CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (org.) Minorias silenciadas: a história da censura no Brasil.
São Paulo: EDUSP / Imprensa Oficial do Estado / FAPESP, 2002. 614 p.
p. 11
APRESENTAÇÃO – Jacques Marcovitch (p. 11-12)
p. 12
(...). Centra-se todo o trabalho, no conflito infelizmente ainda não resolvido entre o exercício
do poder e a inteligência.
1. A violência do Estado contra a cultura, ao longo de tantos séculos e por meios tão diversos,
muitas vezes dissimulados, exigirá sempre dos espíritos responsáveis uma atitude de alerta ou
de resistência. O tema deste livro realça, antes de tudo, uma dolorosa verdade que quase
sempre nos escapa: o fato de que os intelectuais formam, em qualquer país do mundo, uma
evidente minoria. Minoria raramente olhada como tal e cujas dificuldades freqüentemente
equivalem às de outros segmentos de excluídos e discriminados.
2. Sem falarmos dos mais visíveis delitos contra o pensamento praticado pelos Estados
declaradamente autoritários, há uma violência surda e apenas perceptível pelas próprias
vítimas: a falta de ressonância para a estética rebelde, por exemplo. Os intelectuais não
beneficiários da indústria cultural, os exilados em seus próprios países, os talentos silenciados.
Mesmo em situações de legalidade formal, sabemos que há intelectuais padecendo para a
difusão suas idéias ou de sua arte. O Estado, nesse caso, é no mínimo omisso diante de uma
violência estrutural em que prevalecem interesses de puro comércio.
p. 13
PREFÁCIO
p. 15
O DIREITO DE SONHAR – Renato Janine Ribeiro (p. 15-18)
2. Pode parecer coisa restrita, típica apenas de intelectual, conferir destaque à discussão da
censura. Afinal, está parece afetar apenas uma pequena parcela da população, em um país
razoavelmente iletrado e irracionalmente esfomeado. Aliás, por isso mesmo, uma indagação
ressurge sempre entre nós, feito um bordão: por que se empenhar em questões de cultura,
quando tantos passam fome? Não haverá uma hierarquia das necessidades básicas, e não será
primordial vencer a fome e [p. 16] as carências materiais desmedidas, antes de se bradar
contra a censura a uma exposição artística, a um livro, a um filme?
p. 16
1. Pois essa questão, que escutamos formulada ora à direita, ora à esquerda, parte de uma série
de equívocos. O primeiro é supor que haja realmente uma escolha, isto é, que precisemos
optar entre ter cultura e ter comida. Na verdade, o dinheiro destinado pelo Estado à cultura – e
que por sinal geralmente é pouco – não é retirado da comida, e se deixar de ser gasto
seguramente não irá para os pobres, mas para usos menos confessáveis.
2. Subindo um pouco mais na escala dos argumentos, e passando dos orçamentos públicos
para uma abordagem mais conceitual, o segundo equívoco a apontar está na confusão da
cultura como um luxo útil. Ela certamente terá seus aspectos frívolos, suntuários – como toda
atividade humana, e como o lazer, ao qual ela remete em certa medida –, mas a cultura é,
antes de mais nada, um vasto elenco de possibilidades, de potencialidades que ampliam
enormemente a liberdade de cada um. Explico-me.
2. [Exemplos: Peter Pan, D. Quixote de la Mancha e Madame Bovary] (...). A literatura tem
seus perigos. Mas não é sinal, justamente, de sua riqueza e de seu espírito livre que tais
perigos tenham sido tematizados justamente em dois grandes romances? Ou seja, que a
literatura se mostre, quem sabe, tão honesta que até conte seus podres em público?
p. 17
1. Quê dizer, então, de um direito que surge na aurora de nossos dias, o direito de fantasiar?
Porque é nele que estou fundando sua versão mais seca, prosaica, em certa medida adulta, que
é a liberdade de pensar e opinar. Se não tivermos esta última, sabemos que quase nada mais
nos restará. Pensar por conta própria, expressar as idéias que temos, eis uma das chaves do
regime democrático. Mas essa chave – digamos, “racional” – não se constituirá se não lhe
tiver sido aberto lugar por um aprendizado bem menos sujeito à razão, e que na verdade é a
primeira grande aventura da fantasia, ou seja, a ventura que consiste em imaginar, gerar
fantasmas, idear o que não é. Claro que um espírito pesado logo me corrigirá, distinguindo a
atividade infantil de imaginar e o trabalho adulto da razão, a primeira estando tomada por
ilusões enquanto a segunda se mostrará ávida por checar a validade de suas proposições. Mas
o que aqui desejo dizer é somente que jamais vicejará a planta do pensamento se, antes, não
for semeado o terreno pela fantasia – e isso porque ambos têm, em comum, a capacidade de
sair do mesmo, da repetição, daquilo que está aí; para construir, em seu lugar, novos mundos.
2. Por isso mesmo, em um livro que tem como uma das suas passagem mais impressionantes
a da censura a Peter Pan, confesso que meus sentimentos ficam divididos. Por um lado, é uma
excelente história a contar, para demonstrar como a censura era burra, exagerada: censurava
até livros para crianças, clássicos da literatura mundial! Mas, por outro, talvez a censura não
fosse nada burra, ao proibir as aventuras dessa molecada da Terra do Nunca. Porque Peter Pan
e seus amigos não são inofensivos petizes bem-comportados. São, mesmo, uma turma [p. 18]
rebelde e de forte imaginação – e com isso terão preparado muita gente para pensar. A
censura tinha razão em proibi-los: quem quer impedir os outros de refletir por conta própria
tem que começar muito cedo. Tem que começar proibindo a imaginação. E por isso, se
quisermos combater a censura, não será ridicularizando seus excessos, mas contestando o seu
cerne. Não será zombando de seus erros, mas defendendo a capacidade que têm o pensamento
– e a fantasia – de criar mundos novos.
p. 19
SIMPÓSIO MINORIAS SILENCIADAS – Maria Luiza Tucci Carneiro (p. 19-22)
1. Esta coletânea de artigos do Simpósio Minorias Silenciadas organizado pela Universidade
de São Paulo em 1997, no período de abril a 16 de maio. Este foi o segundo de uma série de
outros encontros que integraram o Colóquio Direitos Humanos no Limiar do Século XXI,
coordenado pelo Prof. Dr. Renato Janine Ribeiro.
2. Ao tentarmos discutir a questão dos direitos do cidadão, nada mais oportuno do que
repensarmos o tema das liberdades políticas sob o prisma da censura e da repressão às idéias.
Ao penetrarmos nesse universo, deparamos-nos com os limites impostos pelos homens da
República preocupados com a circulação das idéias ditas “revolucionárias”, “subversivas”. E,
como representantes do pensamento oficial, eles eram contrários às [p. 20] mudanças sociais,
impondo regras em nome da Justiça, da Ordem e da Segurança Nacional.
p. 20
1. Os documentos de censura aos livros e aos intelectuais encontrados nos múltiplos acervos
do Brasil comprovam-nos que o controle da cultura foi sempre uma questão de Estado. Daí a
importância da catalogação e proteção dos chamados “arquivos da repressão”, pontos de
referência para a história da humanidade. Neste final de século, ao vivenciarmos o nosso
difícil processo de transição para a democracia, faz-se necessário recuperar a memória escrita
da repressão. Assim, com a abertura dos arquivos políticos e os estudos acerca da violência
física e símbólica [sic] – resguardados os direitos coletivos e individuais –, teremos
condições, como academia a serviço da comunidade, de acelerar a consolidação democrática.
A pesquisa histórica e a reflexão sobre os direitos das minorias políticas, étnicas ou religiosas,
têm por função alertar e informar sobre o perigo da repressão e das múltiplas formas de
racismo. É importante que a sociedade tenha conhecimento dos mecanismos de repressão, das
versões policiais e das instituições que, em diferentes níveis, fizeram o “terrorismo do Estado”
em nome da Ordem e da Segurança Nacional.
