem orienta e controla esses processos é o diretor.
O Diretor é a pessoa que manda no filme, junto com o produtor [...]. Ele é quem vai dar a palavra final nas decisões. O Diretor, além de ser o chefe, também tem a função de dirigir os atores, definir qual tipo de iluminação vai ser utilizado no filme, qual o cenário ele quer, quais as posições das câmeras, qual roupa os personagens irão usar, etc. O Diretor não precisa saber a fundo sobre todas as áreas do cinema, mas ele precisa ter, ao menos, conhecimentos básicos sobre elas. (CASTILHO, 2013, p.24)
Há, porém, diretores que vão muito além do que Castilho elucida, como o
estudo de caso dessa monografia, Shane Carruth, que se mostra hábil em
praticamente todas as áreas do fazer cinematográfico e seu conhecimento vai muito
além do básico.
O livro O olhar e a cena, de Ismail Xavier (2003) é de muita ajuda para melhor
entender o que se passa na cabeça de um diretor e como funciona seu processo
criativo. Xavier, entre outros temas, aborda diretores específicos e esclarece como
esses artistas conseguem de destacar dos demais. Cada diretor possui suas
características e seu método de transmitir a linguagem do cinema.
A obra As teorias dos cineastas, de Jacques Aumont (2002) é de muita utilidade
nessa pesquisa, porque Aumont segue em um sentido diferenciado. Ele acredita na
teoria de quem faz cinema e deixa de lado as grandes arquiteturas teóricas
tradicionais. Não se trata de analisar filmes, mas sim se ater a entrevistas, ensaios
dispersos e alguns livros de diretores que realmente pensaram na sua arte.
No livro Direção de cinema, de Michael Rabiger (2003) o autor demonstra todas
as orientações para quem quer ser um diretor, desde suas formas de trabalho, a
linguagem do cinema e todas as etapas de produção fílmica. A obra também fornece
orientação técnica sobre roteiro, estética e atuação.
O artigo Direção de arte: a imagem cinematográfica e o personagem, de Gilka
Padilha de Vargas (2014) comenta sobre como o trabalho em equipe é importante em
uma produção cinematográfica e como o diretor deve colaborar com diversos
profissionais para alcançar o mesmo objetivo, que é o de concretizar um roteiro lido;
166
cada um deles munido de seu arsenal de instrumentos de trabalho, de sua bagagem
cultural, de seu repertório visual. O artigo traz a seguinte fala da premiada diretora de
arte Patrizia Von Brandestein:
[...] convém nunca esquecer que um filme é um empreendimento coletivo. Diretores de arte e diretores de fotografia são como unha e carne. Nossos respectivos trabalhos são completamente interdependentes. As idéias do diretor de arte devem se encaixar com as do diretor de fotografia. Jamais me ocorreria utilizar uma cor em um ambiente sem ter consultado previamente o diretor de fotografia. Durante a filmagem é essencial estar em contato constante com o diretor e com o diretor de fotografia (BRANDESTEIN apud VARGAS, 2002).
O artigo The Technological Evolution of Filmmaking and its Relation to Quality
in Cinema73 de Ryan A. Piccirillo (2011) frisa que não é a tecnologia que define o
diretor e sim, como o diretor se utiliza do que está disponível em sua era para criar
um produto de qualidade. Na maior parte das vezes, a obra do diretor reflete sua
visão sobre o mundo e suas críticas a respeito dos assuntos. A sua bagagem
cultural, suas vivências e até o país onde mora serão os maiores influenciadores da
sua obra cinematográfica.
Para melhor se aprofundar no estudo do cinema será utilizada a obra Lendo
as imagens do cinema de Laurent Jullier e Michel Marie (2007) onde os autores
analisam os filmes com uma lupa para melhor entender o que se passa na tela. O
objetivo principal do livro é decifrar o filme de maneira que se possa ver a obra não
como um todo, mas como uma arte de diversas camadas, cada uma
minuciosamente pensada e orquestrada.
O livro A linguagem cinematográfica, de Marcel Martin (1990) é fundamental, já
que ele evidencia um lado que não é tão debatido: o poder de linguagem do cinema.
O tema discutido pelo autor se aprofunda nos sentimentos do público enquanto está
assistindo um filme, em relação a suas transições, roteiros, enquadramentos e
escolhas de cores e como isso tudo impacta o indivíduo.
