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FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP
Bastos, Carolina Leopardi Gonalves BarrettoB297d Dioniso e Apolo: faces de uma reflexo sobre a dana a partir
dasLeis de Plato / Carolina Leopardi Gonalves Barreto Bastos.- - Campinas, SP : [s. n.], 2005.
Orientador: Alcides Hector Rodriguez Benoit.Dissertao (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Filosofia e Cincias Humanas.
1. Dioniso (Deus grego). 2. Apolo (Deus grego). 3. Plato.4. Dana. 5. Dilogos. 6. Filosofia I. Benoit, Alcides HectorRodriguez, 1951-. II. Universidade Estadual de Campinas.Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. III.Ttulo.
cc/ifch
Palavras chave em ingls (Keywords) : PhilosophyDance
Dialogues.
rea de concentrao : Esttica, Filosofia, Histria da Filosofia, Dana.
Titulao : Mestrado em Filosofia.
Banca examinadora : Alcides Hector Rodriguez Benoit, Jos Antnio AlvesTorrano, Jeanne-Marie Gagnebin de Bons.
Data da defesa : 22/07/2005
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BANCA EXAMINADORA
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RESUMO
A dissertao oferece uma amostra de como a dana aparece na literatura filosfica. Em
termos especficos, consiste em apresentar o panorama com que o tema discutido nos
dilogos de Plato. Considerando-se que o filsofo ateniense apresenta a dana do
perodo clssico da antiguidade grega em uma pluralidade de aspectos, discutimos: (1) a
educao daplis, (2) o sentido religioso dos festivais, (3) o carter mimtico da dana
grega e (4) a sade e a beleza do corpo nas terapias que envolvem o uso da ginstica e
dos jogos. Na segunda parte, expomos uma introduo dana no pensamento de
Nietzsche, considerando os sentidos e os termos com os quais a dana uma instncia de
reverso do platonismo.
RSUM
La dissertation offre um aperu de la danse et comment elle apparat dans la littrature
philosophique. Dune faon plus precise, elle consiste prsenter le panorama avec
lequel le thme est discute dans les Dialogues de Platon. En considrant que le
philosophe athnien presente la danse de la priode classique de lAntiquit Grecque
dans une pluralit daspects, nous discutons : (1) lducation de la plis, (2) le sens
rligieux des festivals, (3) le caractre mimique de la danse grecque et (4) la sant et la
beaut du corps dans les thrapeutiques qui enveloppent lusage de la gymnastique et
des jeux. Dans la second partie, nous exposons une introduction la danse daprs la
pense de Nietzsche, em considrant les sens, les mots avec lequels la danse est instance
de rversion du platonisme.
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Agradecimentos
Ao prof. Dr. Hector Benoit (IFCH-UNICAMP), primeiramente pela aceitao de um
tema no convencional nas discusses sobre o pensamento antigo e, em particular, pela
sua leitura e contribuiesparmenidianas ao presente texto.
profa. Dra. Jeanne-Marie Gagnebin de Bons (IFCH-UNICAMP) e ao prof. Dr.
Oswaldo Giacoia Jr. (IFCH-UNICAMP) pelas consideraes feitas em exame de
qualificao, muitas vezes decisivas, e no somente nesta ocasio. profa. Jeanne-
Marie, especialmente pela viso de movimento e desdobramento dos espaos a ocupar;
ao prof. Oswaldo, pela indicao de leitura para a resoluo de um problema especfico.
Ao Prof. Mrcio Benchimol de Barros (UNESP-Campus Marlia) pelo seu importante
livro sobre a primeira obra de Nietzsche, pelo cordiais incentivos minha pesquisa e
pelos comentrios sobre uma jia.Ao prof. Dr. Paulo Vasconcellos (IEL-UNICAMP), ao prof. Dr. Flvio Oliveira (IEL-
UNICAMP) e ao prof. Dr. Jackie Pegeaud (NANTES-FR) pelas indicaes de leitura
sobre a dana grega. Sobretudo ao encorajamento por parte do prof. Paulo.
Profa. Dra. Haiganushi Sarian (MAE-USP) pelo curso sobre Iconografia da Imagem e
comentrios sobre o projeto inicial; e ao prof. Dr. Marcos Nobre (IFCH-UNICAMP) por
ajudar a viabilizar esta interlocuo.
profa. Dra. Valciclia Pereira (UFAM) pelos livros gentilmente cedidos e pela leitura
atenciosa do primeiro captulo.
Ao prof. Dr. Adilson Nascimento (FE-UNICAMP) pelos estudos empricos envolvidos
na formao de um sujeito danante.
Railda Leonardo (Centro de belas Artes de Macei), Eliana Cavalcante e Emlia
Clark (Ballet Eliana Cavalcante), no por terem sido minhas professoras de balletmas
pelo encantamento com que se mantiveram efetivamente inesquecveis.
Graa pela ternura com que foi minha leitora; amizade e carinho sem igual.
A Jenner pela dedicao em ler os captulos restantes.
Ambos pelo apoio irrestrito.
A Sakai pelo companheirismo.
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Isadora Duncan
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SUMRIO
INTRODUO:...........................................................................................................p.8
CAPTULO I:Paidia................................................................................................p. 11
1.1 Os deuses e a dana..............................................................................................p.12
1.2- A educao principia com a dana: Apolo e as Musas..........................................p.14
1.2.1 Ritmo e harmonia.... ........................................................................................................p. 18
1.2.2 O julgamento artstico.....................................................................................p. 20
1.3- O aspecto dionisaco da dana .............................................................................p. 21
1.3.1 O vinho, a dana e as fases da vida humana....................................................................p. 22
1.3.2 As danas bquicas.........................................................................................p. 25
CAPTULO II:Psiqu..............................................................................................p. 26
2.1 A harmonia e os movimentos da alma: Timeo e Fedro..........................................p. 292.1.1 Danas de harmonia e de desarmonia ......................................................................p. 31
2.1.2 Universos de referncia: verticalidade e simbologia ...................................................p. 33
2.2- Natureza dos movimentos: princpio, continuidade e equilbrioLeis e Timeo .... p.36
CAPTULO III:Mimese...........................................................................................p. 43
3.1 Uma palavra dos historiadores.............................................................................p.45
3.2 A representao mimtica da dana emLeis..........................................................p. 50
3.2.1.- O gesto.......................................................................................................p. 51
3.2.2- O elemento do prazer.....................................................................................p. 52
3.2.3- Os squmata...............................................................................................p. 54
3.3 Dana retratada....................................................................................................p. 59
CAPTULO IV: Uma leitura nietzschiana deLeis.................................................p. 68
4.1- Contraponto: a dana como lugar de reverso......................................................p. 69
4.2- Redefinio: Os princpios da dana emA Viso Dionisaca do Mundo .............p. 72
4.2.1 Apolneo, as figuras e a navalha........................................................................p. 81
4.2.2 Dionisaco, no fundo do prazer e da dor..............................................................p. 84
4.3- Retomada: O princpio apolneo da dana platnica em Nietzsche..................p. 87
CONCLUSO:.......................................................................................................... p. 91
BIBLIOGRAFIA:......................................................................................................p.102
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INTRODUO:
Esta cena no seno apenas uma dentre todas as outras que se encontram neste
vaso grego de figuras vermelhas, suporte material de figuras lendrias, antigamente
utilizado para transportar gua, chamado dria.1
O que nela haveria que espreita um incio? A mnade tem os olhos fixos em
Dioniso que, estando de p com seu tirso, contempla a mnade que neste instante acabou
de girar sobre si mesma. A imagem retrata o instante preciso em que seu vestido ainda
est contorcido e cheio de ar. Quase nada existe nesta figura que nos possa lembrar as
furiosas companheiras do deus de que nos falam Eurpedes e Pausneas, a escalar
montanhas em neve, munidas do tirso e da mania, a danar sem ordem ou mesura,
incansavelmente, e capazes de despedaar e devorar animais com as prprias mos. Uma
mnade inconsciente, um ser tomado, no nos parece. H uma outra atitude, em seu
1 Confeco e composio pictrica do incio do ano 400 a.C., o exemplar proveniente de Ruvoe pode ser atualmente encontrado em Karlsruhe, no Landesmuseo. A cena principal da pea ojulgamento de Pris, tema com o qual se nomeou, posteriormente, o pintor.
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lugar. Entre as figuras, uma lmpida atmosfera exclui todo e qualquer elemento de
xtase, entrega, receptividade. Com justeza nos movimentos ela se expe e se apresenta
atravs de sua dana. Neste momento, no se abandona a si mesma, mas retoma a si e
pode ver bem dentro dos olhos de Dioniso.
O que h nos olhos de Dioniso que no se pudesse achar nos olhos de Apolo?
Segundo nosso modo de pensar, Dioniso primeiro representa a espontaneidade do
movimento, sua fora natural que preenche o mundo de fenmenos que no se prestam a
serem medidos ou pesados. A bacante dana a seu bel prazer, sem sugesto de tcnica,
sem condies sine qua nonpara seus movimentos. O olhar de Dioniso a transporta para
um lugar anterior onde h apenas movimento incessante, onde estamos todos por
demais prximos das percepes imediatas e profundas, do prazer e da dor.
A bacante se conecta a este mundo, ao mesmo tempo ntimo e selvagem, nestedivino olhar. O sentido da terra lhe revelado. Diante desta presena gira sobre si
mesma, tendo mo o tirso. No se pergunta sobre o porqu dos Mistrios, pois os
pressente ao demarcar os espaos de sua dana. Ela os pode sentir, no fluxo intenso do
tempo, mas no os pode ver, seno atravs de alguma obscuridade.
A esta perspectiva dionisaca, em sentido radical de abertura ao movimento,
ligamos a acepo apolnea. Nesta ltima, a ocupao previamente definida pelo
espao da dana. No se pergunta o porqu desta indicao, uma vez que est claro que a
evoluo do danarino, rumo virtuosidade, pressupe a disposio em continuar a
repetir um determinado modo de proceder.
Assim, inicialmente enquanto a dinmica entre espontaneidade e tcnica de
movimento, refletimos sobre o princpio fundamental da dana atrelado aos nomes dos
deuses gregos Apolo e Dioniso, ao longo de nossa abordagem aos dilogos de Plato
campo educativo, esfera anmica e quadro das representaes mimticas, sobretudo em
Leis, mas tambm em Fedro e Timeo e, no ltimo captulo, na leitura nietzschiana
sobre o tema, a partir do texto de juventude de NietzscheA viso de Mundo Dionisaca.