2. (...) direção: a de articular o debate e colaborar para a construção do conhecimento
histórico-científico sobre aqueles que, sob a batuta das ditaduras e das pseudodemocracias,
foram obrigados a silenciar. A censura foi, assim, o tema norteador dessa nossa proposta,
considerando que a repressão às idéias e aos intelectuais integrou projetos políticos
articulados em diferentes momentos da nossa história. Fatos aqui relatados demonstram que o
Brasil nunca soube lidar com a democracia. As ocorrências em épocas distintas – Colônia,
Império e República – comprovam-nos que essa modalidade de repressão [censura] não foi
uma atitude característica do século XX marcado pelas práticas totalitárias, nem uma situação
peculiar no BraJB deda repressão aos intelectuais é secular e universal, sendo que a memória
da censura no Brasil ainda está por ser escrita, [p. 21] apesar de a historiografia brasileira
contar com múltiplos estudos sobre o tema. (...). Os diversos estudos aqui'apresentados [sic]
têm como propósito demonstrar que, até os anos de 1980, o intelectual ativo – aquele que
escrevia e divulgava suas idéias “revolucionárias” – sempre foi tratado pelas instituições
vigilantes como um “herege”, um “homem maldito”, um “bandido”. Por ultrapassar os limites
do permitido, foi repreendido julgado e punido. Os livros apreendidos como “armas do crime”
transformaram-se em prova material da trama articulada contra o regime e que, segundo os
homens do poder, poderiam desequilibrar a ordem imposta.
p. 21
1. Tanto os homens do poder quanto os intelectuais revolucionários sempre tiveram
consciência da força da palavra. A idéia de uma revolução cultural armada foi uma
preocupação constante das autoridades oficiais que viam o intelectual e o profissional de
imprensa como cidadãos perigosos e, se comunistas, “desde há muito, tanto mais temíveis”. A
radicalização por parte dos regimes saneadores de idéias influenciou a gestação de uma
literatura e uma imprensa alternativa que se viram obrigados a proliferar nos subterrâneos da
sociedade. Por meio do discurso oral ou escrito, as idéias circularam seduzindo, reelaborando
valores e gerando novas atitudes.
2. Temiam-se os homens de vasta cultura, autores de livros, jornalistas e tipógrafos.
Professores e estudantes de ciências humanas e ciências políticas também incomodavam.
Temiam-se as críticas ao regime, as denúncias, as passeatas estudantis, o humor dos
caricaturistas, os enredos cinematográficos e teatrais. Temiam-se os homens com passado de
militante político, razão pela qual o regime pós-64 instituiu os corriqueiros atestados de
antecedentes políticos [exemplos precedentes: a embaixada dos Estados Unidos não concedeu
visto de permanência nos Estados Unidos para Cláudio Santoro que ganhou uma bolsa de
estudos da Fundação Guggenheim de dois anos, pois o compositor se recusou a declarar
publicamente que não participava do Partido Comunista do Brasil e que não tinha simpatias
por Luiz Carlos Prestes]. Tudo contava, até a posse de um único livro. Regredimos aos
tempos medievais. Livros foram queimados, intelectuais fichados e torturados.
3. Constataremos que, no decorrer do tempo, as histórias e estórias se repetem [não diria que a
história se repete, mas que, sem dúvida, os “modelos” do passado são apropriados e adaptados
às circunstâncias e necessidades do presente]. O Estado republicano, censor por excelência,
foi responsável pela mutilização da cultura nacional, interferindo, negativamente, na
construção do conceito de ci [p. 22] dadania. O aparato policial, organizado durante décadas e
que perseguiu os “homens de idéias”, deve ser considerado como um dos promotores da
barbárie, da violência, da segregação e da intolerância, marcas registradas do século XX. O
Estado tem aqui sua responsabilidade como gerenciador e legitimador da brutalidade,
promotor do medo e da autocensura. No entanto, ao nos debruçarmos sobre os arquivos da
repressão, constatamos que os intelectuais brasileiros conseguiram colaborar para a
metamorfose da realidade suplantando sua condição de mero espectador conformado.
p. 23
PARTE I
LAPIDAÇÃO DA MEMÓRIA
p. 25
OS REGIMES TOTALITÁRIOS E A CENSURA – Anita Novinsky (p. 25-35)
p. 37
A RECUPERAÇÃO DA MEMÓRIA CULTURAL NA RÚSSIA – Boris Schnaiderman (p.
37-42)
p. 43
PARTE II
SILÊNCIO PERVERSO
p. 45
CENSURA LITERÁRIA E INVENTIVIDADE DOS LEITORES NO BRASIL COLONIAL
– Luiz Carlos Villalta (p. 46-89)
p. 91
POLÍTICA, RELIGIÃO E MORALIDADE: A CENSURA DE LIVROS NO BRASIL DE D.
JOÃO VI (1808-1821) – Leila Mezan Algranti (p. 91-119)
p. 121
UM SILÊNCIO PERVERSO: CENSURA, REPRESSÃO E ESBOÇO DE UMA PRIMEIRA
ESFERA PÚBLICA DE PODER (1820-1823) – Lúcia Maria Bastos P. Neves (p. 121-153)
p. 155
SOB O SIGNO DA CENSURA – Ana Luiza Martins (p. 155-179)
p. 181
PARTE III
REPÚBLICA DEVASSADA
p. 183
GILBERTO FREYRE, “O PORNÓGRAFO DE RECIFE” – Sílvia Cortez Silva (p. 183-206)
p. 207
PROCURA-SE PETER PAN... – Marcia Mascarenhas Camargos e Vladimir Sacchetta (p.
207-235)
p. 236
CAÇA ÀS BRUXAS: REPRESSÃO E CENSURA NA INTERVENTORIA AGAMENON
MAGALHÃES – Maria das Graças Andrade Ataide de Almeida (p. 236-261)
p. 262
O MITO DA CONSPIRAÇÃO JUDAICA E AS UTOPIAS DE UMA COMUNIDADE –
Maria Luiza Tucci Carneiro (p. 263-306)
p. 307
PARTE IV
CULTURA AMORDAÇADA
p. 310
O ESPÍRITO DO ENGENHO: DA VISÃO DO PARAÍSO A THE WASTE LAND – Luiz
Roncari (p. 310-323)
p. 326
SUBVERSÃO PELO SONHO: A CENSURA CULTURAL NOS DIÁRIOS DE CAROLINA
MARIA DE JESUS – José Carlos Sebe Bom Meihy (p. 326-345)
p. 327
A CENSURA CINEMATOGRÁFICA NO BRASIL – Inimá Ferreira Simões (p. 347-376)
p. 377
ENSAIO GERAL DE SOCIALIZAÇÃO DE CULTURA: O EPÍLOGO TROPICALISTA –
Marcelo Ridenti (p. 377-401)
p. 403
CENSURA E CULTURA EM MOVIMENTO – Flávio Aguiar (p. 403-417)
p. 419
PARTE V
INFORMAÇÃO LAPIDADA
p. 421
AS MÚLTIPLAS FACES DA CENSURA – Cremilda Medina (p. 421-434)
1. Um cenário dado à interpretação é o da censura explícita, institucionalizada e verticalmente
exercida pelo Estado autoritário; em outro cenário, você está sujeito a atos repressivos
inerentes a qualquer exercício de poder que impõe às práticas cotidianas constantes
cerceamentos; e um terceiro cenário para se tentar compreender – o da rede intimista da
autocensura, exacerbada na cultura do medo dos sistemas ditatoriais ou nas heranças
autoritárias. De qualquer forma, essas situações se conjugam numa complexidade que escapa
às explicações fáceis.
2. (...) informação jornalística (...). Como ocorrem as ameaças ao direito à informação?
p. 422
1/2. [Fonte: jornal O Estado de S. Paulo, de 1975 a 1985. Na primeira quinzena de 1975, os
censores se retiram da empresa jornalística onde permaneciam instalados desde 13 de
dezembro de 1968]
3. [pasta temática sobre censura do jornal O Estado de S. Paulo]
p. 423
1. [relato pessoal]
p. 424
1. [editora da Editoria de Artes e Espetáculos do jornal O Estado de S. Paulo (1975-1983)]
2. (...). Por isso, não é por acaso que o texto que inaugura o acervo do Estadão no tema
censura, no século XIX, diz respeito a uma peça de teatro. Não é por acaso também que o ano
de 1977 está impregnado de ousadia numa luta sem trégua contra a censura.
3. Já no início desse ano [1977] (...). O manifesto dos intelectuais contra a censura ganhou tal
dimensão política que foi um carro-chefe de oposição à ditadura dos principais jornais do
país. Os signatários (aproximadamente 1046 intelectuais) eram capitaneados por nomes
consagrados em todas as artes – literatura, teatro, música, artes plásticas, fotografia e cinema.