O capítulo l do livro O Olhar e a Cena, de Ismail Xavier (2003) é Cinema:
Revelação e Engano. Neste capitulo ele observa que as montagens produzem um
efeito em nosso imaginário que, muitas vezes, acabam nos enganando e criando
significados que só existem na tela. O filme, como qualquer outra obra de arte, após
ser lançado ao mundo, se torna aberto a interpretações. Além ainda, de caracterizar
73 A evolução tecnológica do fazer fílmico e sua relação para a qualidade do cinema – Tradução do aluno.
167
a leitura das imagens como produção do ponto de vista do observador, onde,
independente da objetividade da imagem, o resultado da filmagem será a composição
efetuada por ele e não o que diretamente a imagem permite mostrar quando isolada
dos demais elementos fílmicos. As imagens têm um poder imensurável na concepção
do nosso imaginário. Podemos produzir perante a visão do cineasta diversos
significados para cada uma delas e ainda, um novo significado quando observadas
em uma sequência. O cinema nos remete ao engano, porque deduzimos, perante um
movimento de câmera, situações não existentes que criamos no imaginário de acordo
com o que nos é mostrado sem indagar a veracidade dos fatos (XAVIER, 2003).
Quando assistimos a um filme de ficção não nos preocupamos se faz ou não sentido
a junção daqueles fragmentos de imagens, estamos ali para ver e crer no que nos é
mostrado. Esse é o propósito do cinema, segundo Xavier (2003, p. 35), ou seja,
“instaurar um mundo imaginário”.
A obra O cinema e a produção, de Chris Rodrigues (2002) é importante nessa
pesquisa, pois preenche a lacuna de como é produzido um filme. O livro explica os
bastidores do fazer fílmico, com uma linguagem voltada especialmente para a
comunicação social e contém um breve histórico dos movimentos fundamentais do
cinema.
Na obra A Imagem, Aumont (1995, p. 83) reflete sobre a “ligação emocional e
cognitiva do espectador com a imagem”. Segundo ele, “a arte imita a natureza, e essa
imitação gera um sentimento prazeroso”. De acordo com Aumont (2007), o cinema
nada mais é que o espelho do mundo. E assim como as artes plásticas, também foi
influenciado pela era moderna, onde começa a olhar para si mesmo, e, para o autor,
se equivale à literatura.
O livro Teoria contemporânea do cinema, de Fernão Pessoa Ramos (2004) é
relevante nesse estudo por sua análise profunda do cinema. O livro discorre sobre
como o cinema tem sido um modificador de comportamento, assim como um
propagador de valores e apresenta teorias e filosofia presentes em diversas obras.
A obra Pré-cinemas & pós-cinemas, de Arlindo Machado (1997) é valorosa no
sentido que destaca o contraste (e as similaridades) do antigo cinema em relação ao
cinema contemporâneo. Um diálogo no tempo, uma busca esclarecedora sobre o que
fez e o que continua fazendo o cinema, que é uma arte em constante evolução e
mudança, com novos movimentos se reinventando a cada dia.
168
7.2 MARCA PESSOAL
De acordo com Neumeier (2009), marca não é apenas o logotipo ou a
propaganda da empresa, mas a percepção intuitiva de um cliente em relação a um
produto, serviço ou a própria empresa. No cinema isso não é diferente. É aquele saber
quase instintivo de que você está assistindo um filme feito por alguém especifico.
Saber se está presenciando um filme de Ingmar Bergman ou um filme de Andrei
Tarkovski. Por que conseguimos discernir tal informação antes dos créditos
aparecerem? Porque os diretores deixam marcas pessoais em seus filmes. Atributos
únicos de cada um, traços de sua personalidade. No livro A forma do filme, de Sergei
Eisenstein (1949) o autor discute em detalhes como a montagem do filme, isto é, sua
edição cria um efeito muito pessoal em cada obra, como diferentes métodos criam
atmosferas distintas.
O artigo O diretor enquanto artista, de Tânia Siqueira Montoro e Michael
Peixoto (2009) foi de muito valor nesse projeto pelo fato que evidencia o diretor como
agente criativo. Ele trata da figura do diretor como um verdadeiro artista e como cada
um pode deixar sua própria marca pessoal em suas obras. Os autores explicam que
o exemplo mais difundido pelos críticos franceses do diretor que conseguiu driblar o
sistema “clássico” do fazer fílmico hollywoodiano foi Orson Welles, que, desde o seu
primeiro filme soube imprimir a sua marca autoral. Aliás, para muitos, “Cidadão Kane”
representa o marco inaugural da passagem do “cinema clássico” para o moderno.