Desde Leis, a dana concebida como ddiva dos deuses Apolo, condutor das
Musas, e Dioniso, afigurando-se em um alegre meio de conhecer o ritmo e a harmonia, e
tambm uma celebrao que nos liga novamente s divindades. Do grego Nomoi,
conhecido na tradio latina porLeges, o dilogo Leis comeou a ser elaborado pelo
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filsofo ateniense Plato (428-348 a. C) em 360 a.C, consistindo em sua ltima obra.
Segundo alguns autores, os 12 livros que a compem teriam correlao direta com as
doze horas de caminhada entre o porto da ilha de Creta e o templo de Zeus, atravs do
qual os personagens ateniense, cretense (Megilo) e lacedemnio (Clnias) conversam,
caminhando sombra das rvores que se projetam na estrada. A principal discusso gira
em torno das melhores leispara uma cidade recm fundada, na qual o primeiro meio de
educao no seno a dana, a dana coral.
No primeiro captulo, esta proposta de educao atravs da dana,
particularmente acerca do livro II das Leis, abordada em seus vnculos dialgicos. Em
um segundo momento, trazemos a tona as figuras de conexo como as quais os
princpios apolneo e dionisaco da dana so definidos, um a partir do outro.
No segundo captulo, relacionamos os princpios fundamentais da dana apolneoe o dionisaco aos movimentos da alma, vinculando leitura precedente as imagens da
tripartio da alma que os personagens Timeo e Scrates formulam, nos dilogos Timeo
e Fedro, respectivamente. Em um primeiro momento, abordamos os universos
referenciais, interno e externo, das fontes de movimento, em perspectiva de danarino.
Em um segundo momento, a relao suscitada entre o universo daphysis e as instncias
dapsiqu retomada na reflexo teraputica sobre o papel do movimento no equilbrio
entre soma epsiqu.
No terceiro captulo, discutimos a representao histrica da dana frente ao
papel dos dilogos, considerando, sobretudo, a formao do squmata, na
preponderncia do aspecto plstico nas operaes de representao mimtica.
No quarto e ltimo captulo, confrontamos a representao da dana em Leis e
em A Viso Dionisaca do Mundo (1871) de Nietzsche e arrematamos a contraposio
entre o apolneo platnico e o dionisaco nietzschiano na exposio do que veio a
ser a retomada do princpio apolneo da dana platnica em Nietzsche.
Neste ponto, preciso ter em mente que os princpios fundamentais da dana de
Apolo e de Dioniso assumem diferentes roupagens e se desvelam sempre em face de
uma relao complementar. Nosso controle consiste em retrat-los em seu jogo mltiplo
de referncias e campos de atuao, situando e definindo os elementos imprescindveis
trama que os constituem, ao longo deste itinerrio.
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CAPTULO I
PAIDIA
Eu mesmo aprenderia com muito gosto, siracusano,
as figuras da dana.
E de que te serviria isto, Scrates?
Serviria para danar.
(Xenofonte, O banquete )
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1.1- Os deuses e a dana
Um dos mais importantes aspectos da dana2 nos dilogos de Plato consiste na
disciplina educativa. Neste captulo nos propomos a aborda-lo em Leis, onde o papel
poltico atribudo ao conjunto das artes musicais introduzido pela dana coral. Nosso
interesse deslindar os sentidos suscitados nesta disciplina educativa, e em sua notria
exceo, e, posteriormente, comentar a viso de dana que ela deixa transparecer.
Apolo e Dioniso inventam a dana e a concedem aos homens os quais, liberados
da aridez do trabalho, receberem as divinas ddivas do ritmo e da harmonia, nos festivais
religiosos. Assim nos fala o ateniense, no livro II:
A ns (...) foram dados aqueles deuses como companheiros de corias
(koreas), tendo sido eles que nos concederam o agradvel sentido do
ritmo (rithms) e da harmonia (harmonia), por meio do qual nos
movimentam e dirigem, enquanto ns, de mos entrelaadas, cantamos e
danamos. A isso deram o nome de coro pela alegria que lhe prpria.3
Neste primeiro tpico, a questo se coloca no entrelaamento entre prottipos
divinos e manifestaes humanas atuando nos festivais. Segundo nosso modo de ver, a
citao acima faz aluso a algumas regras do jogo religioso dos gregos que, em muito,
determinam uma concepo cannica de dana, a saber: a visibilidade dos deuses nos
homens, a aparncia de juventude dos prottipos divinos e a glorificao da vida
imortal.
2 O termo korea, correspondente ao verbo koreu foi concebido entre os gregos como a arte dadana necessariamente associada msica, ao canto e palavra recitada, tal qual o sentido latode musik, sendo neste caso freqentemente designada por dana coral. J o termo orksisdesigna, em todo caso, exclusivamente a arte da dana, ainda que esta, em muitos momentos,seja uma parte da dana coral.3 Cf.Leis, II, 653e-654a. PLATO.Laws II. Opera Platonis, v. XI, trad. R. Bury, Loeb ClassicalLibrary, 1984, p. 90; PLATO.Leis. Dilogos, trad. Carlos Alberto Nunes, vol. XII XIII, col.Amaznica, srie Farias Brito, Universidade Federal do Par, 1980, p. 90.
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Deuses e devotos esto envolvidos em um processo mtuo de criao. No sentido
antropolgico utilizado por Lonsdale,4 quando pensamos na performance humana no
devemos nos esquecer a mimese de um prottipo divino sem o qual, de certa forma, o
divino no existiria. Neste ponto, notemos que as ddivas concedidas em honrar os
deuses com cantos e danas conferem visibilidade aos deuses imaginados. Ou seja, de
acordo com esta crena religiosa os prprios deuses dependem dos mortais para se
tornarem visveis.
Contudo, a contemplao recai sobre uma fase especfica da vida humana: a
juventude, a qual representa tambm o recm chegado vida poltica, uma vez que a
glorificao das figuras eternamente jovens dos deuses exercida atravs da dana e do
canto dos adolescentes. Esta brevidade da vida humana, em diferentes fases, e a
eternidade dos deuses, sempre joviais, tambm dependem uma da outra. Cria-se, comesta conveno, uma marcao de tempo social, simbolizada, ora pela tentativa de
reduzir a mais inegvel diferena, entre deuses e homens, ora para ressalta-la.
Segundo Sechan,5 os movimentos de dana talhados em mrmore, pedra e
bronze, e representados por figuras juvenis, chamaram a ateno dos filsofos para um
sentimento de fugacidade impressa nos materiais menos perecveis. A fora e a graa da
juventude estariam conservadas perpetuamente, de modo que as imagens votivas fariam
sentir, com os jovens, a brevidade da vida.
Ao que nos parece, nos coros religiosos de que fala o ateniense, as figuras
eternamente jovens dos deuses e a apresentao dos adolescentes interatuam,
particularmente, atravs do sentimento de glorificao da vida em uma nica e dinmica
perspectiva mortal e imortal. Esta condio entre deuses e homens se realiza plenamente
movendo-se o corpo com ritmo e entoando elogios aos deuses. A despeito das
necessidades do trabalho, da inevitabilidade da morte, e do transcorrer do tempo,
homens e deuses cantam e danam de mos dadas: o ritmo imprime no tempo um
sentido de limite, a harmonia ensina a proporo e a pertinncia de cada elemento no
conjunto, e a melodia d a conhecer, mais propriamente o encantamento das canes.
4 LONSDALE, Steven H.Dance and ritual play in Greek religion. London, Baltimore, 1993.5 SCHAN, Louis.La danse grecque antique. E de Boccardi, Paris, 1938, p. 12.
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Todavia, ainda neste contexto, h um outro aspecto a considerar: o valor poltico
da dana religiosa na antiguidade. As ligaes fundadas entre personificao divina e
danas corais atuam como um veculo que atravessa e preenche todos os espaos que
supomos separados entre o poltico e o sagrado. Neste dilogo, no livro VII, teremos de
maneira mais contundente uma de suas ltimas conseqncias: a direo artstica dos
tipos de danas de carter venervel atribuda ao general e ao sacerdote. Um corpo de
danarino portador de signos e um corpo concentrador. Isto , as danas de maior
importncia seriam presididas por aqueles que, na poca, exerciam as mais altas funes
polticas.
1.2 A educao principia com a dana: Apolo e as Musas
Portanto, como j mencionamos, ser no evento das festas sagradas que as danas
comeam a tomar parte na educao da polis, particularmente desenvolvidas no livro II
das Leis. Contudo, diferentemente do que havia sido considerado antes,6 o
desdobramento da discusso sobre as partes da educao musical avanam estritamente
sob o signo de Apolo e Musas.7
Nesta seo, nos concentramos no modo argumentativo com que o ateniense
concebe a paidia, dispondo seus elementos de um modo menos embaraoso, segundo
nosso modo de depreender. O trecho em questo se encontra ao longo do livro II,
compreendendo toda extenso da numerao referente a 653.
Um primeiro ponto consiste em associar a perfeio de um homem sua
felicidade, afirmando que feliz o homem que possui a sabedoria, a verdade e a reta
opinio, bem como as graas delas advindas. Aquilo que parece venervel ao ateniense
j est posto, nesta designao.
Em um segundo momento, a virtude e o vcio, no indivduo, tornam-se
primeiramente presentes atravs das primeiras percepes de prazer e de dor. Daqui,
desponta a primeira elaborao sobre o conceito de educao:
6 Cf. citao, p. 7.7 Ver-se O aspecto dionisaco da dana, p. 18.
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Agora eu tenho por educao esta virtude (aret) que dada por
meio de hbitos consoantes aos primeiros instintos das crianas,
quando o prazer, e a amizade, e a dor e o dio so corretamente
introduzidos em almas ainda incapazes de razo/colher o
discurso. E quem as encontra, depois de ter adquirido a razo,
para ficar em harmonia com ela.8
O fim ltimo da paidia ser a harmonia com o lgos e designar a educao
adquirida pelo adulto, a educao correta (orto); por outro lado, quando a educao
precede o descortino da razo, designada educao primeira (prton), pressupondo a
introduo de uma harmonia exterior s crianas, na qual o prazer e a dor (inevitveis)
sejam direcionados para a virtude (proposta).