(...). [p. 425] “A reescalada da censura no fim de 76 provocou uma mobilização de escritores
e intelectuais, principalmente a partir de 20 de novembro, quando foi proibido o livro Zero, de
Ignácio de Loyola Brandão.” Assim o jornal Aqui São Paulo abria a cobertura em 3 de
fevereiro de 1977 sobre o manifesto. Nessa cobertura, a escritora Lygia Fagundes Telles, uma
das líderes do movimento, assumia com coragem o papel social do artista: “O escritor – o
artista, em suma – é a testemunha do seu tempo, da sua sociedade com tudo que ela tem de
coisas boas e ruins. Principalmente ruins. Ele não pode cancelar uma realidade (pelo menos,
para ele), sob o pretexto que essa realidade é inoportuna. Ou desagradável”.
p. 425
1. (...). Em maio de 1977, o ministro da Justiça, Armando Falcão, baixou uma portaria que
implantava a censura nos correios. (...). A portaria publicada no Diário Oficial de 27 de maio
inspirava-se no Art. 2 do Decreto-lei n. 1 077, de 26 de janeiro de 1970, segundo o qual
“caberá ao Ministério da Justiça, através do Departamento de Polícia Federal verificar,
quando necessário, antes da divulgação de livros e periódicos, a existência de matéria
infringente da proibição enunciada no artigo anterior (diz o Art. 12: Não serão toleradas as
publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes, quaisquer que sejam os
meios de comunicação)”.
2. (...). E a portaria de Armando Falcão não vingou, porque foi tal a grita dos intelectuais
brasileiros, desmascarando a pretensa seriedade da medida, que o custo político ultrapassava a
fronteira nacional. Sob o título A [sic] Censura Atinge agora também a Cultura Universal,
assinei um extenso trabalho jornalístico, publicado em 5 de junho de 1977, na editoria de artes
de O Estado de S. Paulo, [p. 426] que vocalizava a repugnância dos mais respeitáveis nomes
da cultura brasileira. (...).
p. 426
1. (...). No fim de julho, já a portaria afrouxava: não estariam mais sujeitas à censura prévia as
publicações estrangeiras importadas por empresas regularmente estabelecidas e as de caráter
estritamente filosófico, científico, técnico e didático. No início de julho, o diretor-geral do
Departamento de Polícia Federal, coronel Moacyr Coelho, admitia que o órgão que dirigia
não tinha condições de executar a portaria do ministro da Justiça. Os motivos são curiosos:
escassez de censores capazes de ler em línguas estrangeiras. Seria necessário abrir concursos
e admitir, nos correios nacionais, uma mão-de-obra qualificada. (...).
p. 427
1. O alvo preferencial da censura institucional são, como afirmou Otávio Ianni, os criadores.
No entanto, as práticas de autoritarismo nem sempre contam com a massa crítica sofisticada
para fazer a triagem. (...).
2. O fato é que de 1975 a 1985, período em que permaneci no Estado, não houve trégua (...).
[p. 428] O dramático é que o vírus da censura que se expande, ou no autoritarismo explícito,
ou na subjetivação da cultura do medo, inspira as pequenas e médias censuras das práticas
cotidianas.
p. 428
1. (...). Tão logo afrouxa o autoritarismo central, recrudescem os autoritarismos
intermediários, os autoritarismos bem localizados no grupo de trabalho e, o que é mais sutil, a
repressão íntima, freqüentemente chamada de autocensura, ou, no meu entendimento, a
afirmação do conservadorismo nas rotinas profissionais que não dão margem à rebeldia.
2. Ora, nos ambientes de produção jornalística, observa-se o exercício do poder que é
repassado em catarata nas hierarquias. Quem está no ponto inaugural do processo? Nem
sempre se sabe, porque os intermediários das decisões (chefias, editores, superiores
imediatos) cultivam um direito implícito de mando em nome do empresário ou de outras
fontes de poder do âmbito macro. Cotidianamente enfrentei uma lista de intelectuais
censurados (...) sob a justificativa, a casa não quer que publique nada desse sujeito, ou, de
forma muito sintética, o homem não quer. (...). [p. 429] Para a minha surpresa, ao chegar ao
centro da casa, diante do homem – no caso, Júlio de Mesquita Neto –, verificava, espantada,
que não existia a ordem vertical e que, numa simples e desarmada argumentação (...) desfazia-
se o cerceamento à informação. (...).
p. 429
1. O desgaste desses embates censórios (...) representa um cenário muito sutil dos desgastes
acumulados diariamente. (...).
2. Ao que tudo indica, nos períodos de descompressão dos mecanismos de censura explícitos,
como a portaria de Armando Falcão, recrudesce a rede de cerceamentos que se espalha pela
redação e por todos os grupos de poder da chamada sociedade civil. (...).
p. 430
1. (...). Dizia, pois, que os desejos coletivos de alguma forma furam os esquemas censórios ou
repressivos, ou ainda discriminatórios. Portadores dessas aspirações recorrentes, cuja
linguagem é a dos mitos, os artistas estão sempre na primeira filha e isso eu aprendi em dez
anos de cumplicidade com eles no meu discreto canto da redação de O Estado de S. Paulo.
2. Aprendi pela via da conscientização, da racionalidade informativa de seus depoiments e de
seus atos corajosos contra o regime autoritário, mas, para além de aprender, sempre me
sensibilizou e ressensibilizou a ousadia do artista de ir lá no lugar que ninguém vê – a alma do
povo – e recolher o gesto generoso sem censura e nem autocensura (...) [p. 431] (...). Há uma
luta do poder interna em cada produtor cultural que não tem garantia democrática, nem que se
viva numa democracia minimamente institucionalizada.
p. 431
1. (...) retornei ao ensino de jornalismo a partir de 1986 (...). Essa pesquisa indica os perigos
de uma racionalidade esquemática-burocrática de um jovem pouco motivado para ousar. (...).
A hegemonia das racionalizações fáceis, regras que se consumam em manuais autoritários,
configura um processo perverso de atrofia dos impulsos de rebeldia, aqueles que geram
renovação e consistência na produção jornalística.
2. Faz parte desse projeto pedagógico (...) expor os alunos de Jornalismo à Arte. (...).
p. 432
1. Na década de 1970, nos tempos da censura e da repressão dos governos militares, meu
projeto pedagógico incidia na eficiência racional para se poder veicular informações mais
contundentes na cobertura jornalística. (...).
p. 433
2. Se é tão duro enfrentar a censura institucionalizada em um Estado, se é duro conviver no
cotidiano, com o autoritarismo nas chefias, imagine-se o embate interno entre a consciência
treinada para a rotina e as verdades absolutas, e as inquietudes que alimentam o vulcão das
incertezas. Sobretudo difícil de decifrar é esse constante conflito em que os cerceamentos
impedem o impulso tão solidário quanto libertário. A constante oficina pedagógica que se
desenvolve na Universidade de São Paulo inspira-se na tríplice demanda contemporânea: um
comu [p. 434] nicador social que cria e desenvolve mediações dialógicas enfrenta ao mesmo
tempo o desafio do direito social à informação, ou seja, a construção de um relato deve
acontecer contemporâneo consistente, sensível e constitutivo da cidadania. A herança
autoritária atravessa todas as camadas – do entulho das ditaduras às sutis e subjetivas inércias
técnicas. Para intervir diretamente na construção dialógica do nosso tempo, não há como fugir
do laboratório permanente da racionalidade complexa e da intuição solidária. Nunca se tem
garantia de que se conquistou a superação das múltiplas censuras, explícitas, conscientes e
inconscientes. Ser minimamente digno da narrativa contemporânea envolve pesquisa e
contato afetuoso, a exemplo do artista.
OBSERVAÇÃO:
Texto confuso e desarticulado. Supõe-se que a jornalista pretende analisar a herança da
ditadura militar para as gerações subseqüentes de profissionais da informação, principalmente
quando estes aproximam-se do tecnicismo e distanciam-se do humanismo. Aproximar os
estudantes de jornalismo das várias formas de arte foi a forma que a professora do curso de
jornalismo da USP encontrou para tentar reverter a situação atual da profissão.
p. 435
VOZES SILENCIADAS EM TEMPOS DE DITADURA: BRASIL, ANOS DE 1960 –
Daniel Aarão Reis Filho (p. 435-450)
1. Da censura e da ditadura a partir de 1964, não se pode falar sem, antes, dizer algo a respeito
do momento anterior, da conjuntura que precipita os acontecimentos e precede a intervenção
militar.
2. [Sobre o golpe militar de 1964].
p. 436
1. [Sobre o governo de Jânio Quadros e João Goulart].
2. [Sobre a participação de trabalhadores urbanos e rurais, estudantes, soldados, marinheiros,
etc.].
3. [Sobre o PC, “ilegal de direito, legalizado de fato”. [p. 437] “Basta! e Fora! foram os títulos
dos editoriais do sereno e judicioso Jornal do Brasil na ante-véspera e na véspera da
derrocada de Jango Goulart”].
4. [Sobre a reação da classe média].
p. 437
1. Uniram-se então a espada, a cruz e o vil metal – as botas e as batinas e as modeadas, numa
poderosa coalizão: homens de alta qualidade e delinqüentes de toda laia; cidadãos acima de
qualquer suspeita e personagens objetos de todas as suspeitas; os incapazes e os capazes de
tudo; democratas genealógicos e candidatos a ditadores; liberais e fascistas, militares,
políticos, homens de negócio, profissionais liberais. E em nome da Lei, do Cristo, da Ordem,
da Família, da Democracia e da Honestidade, essa multidão heteróclita, numa frente ampla,
diversa e contraditória, deu o golpe. Mas até quando se manteria essa heterogeneidade no
comando da nação?