Aumont ainda defende:
Depois do filme de Welles, continuará a fabricação de produtos normatizados, conforme às regras mais ou menos lógicas, mais ou menos universais, elaboradas por Hollywood, mas se saberá que existe outra possibilidade de cinema, que não apenas autoriza a virtuosidade narrativa – misturar os tempos e as vozes -, de como permite reivindicar a responsabilidade plena e inteira do dizer e do dito, em suma, de comportar-se como autor de filmes, seguindo o modelo então confesso do romancista. André Bazin, sempre perceptivo, não se enganou quanto a isso, ao declarar que, com e depois desse filme, 'o cinema é, enfim, igual a literatura'. O igual: não o vassalo, não o equivalente, não uma vaga lembrança, e não, também não, o concorrente. '“Fazer cinema’ é igual a ‘fazer literatura. (2008 p. 32)
A obra Fifty contemporary filmmakers74, de Yvone Tasker (2002) é
imprescindível nessa pesquisa, pois apresenta cinquenta diretores contemporâneos,
74 Cinquenta filmmakers contemporâneos – Tradução do aluno.
169
assim como seus métodos e técnicas em detalhes. O livro também dá um destaque
às diretoras, algo que os autores não mencionam muito e ao contraste do estilo de
cada indivíduo, evidenciando também que não existe um método melhor que outro. O
artigo Poética do cinema: sobre complementariedade, direção e método no processo
de criação de Marcelo Moreira Santos (2015) salienta que o fato de o cineasta tomar
as decisões cruciais na realização do filme não tira a co-autoria dos outros agentes
nem o caráter poético de suas funções no que tange à confecção do filme. Seguindo
essa perspectiva, o que se constata é que:
Essas interações que compõem e moldam a realização de um filme configuram-se como sistêmicas, isto é, há um conjunto de agentes semióticos com funções específicas que interagem e se integram na realização da obra. (MORIN, 2008, p. 105)
O artigo A Direção de Arte no Cinema: uma abordagem sistêmica sobre seu
processo de criação de Marcelo Moreira Santos (2016) expande esse assunto sobre
a cooperação entre o diretor cinematográfico e seus colegas de projeto, com ênfase
no diretor de arte e qual seu papel na consolidação do produto final.
7.3 CINEMA AUTORAL
O "Cinema Autoral" ou "Cinema de Autor" é um estilo de produção
cinematográfica que destaca o diretor como principal foco e força criativa na
realização de um filme. O fundamento principal dessa teoria é que o diretor, por ter
uma visão global da produção (áudio e imagens do filme) deve ser considerado mais
o autor da obra do que o roteirista, pois são os enquadramentos de câmera, a
iluminação, a duração da cena e todos os outros elementos decididos pelo diretor que
definirão os significados expressos pelo filme, colocando o roteiro abaixo dessa
hierarquia. Dessa forma, o filme acaba se configurando no diretor, fazendo possível
uma liberdade maior de criação e até mesmo com baixo orçamento. O Cinema
Underground, Independente ou Alternativo são classificações que pertencem ao
Cinema Autoral e que têm basicamente o mesmo significado, preservando
filmes feitos e distribuídos à margem dos esquemas comerciais da indústria
cinematográfica. Os filmes de Carruth se enquadram nessas categorias. Geralmente
filmes de cinema autoral tem uma maior expressão artística, pois respeitam a
170
liberdade de seu realizador (neste caso, o diretor), diferente de filmes relacionados a
grandes mercados, que atendem pedidos da produção executiva ou até mesmo de
elementos que evolvem teorias de marketing.
O artigo O Cinema Autoral? A história do Cinema Autoral e a perspectiva de
Barthes e Foucault aplicado ao modelo cinematográfico de Gustavo Txai Torres de
Faria e Stefânia Paula Fernandes Pereira (2015) é de importância, pois discorre sobre
os primórdios da tática, ele remonta as origens do cinema, os autores fazem relação
da influência literária para com o universo fílmico e tenta ainda apontar um autor para
o cinema no geral, concluindo que seriam os franceses.
O livro O que é Cinema de André Bazin (2004) ajuda a entender sobre as
diferentes escolas cinematográficas, desde a italiana e soviética até o western e pin
ups. Bazin foi um dos primeiros a usar a palavra auteur (autor) para distinguir
cineastas cuja obra tem a força de uma afirmação pessoal em termos de estilo e tema,
envolvendo também, no caso, diretores subordinados aos grandes estúdios.
