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A Mansão do Penhasco
Século XIX, no topo de um dos penhascos da Irlanda.
Pai e filha vivem felizes apesar da falta da mãe que
falecera no parto quando Charlotte nascera na mansão do
Penhasco onde a menina fora criada, passou toda sua infância,
adolescência e começo da fase adulta no melhor lugar onde
poderia ter vivido, frente ao mar no alto de uma vasta linha
costeira convivendo com gaivotas, sol e toda a natureza que
estivesse presente naquele local.
Ouviu-se passos correndo sobre a casa, Lenard estava
sentado em sua poltrona, era um senhor de cabelos grisalhos,
alto e esguio, ligeiramente magro e aparentemente simpático,
com seus grandes óculos e um livro pequeno sobre a mão, olhou
para o teto ouvindo os risos de Charlotte dando bom dia a tudo
que via, as leves rugas de seus olhos verdes frisaram-se quando
a menina que estava fazendo vinte anos desceu a escada.
Charlotte correndo entusiasmada ao encontro do pai;
- Bom dia papai!
Lenard levanta-se com os braços abertos recebendo toda a
felicidade de sua filha;
- Bom dia minha filha! Como se sente neste dia glorioso?
Charlotte
- Radiante como sempre papai. Especialmente hoje! Afinal, não
é todo dia que fazemos vinte anos.
Lenard
- Sim! E por este motivo, hoje iremos à cidade comprar seu
presente.
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Charlotte sentando-se no sofá junto a Lenard;
- Ah não papai! Sei que não podemos gastar dinheiro. Não se
preocupe com isso, me contento em passar o dia aqui com o
senhor. Ser sua filha já é o meu maior presente.
Lenard
- Não, não, não, não, não! Você é a felicidade desta casa e vamos
à cidade sim, e a senhorita poderá escolher o presente que quiser
para dar um novo colorido a essa luz que irradias. Afinal não é
todo dia que fazemos vinte anos. Não é mesmo?
Charlotte abraça e dá um grande beijo na bochecha do pai;
- Está bem! Já que insiste. (Ela levanta-se). Então tomamos
nosso breakfast e partimos em seguida.
Eles seguiram de carro para a cidade que não ficava
muito longe dali, apenas tinham que descer a estradinha de terra
pela montanha, que em algumas curvas dava para desfrutar da
paisagem do oceano.
Lenard
- Charlotte, como já sabe, estamos passando por um momento
difícil economicamente falando. Andei pensando em alugar
parte da casa para alguém bem recomendado e que seja de bom
grado para nós.
Charlotte
- Mas papai! Não tem outra maneira de conseguirmos nos
manter sem ter um estranho convivendo conosco?
Lenard
- Infelizmente não vejo outra saída minha querida. Ou isso, ou
em breve não sei o que será de nós. Com a população da Irlanda
fugindo nos últimos anos por causa do tifo, a crise da batata em
nossa terra e tudo mais, ficamos a mercê de uma grande queda
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econômica.
Charlotte relutou mais um pouco com expressão de quem não
gostou, mas compreensiva e doce como sempre, a moça abriu
um sorriso e disse ao pai:
- O que decidir está decidido, pois o senhor é pai e mentor da
nossa casa, e graças aos seus ensinamentos sou tão feliz como
sou. Isto quer dizer que o senhor sempre sabe o que faz, por isto
devo confiar que tudo ficará bem.
Lenard olha para Charlotte e sorri;
- Vou deixar a encargo de um corretor que conheci na cidade.
Dizem que ele é o melhor para nos ajudar a encontrar a pessoa
certa como inquilina.
Lenard e Charlotte cantavam e brincavam pelo caminho,
estavam felizes e distraídos com aquele dia tão esperado pela
carismática menina. Quando de repente, em uma das curvas,
Lenard avistou um carneiro perdido no meio da estrada, tentou
desviar, pisando no pedal de freio e virando o volante
bruscamente...
Meses depois...
Apesar da luz fria, o quarto sempre ficava escuro
porque suas cortinas raramente eram abertas, a porta velha e pesada de madeira trancada a chave, fazia barulho com o forte vento gelado do oceano que mostrava algum movimento naquele lugar parado, esquecido, quieto, era como se a terra fosse o único ser a respirar por ali. Os negros olhos estavam apagados vagando pelo ar úmido, sua pele branca e jovem ressecara não se sabe o porquê, a boca ainda estava rosada e os
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cabelos sedosos e brilhantes esparramavam-se pelos inúmeros travesseiros brancos que ficavam naquela cama vazia e solitária. Ouvia-se de muito longe o canto dos pássaros, talvez os únicos a visitarem aquelas imensas e embaçadas janelas que mais pareciam lindas molduras, avistando do alto a fúria do mar que surrava as pedras batendo nelas com fortes ondas de uma ressaca. Ali, ela não tinha nome, não era ninguém, ali, era apenas ela. O piso de madeira rangia com seus passos lentos que na maioria das vezes não sabiam para onde ir, perdiam-se no nada de suas lembranças, não se sentia mais gosto, e o longo silêncio se estendia por horas fazendo-a esquecer a própria voz. Talvez o pior já tivesse passado. Aquilo que perturbava sua mente, aquilo que não se sabia denominar. E por que aquela estranha sensação de estar perdida no vazio do nada insistia em predominar em seu pequeno e insignificante ser? Por quê?
Podia se dizer que seus únicos amigos eram folhas amareladas e um lápis já desgastado. Por que não afirmar que as palavras que nasciam e se encaixavam como em um quebra-cabeça formando assim o enredo de sua vida, ou até mesmo desenhando seu imaginário, eram suas aliadas e fieis irmãs?
Eram o que ainda lhe dava vida, estavam entranhadas em cada
traço seu, bastava um simples sonho, um pôr do sol, ou uma tarde chuvosa para que a história se criasse e a induzisse naturalmente. E naquele dia de luz fria, ouviu-se o ranger dos grandes portões de ferro com pontas afiadas que a muito já não se abriam para receber visitas, e por isso já estavam cobertos por
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uma planta chamada hera de inverno, mas essa não era a única espécie de trepadeira a tomar conta de todo aquele jardim falecido que se perdia de vista de tão grande. Um chafariz de mármore com a estátua de uma mulher nua acariciando a água ficava bem em frente à mansão, estava sujo e seco, após uma pequena escadaria para chegar às portas da entrada, via-se
colunas muito altas e arredondadas, a extensa varanda envolvia toda a casa que ficava no ponto mais alto de um penhasco, o vento levantava e arrastava as folhas secas do chão, brilhantes e finos sapatos pretos caminharam até a entrada. Ela ouviu alguém arrastar a porta lentamente fazendo a madeira ranger, desceu a escada deixando a bainha de seu leve vestido de seda lilás com detalhes em renda branca arrastar-se pelo chão empoeirado. A sala principal era de uma beleza bucólica impressionante, mas uma pessoa alérgica a poeira não aguentaria ficar se quer um minuto lá dentro, assim que Heitor pôs os pés dentro da casa não teve dúvidas de que era aquela a qual procurou por todos os seus 27 anos, a parede toda de vidro de frente para o mar estava embaçada por causa da maresia, e fora o que mais lhe trouxera uma sensação de liberdade. Ele podia ver o sol, ver a lua, ver o mar, ver a chuva, ele podia até ouvir o vento viajar. As cortinas pesadas e vermelhas de veludo ainda estavam bonitas, o grande lustre de gotas de cristal continuava imóvel com teias de aranha que nem se pode imaginar de tão grandes, um piano de meia calda
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desafinado porque ninguém o tocava a muitos e muitos meses, ficava ao lado da larga escada centralizada na primeira sala que por um tapete vermelho nos levaria para o segundo andar da antiga mansão. O homem que se interessara pela residência, nasceu logo
após o período em que a Irlanda foi atacada pela Grande Fome
causada por uma praga da batata, que atacou as colheitas por um
período de quatro anos de 1845 a 1849. Milhares de pessoas
morreram de fome e muitos mais faleceram devido a doenças
como o tifo, como também tiveram aqueles que emigraram para
outros países no decorrer dos anos que vieram, mas Heitor
permanecera fiel a suas origens lutando por sua permanência na
grande ilha.
Charlotte segurou em seu vestido de tecido fino enquanto descia os últimos degraus, logo avistou aquele bonito e bem alinhado homem que estava frente à parede de vidro admirando a paisagem. Então, com seus passos de bailarina seguiu até ele e ficou parada ao seu lado, Heitor continuou olhando para frente ignorando a presença da moça, virou-se dando-lhe as costas caminhando com ar de interessado naquele momento em apreciar à antiga mobília.
Charlotte
– Olá senhor. Poderia me dizer seu...
Charlotte foi interrompida por um senhor de cabelos
brancos, baixo e aparentemente antipático que entrou com uma
pasta nas mãos, ele era chamado por corretor.
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Corretor
– Senhor Heitor, o que achou?
Heitor virando-se de frente para a moça e olhando-a disse com
sua voz melodicamente rouca;
– É, a casa é... boa! Existe até uma certa beleza, mas sua
estrutura... (Heitor segurava o queixo com uma das mãos
enquanto olhava para o teto e andava pela sala). Hummm!
Não sei! Parece-me estar meio frágil. (Ele bate com a sola de
seu sapato no piso de madeira para analisá-lo). Não tem
cupins?
Corretor
– Não senhor!
Charlotte acompanhando Heitor;
– Apenas no porão, um problema que se resolve fácil, creio eu.
Mas queres saber por quê?
Heitor
- Como sabes uma mansão assim exposta a tanta umidade pode
acabar cheia de cupins. Mas tudo bem, este é um problema fácil
de resolver.
Charlotte - Foi como eu disse senhor.
Corretor - E da vista? É a mais bonita que já pude desfrutar. O que o
senhor achou?
Heitor falando sem olhar um minuto sequer para os presentes na
sala;
- Sim, sim.
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Charlotte - Um privilégio e tanto não acha?
Heitor seguindo para a porta de saída;
- Voltaremos daqui a algumas semanas talvez. Vejo que parece
estar abandonada neste lugar silencioso por muito tempo. (Ele
para e fica a distância de frente para Charlotte). Por isso
encontra-se neste estado deprimente. (Heitor segue para fora da
casa).
Charlote olhou-se dos pés a cabeça tentando entender a
última frase do moço, e com uma careta mostrou ter entendido
de uma maneira não muito positiva.
Heitor ocupava-se com seu trabalho, não por obrigação,
mas sim porque apesar de sua boa aparência era um homem
muito recluso, ele encontrara um lugar dentro de si que o
agradara e o fazia se sentir seguro, criou seu próprio mundo e se
trancara dentro dele. Era um escritor não muito conceituado na
Irlanda, já havia escrito poucos livros, nenhum de sucesso. Mas
ele dera a sorte de nascer em uma família de muitas posses, filho
único perdeu seus pais muito cedo, vendo-se obrigado a tomar
as rédeas dos negócios antes que seus parentes o fizessem para
tomar-lhe tudo que herdara. Agora já adulto Heitor apenas
queria encontrar a paz, que mesmo trancado no seu interior
silencioso não conseguia sentir.
Após três semanas ele voltou à mansão em seu carro
trazendo consigo quatro malas de couro marrom escuro, com
uma chave ele abriu o cadeado já enferrujado dos portões de
ferro. Assim que estacionou em frente à mansão parou por
alguns segundos para admirá-la, segurando as malas empurrou a
porta e entrou. Charlotte o viu entrar lá do sótão que mais
parecia um aquário rodeado por janelas de vidro. O teto era alto
o suficiente para qualquer pessoa poder andar sem bater com a
cabeça, tudo lá dentro era de madeira, a decoração era simples
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composta por apenas um sofá, uma mesa e uma cadeira, uma
cama de solteiro e em frente um baú, tudo se resumia neste
cômodo, não havia divisões, apenas uma escada que descia para
o segundo andar da casa.
Charlotte - Eu não sabia que o papai já havia encontrado um inquilino
assim tão rápido. (Charlotte desceu as escadas e foi para o
primeiro andar onde viu novamente Heitor com as mãos no
bolso admirando a paisagem, ela disse baixinho agachada na
escada:) É aquele senhor que veio aqui há poucas semanas.
Como é mesmo seu nome? Hummm... Eric? Não! Ah... Heitor!
Sim, é ele acompanhado do seu jeito esnobe. (Charlotte
levantou-se e andou até ficar um pouco atrás de Heitor e então
parou e ficou olhando-o dos pés a cabeça).
Heitor virando-se de frente para Charlotte e caminhando pela
sala;
- Ainda bem que este lugar fica longe da cidade.
Charlotte
- Por que diz isso?
Heitor - Creio que escreverei melhor aqui sem todo aquele barulho
ensurdecedor. Pessoas! Pessoas! Pessoas! Elas falam demais,
perguntam demais, se intrometem demais na vida dos outros, se
sentem nesse direito apenas porque são vizinhos. Aqui não terei
vizinhos, ninguém para perturbar o sossego da minha escrita.
Adoro todo esse silêncio. (Heitor sobe a escada para o segundo
andar).
Charlotte continua onde estava;
- Mas o senhor não está sozinho, eu e meu pai moramos aqui
também. (Heitor desaparece dos olhos de Charlotte). Vou falar
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para o papai que não gostei desse moço! Não! É melhor eu não
falar nada, estamos precisando do dinheiro do aluguel. Bom, já
que ele não gosta de pessoas não precisarei me esforçar para
fazer sala para ele.
Heitor subiu os degraus e se deparou com uma grande
janela à sua frente que tinha como quadro vivo o oceano, um
corredor transversal que tanto para o lado esquerdo quanto para
o direito, se alongava com portas de ambos os lados, sendo que
indo pela direita ou esquerda da escada, como se voltássemos à
entrada da casa, também víamos passagens por corredores que
levavam logo à frente, a passar por um portal de madeira,
encontrando uma grande sala com uma grande lareira e sofás ao
seu redor de veludo vinho com quadros antigos que tornavam
aquele ambiente ainda mais conservador, e no final do primeiro
corredor transverso retromencionado à direita, mais uma escada
que daria no sótão. O escritor entrou em cada porta que viu, com
os olhos brilhantes admirava o bom gosto e como tudo estava
muito bem conservado, apesar dos móveis parecerem ser de
séculos atrás. Os quartos que mais lhe agradaram foram às seis
enormes suítes principais que eram seis dos inúmeros cômodos
que tinham vista para o mar. Pouco depois de acomodar suas
coisas tratou de limpar os lugares onde circularia, estavam muito
empoeirados, ele levou o dia inteiro, mas conseguiu cumprir sua
tarefa.
No dia seguinte Heitor acordou, e após seu desjejum
solitário, com uma caneca cheia de café caminhou com seus pés
congelados apesar de calçados até o jardim. Parado ali na
varanda observou a imensidão daquela natureza e quanto
trabalho iria ter para limpá-lo.
Heitor
- Terei muito tempo para isso.
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Como um homem bem sucedido não tinha obrigações
para com os outros, mas como uma pessoa solitária assim que se
exauria de seus livros, logo tratava de arrumar uma nova tarefa
para ocupar seus pensamentos. Nunca se vira um jardim tão
triste e pesado como aquele.
No final da tarde, como quase sempre naquela época do
ano, caía uma chuva e o vento ficava gelado, o escritor
costumava relaxar e sentir sono, passando pelo corredor, Heitor
olhou para a escadinha que dava no sótão, o único lugar aonde
não havia ido, pois naquele final de tarde ele resolvera subir.
Ele não se surpreendeu com este cômodo, era simples, mas por
incrível que pareça sentiu uma sensação de conforto, algo
tranquilizou seu espírito, o silêncio às vezes o fazia concentrar-
se sem ele mesmo perceber. Ele caminhou até as janelas e
admirou a vista, então virando-se reparou o baú em frente a
cama que estava arrumada com lençóis de seda cor rosa chá,
logo percebera que aquele era um quarto feminino. Aproximou-
se e abriu o baú que estava cheio de bugigangas, mas por cima
das pequenas velharias o que mais lhe chamou a atenção fora
um diário. Heitor o pegou devagar como se inconscientemente
soubesse que estava mexendo em algo que não era seu, ele
assoprou a poeira da capa, indeciso antes de abrir para ler, ficou
pensando: Um diário é muito pessoal, será que devo ler?
Caminhou até ao lado da cama e se sentou, avistou uma pequena
caixinha que estava no criado mudo, ele a abriu e uma leve
música surgiu com um casal de bailarinos que rodopiavam em
cima de um espelho, Heitor abre o diário e começa a lê-lo a
partir da primeira página.
Hoje o dia estava perfeito, sabe quando o sol te abraça esquentando teu corpo confortavelmente e a brisa fresca te envolve? Era assim que eu sentia. Meus primos Teddy e Luísa, me chamaram para tomar café,
Diário de Charlotte
01 de Janeiro de 1880
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minhas tias tinham posto uma mesa retangular enorme no jardim, brincadeiras, chacotas saudáveis, muita animação e alegria. Também, nunca conheci ninguém com tantos parentes como eu, consequentemente a mesa estava cheia de pães feitos em casa, leite, suco, frutas e chocolate quente. A tia Margaret é uma excelente cozinheira, é sempre ela que planeja o cardápio das festas que aqui acontecem quando todos nós nos reunimos.
Ah, sim! A festa do ano novo! Não faz sentido eu começar a contar neste diário como começou o dia de hoje sem contar como foi ontem. Eu, papai, o tio Jorge, Luísa e Clarinha, cuidamos da decoração, espalhei estrelas cadentes por tudo quanto foi canto do salão, a alegria estava tomando conta e contagiando a todos no dia de ontem. O dia foi passando, as pessoas apareciam aos poucos e conforme ia chegando à noite, todos alegres, unidos aguardando o grande evento. A passagem de um ano para o outro, 1879 para 1880.
Dançamos, cantamos, contamos piadas, relembramos os momentos hilários deste ano, nos divertimos muito até a meia-noite. Quando faltava um minuto para o momento esperado, eu avisei a todos...
Charlotte no centro da sala principal;
- Gente! Gente! Pessoal, quero todos reunidos aqui agora para
nossa contagem regressiva. Falta um minuto para o novo ano.
Quando faltarem dez segundos, vamos todos juntos fazer a
contagem regressiva, combinado? Agora!
Todos juntos gritando num frenesi de empolgação com a
esperança de um novo ano feliz;
- Dez, nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois, um, FELIZ
ANO NOVOOOO!!!
Era uma festa de harmonia entre os que ali estavam. Abraços, beijos, sorrisos, e muito entusiasmo ao se cumprimentarem desejando uns aos outros um feliz ano novo. Eu particularmente desejei a cada pessoa que abraçava um Feliz Ano Novo! Com muita saúde, harmonia, alegria e um ótimo aproveitamento ao viver este ano que acabara de nascer. Entramos por madrugada a fora até o amanhecer. É claro que nem todos
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conseguiram esta proeza, pois muitos estavam cansados e não aguentaram a maratona, foram dormir espalhados pelos cômodos distribuídos pela casa. Eu e meu pai como sempre, conseguimos ficar abraçados do lado de fora da casa na varanda ouvindo os pássaros acordarem, o novo sol nascendo ao despertar do novo dia neste novo ano cheio de promessas e esperanças com uma beleza que poucos tinham o privilégio de presenciar em qualquer outra parte do planeta. Este é o lugar mais lindo do mundo, o nosso lar, o nosso paraíso.
Após este momento a dois, eu e papai, voltamos para dentro de casa a fim de lavarmos o rosto, escovarmos os dentes e nos prepararmos para o maravilhoso dia que não pararia por ali. Ao terminarmos de nos arrumarmos, como disse antes Teddy e Luísa vieram me chamar, descemos, preparamos o café da manhã com a ajuda da minha tia Margaret que já estava acostumada a acordar cedo e confeccionar os quitutes deliciosos para um bom Breakfast. Aos poucos todos foram acordando e se chegando à mesa para se deliciarem com as guloseimas. Através de um rodízio organizado por mim, é claro, pois com tanta gente junta, se não tomo as rédeas da situação como uma boa pastora, mas pareceria um estouro de carneiros e ovelhas atrás dos campos abertos em busca da liberdade (Risos). Ao término do delicioso encontro à mesa, alguns de nós combinamos de descer pela trilha do penhasco até a praia para tomarmos um banho de mar. Fomos eu e meus primos, Teddy e Luísa, papai estava cansado e tinha que dar atenção aos mais velhos que estavam na casa e não tinham mais esta disposição de jovem para tal estripulia. Com roupas apropriadas, ao chegarmos lá embaixo, vimos às gaivotas sobrevoarem deslizando sobre as pequenas ondas que cercavam a nossa orla particular, pois além de nós, só havia crustáceos, peixes pulando, o sol, areia e muita água. A natureza era nossa maior companhia naquele momento fotográfico em que nunca mais sairia de nossas mentes com certeza como sendo um marco de 1880. Após a praia voltamos para casa, os membros das famílias foram se despedindo aos poucos retornando para seus lares, até ficarmos somente eu e meu pai de volta a nossa rotina a dois.
E aqui estou eu em meu quarto no sótão, escrevendo sobre este dia louco, sentirei saudade de cada expressão que vi nos rostos de meus familiares, é incrível como às vezes penso que serão expressões únicas para sempre.
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Heitor terminou de ler o dia que iniciava o diário, apesar
de achar estar invadindo a privacidade da autora deste, deixou
sua curiosidade levá-lo a querer ler mais ao perceber tanta
alegria por parte da mesma, sem levar em conta o que a menina
chamada Charlotte, como identificada na capa deste diário com
seu nome escrito, pensaria a respeito, afinal, ele estava na
mansão para ganhar inspiração, e nada mais inspirador que as
histórias relatadas naquele diário e a descrição de tudo que
acontecia naquela casa.
Charlotte escutou a doce melodia de sua caixinha sair lá
do sótão, ela encontrava-se no primeiro andar da casa, como que
por uma hipnose caminhou calmamente até o segundo andar,
com seus delicados pés descalços subiu a escadinha de madeira
bem de vagar desconfiada achando estranho à música estar
tocando sozinha, pois seu pai raramente subia ao sótão e nunca
mexera em suas coisas, espreitando na entrada de seu quarto
sem se deixar notar pelo novo inquilino, surpreendeu-se ao ver
Heitor lendo uma de suas peças mais íntimas, mas ficou em
silêncio mordendo-se de raiva por ver sua privacidade invadida
tão descaradamente, ao mesmo tempo pensou: Este senhor é
muito abusado, como ousa entrar em meus aposentos, invadir
minha privacidade, e pior, ler o meu diário sem meu
consentimento?! Vou falar com meu pai a respeito, agora não
tem jeito! Isto eu não permitirei!
A menina saiu dali como um furacão a tal ponto que em
sua retirada rápida, e sem ser percebida por Heitor, fez com que
um tapete na entrada da porta desse uma pequena levantada na
ponta fazendo com que o senhor curioso pressentisse a presença
de alguém, sendo que sem avistar algo ou pessoa, optou em
ignorar o fato de ter percebido um movimento qualquer, fechou
o diário, deixando-o no lugar encontrado e desceu para dar
continuidade ao seu dia.
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Charlotte descendo as escadas em direção à sala vai pensando
no que acontecera e lembrando precisarem do dinheiro o qual o
inquilino deixaria de pagar caso ela tornasse o acontecido em
uma tempestade, resolve deixar para lá argumentando com si
mesma;
- Coitado, ele me parece ser tão solitário, deve ter algum motivo
para viver sozinho, e de repente encontrou em meu diário uma
forma de não se sentir mais tão só. Vou deixá-lo com sua
curiosidade em mim. Também não tenho nenhum pecado a
esconder de tão grave o qual tenha que me esconder em palavras
num livro autobiográfico. Quem sabe este senhor não se
transforma em uma pessoa mais simpática e daqui a um tempo
ele perceberá não valer a pena ser tão metido e soberbo do jeito
que demonstra ser passando a agir como uma pessoa mais
simpática, leve e sociável? (Risos).
O dia se passou para Heitor como todos os outros dias,
ele não sabia como, e quase não sentia, mas para ele era como se
estivesse vivendo o mesmo dia, sempre acordava e preparava
seu café com pães, ovos e bacon, costumava evitar o jornal, pois
em sua cabeça achava que iria ser infectado com tantas notícias
ruins, apesar de algo lhe dizer que ele deveria ficar informado
sobre o que acontecia ao seu redor. Após seu ritual matinal com
os pés calçados e luvas próprias para jardinagem, ia até o jardim
molhar as plantas que ele conseguia, pois eram tantas, estipulou
trinta minutos para isso, sempre começando após a pausa da
última que havia regado, se precisasse teria mais trinta minutos
para cortar uns galhos, recolher umas folhas secas... Então teria
o tempo livre até a hora do almoço que ele mesmo gostava de
preparar, que para variar, não era nada saudável, carnes
vermelhas engorduradas e algumas taças de vinho, às vezes
misturava algumas bebidas, jamais ficava bêbado, então teria
mais um tempo livre, escreveria alguma coisa ou dormiria ou...
Ups! Alguma coisa mudou. Ou leria o diário de Charlotte, a
menina que achava que o mundo era lindo e colorido. Pensava
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ele: Simpática, meiga, cativante e energética. Qualidades que ele
não levava muito em consideração.
Heitor resmungando com sigo mesmo;
- Prefiro ser mais prático e objetivo quando se trata de pessoas,
afinal elas se confundem à toa. Ser amável com todos é um
desperdício de tempo, se não estou bem, não estou bem e
pronto, não vou ficar fingindo que meu mundo está perfeito só
para agradar os outros. Ser sorridente e saltitante não faz o meu
estilo, muito menos sociável.
Charlotte surgiu no meio da sala, ela acabara de ouvir o que
Heitor havia dito;
- Como quase sempre estou discordando do senhor não é
mesmo? Parece até que faço de propósito, mas juro que não é
este meu objetivo maior. (Charlotte caminha na sala
gesticulando). As pessoas precisam de atenção e consideração da
mesma maneira como gosta que tenham com o senhor. E se elas
se confundem, já parou para pensar que é você que pode estar se
expressando mal? Por isso temos que ter paciência. Nem vou me
aprofundar na questão egoísta de “você” estar bem ou não,
ninguém é obrigado a aturar seu mau humor, se algum problema
aconteceu, esse problema é só seu, não temos culpa se alguma
coisa em sua vida tenha saído fora do seu controle. Não precisa
fingir que está bem. Mas também não precisa ser mal educado e
intolerante. Heitor, temos sempre que buscar viver em harmonia
com as pessoas, os animais e todo o resto, mas para isso
primeiro temos que estar em harmonia conosco. É o que te falta.
(Charlotte respira fundo e solta o ar de pressa jogando-se no sofá
como se tivesse tirado um peso enorme das costas). Pronto falei!
Heitor levantou-se sem dizer uma palavra e caminhou até
a escada indo para o segundo andar da casa, Charlotte
acompanhou seus passos movendo apenas os olhos com a
expressão de quem estava achando aquela atitude grosseira e
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inacreditavelmente mal educada.
Charlotte
- Por que não estou surpresa? Mas eu não desistirei de tentar
mudar o semblante deste homem triste, coitado. Ainda vou
arrancar-lhe um sorriso.
Após tudo isso, no final da tarde, Heitor foi até o sótão
pegou o diário e foi lê-lo na varanda da parte que fica de frente
para o mar na entrada da casa, Charlotte quis ficar próxima e
acompanhar a leitura junto com o moço se colocando por trás da
poltrona confortável que ele estava sentado preguiçosamente,
para que ele não percebesse sua presença.
Após acordar e proceder a todo o ritual matinal diário de costume, a parte do dia que mais me chamou atenção foi o momento de reflexão em que me encontrei envolta a pensamentos como contarei a seguir.
Eu estava sentada em uma das pequenas muretas na entrada da varanda de frente para o mar, é um dos meus lugares prediletos entre tantos outros na casa, mas gosto de observar o final de tarde de lá, a luz do sol fica alaranjada e dá um toque especial em todas as outras cores, ela fica tão grande e reluzente que parece um portal para o paraíso.
Acabei de ler um livro agora pouco, como sempre mais um romance, adoro praticamente todos, principalmente aqueles que o mocinho se apaixona perdidamente pela mocinha e um belo dia consegue conquistá-la, então vivem ardentemente esse amor até que um dia algo os separa. Eles sofrem, sofrem, mas como são adultos, seguem suas vidas. Mas aí! Algo muito mais forte que qualquer coisa os reaproxima, como o destino, a força do verdadeiro amor, aquele que se conquista com ternura, bondade e dedicação. Amar é quase que uma profissão. Primeiro passo: Não se pode estar indeciso ao escolher o que passará fazendo o resto de sua vida onde quer que tudo dê certo. Segundo passo: É preciso vontade para conseguir alcançá-lo. Haverá
Diário de Charlotte
18 de Janeiro de 1880
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muitas dificuldades. Amar não é fácil, precisa-se de experiência no ramo para entender que pessoas são diferentes em muitos aspectos, não podemos exigir que elas sejam como nós e façam as coisas como achamos que devem ser feitas. O amor precisa de espaço para crescer, e para isso é necessário confiança. Terceiro passo: Dedicação. Quando não estamos indo bem em um serviço, é porque algo não está certo, algo não está seguindo o mesmo caminho que nós. É quando o patrão diz que não está dando certo, e provavelmente ele procurará outro para nos substituir. Para que isso não aconteça, esse tipo de trabalho precisa inteiramente da nossa dedicação, dia e noite se for o caso, varando inclusive algumas madrugadas ignorando o sono. Ouvi alguém dizer uma vez que eu deveria me casar com uma pessoa que eu gostasse de conversar, pois era o que nós passaríamos fazendo o resto de nossas vidas. E na verdade, o que sobra é uma grande e carinhosa amizade.