Sobre o prazer e a educao, note-se, o jogo metafrico do alimento e da bebidaque aparece algumas vezes ao longo do dilogo. Sua apario, com freqncis, reafirma
o carter primacial dos alimentos em detrimento do prazer, mas no somente, pois
considera, de forma mais pungente, a necessidade de aliar o prazer nutrio. Na
seguinte passagem exemplificativa, o educador procura aliar o prazer da msica aos seus
propsitos:
Mas como as almas dos jovens no suportam trabalhos pesados,
esses encantamentos receberam a denominao de diverses e
cantos e, como tal, foram tratados maneira do que se faz com os
doentes e debilitados: misturam-se drogas saudveis a certos
alimentos ou bebidas adocicadas, e drogas prejudiciais a
alimentos repugnantes, para que eles se habituem a distinguir com
acerto o que devem preferir e o que lhes causa repulsa.9
Seguindo um pouco o contexto, o legislador sensato ser aquele que convencer
o poeta a usar a sua boa linguagem a fim de aliar o prazer boa instruo. Portanto,neste argumento, a composio harmnica da msica e a dana dos coros educativos
pressupem no somente o conhecimento do belo e do bom, mas um conhecimento de
8 Cf.Leis, II 653b. Texto grego utilizado p. 49.9 Cf.Leis II, 659e-660a. Pp. 59-60. Texto grego, p. 57.
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aliar o sabor agradvel ao que recomendvel para a sade do corpo, em termos
nutricionais.
H, ainda, outro modo de dizer a educao, como uma parte da virtude. Neste,
denomina-se virtude esta harmonia da alma como um todo, sendo a educao a
habilidade particular no que se refere ao prazer e a dor, que leva sempre a amar o que
deve ser amado e odiar o que deve ser odiado, do comeo ao fim da vida.
Ora, nesta segunda acepo de paidia um dos sentidos atuantes est
compreendido no espao psicolgico da educao infantil, ou seja, entre a percepo
originria (prazer e dor) e o sentimento (de atrao ou de averso) produzido a partir
delas. Naturalmente, este espao em que a educao atua supe o conhecimento real e
exterior ao que desejvel e, neste sentido, determinados hbitos podem ser
introduzidos de permeio, com fins persuasivos10.
A educao consiste em puxar e conduzir a criana para o que a
lei denomina doutrina certa e, como tal, proclamada de acordo
pelo saber de experincia de feito, dos mais velhos e virtuosos
cidados. E para que a alma da criana no se habitue aos
sentimentos de dor e de prazer contrrios ao que a lei recomenda,
mas se alegre ou entristea de acordo com os princpios vlidos
para os velhos, inventou-se o que se chama canto. 11
Uma vez que projetamos uma imagem das concepes de educao, do livro II
dasLeis, a partir de agora, vamos esclarecer de que modos esta bem ordenada disciplina
do prazer e da dor ter seu incio justamente na dana.
Na dana os jovens passam a conhecer dois importantes sentidos ordenadores: o
ritmo e a harmonia. Estes sentidos antecedentes ordem da razo seriam capazes de
suscitar hbitos virtuosos, os quais, conforme vimos, passam a ser apre(e)ndidos antesmesmo de serem propriamente entendidos. Se que podemos dizer deste modo, isto
quer dizer: comea-se a ser gente de verdade cantando e danando.
11 Cf.Leis II, 659d-e, traduo. C. A. Nunes, p. 59; texto grego utilizado, p. 58.
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Desta maneira, os coros religiosos da polis consistem na primeira lio poltica,
anterior ao domnio do dilogo e da dialtica, visto que o jovem manifesta, de modo
ainda no suficientemente crtico, determinadas certezas sociais sobre o lugar onde est
e, daquilo que deve ser objeto de seu desejo. Ainda que apoiadas na tradio, essas
certezas vem existncia por meio da manifestao coral dos jovens, da repetio dos
hinos, da atualizao ou renovao da f nos deuses da sociedade, a qual se renova com
o evento destas manifestaes.
No contexto geral do dilogo, como vimos, a educao primeira, da criana, vem
a rememorar a educao correta dos adultos. Este cultivo de sentimentos para o prazer e
para a dor que se denomina educao , com freqncia, descurado e corruptvel.
Portanto, ao longo da vida, cantar e danar so os modos de rememorar os sentidos
ordenadores do ritmo e da harmonia.Uma caracterstica importante para a aquisio dos sentidos musicais , sem
dvida, a permeabilidade dos jovens.
Os coros devem atuar por meio de suas canes mgicas na alma
tenra das crianas, que devem aprender por meio deles, e de sua
repetio, que para os deuses a vida mais agradvel a mais
justa.12
Consideramos permeabilidade esta sensibilidade com que as crianas mais velhas
facilmente apanham o sentido musical com que entram em contato e o interiorizam. No
contexto apresentado, at o presente momento, a teoria da virtude educativa pretende
comear a se valer na fixao de modelos artsticos representados atravs dos coros.
Se, por um lado, a dana e o canto dos adolescentes atua na alma dos jovens e,
conseqentemente, no corpo poltico da cidade, por outro lado, a ordenao destes
movimentos no se realiza de forma forada, mas por meio persuasivo, o qual no seria
possvel sem o elemento de prazer, fundamental para a eficcia do plano geral da
educao pela persuaso musical.
Ora, os mtodos coercitivos no podem abranger toda a educao que se pretende
em Leis. Com isso queremos dizer que a composio musical em questo um
12 Cf.Leis II, 659e ; texto grego, p. 112, traduo em portugus, p 59.
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instrumento poltico de manuteno das foras em apreo posto que o sentido de ordem
adquirido deve estar em consonncia com as composies oficiais, as quais informam e
ratificam qual o universo poltico em que os jovens devem se reconhecer.
Finalmente, nas Leis, aliar o prazer educao ser aqui uma tarefa de toda
manifestao da musik: dana, canto, poesia e msica instrumental.
1.2.1- Ritmo e harmonia
J mencionamos, no incio deste captulo a parte do discurso do ateniense em que
por ritmo e harmonia entendido o sentimento agradvel concedido pelos deuses e
atravs dos quais ns, seres humanos, somos movidos e dirigidos por aquelasdivindades. Neste ponto, ritmo e harmonia so tanto dons divinos quanto meios
ordenadores.
O ateniense vir a se manifestar acerca do que considera por ritmo e harmonia,
somente emLeis, II 665a, ao retomar e recolocar o que foi desenvolvido sobre os coros e
dar incio ao tema do terceiro coro, presidido por velhos em honra a Dioniso. Neste
momento podemos saber, com simplicidade mpar, o que precisamente ele pensa por
ritmo e harmonia.
(...) no que entende com o movimento, a ordem recebeu o nome
de ritmo; e com a voz, na mistura de sons agudos e graves, o de
harmonia, vindo a ser chamada coregia a unio das duas.13
H em grego clssico trs principais sentidos em que podemos conceber a
harmonia. Primeiramente, aquele que poderamos dizer de uma mesa, por exemplo, ao
nos referirmos s ligaduras, no aparentes, que garantem a unio e o equilbrio no qual
algumas peas de madeira tornam-se uma mesa concretizada. Note-se que, na lngua
portuguesa este sentido se conservou somente no registro da anatomia, j utilizado por
13 Cf.Leis,II 665a. Trad. C. Nunes, p. 66; na verso grega cotejada, pp 64-65.
18
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Galeno14 para designar uma certa ligao quase imperceptvel e articulada entre dois
ossos.
O segundo sentido principal diz respeito ao deus Harmnides, de onde deriva
Jarmonikov", como encontramos em Fedro 268e, ao se referir ao perito em msica.
O terceiro sentido principal de harmonia diz respeito sucesso lgica de sons ou
acordes, particularmente dentro da oitava, tendo, no princpio, designado as prprias
notas musicais e, s posteriormente, as escalas.
Sobre o termo ritmo, Liddell & Scott15 atribuem ao primeiro trecho o sentido de
movimento que se mede no tempo. Esta atribuio mais simplificada em muito se
confunde com a de sucesso de um conjunto fluente e homogneo no tempo, a espaos
sensveis quanto durao e acentuao.
Segundo Jger, pensar o ritmo como fluncia no seno a conseqncia daderivao etimolgica da palavra revw, que significa fluir e com a qual se apoiou a noo
mais antiga da palavra ritmo. A aplicao da palavra ao movimento da dana e da
msica, pode ocultar a significao fundamental. Para ele, o ritmo, na acepo mais
antiga, vem a ser justamente aquilo que imprime firmeza e limites ao movimento e ao
fluxo.16
O que nos interessa deixar claro com a contribuio desse autor no seno que,
se a intuio originria do descobrimento grego do ritmo, na dana e na msica, no se
refere sua fluncia, mas s pausas e constante limitao do movimento, a atribuio
do ritmo dana refere-se, evidentemente, ao rigor formal das coreografias.
Temos, inicialmente, a forma determinada do ritmo, o encadeamento
proporcional da harmonia e o thos da composio musical indicada pela alegria do
fenmeno dos coros. No mbito coreogrfico, isto significar dizer que a cristalizao
dos passos e dos gestos apoiada no ritmo e a justeza com a qual a sucesso agradvel de
agudos e de graves promovida consistem mais especificadamente nos elementos da
14ApudLIDDELL & SCOTT. Greek-English Lexicon, 9 ed. Clarenton, Oxford, 1996, p. 244.15Ibidem, p. 1576.16 Pensemos no Prometeu de squilo, que se encontra sujeitado, imvel sua rocha, gritando dehorror estou preso aqui, neste ritmo, ou em Xerxes, o qual, diz squilo, represou o curso doHelesponto e deu outra forma (ritmo) ao curso da gua ou seja, se transformou em umaponte com firmes ataduras. Cf. JGER, Werner. Paidia: los ideales de la cultura griega. trad.Joaquim Xirau. Fonte de Cultura Econmica, Mxico, 1957, p. 127.
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dana e demonstram, com rigor, a profunda dependncia musical da dana, no discurso
do ateniense, sobre a qual ainda voltaremos.