2. No início, na euforia da vitória, houve acordo unânime para silenciar a canalha. Aquilo
tinha realmente passado dos limites: havia greves, invasões, sindicalistas em palácios,
operários e lavradores que negociavam com autoridades e dialogavam com ministros, como se
fossem cidadãos. Já não se tinha calma para trabalhar nem sossego para sopesar as chances de
investimento e o futuro da família.
3. Calou-se o alarido. (...).
4. Mas estava apenas no começo.
5. Perdidas as referências, as lideranças foram cassadas e caçadas, toda uma tradição de luta e
organização questionada, e, atordoadas pela derrota desmoralizante, as classes trabalhadoras
retiraram-se, caladas, e calaram-se.
6. O resto de nossa história não poderá perder de vista essa referência absolutamente capital.
Grande parte da sociedade foi calada, ou calou-se, atônita, ame [p. 437] drontada e insegura, o
que é próprio de quem perdeu o rumo. (...).
p. 438
1. E então, em meio a um denso silêncio, começou a decomposição da aliança invencível de
março de 1964. Um novo desencontro. Uma outra cacofonia.
2. [Sobre a ascensão dos militares e as estratégias de modernização do país e
internacionalização da economia brasileira].
3. A grita não se fez esperar. Os aliados de ontem não aceitaram as novas regras do jogo.
Houve, então, a reviravolta: os grandes jornais liberais, conluiados com os pretendentes
frustrados ao trono da [p. 439] presidência imperial brasileira – agora marginalizados,
aguerridos defensores da derrubada do regime anterior, vivandeiras dos militares açulados –,
encontraram-se, de súbito, na oposição.
p. 439
2. Advogados em nome dos direitos humanos de presos e perseguidos. Padres e bispos em
defesa dos princípios cristãos. Jornalistas pela liberdade de imprensa. Humoristas pela
sobrevivência da crítica. Artistas em defesa da arte. Políticos ainda interessados em eleições.
Cobranças de combinações ainda por esclarecer. E ambições por postos já ocupados.
4. Na primeira linha, destacaram-se o Correio da Manhã e O Estado de S. Paulo. Apertando a
boca no trombone, uma figura emblemática: o jornalista Carlos Heitor Cony. (...).
5. [Sobre o livro O ato e o fato e as conseqüências do confronto com os militares para o jornal
Correio da Manhã].
p. 440
[Foto do Acervo Iconographia (SP) do ato de protesto contra a lei de imprensa no Teatro
Paramount (SP) em 9 de janeiro de 1967].
p. 441
1. A grande imprensa liberal ecoaria, assim, numa estranha conjunção, as manifestações de
protesto e a ira dos descontentes, amplificando muitas vezes o vulto das manifestações, o peso
dos líderes e a força do movimento. Conferindo força aos fracos, alimentou ilusões e delírios.
3. Foi um estranho tempo. Já estava a ditadura, mas ainda havia a democracia, pelo menos
para os que haviam participado na urdidura e no desencadeamento do golpe. Como eram
muitos e mais as áreas próximas, houve um espaço significativo para o falar, inclusive o das
oposições radicais. O fenômeno se estendeu até o fim de 1968. Mas não esqueçamos o que
muita gente esqueceu na época: em volta era o deserto, porque a grande maioria estava
condenada ao silêncio forçado, ou conformado.
4. Mas ainda estamos nas ambigüidades de uma conjuntura que se desdobra, e na qual se
imagina que diversas hipóteses podem ser formuladas, como se muitos caminhos estivessem
disponíveis. Brechas numa rede que estava sendo jogada. Por meio delas, iriam surgir os
primeiros brotes da chamada imprensa alternativa. Espaço que se queria livre não apenas dos
constrangimentos da ditadura, mas também das orientações dos donos dos grandes jornais.
p. 442
1. [imprensa alternativa de enfoque político e econômico: Carta Econômica, Reunião,
Dealbar, Folha da Semana, Brasil Semanal, O Protesto, Exemplar, Amanhã, O Sol, Poder
Jovem, Piquete, Fator e Fato Novo. Com abordagem humorista: Pif-Paf, A Carapuça e
Pasquim].
5. Uma outra imprensa alternativa, setorial, irromperia igualmente no interior dos
movimentos sociais, para servi-los, orientá-los e incentivá-los: as folhas, jornais, panfletos e
revistas do movimento estudantil. (...).
6. Divulgaram autores malditos – nacionais e estrangeiros –, tatearam análises da realidade
nacional e ofereciam dados censurados, comentavam livremente as [p. 443] artimanhas e os
planos do poder, denunciavam e denunciavam. [jornal O Metropolitano da União Estadual
dos Estudantes (conhecida nostalgicamente como União Metropolitana dos Estudantes) e
revista Teoria e Prática do grêmio da Faculdade de Filosofia]. (...). Meninas petulantes.
Meninos ousados. Até hoje não apareceu uma geração igual [não apareceu e provavelmente
não aparecerá, pois circunstâncias favoráveis e específicas da década de 1960 permitiram a
participação política da juventude. Não é que hoje não existam jovens interessados em
política, em mudar o mundo ou com necessidade de inovar, de ousar. O fato é que a sociedade
ficou cada vez mais estratificada e impessoal que os campos de atuação na esfera pública
restringem a participação política e não permitem que jovens em início de carreira ou
estudantes secundaristas, por exemplo, ingressem, sem indicações ou contatos pessoais, no
âmbito da discussão e do debate público. Podem até criar um jornal na escola, uma revista na
universidade, mas isso é tão setorizado e desestimulado na maioria das vezes que torna-se
cada vez mais difícil manifestar-se ou interferir no rumo das coisas. Primeiramente solicitam
lhe credenciais. Um curso universitário ajuda, já que se institucionalizou-se o saber no âmbito
da academia, mas também não é tudo. Por isso, o ímpeto e as idéias da juventude de hoje são
castrados antes mesmo de se manifestarem. Não há espaço na sociedade de hoje, de preceitos
tecnicistas, para a manifestação dos jovens como na década de 60 e é preciso considerar essas
circunstâncias para não cairmos no erro das análises comparativas e saudosistas, não é bom
nem exaltar a juventude passada e nem menosprezar a juventude presente, ou vice-versa].
p. 444
2. Difícil fazer um inventário de todas essas vozes. (...).
3. Os partidos já existentes antes de 1964, com uma imprensa legalizada, sofreram mais o
tranco do golpe. (...) [Novos Rumos (PCB), Classe Operária (PC do B) e Política Operária
(POLOP)].
4. As circunstâncias obrigaram a reestruturação na clandestinidade. A rigor, apenas o Voz
Operária [publicou quase 60 exemplares no período de 1964-1969] (do PCB) e Classe
Operária [depois do golpe até fins de 1969, a revista reúne 34 números] (do PC do B)
conseguiram alcançar uma periodicidade mais ou menos regular, merecendo registro a já refe
[p. 445] rida tentativa de reconquista de um espaço legal com o Folha da Semana, semanário
tablóide, no qual se reuniria a nata da intelectualidade carioca que se movia em torno do
Partidão.
p. 445
1, 2, 3 e 4. [Outros títulos: Libertação (AP), Revolução Proletária (PRT), Resistência
(dissidências do PCB, da Guanabara ou Universitária e do MR-8), 8 de Outubro
(Dissidência), Venceremos (ALN), Revolução Brasileira (PCBR), Política Operária, Informe
Nacional, Boletim da Luta dos Trabalhadores e Comitê da Empresa (POLOP e dissidências),
Marxismo Militante (POC), Unidade Leninista, Movimento Operário, Caminhos da
Vanguarda (VPR), Palmares (VAR), Luta Ideológica, A Luta e Luta Operária (PCR), Guerra
Popular, Unidade Operária, Luta Proletária, Boletim Interno e Jornal de Debates (Ala
Vermelha do PC do B)].
p. 447
1. (...) temática centrais, eixos básicos de reflexão e crítica, pistas abertas para pesquisas
posteriores, mais detalhadas.
2. Em primeiro lugar, a temática doutrinária ocupou considerável espaço de todos esses
periódicos. A esquerda estava em crise aguda contra a derrota, sem luta, frente ao golpe
militar. Era preciso refletir sobre as causas do desastre, apurar responsabilidades políticas e
pessoais e inventar alternativas. (...).
3. [Contrapõe as análises otimistas com a realidade].