Sim, acredito que amar deve ser difícil, mas eu adoraria vencer este desafio. A história que estou lendo é sobre um homem que já havia se casado seis vezes, e por seis vezes ele tentou viver o desafio que é o amor, ele amava as mulheres, dedicava-se a elas, preferencial e quase que instintivamente admirava as loiras de olhos claros, magrinhas. Mas não passavam-se quatro, sete, dois, cinco anos, e seus relacionamentos por mais que ele quisesse, desejasse e buscasse, acabavam dolorosamente. Então aos cinquenta anos, depois de muito sofrer, acabou por conhecer Maria Anita, cabelos compridos, negros, como seus olhos que eram levemente puxados, de pele bem clara, seu corpo não era de uma magreza elogiável, mas caía graciosamente em seus modestos vestidos a ponto de receber lisonjeiros elogios. No início, diferente da maioria das paixões, eles eram estranhos um para o outro, apesar de falarem a mesma língua, os diálogos eram difíceis, além de haver uma pequena diferença de vinte anos de idade, Maria Anita tinha apenas trinta anos quando enxergou o homem aparentemente sincero e que buscava a mesma coisa que ela, “um amor”.
Bem! Mais um dia se passa e como estou cansada e sonolenta, irei para cama mais cedo. Por hoje, fico por aqui.
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Heitor lia o diário atentamente, sentia-se cada vez mais
interessado pela rotina e os pensamentos da menina Charlotte.
Heitor olhando para as páginas do diário perdia-se em suas
palavras;
- Apenas meninas escrevem diários. Como pode ser tão
esclarecida nestes assuntos do coração ainda sendo uma menina?
Charlotte riu em tom baixo, mas lembrando de que o humor do
bisbilhoteiro era de lua, recuperou-se e foi sentar-se em uma das
muretas da varanda de frente para o mar;
- É simples, é só observar. (Heitor virou lentamente seu pescoço
em direção à mureta onde estava Charlotte, olhando como se por
um instante tivera a vontade de entendê-la. Ela continuou a falar
olhando para o horizonte:) O amor é um só Heitor, você pode
vê-lo em tudo, nos animais, nas flores, em toda fauna, entre
amigos, pai e filha. Se um dia você parar com esse mecanismo
rotineiro e observar tudo isso, abrir os braços para a vida
acreditando nela, vai conseguir compreender tudo isso. Sentirá
que nada é tão complexo para não se tentar entender.
Heitor retorna seu olhar para o diário, fecha-o e
levantando-se da poltrona, vagarosamente dá passos até a ponta
da varanda, onde descendo uns três degraus, a uns quinze metros
à frente, havia uma cerca de madeira mal pintada de branco, na
verdade toda descascada precisando de uma mãozinha, e a dois
metros antes da quina do começo do paredão de pedra, um
senhor penhasco que caía uns trinta metros ribanceira abaixo,
bem íngremes, até grandes rochas desgastadas com as frequentes
ondas que ali batiam todo o tempo, mas só dava para vê-las
quando a maré estava vazia. Ainda na varanda, ele fechou os
olhos. Curiosa com que o rebelde estava fazendo, Charlotte
cautelosamente foi ficar ao seu lado e fez a mesma coisa que o
moço. Uma leve brisa os tocou, Heitor sentiu como se dedos
passassem entre seus ondulados cabelos acariciando-o, então
24
juntos respiraram fundo e soltaram o ar bem de vagar. O senhor
de simpatia temporária após essa breve meditação, olhou para
um lado, olhou para o outro onde estava Charlotte, sendo que
desta vez, olhando em direção aos olhos da jovem, não demorou
muito e virou-se caminhando para dentro da mansão mais uma
vez ignorando sua presença, sendo que desta vez, de forma mais
amena.
Charlotte ainda imóvel sentindo a harmonia que estava
pairando no ar, ao ver Heitor saindo acompanhou-o com a
cabeça e disse em um tom um pouco alto:
-Você fala pouco Heitor, deveria se expressar mais! (Falando
consigo mesma). Como ele sai assim sem dizer nada? (Volta a
falar com Heitor em tom alto). Ainda não me acostumei com
essa sua falta de média com as pessoas senhor etiqueta!
(Discursando). Eu transpassarei seus muros de concreto frio,
atravessarei essa ponte balançante de ventos turvos e uivantes, e
acharei o verdadeiro e doce Heitor que há dentro de você!
Tomarei isso como uma missão! E fique sabendo que nunca
desisto de uma missão!
A noite chegou, o jovem de 27 anos continuou sua rotina.
Antes de dormir andava por quase toda a casa fechando portas e
janelas, ele não sabia o porquê, sempre tinha uma sensação de
que estava em perigo, levava alguns minutos para cumprir sua
tarefa, não demorava mais, pois por ser muito grande a casa e
quase não se utilizar boa parte dos cômodos, já deixava a
maioria das portas e janelas fechadas durante o dia, então
voltava todo o caminho desde os fundos da mansão e conferia as
trancas uma por uma. Uma hora depois, parado no meio da sala
principal do primeiro andar, deu uma última observada no
ambiente e nas portas.
Passava das onze horas, deitado em sua grande e
confortável cama, Heitor ficou virando-se de um lado para o
outro por uns vinte cinco minutos, levantou, foi até o banheiro,
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lavou o rosto e tomou alguns comprimidos, lavou as mãos,
voltou para cama com seu chinelo felpudo. Após trinta minutos
de guerra com o sono ele se levantou novamente, pôs seu casaco
cinza e dirigiu-se até à copa-cozinha, preparou um pouco de café
bem forte e quente, lavou as mãos e foi para o escritório com a
caneca na mão cheia até um pouco mais que a metade. Não era
um ambiente muito agradável, mas era muito grande e com
prateleiras enormes recheadas de livros provavelmente muito
antigos, que iam até o teto desenhado a mão por um artista que
Heitor não se importou em saber quem era, desenhos de homens
e anjos se confundiam naquele cenário que não fazia muito
sentido para uma pessoa que não questionava dar-se um tempo
para entender a sensibilidade daquela arte. Ele sentou-se em uma
cadeira de couro vermelho que estava por trás de uma mesa
grande de madeira, tomou um gole do seu café quente bem
quente vindo a queimar a língua e o céu da boca, esquecera que
estava bem quente, depois de praguejar algumas palavras
desagradáveis, colocou a caneca na mesa um pouco à frente,
pegou um papel e começou a escrever. As noites ficam cada vez mais estranhas. Desde que cheguei aqui, tenho me sentido sozinho como de costume, pois a muito não faço questão de me socializar com ninguém, mesmo aos que se aproximam de mim com tal intenção. Mas algo parece estar mudando à minha volta. Estou lendo o diário da menina Charlotte, nem sei porque faço isso, não vejo sentido em estar lendo o diário dela, mas alguma coisa me leva a lê-lo, alguma coisa dentro de mim, pode ser só curiosidade, mas ainda lembro de que minha curiosidade pela vida fora embora sem se despedir. Percebo nela uma alegria esplêndida, tremenda vontade de viver, enxergando a vida como um arco íris, flores, pássaros, árvores, o sol, as estrelas, tudo para ela é lindo. Tento me ver nas situações em que ela se punha com tanto vigor e não me lembro de viver tão intensamente como ela em momento algum da minha existência. Será que não sei viver? Será que em meu mundo literário me escondi sem perceber o que estava realmente a minha volta? Será que eu deveria me soltar mais ao me relacionar com pessoas e até comigo mesmo? Já que ao ver como Charlotte vive tanto sozinha quanto
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acompanhada em suas aventuras coloridas a cada dia, ela enxerga o belo nas mínimas coisas apresentadas pela natureza, pela vida. Noto que até em meus livros, tudo para mim sempre foi em preto e branco. Mas desde então, conforme vou conhecendo mais Charlotte, mesmo sem querer me envolver, sinto-me contagiado por sua magia na arte de ver as coisas. Isto não é meu diário, não escrevo diários, escrevo histórias, isto é apenas a minha insônia e meu tédio arrumando algo para me distrair, algo que faça o tempo passar bem depressa. Aqui não dá para sentir o tempo, é como se todo dia fosse o mesmo dia e toda noite fosse a mesma noite, aqui é como o inverno, frio e apagado, mas Charlotte olha para tudo com olhos de criança, como se estivesse descobrindo e vendo tudo pela primeira vez. HT
Heitor só conseguiu ir dormir após as quatro horas da
manhã, mesmo cansado, não conseguira dormir mais de três
horas. Acordou com uma agonizante dor de cabeça, seu corpo
parecia chumbo de tão pesado. Pôs seus chinelos felpudos, e
ainda de pijama coberto por um robe, saiu do quarto com
olheiras assustadoras, desceu a escada, e já no primeiro andar
cruzou com Charlotte que estava admirando a paisagem pela
parede de vidro.
Charlotte focalizando a presença abatida e cansada de Heitor;
- Bom dia!
Heitor nada lhe respondeu, passou lento e mudo com
uma das mãos segurando a cabeça como se esta fosse cair no
chão.
Heitor em voz baixa;
- Aaii!! Que dor de cabeça.
Foi para a cozinha preparar mais uma caneca de café
como gostava. Charlotte não mais tão intimidada pela a
arrogante falta de educação do homem pôs-se em um canto da
cozinha, enquanto ele vencido pelo mal estar esforçava-se para
preparar um café, Charlotte tentou mais uma vez iniciar uma
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conversa.
Charlotte segurando o queixo com as mãos, deixando os
cotovelos apoiados sobre o balcão de mármore que separava a
copa da cozinha;
- Obrigada, mas já tomei meu café. (Deu uma pausa para ver se
Heitor reagiria a sua provocação, vendo que não obtivera
nenhuma reação continuou): Vejo que não passou bem esta
noite, está com uma aparência horrível, parece mais um morto
vivo. Cruzes! Mas vamos falar de coisas boas. Hoje o dia está
tão bonito, o sol amanhecera tão reluzente e convidativo a um
passeio. (Heitor tomava sua caneca de café quente bem quente
de pé em frente à Charlotte). Tome um banho, devias sair e
respirar ar puro, iria te fazer muito bem.
Neste exato momento corvos ecoaram seus gritos
estridentes e asas de pássaros bateram violentamente ao lado da
janela da cozinha.
Heitor levando um susto esbravejou;
- Ah! Odeio barulhos logo ao amanhecer, isto me deixa
perturbado o resto do dia! Preciso de calma, silêncio para minha
mente que acabara de sair de uma quietude profunda!
O homem antipático retirou-se logo após o término da
sua frase, não deixando assim Charlotte lhe puxar as orelhas, já
que ela só tentara ajudar vendo seu estado de calamidade pela
falta de descanso.
Charlotte profundamente ofendida disse em tom baixo para si
mesma, desejando poder dizer a Heitor;
- Duvido que a mente dele estivesse em profunda quietude.
Mais parecia ter passado a noite com mil turbilhões de vozes lhe
soando coisas desagradáveis ao ouvido, assim não o deixando
dormir. Não é à toa que está de mau humor.
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Heitor subiu a escada, pesadamente seus pés batiam na
madeira fazendo barulho. Ao chegar ao seu quarto sentiu-se
mais calmo ao olhar para a janela e ver um passarinho amarelo
fosforescente, ali pousado arrumando suas pequeninas asas com
o minúsculo bico, ele aproximou-se vagarosamente com todo
cuidado para não espantar o admirável e pequeno ser que por
algum motivo o chamou atenção despertando nele algo
diferente, inovador, e afastara aquela estranha raiva e
impaciência que sentira durante o café. Chegou bem perto do
passarinho, este que estava de costas, virou-se de frente para o
rosto de Heitor que o admirava sem saber o porquê. O pássaro
por sua vez muito corajoso, ali permaneceu a encarar o estranho
senhor, sua cabecinha e seus olhos de um azul marinho intenso
mexiam-se de um lado para o outro freneticamente. Então parou
fitando os olhos do curioso, parecia hipnotizado, quando o
homem tentou tocá-lo, ele voou.
Heitor sentiu vontade de lavar o rosto, mas então
resolveu tomar um banho. Após fazer a barba e pentear os
cabelos, o vaidoso senhor se perfumou e se arrumou.
Charlotte conversava com seu pai na sala.
Charlotte abraçada ao pai que acariciava seus cabelos;
- Mas papai, ele não deseja fazer amizade comigo. Venho
tentando evitar chatear-me com seus maus modos, até permiti
que lesse meu diário sem mais reclamações. No entanto me trata
assim como viste.
Lenard
- Charlotte minha querida filha. Heitor é um pobre homem que
viera se hospedar aqui em nossa casa por um tempo para
encontrar paz de espírito, assim nos ajudando também. Devemos
ter paciência com ele, e para ter uma boa convivência, tentar
ajudá-lo como podemos. Continuas conversando com ele, tenho
certeza que já já perceberá que és uma menina cheia de boas
intenções e que apenas quer ajudá-lo.
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Charlotte
- Mas parece que ele não me escuta papai. Vive a me ignorar,
nem sei por quê eu ainda insisto em nossa forçosa amizade,
vendo que minha presença não o agrada.
Lenard
- Tenho certeza que te escutas. Minha amada filha, não me
lembro de te ver desistir de alguma coisa, principalmente de
conquistar uma amizade. Tome isto como teu mais novo desafio.
Heitor nada tem contra ti, apenas é um homem sozinho que
ainda não descobriu o sabor que a vida nos proporciona de
várias maneiras. Sendo assim, tu deverás trazê-lo para o mundo
que vives, pois ele não enxerga as mesmas cores que você, os
cantos dos pássaros para ele não passam de gritos desafinados, o
sabor da comida saudável que lhe preservaria o corpo é amargo
e sem gosto. Mostre a ele o quão teu mundo é maravilhoso e
cheio de aventuras, mesmo vivendo somente aqui, na mansão do
penhasco.
Charlotte
- Mas como papai, se ele insiste em não me ouvir?
Lenard levantou-se de sua poltrona junto a Charlotte;
- Como não? Observe.
Eles ficaram parados no mesmo lugar enquanto Heitor
descia a escada, arrumado e perfumadíssimo parecia empolgado
e já não se via todo aquele cansaço estampado em sua jovem
face. O galante rapaz caminhou até as portas da saída, Charlotte
o olhava surpreendida com a diferença daquele moço para o que
a pouco havia tomado café esbravejando na cozinha. Ela
pensava: É outra pessoa que estou vendo. Só pode ser!
Heitor abriu uma das portas e virando-se para a sala
olhando para todo o ambiente pareceu dar um leve sorriso, e
então fechou a porta.
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Lenard virando-se para Charlotte;
- Eu não te disse? Heitor seguiu o teu conselho apesar de se
mostrar rebelde no momento. Vamos dar um tempo para ele
minha filha. Não somos só nós que temos um novo inquilino
tirando nossa privacidade, ele também ainda não conseguira se
adaptar ao nosso convívio. Não desista dele, é um bom moço,
apenas está passando por um momento ruim.
Charlotte
- Está bem papai. Também sinto que ele não é uma pessoa má,
apenas ainda não nos entendemos. Ele ainda não aprendeu a se
comunicar comigo.
Lenard
- Já que tocou neste assunto Charlotte, tu também ainda não
aprenderas a se comunicar com Heitor.
Charlotte
- Mas como, se tudo faço para conseguir arrancar-lhe uma sílaba
se quer?
Lenard
- Não tens que tentar arrancar nada dele minha querida. Como já
fez algumas vezes sem perceber, deixa que ele sinta vontade de
te ter ao lado dele, assim ele te aceitará mais facilmente.
Charlotte
- Ficarei a sua mercê então?
Lenard
- Por que não? Nestes assuntos estás mais preparada do que ele.
Com paciência conseguirá conquistar-lhe a amizade.
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Charlotte abraçando o pai;
- Está bem papai, agora te deixarei voltar aos teus assuntos de
negócios. Obrigada pela tua compreensão! Como sempre me
trazendo boas palavras em momentos difíceis.
Lenard
- Pois realmente devo voltar aos meus negócios. Agora devo te
falar uma coisa e quero que me escute com atenção.
Charlotte mostrou-se ansiosa;
- Sim papai, ouvirei com toda a minha atenção.
Lenard
- Justamente por causa de nossos negócios devo viajar.
Charlotte espanta-se;
- Viajar? Mas agora, justamente agora que me encontro nesta
situação? Para onde vais?
Lenard
- Vou para um lugar onde tu ainda não conheces. Enfim... É
muito complexo agora minha querida Charlotte. Talvez quando
eu voltar irei poder te explicar tudo que se passa, mas agora de
antemão nada poderei te dizer. Deixe-me resolver primeiro.
Charlotte
- Mas eu quero ajudar-te papai. Deixe-me ir contigo, não sei se
Heitor é tão confiável assim.
Lenard sorriu vagamente;
- Não precisas te preocupar com Heitor, ele é um homem bom
apesar do seu estado de espírito. Enquanto em me ajudar, estará
nos ajudando ficando aqui e mostrando teu maravilhoso mundo
para ele que está perdido no preto e branco de seus papéis.
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Charlotte
- E quando partirás?
Lenard
- Hoje mesmo devo ir. A viajem é longa, os problemas são
complexos, não quero perder tempo, mesmo sabendo que este
devo respeitar.
Charlotte emocionada abraça fortemente o pai;
- Sentirei muito a sua falta papai. Já estou com saudades!
Lenard também emocionado;
- Também sentirei sua falta meu amor. Não te esqueças das
minhas palavras, e lembre-se sempre de ter paciência e
compaixão com Heitor. O tempo passará rápido. Se precisares
de mim, faça como te ensinei quando era criança. Lembra-te?
Quando ficavas com medo do escuro ou de algum monstro
imaginário, fechavas os olhos, esvaziava a mente e pensavas em
mim em um jardim deserto de temores, então eu ouvia-te me
chamar.
Charlotte
- Sim papai, o senhor jamais me deixou sozinha.
Lenard
- Então agora vou me preparar para ir.
Charlotte
- Está bem.
Lenard segurando o belo rosto da filha;
- Eu te amo filha.
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Charlotte deixando suas lágrimas brotarem do profundo escuro
de seus olhos e derramarem-se frias sobre suas bochechas
rosadas;
- Também te amo papai.
Depois de Lenard se preparar, seguiu para os grandes
portões de ferro da entrada da mansão. A jovem menina, vendo o
querido pai partir sentia que algo grandioso a esperava. Mas o
quê? O que de tão importante esperava por Charlotte? Ela
entrara na mansão deixando todo aquele sentimento de tristeza
lá fora, feliz e contente continuou seu dia.
Heitor chegou na hora do almoço. Ele tinha ido à cidade
fazer umas compras, remédio para cupins, pois reparara que
havia alguns no porão, algumas carnes, bebidas, guloseimas,
apesar de já ter tudo isso em casa, tirando o remédio para cupins,
ele sentira extrema necessidade de sair àquela hora. Na volta
para casa sentiu que o ar lhe fizera muito bem. Ainda não se
sentindo muito disposto, preparou seu almoço, que como de
costume não era nada saudável, fez uma quantidade um pouco
excessiva. Charlotte se lembrando do conselho do pai esperou o
moço sair da cozinha para ela poder almoçar. Olhou para as
panelas engorduradas, com aquelas carnes e massas, uma garrafa
de vodka pela metade e uma jarra de suco de limão quase que
pelo fim.
Charlotte enojada;
- Eu não vou comer isso. Terei que eu mesma preparar meu
almoço.
Passado aquele dia repleto de emoções, Heitor assistiu ao
lindo pôr do sol da varanda da casa, e Charlotte em seu quarto
no sótão apreciava a mesma visão deslumbrante daquele sol
alaranjado, que parecia fazer barulho ao esconder-se por trás de
todo aquele imenso oceano azul que se fazia confundir com o
céu. Charlotte deitou-se em sua cama e sentiu um leve sono
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aproximar-se dela.
A mansão era fria, por isso Heitor deixava
frequentemente a lareira do seu quarto e a da sala queimando
lenha, e quando os velozes ventos vindos lá do horizonte do mar
insistiam em balançar as leves cortinas brancas de seu quarto,
fazendo-as parecerem graciosas e dançantes peças vivas, tudo
ficava ainda mais frio.
No dia seguinte, o senhor insônia que também não
dormira bem noite passada, lia distraidamente folhas de um
novo livro que estava escrevendo quando uma borboleta
multicolorida pousou justamente onde ele estava lendo.
Heitor olhando para a borboleta diz;
- Como você veio parar aqui?
Heitor sacudiu a folha afim de que a borboleta saísse
voando, mas ela voou e voou ao redor de sua cabeça e parou
com suas asas ainda batendo levemente no mesmo lugar, ele
novamente agora um pouco mais brusco sacudiu a folha, a
borboleta voou, voou, e mais uma vez com as asas para cima e
para baixo pairando seu voo pousou sobre a folha amarelada.
Heitor sacudindo a folha mais uma vez e tentando espantar a
borboleta com a mão;
- Não vê que estou querendo ler o livro? Saia daqui! Saia!
Ele não conseguia afastar a criatura, pois ela voava e
voava ao seu redor e graciosamente pousava sobre a folha.
Heitor muito irritado, brutalmente bateu com a folha na mesa
esmagando a borboleta. Charlotte que apreciava a cena de longe
logo surgiu ao seu lado para repreendê-lo.
Charlotte empalideceu-se;
- Heitor! Como pôde fazer tal coisa?! Acabas de cometer um
crime que para sempre manchará sua consciência!
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Heitor levantou a folha e olhou para o frágil animal que já não
batia mais suas asas coloridas;
- Bom, era apenas uma borboleta.
Heitor ignora a falecida borboletinha dando continuidade
ao seu trabalho.
Charlotte com seus negros olhos fixos em Heitor que não
encarava a moça pronunciou com sua voz doce e compreensiva
após levar o susto.
- Não Heitor, não era só uma borboleta. Era um ser, que
respirava e tinha uma vida assim como tens a tua. Gostarias que
algum ser maior que ti, que se considerasse supremo e superior
por este motivo, viesse simplesmente e esmagasse tirando-te
tudo que tens? Ainda mais uma pobre borboletinha. Se pararmos
para pensar em tudo que ela passa para conseguir seu objetivo
de vida que é voar e colorir o espaço que nos rodeia. A borboleta
nasce lagarta, rasteja pelo chão e é assim que de início conhece
o mundo, ela vive desta forma até sentir que seu momento
chegou, e então para que haja a transformação ela isola-se em
seu pequeno casulo, alheia ao mundo, voltada para si mesma
sofre mutações físicas para que possa enfrentar a nova fase da
vida. Após todo esse processo ela ainda precisa lutar para sair do
casulo. Suas asas, novas para si, continuam enrugadas
impossibilitando seu voo, só após uma longa espera consegue
batê-las e voar. Vendo o mundo sobre uma nova perspectiva,
agora de cima enxerga o chão onde outrora viveu, adapta-se a
sua nova maneira de viver, aprendendo a lidar de forma
apropriada entre a terra e o céu.
Heitor volta a olhar para a pequena criatura, até que
pegou em suas asas e a pousou sobre uma de suas mãos,
caminhou até a porta de entrada da mansão e dirigiu-se até o
jardim, Charlotte o seguia. Entre um dos arbustos floridos sobre
a terra fresca ele cuidadosamente pôs a borboleta e a cobriu com
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um pouco de terra.
Charlotte
- Se esta for uma forma de mostrar arrependimento creio que
serás perdoado, pois qualquer que seja teu crime sobre as leis
divinas, a partir do momento que teu coração arrepende-se do
que fez, estará perdoado. Isto não significa que não terás que
sofrer uma lição para que possas entender melhor como
funciona o processo de “faças o bem e receberás o bem”.
Heitor voltou para a sala, entediado e insatisfeito com as
folhas que lia e que ele mesmo havia escrito. Isso era o que ele
achava que o estava incomodando tanto. Sentia uma dor aguda
no peito, bem no centro que não o deixava em paz, mesmo
sentindo a dor que mais parecia imaginária ele não conseguia
descobrir como e porque estava sentindo aquilo. Era tão
estranho, sua garganta havia fechado e suas mãos estavam
suando. Charlotte estava bem ali ao seu lado, ela não ficou feliz
com o que aconteceu à borboleta, seu símbolo mágico da alma
que tinha um significado de vida, e esse significado era algo
bem maior que ser uma simples borboleta como seu amigo
ranzinza havia dito. Ela não estava furiosa, mas a perda da
borboleta a deixou abalada por um tempo sem dirigir a palavra a
Heitor apesar de continuar a seu lado. Impossível dizer como me sinto, apenas me sinto assim. Não sei o porque e nem como, é meio tolo tudo isso. Impossível descrever como me sinto agora, parece que mil folhas me cercaram e cobriram o meu corpo escondendo-me do mundo, pelo menos é assim que eu desejo estar agora. Charlotte está me mostrando um mundo novo, mas eu o vejo como que por uma janela, tão perto, mas há um vidro nos separando. Sei que onde estou está frio e escuro, mas inconscientemente tenho medo de quebrar esta barreira entre nós, sinto medo de abrir a janela, estou tão acomodado onde estou. Sua energia me surpreende, onde só vejo monotonia ela descobre graça e beleza. Estranho, quando penso em graça isso me lembra bochecha de bebê rosada. Isso
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também é tolo. HT
Charlotte pronuncia-se ao ver Heitor levantando-se da cadeira;
- Aonde vai?
Ele fora para o sótão, algo ali o deixava em paz, era
familiar apesar dele nunca ter ido profundamente no sentido
dessa palavra. Era familiar como nada havia sido toda a sua
vida, era prazeroso como ouvir a risada de uma criança, era
confuso como se ele abrisse os braços e com a cabeça para cima
girasse e girasse e girasse e parasse e caísse... Simplesmente. Era
familiar e era assustador ser tão íntimo aquele quarto. Com o
diário nas mãos e sentado em um canto do sótão, para ser mais
específico bem ao lado de uma das grandes janelas, Heitor
usufruía aquela sensação leve que lhe tomava o corpo. Charlotte
cruzou a porta serenamente, aproximando-se ela sentou ao seu
lado.
Estou no jardim secreto, é um dos meus lugares preferidos. O espaço em volta da casa é tão grande que sinto que nunca vou conseguir desvendar todos os mistérios que há entorno dela. Foi assim que descobri esse lugar, o que mais me surpreende é que ninguém cuida daqui, mas as flores sempre estão bonitas e o verde sempre está verde. Uma vez caminhando sozinha por entre essas trilhas avistei um paredão de galhos e folhas, até então nada me surpreendera, mas minha curiosidade fez me levar além, senti como se algo me empurrasse para mexer ali, como se alguém dissesse: “Vai lá, mexe, não há o que temer”. Então afastei alguns galhos e folhas criando um túnel ao desbravar um novo caminho em tão nova e empolgante aventura, e lá estava bem diante dos meus olhos. O caminho de início é seguido por uma trilha larga e comprida, com árvores enormes de ambos os lados que curvam seus altos galhos para dentro da estrada fazendo um teto de flores pendurar-se por
Diário de Charlotte,
12 de fevereiro de 1880
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cima da minha cabeça. Uma coisa que acho estranha é que há banquinhos aqui dentro, talvez este lugar já tenha sido muito frequentado, mas agora está tão vazio e silencioso, não que isso seja ruim, mas ele é tão bonito para não ser visitado. Acho que todas as pessoas deveriam conhecer um lugar assim. Após a trilha tem um pequeno lago bem no meio, mas tudo isso é indescritível, simplesmente não existem palavras para descrever o que é este lugar secreto. O caminho até aqui é longo, mas como adoro descobrir coisas não foi tão difícil. Mesmo assim fiz um mapa para ter certeza que não me esqueceria de como chegar. Ele está debaixo do meu baú.
Heitor fechou o diário levantou-se e instintivamente foi
até o baú, pôs o diário encima deste e o empurrou, mas não
havia nada debaixo dele, Charlotte sorriu discretamente, então
ele levantou a pesada e antiga mobília a fim de descobrir se o
mapa havia sido arrastado junto com o baú, mas nada, não tinha
nenhum resquício de papel ali. Heitor sem muita paciência
levantou-se bufando.
Heitor
- Odeio quando não encontro o que quero.
Charlotte ainda sentada permaneceu risonha e descontraída
com a raiva repentina do rapaz;
- Calma! Não precisa ficar assim. Não achas que eu seria tão
boba de apenas por o mapa debaixo do baú? (Charlotte levanta-
se e sem dar muita atenção para o nervosismo de Heitor aprecia
a paisagem da janela). Procure além Heitor, está mais abaixo do
baú do que imaginas.
Heitor ficou parado no mesmo lugar;
- Onde? Onde pode estar esse mapa? (Heitor pega novamente o
diário e lê a última frase. Pensa... Pensa...) Ah! Sim!
39
Ele vai até onde o baú estava e batendo no piso de
madeira descobre uma tábua oca, então finalmente retirando a
madeira ele encontra o esconderijo do mapa de Charlotte.
Heitor envaidece;
- Pensou que eu não seria tão esperto para descobrir não é
Charlotte? Pois aqui está!
Charlotte sorri;
- Meus parabéns! Mostrou-me ser um bom caçador de tesouros.