1.2.2- O julgamento artstico
Vimos, nos tpicos anteriores, o quanto os elementos pr-racionais, ritmo e
harmonia, desempenham um papel considervel na persuaso s regras, desde a
demarcao dos movimentos do corpo e da voz dos coreutas. Resta deixar claro que,
embora reconhecendo que esta unio entre paidia e poltica j havia sido abordada na
Repblica, gostaramos de salientar que, em Leis, o autor confere s artes musicais uma
abrangncia social bastante ampla.
Se j existia esta unidade entre tico e esttico no tempo de Plato, o ateniense seprope a restaura-la com a corutica, que tem presente como modelo primeiro para
educao. O pressuposto de uma forma absoluta do belo constitui um dos maiores
problemas do educador, que pretende edifica-la com a base artstica. Ora, poderamos
dizer que, quem v a assimilao do thos de toda polis e de sua juventude nas melodias
e coros, no poder depender do critrio individual para as prticas artsticas.
Pensa-se, com os legisladores, a utilizao de modos persuasivos, mais ou
menos sutis, que garantissem a eficcia dasLeis em elaborao. Isto explica, em grande
parte, o sentido atribudo musik nesta obra, bem como de todas as formas musicais
que a compem. : os cantos, as danas, os poemas e a msica instrumental.
Neste sentido, as artes musicais estaro sendo exortadas, estudadas e
determinadas por razo do poder atravs do qual so capazes de conduzir as pessoas a
determinadas condutas, e, com isso, evitar a transgresso s Leis e a necessidade de
combate-las. O aspecto educativo da dana emLeis exigir que as composies musicais
sejam avaliadas por um grupo restrito, antes de serem apresentadas publicamente.
Neste sentido, os personagens acreditam ser possvel legislar com coragem e
deciso no domnio das composies e execues artsticas e determinar quais os tipos
de melodias que so boas por natureza de modo que, se algum conseguisse apanhar a
justeza em matria musical, poderia com confiana legislar com respeito sua execuo.
20
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Em prol de uma educao para o prazer e para a dor, que havia sido proposta no
incio do segundo livro das Leis, recomenda-se agora, no apenas os tipos apropriados
de composies corais consoantes com a justia, mas tambm seu processo de escolha.
Eis a funo utilitria e poltica atribuda arte a que muitas vezes se d o nome
de conservadorismo: no estatuto das danas corais nasLeis de Plato, a resoluo caber
to somente aos velhos juzes. Adotado o modelo egpciode normalizao das prticas
artsticas17 sob pena de impiedade18, fica acordado que as inovaes nas artes musicais
so prejudiciais educao dos jovens.19 As composies musicais sero encaminhadas
aos velhos cultos, suficientemente versados em todas as artes musicais: poesia, canto,
dana e instrumental. Em seguida, tais senhores selecionaro os tipos mais adequados,
podendo emitir pareceres corretivos, auxiliados pelos poetas, desde que estes ltimos
saibam interpretar convenientemente as intenes dos legisladores.Outro ponto a destacar, ao lado da prtica legisladora, consiste na confirmao do
argumento de que o verdadeiro critrio musical no se encontra no prazer mas na
correspondncia dos prottipos de virtude a serem reverenciados nas prticas. No fundo,
a idia dominante de que a estabilidade das Leis da msica condicionaria a estabilidade
da poltica.
Tudo isso, supe, conseqentemente, uma forte convico na probidade do poder
poltico dos velhos sbios, o que , em todo caso, bastante suspeitoso, especialmente
quando lembramos que tanto os personagens quanto o autor dos dilogos so
representantes diretos desta categoria de legisladores.20
1.3- O aspecto dionisaco da dana
Nas Leis, precisamente em 672b, a origem dionisaca da dana seguir outro
prottipo: ser concebida enquanto reao da loucura ou mana introduzida pela
madrasta Hera em Dioniso ainda criana. Tomado por esse castigo, o deus teria criado
17 Cf.Leis II, 656c.18 Cf.Leis VII, 800a.19 Cf.Leis VII, 798d-e.20 Plato teria sido convidado a preparar nomoi para a cidade de Megalpoles. Cf. DiginesLarcio. Vida, Doutrinas e Sentenas dos Filsofos Ilustres, Livro III apudHildeberto Bitar emIntroduo traduo dasLeis de C. A Nunes, supra citada, p. 6.
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danas extravagantes e concedido aos homens o advento do vinho, esquecimento dos
males e alvio da alma. Nosso interesse, neste tpico, consiste em deslindar o fenmeno
dionisaco a partir das figuras envolvidas na sua concepo, descrever o contexto
dialgico onde ele se encontra, e comear a expor a natureza das danas educativas e no
educativas, segundo o aspecto psicolgico.
1.3.1 O vinho, a dana e as fases da vida humana
Notadamente nos captulos II e VII dasLeis, chamamos a ateno para os signos
da criana e do fogo que de modo bastante peculiar, acompanham a perniciosa lenda da
origem dionisaca da dana e a preservao das virtudes do vinho.Embora as danas dionisacas e o vinho sejam igualmente atribudas em virtude
da mesma perturbao divina oferecida pelo mito, exposto e renegado, as manifestaes
dionisacas sero diferentemente admitidas no cenrio dasLeis.
Conta a lenda, reforada pela fama, que essa divindade ficou com
a mente perturbada por influncia de Hera, sua madrasta, por isso,
como vingana, ele promoveu orgias e danas extravagantes,
sendo com tal inteno que nos fez presente do vinho.
21
Em primeiro lugar, os jovens so aqueles que devem ser educados para adquirir
hbitos consoantes com a virtude. Note-se que a utilizao do vinho lhes proibidapara
no atirar fogo ao fogo.22Por outro lado, o coro de Dioniso, tal qual o ateniense designa
o terceiro coro,23 composto de homens que devem, necessariamente, fazer uso do
vinho, uma vez que os juzes que o comporiam precisam do fermentado fruto da vinha
para perder as inibies agravadas pela idade, semelhana do ferro aquecido.24 O
21Leis, II, 672a, ibdem , p. 74-75.22 Cf.Leis, II, 666a.23 Cf.Leis, II 664c, os trs coros so masculinos: o primeiro o coro das Musas, composto porcrianas; o segundo, o coro de Apolo onde rapazes de at 30 anos pedem a influncia do deusem suas mentes e o terceiro, de Dioniso, tal qual se encontra no exposto.24 Cf.Leis, II, 666c.
22
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personagem central dasLeis tambm recorre natureza gnea das crianas, sem o sentido
de ordem nos movimentos e na voz25 como uma origem orqustica.
A investigao acerca da natureza das crianas permeia grande parte da discusso
nasLeis. Em 653d-e, o personagem j havia dito que todos os animais na primeira idade
no conseguem manter quietos nem corpo nem voz, esforando-se sempre por
movimentar-se e gritar, como na realizao de danas alegres e expresses de
contentamento. Porm, enquanto os outros animais no possuem o sentido de ordem e
desordem nos movimentos, a que damos o nome de ritmo e harmonia, ns o ganhamos
de presente dos deuses.
Em 664e, o assunto da natureza dos mais moos retomado em virtude da
ardncia muito prpria, que no os deixa ficar quietos, nem o corpo nem a voz, uma vez
que no param de saltar e de cantar, sem nenhuma ordem. Esta concepo de ordem,como bem lembra acrescenta o personagem, com relao voz e ao movimento,
estranha aos outros animais, s dela participando a natureza humana. Em decorrncia
disto, a ordem no que se refere ao movimento recebeu o nome de ritmo e a ordem no que
toca a voz, na mistura de sons agudos e graves, harmonia. J em 808d-e, dentre todos as
criaturas a criana a mais intratvel e pela prpria excelncia do germe da razo que
nela existe em estado rudimentar, a mais ardilosa, a mais hbil e a mais atrevida. 26
Nesta trama dialgica, onde o vinho muitas vezes confere juventude a quem no
mais a tem e as crianas esto muito prximas dos outros animais, conquanto no
desenvolvem os sentidos musicais, a utilizao do vinho aceita na cidade e
suficientemente indicada enquanto elemento de jovialidade a servio da superao das
condies limitadas dos velhos, no exerccio de serem coristas de Dioniso (o mesmo no
acontece com as danas).
preciso que os velhos esqueam de sua real condio,27 de modo anlogo,
preciso que os jovens se tornem seres civilizados pela dana de Apolo e das Musas,
atravs da qual sua origem primitiva e dificultosa ceda lugar sua condio civil.
25Cf.Leis, II 653d-e.26 Sobre a presena de Plato na histria das concepes atuais do educar para o pensar verGAGNEBIN, Jeanne-Marie. Infncia e Pensamento, em Sete aulas sobre Linguagem, Memria eHistria, Imago, Rio de Janeiro,1994.27 Um trecho de As Bacantes de Eurpedes faz aluso questo do ancio no culto a Dioniso:Tirsias diz a Cadmo: Onde danar? Onde deter o passo e sacudir a cabea grizalha? Ensina-
23
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O particular em questo, salientado aqui e alhures, o diferenciado, porm
contnuo, aprendizado do ritmo e da harmonia, em todas as fases da vida. Neste
momento fica bastante claro que o desenvolvimento da ordem um aprendizado
destinado juventude, pois o princpio ordenador impossvel s crianas da primeira
idade.
A inconstncia das crianas fogo, seus movimentos desordenados dos
membros e da voz, liga-se aos intensos sentidos de prazer e dor com os quais o mundo
comea a se revelar sem nenhum controle, ou, de seu modo outro, era pr-olmpica,
assombrada pela fria assassina dos Tits. Em todo caso, sempre remetendo a uma
anterioridade, no tocante compreenso humana acerca do movimento. Eis o incio em
que o demiurgo considera a gnese do universo:
Desejando a divindade que tudo fosse bom e, tanto quanto
possvel, estreme de defeitos, tomou o conjunto das coisas
visveis nunca em repouso, mas movimentando-se discordante e
desordenadamente e f-lo passar da desordem para a ordem,
por estar convencido de que esta est em superioridade em
relao quela [grifo nosso].28
Neste ponto, o demiurgo aproxima-se do legislador. Este e aquele so os
criadores de suas representaes da ordem, com as quais conferem um sentido quele
estado anterior de incompreenso. A criana, por sua vez, representa aqui to somente
o estado originrio carente de um sentido lgico e destitudo de medida, ao qual o carter
orqustico das manifestaes dionisacas ser justamente tambm caracterizado.
me tu, velho a um velho. Tirsias: tu s sbio. Nem me fadiga de noite nem de dia bater com otirso na terra. doce esquecermos que somos velhos. Ao que o profeta cego responde: Sentes omesmo que eu! Tambm juveneso e executarei as danas. Vamos danar em honra a Dionisos! doce esquecermos que somos velhos! EURPEDES.Bacas. Trad. Jaa Torrano, HUCITEC, SoPaulo, 1995, Vv 184-190, p. 33.28Timeo, 30a. Trad. A.Nunes, cf. Bibl. p. 36.