4. Em seguida, a denúncia. (...).
5. Finalmente o apelo à luta, crescente, sobretudo a partir de 1968, quando a sociedade
pareceu mover-se em profundidade contra a ditadura. (...).
p. 448
1. Em 1968, o interregno de liberdade tomou um fôlego. (...).
2. Com o Ato Institucional n° 5, o golpe dentro do golpe, desceu de vez a cortina sobre aquela
estranha situação. (...).
3. Há moral nessa história?
4. Referimos vozes alternativas ao poder: as que se exprimiram por meio dos grandes jornais
liberais, enquanto isso foi possível (Carlos Heitor Cony); as da imprensa, que se propôs como
alternativa; as do movimento estudantil e de seus veículos; e as que falavam dos subterrâneos,
onde tudo era possível falar, mas sem garantia de audiência. Vozes silenciadas.
5. [Sobre o “milagre econômico].
6. [Sobre o capitalismo].
7. [Sobre a modernização e a indústria cultural].
p. 449
[Charge O pequeno jornaleiro de Fortuna, publicada no livro Hay Govierno em 1964].
p. 450
1. Vozes silenciadas, mas não silêncio de vozes.
2. Mas então, quem, afinal, calou as vozes silenciadas?
p. 451
A IMPRENSA NO EXÍLIO – Denise Rollemberg Cruz (p. 451-467)
p. 470
CENSURA, UM PROCESSO DE AÇÃO E REAÇÃO – Maurício Maia (p. 470-511)
p. 513
MORTES SEM SEPULTURA – Maria Aparecida de Aquino (p. 513-432)
p. 533
A PRIMEIRA VÍTIMA: A AUTOCENSURA DURANTE O REGIME MILITAR – Bernardo
Kucinski (p. 533-551)
INTRODUÇÃO
1. Mesmo durante as fases mais fechadas do regime militar iniciado no Brasil em 1964,
pouquíssimos jornais ou revistas foram submetidos a um controle censorial direto e
continuado1. (...) [p. 534]. Um dos poucos assim censurados, O Estado de S. Paulo, acedeu
em acatar ordens telefônicas (de censura) até que surge a ruptura e se instaura a censura
prévia. O Estado de S. Paulo operou a maior parte do tempo exercendo algum grau de
autocensura. A censura prévia, exercida por censor enviado à redação, só entrou em vigor no
jornal em 12 de março de 1973, sendo levantada dois anos depois, em janeiro de 1975. (...).
p. 534
1. Em contraste com o sistema abrangente, formal e duradouro, implantado por Getúlio
Vargas durante o Estado Novo (...), o regime militar pós-64 aplicava a censura prévia de
modo pontual e desprovido de regras claras3. (...) A falta de regras claras reforçava o caráter
de deterrent desse tipo de controle da informação. (...). Tanto a censura prévia como o
confisco de uma edição já impressa provocam grandes prejuízos à empresa jornalística. (...)
[p. 535 capa do jornal Opinião apreendido e p. 536]. O confisco é prejuízo certo porque a
edição deixa de ser vendida. A autocensura elimina esses riscos, que eram grandes no regime
político inaugurado em 1964, caracterizado pela ambigüidade, mudanças bruscas de humor e
falta de regras claras de censura. (...).
p. 536
1. Antecipando-se a essas represálias, imprevisíveis, tentando adivinhar as idiossincracias do
sistema, jornalistas, editores e donos de jornais esmeravam-se na autocensura, no controle
antecipado e voluntário da informação. Esse exercício generalizado da autocensura,
estimulado por atos isolados de censura exógena manu militari, determinou o padrão de
controle da informação durante os dezessete anos de regime autoritário, sendo os demais
métodos, inclusive a censura prévia e os sucessivos expurgos de jornalistas, acessórios e
instrumentais à implantação da autocensura. Assim se explica também o reduzido número de
processos contra jornalistas durante os dezessete anos de regime militar.
O MECANISMO DA AUTOCENSURA
1. Não é fácil tipificar a autocensura porque ela se confunde com os mecanismos sistêmicos e
inconscientes de censura inerentes ao processo social de construção da notícia. Os
1 Apenas O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde entre os jornais de referência nacional; Tribuna da Imprensa, Opinião, Movimento e Pasquim entre os alternativos; e O São Paulo, da Arquidiocese de São Paulo. Entre as revistas apenas Veja. Foram fechados a cadeia Última Hora e O Correio da Manhã. Atos isolados de censura por períodos breves, de alguns dias ou semanas, atingiram muitos jornais alternativos, alguns jornais regionais e o Jornal do Brasil.3 O próprio regime aplicava a censura como se fosse ilegal e ilegítima, sem deixar registros formais, mesmo após baixar o Decreto n° 1077, de 1970.
mecanismos sistêmicos, ou “filtros” (...) [p. 538]. Esses filtros são oriundos do poder
econômico, do poder da publicidade, da barragem das fontes oficiais e da dominação
ideológica (Chomsky & Herman, 1988).
p. 537
[Charge de Dayer para O Pasquim vetada pela censura].
p. 538
1. A autocensura distingue-se desses mecanismos principalmente porque ela é um ato
consciente, e com o objetivo, também consciente, de dosar a informação que chegará ao leitor
ou mesmo suprimi-la. Trata-se de uma modalidade de fraude intelectual, uma mentira ativa,
oriunda não de uma reação instintiva, mas da intenção calculada de enganar. São decisões
tomadas na esfera do superego do jornalista. Nesse sentido é uma das mais danosas formas de
controle da informação porque implica o engajamento do jornalista na proposta repressiva,
fazendo dele sua primeira vítima.
2. Enquanto a censura exógena do Estado impede o exercício da liberdade, sem
necessariamente afetar a dignidade do jornalista – sua personalidade de homem livre –, a
autocensura vai minando a integridade do ser, porque ele aceita a restrição a sua liberdade e se
torna ao mesmo tempo agente o objeto da repressão. Um processo extremamente complexo,
no qual o jornalista tanto pode estar se autocensurando para poder passar informações, que de
outra forma não passaria, segundo o seu melhor julgamento, como, no outro extremo ser o
resultado de uma adesão do jornalista às autoridades, tornando-se um colaborador do poder
autoritário e portanto um violador da ética do jornalismo liberal.
3. Ao autocensurar-se, o jornalista assume a responsabilidade adicional de aferir e decidir o
que é bom para o leitor e o que não é. Qual verdade deve ser socializada e qual deve ser
suprimida? Deve condicionar a socialização da verdade a uma avaliação prévia das
conseqüências da verdade. Essa postura contraria frontal [p. 439] mente a ética kantiana que,
conforme João Almino, fornece a base filosófica do jornalismo liberal de espaço público,
segundo a qual nenhuma conduta que implique a supressão da verdade é uma conduta correta
(Almino, 1986).
p. 539
1. Aos poucos, com a prática continuada, a autocensura de exceção vai tornando-se regra, vai
se tornando um hábito. E com o desenvolvimento de justificativas para esse agir, cria seus
próprios valores, incorpora-se à personalidade do jornalista, à forma como ele vê a profissão e
sua ética – ao seu ethos.
RAÍZES DA AUTOCENSURA NO BRASIL
2. (...). No Brasil, a autocensura já se incorporara ao ethos do jornalista, ainda antes da
implantação da ditadura militar. O modo clandestino já era parte da vida do jornalista com
carteirinha de esquerda, especialmente os numerosos jornalistas membros do Partido
Comunista que chegaram a ser majoritários em redações inteiras nos anos de 1950 e 1960.
(...).
p. 541
AUTOCENSURA COMO MÉTODO IDEAL DE CONTROLE DE INFORMAÇÃO
1. Ao suprimir a própria informação de que a informação está sendo suprimida, a autocensura
torna-se, para o opressor, a melhor forma de controlar a informação. E também a mais
compatível com o regime militar brasileiro, que nunca quis assumir-se como ditadura e
manteve até o fim uma retórica democrática, ainda que dentro de discurso articulador de
sentidos de caráter autoritário, gestado na matriz da Guerra Fria e da Doutrina de Segurança
Nacional.
2. Justamente por não deixar sinais, pois sua característica é a ausência de cicatrizes, o lugar
da autocensura na história da repressão ao pensamento à informação durante o regime militar
acabou soterrado pelos episódios mais espetaculares da censura exógena. Pelos anúncios
jocosos do Jornal da Tarde ocupando o espaço de matéria censurada, pelas tarjas negras do
Opinião, pelo fechamento de jornais e prisões de jornalistas. Daí a inexistência do tema
autocensura como objeto da historiografia da repressão militar. A autocensura, por definição,
não tem e nunca terá uma história à altura de sua verdadeira importância no processo de
controle da informação durante a ditadura militar, pois seus principais registros são os que
ficaram na memória dos que se autocensuraram. Mas estes, mesmo se fossem resgatados,
sofreriam de uma nova autocensura, dessa vez gerada no inconsciente, para o qual a memória
seletiva empurrou os episódios mais constrangedores.