Este é um primeiro passo entre outros que virão para sua grande
descoberta das riquezas da vida.
Heitor bocejando;
- Nossa! De repente me bateu um cansaço. (Heitor olha para o
diário) Amanhã continuaremos.
Antes que a noite chegasse, o rapaz de olhos cansados e
temperamento complicado deitou no luxuoso sofá de veludo
vinho da sala de ambiente conservador, ele estava no último
grau de sonolência que se pode chegar, seu sono estava tão
pesado que nem mesmo uma explosão o acordaria. Heitor
sonhava, ou melhor... Desesperava-se em seus pesadelos. Era tão
assustador ver rostos que não existiam, rostos sombreados que
não se identificavam. Os gritos o apavoravam, ele chegava a
reconhecer alguns de seus parentes que há muitos anos não via e
nem sequer sabia do paradeiro. Parentes que em seus pesadelos
reproduziam-se maus, o xingavam, o odiavam, mas Heitor ao
acordar podia lembrar perfeitamente de seus dias de convivência
com esses tais parentes que agora o maltratavam, eram
pacíficos, tentavam cativar-lhe quando criança. Eram apenas
pesadelos pensava o infeliz recluso moço.
Poucas horas depois ele acordou sentindo-se pesado e
faminto.
40
Heitor
- Talvez eu esteja me sentindo assim por causa da fome. Afinal
são apenas pesadelos.
As horas se passaram, e em meio à madrugada Heitor
andava pela casa, era tão perturbador todo aquele silêncio, o
escuro lhe era confortador, era onde ele podia se esconder. Mas
se esconder de quê? Dos seus medos, das suas lembranças, de si
mesmo. Ao mesmo tempo tudo lhe era assombroso, seus medos,
suas lembranças, seus pensamentos tornavam todas as coisas,
tudo que o rodeava parecia estar vivo conspirando contra ele. E
Heitor perdia-se dentro de si, dentro da sua dor, que mesmo ele
não sabia existir por ignorá-la.
No dia seguinte, ele acordou. Apenas três horas de sono
não o deixara tão bem, mesmo assim estava ansioso em
conhecer o tal jardim secreto de Charlotte. Depois de tomar sua
grande caneca de café, aprontou-se para uma caminhada.
Charlotte descendo a escada;
- Não preciso nem perguntar aonde vamos, não é mesmo?
Heitor
- Não estou me sentindo muito bem para dar uma caminhada
hoje, mas...
Charlotte
- Ah não Heitor! Não me diga que vai desistir?
Heitor
- Estas noites de insônia me deixam muito cansado. Mas deve
valer a pena essa caminhada até esse lugar.
Charlotte
- É claro que sim! Tenho certeza que vai adorar.
41
Heitor
- É minha curiosidade de escritor que me mata. Só por isso estou
indo.
Charlotte
- Tá, tá, tá bom. Use a desculpa que quiser, o importante é ir.
Heitor pegou o diário e o mapa, então os dois saíram
jardim afora. Como Charlotte havia dito, o caminho era longo e
com alguns desafios. Eles subiam e desciam pequenos morros,
atravessavam riachos, passavam por grutas, campos abertos e
ainda pegaram uma trilha dentro da floresta onde subiram e
subiram e subiram...
Heitor ofegante;
- Não sei como conseguiu fazer todo esse trajeto.
Charlotte
- Você está fora de forma Heitor, deveria se exercitar mais.
Heitor
- Não gosto de caminhadas. (Heitor pára debaixo de uma
árvore). Estou cansado.
Charlotte
- Não diga isso! Você não está cansado, ainda é tão jovem. Já
chegamos até aqui, agora temos que ir até o fim. (Charlotte toca
no braço de Heitor) Vamos!
Heitor olhou para o braço percebendo o toque, era
quente, reanimador, ele pensou. Não tão acostumado a ser
tocado e com a energia renovada com o apoio de Charlotte, ele
continuou bravamente sua caminhada com a moça ao seu lado
sem dizerem mais nenhuma palavra. Ao chegar ao paredão,
avistaram aquelas folhagens e arbustos.
42
Heitor parado em frente ao paredão;
- Não posso tocar aí, estou sem minhas luvas para jardinagem.
Charlotte
- Ah Heitor! Não seja bobo. Já reparei que usa luvas para tocar
nas plantas, botas para caminhar na terra. Precisa sentir essas
coisas, sinta a energia que elas transmitem.
Heitor andou de um lado para o outro nervoso com a situação;
- Como vou fazer isso? Minha tia me dizia que tudo é sujo.
Tenho que ter cuidado para não me infectar com alguma doença
maligna.
Charlotte solta uma gargalhada e diz;
- Não! Essas coisas não vão ferir você, no máximo te causarão
alguns arranhões, mas nada que não se cure por conta própria.
(Heitor ainda ficou um tempo parado olhando para o paredão)
Vai lá, mexa! Não há o que temer.
Então ainda com alguns receios, ele pôs-se a afastar os
galhos e cruzou a grossa camada de arbustos. Era tão sublime e
mágico, inacreditável que fosse tão belo e harmonioso. Heitor
parou no começo da longa estrada de terra e olhou para o céu de
flores amarelas, ele não podia acreditar no que estava sentindo,
era prazeroso desfrutar daquela paisagem. Seguiu ao lado de
Charlotte com passos curiosos e cautelosos.
Charlotte descontraída;
- Ainda está bonito como da última vez que vim. Faz tanto
tempo que nem me lembro mais.
Heitor
- É... Isto é recompensador.
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Eles caminharam para dentro da trilha, os olhos foscos
de Heitor estavam atentos, era impressionante como aquelas
árvores eram gigantescas, e seus troncos eram tão grossos que
dava para abrir um túnel e fazer um carro passar por ali. Nossa!
Era agradavelmente gelado o clima. Ele passou pelo pequeno
lago, avistou os banquinhos que tinham sido tomados por
trepadeiras, mas ainda dava para identificá-los, e mais a frente
atravessando uma pequena ponte, o começo de uma cascata. Os
pretensos amigos seguiram o curso da queda d’água que
deslizava por rochas em uma série de declives acidentados e que
em alguns trechos formavam-se pequenas piscinas com águas
límpidas. Heitor sentou em uma pedra ao lado de uma das
piscinas a fim de descansar.
Charlotte ficou por alguns segundos parada na frente de Heitor,
mas logo declarou:
- Está bem, vou te dar uma folga. (Ela se senta em uma pedra
próxima).
Heitor com o diário e o mapa na mão respirou fundo;
- Estou cansado, definitivamente.
Charlotte
- Mas aqui não é incrível? Todo esse verde, o barulho da água
em movimento, sempre em movimento, os pássaros cantando, o
vento batendo nas folhas, o cheiro de terra molhada.
Heitor
- Sinto como se algo estivesse invadindo-me. Não é a primeira
vez que sinto isso, mas é a primeira vez que me sinto bem e a
vontade para deixar acontecer.
Charlotte
- É normal se sentir assim quando se está em um lugar tão puro
como esse. Um lugar onde toda a energia que circunda está em
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harmonia, vibrando na mesma sintonia. Sem falar que tudo aqui
respira vida.
Heitor levantando-se;
- É melhor voltar. Já está ficando tarde para percorrer todo
aquele caminho de volta.
Charlotte também se levanta;
- Está bem.
Eles chegaram a casa depois do horário de almoço, e
como Heitor estava muito cansado, ele apenas lanchara no final
da tarde após acordar de um leve cochilo que teve. As coisas
estavam mais calmas, não na casa, nem ao seu redor, mas sim
dentro de Heitor. Depois de muito tempo ele conseguira sentir-
se em paz por um breve momento enquanto dormia aquela leve
e tranquila noite, ausente de pesadelos e rostos não amigáveis,
sua mente estava quieta como a mansão e tudo ao seu redor.
Nada podia ser mais maravilhoso do que aquele
amanhecer. Depois de muito se espreguiçar na cama, Heitor
olhou para o relógio e ficou surpreso quando percebera que
dormira toda a noite e seus pesadelos não o cansaram, nem
sequer passaram por lá. Ele levantou da cama e pôs seus
chinelos felpudos, esfregando os olhos foi para o banheiro e
lavou o rosto, a sonolência e o mal estar não existiam mais, o
jovem nunca se sentira com tanta energia e vontade de fazer
alguma coisa. Então ao aproximar-se da janela de seu quarto e
afastar a escura e pesada cortina que não deixava a luz entrar,
Heitor percebeu que ainda estava escuro e com muitas estrelas,
ele voltou a olhar para o relógio que indicava às cinco horas da
manhã, retornou a olhar para fora da janela e tudo continuava
escuro.
Heitor
- Este lugar é louco.
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Com a energia que estava sentindo, destrancou a porta do
seu quarto e desceu os degraus correndo não se importando com
o barulho que estava fazendo. Ao chegar no primeiro andar
ainda em passos apressados foi abrir a porta, ele saiu na varanda,
e parou. Estava congelado, como se uma arma muito poderosa o
tivesse atingido e feito ficar imóvel. Não tinha vento, mas o ar
estava muito frio e o sereno havia feito tudo ali fora ficar com
gotículas de água, Heitor não podia senti-las, pois seus pés
estavam aquecidos dentro dos chinelos felpudos. Charlotte
também correu de dentro da sala e parou ficando ao lado dele.
Charlotte olhando para Heitor;
- O que foi Heitor? Pude ouvir seus passos descendo a escada, o
que está acontecendo?
Heitor
- É tão bonito! Não! Bonito não seria a palavra perfeita para isto.
Preciso encontrar algo que se encaixe, que descreva apenas em
uma palavra como é sentir isso. Hummm... Mágico! Não, não
pode ser mágico, é tão real para uma palavra que indica
irrealismo e fantasia. Preciso de uma palavra com um
significado extraordinário.
Charlotte olhou para onde Heitor estava olhando e disse
também admirando não só a imagem, mas a palavra que estava
dizendo;
- Céu. É simplesmente... O céu.
Heitor extasiado degustou a palavra;
- O cééééuuuu. Como eu nunca reparei esse fenômeno antes?
Charlotte
- Seus olhos estavam fechados Heitor, como os gatos levam dias
após seu nascimento para enxergar. É o que está acontecendo
com você, depois de todos esses anos você se permitiu ver o
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mundo como ele realmente é.
Bem na ponta do horizonte de toda aquela mata ainda
coberta pela sombra da noite que se despedia, um ponto
vermelho nascia clareando em degradê alaranjado e depois do
último tom já rosado, o cinza para o azul claro se mesclava
deixando aquelas poucas e separadas nuvens escuras como se
tivesse muita água para cair esfumaçando o quadro. De azul
claro também em degradê para azul escuro e por fim o perolado
azul marinho ainda deixava as estrelas que ali moravam
brilharem. Heitor e Charlotte ficaram ali sentados nos degraus
da varanda até o sol iluminar toda aquela parte da terra.
Tudo estava indo bem naquela manhã, era como Heitor
queria que fosse todos os dias. Sentado no sofá da sala do
primeiro andar, ele bebia o café que estava queimando sua
garganta, e antes de abrir o diário da menina Charlotte que
estava em sua mão, olhou para a capa dizendo:
Heitor
- Vamos continuar a nossa aventura Charlotte? (Charlotte
sentou-se na outra ponta do sofá e sorriu como de costume
aprovando a atitude).
Papai e eu quase sempre procuramos tomar café da manhã juntos,
às vezes ele inova, tomamos café na varanda olhando o mar, ou na varanda de frente para o jardim, olhando o indecente chafariz da mamãe, que ele repete toda vez que olhamos para o bendito que ela o adorava. Quando acordamos muito cedo preparamos um piquenique no jardim, e lá vamos nós cheios de tralhas penduradas pelos braços só para tomar café no jardim. Mas eu adoro todas às vezes que fazemos isso. Papai é mestre em mudar a minha rotina, apesar de me dar liberdade ele sempre está
Diário de Charlotte,
26 de Fevereiro de 1880
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procurando coisas para fazer comigo em seus momentos de folga. De tanto tentar quebrar a rotina isso acaba que se torna uma rotina, então para variar, de vez em quando tomamos café na cozinha. Só de vez em quando. Hoje pela manhã, tomamos o nosso café, “na cozinha”, e papai como sempre leu as notícias do jornal, não que eu me importe muito com elas, mas ele faz questão de contá-las para mim, educadamente apenas as ouço, às vezes conversamos sobre um assunto ou outro. Eu por minha vez, lhe contei a parte do livro em que estava lendo, ele fica entusiasmado com as histórias, ou pelo menos se mostra educado como eu ao ouvi-lo narrar o jornal. O importante é que conseguimos conversar respeitando nossos momentos de falar. Após todo esse ritual, abri a porta da sala e fui para o jardim para alimentar a minha pele com um pouco de sol, estava radiante, seus raios solares faziam as verdes folhas molhadas com o sereno brilharem como se estivessem cristalizadas, as gaivotas estão sempre por aqui rodeando a casa, em alguns momentos elas chegam bem perto de mim. Papai diz que os animais sentem a nossa energia, e que eles sempre sabem se podem confiar em nós ou não. O dia estava tão bonito que fui chamar o papai para dar um passeio.
Charlotte entra de novo na casa com mais empolgação;
- Papai!
Lenard
- Sim Charlotte.
Charlotte
- Não quer ir dar um passeio comigo? O dia está tão bonito, o
sol está quente...
Lenard tirando os grandes óculos que estava usando para ler um
pequeno livro;
- Sim é claro! Podemos ir até a praia e dar um mergulho.
Charlotte
- E limpar a alma com a água salgada do mar.
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Lenard
- Está bem, vá se trocar e me encontre aqui.
Trocamo-nos e seguimos a trilha que nos leva até a praia. É
interessante todo esse caminho, digo todo não porque seja longo, apesar de eu o tornar longo, digo isso porque quando meus primos vêm pra cá dizem que me perco observando as coisas, eles simplesmente correm para o objetivo, eu degusto toda a paisagem e ar fresco, lentamente faço o caminho até a água azul turquesa do mar. Mas como eu dizia, para chegarmos à praia apenas temos que descer uma estreita e íngreme estradinha de terra que fica logo aqui ao lado da casa, e então chegamos ao nosso paraíso reservado. Posso até sentir a areia fofa massageando meus dedos dos pés. Quando estou ali não quero saber, largo minhas coisas no chão e deixo a luz do dia me levar como sobre um encantamento, papai e eu nos divertimos, brincamos, conversamos, afinal, isso é tudo que importa, estamos bem. É incrível como sinto que isso tudo faz parte de mim, que estou no lugar certo, fazendo a coisa certa, não sinto vontade de sair deste mundo. Estou aqui, apenas estou, eu e meu querido pai, ele me ensina tudo que preciso saber. É como sinto que deve ser.
Heitor fechou o diário, ele estava pensativo.
Heitor
- Você e seu pai se relacionavam bem. É uma pena eu não poder
dizer o mesmo de mim e do meu pai. (Heitor ressalta o nome do
pai com uma voz mais altiva). O doutor Alberto.
Charlotte
- Por que não Heitor?
Heitor sentindo a necessidade acumulada em desabafar e se
expressar de alguma forma, cede em palavras os seus
sentimentos mais profundos daquela época olhando para o diário
de Charlotte como se pela primeira vez estivesse confiando os
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seus mais guardados pesares dos quais nunca conseguira se
libertar;
- Primeiro que eu mal passei minha infância com eles, vivi um
pouco mais com minha mãe. Papai estava sempre ocupado com
seus negócios, havia sempre um problema a ser resolvido, as
poucas horas que ficávamos juntos ele falava de seus problemas,
tudo era um problema gravíssimo. Dizia que se não fosse por ele
eu e mamãe morreríamos de fome. Por outro lado minha mãe,
mulher jovem, bonita e desocupada. Lembro que me contava
que antes de se casar era uma moça feliz, muito feliz, que tinha
planos para o futuro, ela queria ser escritora, quando ainda
menina escrevera muitos poemas e histórias... Talvez isso a teria
feito feliz. Mas ela sempre fora frágil como um copo de cristal, e
sua fraqueza a levou para o fundo, deixando seus sonhos para
trás para ficar ao lado de um homem completamente diferente
dela, que nunca estava ao seu lado e que jamais admitiria que
sua esposa trabalhasse com uma coisa tão insignificante,
dizendo que os vizinhos iriam pensar que ele estava falido.
Sempre se importava ao extremo com o que as pessoas falavam
sobre ele, foi daí que o álcool virou o melhor amigo da minha
bela mãe Beatrit. Ahhh... Minha mãe Beatrit! Papai se afundava
nas pilhas de papéis cada vez mais ignorando todo o drama.
Então, uma tarde, recebi a notícia de que eles tinham morrido.
(Heitor dá uma pausa).
Charlotte ainda com sua leve afeição e comoção estampada
naqueles olhos negros;
- Estou ouvindo Heitor.
Em sua mente, Heitor conseguia lembrar-se do velho
cheiro do charuto do pai e da voz aveludada da mãe, que quando
sorria ficava ainda mais aconchegante aos seus ouvidos. Era
como uma reprise que o homem recluso e insensível fazia aos
seus velhos tempos de menino sozinho e inseguro, que ouvia os
gritos estridentes do pai volta e meia estremecendo as paredes da
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casa. A mãe dócil e compreensiva de mãos pequeninas e macias,
as mesmas mãos que afagavam o rosto delicado do menino
franzino à noite ao adormecer.
Beatrit no quarto de Heitor ao lado de sua cama pondo-o para
dormir sussurrou:
- Heitor.
Heitor também sussurrando:
- Sim mamãe.
Beatrit
- Prometa-me que será um menino forte quando eu não estiver
mais com você.
Heitor
- Você sempre vai estar comigo mamãe.
Beatrit
- Eu sei querido, apenas quero me certificar de que ficarás bem e
não sentirás medo de sentir medo.
Heitor
- Como assim mamãe?
Beatrit acariciava o filho enquanto falava, e as poucas velas que
iluminavam o quarto, queimavam lentamente deixando suas
lágrimas de cera quente rolarem pelo seu corpo chegando até a
base do candelabro, onde juntavam-se a dura crosta de lamentos;
- O medo meu querido Heitor, pode ser usado para nos
fortalecer, nada mais é que uma preocupação que sentimos de
perder alguma coisa, de uma simples ideia dar errado ou de
ficarmos sozinhos. Se sentir medo, vá em frente, preocupe-se o
quanto for preciso, mas nunca deixe de fazer o que acha que é o
certo. E lembre-se sempre, que nós nunca, jamais, ficamos
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sozinhos.
Heitor
- Eu nunca sentirei medo mamãe. Eu sou forte.
Beatrit
- Está bem meu amor, eu acredito em você.
Alberto impaciente já gritava do grande corredor da casa o
nome de sua mulher;
- Beatrit! Onde você está?! Mas que diabos essa mulher
desaparecer! Mudaremo-nos para uma casa menor, talvez assim
eu te ache! Beatrit!
Beatrit dá um beijo na testa de Heitor;
- Nos vemos amanhã meu amor. Talvez possamos passear à
tarde quando eu e seu pai tivermos voltado da casa do
governador.
Heitor
- Eu adoraria mamãe.
Alberto agressivamente abre aporta do quarto de Heitor;
- Ah! Finalmente! Você estava aqui com esse garoto! Cumpre
com seu papel de mãe, mas não com seu papel de mulher.
Vamos logo antes que eu necessite tomar uma de suas
empregadas.
Beatrit se despede de Heitor;
- Boa noite querido, durma com os anjos.
Heitor
- Boa noite mamãe. Amo você.
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Beatrit
- Eu também te amo querido.
Charlotte despertou Heitor com sua clareza e calma que
expressava ao falar, o que lembrava Beatrit;
- E depois, o que aconteceu?
Heitor
- O dia estava estranho. Quando acordei, eles já haviam saído, a
casa do governador ficava bem longe da nossa, pelo menos foi o
que me pareceu na única vez que papai me deixou ir. Eu tinha
um balanço de corda que ficava em uma das árvores no jardim
da frente da casa, mamãe havia mandado pôr para eu brincar um
pouco fora da casa escura que papai insistia em manter as
cortinas fechadas. Após o almoço fui esperá-los na escadaria da
varanda, lembro que parecia que o mundo havia parado por
alguns momentos, não senti um sopro de vento, muito menos vi
levantar uma sequer folha da primavera, mas o balanço da
mamãe estava balançando, não entendi o porquê, mas senti
como se fosse um convite para me distrair. Meia hora após
chegaram alguns carros da família, até que um dos meus tios me
deu a terrível notícia de que meus pais haviam falecido em um
acidente de trânsito.
Charlotte
- Eu sinto muito Heitor.
Heitor
- Eu tinha apenas doze anos, doze anos e nunca havia sentido
tanta raiva. Não sabia por que estava acontecendo aquilo, pois
eu sempre busquei fazer todas as coisas certas. Mamãe me
obrigava a rezar todas as tardes e noites, e para quê? Sempre
tentei não odiar o papai, no entanto, mesmo tentando ser um
bom menino fui castigado. Nunca perguntei para ninguém como
foi que aconteceu, mas imagino que papai provavelmente deva
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ter ficado mais uma vez irritado com alguma coisa que mamãe
disse, e se descontrolou.
Charlotte
- Não deve pensar nessas coisas Heitor. Independente do que
possa ter acontecido, tens que entender que se aconteceu desta
forma ou de qualquer outra, foi por que tinha que ser assim. O
destino às vezes nos obriga a convivermos com nossos carmas,
só ele sabe o porquê. Mas sempre se lembre de que se conseguir
superá-lo, será uma pessoa melhor. Não acredites que passada
essa prova estarás livre e permanecerás feliz e contente. Uma
vez vencida a prova, já terás outra a te esperar e assim
conseguintemente.
Heitor não conseguia desgrudar os olhos do diário, era
uma atração estranha que ele sentia pelo objeto. Sem dizer mais
nada, foi se desligando de todo o momento emotivo que havia
passado, ele não respirou fundo como se tivesse tirado um
grande peso das suas costas, talvez porque ainda carregava
aquela velha sensação de agonia e solidão, mesmo sem entender
muito bem por quê. Levantou-se lentamente do sofá, talvez
porque seus pensamentos ainda não estivessem totalmente
voltados para o que seu corpo estava querendo fazer, fugir
daquela situação que tocava em sua ferida mais dolorosa. Mas
Heitor já sabia que não adiantava correr dali, não adiantava se
esconder, não adiantava... mudar-se para outra casa, seus
sentimentos de mágoa, raiva e dor o perseguiam, pois ainda
estavam vivos em seu interior, e por mais que ele tentasse
enterrá-los cada vez mais todos os dias que acordava, ele
continuava a sentir todos aqueles sentimentos que em algumas
vezes chegavam a lhe causar dor física. No meio do caminho,
subindo a escada para o segundo andar, seu corpo já não estava
tão pesado para suas pernas não quererem guiá-lo. Charlotte
ficou ali, respeitando a mania do moço de retirar-se dos
ambientes sem ao menos pedir licença.
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Charlotte falando sozinha;
- Se papai estivesse aqui me diria o que fazer. Também estou
sozinha, mas como este é o meu desafio não teria como ser
diferente. Pelo menos agora eu consigo entender algumas coisas.
Aquele dia de sol havia ido embora e o senhor Heitor o
passara em seu solitário quarto. Com as lembranças tudo havia
voltado a ficar cinza, como quando se mergulha num profundo
mar azul escuro, quanto mais se nada para baixo, mais sem cores
as belezas marítimas vão ficando. Charlotte não podia deixar de
sentir a tristeza do belo moço sem juventude, mesmo sem estar
no mesmo ambiente, sua ligação ficava cada vez mais forte, ela
podia quase ler os pensamentos do antes rabugento Heitor.
Costumava passear pela casa pelo simples prazer de estar ali.
Ela conversava sozinha, e por mais que reconhecesse a
estranheza de suas manias, dizer seus pesares, suas
preocupações e seus insignificantes pensamentos em voz alta,
fazia sentir-se acompanhada. A simples menina da mansão do
penhasco era incansável, com sua filosofia de vida era
inatingível, pois tudo se resolvia, podiam dar-lhe o mais
complexo problema da mente humana, Charlotte via com
simplicidade todos os bichos de sete cabeças, mas sabia que
jamais ganharia alguma batalha se não disponibilizasse seu amor
e sua paciência.
No quarto de Heitor, as cortinas dançantes mostravam que
o costumeiro vento da noite já estava presente esfriando
aconchegantemente o ambiente. Charlotte encontrou a porta
entreaberta, com seus pés descalços como de costume foi
pisando lentamente para não chamar muita atenção do distraído
amigo, os dedos compridos empurraram a velha porta de
madeira que fez sair um ranger agudo quase que assustador.
Heitor estava deitado com seus olhos amendoados abertos
que mais pareciam janelas gélidas e blindadas, ninguém entrava,
ninguém saía. Ele virou-se para o outro lado, ainda deitado
permaneceu imóvel com seu rosto que lhe servia bem como um
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escudo naquele momento, mas a menina de vinte anos, com
forte personalidade e perseverança inabalável, nunca se deixara
intimidar tão depressa. Preocupada com a reação do moço, em
passos sutis seguiu para o lado da cama em que este estava
virado, ela podia ouvir a forte respiração de Heitor de como
quem estava inseguro e fadigado, ele por sua vez não movera
um centímetro de seu corpo trêmulo, mas deixou ser levado pelo
que estava sentindo. Charlotte tocou o lençol de seda marrom
escuro, sua mão deslizou até o travesseiro que ficava no lugar
vazio da cama de casal, consequentemente seu corpo foi
escorregando junto, suas pernas se ergueram para cima da cama
quase que em câmera lenta, e então, os dedos dos delicados pés
abriram caminho na coberta que cobria apenas os pés de Heitor.
Ela aproximou-se dele até conseguir sentir sua quente respiração
batendo em seu rosto, o que ainda provava-lhe que dentro
daquele peito sofrido batia um coração carente no aguardo de
alguém que o entendesse. Ali, deitada ao lado daquele pouco
conhecido, a graciosa senhorita o olhava nos olhos, olhos que
nunca a encaravam, olhos que guardavam segredos, olhos que
faziam qualquer um perder-se em mistérios, os próximos, mas
tão longes olhos de Heitor, eram tão doces como balas de
caramelo. A pequena mão de Charlotte ergueu-se calmamente,
sobrepondo-se levemente no rosto de Heitor que a fez sentir um
choque fazendo-a recuar a mão. O quieto moço pareceu sentir o
mesmo mostrando um pequeno espasmo, mas logo retornou a
sua postura imóvel. Perseverante, Charlotte pôs-se a fazer o
mesmo caminho com a mão, desta vez conseguiu com sucesso
tocar a fria pele do rapaz tristonho, que ao sentir o acolhedor
carinho da moça, respirou fundo, fechou os olhos lentamente e
deixou o cansaço o levar para seu mundo interior.
Charlotte com a doce voz em tom baixo não se importou em
conversar com o sonolento Heitor;
- Sabe Heitor, talvez eu entenda a sua dor. Perdi minha mãe no
mesmo dia em que nasci, então não tive tempo para conhecê-la,
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mas de alguma forma sempre a senti presente não deixando
entristecer-me quando pensamentos nebulosos tomavam conta
de mim. Papai e eu conversamos muito sobre ela, de como eram
seus cabelos negros e sua voz de cantora lírica, seu perfume
sempre esteve por toda parte da casa, sei que ela adorava as
flores e o verde. Papai me contou que quando mandou construir
essa casa foi a mando dela, ela escolheu tudo disse ele, cada
pedaço de madeira e cada espécie de planta que há no jardim.
Somos felizes porque não a perdemos, ela está em tudo por aqui,
mas o mais importante, é que ela vive dentro de nós, o nosso
amor não nos deixa esquecê-la, nos recordamos de suas alegrias
e seu jeito feliz de viver. Não perdemos nosso tempo julgando o
destino, pois de nada isto nos servirá. Então meu amigo, hoje
você pode chorar o quanto quiser, revolte-se, pergunte-se o
porquê, pode até não aceitar, mas apenas por hoje meu amigo,
pois a vida é muito mais do que isto. Depois, enfrente seu
egoísmo, pois não podemos ter tudo que queremos, quando
queremos e do jeito que queremos. A natureza não funciona
assim, temos que aprender a deixar as pessoas seguirem em
frente. Vivemos tentando resolver os problemas do mundo e
esquecemos-nos de resolver a nós mesmos, que somos os
geradores das consequências dos nossos atos. Pois então te digo,
ninguém tomará suas dores, isso é contra as leis do universo e
do progresso, tens que assumi-las e resolvê-las, pois só assim se
sentirás completo e feliz. Não desista caro Heitor, siga em
frente, siga em frente.
Heitor dormiu, e enquanto seu dormente sono se alongava,
o triste cavalheiro recuperava-se de suas dolorosas lembranças,
o estágio de relaxamento em que se encontrava era profundo. Ao
acordar, abriu seus abaloados olhos e percebera que já era dia,
diferente de suas frequentes noites de insônia as quais dormia no
máximo três horas, ele havia dormido a noite toda e despertara
só pela manhã. Suas mágoas e dores da alma que lhe havia
pesado o corpo e arrancado-lhe o sossego, estranhamente não
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existiam mais, era como se alguém tivesse sugado durante a
noite toda parte escura de seus pensamentos. Charlotte já não
estava por lá. Ele levantou sentindo-se disposto, foi até uma das
janelas do seu quarto e viu que o mesmo sol do dia anterior
voltara para esquentar-lhe a fria pele branca. Depois de todo seu
ritual matinal, da sua caneca de café quente bem quente, de
espantar os pássaros da janela, e de olhar para as folhas em
branco tentando espremer alguma imaginação e criatividade de
dentro de si, Heitor desistiu da rotina.