24
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1.3.2- As danas bquicas
Havamos mostrado, inicialmente, em Leis29, que as koreas representavam, de
um modo bastante objetivo, uma parte importante na paidia, enquanto matria
obrigatria e meio de aquisio do domnio, originariamente divino, do ritmo e da
harmonia. Nele, primeiramente, Apolo e as Musas, e, em um sentido mais restrito,
Dioniso sero deuses das danas, princpios divinos da dana e companheiros de coros.
De acordo com Apolo e as Musas, a dana conduz ordem, na alma e no corpo poltico,
ao passo que, de acordo com Dioniso, o foco incidir na origem manaca da dana, e
seus outros smbolos, analisados no tpico precedente.
Agora, vamos nos aproximar da discusso sobre os tipos de danas, do livro VII,
814e-816e. Reservando-nos, aqui, ao tipo dionisaco no prximo captulo voltaremosmais extensivamente sobre esta passagem.
Embora o carter religioso fosse atribudo a ambas as origens da dana, o que
confirma, sem dvida, ao estatuto geral da dana na Grcia antiga uma considervel
reverncia, o personagem no inclui a espcie de dana, a qual deriva seus nomes de
figuras como ninfas (mnades), Pan e silenos e que representem mimeticamente pessoas
embriagadas no ato de celebraes sagradas como purificaes e iniciaes. O carter
duvidoso atribudo dana reside na incompreenso de sua prtica. Em verdade, as
danas srias (semns) e as danas bufnicas (faulon), diferem em essncia das
bquicas. Ou seja, sua representao mimtica no possui relaes de semelhana nem
com os movimentos prprios aos belos corpos a guerreira prrica e a pacfica emmelia
nem s gesticulaes prprias aos corpos feios cmicas.
Neste processo classificatrio, as danas manifestadas em honra ao deus do
vinho no se mostram facilmente passveis de serem definidas.
Quer parecer-me, porm que se poderia muito bem qualific-lo
com exatido se o separssemos tanto do gnero guerreiro quanto
do pacfico e declarssemos que semelhante gnero de dana no
se casa com as boas instituies, e assim (...), voltaramos a
29Leis II, 654d. PLATO. Texto grego, p. 90, traduo utilizada, p. 52.
25
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estudar os outros dois gneros, os quais, sem dvida, nos falam
mais de perto.30
primeira vista, nenhum vestgio das metforas do fogo ou dofarmacon entram
na composio das danas de Dioniso. Ao tratar do fenmeno da dana, o gnerodionisaco no se adapta s duas categorias e recomenda-se sua extino por no
adaptao.
Uma interpretao possvel se baseia na lgica da pretenso e da eleio, tal qual
no captulo Plato e Simulacro da Lgica do Sentido de Deleuze. Nelas, dir-se-ia, sem
obstculos, que as danas dionisacas representam de modo exemplar o elemento de
excluso produzido a partir do assim chamado mtodo da diviso. Segundo a maneira
com que vemos este mtodo o mito no se encontra em posio de oposio explicao
dialtica dos eventos. O mito oferece o modelo a partir do qual a espcie mais adequada
ser escolhida na diversidade que constitui um gnero. Elege-se, nos dilogos platnicos,
o particular em pauta, tal qual o poltico, o amor ou a justia a partir do modelo sugerido
pela histria declaradamente mtica. Dentre outras coisas, separa-se o verdadeiro do
falso, procedendo de forma a no apenas posicionar vencedor e pretendentes, mas
hierarquizar o universo dos pretendentes entre si. primeira vista, a dialtica platnica
seria uma dialtica da contrariedade mas, alm da superfcie de dicotomia caracterizada
sobretudo pela idia dos dois mundos, subsiste um processo de seleo e eleio cujo
produto final levaria a dois resultados ou realidades deste mundo: cpias bem fundadas e
simulacros. Nesta operao, as danas guerreira e pacfica disporiam de uma
identificao notica com a idia que denota virtude, enquanto a justa medida da
coragem e da temperana, ao passo que os demais tipos se distanciariam, em grau de
verdade, da coragem e da sabedoria em si.
No nosso interesse esgotarmos a questo de como uma interpretao
deleuziana se aplicaria expulso das danas dionisacas, pois aqui ela est como umexemplo interpretativo do tema da excluso. Em nossa viso, a reserva das danas
bquicas no cenrio de formao da cidade nasLeis no est em primeiro plano, embora
indicativa. E, portanto, aproximar-se de uma operao que denota inadequao das
30 Cf.Leis VII, 815c-d. Texto grego, p. 94; traduo utilizada, p. 236.
26
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bquicas aos nicos gneros reconhecidos, ou reconhece-la, sutilmente, na formao do
terceiro coro e suas necessidades teraputicas, apenas nos informa um mtodo em que a
anttese do modelo poltico perpetrado representa uma exceo.
Vimos de que maneira o papel educativo da dana est caracterizado em Leis,
particularmente no que se refere prtica de sociabilidade poltica, na qual o
conhecimento dos princpios de ordem pr-racional passavam a ser assimilados pelos
jovens, quando estes, na ao de cantar e de danar, participavam dos coros sagrados.
Quando adultos, estes homens e mulheres tero na dana um meio atravs do qual as
imagens de virtude possam novamente ser vivificadas na memria, ou na memria do
corpoZ.
Para o ateniense, atribuir um carter educativo s danas apolneas e suprimir a
representao mimtica das danas dionisacas, se coloca como previso do sentido deordem na alma e no corpo poltico, atravs da atividade dos coros sagrados.
Neste captulo mostramos que o princpio fundamental da dana, apolneo,
consiste na disciplina educativa do corpo e da alma, opondo-se quele estado inquieto e
desordenado da criana fogo, dionisaca.
Sobre a questo da adequao ou inadequao ao quadro de danas platnico
faremos uma abordagem psicolgica. Deste modo, veremos que as danas de Apolo e
Dioniso representam mimeticamente dois princpios ancestrais de movimento,
associados s condies fsico/mentais dos danarinos, os quais propiciam at mesmo
um plano extremado de oposio entre uma racionalidade clara e distinta, na execuo
dos movimentos, e, por outro lado, uma aparente dissoluo da conscincia e de
descontrole nos movimentos.
Nosso prximo passo ser mostrar que esta oposio exagerada dos tipos de
dana est ancorada no princpio que rege a necessidade de harmonia entre as partes da
psiqu.
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CAPTULO II
PSIQU
A raiz e a estrela
A raiz diz:
sou profunda
a estrela ri:
imunda
(Horas de Albuquerque, Fios de desafios)
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2.1- A harmonia entre os movimentos de dana: Timeo eFedro
Nesta seo apontamos os universos de referncia dos prottipos divinos da
dana, a partir das ligaes entre a harmonia das partes da alma e os movimentos de
dana.
Primeiramente, lembremos que a harmonia um princpio divino que fora
concedido aos homens para que estes conhecessem a alegria da ordem nos movimentos
do corpo e da voz. Mas tambm preciso ter em conta que, no mundo grego, desde os
pitagricos mas principalmente a partir de Plato, era comum o uso de termos musicais
para se falar da vida poltica e moral.
No Protgoras, 324d, Plato j havia dito com grande nfase que toda vida
humana tem necessidade de ritmo e harmonia e na Repblica, 430e, explicado que atemperana sophrosyne uma certa consonncia e harmonia entre as partes internas do
gnero humano. Ora, se a vida humana virtuosa pensada sob o paradigma da ordem, da
medida, da proporo, do ritmo, da harmonia e da consonncia, bvio ento que uma
vida humana sem virtudes deve ser concebida como submetida desordem,
desmedida, desproporo, desarmonia e dissonncia.
Dentre as muitssimas formas pelas quais, no corpus platnico, a harmonia ser
definida, duas representaes das partes da alma humana, podero nos mostrar em que
sentido esta harmonia atua e denota a potncia dos movimentos.
No dilogo Timeo, clebre fbula da criao do mundo na ptica de um artista
plstico, figura denominada demiurgo, a criao dos mortais pelos deuses criados
descreve o modo com que a raa dos homens foi formada, e, com ela, a descrio de
partes da alma, fisiologicamente alojadas no corpo. Cada qual com sua razo de ser e
disposta para um universo de ao.
A poro da alma (quvmo") que participa da coragem e da clera e
ambiciona a vitria, (eles colocaram) entre o diafragma e o
pescoo, para ficar em condies de ouvir a razo (oriunda da
alma imortal, localizada na cabea) e a ela aliar-se, a fim de
vencer, pela fora, a tribo dos desejos (oriunda da parte imortal da
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alma localizada no ventre) sempre que estes se recusem a
obedecer ordem de comando da cidadela.31
Assim, segundo Timeo, teramos trs espcies de alma alojadas em cada um de
ns: uma alma imortal localizada na cabea, uma alma mortal, no peito, e uma segundaalma mortal no ventre, precisamente entre o diafragma e o umbigo.
Nesta viso, as partes da alma se comunicam umas com as outras, no sentido em
que suas pores esto alojadas no corpo. Neste exerccio de proporo, entre vontades
convenientes, e potencialmente conflitantes, o quvmo" corresponde nica parte anmica
que capaz de se comunicar diretamente com aquelas que esto nos extremos, ora
associando-se alma imortal, ora tribo dos desejos. Um delicado elo entre o cu e a
terra, portanto o homem, equilbrio dinmico entre as partes da alma.