AUTOCENSURA SISTÊMICA
3. Muitos episódios de autocensura durante a ditadura militar eram definidos no âmbito de
sistemas jornalísticos, de empresas ou de redações, e não por indivíduos. Esses são os
episódios que podem ser recuperados como registros históricos. [p. 542] (...).
p. 542
3. Na autocensura sistêmica, verificamos claramente o grau de adesão e de identificação dos
proprietários dos jornais com os objetivos da repressão – e portanto seu grau de
colaboracionismo. No período da ditadura militar, esse adesismo foi quase total e
generalizado. A complacência da imprensa frente a violações de direitos humanos era
essencial ao sucesso da luta contra a guerrilha urbana, baseado na tortura imediata no
momento mesmo da prisão, para obter os endereços e nomes, antes do próximo ponto. A
imprensa também ignorava os processos políticos nas auditorias militares, para não retratar o
preso político como vítima. É no final desse período que se situa a execução de Lamarca.
Verificamos também que, com pequeno esforço de coordenação entre proprietários de jornais,
[p. 543] teria sido possível não aceitar os bilhetinhos ou telefonemas gerados regionalmente.
Mas a autocensura sistêmica necessita da colaboração da autocensura individual porque todo
produto jornalístico, mesmo passando por muitas mediações, mantém sua autoria individual.
Nessa situação, em que está pressionada pelo sistema, a autocensura passa a ser para o
jornalista uma estratégia de sobrevivência individual.
p. 543
HERANÇA DA AUTOCENSURA
1, 2 e 3. [Sobre o apoio dos meios de comunicação à candidatura de Fernando Henrique
Cardoso].
3. O momento era estratégico: as empresas jornalísticas estavam fortemente empenhadas na
vitória de Fernando Henrique. No plano sistêmico, verificamos que a própria alocação do
espaço para essa entrevista foi determinada por interesses gerais das classes dominantes; para
eleger Fernando Henrique e, principalmente, derrotar Lula, e não em função de uma pauta
jornalística determinada [p. 544] pelo interesse público. A mídia agiu como “aparelho
ideológico do Estado”, conforme o modelo proposto por Althusser, muito criticado
exatamente por ser um extremado e formalístico. Para Althusser, Igreja, meios de
comunicação e escolas são instrumentos necessários à reprodução das condições de produção
dos [sic] sistema capitalista, como coadjuvantes dos aparelhos repressivos do Estado
(Althusser, 1983). Nesse modelo, em culturas autoritárias em que funciona um regime de
democracia formal, a autocensura é ingrediente essencial.
p. 544
O SILENCIAMENTO DOS JORNALISTAS AUTÔNOMOS
1. Para poder valer-se da autocensura como método principal de controle da informação é
preciso depurar o jornalismo daqueles que recusam a autocensurar-se. Silenciar os
intransigentes. (...).
2. Os primeiros expurgos deram-se no calor do golpe, ainda como parte dos seus impulsos
vingativos e punitivos. Os barões da imprensa, que ajudaram a planejar o golpe visavam
principalmente destruir o concorrente principal (ideológico e de mercado), a cadeia de jornais
Última Hora, criado por Samuel Wainer. (...).
3. O período de 1965 a 1968 é de recuperação acidentada da autonomia jornalística, à medida
que em todo o mundo e também no Brasil, estudantes e classes médias protestam nas ruas
contra o sistema. O processo é interrompido com o AI- [p. 545] 5, que sinaliza aos barões da
imprensa a nova etapa de consolidação do autoritarismo10. Eles adaptam-se rapidamente à
nova situação, destruindo a autonomia conquistada pelos jornalistas na fase anterior e que
obviamente chocava-se com os rumos do regime. (...).
p. 545
1. O processo de depuração de quadros jornalísticos ampliou-se a partir da ascensão dos
castelistas ao poder, quando concebem o projeto de abertura lenta, gradual e segura. Para o
general Golbery, a autocensura já não bastava. Era preciso a voz ativa de abertura política. A
liberação da imprensa devidamente expurgada foi concebida como o primeiro passo para
intimidar a linha-dura militar que se opunha à abertura.
p. 546
1. Em 1975, Golbery chamou um grupo de jornalistas de prestígio para colaborarem na
abertura. A história dessa aliança, fundamental para se entender o jornalismo brasileiro da
ditadura e da transição, foi documentada por Celina Duarte (Duarte, 1987). (...).
2. Assim, a imprensa transformou-se no principal mecanismo de articulação política durante o
governo Geisel. (...). O general Golbery passou a se comunicar diretamente com os diretores e
donos de jornais para convencê-los de que a abertura era pra valer, apesar de gradual. (...).
3. A crise de sucessão de Geisel, em 1977, leva a uma nova série de expurgos de repórteres e
comentaristas de prestígio, que atinge o apogeu na campanha de Euler Bentes Monteiro em
1978. Eler Bentes, um general candidato pela oposição, representou um momento de perigo
para a abertura controlada, e sua campanha foi ativamente sabotada pela grande imprensa.
Quando a sua candidatura, com o apoio do MDB, colocou em risco o controle do processo
pela cúpula militar, os editores acodem em ajuda ao palácio e queimam Euler Bentes [?], sob
o argumento do risco de um “retrocesso” na abertura. (...).
p. 547
10 Um pouco antes do AI-5, um editorial do O Estado de S. Paulo defendendo algum grau de censura em espetáculos leva o editor do caderno de cultura do jornal, Décio de Almeida Prado, a se demitir, entrando num período de silêncio jornalístico que durou mais de trinta anos.
1. Uma das conseqüências dessa fase de dois anos de lutas intestinas no aparelho militar, até a
demissão do ministro do Exército, general Frota, em fins de 1977, foi um expurgo promovido
pelos barões da imprensa (...). (...).
2. Com o surgimento da liderança de Lula, em 1978, e de uma proposta de abertura de baixo
para cima, a cooptação dos jornalistas assume carga dramática. (...).
p. 548
[Edição apreendida do Jornal da Tarde de 13 de dezembro de 1969].
p. 549
2. Um dos legados principais da ditadura e de sua política de abertura “lenta, gradual e
segura” acabou sendo o expurgo dos quadros qualificados do jornalismo. Em 1979, boa parte
da geração de jornalistas formados nos anos de grandes liberdades civis do pós-guerra
desaparece das posições de comando, nas quais estariam naturalmente por sua experiência.
Marginalizados, adotam outras profissões, refugiam-se na literatura, ou partem para o
ativismo político ostensivo, como quadro da abertura. De aglutinador de intelectuais das mais
diversas origens, nos anos de 1950, o jornalismo torna-se o desagregador desses intelectuais
nos anos de 1980. Esse exílio profissional de uma geração dá-se a um alto custo operacional e
técnico para as empresas, que até hoje se debatem com a pobreza de sua mão-de-obra juvenil,
mas foi o preço que pagaram por concordarem com a política de abertura “lenta, gradual e
segura”.
p. 550
[Charge de Henfil para O Pasquim vetada pela censura].
p. 553
PELO BURACO DA FECHADURA: O ACESSO À INFORMAÇÃO E ÀS FONTES (OS
ARQUIVOS DO DOPS – RJ E SP) – Beatriz Kushnir (p. 553- 583).
p. 554
ENTENDER A LEI: ENTRE POSSIBILIDADES E DIREITOS
1. (...). Busco analisar os mecanismos de censura impostos ao país entre o Ato Institucional n°
5 (AI-5), decretado em 13.12.1968, e a anistia política, instaurada a partir de 1979.
2. Tendo como pando de fundo esse quadro, e como fonte preliminar de análise os arquivos
de duas polícias políticas – os Departamentos de Ordem Política e Social da Guanabara
(Dops/GB) e de São Paulo (Deops) –, tornou-se fundamental, em um primeiro momento,
entender as políticas de acesso à informação que os regem. (...).
3. A escola de se analisar esses dois acervos deve-se à constatação de que em cada um deles
prevalece uma leitura particular da legislação vigente. (...).
p. 555
1. Contudo, a difícil marca de se ser fichado no Dops e as dificuldade que esse estigma impõe,
somadas às garantias constitucionais de acesso à informação e à preservação da intimidade do
cidadão, é que tornam as regras e as permissões desse jogo um interessante exercício de
reflexão dos limites e das possibilidades do fazer história. É nessa seara, mais da dúvida do
que das conclusões, que esta reflexão pretende caminhar. Gostaria de dividir com os leitores a
minha perplexidade, e contribuir minimamente para alargar as fronteiras de acesso aos
documentos.