Heitor sentado à mesa;
- Por que estou me prendendo a isto? Não, não é o que quero
fazer! Talvez eu devesse...
Com roupas leves, o jovem cavalheiro surgiu em uma das
janelas olhando para o mar que mostrava ondas pequenas e
perfeitas próximas à costa. Heitor sentiu uma enorme vontade de
correr para fora da casa, e foi o que ele fez. Com seus chinelos
felpudos desceu o último degrau da escada da varanda, e quando
tocou a verde e fresca grama, parou.
Charlotte que já passeava pelo jardim encontrou-se com Heitor
estranhando os trajes do rapaz que ela jamais suspeitaria que ele
pudesse vestir algo tão à vontade;
- Aonde vai vestido deste jeito Heitor?
Heitor tirando os chinelos e jogando-os na varanda;
- Com estes chinelos não poderei sentir a areia da praia.
Andando, Heitor fazia pela primeira vez o caminho até a
praia. Charlotte pensou que devia deixá-lo explorar essa
sensação sozinho, permanecendo assim no jardim que tinha vista
para o mar. Heitor estava sentindo a grama massagear seus pés,
e quando tocou a estradinha de terra que tinha que descer para ir
até a praia, sentiu uma estranha sensação, como se fios de
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energia se ligassem aos seus pés e crescessem por dentro do seu
corpo ativando todo seu sistema nervoso, tornando-o mais
sensível até o mais leve vento maral que o envolvia. Aquela
sensação era nova e estimulante, era saboroso aos olhos de
Charlotte ver seu aprendiz tomar decisões que fugiam as suas
próprias regras, arriscando-se a provar de uma nova liberdade,
um passo pequeno que possivelmente desencadearia grandes
reações no recluso cavalheiro. O andar de Heitor foi ficando
cada vez mais rápido à medida que ele via o oceano de um azul
intenso aproximar-se, o barulho das ondas quebrando só o atraía
cada vez mais e mais, como se ele estivesse enfeitiçado por
aquele sentimento sagaz e entusiasta que o fazia querer apenas
correr para as ondas. E então, seus pés tocaram a água, e os fios
que outrora a terra enraizou pelo seu corpo agora estavam
elétricos, provocando reações por todo o seu corpo, estimulando
seus sentidos, trocando energia. Heitor mergulhava e
mergulhava e ria de si mesmo, como se alguém estivesse lhe
fazendo cócegas por todo o corpo, ele furava as ondas, nadava, e
ainda deixava-se levar por aquela massa d’água que rodopiava
seu corpo tirando-lhe o fôlego e deixando-o na areia, exausto,
Heitor ria.
Charlotte lá de cima via toda a brincadeira orgulhosa;
- Ele está aprendendo.
Final de tarde. Agora o rapaz de alma leve e corpo cansado
desfrutava das gotas de chuva que estavam caindo sobre aquele
lugar parado, sentado ali na varanda, Heitor percebia que
qualquer lugar daquela antiga mansão o convinha, fazendo-o
sentir-se familiarizado. Ele se inspirava neste novo momento
descrevendo-o em letras e frases seu mais profundo sentimento.
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Doce e sonho
Charlotte consegue viver em mim, não sei como ela faz isso, como ela entra em meus pensamentos, mas ela entra sem pedir licença. Ela não é só a Charlotte puramente, pura de corpo e de mente, ela é tudo em minha volta, é a mansão, a floresta, o mar, a chuva, o vento. E é lento esse quase tormento de querer fazer parte desse empreendimento de vida sem saber por onde começar. Seu saber vai além da química e da física, é uma espécie de alquimia da luz transparente, às vezes consigo ver seus olhos quando fecho os meus, é mais profundo que a matéria e não se precisa estudar para decifrá-los, pois eles são claros apesar de escuros, escuros como a noite, não posso vê-los, não posso vê-la, não enxergo, quando não quero. É-me confortadora essa sensação que sinto quando meus pensamentos se voltam para ela. Luz do sol ao entardecer esquentando a pele no frio inverno, enquanto o vento congela meu rosto e eu quase não sinto meu corpo deitar-se sobre a cama vazia, vazia de tristeza, vazia de meus pensamentos, vazia de mim e dela. Oh doce Charlotte, alegria esplêndida que brilha como o sol ofuscando meus olhos não me deixando vê-la, apenas sonho agora, sonho. HT HT
E depois de muitas horas de observação da natureza, de
pensamentos vagos e rabiscos em folhas de papel, como todo
começo de noite, a chuva já havia passado e ficava aquele ar
úmido e frio que congelava as narinas de Heitor toda vez que ele
respirava. De pés descalços ele podia sentir a madeira que não
era tão fria, seus chinelos felpudos agora empoeiravam-se
debaixo da sua grande cama, esquecidos. E Charlotte onde
estaria? Onde estaria a doce Charlotte de sonhos viventes que
ultrapassam sua mente deixando-a mais resistente ao tempo e ao
ambiente onde nascer era todo amanhecer. Onde?
Sem mais pensar, Heitor abriu o velho diário a fim de
encontrar os sonhos de Charlotte, a próxima folha amarelada
dizia:
60
Estou no meu lugar preferido da casa, na verdade não é bem na casa e sim no jardim, é tudo tão verde e vivo, tanto quanto nós. Sinto que posso até conversar com as folhas e quase que elas me respondem, não posso imaginar um lugar melhor que aqui para se viver, por toda minha vida vivi entre esses arbustos e cresci junto com as árvores, elas são como as irmãs que não tenho. Tocá-las e abraçá-las faz-me sentir renovada na pureza. Hoje é um dia bom, a luz foi escondida pelas nuvens de massa cinzenta, papai diz que o tempo assim fica feio, mas eu discordo, acredito que tudo tem sua beleza, tanto os dias de sol como os de chuva, mas por algum motivo os dias de chuva me são mais especiais. O silêncio aguça os pingos d’água que caem mais grossos quando ficamos debaixo de alguma árvore, e ai você ouve o agradável barulho da água tocando a folhagem e todo o resto no horizonte some por trás da neblina, não te deixando mais ver a longa linha do fim do chão espelhado, onde na verdade é simplesmente o começo do mundo onde nossos limitados olhos não conseguem chegar, mas se o fecharmos e deixarmos-nos envolver pelo friorento clima sem questionamentos ficando parados, simplesmente parados, podemos nos transportar para lá e ainda mais além, onde você perde sua identidade, onde se sente sensações indescritíveis, sensações antigas, mais antigas que a nossa própria idade. E então, você tenta olhar dentro de si, mas você não consegue porque você não está ali, você está na linha do horizonte e ainda mais além, viajando com o vento de outros mundos, ventos que trazem histórias, é quando consigo fantasiar em minha mente os amores que ainda não vivi, os contos que ainda não contei, as vidas que ainda quero viver, histórias. O vento me leva, e quase contra minha vontade, ele me trás de volta, então eu espero a próxima chuva, o próximo vento, e as nuvens cinzentas.
Diário de Charlotte,
14 de março de 1880
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Heitor olhando para o horizonte;
- Tudo isso parece um... sonho? Do jeito que ela escreveu como
se vivesse em seu próprio paraíso.
Charlotte cruzou a porta e seus passos se fizeram ouvir na
varanda;
- O paraíso nada mais é que a paz interior meu caro amigo.
Algumas pessoas se veem tão longe dele, outras acham que é o
poder, e outras acreditam que quanto mais dinheiro se tem, mas
perto se está dessa coisa que todos querem, mas poucos
conseguem. Existem aquelas que pensam que nada mais é que
um lugar, mas eu particularmente acredito que o paraíso é aquilo
que nosso estado de paz e sabedoria plena consegue projetar e
fazer sentir. Está tudo em nossa mente, devemos parar e pensar
em todas as nossas atitudes, devemos observar mais o
comportamento das pessoas sem o intuito de lhes apedrejar, pois
essa atitude não revela nada mais que nosso nível de imperfeição
e insegurança, devemos sim julgar a nós mesmos, sem medo de
perceber que falhamos. O paraíso é aceitação dos erros tentando
não errar mais, da bondade sem cobrar absolutamente nada, do
perdão sem esperar ser perdoado. E assim, sem esperar que as
pessoas vejam tudo isso, seu paraíso será montado lentamente
dentro de você, você pode conquistá-lo como um pedaço de
terra, basta procurar o justo sempre que seu orgulho tentar falar
mais alto.
Heitor levantou-se da cadeira e seguiu até a ponta da varanda
olhando para o céu, antes de falar ele soltou um quase que feliz
pigarro;
- Engraçado, o céu abriu e as estrelas voltaram. Este lugar
parece fora da realidade. (Ele caminha para dentro da casa). É
bom eu ir dormir. (Ele olha para o diário). Amanhã nós
continuaremos nossa aventura literária. Boa noite Charlotte. (Ele
fecha o diário).
62
Charlotte
- Boa noite Heitor, durma bem.
E as noites como de costume eram frias, tão frias que se
alguém respirasse por ali dar-se-ia para ver seu rastro de ar
quente saindo de seus pulmões, tornando-se visível qualquer
sopro de vida. Mas os fantasmas da noite de Heitor eram
assustados pelo vermelho fogo da grande lareira do seu quarto
que queimava a lenha até próximo do amanhecer, quebrando o
gelo do ambiente escuro e quieto, que nem o pesadelo mais
assombroso conseguia fazer alguma coisa mexer, pelo menos
não na mente de Heitor. Os velhos candelabros ficavam sempre
com suas velas amareladas apagadas, pois o vento que entrava
pela janela funcionava como sopros de aniversário, não
deixando uma sequer derramar suas lágrimas de cera. A porta
pesada de madeira batia frouxa quando encostada, ouvia-se de
muito longe um tilintar de uma espécie de ladrão de sonhos que
ficava na varanda, que provavelmente fora Charlotte quem o
colocou lá. Então, todo aquele silêncio musical foi corrompido
quando Heitor ouviu um barulho, um barulho não muito comum,
como de alguma coisa quebrando, talvez um copo de cristal. Ele
levantou seu corpo da cama assustado, ainda meio zonzo como
se tivesse despertado bruscamente de um profundo sono, ficou
parado, estático, sem saber até porque ele estava assim, com...
Medo? O sonoro silêncio se fez de novo, ele pensou ter sido o
som produto de seu imaginário adormecido. Mas então, outra
vez ele ouviu o ensurdecedor barulho de algo se espatifando no
chão e se dividindo em migalhas, agora mais desperto, tinha
certeza que não fora ilusão.
Heitor sussurrou;
- Mas o que é isso?
Calmamente, quase que petrificado, Heitor vencia sua
enorme vontade de se enfiar debaixo das cobertas e orar as
63
orações que conhecia, corajoso como todo homem deve ser, pelo
menos era como ele pensava, pegou uma espécie de fósforo na
gaveta de seu criado mudo, andou lentamente até uma das
cômodas onde ficavam alguns candelabros para o chão de
madeira não ranger, avisando assim ao suposto invasor que há
passos avançando no andar de cima. As velas acenderam
iluminando o local, por um minuto Heitor pensou que nunca
tinha reparado que a velha mansão tinha um ar sombrio à noite,
mas não querendo focalizar nessa ideia assustadora, seguiu para
o andar debaixo. Seus passos se fizeram presentes em alguns
degraus que faziam um resmungar abafado, ele tentava pisar
cada vez mais na ponta do pé. No primeiro andar tudo estava
parado como deveria estar, nada fora do lugar, sem nenhum
sopro de ar, e Heitor se perguntou:
- O que há?
Dirigiu-se a cozinha, e então pode ver até antes do
amanhecer, pelo menos uma prova de que não era sonho, pois
seus pés estavam sentindo o copo de vidro que não estava
arranhado e sim quebrado, e não era um, eram dois. Heitor
desejou por alguns segundos ter optado ficar na cama debaixo
dos cobertores rezando as orações que conhecia, mas ele já
estava lá, a pisar sobre os cacos de vidro. Mas um barulho se fez
ouvir, agora mais parecia um choro, um chamado, como a voz
de uma criança, era muito fino o timbre, quase que
imperceptível. Heitor ouvia e caminhava agora destemido do
antigo perigo que o fez lembrar os seus tempos de menino. Ele
abaixou a cabeça vagarosamente para ver debaixo da mesa, seu
corpo o acompanhou deixando-o de joelhos, e quando deu por
si, reparou que grandes olhos amarelados o vigiavam, e então, o
fino timbre que lembrava uma criança fez-se explicar quando
sua pequenina boca rosada soltou mais um miado. O gato
manhoso de cara achatada pelos longos e cinzentos, mais parecia
uma bola de pelos, o medroso Heitor abriu um sorriso de alívio,
tudo se explicara agora.
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Heitor olhando para o gato assustado;
- Como você veio parar aqui? (Ele se levanta do chão deixando a
gata onde estava, e com um pequeno sorriso declara:) Os bichos
desse lugar não tem a menor consideração pelo espaço dos
outros. (E voltando para sua confortável cama ele continuou
andando e resmungando). Uma hora me aparece um corvo, na
outra uma borboleta, agora um gato?! Eu não sei mais o que
fazer... Daqui a pouco vou notar ter vindo morar em um asilo
para animais.
Mais um amanhecer despertou a misteriosa mansão, que
para seus moradores lhe era simpática apesar do ar bucólico
ainda aconchegante. Heitor não conseguira mais dormir depois
do acontecido, com a tensão que sentira noite passada ele não
relaxara totalmente, e de minuto em minuto abria os olhos para
conferir se não havia ninguém em seu quarto. Ao pôr os pés na
sala viu o simpático gatinho esparramado de patinhas para o ar
brincando, Charlotte já estava acordada e participava da
brincadeira com o gato também esparramada pelo chão
interagindo com o felino.
Heitor cruzando a sala indo para a cozinha sem mostrar o menor
interesse nas peripécias tanto de Charlotte como do gato;
- Ah! Você já está ai é?!
Charlotte demonstra na voz o entusiasmo com o animal;
- Sim! Você sabe que acordo cedo. Viu que agora temos uma
gata?
Heitor se distanciando;
- Já vou logo avisando que não simpatizo com gatos.
Charlotte levanta-se para seguir Heitor até a cozinha e a gata
também a segue;
- Mas é uma gata.
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Heitor
- Na verdade não simpatizo com animal algum.
Charlotte
- Ah! Deixa disso Heitor, por algum motivo ela veio parar
justamente aqui, e como eu sempre digo que nada é por acaso eu
voto a favor da permanência da gata.
Heitor preparava o café enquanto o animal ficava ao seu
lado em cima da pia rolando de um lado para o outro, às vezes
ela parava com as patinhas para o ar e encarava com seus
esbugalhados olhos amarelados o antipático moço que insistia
em não cair em suas graças.
Heitor por um momento olhou para a gata;
- Humm... É uma menina.
Charlotte sentada à mesa;
- Sim foi como eu disse, é uma gatinha muito esperta.
Heitor parou o que estava fazendo;
- Hummm... Não sei não. Teria que ser bem mais graciosa que
isso para me cativar.
A gata rolou, rolou e pôs-se de pé, caminhou até onde
estava um dos braços de Heitor e esfregou seu macio pelo
cinzento enrolando sua longa calda espanada no quase
convencido Heitor, e então fixou seus doces e carinhosos olhos
esperançosos em busca de uma resposta.
Heitor
- Parece até que você entendeu o que eu disse. Deixe-me pensar.
Charlotte levantou-se da cadeira;
- Vamos Heitor, ela é tão fofa e meiga. Você não deixaria uma
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gatinha dessas sem lar, à deriva, deixaria? Olha que ela pode ser
uma peça importante na sua vida. Sabia que nós aprendemos
muito com os animais? Eles podem nos servir só como distração
ou capricho, mas também podem se tornar grandes amigos e
companheiros, acredito que até nos entendem, ficando ao nosso
lado quando estamos tristes ou alegrando nossas vidas em
momentos difíceis.
Heitor
- Está bem, está bem! (Charlotte deu um salto e um grito de
alegria). Mas se vai ficar aqui, preciso arranjar um nome pra
você.
Charlotte
- Nisso eu não pensei.
Heitor pensativo encarando a gata que também não lhe
desgrudava os olhos;
- Já sei! Como no diário da nossa amiga Charlotte os dias
chuvosos são especiais, não são?
Charlotte
- Acredito que sim.
Heitor acariciando a gata que agora se sentia ainda mais íntima
do rapaz;
- Vou te chamar de Neblina, porque você é cinza como a neblina
que escondeu o horizonte da Charlotte, permitindo que ela nos
escrevesse coisas tão bonitas.
Charlotte experimentando a sonoridade do nome;
- Neblina. Ótima ideia Heitor, ela realmente parece uma neblina.
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Heitor mexendo no armário;
- E então Neblina, você quer um pouco de leite? Deve estar com
fome. (Ele derrama um pouco de leite em uma vasilha e a gata
se esbalda).
Charlotte
- É! Ela parece faminta.
Heitor olhando para os vidros que a gata derrubou noite
passada;
- Bom, agora terei que limpar toda essa bagunça. Trate de não
quebrar mais nada Neblina, já tenho a feliz e contente Charlotte,
só me faltava uma gata desastrada.
E a gata sem nome e sem dono virou um sonho, a menina
Charlotte antes crescida sozinha na grande mansão do penhasco
agora conquistara um novo amigo, e Heitor, o triste e solitário
menino que perdera seus pais quando ainda criança, o homem de
gelo que procurava sossego, começava agora seu caminho, sua
trilha rumo à compreensão em busca do seu eu, dos seus
porquês e de suas respostas em busca da paz. O caminho era
longo, mas que caminho não é longo quando se está em busca de
algo tão valioso?
Aquela manhã era apenas mais uma manhã onde Heitor
devia seguir a sua rotina, antes disso tratou de recolher os
mínimos caquinhos de vidro dos copos de cristal que a gata
Neblina havia quebrado, após seguiu seu ritual com seu café da
manhã cheio de bacons, ovos, pães e é claro a famosa batata da
Irlanda, tomou sua caneca de café quente bem quente, sentou-se
em sua cadeira no escritório, olhou para as folhas em branco,
ficou alguns minutos sentado ali olhando para as folhas como se
estivesse esperando um clique, uma luz, alguma voz em sua
mente para lhe dizer o que fazer. Mas nada, ele estava vazio, não
sabia por onde começar. Desistindo, Heitor se sentiu um
fracasso, levantou-se cabisbaixo saindo daquela bonita mesa que
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passava certa credibilidade, mas ele não, ele era só alguém
tentando ser escritor como sua mãe Beatrit. Talvez ele fizesse
todo esse esforço porque pensava que se escrevesse como sua
amada mãe não se distanciaria de sua lembrança, não a
esqueceria. Heitor seguiu tristonho para a sala e largou seu
corpo no sofá como se não o desejasse mais. Charlotte
continuou dando atenção para a gata.
Heitor pensando em voz alta;
- Eu só queria escrever como ela.
Charlotte sem parar de brincar com a gata parecia ouvir de
muito longe o que Heitor falava, pois não estava concentrada
nele;
- Hã...?!
Heitor
- Só queria escrever... (Ele respirou fundo).
Charlotte indo sentar-se na outra ponta do sofá, a gata a segue;
- Heitor, escrever era é um dom da sua mãe, ela o fazia
naturalmente porque surgia de dentro dela. Você deve ir à busca
do seu próprio dom, assim irá se sentir muito mais realizado e
feliz consigo mesmo. Beatrit escrevia, você não precisa copiá-la
para provar a si mesmo de que a amava muito e nunca irá
esquecê-la. Tente fazer alguma coisa que o inspire, nem que seja
só para se distrair, se não conseguir com uma coisa tente outra, e
assim continue tentando, até achar algo que o faça se sentir livre
e feliz.
Heitor
- Tenho muitas coisas para fazer hoje, não posso me deixar
abater só por causa disso. (Heitor dá um salto do sofá).
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Charlotte para Neblina;
- Vamos ver o que ele irá aprontar desta vez? (A gata corre atrás
de Heitor e se embola em seus pés não conseguindo fazer com
que ele parasse de andar).
Heitor com um tom um pouco alto dá uma risada;
- Pelo menos você me anima!
Charlotte sorri das peripécias da gata Neblina;
- Ficamos felizes em ajudar! Está começando a superar mais
rápido.
O falecido jardim da mansão já não estava tão morto,
pois o pouco tempo que Heitor dedicava a ele já adiantava
alguma coisa para àquelas plantas carentes de cuidados
especiais, mas nunca seria suficiente todo tempo do mundo para
cuidar de tamanha riqueza florestal, a sorte de Heitor é que boa
parte da vegetação cuidava-se sozinha, ficando com folhas
verdes que amarelavam e caiam abrindo espaço para mais duas
vidas brotarem verdes de novo. Como sempre que cuidava do
jardim, o sensível moço arrumou-se com seu quite contra
infecções, pois uma de suas tias que o criara após o falecimento
de seus pais lhe educara dizendo que em tudo havia veneno,
principalmente nas plantas e coisas da natureza. Com suas luvas,
tesoura e máscara para não inalar qualquer espécie de pólen, ele
dirigiu-se para as flores. Charlotte o seguiu, por mais que ela já
estivesse acostumada com o estranho jeito do rapaz e já o tivesse
visto com toda aquela parafernália para cuidar das simples
plantas, jamais se acostumaria com tanta sensibilidade, mas sem
dar muitos palpites respeitou o estranho jeito de Heitor.
Rosas de todas as cores enfeitavam o jardim, brancas,
vermelhas e rosa chá, as margaridas eram para alegrar, e parecia
que tudo se harmonizava de uma maneira única como uma
amizade pura e simples, olhar aquele imenso jardim vivendo em
conjunto, como se tudo estivesse ligado, era fascinante. Até o
70
chafariz seco ainda sujo cheio de limo fazia surgir uma beleza
em meio ao abandono. Com as grossas luvas de borracha Heitor
não conseguia tocar direito as rosas, a tarefa sempre fora difícil e
desagradável, pois ele não via graça em cortar pedaços de folhas
e limpar o que morria para abrir espaço para a vida.
Charlotte tenta abrir a mente do rapaz com suas palavras
enquanto o mesmo se dedica a seus afazeres com expressão de
pensativo.
- Heitor, o medo é o veneno da vida. Com medo você não
assume que não serve para escrever, não abrindo assim
possibilidades para tentar outras coisas até achar algo que o
complete, ou de repente você descobre até muitas outras coisas
em que é bom e muito feliz. O medo é o veneno da vida quando
ele não te deixa experimentar coisas novas, porque você
simplesmente sente medo de falhar, mas é preciso falhar para
aprender, descobrir e talvez chegar perto da perfeição. Sentir
medo é existir, existir é viver, e viver é descobrir que o medo só
nos serve quando usado para tomar cuidado, e não como
barreira. Lembre-se que até os mais mortais venenos são usados
para a cura de terríveis infecções. Use o medo para a
positividade.
Heitor saiu do olhar inerte que parecia atravessar a linda
flor com seus pensamentos profundos que quase não o deixavam
voltar, o leve olhar reparou a rosa em frente que estava diferente,
não existia uma diferença visual para Heitor, mas algo havia
mudado. Ele tirou as luvas lentamente e tocou a terra marrom
umedecida, uma estranha falta de ar o fez tirar a máscara que lhe
tampava o nariz, cuidadosamente aproximou suas narinas da
roseira, e então um espirro se fez ecoar.
- Athim! (Espirrou Neblina).
Heitor
- Neblina, o que está fazendo?
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A gata talvez fosse alérgica a flores, mas Heitor pode
sentir o refrescante perfume da natureza, era como o cheiro de
um bebê, uma vida nova. Ele se desfez de toda a sua parafernália
confiando em sua vontade de experimentar o novo, o que ele
ainda não havia tentado, era incrível, mas estava dando certo,
parecia que agora a natureza o aceitava, acolhendo-o, deixando-
o se sentir ainda mais à vontade. E cada toque seu se tornava
único, o veludo das pétalas vermelhas, a rispidez dos velhos
troncos de árvores, o liso das folhas e seus micros canudos que
levavam a água que era sugada pelo caule até a ponta e o cheiro
de terra molhada. Heitor, a gata e Charlotte passaram o dia ali,
rolando na grama verde e curta, aparando as folhas amareladas,
tirando o capim, recolhendo o que morria para uma nova vida. O
chafariz foi esfregado, ensaboado e enxaguado, Neblina perdia-
se entre as bolhas de sabão que Charlotte fazia voar, a gata ao
contrário dos costumes felinianos, parecia gostar de tomar
banho, todo o seu pelo que a tornava uma bola, agora estava
lambido pela água, ela mais parecia um gravetinho com quatro
patas. Ao término, Heitor nunca havia ficado tão sujo e nunca
havia se divertido tanto, exausto como o resto dos membros da
sua atual família, ficou ali sentado em um dos degraus da
escada, olhando para aquela bela escultura que fazia a água
dançar tornando seu som frequente e agradável como de uma
cachoeira. E a redonda e branca lua fazia aquela imagem se
tornar ainda mais fascinante.
Neblina rolava de um lado para o outro tentando se secar
no tapete da sala, ela não conseguia parar, se esfregava no sofá,
nas poltronas, de repente pareceu que seus pelos molhados
estavam-lhe agonizando. Após todos estarem secos e limpos,
Heitor deitou-se no sofá da sala conservadora, a lareira
queimava a velha lenha esquentando o ambiente, a gata parecia
aconchegantemente adormecida com suas patas abertas quase
que abraçando Heitor em cima do seu estômago, o diário de
Charlotte fora mais uma vez aberto.
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O ar que o sótão tem é tão aconchegante, às vezes sinto como se morasse aqui há séculos, ele me transfere para um lugar dentro de mim que ainda não conheço muito bem, é como se eu chegasse até a porta, mas não conseguisse entrar, em alguns momentos até consigo sentir que não estou aqui, sinto-me em algum lugar acima das nuvens, por isso mudei meu quarto para cá, para ficar ainda mais perto de mim mesma. Para aprender a conviver com os outros, primeiro temos que aprender a conviver com nós mesmos, precisamos nos conhecer muito bem, nossos pontos fracos e fortes, temos que tentar descobrir a razão de nossas ações em tudo. Existem pessoas que gostam de falar o tempo todo, essas pessoas se sentem sozinhas. Pessoas que não falam praticamente nada ou que mentem podem ter medo de serem avaliadas, criticadas, julgadas e condenadas. Pessoas que gritam facilmente, provavelmente não foram escutadas quando necessitavam expressar algum sentimento. A grande maioria das causas dessas “deficiências” está na infância dessas pessoas. O que elas precisam aprender é a querer enxergar os momentos que lhes foram tristes e traumatizantes no decorrer dos tempos, pois só resolvemos os problemas quando os assumimos, e só os assumimos quando percebemos que eles ainda estão ali em algum lugar dentro de nós. Mas uma coisa que também precisamos saber, é que nossos conflitos nunca acabam. Aprender a lidar com nossas imperfeições talvez seja mais difícil do que tentar fazê-las tornarem-se perfeições, até aceitarmos que somos seres errantes em constante evolução e aprendizagem, leva um tempo. Quando nos conhecemos melhor e ficamos cientes de nossas imperfeições e entendemos o porquê agimos de certa forma em certos casos, acolhemos melhor as pessoas e tentamos entendê-las quando algo não nos agrada. Tudo em nossa volta deve ser observado com atenção. Mas não foi sobre isso que vim escrever, hoje eu e papai fomos à cidade, gosto de ir lá porque revejo alguns amigos e amigas, ela sempre fica mais bonita quando já está escurecendo e as luzes começam a colorir as ruas, as construções são simples e aconchegantes, a simplicidade da cidade por algum motivo faz eu me sentir envolvida e atraída por ela. Fomos ao mercadinho de sempre, papai comprou aquele
Diário de Charlotte,
21 de março de 1880
73
doce que ele adora que agora não me lembro o nome, e também me deu uma echarpe de presente, seu tecido de seda creme claro com detalhes de flores em rosa grená me encantou, eu lhe comprei meias. O que posso fazer? Ele tem pés muito grandes e pernas finas, então achei que amenizaria a impressão se o incentivasse a usar meias. Foi o que me veio à cabeça naquele momento. Tenho quase certeza que ele só vai usá-las para dormir. Bom, só de servir para alguma coisa já alivia minha consciência de filha preocupada com a aparência dos pés do papai. Sempre que vamos à cidade compramos algo um para o outro, nem que seja uma coisa muito pequena e simples, acabamos criando esse hábito naturalmente sem maiores interesses, os presentes que papai me dá, guardo todos no baú, meu baú feliz, sempre que o abro e pego alguma coisa, lembro-me dos momentos felizes que passamos. Mas voltando a cidade, impossível seria passar por ela e não parar para conversar com algum conhecido, principalmente o senhor Lenard que adora sua quietude dos livros de sabedoria, mas quando encontra alguém conhecido dana a falar pelos cotovelos, parece até que está compensando o tempo que passou calado lendo os livros e o tempo que ainda há de vir. Enfim, também acabo me distraindo com os meus conhecidos, a cada esquina que viramos encontramos alguém com um assunto urgente para falar, ou simplesmente começamos a conversar e não conseguimos parar. A vida da cidade me anima, me cansa e faz eu me sentir cada vez mais viva com tudo isso. Depois voltamos tranquilos para casa. Por hoje é só.