Uma segunda imagem est em Fedro 15c-e, onde novamente a alma humana se
apresenta entre partes distintas. Neste momento o personagem Scrates a descreve tal
qual a fora natural e ativa que une um carro puxado por uma parelha alada e conduzido
por um cocheiro. O cocheiro representa a deliberativa que direciona o carro, aquela que,
contudo, no teria fora, sozinha, de levar-se para o local que se direciona. Os dois
cavalos alados representam a fora necessria para que a parte deliberante leve o carro
ao destino do seu curso. Os cavalos, todavia no obedecem igualmente ao condutor uma
vez que, entre eles, h um que no oferece condies de gerar continuidade s decises
do cocheiro e, pelo contrrio, recusa-se a obedecer, interessando-se pelas imagens de
beleza que contempla pelo caminho, fazendo-o somente mediante ao aoite que o leva
dor e, da, o impele obedincia. Este cavalo, de olhos vermelhos, no reconhece no
cocheiro a funo de dirigente enquanto aquele que est ao seu lado acata-o com
presteza e sem o intermdio da violncia. Resultado: o cocheiro no consegue dirigir o
carro sem ser forado a desvios. Scrates oferece esta explicao sofrvel e incompleta
participao da alma humana no cortejo liderado por Zeus.Nesta ptica, a parte dirigente dirigente por excelncia, sua deliberao opera
na elevao da condio humana e no exerccio da boa conduta e das boas prticas. A
31 Cf. Timeo 70a. PLATO. Timaeus. Opera Platonis, v. IX, trad. R. Bury, The Loeb ClassicalLibrary ; 1989, p. 69; PLATO. Timeo. Dilogos, trad. Carlos Alberto Nunes, vol. XI, col.Amaznica, srie Farias Brito, Universidade Federal do Par, 1980, p. 78.
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parte que melhor representa a fora vital dos apetites imprescindveis sobrevivncia
ser tambm aquela que no foge a nenhuma aventura, seduzvel por excelncia. A
intermediria, por excelncia, ser a parte da alma que se refere coragem e ao medo,
que ambiciona a vitria, e, principalmente, est em condies de aliar-se razo,
reconhecendo nela a que deve dirigir. E buscando conter os desejos irracionais daquela
que no compreende a lngua da razo, notamos que, nestas imagens apresentadas, o
mais baixo e o mais elevado no falam a mesma lngua.
Cada parte da alma, ncleo de vida ou fonte de movimento, em sua diversidade,
participa do conjunto das vontades do indivduo, eventualmente conflitantes entre si, por
razo de terem diferentes interesses (guiar, ser guiado e gozar das belas imagens, por
exemplo). Portanto, a harmonia, na diversidade do conjunto com que a alma humana
definida, pressupe a superao de um conflito potencial mas, mais precisamente, umarelao de pertinncia entre as vontades. O que afirmamos que o equilbrio necessrio
entre os desejos ser sustentado, ou se preferir, ser assegurado na medida em que existe
uma relao de harmonia entre as partes da alma, e somente atravs dela.
Mas como isto se relaciona dana? O que liga a harmonia entre partes da alma
e as danas apolnea e dionisaca ?
A primeira resposta a essa pergunta ser dizer que a dana religiosa simboliza,
aos olhos do espectador, a relao do danarino com o princpio de harmonia que deve
reger as suas disposies anmicas. Em seguida, que as partes da alma representam
mimeticamente os princpios do movimento que regem as danas apolnea, guerreira e
dionisaca.
2.1.1 Danas de harmonia e de desarmonia
Inicialmente, a respeito da primeira assero, o universo das danas organizado
a partir de uma classificao, segundo S. Curt,32 que divide os tipos de movimento em
relao ao corpo do danarino. Para este historiador da dana, todos os tipos de dana
conquistam uma reformulao dos limites do corpo e uma liberao do inconsciente,
todavia, os meios que tornam possvel estes mesmos resultados, fazem a diferena.
32 SACHS, Curt. Wold History of the dance, W.W. Norton&Company, 1937, p. 25.
31
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Movimentos harmnicos revelam danas harmnicas, movimentos de
desarmonia, danas convulsivas. As danas harmoniosas so caracterizadas como sendo
acompanhadas de exaltao, de exonerao da gravidade, e mesmo, mais objetivamente
falando, por movimentos para cima e para frente.
As danas no harmoniosas sero acompanhadas por signos de mortificao da
carne, cujas descries so idnticas em todo mundo, segundo ele, correspondendo a um
estado forado de flexo e relaxamento dos msculos que faz atirar o corpo em
selvagens paroxismos. Neste tipo de dana, o objetivo perder o controle sobre as partes
do corpo, completamente ou em alguma medida, de forma tal que a conscincia pode
desaparecer por completo. O autor assevera que estas danas aproximam-se mais do
sofrimento que da atividade.
Segundo a diviso primordial dos tipos de dana, consideremos, em um primeiromomento que, na ao humana e em suas formas de mimese, mais ou menos corpreas,
a disposio de ordenar os movimentos e a disposio em atingir um estado anterior
ordem, passar sempre pelo crivo do desejvel e poder transpor as fronteiras do
aceitvel. Escolhe-se a ordem porque somente atravs dela algo poder ser diferenciado
da desordem ntima de toda conscincia. A ordem superior desordem, assim pensou
o demiurgo quando comeou a criar o universo.
Contudo, preciso jamais perder de vista que a oposio entre um plano
ordenador de dana, em que os movimentos indicam a clarividncia de uma conscincia
desperta e atuante, e, distantes deste patamar, as danas que indicam o descontrole dos
movimentos, ao ponto mximo de dissoluo da completa da conscincia, no so seno
indicativos de dois princpios extremos que alimentam o movimento da dana segundo
uma viso excessivamente lgica e racionalista do mundo, a qual se caracteriza pelas
figuras da dana.
Deste modo, estariam aqui representados, por apolneo, a aparncia exterior de
um controle de si e da observncia s tcnicas de movimento, e, por dionisaco, o desejo
de criao de uma nova ordem, sem a qual nada de novo apareceria ao olhar.
32
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2.1.2 Universos de referncia: verticalidade e simbologia
Por outro lado, a teoria da tripartio da alma se liga diretamente s fontes de
movimento que, de modo simblico e fisiolgico, correspondem s danas religiosas de
Leis. Esta correspondncia se dar no plano da proeminncia dos universos de
referncia, internos e externos, da representao mimtica dos movimentos.
Deste modo, no plano interno da psiqu, as danas apolneas sero regidas pelo
princpio de inteligibilidade, as danas guerreiras, pelo princpio da coragem e, as danas
dionisacas, pela tribo dos desejos.
No plano externo, por sua vez, os universos de referncia da representaomimtica da dana sero os princpios ao mesmo tempo primitivos e universais dos
movimentos provenientes da observao das evolues dos astros celestes e da
percepo sinestsica dos sentidos da terra.
Na dana apolnea, para que a proporo interna pudesse ser conhecida e
perpetuada, atriburam-se determinados gestos ao deus antropomrfico, gestos
reverentes e ordenativos, praticados em cerimnias religiosas. Todavia, como estamos a
dizer, a referncia dos gestos dignos dos deuses provm, inicialmente, do movimento
dos astros. O que dizemos que as danas de harmonia so inspiradas pela observao
do cu.
Determinadas passagens dos dilogos discutem, dentre outros assuntos de no
somenos importncia, a natureza e as evolues dos astros celestes, denominados dana,
coro de dana ou coreografia.
O coro de dana (coreiva") dessas mesmas divindades em suas
respectivas revolues, suas justaposies, avanos ou recuos dasprprias rbitas; as que se tocam em suas conjunes e as que se
opem umas s outras, em que ordem cada uma delas passa pela
frente ou por trs da companheira, ou como aquela se esconde da
nossa vista, para parecer mais adiante e enviar aos homens
33
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incapazes de raciocinar sinais e medos acerca do que tem que
acontecer.33
(...) a natureza dos astros, belssima vista, e que em evolues e
danas corais, mais belas e magnficas que todos os coros, trs acumprimento aquilo que temos necessidade todos os seres
vivos.34
Neste sentido, e referindo-nos mais especificamente s citaes, o filsofo
escreve sobre movimento e natureza dos astros celestes e, com isso, nos fala um pouco
da relao que os gregos tinham com o cu. O movimento dos astros envia aos homens
incapazes de raciocinar sinais e medos acerca do que tem que acontecer e, num
segundo momento, trs a cumprimento aquilo de que temos necessidade todos ns seresvivos.
O inteligvel participa da natureza dos astros celestes na medida em que eles
seguem sempre seu caminho, sem nenhum desvio, sendo esta tambm uma maneira de
falar de sua beleza. Este carter constante da natureza dos astros celestes ir nos
interessar ao passo que as danas procuravam representar aquilo a que reverenciavam:
uma fonte inteligvel constante e ordenadora que diz respeito vida de todos os seres.
Em todo caso, tomar parte do cortejo dos deuses sempre desejvel, a menos que no se
reverencie este princpio ordenador, visvel e inteligvel.
No incio do livro VIII de Leis, o ateniense se encontra na tarefa de determinar a
ordem das festas, a freqncia, os deuses homenageados, os sacrifcios feitos e as
cidades envolvidas, quando adverte:
Alm disso, no ser misturado o culto dos deuses subterrneos
com o das divindades denominadas uranianas, ficando
devidamente separados os ritos respectivos. (...) preciso que os
guerreiros no manifestem averso particular a essa divindade,
porm a honrem como a mais benfica para o gnero humano,
33 Cf. Timeo. 40c. Texto grego p.84, traduo utilizada p. 45.34 Cf. Epnomis. 982e-983a, Dilogos, trad. Carlos Alberto Nunes, vol. XII XIII, col.Amaznica, srie Farias Brito, Universidade Federal do Par, 1980, p. 432.
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pois a unio da alma com o corpo, sob nenhum aspecto superior
separao, o que afirmo com a maior convico possvel.35
Dioniso, no tocante morte, uma divindade especial, primeiramente entre os
demais deuses gregos, pois ele o nico que morre, mas tambm entre os homens, postoque Dioniso renasce. Os mitos mais conhecidos que narram estes acontecimentos esto
presentes no duplo nascimento do deus, como indica seu nome, Dinisus e no
despedaamento do seu corpo pelos Tits. Provavelmente por razo desta memria seu
culto envolve o despedaamento de animais vivos.