O DOPS COMO QUESTÃO: POSSIBILIDADES E ARMADILHAS
2. (...). Além disso, meu interesse volta-se para uma das saídas criadas para denunciar e
escapar dessa interdição: a trajetória da imprensa clandestina, que estava longe de ser apenas
um agente passivo nesse processo, uma vez que atuava fortemente para denunciar e burlar os
organismos de arbítrio em um momento tenso da história recente do país.
3. (...) Essa década (de 1968 a 1979) corresponde ao [p. 556] período de ascensão, declínio e
morte, tanto da imprensa clandestina como dos Dops. Ambos esgotaram ali os seus
respectivos papéis. Assim, neste estudo, trato não só de desvendar a intricada relação entre
censores e censurados em um momento de diálogo, mas também verificar como se forma uma
polícia política, quais questões nacionais estavam envolvidas e quais as semelhanças e as
diferenças regionais entre as duas agências do Dops em pauta. Destaco também em minha
análise o papel desempenhado pela geração de intelectuais de esquerda dos anos 60 – pessoas
que ousaram usar a palavras como forma de luta contra a imposição de um silêncio.
p. 556
1. (...). Lançando mão, como fonte principal, do material produzido e apreendido por alguns
órgãos de informação dos governos pós-64, procuro apreender a lógica e a estrutura da
repressão. A voz que informa a perspectiva é a do censor. (...).
2. Unindo a temática da história política a uma abordagem cultural, procuro comparar formas
de atuação desses dois órgãos, para assim esboçar um quadro de transformações da polícia
política brasileira no período republicano. A partir do conceito de sedição, cunhado por
Robert Darnton, busco discernir a perspectiva do censor sobre o espaço de clandestinidade e
das oposições políticas. O que o aparato repressivo em tela entendia por transgressão.
p. 557
1. Tendo como objeto de estudo um fenômeno da história do tempo presente, detenho-me à
censura e a sua internalização como conceito, bem como na delimitação, uso a introjeção da
idéia criminalidade política (Becker, 1971) como eixo de reflexão. Assim, procuro mostrar
como um organismo de repressão e um governo autoritário juntos cunham a idéia do que é
impróprio e, portanto, passível de ser reprimido; e como, socialmente, essa noção é aceita e
passa a justificar a existência de uma instituição como o Dops. Além disso, chamo a atenção
para os mecanismos de resistência, como a imprensa clandestina, por exemplo, que tenta
quebrar essa legalidade, ao mesmo tempo em que a sua existência, na lógica do censor, faz
dessa polícia política uma entidade “necessária”.
DOPS: A REPRESSÃO COMO NORMA
1. [Censura e repressão: fenômenos datados].
2. [Refletir sobre os períodos de arbítrio político].
3. [Determinar o legal e o ilegal]. (...). No Estado brasileiro republicano essa foi uma tarefa,
um ato de fundação que pode ser constatado nos trabalhos acerca da força e da ação da [p.
558] polícia política no início da República, e se explica como forma de impor um
determinado modelo de cidadão ideal. (...).
p.558
1. [1983].
2. [Repressão no início do século XX à vadiagem e aos estrangeiros].
p. 559
1. [Competência do Dops: manter a ordem pública].
3. Uma outra vertente deste estudo direciona-se para a análise do material apreendido pelos
órgãos de informação durantes suas “batidas”. Tendo como ponto de partida esse acervo,
busco visualizar a malha construída pela censura ditadas pelos órgãos repressivos e as
expressões de ruptura e essas normas contidas no material confiscado e classificado de
“subversivo”, distinguir os exemplos que burlaram esse sistema autoritário. Com isso, será
possível mapear as estratégias do proibido, visando alargar ou enfrentar as fronteiras do
permitido.
p. 560
1. Em um tempo de imposições e silêncio, informar-se apenas pelas notícias permitidas era
ficar décadas atrás de seu tempo. (...). Os estudos demonstram que em face da situação de
controle do que seria permitido informar, o país assiste a uma imprensa de forte cunho que
oposicionista luta por seu direito de narrar os fatos.
2. A “quebra-de-braço” entre os meios de comunicação e os órgãos repressivos tinha um
objeto de desejo: impor o que podia ser legal, por um lado, e legalizar, explicitando, o ilegal,
por outro. Assim, o binômio ordem pública/segurança nacional regeu a polícia política e
estabeleceu o que se podia difundir como notícia. Aos órgãos de repressão cabia definir o que
era permitido; aos meios de comunicação de cunho oposicionista, como movimento de
resistência, cabia burlar as regras impostas. A partir da relação estabelecida entre uma
máquina de censura e um mundo clandestino que dela tenta escapar, e por fim destruí-la,
pode-se refletir sobre esse intricado mecanismo – ora externo, ora interno – que é a
delimitação do que é legal.
3. (...) acesso às fontes (...). As regras diferenciadas para a consulta do material numa cidade e
na outra suscitaram uma reflexão acerca da constituição daquele acervo. (...).
SEM O DOPS: COM QUEM FICA O CONTROLE?
4. [Sobre a matéria do jornal O Globo de 04/08/1996 noticiando o projeto de lei para a criação
da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN)].
p. 561
1. [Sobre o fantasma do SNI].
2. Vale destacar que, embora os registros das ações dos Dops estejam associados aos períodos
de ditadura na República brasileira, esse departamento, assim como outras instituições de
informação política do Estado, nunca foi extinto. Sempre existiram, quer o governo fosse
mais ou menos democrático ou mais ou menos ditatorial. A preocupação com a informação
sempre foi uma “questão de segurança nacional”. O que demarca as diferenças são, entre
outros aspectos, as formas de obter os dados, as informações sobre as condutas individuais; as
nuanças de se respeitar os direitos civis.
3. (...). [p. 562]. (...) diferentes instituições governamentais têm como preocupação questionar
a quem cabe tanto o controle como a responsabilidade pela difusão de informações. (...).
p. 562
1. No outro extremo da discussão está a premissa da privacidade individual. (...).
3. Questões delicadas e limites tênues parecem separar o que deve ser permitido e o que deve
ser considerado legal; do que é público para o corpo social e do que fere a dimensão privada
da história de cada cidadão. É esse o centro da discussão quando se tem um acervo policial
como foco de análise e material de consulta. Assim, por um lado, o Estado quer e se acha no
direito de “conhecer” os atos dos seus cidadãos, sob a égide da segurança da nação; por outro,
pessoas buscam preservar as suas vidas pessoais, sua intimidade e honra.
p. 563
1. Ao escolher inicialmente como objeto de minha tese as trajetórias dos Dops do Rio de
Janeiro e de São Paulo, entre a decretação do AI-5 e a Anistia, percebi ser crucial analisar as
políticas de formação dos acervos dos arquivos em geral, e desses dois em particular. Isso
porque, não só muitas vezes não sabemos exatamente como lidar com a classificação dos
documentos – secreto, confidencial etc. –, como também não temos a noção exata daquilo que
pode ser mencionado sem ferir a suscetibilidade das pessoas envolvidas; além disso, não
sabemos quanto o conjunto original mantém-se após a doação às instituições de guarda.
3. (...) em São Paulo, está franqueada a leitura de qualquer dossiê pessoal (os prontuários),
desde que se assine um termo de responsabilidade, no Rio de Janeiro o acesso a eles só é
liberado depois de uma autorização do “fichado”. Intrigada com essa norma diferenciada,
conversei com amigos “fichados no Dops do Rio de Janeiro. [p. 565] (...). (...) muitos dos ex-
militantes de esquerda nos anos de 1960 têm restrições tanto à abertura de seus prontuários ao
público quanto à exposição pública de seu passado e de suas ações políticas.
p. 564
[Foto da transferência do acervo do Dops para o Arquivo Público do Rio de Janeiro em 1994].
p. 565
4. (...). Será que algum arquivo tem o mérito de conter as informa [p. 566] ções verdadeiras
acerca dos fatos por ele guardados? (...).
p. 566
1. [Sobre as trâmites legais de acesso do público ao material reunido pelo Dops].
2. [Sobre as indagações do pesquisador francês Henry Rousso, diretor do Institut d’Histoire
du Temps Présent de Paris acerca da composição dos arquivos públicos].
3. Como se pode verificar, pesquisadores brasileiros e europeus enfrentam dilemas
semelhantes: como interferir em uma organização, como transformar um material bruto – um
imenso amontoado de documentos – em um material de [p. 567] consulta? Mas que isso: o
que esperar desse material, quais perguntas fazer, e o que realmente ele poderia responder?
p. 567
1. [Sobre a importância da história oral como fonte para o historiador do tempo presente].
2. [Período de abandono dos documentos do Dops e a instituição do habeas-data em 1986].