Heitor fechou o diário, cuidadosamente tentou tirar
Neblina de cima dele sem acordá-la, mas ela acordou e foi
aconchegar-se preguiçosamente no braço do sofá, ele levantou e
seguiu para seu quarto com o corpo um pouco pesado, a gata o
seguiu. Já em seu quarto, Heitor deitou-se na cama e a gata
folgada subiu novamente em seu estômago e ajeitou-se para
dormir. No sobe e desce da respiração de Heitor a gata
adormeceu como uma canção de ninar adormece uma criança, e
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os dois dormiram.
Heitor acordou de manhã quando o sol já queimava as
pedras, não tão estranhamente ele se sentia leve e confortável, a
gata Neblina já miava ao seu lado passando sua linguinha áspera
no seu ouvido, o que fez Heitor acordar dando risos de cócegas.
Heitor sorrindo;
- Isso é um bom dia ou você está com fome? (Após uma breve
pausa, ele quase acreditou que ela fosse responder). Acho que
está com fome.
Depois de alimentar a gata e tomar seu café da manhã,
com sua caneca de café quente bem quente ele dirigiu-se para o
escritório. Sentado lá naquele ambiente fechado iluminado por
uma luminária amarelada, Heitor voltava ao seu velho dilema,
folhas em branco, pensamentos em branco, uma vida em branco.
Mas ele tinha um pensamento fixo em sua mente, ele tinha que
tomar alguma atitude. E qual foi a sua atitude? Heitor pegou sua
caneca de café quente bem quente, as folhas em branco e os
lápis afiados. Na varanda de frente para o mar ele pode sentir
um leve vento tocar, e então tentou relaxar, um pequeno
passarinho não parava de piar, e como as gotas do mar, Heitor
começou a rabiscar. O passarinho o fez voar, suas asas eram os
lápis que davam formas ao que ele queria passar, no papel em
branco agora existia vida, e de alguma forma ele saíra da lida,
pois seus olhos já podiam ver o mais belo gracejo que a natureza
lhe ajudava a fazer.
Heitor mostrando seu desenho pronto;
- O que achou?
Charlotte que estava sentada na mureta a acariciar a gata em
seu colo espantou-se com o desenho;
- Heitoorrrr! Está muito bonito! (A gata deu um mio e pulou do
colo de Charlotte).
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Heitor
- Vou considerar isso como uma aprovação da sua parte. (Ele se
levanta e segue para dentro da casa, Charlotte e a gata o
seguem).
Charlotte
- Mas é claro que é uma aprovação, está lindo o seu desenho.
Heitor
- Vamos a cidade comprar algumas coisas?
Charlotte
- Está bem! Estarei pronta em um minuto.
Heitor tirou seu carro da garagem animado, saiu do carro
e abriu a porta do carona, Charlotte e a gata entraram.
Charlotte para a gata Neblina;
-Humm... Ele está virando um cavalheiro Neblina. (A gata miou
e Charlotte falou como se respondesse ao seu miado). É lógico
que é graças a mim, sem a Charlotte aqui este menino estaria
perdido, coitado. (Heitor estava sorrindo).
A cidade realmente fascinava a quem requisitava
simplicidade e aconchego, era uma espécie de povo que
conservava suas raízes e cultura não deixando perder seus
costumes. Como Heitor antes de se mudar morava em um lugar
da ilha bem diferente daquele, toda vez que ia à cidade achava
estranho as pessoas passarem por ele sorrindo e o
cumprimentando, mas agora diferente das últimas vezes que
havia ido, ele ria e cumprimentava de volta como Charlotte
fazia. Eles entraram no mercadinho com a gata seguindo seus
pés, o sino da porta avisou que eles estavam entrando. A cidade
era pequena e a população diminuíra ainda mais por causa do
tifo, tudo parecia calmo e harmonioso. Enquanto os olhos de
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Heitor passeavam pelas prateleiras, em sua mente ele ficava
imaginando que alguém devia soltar no ar toda tarde alguma
espécie de sonífero, pois a cidade parecia dormir de tão quieta.
Logo soltou um sorriso bonito no ar quando se pegou a imaginar
coisas impossíveis, franziu a testa quando reparou que seu
imaginário estava viajando tão longe daquele lugar, que não
havia avistado a simpática senhorinha que estava parada no
balcão olhando para ele com seus amarelados dentes amostra,
Heitor retribuiu o leve sorriso, e a voz mesmo que ainda cansada
se fez doce e gentil ao perguntar:
Senhorinha aproximando-se;
- Posso ajudar meu filho? Você me parece meio perdido com
tantas prateleiras, apesar de não estar olhando para elas.
Heitor
- Deu para perceber é?
Senhorinha
- Não, imagine! Eu sou Abigail. (A senhorinha sorriu).
Heitor meio sem jeito;
- Muito prazer, sou Heitor. Bom, eu queria comprar tintas e telas
para poder pintar. Aquelas assim... (Heitor mostra o tamanho
com os braços). ...Bem grandes, as que os pintores costumam
usar.
Abigail
- Alguém já te disse que seus olhos são tão expressivos quanto
às palavras propriamente ditas?
Heitor ficou meio estático com o que a simpática senhorinha
disse, e com um pouco de receio respondeu;
- Não.
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Abigail soltando uma quase que sofrida risada;
- Não se preocupe meu filho, não estou flertando com você.
Apesar de que se fosse há uns cinquenta anos atrás você ficaria
lisonjeado se eu estivesse te paquerando. Eu era uma moça
muito bonita, sabe? Os rapazes desta ilha arrastavam caminhões
por mim.
Heitor ainda meio perdido com a conversa;
- Acredito que sim.
Abigail
- Mas papai era severo, não queria saber da filha mais nova e
mais bonita dele namorando.
Dos fundos da loja surgiu outra senhorinha igualzinha a
que conversava com Heitor.
Senhorinha2 aproximando-se;
- Mais nova apenas por dois minutos, e não dá para você ser a
mais bonita nós somos gêmeas idênticas sua tonta.
Abigail
- Isso é o que você pensa.
Senhorinha 2
- Muito prazer meu filho, eu me chamo Agatha. (E antes que
Heitor se apresentasse ela abismou-se). Meu Deus! (Mais uma
vez o rapaz encabulou-se quando aquela senhora com simpáticas
rugas arregalou os olhos ao olhar para Heitor). Nunca vi olhos
assim antes.
Abigail
- Era o que eu estava tentando dizer ao rapaz antes de você
entrar.
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Agatha
- Não estava nada, você estava preocupada em lhe dizer de como
era bonita quando jovem. Você sempre se distrai, é uma
distraída.
Heitor
- Senhoras eu não quero causar nenhum transtorno, apenas vim
para comprar tintas e telas para pintar.
Agatha
- Ah! O senhor é pintor?
Abigail apressou-se para responder;
- É claro que ele é Agatha, se veio até aqui para comprar tintas e
telas para pintar, é porque ele é pintor! Ora essa!
Heitor
- Senhoras eu...
Agatha
- Não, não diga nada filho. Desculpe-nos por sermos duas velhas
implicantes. Passamos a vida inteira assim, é difícil perder
velhos hábitos.
Abigail
- Ao contrário de você querido.
Heitor
- Como?
Agatha para Abigail;
- Está vendo o mesmo que eu?
79
Abigail
- É claro que sim. Só vi olhos assim em uma pessoa em toda a
minha vida. São olhos da esperança, do amor e da caridade
infinita. (Abigail olhou para Charlotte que estava um pouco
distante distraída com as coisas na prateleira e sorriu para ela
que por sua vez a cumprimentou com um aceno de mão).
Heitor
- Sobre o que estão falando afinal?
Agatha
- Querido, já deve ter ouvido falar que os olhos são as janelas da
alma.
Abigail
- Pois então, nunca vimos janelas tão límpidas quanto as suas.
Heitor
- Desculpem senhoras, mas eu não estou entendendo.
Agatha
- Antes você vivia em um poço de tristezas, lamentações, culpas,
arrependimentos. Nem sabia o porquê sentia tudo isso, mas
sentia, e doía. Era como se estivesse preso na última camada de
terra.
Abigail
- Agora seus olhos conseguem enxergar o mundo como ele deve
ser visto. Você tem bondade em seu coração, um amor infinito
por todos os seres da terra, ainda não sabe disso, não sabe o
tamanho da sua capacidade de amar cada pedra pelo caminho,
seres animados e inanimados.
80
Agatha levando Heitor até a porta de vidro, apesar de mais
parecer que era ele que a estava levando;
- Veja! As crianças estão sorrindo para você, os animais querem
se aproximar, para tudo que olha você acende uma luz. Isso se
chama esperança, e a esperança só pode brotar onde há amor, e
ele transborda pelos seus redondos olhos.
Heitor sorridente;
- Obrigada a vocês duas, ninguém nunca havia me dito essas
coisas.
Abigail
- Não precisa agradecer querido. Mas o que veio mesmo fazer
aqui?
Heitor
- Vim comprar tintas e tela para pintar.
Agatha
- Então o senhor é pintor?!
Heitor
- Bem, ainda não me considero um pintor, mas talvez depois de
um tempo de prática. Quem sabe?
Abigail
- Deixe sua alma falar enquanto estiver praticando, isso o
tornará um pintor, ou não.
Heitor
- Sim senhora.
Heitor, Abigail, Agatha e Charlotte que observava tudo
dos fundos da loja junto à gata Neblina, ficaram em silêncio por
um tempo olhando uns para os outros, as senhorinhas
81
mantiveram aqueles sorrisos amarelados e simpáticos em sua
fronte, Heitor ficou perdido por um momento e esperou mais um
pouco, caso as duas irmãs tivessem algo a mais a dizer, mas
nenhum som se fez ouvir e ele quebrou o silêncio.
Heitor
- Então... Vocês vendem tintas e telas para pintar aqui?
Abigail e Agatha juntas;
- Não. (Heitor e Charlotte riram).
Agatha
- Mas no fim desta rua, quando você chegar à esquina, existe
uma estreita lojinha do outro lado da calçada.
Abigail
- Com certeza achará tudo que precisa lá. Pincéis, tintas, telas...
Heitor
- Ok senhoras. Eu agradeço pela a atenção e por tudo que foi
dito, com certeza foram palavras confortadoras.
Agatha
- Está bem querido, vá com Deus.
Abigail
- E não se esqueça de voltar sempre.
Heitor saindo da loja junto a Charlotte e Neblina;
- Pode deixar, obrigado! (Agora caminhando sobre as ruas de
paralelepípedo, a gata segue seus pés e o de Charlotte que
andavam distraidamente). Nossa! Fiquei tonto com aquelas
senhoras.
82
Charlotte
- Pois é! E são duas idênticas.
Heitor
- Não sei nem para onde estou indo.
Charlotte
- Não tem problema é só me seguir, eu cresci aqui, conheço
todas as ruas.
E Charlotte correu, pois a rua não era movimentada,
Neblina apesar de ser uma gata meio preguiçosa correu atrás
dela.
Heitor correndo por último;
-Me espera!
Na esquina, parado de frente para uma antiga lojinha
estreita, comprida para o alto, Heitor surpreendeu-se com a
beleza arquitetônica da solitária empresinha. No alto da porta
estava escrito “1630”, ele entrou e foi surpreendido com
incríveis quadros de paisagens, pessoas e tudo mais que se podia
imaginar, o próprio teto abaloado era um gigante quadro
pintado, mais parecia um retrato do céu e se estendia até as
paredes. Heitor ficou ali, parado, sem palavras, quase que
quebrando o pescoço de tão admirado com tamanha beleza, por
trás do balcão de madeira havia longas e altas estantes que
guardavam quadros enrolados em panos como se fossem livros,
de fora daquela humilde e antiga lojinha não se podia imaginar
que era tão grande por dentro. Um senhor de cabelos e barba
branca surgiu por trás do longo balcão que ia de uma parede a
outra, como se tivesse se materializado no local, as suas velhas
cordas vocais arranhadas pelo tempo emitiram um som familiar
e tranquilizante para Heitor.
83
Senhor
- Cuidado senão vai acabar saindo daqui como todos os outros
meu rapaz.
Heitor
- E como seria?
Senhor
- Com torcicolo. (O velho sorriu).
Heitor se aproximando;
- Meu nome é Heitor.
Senhor
- O meu é Florêncio. Minha mãe queria uma menina e a
chamaria de Flor, mas como vim menino chamou-me Florêncio,
o que me lembra de uma mistura de flor e essência, florescência
que significa florescer, brotar, despertar, e que rima com
inteligência, benevolência, coexistência e assistência.
Heitor sorriu junto com o feliz velhinho;
- Bom, só sei que o meu é Heitor.
Florêncio pensativo;
- Hummm... Sim, Heitor me leva até o numeral oito, que é o
número que representa a continuidade eterna, o símbolo do
infinito. (Florêncio olhou bem para o rosto de Heitor, e após
despertar da sua própria hipnose indagou):
Mas o que veio fazer aqui filho? Vi que ficou muito interessado
pelas pinturas do meu tá tátátátá e sei lá mais quantos tás tara
avô.
Heitor
- Então foi um familiar do senhor que pintou essas paredes e o
teto?
84
Florêncio
- Sim, foi sim. A loja foi construída por um desses tás que acabei
de mencionar, minha família pinta desde muito tempo, desde
quando ainda éramos a única lojinha da esquina e dava-se para
ver melhor as montanhas e pintá-las. Tenho qualquer tipo de
paisagem sobre a cidade.
Heitor
- Não senhor. Não vim para comprar quadros.
Florêncio
- E para que veio meu rapaz?
Heitor
- Me disseram que aqui eu acharia tintas e telas para pintar.
Florêncio
- Ah sim! Por que não desconfiei de antemão? É um jovem
pintor?
Heitor
- Não senhor, apenas estou procurando algo para me distrair.
Hoje de manhã aconteceu uma coisa muito estranha e
interessante, peguei um lápis e um papel e desenhei um
passarinho sem nunca ter me interessado pela prática. (Heitor
tirou o esboço do bolso que estava dobrado em duas partes e deu
para o velho senhor que lhe lembrava a figura de um mago). O
que acha?
Florêncio
- Muito bom meu rapaz. Tem certeza que nunca desenhou antes?
Nem quando era pequeno?
85
Heitor
- Provavelmente devo ter brincado de desenhar, mas duvido já
ter feito algo assim.
Florêncio
- Bom, então a única explicação que temos é que o senhor
acabou de aflorar um dom, como meu nome Florêncio aflora as
coisas por aqui. Que tipo de tinta e pincéis vai querer?
Heitor
- Não sei, o senhor é que é o pintor aqui, não é mesmo?
Florêncio sorriu;
- É verdade. Vou pegar e já volto. Sinta-se a vontade meu jovem.
Heitor
- Obrigado senhor.
Florêncio voltando minutos depois com algumas telas e pincéis;
- Demorei um pouco, pois estava procurando esses pincéis aqui.
(Florêncio mostra os pincéis de cabos compridos e redondos que
pareciam varinhas de condão).
Heitor
- E eles são especiais por algum motivo? Já sei! São para
iniciantes, vão me ajudar.
Florêncio
- Não, não, nada disso! Eu apenas gosto mais desses.
Heitor pegando os pincéis;
- Ah sim, entendi.
Florêncio
- E quais cores você vai querer?
86
Heitor pensativo;
- Hã... Vejamos.
Heitor comprou os pincéis, as telas, muitas tintas e mais
alguns itens que Florêncio lhe indicou, dando-lhe alguns toques
que só um profissional de uma família de pintores podia dar.
Tudo estava indo bem, Charlotte se divertia vendo o amigo se
divertindo, Heitor jamais imaginou que pudesse achar distração
naquele tipo de lugar, pensando nisso imaginou que Charlotte
diria alguma coisa como: A diversão está dentro de nós. Então
sorriu concordando com a sua própria frase. O caminho de volta
para casa foi inspirador, a estradinha de terra sempre meio
perigosa, permitiu que por alguns momentos Heitor desfrutasse
da imensa e linda paisagem, o sol já caía entre as alaranjadas
nuvens, e logo a noite se faria presente na mansão do penhasco.
Chegando à casa, a jovem Charlotte sentiu-se exausta
como nunca havia se sentido, e quase que dormindo de pé
retirou-se para repousar em seu quarto no sótão, a gata Neblina
não pensou duas vezes antes de ir atacar sua pequena vasilha de
leite fresquinho que Heitor havia acabado de botar, com os
bigodinhos brancos ela deliciava-se. Estranhamente a cabeça de
Heitor girava, girava... E acabava em Charlotte.
Meus pensamentos se tornam confusos, como se minha visão estivesse embaçada e eu não conseguisse ver, talvez as impurezas que ainda restam em meu coração não me deixem sentir tão claramente. Charlotte me iluminou como o sol ilumina a terra, aqueceu minha fria alma como o fogo aquece a lenha, e agora como se não bastasse ela me inspira, me inspira a viver, a ser eu mesmo, e sem nenhum tipo de dúvida eu mergulho em sua feliz loucura pela vontade de viver, o hoje, o agora e o amanhã.
HT
87
Após escrever suas poucas palavras, com a casa já em
silêncio total, Heitor pegou uma tela e todas as outras coisas que
havia comprado, e em seu quarto bem em frente a sua cama
pode armar o cavalete, e então sem mais pensamentos turvos
concentrou-se apenas no que queria fazer, enquanto esvaziava
sua mente enchia aquele imenso quadro branco de realidade
colorida. Não era bem uma paisagem, mas ele sentira vontade de
eternizar aquilo, era uma vontade estranha, mas não deixava de
ser interessante. Depois de uns quatro metros a frente da sua
cama, vinha a parede que fora pintada de um azul turquesa meio
fosco, mas o tempo já estava desbotando aquela bonita cor, os
poucos móveis eram coloniais em madeira escura, duas enormes
janelas davam vista para a imensidão azul, seus acabamentos
também em madeira ao redor delas faziam parecer quadros
pregados na parede que tinham vida e soavam um agradável som
da água do mar, quase que musical. As cortinas eram de um
tecido leve, branco e meio transparente, o balé dançante delas
era frequente mesmo que em movimentos pequenos, as velas
nos candelabros faziam avistar o belo lustre no alto que de tão
pesado não fazia um sequer balanço, e o silêncio quase que
melancólico daquele lugar isolado da terra fazia parecer que
Heitor só precisava daquele quarto e mais nada. Foi o que ele
pintara em seu quadro, todo aquele movimento silencioso e em
paz, a vista de suas janelas para o brilho da lua refletindo no até
então calmo mar, e enquanto terminava os últimos detalhes,
pensava que alguém dali há muitos anos poderia descobrir o
quadro em algum lugar esquecido e se perguntar se aquele
ambiente pintado ali existiu mesmo. Eram apenas janelas que
davam vista para outro lugar fora daquele quarto aconchegante e
antigo. Mas o que isso significaria? Que existe um mundo lá
fora? Que é apenas tomarmos a decisão de atravessarmos a
janela que estaremos livres? Estaremos onde quisermos? Heitor
sentia vontade de ver o resto da paisagem depois daquelas
janelas pintadas, ele olhava para o quadro agora pronto e via que
pintara uma grande barreira entre ele e a natureza lá fora. O que
88
vinha por trás da parede e o que as janelas mostravam era muito
maior, então pensou que se fosse ele observando aquele quadro
sentiria vontade de passar por aquelas janelas. O quadro
praticamente dizia: Eu quero ir, mas estou aqui dentro. Ele
simplesmente sorriu;
- Se é o que sinto, então fiz um bom trabalho!
Adormeceu, cansado quase que se deitou sobre Neblina
que era folgada o suficiente para dormir sempre na cama, e não
em uma grande almofada que ele havia reservado para ela ao
lado.
Na manhã seguinte, Heitor havia acordado cedo com
uma energia que nunca sentira antes, e Charlotte já estava a
passear pelo imenso quintal, melhor dizendo, a menina estava
em uma enorme pedra que ficava na beira do penhasco, de
braços abertos para o mar ela contemplava aquele dia de sol e
brisa fresca, quando se virou avistou Heitor arrumando seu
cavalete na varanda de frente para o mar:
Charlotte gritou;
- Heitor! Venha, eu estava te esperando!
Heitor pareceu não ter escutado, pois estava um pouco
longe de onde Charlotte estava, concentrado em sua arrumação
para pintar, ele tomava goles de sua caneca de café quente bem
quente não tão preocupado em degustar toda aquela cafeína
como gostava de fazer.
Charlotte continuou gritando:
- Heitoorrrrrr! Vamos! Não finja que não está me ouvindo só
porque tem medo de altura.
Heitor continuou não olhando, parecia querer ignorar
aquele risco, ou realmente estava muito distraído com seus
afazeres.
89
Charlotte reunindo mais forças e gritando mais forte;
- Heeeeeeeeiiiiiiiiitttooooooorrrrrrrrrrrrrrrrr!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Ele finalmente olhou virando o pescoço rapidamente.
Impossível não escutar aquele grito estridente.
Heitor
- Charlotte?! (Balançou a cabeça negativamente e estalou a
boca, mas manteve-se calmo). Meu Deus, que loucura! (Ele
sorriu animadamente ainda balançando a cabeça negativamente).
Que loucura! (Voltou a acabar o que estava fazendo).
Após separar os pincéis, as tintas e deixar a tela pronta,
Heitor voltou a olhar para a pedra onde estava Charlotte,
respirou fundo e em passos determinados seguiu até lá. Com os
pés descalços sentiu a pedra que armazenou o pouco calor que o
sol transmitia, subiu cuidadosamente, e quando chegou ao topo
permaneceu agachado de cócoras como ainda com medo dos
trinta metros de penhasco dos quais ele ainda temia.
Charlotte ao lado de Heitor;
- Já foi um grande passo ter vindo até aqui. Não acha?
Heitor olhou para baixo e soltou um baixo gemido sofrido;
- Hummrrrrr!
Charlotte sorriu;
- Vamos Heitor, não precisa temer é só se concentrar. A
concentração é a base de tudo na vida, pegue um ponto fixo e se
concentre nele.
Heitor olhou para um lado, olhou para o outro, para
cima, e retornou a olhar para baixo, respirou fundo e de forma
tranquila, olhando para frente seus olhos pararam.
90
Charlotte falando calmamente;
- É isso aí. Agora controle sua respiração, poupe cada célula do
seu corpo antes de começar a se levantar. Você ainda está
tocando a pedra com as suas mãos. Levante seu corpo sem tirar
as mãos da pedra. Não se desconcentre, não permita que o
desequilíbrio o atinja, faça o que puder para ir até o fim, quando
chegarmos lá, a sensação será indescritível, pense nisso. (Heitor
seguia as instruções de Charlotte). Tire as mãos da pedra no
momento em que se sentir confiante, e só volte a tocá-la se
extremamente necessário.
Heitor tirou o dedo mindinho primeiro, receoso, talvez
medroso, pois a pedra era alta e bem na ponta do penhasco, as
consequências poderiam ser fatais, mas ele havia tomado uma
decisão, quando cheio de si caminhou até lá. E então suas duas
mãos se desconectaram da pedra, ele sentiu como se linhas
tivessem arrebentado, tentou não se desconcentrar por mais
descontrolada que a sua respiração estivesse, parou naquela
posição.
Charlotte com a voz ainda aveludada
- Tudo bem Heitor, está tudo bem. Continue concentrado.
Heitor deu uma longa piscadela, o que o fez perder seu
ponto fixo, agora estava perdido, olhou para as mãos, para a
pedra e para baixo, o desequilíbrio se instalou em suas
terminações nervosas e ele voltou a tocar na pedra. Manteve-se
parado e agachado do ponto de início.
Charlotte
- Não há derrotas sem falhas Heitor, e não há problemas em
falhar se você parar para pensar o que fez de errado,
reconhecendo o ponto, avalie-o e não desista. Use seus erros
para te deixar ainda mais forte e esperto, mas só aprenderá com
eles se quiser enxergá-los. Nenhum de nós é tão bom quanto nos
91
julgamos, se estamos aqui independentemente do jeito que
estamos, é porque faltou aprendermos alguma coisa.
Heitor
- Eu vou conseguir.
Heitor olhou para as mãos apoiadas na pedra, buscou
novamente um ponto fixo e concentrou-se, como se estivesse
marcando o compasso de uma música, harmonizou sua
respiração com os batimentos do coração, estava concentrado,
aos poucos foi levantando seu corpo, por um momento parou e
desconectou suas mãos da pedra.
Charlotte
- Não tenha pressa Heitor, confie, confie. A confiança é algo que
se conquista, neste momento precisa confiar em si mesmo e na
sua intuição.
Havia perseverança naquele olhar tão cativante, seu
corpo foi ficando ereto, e à medida que seus olhos ganhavam
aqueles novos territórios de visão panorâmica, o vento batia em
seu rosto esvoaçando seus cabelos e a adrenalina tomava conta
do seu corpo. Finalmente, totalmente de pé com os braços
abertos como se fosse voar, Heitor encheu-se de entusiasmo e
seu sorriso nunca havia sido tão cheio de dentes.
Heitor gritando de felicidade;
- Haaaaa!!!Uhuuuuuuuuu!!! É isso aííí!
Charlotte sorrindo falou com ela mesma;
- Acabei de transpassar seus muros de concreto frio Heitor.
Após ficar ali por um tempo, Heitor desceu daquela
pedra pontiaguda e foi terminar o seu café que já não estava tão
quente, sentado no banco alto para pintar ele apreciava a vista
92
quieto, meio estático. Não era mais estranho o que ele estava
sentindo, talvez agora entendesse o sentido de fazer alguma
coisa que tenha vontade sem deixar o medo reprimir-lhe. A
sensação foi indescritível como Charlotte havia dito. Uma coisa
tão simples. Ele pensava.
Charlotte
- Foi tão simples e importante como aprender a beber água com
copo de vidro usando as duas mãos quando se tem quatro anos,
o importante é não deixar o copo cair, para isso é preciso usar as
duas mãos porque ainda são pequenas para agirem
independentes neste caso. Agora pode parecer meio tolo o que
fizemos. Subir em uma pedra, tentar ficar de pé e abrir os
braços, mas no futuro você entenderá que são os pequenos e
calmos passos que nos ajudam a chegarmos onde queremos, sem
chegarmos lá na frente e não encontrarmos sentido no que
estaremos fazendo.
Os dedos de Heitor firmaram-se no pincel e logo
pinceladas rabiscaram aquela vazia tela branca. O que ele estaria
pintando agora? Seria mais uma paisagem? Algo que vinha de
dentro talvez. Ele não conseguia desgrudar os olhos famintos
daquela imagem que se formava diante dele. E um belo vestido a
voar com o vento deu movimento, de costas a bela senhorita
escondia a sua beleza, os fios de cabelos negros faziam-se sentir
nas mãos tão leves de Heitor, eles voavam e voavam... O rosto
de perfil mal dava para ser percebido com tamanho mistério que
a dama pintada fazia. O jovem pintor quase que pode sentir o
leve perfume de flores que seus sentimentos produziam, a
postura era clássica, feminina e delicada, a dama fora pintada
exatamente ali na beira do penhasco, como se estivesse
caminhando rumo ao horizonte onde dormia o sol para repousar
seu esguio corpo ao lado da luz.
93
O dia passou como as estrelas cadentes passam pelo
planeta, tão rápido que Heitor nem reparou que precisava
acender as velas, seus olhos inclusive habituaram-se ao
escurecer daquele final de tarde no jardim que conservava os cri-
cris dos grilos, permitindo que mesmo no escuro ele enxergasse
tudo ao seu redor. Deitado na grama olhando para as estrelas ele
despertou a curiosidade de Charlotte que o havia avistado da
parede de vidro da sala. Esta se aproximou silenciosamente e
deitou-se ao lado do rapaz sem perguntas, sem querer interferir o
que quer que fosse que se passasse por sua cabeça, ela apenas
deitou ao seu lado.
Heitor
- O céu é azul assim como o mar, ele tem estrelas como o mar, é
imenso como o mar, profundo como o mar, é maravilhoso como
o mar e também assusta como o mar. Pode ser lindo e
assustador, como algo que nós conhecemos, mas não
conhecemos totalmente, sem saber o que vem depois, ficamos
parados, às vezes recuamos, mas não devemos, não devemos
recuar nem ficar parados. (Charlotte vira-se para o lado de
Heitor e olha para o rosto do rapaz que era iluminado pelo
branco reluzente da lua, e ele continuava com os olhos grudados
no teto estrelado). Não precisamos sentir medo de avançar, o
avanço é sempre um progresso e o progresso sempre será uma
coisa boa.
Charlotte
- Acho que estou entendendo.
Heitor
- Mesmo às vezes quando avançamos por um caminho que não
sabemos ao certo onde pode dar, ou quando nossa única saída é
seguir por um túnel escuro, até mesmo quando já estamos na
estrada que pensávamos ser a mais propícia, e no meio do
caminho descobrimos que foi um engano. Hoje descobri que
94
quando passamos por alguma situação difícil é porque
provavelmente faltou aprendermos detalhes, por isso não
devemos recuar nunca, por mais escuro e nebuloso que seja o
caminho, sempre haverá uma luz no fim, e ela crescerá cada vez
mais se não desistirmos, mesmo quando os olhos não a
enxergam.