O artigo Authorship in Cinema75 de Basak Goksel Demiray (2014) levanta
questionamentos como qual a relação entre o autor e o público e quem são os
verdadeiros autores do cinema.
A obra Ismos - Para entender o cinema de Ronal Bergan (2011) busca abarcar,
com seus 51 ismos, a diversidade da produção cinematográfica internacional. Nomes
alinhados com o chamado "cinema de autor", como Federico Fellini, Akira Kurosawa
e Glauber Rocha, convivem aqui com produtos típicos do mainstream de Hollywood,
com a politização do cinema soviético, com o experimentalismo das vanguardas
europeias do início do século XX, com a vitalidade dos filmes asiáticos do século XXI.
No artigo A Case Study on Film Authorship: Exploring the Theoretical and
Practical Sides in Film Production76 de David Tregde (2013) o autor traz muitas
referências dos críticos das Cahiers du Cinema, que foram quem deram origem a
teoria do autor no cinema. Andrew Sarris usou essa teoria para categorizar os
diretores no nível de sua autoria artística, solidificando a ideia do diretor como um
único autor de um filme.
7.4 SHANE CARRUTH
75 Autoria no cinema – Tradução do aluno 76 Um estudo de caso da autoria fílmica: explorando os lados teóricos e práticos na produção cinematográfica
171
O livro Independent Filmmaking and Digital Convergence: Transmedia and
Beyond77 de Vladan Nikolic (2016) aborda de forma ampla o conceito das constantes
mudanças que o cinema está experienciando, entre elas o cinema experimental e o
cinema independente. O livro trata da convergência digital e o que isso significa para
o futuro dos filmes. O autor faz diversos ganchos a Shane Carruth e como o diretor
multifuncional, sem quase nenhuma verba, conseguiu driblar as dificuldades e se
destacar no ramo.
O artigo An Article on Shane Carruth de Dan Salitt (2004) reflete sobre o estilo
de direção do artista, com foco em sua primeira obra: Primer. Novamente o baixo
orçamento da produção ganha destaque, frisando que o filme ganhou o
disputadíssimo prêmio do grande júri do festival de cinema de Sundance. Não há
dúvidas que seus trabalhos possuem diversas facetas e nas palavras do próprio
Carruth: “Eu acredito que estou tentando algo novo em termos de linguagem
cinematográfica. ”
77 O fazer fílmico independente e a convergência digital: transmídia e além – Tradução do aluno.
172
8 ROTEIRO DOS CAPÍTULOS
CAPÍTULO 1 – INTRODUÇÃO
1.1 METODOLOGIA
CAPÍTULO 2 – CINEMA
2.1 DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO E LINGUAGEM
2.2 O CINEMA AUTORAL: SURGIMENTO E CARACTERÍSTICAS
CAPÍTULO 3 – O DIRETOR DE CINEMA
3.1 OS PROCESSOS CRIATIVOS E AS MARCAS FÍLMICAS
3.2 O DIRETOR-AUTOR IMPRIME A MARCA PESSOAL
CAPÍTULO 4 – ANÁLISE DE CONTEÚDO
4.1 SHANE CARRUTH - O DIRETOR ONIPRESENTE
4.2 PRIMER
4.3 UPSTREAM COLOR
CAPÍTULO 5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
173
9 CRONOGRAMA
Atividade Julho Agosto Setembro Outubro Novembro Dezembro
Estudos
Bibliográficos
x x
Redação da
Introdução e
do capítulo 2
x x
Redação do
capítulo 3
x
Redação do
capítulo 4
x
Redação da
Conclusão
x
Revisão,
formatação e
encadernação
x x
Defesa da
Monografia
x
174
10 REFERÊNCIAS
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São Paulo, 2007.
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GOMES DE MATTOS, Antônio Carlos. Do Cinetoscópio ao Cinema Digital.
ROCCO, 2006.
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BERNARDET, Jean-Claude. O Que é Cinema. Editora Brasiliense, 2004.
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cinema autoral? A história do cinema autoral e a perspectiva de Barthes e
Foucault aplicado ao modelo cinematográfico. 2015. UFRGS, 2015. Disponível
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encontro-2015/gt-historia-da-midia-audiovisual-e-visual/o-cinema-autoral-a-historia-
do-cinema-autoral-e-a-perspectiva-de-barthes-e-foucault-aplicado-ao-modelo-
cinematografico/view>. Acesso em: 06 jun. 2017.
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BAZIN, André. O Que é o Cinema. Cosac & Naify, 2004.
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Acesso em: 10 maio 2017.
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