Contudo, o universo sensvel de referncia da dana dionisaca no se refere
apenas a este aspecto mrbido, o qual se liga recepo do corpo do morto e sua
transformao em pedaos cada vez menores, ou ainda morada ancestral de todos os
mortos36, das memrias perdidas e das ausncias. Mas das presenas, das ddivas e do
prazer do esquecimento. As palavras de Tirsias so apropriadas para compreende-lo:
Existem para os homens dois princpios fundamentais. Primeiro a
deusa Demter ou a Terra, qualquer que seja o nome que se lhe
d. Ela a nutriz, a potncia dos alimentos slidos para os
mortais. Vem em seguida, mas igual em poder, o filho de Smele,
que inventou e introduziu entre os homens o alimento lquido, a
bebida extrada da uva: ela acalma as angstias dos pobreshumanos quando se fartam do licor da vinha; ela lhes traz a
ddiva do sono, esquecimento dos males quotidianos, e no h
outro remdio para seus males. 37
Nestes sentidos, o esquecimento ser prazeroso quando este esquecimento
significar, de fato, uma libertao dos males. Este poder curativo atribudo aqui ao vinho
35 Cf.Leis VIII, 828c-d. Traduo de Alberto Nunes, pp. 249-250.36 Veja-se, sobre a identificao de Dioniso com Hades, o fragmento 5 de Herclito: o mesmo Hades e Dioniso. Apud texto introdutrio sobre a traduo de Jaa Torrano Bacas cf.bibliografia, p. 15.37 EURPEDES, As Bacantes. Versos 274-285, traduzido por Detienne e posteriormente porCarmem Cavalcanti, cf. bibliografia.
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estende-se s danas extticas e ao culto dos mistrios, onde a intensificao do prazer e
da dor so temas centrais.
Ser neste sentido que pensamos a harmonia das partes da alma, as fontes de
movimento e seus universos de referncia. O homem enquanto elo dinmico entre o cu
e a terra pode assumir como representao a imagem do danarino conectado s fontes
de movimento, fisiolgicas e simblicas, daphysis e dapsiqu.
2.2- Natureza dos movimentos: princpio, continuidade e equilbrio
Nesta seo mostraremos uma leitura da dana a partir da unio psico-fsica
envolvidos na discusso sobre os tipos de movimento, em Leis. Nela, o movimento
corresponde primeiramente maneira com a qual uma alma se manifesta; neste sentido,pensamos a dana como a representao mimtica desta manifestao universal,
enquanto forma artstica.
No livro X das Leis, empenhado em atingir o suposto erro dos filsofos da
natureza em fundamentar o princpio do movimento (kinhvsew" a[rch) a partir dos
elementares, o ateniense expe os tipos de movimentos existentes e desenvolve a teoria
segundo a qual aquilo que movido por outra coisa jamais poder gozar do papel que
se atribui a um princpio. Tem-se, com isso, o exame entre os dois tipos principais de
movimentos: por um lado, o movimento capaz de movimentar outra coisa mas que no
se movimenta a si mesmo, concernente queles do fogo, da terra, da gua e do ar, e, por
outro lado, o movimento que sempre move a si mesmo tal qual a outra coisa. Este ltimo
movimento, por anterioridade em relao ao outro, ser o que move a si mesmo, o que
em si mesmo e por si mesmo, tambm denominado alma (yukhv).
Segundo Vlastos, autor de O universo de Plato, para Plato o mundo fsico no
responsvel pelo movimento de si mesmo, apenas a alma possua este poder demovimentar o corpo em que estava ligada. Esta concepo de alma no contm matria
fsica propriamente dita nem propriedades fsicas-materiais, exceto a de movimento. O
fogo, a terra, a gua e o ar eram movidos um pelo outro sem que houvesse um motor
primeiro no mundo fsico. Deste modo, a alma no contm matria fsica e no tem
quaisquer propriedades da matria fsica, tais como temperatura, densidade ou peso,
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exceto uma: pode mover-se. Mas, mesmo na sua capacidade de locomoo, a alma e a
matria fsica diferem de modo radical. Para Plato a matria fsica sempre movida por
algo que no ela mesma.38 A alma, diferentemente, pode movimentar o corpo ao qual
est unida e, atravs deste outros corpospelo pensamento e pela vontade.Nesta acepo,
a alma possui a propriedade fsica do movimento per si, isto , de forma diferenciada,
passvel de ser percebida pelos sentidos, e possui de uma propriedade deliberativa
necessria para mover a si mesmo.
Neste ponto, faz-se preciso nos aproximarmos da ao do dizer que leva a estas
concepes de movimento. A anterioridade dapsiquem detrimento daphysis envolve a
substituio do termo empregado pelos filsofos naturalistas, a partir do momento em
que o ateniense expe a definio da essncia do que entende por physis como umaespcie determinada de movimento.39
Ora, no se trata aqui de realidades diversas mas de dois aspectos de uma mesma
realidade, isto , a psiqu enquanto physis e a physis enquanto psiqu, precisamente
enquanto movimento que move a si mesmo e no, como os physilogoi o
compreendiam, movimento que movido por causas exteriores.
Neste caso especfico pensamento e vontade em ao demarcam o campo
metafsico da dana. O princpio do movimento (kinhvsew" a[rch) enquanto aquilo que
move a si mesmo (to; aujto; auJto; kinou'n) de que nos fala Scrates no Fedro40o melhor
dos movimentos enquanto aquele que em si mesmo e por si mesmo
(hJ ejn eJautw/ uJf j aujtou' ajrivsth kivnhsi") de que nos fala Timeo no dilogo homnimo,
bem como o princpio de todos os movimentos (kinhvsew") e primeiro aquele que move
a si mesmo (th;n aujth;n eJauth;n kinou'san), sobre o qual o ateniense nos fala emLeis X,
895b, so recorrncias e reincidncias a um importante conceito de alma atravs das
quais a dana alcana imanncia nos dilogos de Plato.
38Timeo,49b-c ( ...) o que denominamos gua, ao condensar-se, segundo cremos, vira pedra eterra, e ao fundir-se e dissolver-se, esse mesmo corpo se transforma em vento e ar; o ar virafogo quando se inflama, e, por um processo inverso, o fogo, contrado e extinto, retoma a formado ar, como o ar, retornando a reunir-se e a condensar-se, vira nuvem e neblina, das quaisoutra vez, comprimidas ainda mais, deflui a gua, para desta, de novo, sair terra e pedra.Traduo utilizada, p. 54-55.39 Cf.Leis, X 892b.40 Cf. Fedro, 245d.
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Contudo, a bipartio do mundo sobre essas categorias de movimento, embora
privilegie o campo metafsico da dana, no poder contemplar o sentido da proporo
entre os dois aspectos de uma mesma realidade. Definimos a terceira abordagem dos
vnculos entre a danapsiqumediante o valor teraputico do movimento e da superao
da hierarquia da atividade terica em relao prtica.
As conseqncias teraputicas desta tese segundo a qual a natureza do
movimento por si mesmo diferencia-se do movimento que por outra causa
comeam a surgir quando as molas metafsicas do pensamento e vontade esto
entrelaados ao corpo humano, vivo, perecvel e atuante.
Neste ponto, no vemos a negao dos apetites corporais como uma atitude
caracterstica nos dilogos, mas, em seu lugar, o cuidado medical no cultivo de umalouvvel proporo entre soma epsiqu, por meio de movimentos compensatrios.
Vimos, anteriormente, as partes distintas da alma separadas pela extenso do
corpo. Neste momento ser de acordo com as concepes fisiolgicas e psicolgicas
expressas por Timeo que abordaremos a prescrio medical de exerccios rtmicos para a
sade do corpo e da alma, indicada para o equilbrio entre o exerccio racional e o
exerccio corporal, vinculada ao circuito de movimentos internos e externos ao
indivduo.
No que diz respeito sade e s doenas, virtude e aos vcios,
no h proporo nem desproporo de maior importncia do que
a existente entre a alma e o corpo.41
Com estas palavras no temos mais a confirmao da superioridade do exerccio
intelectual em detrimento do puramente fsico. Esta idia recorrente na tradio
neoplatnica se encontra aqui mais tnue em virtude de um cuidado mdico enraizadono princpio de proporo entre as partes que constituem o humano.
Da ser imprescindvel quele que se dedica ao aspecto racional o hbito
disciplinado do exerccio corporal. Ocorre o inverso sempre que o corpo grande e
41 Cf. Tim. 87d. Texto grego, Pp. 326-328; Traduo utilizada, Pp. 96-97.
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superior alma dotada de pequena inteligncia. Neste segundo caso de desproporo, o
indivduo deve cultivar a matemtica, a msica e a astronomia.
Todavia um meio proposto para que ambos os perigos sejam evitados: no
acionar a alma sem o corpo, nem o corpo sem a alma, de modo que se defendendo um do
outro, corpo e alma consigam equilibrar-se e conservar a sade.
No poremos um inimigo ao lado do outro, para gerar no corpo
guerras e doenas, mas associaremos um amigo a outro, a fim de
que, juntos, cultivem a sade.42
Nesta argumentao, o personagem considera alguns tipos de movimentos no
tocante sade. De todos os movimentos, (1) o melhor ser considerado aquele que o
corpo produz nele e por si mesmo, por ser o mais aparentado com o movimento do
pensamento e do universo e dos astros celestes; (2) inferior a esse ser o movimento
produzido por outro agente, e (3) o pior de todos, o que provm de causa estranha e
abala o corpo enquanto este se acha deitado e em repouso.
Este ltimo ser o movimento propriamente nocivo sade, contra o qual
devemos nos proteger com exerccios compensadores, cultivo de sua totalidade dual.
Sobre este, considera-se que o corpo capaz de se aquecer e de se esfriar por dentro com
as substncias que entram nele, ou se resseca ou umedece sob a influncia do exterior, e
sofre os efeitos desse duplo movimento, muitas vezes vencido e perece, quando se
entrega a esta agitao uma vez em estado de repouso.