Charlotte não conseguia parar de olhar para Heitor, com
aquela luz cintilante que tocava sua branca pele e seus
amendoados olhos em contraste com seus cabelos negros, as
palavras do rapaz a enfeitiçavam, e depois de alguns segundos
somente ouvindo os cri-cris dos grilos, os pensamentos de
Heitor se faziam ouvir.
Heitor
- Eu olho para esse céu e sinto vontade de falar com as estrelas,
e elas podem me ouvir, até me respondem. Mas eu queria poder
ir além delas, ver depois dessa camada de pontinhos brilhantes,
aqui deitado sinto como se estivesse colocando a mão dentro de
uma caixinha de surpresas sem saber o que vai sair, a
expectativa quase se torna uma ansiedade.
Charlotte
- A ansiedade anula a perfeição.
Heitor
- O que seria de nós sem toda essa perfeição? Sem a noite e o
dia? Sem o sol e a lua?
E sem encontrar respostas os dois permaneceram ali,
ainda que só por alguns minutos. Já em seu quarto Heitor
preparava-se para dormir, a gata Neblina mal acostumada não
deixara de dormir na cama, às vezes quando Heitor acordava no
meio da noite para ir ao banheiro ou tomar um pouco de água,
pegava delicadamente a gatinha e a colocava em sua grande e
95
aconchegante almofada, mas a gata esperta e luxuosa retornava a
subir na cama e acomodar-se nos inúmeros travesseiros que
rodeavam Heitor. Como se alguém tivesse balançado uma
varinha mágica o tempo começou a mudar, ventos velozes
atingiram a casa trazendo nuvens pesadas de água, as portas
frouxas não paravam de bater, Heitor fechou as janelas e
acomodou-se em sua cama, Neblina sonolenta fechava e abria os
olhinhos amarelados lentamente e sua pequena língua rosada
mostrava-se de minuto em minuto.
Heitor
- Neblina, não vá dormir antes de eu ler o diário da Charlotte.
E ao dizer o nome, como se atendesse a um
chamado, Charlotte surgiu apressada e aflita. No sótão o barulho
que o vento fazia como um zumbido sempre fora mais intenso e
assustador, a corajosa menina agora disfarçava seu temor.
Charlotte
- Vocês iam ler o meu diário sem mim? Mas que disparate!
E quando uma forte chuva com grossos pingos
d’água começou a molhar o vidro das imensas janelas,
sutilmente Charlotte repousou seu corpo na cama cobrindo os
frios pés que sempre andavam descalços pelo chão de madeira,
Neblina ficara entre os dois e Heitor com a voz branda começara
a leitura.
Ontem quando acordei pensei: É um dia comum. Daqueles que você não espera nada demais acontecer sabe? É quando você apenas quer começar a ler um livro, mesmo sabendo que a probabilidade de terminá-lo é pequena, ou simplesmente ficar parada em algum canto pensando,
Diário de Charlotte,
8 de abril de 1880
96
pensando... Em silêncio, e aí tudo em você se acalma e seu corpo parece ficar mais leve, como espumas flutuantes no mar que se deixam levar pelo vento. Eu estava em um clima meio assim, foi quando papai apareceu com aquele short que deixa as finas e peludas pernas dele a amostra, trajando camiseta e finalmente usando as meias que lhe dei de presente com uma espécie de sapato esportivo. Foi demais para mim, caí na gargalhada! Bem humorado como sempre, papai não hesitou em rir comigo de si mesmo, afinal ele sabia que aquele short afinava ainda mais suas longas pernas, fazendo suas canelas parecerem cabos de vassouras, e seu corpo magro e esguio ficava em evidência com a camiseta, sem comentários sobre os pés grandes que me davam uma sensação de estar frente a um gigante desnutrido, mas tentei superar essa impressão e depois de ficar com meu maxilar doendo de tanto rir, fiquei olhando para qualquer outra coisa para não cair na gargalhada novamente. Tentativa falha, pois a imagem vinha em minha mente e eu não consegui parar de rir. Depois de muito tempo entendi que ele estava me chamando para fazermos exercícios físicos. Papai querendo fazer exercícios? Acho que invertemos o papel, mas como ele sempre me acompanha em minhas aventuras, até mesmo quando desconfia delas, resolvi preencher esse espaço vazio da minha semana apoiando sua iniciativa. Foi quando também pus uma roupa que me deixava engraçada, mas nada nos incomoda quando nos divertimos. Fomos para o jardim.
Charlotte
- Como vamos começar papai?
Lenard esticando os braços;
- Primeiro temos que nos alongar, dizem que o alongamento é
primordial.
Charlotte copiando o pai nos movimentos;
- Está bem.
Alguns minutos depois...
97
Charlotte
- Qual será o primeiro exercício?
Lenard
- É melhor começarmos com uma leve corrida para aquecer,
depois veremos o que fazer.
Três minutos depois...
Charlotte e Lenard ainda correndo em volta da mansão;
- Papai você está bem?
Lenard ofegante como se seus pulmões fossem sair pulando
pela boca;
- Sim! Sim! Não, se, pre-o-cu-pe querida, eu, estou, bem!
Charlotte
- Tem certeza papai? Se estiver cansado podemos parar e...
Lenard fez um sinal positivo com a mão interrompendo
Charlotte e sorriu como se tudo estivesse bem;
- Bem! Eu estou, bem!
Mais dois minutos depois...
Charlotte e Lenard se sentam na escada;
- Quer que eu vá buscar um copo d’água papai? (Lenard sem
conseguir falar gesticulou aprovando a ideia).
Alguns segundos depois...
Charlotte
- Aqui está sua água papai, beba devagar.
98
Lenard
- Pode deixar querida, já me estabilizei.
Charlotte
- Ah que bom! Mas papai, o senhor não tem mais idade para se
aventurar a fazer essas coisas.
Lenard riu;
- Charlotte querida, confesso que estou um pouquinho fora de
forma...
Charlotte o interrompe;
- Muito!
Lenard contrariado;
- Está bem! Está bem! Confesso que estou “fora de forma”, mas
não sou um velho sedentário. Você concorda?
Charlotte dizendo com muita naturalidade;
- Não.
Lenard surpreso;
- Como não?
Charlotte
- Ah papai! O senhor passa metade do dia naquela sua poltrona
na sala lendo livros, e a outra metade passa na poltrona aqui da
varanda fazendo a mesma coisa, agora vem me perguntar se não
é sedentário? Não sei como o senhor não é um bolo fofo. (Os
dois começam a rir).
Lenard
- É verdade querida, você está certa. Mas nunca é tarde para se
tentar melhorar, não é mesmo?
99
Charlotte
- Depende da sua força de vontade.
Lenard
- Sim! Sim! Sim! Por isso nós repetiremos tudo amanhã.
Não durou muito e papai estava exausto quase se afogando em seu copo d’água, hoje nem sequer tocou no assunto, fingiu que esqueceu, mas eu deixei passar. Depois de toda essa tentativa frustrada de fazer exercícios o que mais valeu apena foi passar os minutos com meu pai, ele é engraçado, sábio e às vezes consegue me fazer acreditar que é um pouquinho chato, mas só um pouco, coisas de pai. Viver aqui, apenas eu e ele, parece entediante, pode até parecer anormal, mas aprendemos muito um com o outro, e juntos aprendemos com a natureza. É como viver internamente olhando para fora, observando a vida que nos circunda, e a arte da observação é uma prática que requer paciência. Abdicamos de muitas coisas por isso, coisas que outras pessoas julgam incrivelmente essenciais para serem felizes. Mas o que é essencial para a felicidade reinar em qualquer ambiente, independente das dificuldades da vida? Minha humilde resposta: Conciliação. Conciliar toda a sua vida olhando para dentro de si e se conhecendo melhor, reparando qual é o momento de ouvir e o de ser ouvido, são dicas bobas que facilitam boa parte do caminho. Mas a felicidade nunca será algo permanente e sim momentânea, não à cace como se ela fosse um animal em extinção, descubra o amor que está dentro de você pelas coisas simples e saboreie, como acordar pela manhã e se espreguiçar, isso sim é uma boa sensação. Bom, correr em volta da mansão por mais de três minutos acho difícil de acontecer de novo, mas acho que as caminhadas que damos de vez em quando e os alongamentos já estão de bom tamanho. Hoje voltei para meu estado de espumas flutuantes, mas tenho certeza que logo-logo se eu não encontrar alguma coisa para fazer, papai fará isso por mim. Fico por aqui.
100
Heitor fechou o diário, Charlotte e a gata Neblina já
dormiam, ele não pode deixar de soltar um leve sorriso. No dia
seguinte, antes de reparar que Charlotte e Neblina não estavam
na cama, ele se espreguiçou lentamente. A chuva forte da noite
passada fora passageira, mas a grama ficou ensopada, as nuvens
cinzentas retornaram como um filtro não escondendo o sol
totalmente, assim deixando o ambiente agradável e com uma
leve brisa gelada. Após se espreguiçar e esticar o corpo de tudo
quanto é forma, Heitor ficou por uns cinco minutos deitado,
olhando para o teto, parecia tentar entender alguma coisa, seus
pensamentos iam muito longe, ou não, ou ele estava
simplesmente esperando seu corpo acordar totalmente.
Charlote estava sentada no sofá da sala olhando para o
jardim, Neblina se equilibrava entre as prateleiras da estante, ela
subia e descia com suas patinhas fofas e arredondadas bem
devagar, os passos de Heitor descendo as escadas avisaram sua
presença.
Heitor passando pela sala;
- Bom dia!
Charlotte
- Bom dia Heitor!
Neblina descendo da estante e seguindo Heitor;
- Miau...
Heitor
- Então, o que vamos fazer hoje?
Charlotte levantando-se calmamente do sofá e indo até a
cozinha, para onde Heitor estava indo;
- Não sei. Por que não me diz você?
101
Heitor pondo o leite para a gata;
- Humm... Choveu muito essa noite, e ainda parece que vai cair
um pé d’água, só deve ter dado uma trégua. (Heitor põe a
vasilha de leite no chão e Neblina à ataca).
Charlotte
- Não sei não, o sol até ameaçou aparecer.
Heitor preparando seu café quente bem quente;
- Não há muito o que fazer quando está chovendo.
Charlotte
- Às vezes papai e eu jogávamos xadrez, dama, jogos desse tipo.
Heitor
- Meu pai me forçava a jogar uns jogos que só ele ganhava.
(Charlotte ri). Não gosto dessas lembranças.
Charlotte
- Então não lembre.
Heitor
- Tenho que cortar os galhos de algumas plantas.
Neblina no pé de Heitor agarrava uma de suas patinhas no
pijama com as afiadas unhas e puxava;
- Miau...
Heitor dando um de seus biscoitos amanteigados para a gata;
- Você só se lembra de mim quando quer alguma coisa, não é?
Charlotte
- Ah! Isso não é verdade, ela está sempre conosco.
102
Tranquilamente Heitor acabou de tomar seu café quente
bem quente, e depois de se trocar, apenas com a tesoura para
cortar os galhos dirigiu-se para o jardim outrora morto, agora
cheio de vida.
Charlotte acompanhava Heitor assim como Neblina;
- Eu gosto quando o jardim fica molhado. Já reparou que o
cheiro da clorofila sempre fica mais evidente?
Heitor não respondeu, pois aquela pergunta era só mais
uma pergunta como uma frase qualquer apenas para despertar
seu olfato e ele poder sentir o cheiro do verde. Como chovera
muito a maré havia subido, dava para ver a ondulação vindo
cheia do horizonte e quebrando oca perto das pedras, o som era
estrondoso, mas nada que assustasse tanto. Heitor começou a
cortar alguns galhos e Charlotte se distraía no jardim com a gata,
o clima estava frio, as pontas dos dedos das mãos chegavam a
ficar dormentes, assim como a ponta do nariz, mas Charlotte não
se importava e achou engraçado quando reparou pelo reflexo na
grande parede de vidro da sala que suas bochechas estavam mais
rosadas que o normal, Neblina a acompanhava em sua alegria. O
sol sob os filtros de nuvens desaparecera e agora dava para ver
uma nuvem cinza escura que fazia um forte chuvisco cair no
oceano e não estava muito longe dali.
Charlotte
- Ande logo Heitor, daqui a pouco vai cair outra chuva.
E não demorou muito, Heitor ouviu o barulho da forte
chuva se aproximando, olhou para trás e quando deu por si a
nuvem de massa cinzenta estava bem encima da sua cabeça,
despejando toda a sua água fria que parecia energizar ainda mais
a menina Charlotte, que saltitava de felicidade como uma
criança que acabara de ganhar um brinquedo novo, assim
fazendo o extenso laço que havia nas costas de seu vestido
103
balançar, a gata Neblina que mostrava adorar água desesperada
pulava junto com Charlotte a fim de pegar a bendita fita que
para ela parecia ter vida. Heitor apressou-se para sair dali, e sem
ter terminado o que estava fazendo, pôs-se a correr para a
varanda a fim de se proteger da chuva.
Charlotte saltitando debaixo da chuva;
- Ah Heitor, não me venha dizer que tem medo de raios, pois não
vi nenhum caindo.
Heitor ficando parado e olhando com uma cara estranha;
- O que está fazendo ai? Vai pegar um resfriado.
Charlotte
- Depois tomamos um chá! Venha! Está perdendo a melhor parte
da diversão.
Heitor virou-se de costas e deu três passos para frente
como se fosse entrar na casa, mas ele parou por um impacto
como se uma parede imaginária o tivesse impedido de continuar,
virou-se lentamente, e depois de uma longa olhada para a cena à
sua frente, retornou sem ansiedade para seu ponto de partida,
ficou ali, olhando a gata, e a menina Charlotte que não parava de
saltitar, correr e sorrir. De repente tudo estava em câmera lenta,
em absoluto silêncio em sua mente, e quase sinfonicamente ele
via as gotas de chuva estalarem de forma cristalina no louco balé
da gata Neblina e de Charlotte que com seus longos braços fazia
movimentos indecifráveis, mas que tinha uma beleza de se ver, o
sorriso branco, bonito e sapeca conseguia despertar alegria em
qualquer coração partido, fixar o olhar nos olhos negros dela era
mergulhar em um oceano calmo e escuro, nadar cada vez mais
fundo sem conseguir parar, sem ver o que vem pela frente, e
quando se está tão fundo em um oceano, você começa a fazer
parte dele. Heitor abriu um sorriso sem ele mesmo perceber,
ainda tinha dúvidas em relação a água fria, ele arregaçou as
104
mangas da blusa, pôs o braço para fora da varanda deixando
assim a água tocar sua pálida pele, e retirou o braço
imediatamente.
Heitor
- Está muito fria.
Charlotte
- Misture-se a ela e você nem perceberá mais isso. Venha Heitor,
não fique aí parado! Sinta o poder que a natureza tem de nos
purificar.
Heitor respirou fundo, meio indeciso e foi, jogou-se
debaixo de toda aquela água fria... Ficou parado, molhado,
olhou para cima, para Neblina e retornou a olhar para cima.
Heitor
- Hã?!
Charlotte chegou perto do rosto de Heitor e seus lábios rosados
sussurraram perto de seu ouvido;
- Sinta Heitor.
A menina ficou parada do lado dele, abriu os braços para
o céu e fechou os olhos, Heitor fez a mesma coisa, e aos poucos
foi se misturando com os pingos de água que caíam por sua pele
e escorregavam pelo seu corpo.
Charlotte
- Não é bom? A água é fonte de energia, quando ela bate na sua
pele cria uma vibração com o seu corpo que já tem sua própria
energia e assim recarrega sua alma.
A respiração de Heitor estava um pouco pesada e
parecera que todo o seu corpo começara a trabalhar mil vezes
105
mais rápido, os pingos de chuva tocavam sua pele, e era estranha
a sensação que ele descobria naquele momento, podia ser uma
sensação de liberdade, de aproximação do céu, ou de Deus. Era
boa, e isso bastava para acalmar seu espírito. E como um velho
ditado diz: Quem está na chuva é para se molhar. Heitor não
pensou duas vezes quando resolvera transformar seu bonito
jardim em um imaginário parque de diversões, e assim pode
voltar a sua infância e relembrar o antigo sentimento que lhe faz
sentir que é capaz de fazer qualquer coisa e tudo dará certo,
como subir um muro e andar se equilibrando nele, ou escalar
todas as portas de casa com as pernas. Heitor, Charlotte e
Neblina divertiam-se sujos com a lama do jardim, brincando de
escorregar na grama, dando cambalhotas e estrelinhas. Nada é
tão maravilhoso como ser criança e viver a infância da maneira
mais simples que existe, transformar um pneu em um acento de
balanço e o balanço em algo que nos faz voar como pássaros, os
lençóis da cama em refinados vestidos ou a capa de um super
Herói, sob a cama um esconderijo secreto onde os monstros e o
bicho papão não conseguem entrar, e se no meio da noite,
quando todos estiverem dormindo for detectada alguma
presença estranha, o cobertor vira uma supercapa de
invisibilidade que faz desaparecer quem estiver sob ela. E assim
o doce e puro prazer da alma era redescoberto pelo amigo da
menina Charlotte.
No começo da tarde Heitor esquentava a água para
banhar a gata Neblina, que agora depois de toda a euforia ter
passado tremia suas finas perninhas com o pelo lambido pela
lama, e os bigodinhos pesados para baixo também não paravam
de tremer.
Heitor colocando a água quente na banheira para banhar a gata;
- Está vendo? Eu disse que poderia pegar um resfriado.
106
Charlotte já de banho tomado entrando no banheiro;
- Ah Heitor, não chame atenção da Neblina, pois você também
se divertiu muito, não foi?
Heitor
- Tudo bem! Não vou ficar aqui resmungando com você
Neblina, admito que nos divertimos muito, mas assim que
acabar de te lavar vou preparar um chá bem quente.
Charlotte
- Essa ideia foi minha.
Neblina correu para dentro da banheira e se jogou;
- Miau.
Charlotte
- Ouviu? Ela concorda comigo. Você é minha testemunha
Neblina.
Neblina mais confortável dentro da banheira;
- Miau.
Heitor ensaboando a gata;
- Agora está gostando não é? Realmente, tudo neste lugar é
diferente, melhor dizendo, se torna diferente.
Charlotte
- Assim como você meu caro Heitor.
Após lavar Neblina Heitor secava com uma enorme
toalha a gata que lambia delicadamente debaixo de suas
patinhas, o pelo grande e fofo precisava ser esfregado com
insistência e penteado com paciência, pois senão,
definitivamente ela viraria uma bola de pelos, e o felino após se
deixar ser banhado, secado e escovado empinou seu frio
107
narizinho rosa e foi aconchegar-se perto da lareira da sala
conservadora, assim como Charlotte. Heitor aprontou-se e logo
foi para a cozinha, procurando alguma espécie de chá, reparou
que sua dispensa estava praticamente vazia, e os mantimentos
que sobraram não eram muito saudáveis, Heitor ficou parado
olhando para toda aquela comida se perguntando se tinha sido
ele mesmo que havia comprado tanta gordura, Charlotte que
descera até a cozinha para ajudá-lo não hesitou em responder-
lhe.
Charlotte
- Mas claro que foi você, eu e papai nunca comemos esse tipo de
comida. Se há uma coisa que descobrimos, é como folhas,
verduras e cereais podem ser preparados de uma maneira
saborosa. Assim estamos cuidando do nosso corpo e
preservando nossa vida, para que mais tarde nossa indisciplina
alimentar não nos cause um mal maior ou até mesmo nos leve a
morte, pois se isso acontecesse nós seríamos responsáveis pelas
consequências de uma vida que só existiu baseada no prazer que
as coisas podem nos oferecer, uma delas, a alimentação incorreta
cheia de carnes, gorduras e bebidas alcoólicas.
Heitor meio distraído;
- Eu só compro café?! Trinta pacotes de café e nenhum de chá?!
Isso não é nada bom.
Charlotte
- Pois é, eu não sei como é que você consegue ser assim...
(Charlotte olhou de cima para baixo para Heitor meio sem graça
e disfarçou). Desse jeito, com aparência tão saudável, mesmo se
alimentando tão mal.
Heitor mostrou-se a vontade com um agradável sorriso;
- Acho que vou ter que ir até a cidade fazer umas compras.
108
Charlotte
- Vê se compra algo mais saudável para comer, pois eu e
Neblina não aguentamos mais vê-lo mergulhado no café e na
gordura.
Sem mais esperar, o jovem Heitor ainda viciado em café
pôs-se a caminho da garagem, antes, ao sair de casa, reparara
que um leve chuvisco conservava a grama ensopada da forte
chuva que havia caído, mas isso não o impediria de ir até à
cidade. Charlotte fez questão de ir com ele, ela não perdia uma
oportunidade de ir até a pequena cidadezinha ver os conhecidos.
Heitor ligou o para-brisa e um pouco ansioso por causa do clima
inconstante, saiu pelos enormes portões de ferro da mansão a
caminho do mercado. Aquela tarde fria no alto do penhasco
conservava suas nuvens densas de chuva que faziam às três
horas da tarde parecer o começo da noite, pedras e buracos na
velha estrada de terra a deixavam ainda menos confortável. O
rapaz não ouvia nada além do chuvisco sendo limpo pelo para-
brisa que parecia arranhar o vidro do carro, e as estrondosas
ondas que batiam impiedosamente nas pedras, resvalando seus
espirros que subiam alto e desciam rápidos e pesados que davam
para se ouvir quando voltavam a cair no mar, logo em segundos
um novo estrondo se fazia repetindo o ciclo.
Charlotte pensando melhor;
- Não devíamos ter saído de casa, a névoa está cobrindo boa
parte da estrada.
Ela tinha razão, a visibilidade era pouca, o chato
chuvisco não parava e a terra estava escorregadia, mas Heitor
insistiu em cumprir seu objetivo, ele estava empolgado demais
em começar uma nova dieta para temer tudo aquilo,
simplesmente continuou dirigindo ansiosamente.
109
Heitor pensava;
- Eu já conheço a estrada mesmo, não vou perder tempo.
Os minutos em silêncio não o amedrontavam, mas de
repente, Heitor piscou os olhos junto com o ponteiro que
marcava os segundos do seu relógio, alguma coisa grande
atravessara o caminho, podia ser um animal ou até mesmo uma
pessoa, não se sabia, os punhos de Heitor agarraram tão fortes o
volante que ele nem conseguia sentir o resto do seu corpo
agindo independente como se respondessem a um reflexo, seus
pés pisaram fundo no pedal do freio, os pneus do carro
deslizaram sobre a lama fazendo uma espécie de zumbido que
lembrava a um grito que podia ser confundido com o de
Charlotte, seus corações pareciam explodir dentro de seus
peitos, foi quando tudo escureceu... Um quase eterno silêncio se
alongou e prolongou aquele momento, nem o arranhar do para-
brisa, nem o estrondoso som das ondas que batiam nas rochas,
nem os pensamentos de Heitor e Charlotte, nenhum som. O
silêncio despertara uma agonia naquele ambiente fazendo com
que todo o resto do mundo se calasse. E assim, como se
estivesse muito longe, o céu se tornava presente, o vento soava
levemente como um pequeno sopro levando anjos pelo ar a
caminho do paraíso, o tempo estava como em câmera lenta sem
deixar claro o que acabara de acontecer. Aos poucos o bater das
ondas começavam a surgir, a névoa que até então era somente
uma cortina suave e leve, agora trazia o frio e o suspense de
como tudo se apresentava naquele momento. O que acontecera?
Tudo acaba assim, tão de repente? A vida passa em fração de
segundos e termina sem deixar recado? Quantas coisas passam
no pensamento quando um fato desses nos chega sem avisar?
Charlotte naquele momento sentiu-se enfraquecida
lembrando-se do susto que a deixou inerte por uns tempos
naquela mansão após a perda de direção do seu pai, quando ela e
Lenard desciam pela mesma estrada há um tempo não muito
distante de um passado meio que esquecido na lembrança.
110
Heitor percebeu que estava de olhos abertos, mas não
conseguia enxergar, em fração de segundos, logo depois da sua
percepção, bolinhas coloridas faziam sua pupila formigar, era
estranho, pois ele não sentia seu corpo, foi quando sua visão
voltou e ele pode visar seus punhos que ainda seguravam forte o
volante. – Que alivio! Pensou ele por estar enxergando. Então
olhou para suas pernas, tentou mexê-las, e com sucesso obteve
resultado, sentiu-se ainda mais aliviado com uma sensação de
um milhão de formigas lhe subindo pelas pernas, ele sorriu
desesperadamente.
Charlotte
- Você está bem Heitor?
Heitor rindo;
- Eu não morri! Estou vivo!
Charlotte ainda fraca para dar algum sermão;
- Por que está rindo? Nós quase morremos.
Heitor se apalpando;
- Posso ver, falar e estou sentindo minhas pernas. Eu estou bem.
(Heitor respira aliviado). Ufa!
Charlotte um pouco mal humorada cruzando os braços;
- Eu também estou, obrigada por perguntar!
Após a euforia da percepção de estar vivo e de ter saído
ileso do grave deslizamento, Heitor foi se acalmando, mesmo
quando a cena voltava em sua mente fazendo-o se perguntar
como ele ainda estava ali, pois o carro fora parar na beira da
estrada e por pouco não despencou de lá de cima caindo nas
rochas do mar. O tempo continuava ruim, não tão ruim como
antes do quase acidente, Heitor decidiu que não iria deixar de ir
até a cidade, meio que tremendo, sem saber se era por causa do
111
frio ou do receio que se instalara em seu corpo, ele continuou o
caminho, Charlotte estranhamente não encontrava forças para
quebrar aquele velho silêncio que a fazia esquecer a sua própria
voz, permaneceu quieta com seus mudos pensamentos, assim
como Heitor que agora ficara sério pensando na gravidade do
acontecido.
Se a cidade já não era muito movimentada em dias de
sol, em dias de chuva mais parecia uma cidade fantasma jogada
as traças. Heitor ainda abalado com a lembrança do som dos
pneus do carro arrastando na terra molhada estacionou o carro
com todo cuidado, entrou no pequeno mercado e concentrou-se
em fazer o que fora fazer. Charlotte resolvera ficar no carro, pois
muito estranhamente não sentia forças para sequer mexer seus
finos e longos braços. A volta para a mansão fora tranquila, pois
a chuva pareceu dar uma trégua e as nebulosas se afastavam
lentamente. Já na casa, Heitor preparou o chá, a gata neblina
com seu super olfato aproximou-se indiscretamente da xícara e
queimou a sensível linguinha áspera ao tentar provar o chá
quente bem quente de Heitor, frustrada miou e voltou para o
lugar onde descansava da sua entediante vida felina.
Heitor
- Está vendo?! Isso é para você se convencer de que é apenas
uma gata e não sair por aí achando que pode fazer o que quiser.
A gata com seus pelos cinzentos, já acomodada com suas
patinhas cruzadas apoiando sua cabeça arredondada, não se
preocupou em mostrar alguma reação, Neblina apenas desviou o
olhar de Heitor mostrando desprezo pelo o que o moço falava, e
como quem estava sonolenta virou a pequena cara achatada para
o lado.
Heitor
- Pode fingir que não está me escutando, pois eu sei que está.
Hoje na estrada o carro derrapou, levei um susto daqueles sabe?
112
E Heitor continuou a confabular com a gata
desinteressada por um longo tempo, ele não conseguia parar de
falar simplesmente, por mais que soubesse que ninguém o
responderia, não estava se importando, continuava a falar sobre
sua infância e seus medos de menino, a grande tristeza do
terrível acidente que levou a vida de seus pais, a consciência de
que sempre há um motivo benéfico até para as mais terríveis
coisas que passamos lhe trouxe certo conforto ao entrar na barca
do terror de sua vida. Um suspiro de alívio ele deu, e então
percebeu que a folgada gata estava emitindo um ruído estranho,
um leve ronronar e os olhinhos fechados faziam parecer que ela
dormia, Heitor se aproximou, e o ruído fez-se ouvir de novo.
Heitor disse baixinho;
- Você está roncando? (Neblina repetiu o som). Mas eu nunca
ouvi um animal roncar! (E mais uma vez ela roncou). Só podia
ser você mesma.
No meio da tarde Heitor andava lentamente de um lado
para o outro, dando-se a desculpa de que precisava pegar algo no
escritório e aí voltava para seu quarto, então ia até a cozinha
tomar um copo d’água mesmo sem sentir sede ou simplesmente
abria a porta da geladeira para pensar, novamente voltava para o
quarto. Ele repetiu suas idas e vindas por inúmeras vezes, tantas
que não dava para se contar. Em alguns momentos parava e
olhava para o nada, que podia ser um tapete ou um quadro
qualquer, parecia estar sentindo falta de alguma coisa, até que
aparentou desistir de procurar o que tanto lhe torturava a
ausência. Havia um pequeno sofá ao lado da grande parede de
vidro, mas Heitor resolveu ignorá-lo, com suas roupas
confortáveis deitou-se no chão de madeira que estava um pouco
frio por causa do tempo, seus olhos vasculharam o teto e não
acharam nada que o surpreendesse naquele momento, então
virou-se de bruços e apoiou sua cabeça em um dos braços,
estranhamente se pegou de olhos fechados pensando na menina
113
Charlotte. A voz aveludada e calma que contrastava com um tom
ousado que levava a boca de Heitor salivar lembrando-o de bala
de tamarindo, doce no começo, um pouco azeda no meio, e
prazerosa no fim misturando os dois sabores fez-se presente e a
beleza de Charlotte perfumou o lugar.
Charlotte
- Ah! Você está aí! (Charlotte deitou-se ao lado do rapaz).