3. Se essa via legal possibilita o acesso à documentação, permanece a dúvida de como ordenar
a consulta ao material como pesquisa histórica. (...).
p. 568
1. [Sobre a legislação que regula a organização e o acesso aos arquivos].
p. 569
2. [Referências bibliográficas sobre a constituição dos arquivos].
3. Para fins deste trabalho, o material do Dops ganhará duas nomenclaturas. Será um acervo
quando eu me referir ao período em que estava “vivo” e era constantemente alimentado pelas
informações dos agentes da Polícia. Será um arquivo a partir do momento em que foi
depositado no Arquivo Estadual e recebeu tratamento por parte de técnicos e cientistas
sociais.
4. Para Vianna, Lissovsky e Sá (1986), arquivo é, basicamente, um locus privilegiado da
construção da memória. Que tipo de memória é essa e qual o seu processo de construção são
as questões priorizadas. Para os autores, existem dois processos que fazem de um amontoado
de papéis um arquivo.O primeiro é realizado pelo arquivador e o segundo pela instituição de
guarda que recebe, arruma e torna disponível o acesso. (...).
p. 570
1. [Quatro modelos de arquivos: caótico, centrífugo, centrípeto e monumental].
2. No caso do Dops, seu acervo caracteriza-se por uma tipologia mista, centrífuga e
centrípeta. Se, por um lado, tem como objetivo identificar o “fichado” no mundo, por outro,
trata-se de um arquivo que explicita o universo do outro a [p. 571] partir da lógica interna do
seu titular, ou seja, da perspectiva da Polícia. Assim, seu acervo permite tanto reconstruir uma
história do “fichado”, a partir da perspectiva do agente policial, como a do “fichador”; mas a
óptica que deve dirigir a consulta deve ser a do “fichador”. E esse modo como ele vê o mundo
e o “fichado” é o que compõe o material do Dops.
p. 571
1. Quando esse acervo passa a ser de domínio público, certas nuanças se explicitam. O
material chega em estado caótico aos Arquivos Estaduais, e muito se comenta a respeito de
uma possível “limpeza” realizada por ex-agentes do órgão, o que nos leva a crer que a sua
lógica interna tenha sido muitas vezes deliberadamente manipulada. Uma característica,
contudo, é-lhe marcante: contém informações de determinadas pessoas, mas não é um arquivo
privado. Por pertencer a um órgão público, é de domínio da sociedade, fazendo dessa situação
um nó difícil de desatar.
2. (...). Talvez, tendo como pressuposto essa idéia, os “fichados” no Dops que ainda estão
vivos, como também alguns dirigentes dos arquivos públicos que guardam essa
documentação, tenham mais tranqüilidade para tratar do tema e a noção de distância entre as
atividades políticas outrora realizadas e o conteúdo das fichas policiais elaboradas,
compreendendo que foi a lógica da desconfiança de um Estado autoritário que fez produzir o
acervo. E foi a lógica da democracia da informação que transformou este em um arquivo
público, aberto à consulta. Essa abertura é uma forma positiva de falar de um silêncio, como
também permite ao pesquisador rediscutir a constituição de uma memória.
3. A luta pela memória, pelo controle do passado e também do presente e do futuro é uma
batalha antiga. Muitos textos teóricos nas ciências sociais vêm de [p. 572] bruçando-se sobre
a questão. (...).
p. 572
2. (...). No contra-argumento de Reis Filho, voltar ao passado é um ato político, sendo
impossível a busca de uma neutralidade. Portanto, pensar esse passado como a memória da
conciliação é uma escolha política do passado, presente e futuro.
3. Assim, há sempre que se refletir acerca das análises que cada conjuntura e grupo fazem de
um determinado corte temporal. O historiador não é e nem pode ser visto como um ser que
desenterra o passado e o traz do fundo do baú para as [p. 573] luzes, assim como não há uma
única verdade a ser descoberta e revelada. As verdades construídas impõem uma visão da
sociedade e, como sugere Reis Filho, a decisão por uma delas direciona uma escolha do
“tempo histórico”, para frente ou para trás, para o presente, ou para o passado ou futuro.
p. 573
1. [Reflexão de Étiene François sobre o fascínio que os arquivos das polícias políticas
despertam na comunidade acadêmica e as dificuldades que o seu manuseio impõe].
3. (...). (...) François reafirma que essa é apenas mais uma fonte para as pesquisas. Uma fonte
rica e que não pode ser negligenciada, mas que as informações ali contidas necessitam do [p.
574] eterno cotejar com outras para melhor se compreender um período da história. (...).
p. 574
O ARQUIVO MORTO DO DOPS: COMO PENSAR E GUARDAR
1. [Sobre o direto à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas em
contrapartida ao acesso às informações (Constituição de 1988)].
2. [Sobre o projeto da Comissão Especial do Estado de São Paulo sobre a veracidade e o
acesso ao arquivo do Dops].
p. 575
1. A solução encontrada tanto no Arquivo do Estado de São Paulo como no Arquivo Público
do Estado do Rio de Janeiro foi a de transferir para o pesquisador a responsabilidade por suas
conclusões sobre o material, o que, em última instância, parece-me o mais acertado. (...). Só o
indivíduo é responsável por suas conclusões. Nessa direção, o Arquivo do Estado de São
Paulo determinou que ali seria adotada
[...] a política de dar ênfase à premissa de livre consulta, através da
assinatura de termo próprio, a responsabilidade pelo uso das informações
contidas naqueles documentos. Essa disposição, estabelecida pela resolução
n.° 38, de 27.12.1994, da Secretaria de Cultura, promove a conciliação dos
princípios democráticos de direito à informação e de resguardo da
privacidade e da boa fama das pessoas, atendendo também aos reclamos dos
pesquisadores da história recente brasileira21 [Arquivo do Estado de São
Paulo, 1997, p. 34].
3. A diferença básica ente o acesso à informação do acervo do Dops no Rio de Janeiro e em
São Paulo é que no primeiro os prontuários – as fichas pessoais – só [p. 577] podem ser vistos
a partir da autorização do titular, salvo serem anteriores a 1964, como mencionei acima. Em
ambos, a consulta fica prejudicada pelo pequeno número de instrumentos que permitem ao
pesquisador ter uma idéia de como manusear a documentação.
p. 576
[Foto da transferência do fichário do Dops de São Paulo para a antiga sede do Arquivo do
Estado].
p. 577
1. (...). (...) tal fonte não pode ser descartada, como gostaria o arquivista francês citado
[Michel Duchein], mas deve ser encarada, tanto pelo pesquisador como pela instituição que a
guarda, a partir da percepção de que a constituição do acervo fornece pelo menos uma
perspectiva de análise: como os integrantes do Dops nos viam – cidadãos da época.
2. A encruzilhada é evidente. Estamos entre o direito à informação e os limites da
privacidade. Tentando elucidar a questão, Hannah Arendt esclarece que nos regimes
totalitários as polícias secretas são as que podem ver sem serem vistas [p. 578] (apud Lafer,
1988). (...).
p. 578
21 No Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, o termo de responsabilidade faz alusão às restrições dos artigos 4° e 6° da Lei de Arquivos (8159/91) e dos artigos 138 e 145 do Código Penal, que prevê pena para os crimes de calúnia, injúria e difamação. Somam-se a estes, o artigo 5°, capítulo X, da Constituição Federal de 1988, que proíbe a difusão de “informações obtidas, que, embora associadas a interesse coletivo ou a interesses particulares, digam respeito à honra e imagem de terceiros”. Assim, assina-se um documento assumindo a responsabilidade, civil e penal, pelo uso das informações contidas no material consultado.
1. Um trabalho recente acerca do arquivo Filinto Müller (Quillet-Heymann, 1997), em
depósito no CPDOC/FGV, sugere que pensemos o arquivo como sendo a reunião de vários
momentos de seleção: seleção do colecionador que organiza o acervo; seleção dos doadores
deste a centros de memória, que muitas vezes produzem “limpezas”; e seleção dos
profissionais que os colocam à disposição do público. Essas seleções, muitas vezes,
interferem definitivamente na organização do arquivo, na sua lógica interna e primeira. As
alterações são mais ou menos intencionais, mas certamente impõem ao arquivo rearrumado
um novo perfil, que transforma as conclusões do pesquisador.
2. Os arquivos, em especial os que contêm informações de caráter pessoal, como os dos
serviços de segurança, como lembra Camargo (1993), possibilitam duas investidas: que lá se
encontram informações improcedentes, inexatas e enganadoras; e que lá tempos a história de
um órgão.
3. (...). Os documentos do Dops não devem ser tomados como a verdade da vida de um
indivíduo, mas sim como a expressão da lógica da desconfiança que permeava um órgão com
as suas características.
p. 579
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