Associar a exigncia de proporo entre os aspectos duais da constituio
humana no tocante aos movimentos entre as partes do corpo e as partes da alma
demonstra a exigncia, no discurso de Timeo, de uma argumentao intuitiva e,
sobretudo, de ordem da observao natural. Isto se mostra, sem dificuldade, na
prescrio de movimentos regulares em prol de uma sade equilibrada.A figura da me e seu pequeno filho, em momentos diversos, permite o
argumento pelo qual assinala a eficincia teraputica incontestvel do mtodo. Veja-se,
por exemplo, a exposio do ateniense43, acerca das prticas indicadas para a formao
42Tim. 88e. Texto grego, p. 240; Traduo utilizada, p. 98.43 Cf.Leis VII, 790c-e. Traduo de A. Nunes, p. 206.
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das almas das crianas na primeira idade. Trata-se precisamente do movimento de ninar
e de acalentar mediante o qual, nos braos firmes da me, o pequeno muitas vezes se
acalma, abandonando o desagrado ao passo em que se permite uma ateno permevel
ao deslocamento. De volta ao universo da ordem, onde tudo tem um tempo e um ritmo
certo para o acontecimento, o ir e o vir, o bater e o bater novamente, o indivduo repousa
na tranqilidade, a salvo de seu desagrado e sem mais causar transtornos: dorme.
Em Timeo 87d, o protagonista homnimo argumenta que devemos imitar o que
denominamos a nutridora e ama do universo, esforando-nos para que o corpo no fique
nunca em repouso. Se o mantivermos sempre em movimento, e a cada instante
imprimirmos certos abalos em suas partes, para defend-lo naturalmente entre os
movimentos internos e exteriores, possvel estabelecer alguma ordem entre as partes e
as afeces que erram no corpo.Por um lado, esses cuidados comuns, tambm encontrados em prescries
mdicas e na educao dos jovens, fazem ver o valor esttico do corpo, dentre outras
coisas, e uma das faces da ginstica grega.
Uma das partes da dana se limita a imitar as palavras da Musa,
sem nunca perder o senso de nobreza e liberdade; a outra
promove os bons hbitos, agilidade e beleza dos membros e
demais partes do corpo, por meio da flexo ou distensoconvenientes, como movimentar cada um dentro do ritmo
apropriado, que se difunde por toda dana e a acompanha
exatamente.44
Mas preciso ainda lembrar que, a rigor, tanto na dana quanto na ginstica, a
beleza que estava em jogo no se continha na bela forma alcanada, nos traos
harmonizados, nos msculos consolidados. Estes eram, sem dvida, mais que indcios
significativos, todavia, entre os gregos, a beleza se estende na ao. E, pensando neste
sentido, no seriam o ginasta e o danarino os seres mais aptos e potentes a realizar, de
modo explcito e imediato, as mais belas aes de superao das foras humanas?
lanar mais longe, girar mais rpido, suportar mais peso, saltar mais levemente.
44 Cf.Leis VII, 814e. Traduo de A. Nunes, p. 234.
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Naturalmente, a realizao dos jogos e das danas no pode ser plenamente
compreendida no exerccio medical. Do mesmo modo, o ideal de beleza cultuado entre
os gregos no consistia no nico aspecto da dana entre os gregos.
Sobre a relao que se estabelece entre os movimentos de soma e psiqu, os
princpios imaterial e material da dana so retomados na esfera da sade. Nesta
nova perspectiva, a distino e a definio do que so e do que representam os princpios
fundamentais da dana, pressupem um cuidado de proporo entre as partes com as
quais concebemos a totalidade das fontes de movimento. Portanto, no ser enquanto
associao de realidades que se repelem que o humano est aqui pensado, mas sim em
sua totalidade conciliada; ou ainda, no exerccio contnuo desta conciliao.
No captulo anterior, havamos suscitado uma viso de dana na qual os jovensexperimentam a transcendncia divina, em ritos iniciatrios, os quais conferem
visibilidade aos deuses imaginados e renovao das perspectivas da ordem social. O
ateniense de Plato busca na dana a primeira forma persuasiva de transmisso e
interiorizao de uma ordem social. Neste cenrio, o objeto do ensinamento e o
resultado de sua contnua reproduo formam uma bela metfora entre a alma do jovem
e o corpo social, no estudo da educao atravs da dana apolnea. Contudo, como
pudemos abordar neste segundo captulo, se as percepes pr-racionais do ritmo e da
harmonia na dana educam a alma e o corpo dos jovens, na medida em que estes so
ddivas das Musas e de Apolo, por outro lado, a espcie dionisaca contrasta o
paradigma da dana que se pretende instaurar. Isto se deve por razo de denotar, ao olhar
dos legisladores, uma precria harmonia no corpo e na alma dos participantes, os quais
sero identificados, primordialmente, com aquele estado originrio de prazer e dor, sem
mediao da razo, sintetizados no smbolo da criana. A irrequieta centralizao em si
mesma com que a criana , dentre todas as criaturas a mais intratvel torna o sentido
das danas bquicas de difcil compreenso.
Neste captulo, discutimos em que sentido os princpios apolneo e dionisaco da
dana so descritos enquanto desdobramentos da alma, organizados segundo os
referenciais interno e externo das fontes de movimento. Assim, a partir da teoria da
tripartio da alma, a alma imortal humana liga-se observao dos movimentos dos
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astros e a sua representao mimtica, associadas inteligibilidade e constncia, e, no
extremo sul, a parte irascvel da alma liga-se aos sentidos mais prementes da terra: a
necessidade de manter vivo o fogo interior, o qual comanda, as atitudes espontneas da
criana e os desejos violentos de prazer e de dor.
Deste modo, o contraste sugerido pela exceo das danas polticas projeta,
algumas faces assumidas pelos princpios da dana religiosa de Apolo e Dioniso, as
quais se comportam diferentemente na educao, na compreenso psicolgica do
danarino e na representao. No prximo captulo, nos demoraremos mais sobre a
questo da representao mimtica da dana e suas estruturas e convidaremos o leitor a
pensar nos acordos e desacordos entre o conhecimento da medida e a viso, ainda turva,
do intenso fluxo de movimentos, os quais no deixam transparecer exatamente as belas
figuras da dana.
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CAPTULO III
MIMESE
... o que a dana? Um e outro de vs parece respectivamente sabe-lo; mas sabe-lo totalmente em
separado! Um me diz que ela o que , e que se reduz quilo que nossos olhos esto vendo; e outro
insiste que ela representa alguma coisa, e que no existe ento inteiramente nela mesma, mas
principalmente em ns. Quanto a mim, meus amigos, minha incerteza fica intacta!...
(Paul Valry,A alma e a Dana)
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No captulo anterior, havamos discutido a representao mimtica da dana, sob
um primeiro aspecto: no estudo das partes da alma caracterizamos as fontes de
movimento em relao aos universos de referncia, internos e externos da mimese e,
neste sentido, apresentamos tipos de danas paradigmticos, a partir daqueles
referenciais de movimentos.
Neste momento, a representao da dana comea a ser abordada,
particularmente em seu carter histrico. Por exemplo: observemos as consideraes
tecidas por L. Schan sobre a preeminncia do aspecto apolneo da dana grega.
Segundo o helenista, os gregos no ignoravam a face dionisaca, orgistica da
dana, a qual apresentava movimentos excessivos, tumultuosos, desordenados, por
exprimir uma petulncia quase animal ou ainda, valendo-se do frenesi, levando a umdelrio onde a personalidade humana era dissociada do corpo. Contudo, a dana antiga
grega era essencialmente apolnea, o que diz ela ser mesura, medida, equilbrio, luz,
conscincia e um bem entendido de bondade e de beleza de viver, e crescente alegria:
Para os gregos a dana no era normalmente concebida enquanto
xtase, mas mais propriamente como uma expresso completa da
harmonia do ser dentro dos seus limites, expressando
naturalmente e sem excessos os sentimentos bem aventurados daserenidade inerente divindade que se manifesta em todas as
formas da beleza.45
Segundo nosso modo de ver, esta concepo da dana grega, em seu carter
apolneo em muito se apia nos dilogos,especialmente no que diz respeito aLeis, onde
o tema da dana mais longamente debatido; de modo tal que Plato, o autor dos
dilogospode ser considerado, sem reservas, tambm um historiador da dana.
Sobre esta questo, ampliaremos, momentaneamente, a perspectiva da dana
grega antiga em exposio da representao histrica do fenmeno da dana grega. No
apenas para contextualizar as consideraes do autor dos dilogos na formao do
verbete dana grega antiga nem apenas para situar a questo da dana na cultura
45 SECHN, Louis. La danse grecque antique, E de Boccardi, Paris, 1937,p. 86.
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grega, mas, mais particularmente para suscitar outras relaes entre dana e mimese, a
partir das alternativas precedentes. De um modo geral, neste captulo, nos
concentraremos em abordar algumas caractersticas da representao mimtica da dana.
3.1 Uma palavra dos historiadores
Plato o autor que, dentre os antigos, conhecidamente oferece as informaes
mais ricas e mais vlidas sobre a dana grega de seu tempo 46. Todavia, o tema da dana
no apresenta uma sistematizao imediata pela qual um plano de danas estivesse
explicitamente consolidado. As referncias so de tipos de danas diversas e muitas
vezes os nomes das danas esto omitidos, restando as consideraes algumas vezes
conflitantes entre si.O prprio termo grego relativo dana coreiva adquire sentidos diferentes,
ao longo dosDilogos, podendo denominar (1) a dana circular ou bem uma melodia a
ser danada, um canto de dana, sendo o sentido (2) de revoluo dos astros, que ele
toma em seguida, ulterior composio do Timeo. Nas Leis o termo empregado em
sentidos oscilando entre a primeira e a segunda acepo. Sendo notvel que ele aparece
principalmente nas passagens relativas educao.
Em um sentido geral, nossa abordagem literatura platnica privilegia os
princpios fundamentais da dana, apolneo e dionisaco, na medida em que so
constitudos mimeticamente. Todavia, a proeminncia do carter apolneo da dana na
literatura platnica (e a impossibilidade de superao completa do dionisaco) esto
afirmadas em diversos nveis de anlise. Cabe, aqui, fazer uma indicao sobre a
abrangncia do tema, acerca da qual voltaremos, sempre que for necessrio.
Neste modo, as duas explicaes sobre a origem da dana apresentadas pelo
ateniensenasLeis47esto em primeiro plano. Nelas, como vimos, a dana vista como
uma ddiva de Apolo e das Musas, e, secundariamente, atribuda