Também gosto de ficar aqui de vez em quando, principalmente
quando está chovendo.
A menina deu uma pausa esperando Heitor dizer alguma
coisa, mas ele apenas ficou ali com seu rosto que aparentava
algum tipo de conforto naquele instante.
Charlotte continuou sem nenhuma preocupação em relação ao
silêncio calmo de Heitor;
- Como eu estava dizendo, gosto de ficar aqui quando está
chovendo. Consegue ver as pequeninas gotas de água que
descem pelo vidro? (Charlotte pegou a mão do distraído Heitor e
a conduziu até o vidro). Elas percorrem muitas vezes lentamente
seus caminhos tortos. (Ela destacou o dedo indicador do rapaz e
o fez seguir uma das gotas que escorregava devagar). Elas
descem, e pelo caminho podem ir se desgastando e ficando cada
vez menor, como também podem colidir com outra gota e se
juntar a ela se tornando ainda maior e mais forte, sua única
preocupação é chegar ao seu destino final. (Charlotte terminou
seu caminho com a mão de Heitor em uma poça d’água que se
formava no chão do outro lado do vidro). São corpos
independentes Heitor, que se unem formando no final da sua
jornada um corpo só, consequentemente tornam-se ainda mais
fortes.
Heitor sentiu sua mão quente, agora não tão distraído
permaneceu deitado naquele chão frio ao lado de Charlotte que
114
sempre tinha algo a dizer, mas para o rapaz era conveniente todo
aquele falatório, pois ele mesmo gostava de ficar calado, mesmo
quando a única coisa a ser ouvida era a respiração da menina
falante, Heitor se sentia a vontade para só se permitir ficar ali
olhando qualquer coisa que não fosse tão interessante.
Os dias passavam como caixinhas de surpresa, o tempo
foi melhorando lentamente como se estivesse passando por um
processo de limpeza, de transformação, assim como Heitor e
Charlotte.
Quando conheci o senhor corretor lhe disse que procurava uma casa longe de todos e de tudo, onde nada ouviria nem veria. Ao chegar aqui, olhei para essa velha mansão, que parecia ter sido feita especialmente para uma família, as únicas coisas que pude enxergar foram as velharias e como ela estava largada as traças. Agora, percebo que todo aquele decorrer de minha vida era eu quem estava largado ao tempo que corria, Charlotte me fez querer mudar e ver as coisas de um novo ângulo, um ângulo vivo, onde cabem todas as coisas, todas as emoções, menos o medo de tentar vivê-las. Não estou longe de todos e de tudo, na verdade nunca estive tão perto de mim mesmo, ouço todos e tudo, até a terra respirar, e me surpreendo a cada novidade que presencio. Acho que nunca saberei como agradecer a ela por me devolver tudo que um dia a mágoa e a ignorância me levaram. Não contarei mais os dias e as noites, porque os dias e as noites são só as voltas que o sol dá em volta da terra e vice-versa, não irei mais me perguntar o porquê das coisas ruins, apenas aguardarei o próximo amanhecer e farei o que for preciso para que seja bom. A vida não pode ser tão difícil quando se tenta entendê-la e compreendê-la, pois ela tem seus motivos, todos fundamentados em alguma coisa que fizemos ou deixamos de fazer. HT
As tardes de Heitor eram preenchidas com as páginas do
diário de Charlotte, isso quando o rapaz que aprendera a não ser
ranzinza não arrumava tantas coisas para fazer. A mais nova
distração era o cultivo de uma pequena horta que ele mesmo
115
fizera após se inspirar em uma das páginas do diário, Heitor
presenciava a cada dia a evolução dos alimentos que agora
recheavam suas prateleiras da dispensa, os pequeninos tomates
verdes cresciam e ficavam vermelhos como sangue, e as mãos
de Heitor tocavam livremente os frutos e as folhagens, as flores
brancas e perfumadas do maracujá já migravam para fora da
plantação. E assim, finalmente ele aprendera a levar a vida,
participando dela.
Meu aniversário está chegando, faltam quatro semanas, eu disse ao papai que não precisava fazer nenhuma estripulia, mas como o conheço bem, ele não deixará passar em branco. Adoro datas comemorativas, onde pessoas queridas se reúnem para festejar qualquer coisa, principalmente seus encontros e reencontros. Com tudo, sei que não estamos podendo dar nenhuma festa como costumávamos dar, mas compreendo que o mais importante não é a festa e sim o sentimento sincero que cada pessoa direciona a nós, mesmo quando estão longe e apenas podem mandar uma carta que seja. Por falar em sentimentos sinceros, acabei de ler aquele livro que mencionei a folhas atrás, aquele onde o cavalheiro e a mocinha se apaixonaram apesar das diferenças enormes que a vida lhes impôs e suas próprias filosofias. Eu estava pensando: O ser humano sempre espera que as outras pessoas ao seu redor não errem, pode ser qualquer bobagem, a nossa falta de preparo para entender suas falhas é muito grande, nos decepcionamos justamente porque não esperamos tal coisa de tal pessoa. Então um pensamento muito lógico me veio à cabeça; Pessoas erram tentando acertar, então devemos viver aprendendo a perdoá-las sempre que for preciso. Os erros só existem para que também a prática do perdão não seja esquecida. Mas isso foi só uma coisa que me veio à cabeça enquanto eu pensava. Eu já ia esquecendo! Teddy, Luísa e Clarinha vieram me visitar, como sempre reclamaram das minhas visitas não tão frequentes a suas casas. Mas o que posso fazer se gosto de passar mais tempo em casa me distraindo comigo mesma? Nada faz eu me sentir tão bem quanto ficar
Diário de Charlotte,
26 de abril de 1880
116
aqui na mansão do penhasco. Boa Noite diário.
Heitor - Finalmente a menina alegre e agitada mostra-se um pouco
reclusa.
Charlotte que estava sentada ao lado de Heitor na pedra que
ficava na ponta do penhasco;
- Todos nós precisamos de momentos solitários, aqueles
momentos em que se conversa consigo mesmo.
Heitor distraído com a paisagem e com a gata Neblina que
lambia sua mão pedindo afagos;
- Vir morar aqui foi a melhor coisa que fiz, aprendi a conviver
comigo mesmo e me conheci melhor. Apesar de não estar em
contato direto com o mundo lá fora, me sinto preparado desta
vez para enfrentar qualquer coisa, pois minha alma está
alimentada com sabedoria e meu corpo reflete compaixão.
Charlotte
- Nós atravessamos a ponte balançante de ventos turvos e
uivantes querido Heitor. (Charlotte olha para o céu). Sinto como
se algo me aliviasse de um peso que eu nem sabia que carregava
antes.
Charlotte e Heitor respiraram e suspiraram juntos
naquele fim de tarde sentados na pedra da ponta do penhasco
com a gata Neblina preguiçosa e dócil. A mesma luz que
iluminava a menina Charlotte, agora iluminava o coração do
menino Heitor, suas almas se reconheciam independente de
qualquer coisa que o destino lhes viesse a por no caminho, a
transparência do sensível sentimento se fazia sentir além da
117
linha tênue do tempo, e a suave brisa que envolvia seus corpos
também unia seus pensamentos como se ao respirar eles
sugassem um o pensar do outro. Nem as brancas nuvens do céu
se sentiriam tão leves como o casal de amigos, nem as riquezas
do mar fariam parte tão perfeitamente do mesmo mundo,
nenhuma gaivota voaria tão alto e tão longe só para aquela tarde
de pôr do sol ser presenciada, apenas existir. Os dias de Heitor
nunca mais foram apagados, eles brilhavam como raios solares
refletindo coloridos em gotas d’água.
Hoje abri os olhos bem devagar ao acordar, depois os fechei, pois a
luz estava tão forte que eles arderam como quando os abrimos debaixo da água do mar, meus passos quase sonâmbulos avisaram ao papai que eu já havia acordado, quando cheguei à cozinha meu café da manhã preferido já estava pronto. Papai tem esse jeito zelador e cultivador de ser, ele cultiva tudo em sua vida, desde a grama do jardim, as cercas da mansão e sua filhinha, claro. Ele tem essa mania de achar que ninguém cuidará das coisas tão bem como ele cuida, então prefere mil vezes fazer ele mesmo, por mais que seja uma coisa que ele não goste muito de fazer. Enfim, eu o deixo a vontade para agir da maneira que se sentir melhor, assim como ele faz comigo. Não falarei do tempo hoje, não importa. Não falarei das árvores nem das plantas, pois elas continuam em seu ciclo a crescer. E o canto dos pássaros que se recolhem para seus cantos tão cedo quanto a minha vontade de viver, ainda soa, assim como soa o eterno som do mar, assim como soa o simplório som do vento nas árvores, assim como ainda soa meu respirar. Estar no meu lugar preferido da mansão é onde gosto de estar, e qualquer lugar aqui será o meu preferido, este é o local onde meus sonhos se permitem viver, e hoje ao acordar pela manhã me pareceu que todas as cores estavam mais vivas e vibrantes, isso não foi só hoje, pois há alguns dias venho reparando que essa tonalidade despertadora de emoções vem ficando cada vez mais intensa. O que será que está acontecendo? Talvez
Diário de Charlotte,
11 de maio de 1880
118
seja a mudança de clima. Mas eu nunca havia reparado este fenômeno antes, chego até a acreditar que papai esteja usando algum pó mágico para deixar o jardim mais bonito para o meu aniversário que se aproxima. Enquanto aguardo ansiosamente pelo dia vou desfrutando desta magia secreta que faz tudo ficar cada vez mais bonito. Até amanhã querido diário.
Heitor fechou o diário com um sorriso enorme no rosto,
parecia orquestrar alguma coisa, Charlotte não resistiu.
Charlotte
- Do que está rindo Heitor? Está com aquela cara de criança
sapeca quando planeja fazer alguma travessura.
Heitor levantando-se do sofá em um pulo;
- Vamos dar uma festa! (Neblina que antes repousava no braço
do sofá deu um pulo de susto e um miado agudo).
Charlotte confusa;
- Uma festa?
Heitor
- Uma festa de aniversário! Está decidido! (Ele andou
rapidamente de um lado para o outro como se não soubesse para
onde ir e finalmente decidiu). Vou até a cidade.
Charlotte o seguiu assim como Neblina;
- Não vou perder essa oportunidade!
Heitor chegando à porta de saída, a abriu, parou
instantaneamente antes de sair e logo foi dizendo;
- Nada disso senhorita, você permanecerá em casa
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comportadinha. (Ele fechou a porta antes que Charlotte
rebatesse a sua ordem).
Charlotte para Neblina que voltava conformada para seu posto
no braço do sofá;
- Agora você vê Neblina, nós damos a mão e a pessoa puxa logo
o braço todo. Está vendo? Não se pode dar confiança. Mas tudo
bem, desta vez vou deixar passar. Afinal ele disse que iria dar
uma festa não é? Uma festa de aniversário para mim. Papai
podia estar aqui conosco, ele adora festas. (A menina senta
pensativa no sofá).
Sem mais esperar, naquela manhã ensolarada Heitor foi
sozinho até a pequena cidade. A primeira loja a ser visitada foi a
das irmãs gêmeas Agatha e Abigail. O sino da porta fez um
tintilar familiar a Heitor que entrou leve, sorridente e alegre com
a proposta da festa. Ele avistou a senhorinha que parecia falar
sozinha por detrás do balcão.
Heitor
- Olá senhora! (Disse Heitor entusiasmado se aproximando do
balcão).
Abigail levantando os caídos e pequeninos olhos que já eram
quase cobertos por suas pálpebras;
- Olá meu filho!
Heitor
- A senhora se lembra de mim?
Abigail tentando abrir seus olhos desbotados fitou os de Heitor;
- Humm... Lembro-me dos seus doces olhos querido, mas não
me vem o nome a cabeça agora.
120
Heitor sorridente;
- Eu sou Heitor... (A velhinha ficou parada olhando para o rapaz
e depois de alguns segundos, Heitor percebeu que ela não havia
se lembrado). Vim aqui outro dia comprar tintas e telas...
Abigail interrompendo;
- Ah sim! Você é o pintor!
Heitor
- É. Talvez!
Logo, dos fundos da loja surgiu a gêmea idêntica de
nome Agatha, com pernas cansadas arrastando seus chinelos e
voz envelhecida, mas ainda agradável.
Agatha
- Quem está aí Abi? Eu ouvi barulho lá dos fundos.
Abigail
- É aquele rapaz de nome Heitor.
Agatha parou de frente para ele;
- Quem?
Heitor falando mais alto;
- Heitor! (Agatha ficou parada olhando para a fronte do rapaz
tentando buscá-lo em sua memória, depois de alguns segundos,
Heitor desistiu). O pintor!
Agatha
- Ah! Sim! O pintor de olhos fascinantes!
Heitor sorriu mais uma vez;
- Eu mesmo.
121
Abigail
- Ah meu filho! A velhice faz-nos voltar a ser crianças,
esquecemos tudo, quebramos as coisas, isso quando não
voltamos a usar fraldas.
Agatha
- Abigail! Isso são coisas de se falar para um cavalheiro?
Abigail
- Mas eu estou dizendo alguma mentira? Bom, posso te dar uma
certeza querido, se eu fosse jovem me lembraria de você mesmo
sem vê-lo há mais de dez anos, e você com certeza lembrar-se-ia
de mim, pois eu era muito bonita, os homens dessa ilha
arrastavam caminhões por mim...
Agatha
- Deixa de lenga-lenga sua velha metida.
Abigail aproximou-se um pouco mais de Heitor;
- Ela fica assim porque sabe que eu sempre fui mais bonita que
ela.
Agatha
- Mas nós somos idênticas sua tola.
Abigail para Agatha;
- Isso é o que você pensa. (Cochichando para Heitor). Ela
passou a vida inteira querendo acreditar que se parece comigo,
você acredita? Só porque eu sou mais bonita que ela.
Agatha
- Bem, mas o que o trouxe em nossa humilde loja senhor Heitor?
Heitor
- Eu vou dar uma pequena festa...
122
Abigail
- Ah! Eu adoro festas! Uma pena eu não poder ir a sua, sabe?
Minhas pernas parecem gravetos de tão fracas.
Heitor
- É uma pena mesmo. Na verdade estou comemorando o
aniversário de uma amiga, é só uma simples vontade de mudar
um pouco o clima.
Agatha
- Sim, sim! É importante mostrarmos de um jeito ou de outro
nosso afeto pelas pessoas.
Abigail
- Eu concordo plenamente!
Agatha
- Mas o que você vai precisar querido?
Heitor
- Eu não sei. Nunca participei de uma festa antes, meus pais me
compravam apenas um bolo e serviam na hora do almoço.
Abigail
- Ai! Coitadinho, ele nunca teve uma festa de aniversário. Bom
docinho, nós vamos ajudá-lo com a festa para a sua amiga.
Tenho certeza que ela vai adorar!
Agatha
- Ah é verdade! Abigail sempre foi a mais festeira, entende tudo
de festas!
Abigail
- Eu era mais convidada por causa da minha beleza.
123
Agatha rodou seus olhinhos para cima e desabafou:
- Aff!
Heitor
- Se vocês me auxiliarem eu ficarei muito agradecido, quero que
fique perfeito.
Abigail
- Não podemos começar a escolher as coisas sem saber as cores
que você quer meu filho.
Agatha
- É mesmo, tem que escolher uma cor bem bonita.
Heitor pensativo não demorou muito a responder;
- Eu quero todas!
Agatha e Abigail
- Todas?!
Heitor
- Sim! Minha amiga passa uma alegria muito forte, ela não é
dona de uma cor só, ela domina uma aquarela inteira.
Abigail
- Querido, se alguém me dissesse isso cinquenta anos atrás eu
fugiria para casar com essa pessoa no mesmo segundo.
Heitor sorriu distraído, e todas as cores de enfeites de
todas as formas foram compradas para a festa de Charlotte, eram
tantas coisas que mal cabiam no carro. Ao acabar a compra
Heitor se despediu das duas senhorinhas, com extremo cuidado
retornou ao penhasco, do portão de ferro ele se lembrou da
primeira vez que pôs os olhos na antiga mansão, e novamente
sentiu um aconchegante vento o abraçar e fazer com que ele se
124
sentisse intimamente no seu lugar. Era como se seres místicos
lhe soprassem a face e lhe envolvesse em braços maternos.
Charlotte nesse meio tempo roía as unhas até os dedos, pois não
via a hora de descobrir o que Heitor havia comprado para tal
evento. Com inúmeras sacolas nas mãos e por debaixo dos
braços, Heitor mal conseguia abrir a porta, quando finalmente
entrou, Charlotte correu para ajudá-lo.
Charlotte correndo;
- Heitor! Como você demorou! Eu já estava enlouquecendo!
(Charlotte tentou pegar umas sacolas para ajudar Heitor, mas
deixou cair no chão). Desculpe. Como eu sou distraída.
Neblina não deixou de se aproximar ao ver muitas cores
brilhantes e vivazes que despertavam sua curiosidade felina.
Heitor
- Não, não, não, não, não! Não toque em nada. Eu mesmo vou
enfeitar e decorar, sozinho.
Charlotte
- Poxa! Mas eu queria ajudar.
Heitor pegou a gata no colo muito contra a vontade dela e não
hesitou;
- Será que vou ter que te trancar no quarto?
E foi o que ele fez tanto a Charlotte quanto a Neblina, as
duas ficaram trancadas no quarto esperando meio dia para ver os
preparativos de Heitor.
Já havia escurecido, mas como no natal a casa estava
toda iluminada e brilhante, circulava um cheiro de cera
aromatizada pela sala principal que despertava certa vontade de
comer doce, meio intrigante isso. Bolas, pompons, fitas
decorativas e tudo mais que Charlotte tinha direito. A menina foi
125
liberada, e cada degrau que seus pés tocavam, seus olhos viam
uma nova cor, um novo brilho, e a purpurina que realçava todo o
gracejo que havia sido feito pelo esforçado Heitor, tornava tudo
ainda mais enfeitiçado. Os olhos negros de Charlotte
umedeceram e pôde-se ver ainda mais a brancura da sua alma
pura.
Heitor
- Gostou?
Charlotte circulando pela brilhante sala;
- Se eu gostei? Eu amei! Está lindo Heitor!
E com muita música alegre todos se distraíram,
dançaram, pularam, sorriram e brincaram na comemoração
daquele aniversário que ainda nem havia chegado.
Horas depois, quando a música também já estava
cansada, Heitor tomava um suco enquanto estava de pé em
frente à parede de vidro, ele olhava para o horizonte azul
marinho e se seus pensamentos pudessem ser pintados ali, sem
dúvidas veríamos a doce Charlotte, Ela por sua vez ainda se
distraía com os pompons brilhantes que a gata Neblina havia se
enrolado, foi quando sussurrou Heitor:
Heitor
- Gostaria muito que estivesse aqui comigo Charlotte.
Charlotte se levantou do chão e foi ficar ao lado de Heitor;
- Pronto! Já estou aqui. (Heitor virou-se de frente para a moça e
com os olhos perdidos olhou para baixo). Obrigada por tudo
Heitor.
Charlotte aproximou-se e deu um beijo na face de Heitor
que timidamente sorriu e voltou a olhar para o horizonte, e
assim a mansão adormeceu.
126
Raios solares invadiram a grande casa de um momento
para o outro como se uma nuvem saísse da frente do sol, tudo
estava calmo, quieto, apenas os passarinhos brincavam por ali
bicando uns aos outros, nem parecia que uma festa havia sido
dada. Foi quando sapatos brancos subiram os poucos degraus da
varanda que ficava de frente para o chafariz, lentamente eles
caminharam e a porta de entrada da casa se abriu emitindo um
ranger que não chegava a ser desagradável, os calçados largos
continuaram a caminhar, passando pela sala e por toda bagunça
que fora feita, seu toque-toque na escada que dava para o
segundo andar não acordou Heitor que dormia profundamente,
pois também os pés de tão sutis pareciam flutuar, os sapatos se
dirigiram para o sótão. As longas pernas que eram escondidas
por uma calça de linho não muito nobre de cor branca,
dobraram-se ao sentar na cama da menina sonolenta que aos
poucos foi acordando lentamente do maravilhoso sono que
estava tendo. Charlotte esfregou os olhos sem ansiedade, ela
pensava ser Heitor o estranho sentado em sua cama, mas assim
que seus olhos focalizaram a branca imagem pode perceber que
era seu pai Lenard quem estava sentado ali ao seu lado zelando
pelo seu sono. A menina não teve palavras e seu imenso sorriso
não coube em sua pequena e desenhada boca, ela abraçou o pai
que também explodia de felicidade, o abraço apertado rendeu
lágrimas de alegria e certo alívio de ambas as partes. Após um
minuto a menina pode se expressar com sua voz ainda engajada
pela estridente emoção.
Charlotte
- Papai! Não acredito que está aqui!
Lenard
- Sim minha querida filha, eu estou. Eu disse que faria uma
viagem longa, mas que voltaria.
127
Charlotte eufórica abraça o pai novamente;
- Sim, sim... Eu sei, é que aconteceram tantas coisas papai, o
senhor nem imagina. Tenho que contar tudo que aconteceu.
(Charlotte deu um pulo da cama como se lembrasse de algo
muito importante). Heitor! Tenho que avisar a ele que o senhor
já chegou. O senhor vai adorá-lo papai, ele está tão diferente de
como era quando o senhor nos deixou.
Lenard com sua calma foi até Charlotte, segurou em suas mãos
e a conduziu para se sentar na cama com ele novamente;
- Sim minha amada filha. Tenho certeza que você conseguiu
fazer com que Heitor enxergasse a vida, mas creio que este não
seja o momento apropriado para nos apresentarmos mais
intimamente. Eu acabei de chegar, e se não me engano vocês
comemoraram algo ontem a noite, provavelmente ele ainda deva
estar descansando.
Charlotte
- É verdade papai, ontem Heitor fez uma festa de aniversário
para mim, estava tudo tão bonito. Aliás, acabei de lembrar que
estava sonhando com o senhor.
Lenard
- Acredito que sim minha filha. Sei que tens muitas coisas para
falar-me, também tenho muitas coisas para contar-te, os lugares
por onde passei e as coisas que também aprendi.
Charlotte
- Pois eu quero saber tudo papai. Inclusive o que foi que deixou
o senhor com uma aparência tão boa e jovem. O amor bateu em
sua porta?
Lenard solta uma feliz gargalhada;
- Podemos dizer que sim, não desta maneira que estás pensando,
pois o amor desperta em nós de muitas formas. São tantas portas
128
para o amor entrar querida Charlotte, mas isso é uma coisa que
você já sabe.
Charlotte
- Sim papai, foi o senhor quem me ensinou.
Lenard
- Pois então vá se arrumar que nós vamos dar um passeio.
Charlotte
- Mas o senhor acabou de chegar. Para onde nós iríamos?
Lenard
- Sim eu acabei de chegar, mas são tantas coisas para dividir que
as palavras não caberiam nesta casa, e primeiro quero que me
conte tudo que aconteceu enquanto eu estava fora.
Charlotte ainda eufórica;
- Estarei pronta em um minuto papai.
Lenard
- Eu a esperarei no jardim, perto do chafariz onde víamos o
nascer do sol.
Charlotte
- Está bem.
Charlotte ficou pronta, preocupada em não acordar
Heitor andou nas pontas dos dedos dos pés até chegar à varanda,
avistou seu pai de costas apreciando a paisagem, realmente ele
estava muito bem, com uma roupa confortável e límpida como
as águas do mediterrâneo e que cheiravam a lavanda. Os pés da
menina sentiram a grama e seu corpo levou um choque, como se
uma carga muito forte de energia a tivesse atingido, por
coincidência nenhuma Lenard tirara seus sapatos e agora
129
descalço sentia a velha terra.
Charlotte chamando o pai aparentemente distraído;
- Papai?!
Lenard virou-se e fitou o semblante resplandecente de
Charlotte;
- Minha querida filha. (Lenard pegou cuidadosamente uma das
mãos de sua primogênita, a repousou em seu braço dando-lhe
suporte, e os dois começaram a caminhar). Conte minha filha,
como foi esse tempo com o rapaz Heitor?
Charlotte
-Ah papai, ele não me deu tanto trabalho quanto eu imaginei que
teria, pois apesar dele ter conservado toda aquela imagem
grosseira e ignorante, na verdade por dentro sempre foi o Heitor
que está sendo agora, apenas precisava entender muitas coisas
que lhe vieram a acontecer e aceitá-las, compreendendo que
necessitava viver certas decepções para recuperar qualidades
que ele mesmo se esquecera de enfatizar em seu convívio.
Lenard
- Ã... Estou começando a entender.
E Charlotte contou a seu pai suas aventuras com Heitor, e
como fez para que ele compreendesse que devemos preservar
todas as espécies do planeta, pois em tudo há vida e há vida em
todos e isso tem que ser respeitado acima de qualquer motivo,
ela também lhe falara sobre o clima e a grande conexão que
temos com a natureza e todos os seus fenômenos, e que não nos
cabe interferir em uma coisa que foi criada e existe a milhões de
dezenas de bilhões de anos por quaisquer interesses. Eles
passearam pelo jardim que era conservado naturalmente pelo
ambiente saudável e rejuvenescedor, o passeio se estendeu e
Lenard contou como se sentia bem e confortável apesar da
130
viajem longa e meio desgastante, distraidamente Charlotte
avistou a grande parede do jardim secreto.
Charlotte
- Olhe papai! (Ela aponta com o dedo).
Lenard tentando encontrar a coisa misteriosa;
- O que foi minha filha?
Charlotte
- Acho que nunca te contei sobre este lugar papai.
Lenard
- Mas que lugar? Aqui? O meio da floresta?
Charlotte puxa o pai pela mão e anda mais depressa;
- Venha, irei te mostrar.
E quando eles chegaram à grande parede de folhas e
galhos, a menina afastou as folhagens e o jardim novamente se
revelou;
Charlotte
- Este é o jardim secreto.
Lenard
- É secreto mesmo, nunca teria descoberto nada por trás daquela
parede de folhas. Nem sequer desconfiei.
Charlotte entrando no jardim;
- Vem papai, quero que conheça tudo.
Lenard
- Estou indo, estou indo!
131
Não tinha como não se surpreender, ou ver, ou rever
aquelas imensas árvores de troncos absurdamente grossos, e as
flores que formavam um céu de um amarelo vivo e intenso
pareciam nunca morrer, na estradinha longa de terra
avermelhada só se via pegadas de animais, o que indicava que
nunca ninguém andava por ali além de Charlotte, seu predileto
amigo e agora o senhor Lenard.
Charlotte
- Está ainda mais bonito desde a última vez que estive aqui com
Heitor.
Lenard
- Esteve aqui com Heitor?
Charlotte enquanto caminhava ao lado do pai;
- Sim, estive. O senhor sabia que o danado começou a ler o meu
diário sem eu permitir? (Lenard riu). Não, o senhor não sabe,
pois eu evitei contar para não aborrecê-lo. Mas então, mesmo
naquela fase em que nós não nos comunicávamos ainda muito
bem, Heitor descobriu meu diário e o começou a ler sem me
pedir, o que eu achei um disparate, depois da minha pequena
raiva passar e eu compreender sua curiosidade e falta de
habilidade para se comunicar com terceiros, ele descobriu onde
o mapa que fiz do jardim estava. Então, em um belo dia nós
viemos aqui.
Lenard
- E você se lembra do que aconteceu?
Charlotte sorriu;
- Por que papai?
Lenard
- Apenas curiosidade minha querida filha.
132
Charlotte
- Bom... Não me lembro de nada muito significante.
Lenard
- Nada, nada? Comece lembrando-se de como tudo começou.
Charlotte
- Entramos pela mesma parede de folhas, passeamos e... (Como
um estalo Charlotte lembrou). Sim! Houve um momento em que
Heitor estava muito cansado e eu o toquei em seu braço. Senti
uma coisa esquisita, boa e que ao mesmo tempo pareceu me tirar
algo. (Charlotte mostrou-se constrangida). Não sei explicar isso.
Lenard
- Entendo. Não há problema em não entender certas coisas
minha filha. Às vezes isso acontece para o nosso próprio
benefício, devemos esperar a hora certa, aguardar com confiança
e perseverança.
Charlotte
- Sim, o senhor está certo papai. Aliás, o senhor sempre esteve.
Lenard
- Nem sempre minha querida Charlotte, nem sempre. A
imperfeição do ser humano pesa o mesmo quilo que pesa seu
convencimento de perfeição. A perfeição é algo que está tão
longe de nós, só devemos aceitar isso como um longo caminho a
fazer. Como este que fizemos e estamos completando, em parte.
Charlotte
- Eu o compreendo.
Lenard
- Sim, sim. Agora voltemos a nossa mansão do penhasco.
133
E a noite já estava caindo, tão lentamente quanto os
passos de Charlotte e Lenard que chegavam à mansão
iluminada, a cadeira de balanço da varanda de frente para o mar
adormecera Heitor que deixara sua caneca de chá quente bem
quente apoiada na mureta, Neblina sempre ao lado com sua
calda longa envolvendo seu peludo corpinho que de gorducho só
passava impressão. Lenard fez um sinal para a filha afim de não
acordar o menino adormecido que parecia estar nas nuvens.
Então ela passou direto junto com seu pai. E já na sala Lenard
disse sorrindo:
Lenard
- Agora nós temos um gato?
Charlotte
- Não é um gato papai, é uma gata e chama-se Neblina.
Lenard
- Neblina?
Charlotte
- Sim! Heitor a chamou por esse nome quando leu uma parte do
meu diário em que falei sobre a Neblina que me escondia o
horizonte.
Lenard
- Ah... Então seu diário é lido frequentemente por este rapaz?
Charlotte
- Acho que sim. De uns tempos para cá não venho mais
contando os dias nem as tardes. Apenas vivo junto a Heitor o
que temos que viver.
134
Lenard
- Você está certa meu bem. Agora me deixe ir descansar, amanhã
teremos mais um dia trabalhoso.
Charlotte
- O senhor não vai esperar o Heitor acordar do cochilo para lhe
dar um oi?
Lenard
- Não, não minha querida filha. Assim como ele estou caindo
pelas tabelas, preciso recuperar as minhas forças logo. Creio que
haverá inúmeras oportunidades onde nos conheceremos melhor.
Charlotte
- Está bem papai, eu deixarei que tudo aconteça ao seu tempo.
Lenard aproxima-se de Charlotte e lhe dá um beijo na testa;
- Assim será minha boa filha. Tenha uma boa noite.
Charlotte
- O senhor também papai.
Antes de dormir, sozinha em seu quarto, Charlotte sentia
a velha sensação de que tudo estava em seu devido lugar, ela
admirou a vista do mar de uma das janelas de vidro, respirou
fundo e seguiu para sua cama que conservava os mesmos
lençóis de seda de cor rosa chá. A menina, Heitor e Lenard
descansavam tranquilamente em suas camas.
Quando os primeiros raios solares aqueceram a mansão e
secaram o sereno da noite passada, Lenard em sua poltrona na
sala do primeiro andar ouviu os passos de Charlotte descendo as
escadas, os mesmos passos que ouvia sempre antes de fazer a
viagem, Neblina que estava sentada no colo do senhor, pareceu
também reconhecer os barulhos que a menina fazia e seguiu para
o primeiro degrau como se a esperasse.
135
Charlotte descendo o último lance de escada;
- Bom dia Neblina! Será que você é a única que acordou até
agora?
Lenard
- Não, eu também já estou acordado.
Charlotte indo até o pai lhe dar um beijo nas magras bochechas;
- Bom dia papai! (Neblina subiu novamente no colo de Lenard).
Hum! Vejo que vocês já ficaram íntimos.
Lenard acariciando a gata manhosa;
- Como eu não ficaria íntimo de uma gatinha tão simpática?
Charlotte
- É verdade, quando Heitor achou Neblina não quis ficar com
ela, mas eu insisti, insisti e insisti, até que ele cedeu.
Lenard
- Sim, mas é claro! A personalidade da Neblina é inconfundível
e incomum, seria impossível não ser conquistado por esses
olhinhos amarelados.
Charlotte
- Às vezes me pergunto se ela não é um cachorro no corpo de
um gato.
Lenard ri;
- Quem sabe ela não seja?
Charlotte
- Mas Heitor, onde está? Ele já acordou?
136
Lenard
- Sim, sim. Disse que iria aproveitar o dia para pintar, pois
estava muito inspirado e não podia perder tempo.
Charlotte
- Ah, que bom que ele se sente assim. Será que eu o atrapalharia
se fosse lá falar com ele?
Lenard sorriu;
- Creio que não minha querida.
Charlotte
- Bom, de qualquer forma acho melhor deixá-lo com suas
inspirações. E nós dois papai? O que faremos hoje?
Lenard levantando-se da poltrona e indo em direção à porta;
- Hoje? Continuaremos.
Charlotte o seguindo;
- Continuaremos com...?
Lenard saiu na varanda e respirou fundo puxando todo ar que
cabia em seus pulmões;
-... Com o ciclo, com a vida, com a conversa de ontem.
Continuaremos com tudo e qualquer coisa, porque a vida não
passa de uma continuação, mesmo quando temos a oportunidade
de começar de novo.
Charlotte
- É impressão minha ou o senhor parece querer me dizer alguma
coisa com tudo isso?
Lenard caminhando junto à filha;
- Mas é claro, eu sempre quis te dizer muitas coisas.
137
Charlotte
- Papai, sua didática às vezes fica meio difícil de entender.
Agora deu para ficar enigmático é?
Lenard
- Não é difícil, é trabalhosa, mas é assim que as coisas devem
ser. Devemos nos esforçar para aprender, não devemos esperar
que os outros nos deem de mãos beijadas. Só damos o real valor
às coisas quando contamos cada gota de suor que se é pingada
em busca daquilo que desejamos.
Charlotte - Está bem, como sou uma garota muito inteligente, muito
mesmo, eu topo.
Lenard
- Sim minha filha, você é muito inteligente, não demorará até
aprender tudo que ainda te falta.
O dia estava ensolarado, uma bola grande de fogo
explodia no céu esquentando todo o universo, a água do mar
estava calma, lisa, mais parecia um tapete espelhado refletindo
as nuvens branquinhas que flutuavam imóveis naquela
imensidão onde não se via o fim.
Sentado na areia da praia, Lenard ouvia o grande silêncio
da filha que apenas olhava para o horizonte sem fim, com os
olhos melancólicos, Charlotte simplesmente sentia vontade de
ficar ali ao lado de seu pai olhando aquela bela vista, vista a qual
fora a única em toda a sua vida, seu quadro vivo quando
acordava de manhã, quando brincava de balanço com apenas
oito anos, era a visão que lhe confortava o coração quando em
raros momentos por algum motivo se entristecia, seu doce
sonífero à noite. O filme da sua vida estava ali, naquela areia na
qual estava sentada ao lado do seu pai, seu melhor amigo, estava
nos rochedos, na água do mar, nas árvores e todo o resto que
138
vivia e crescia junto com a menina de olhos negros, olhos que
agora contemplavam pensativos a paisagem.
Lenard quebrou o longo silêncio;
- Conseguiu trazer Heitor para conhecer nossa praia? Vejo-o de
pele tão pálida.
Charlotte ri ao ouvir a palavra pálida;
- Na verdade ele mesmo tomou partido, uma bela manhã
acordou e resolveu vir brincar com as ondas, como nós
costumávamos fazer, foi um dia surpreendente e impressionante.
(Charlotte fala enquanto admira a paisagem). Aliás, muitos dias
foram impressionantes.
Lenard também olhando para o horizonte;
- Vejo que a amizade de vocês é verdadeira.
Charlotte
- Sim papai, tão verdadeira quanto este momento. (Um silêncio
se fez por alguns segundos, mas Charlotte o quebrou). Em
relação à brancura, não tem jeito. Já até tentei cobri-lo de lama e
nada adiantou.
Lenard riu;
- Imagino esse rapaz coberto de lama. E como conseguiu isso?
Charlotte
- Como já disse Heitor era só uma pessoa confusa com seus
próprios sentimentos, quando conseguiu esclarecê-los e entendê-
los, sua visão se expandiu e ele pode abrir seu coração.
Lenard
- Sabes que tem grande responsabilidade na evolução deste
rapaz, não sabes?
139
Charlotte
- Sei que de alguma forma sinto-me conectada a ele, mesmo no
início quando não nos simpatizávamos muito, eu sentia de um
jeito que não podia fugir da tarefa de mostrá-lo que sua vida
podia ser boa e prazerosa. É estranho, mas... Havia uma razão
convicta dentro de mim desconhecida, como uma voz que me
dizia para eu não fugir do destino.
Lenard pensativo encaminhava a conversa;
- E o início? Lembra-se dele?
Charlotte
- Como não lembraria?! Heitor ignorava-me de todas as formas,
as únicas coisas que não ignorava eram as palavras em meu
diário. Mas hoje me sinto feliz por telo ajudado de um jeito ou
de outro.
Lenard
- E eu estou muito orgulhoso por isso minha filha. (Lenard
envolve seus braços carinhosamente ao redor de Charlotte que
apoia sua cabeça no ombro do pai). Muito orgulhoso,
principalmente por ter seguido a sua consciência.
Charlotte
- Obrigada papai.
E mais um dia se passou na mansão do penhasco,
exatamente assim, entre pai e filha que conversavam e
relembravam. Heitor e seus quadros que lhe distraiam fazendo o
tempo passar calmamente entre canecas de chá quente bem
quente. A gata Neblina que ronronava dormindo como gente,
com as patinhas para cima que se mexiam enquanto ela sonhava
com algum cachorro a perseguindo.
À noite como quase sempre chegava silenciosa, agora
nem mais o vento zumbia e balançava as janelas folgadas e as
140
leves cortinas, Heitor não estranhava mais o lugar perdido em
algum tempo que não era o que ele vivia. Lenard se recolhera
cedo para seu quarto como de costume, e da mesma forma,
Heitor continuava a ler o diário de Charlotte, a menina o
acompanhava sentada ao seu lado assim como preferia.
Essas são minhas últimas palavras como uma menina com dezenove anos, porque amanhã estarei comemorando meu aniversário e farei vinte anos. Gosto de números redondos, vinte é simples, assim como busco que os dias que vivo sejam, até a pronúncia é rápida e prática, vinte. Papai está agindo normalmente, como se nada nos aguardasse, ele falou sobre o tempo, as coisas bonitas que anda lendo. Ultimamente estamos conversando mais do que o comum, mas isso para mim não é um pelejo. Acho engraçado ele tentar disfarçar que não está preparando alguma surpresa para mim, mas como eu já disse, não ficarei sonhando com as surpresas que um dia como “o amanhã” pode está me reservando, eu irei aproveitar o hoje, até porque, qual é o dia em que não estou comemorando alguma coisa? Engraçado eu não ter muito que escrever, pois imaginei que esse seria um dos dias que eu mais teria coisas para falar, mas parece que estou vazia, não vazia de uma maneira ruim, mas sim vazia perdida no meio de uma tranquilidade branda e sossegada. Às vezes me assusto comigo mesma quando isso acontece. Talvez eu esteja acostumada a sempre ter coisas para falar ou pensar, desta vez não. Estou vazia. Vazia de mim, vazia de meus pensamentos, vazia de agonia e até da própria felicidade, e essa sensação de alguma forma me conforta, pois não sinto mais o peso do meu corpo, nem as cicatrizes da alma, e mesmo quando eu voltar a ser eu mesma, permanecerei nesse navio que desliza em águas brancas como as nuvens, nuvens que outrora me serviam como manta para abater o calor do sol que queimava minha grosseira pele, que hoje só quer descansar em paz. Boa Noite!
Diário de Charlotte,
25 de maio de 1880
141
E como não era de costume, Heitor não fechou o diário,
Charlotte já ia se levantando do velho sofá quando ouviu mais
uma página sendo virada, ela sentou novamente e disse
entusiasmada:
Charlotte
- Vamos ler mais?
Sua pergunta não foi respondida, mas o som que aquela
folha amarelada fez ao ser virada foi um som diferente aos
ouvidos da menina e de Heitor, o tempo pareceu congelar, e um
choque adormeceu e fez com que seus corpos começassem a
formigar assim que seus olhos tocaram a folha que estava em
branco. Heitor virou mais uma, e mais uma e folheou o diário
que depois daquela última data não tinha mais nada escrito.
Simplesmente ele acabara. Charlotte sentiu um pouco o ar lhe
faltar, pois não estava entendendo porque seu diário estava vazio
dali para frente.
Ela permaneceu sentada a sentir o formigamento pelo
corpo, enquanto seu amigo Heitor fechava o diário.
Heitor agora mais conformado com o término do livro;
- É, acabou.
Charlotte
- Como pode ser? Não me lembro de ter parado de escrever
nesta parte. E o dia do meu aniversário? Eu provavelmente o
teria descrito. Será que alguém arrancou as páginas do meu
diário?
E mais uma vez sem obter resposta, a menina ficara
olhando Heitor se levantar com o diário, ele o levava consigo
para o lugar de onde fora tirado, o baú de quinquilharias.
142
Charlotte
- O que está fazendo Heitor?
Heitor olhou para trás para a gata Neblina que estava
aconchegantemente sentada ao lado de Charlotte;
- Vamos Neblina, depois que eu devolver o diário da Charlotte
para o baú, vou colocá-la para dormir na sua almofada. Estou
cansado de dividir a cama com você e ainda ter que ouvir seus
roncos. (Neblina obedeceu a Heitor seguindo seus passos).
Charlotte
- Heitor! Por que finge não me ouvir? (Heitor subindo as
escadas fugiu aos olhos de Charlotte). Será que ele voltou a ser
aquele chato só porque meu diário acabou?
As horas daquela estranha noite se passavam lentamente
para Charlotte, que ficara sentada há um longo tempo na
varanda de frente para o mar pensando na confusão dos fatos e
tentando se lembrar por qual motivo o diário estava em branco.
Foi quando Lenard surgiu sem fazer nenhuma espécie de
barulho e se sentou a seu lado.
Lenard
- Vejo que ainda está acordada!
Charlotte desanimada e confusa;
- Sim papai, estou. E o senhor, o que faz a essa hora
perambulando pela casa?
Lenard
- Ã... Vejamos... Estou... Perambulando pela casa. (Charlotte
permaneceu com a mesma expressão triste e confusa). Diga-me,
o que houve? Sei que é difícil você ir dormir tarde desse jeito.
143
Charlotte
- Ah papai, Heitor e eu estávamos lendo o diário hoje, e quando
ele acabou e virou as páginas, não tinha mais nada escrito. Eu
não entendo o porquê, mas o pior foi quando percebi que ele não
estava mais falando comigo, como era quando chegou aqui. Não
sei o que pode estar acontecendo.
Lenard
- Minha querida filha, você quer entender o que está
acontecendo?
Charlotte
- Sim papai, mas do que qualquer coisa.
Lenard
- Pois então eu a ajudarei a descobrir e a entender.
Charlotte deu um abraço em seu pai;
- Obrigada papai por me ajudar, pois me vejo perdida após todos
esses acontecimentos sem sentido.
Lenard
- Bom, então teremos que começar agora.
Charlotte
- Agora?!
Lenard
- Sim, pois o tempo é valioso e não devemos perdê-lo.
Lenard conduziu sua querida filha para o interior da
antiga mansão, especificamente até a sala, lá ambos sentaram-se
e Charlotte olhou para as velas que iluminavam amarelamente o
ambiente como se nunca as tivesse percebido.
144
Lenard
- Minha amada filha. (Lenard disse acariciando o bonito rosto da
menina). Disse que não consegue se lembrar o porquê de seu
diário ter acabado naquela data, então comece tentando lembrar
da noite em que escreveu a última página.
Charlotte
- Eu não consigo papai.
Lenard
- Você não consegue ou você não quer?
Charlotte
- Sim eu quero, mas como posso me lembrar de algo tão
distante?
Lenard
- Você terá que se esforçar. Charlotte, eu sei que já entendes
muitas coisas, inclusive que quando queremos alguma coisa
devemos buscá-la com perseverança.
Charlotte
- Está bem. Vou fazer o que posso.
Lenard
- Tenho certeza que irá conseguir.
Charlotte fitou os olhos verdes do pai antes de fechar os
seus como se confirmasse alguma coisa, ela se concentrou e por
alguns segundos não se pode ouvir sua doce voz, respirou fundo,
Lenard segurou as mãos da menina que pareciam suar, foi
quando seus lábios se mexeram e ela começou a narrar o dia da
última data do diário.
145
Charlotte
- Eu estava calma apesar da pontinha de ansiedade para o dia do
me aniversário chegar, quando acordei passeei por todo o
jardim. (Seus lábios sorriram). Lembro-me de sentir o aroma das
flores quando um vento suave soprou e quase me levou para
longe, quase não, ele me levou...
E como se a menina estivesse assistindo ao filme do que
estava falando, as cenas foram se formando em sua mente como
se projetassem em uma tela de cinema. Ela contava ao pai e
relembrava para si mesma.
Charlotte continuando;
-... Naquele dia eu senti como se estivesse memorizando a casa e
tudo mais, não sei o porquê desta iniciativa boba, mas foi o que
me deu vontade de fazer. Então eu adormeci bem cedo, porque
queria que a noite passasse bem depressa para o dia seguinte
chegar bem rápido, o dia do meu aniversário...
E novamente as cenas voltaram a aparecer nos olhos
fechados de Charlotte.
Naquele dia, ouviu-se passos correndo sobre a casa,
Lenard estava sentado em sua poltrona, com seus grandes óculos
e um livro pequeno sobre a mão, olhou para o teto ouvindo os
risos de Charlotte dando bom dia a tudo que via, as leves rugas
de seus olhos verdes frisaram-se quando a aniversariante desceu
a escada.
Charlotte correndo entusiasmada ao encontro do pai;
- Bom dia papai!
Lenard levanta-se com os braços abertos recebendo toda a
felicidade de sua filha;
- Bom dia minha filha! Como se sente neste dia glorioso?
146
Charlotte
- Radiante como sempre papai. Especialmente hoje! Afinal, não
é todo dia que fazemos vinte anos.
Lenard
- Sim! E por este motivo, hoje iremos à cidade comprar seu
presente.
Charlotte sentando-se no sofá junto a Lenard;
- Ah não papai! Sei que não podemos gastar dinheiro. Não se
preocupe com isso, me contento em passar o dia aqui com o
senhor. Ser sua filha já é o meu maior presente.
Lenard
- Não, não, não, não, não! Você é a felicidade desta casa e vamos
à cidade sim, e a senhorita poderá escolher o presente que quiser
para dar um novo colorido a essa luz que irradias. Afinal não é
todo dia que fazemos vinte anos. Não é mesmo?
Charlotte o abraça e dá um grande beijo na bochecha do pai;
- Está bem! Já que insiste. (Ela levanta-se). Então tomamos
nosso breakfast e partimos em seguida.
Eles seguiram de carro para a cidade que não ficava
muito longe dali, apenas tinham que descer a estradinha de terra
pela montanha, que em algumas curvas dava para desfrutar da
paisagem do oceano.
Lenard
- Charlotte, como já sabe, estamos passando por um momento
difícil economicamente falando. Andei pensando em alugar
parte da casa para alguém bem recomendado e que seja de bom
grado para nós.
147
Charlotte
- Mas papai! Não tem outra maneira de conseguirmos nos
manter sem ter um estranho convivendo conosco?
Lenard
- Infelizmente não vejo outra saída minha querida. Ou isso, ou
em breve não sei o que será de nós. Com a população da Irlanda
fugindo nos últimos anos por causa do tifo, a crise da batata em
nossa terra e tudo mais, ficamos a mercê de uma grande queda
econômica.
Charlotte relutou mais um pouco com expressão de quem não
gostou, mas compreensiva e doce como sempre, a moça abriu
um sorriso e disse ao pai:
- O que decidir está decidido, pois o senhor é pai e mentor da
nossa casa, e graças aos seus ensinamentos sou tão feliz como
sou. Isto quer dizer que o senhor sempre sabe o que faz, por isto
devo confiar que tudo ficará bem.
Lenard olha para Charlotte e sorri;
- Vou deixar a encargo de um corretor que conheci na cidade.
Dizem que ele é o melhor para nos ajudar a encontrar a pessoa
certa como inquilina.
Lenard e Charlotte cantavam e brincavam pelo caminho,
estavam felizes e distraídos com aquele dia tão esperado pela
carismática menina. Quando de repente, em uma das curvas,
Lenard avistou um carneiro perdido no meio da estrada, tentou
desviar pisando no pedal de freio e virando o volante
bruscamente, o carro deslizou sobre a pequena estradinha de
terra e quase que inevitavelmente despencou do alto do
penhasco caindo nos enormes rochedos do mar.
Charlotte abriu os olhos negros como um estalo e os
arregalou, ela estava tão chocada que não conseguia nem sequer
148
falar, os verdes olhos de Lenard pareciam calmos e entendidos.
Com a voz trêmula a meiga menina criou o mínimo de coragem
e perguntou ao pai falando baixo como se estivesse fraca:
Charlotte
- O que aconteceu?
Lenard segurou ainda mais firme nas mãos da menina ainda
com toda delicadeza e respondeu suavemente;
- Naquele dia minha querida filha, enquanto nós seguíamos para
a cidade, houve o acidente que acabaras de lembrar.
Charlotte
- Não pode ser verdade papai.
Lenard
- Sim é. Foi tão verdadeiro quanto este momento que estamos
tendo. O carro em que estávamos despencou e caiu nos
rochedos.
Charlotte deixou seus olhos encherem de lágrimas e
transbordarem como uma cachoeira;
- E como nós sobrevivemos? Como não pude me lembrar de
tudo isso durante todo esse tempo? Por acaso perdi parte da
minha memória?
Lenard sorriu;
- De certa maneira sim, mas isso foi propositalmente minha
querida.
Charlotte
- Papai, eu não entendo!
Lenard respirou fundo e continuou calmo e sereno;
- Minha filha, nós não sobrevivemos ao acidente.
149
Charlotte não se levantou de onde estava, não por não estar
desesperada, mas porque nada lhe fazia sentido, e além disso, se
sentia um pouco fraca para se levantar e esbravejar;
- Papai não é hora para brincadeiras, estou em uma agonia só
agora que acabo de me recordar dessa triste tragédia, sinto como
se um parasita me consumisse de dentro para fora.
Lenard
- Fique calma minha filha, já já irá passar essa terrível sensação
que infelizmente não posso aliviar. Mas permita-me explicar
tudo.
Charlotte
- Então explique-me, por favor.
Lenard
- O carro despencou, e como nós estávamos dentro dele não teria
como sobrevivermos a tal ponto. O que acontece é que quando
nosso corpo morre, nossa alma continua, mas todos nós temos
um caminho a seguir, seja na vida terrena ou na espiritual, e esse
caminho é traçado conforme nosso aprendizado, nossas atitudes
e inúmeras outras coisas. Eu, quando morri, acordei ao lado de
amigos que me ajudaram a entender o que tento te passar agora.
Charlotte
- Papai,estou confusa.
Lenard
- Espere-me terminar. Como estava dizendo, minha alma foi
acolhida em um novo lar devido ao meu entendimento e
comportamento. Já você minha amada filha, não estava
preparada para seguir em frente, você sempre amou muito a vida
e tudo que tinha, ainda não estava pronta para entender que
sempre estamos partindo para algum lugar, e isso não
necessariamente seja ruim.
150
Charlotte ainda tristonha;
- Acho que estou começando a entender.
Lenard
- Sim, sei que está. Você também ainda tinha uma missão que
não deu tempo de completar.
Charlotte
- Tinha? Qual papai?
Lenard
- Fazer com que o rapaz Heitor enxergasse a vida e perdoasse
seu passado.
Charlotte curiosa gritou o nome do rapaz;
- Heitor! Ele também está morto?
Lenard riu sem aguentar a ironia;
- Agora não mais.
Charlotte estranhou;
- Papai, o senhor enlouqueceu. Se Heitor está vivo e eu
não,como conversei com ele todo esse tempo? Como ele “quase
sempre” me respondeu? Como brincamos juntos? Até a Neblina
consegue me ver!
Lenard
- Sim é verdade, Neblina apenas consegue vê-la por ser um
animal, e os animais são muito sensíveis, eles conseguem captar
uma mínima vibração, seja positiva ou negativa.
Charlotte
- E Heitor? Vai me dizer que ele também é sensitivo?
151
Lenard
- Não Charlotte, Heitor não tem nada de mediúnico, muito pelo
contrário, ele não acredita de maneira nenhuma nesse tipo de
coisa. Suas conversas com ele, os momentos em que se tocaram,
só provocavam reações porque a conectividade entre vocês dois
vai muito além do que ele acredita ou deixa de acreditar, e mais
além ainda do que você conhece ou desconhece. Vocês dois são
como almas gêmeas, não se perdem um do outro nunca.
Charlotte não pode esconder sua tristeza;
- Então me diga papai. Heitor nem sabe que eu existo não é?
Lenard acariciou a filha mais uma vez;
- Sim sabe, mas não como no plano em que ele vive. O que você
fez é uma prova disso. Hoje ele é um rapaz completamente
diferente daquele que apareceu aqui com sapatos brilhantes e
figura arrogante, soberbo, não suportava a própria existência.
Agora todas as manhãs que acorda agradece, inclusive seus
agradecimentos também são direcionados a você.
Charlotte levantou-se e seguiu para a parede de vidro, Lenard a
seguiu;
- Então nada foi em vão? Apenas lamento por não poder dizer
um olá a ele.
Lenard
- Não lamente minha querida filha, agradeça pela oportunidade
que tivestes de ficar e cumprir o que já te estava determinado.
Charlotte
- Papai, ainda tenho muitas dúvidas. Aconteceram muitas
coisas...
152
Lenard
- Eu sei querida Charlotte, vim justamente para ajudá-la a
entender.
Lenard e Charlotte continuaram por ali conversando, a
menina ficara triste como nunca antes na vida, melhor dizendo,
na morte. Trovões e raios escandalosos acordaram Heitor no
meio daquela noite que tirara o sossego do rapaz, ele se sentia
estranho, agoniado, como se uma mão estivesse apertando seu
coração, assim como Charlotte. O tempo parecia se revoltar
contra aquela parte do penhasco, ventos furiosos balançavam as
janelas e os pesados e grossos pingos de chuva caíam tão rápido
que se alguém ficasse debaixo da chuva, sentiria como se seu
corpo estivesse sendo perfurado. A menina continuava a fazer
milhões de perguntas que explicavam tudo, e talvez, se ela
encontrasse algo que não fizesse sentido, poderia fazer tudo
aquilo cair por água, poderia ainda haver a esperança de que
tudo não passasse de um longo pesadelo.
Charlotte
- Mas papai, quando fui até a lojinha da dona Abigail e de sua
irmã gêmea Agatha, ela acenou para mim.
Lenard
- Sim, pois elas são médiuns.
Charlotte andou de um lado para o outro tentando lembrar-se de
fatos que comprovariam sua existência material;
- E no jardim secreto? Lembro-me de tocar Heitor
especificamente no ombro.
Lenard ainda parado respondia com total paciência as questões
da filha;
- Mas você o tocou, não fisicamente, pois não possuis mais o
corpo material e sim apenas seu perispírito que é uma áurea,
153
uma forma fluídica de você mesma, e essa forma contém a sua
energia que quando empregada a alguma coisa provoca reações.
Às vezes os espíritos ainda encarnados costumam sentir
quenturas sobre partes do corpo ou até beliscões, o que também
pode ser uma segunda energia agindo sobre aquela matéria.
Charlotte parou desanimada;
- Então estás me dizendo que...
Lenard aproximou-se da filha;
- Estou dizendo que a união de vocês dois é muito forte, Heitor
sempre a sentiu, mesmo sem perceber. Todas as suas conversas,
seus toques e tudo que vocês viveram. Tudo foi verdade, é
verdade. E você sempre esteve tão viva para ele que tudo que
acontecia só os unia ainda mais. Com você, apesar dele sempre
estar sozinho, Heitor aprendeu a conversar com sua própria
consciência, era o que às vezes acontecia, e coincidentemente
você falava, assim parecia que ele a respondia. Não se preocupe
querida filha, você está no coração de Heitor.
Charlotte respondeu ainda mais desanimada;
- Sim, eu sei.
Lenard
- Charlotte, eu sei que amas a vida mais que qualquer outra
coisa, mas sabes que não podemos ser egoístas, a nossa hora de
morrer sempre será a hora certa, seja ela por um acidente ou um
crime brutal, o propósito está em tudo e sempre temos que
buscar entender com coerência que mensagem está sendo
passada. Não julgue nem condene o destino, pois senão estarás
julgando e condenando a si mesma.
154
Charlotte abaixou sua cabeça;
- Eu o entendo papai, apenas preciso de mais um tempo para
assimilar as coisas.
Lenard
- Tem todo o tempo que quiser. Eu estarei por aqui, qualquer
coisa é só me chamar. (Charlotte acenou positivamente com a
cabeça de uma maneira não muito animadora).
E Lenard pôs-se a subir a escada ao mesmo tempo em
que Heitor a descia, o rapaz passou por ele segurando um
candelabro cheio de velas, então antes de cruzar a sala foi até a
parede de vidro onde estava Charlotte, ele permaneceu lá
olhando a terrível tempestade.
Heitor naturalmente falando;
- Mal posso acreditar.
Charlotte aproximou-se do rapaz e lhe encarou com seu rosto
tristonho, mas ele continuou a olhar para o horizonte;
- Nem eu Heitor.
Heitor
- Até ontem o tempo estava perfeito, agora isto. Esperemos que
melhore.
Charlotte
- Sim, esperemos.
O rapaz continuou seu trajeto até a cozinha e Charlotte o
seguiu observando todos os seus movimentos, ele se sentou a
mesa após pegar um copo de leite na geladeira, a menina sentou-
se a seu lado, experimentando sua nova condição, ela aproximou
seu rosto do de Heitor e nenhuma diferença na reação do moço
obteve, assoprou-o uma vez, e nada. Um pouco mais forte desta
155
vez, e absoltamente nada, Heitor continuava a tomar
tranquilamente seu leite. Charlotte pareceu desistir, então
respirou fundo e soltou ferozmente o ar bem em frente ao rosto
do rapaz.
Heitor olhando para os lados;
- Uma brisa?! Será que deixei alguma janela aberta?
Charlotte riu suavemente;
- Só se foi a da minha alma.
Charlotte se permitiu apenas ficar ali observando Heitor,
e quando ele se dirigiu para o seu quarto, ela o seguiu, pois ele
não à via mesmo. Neblina estava em sua grande almofada ao
lado da cama, finalmente pareceu que a gata aprendera a dormir
em seu lugar, e seu ronronar quase se tornava um fundo musical,
tirando algumas vezes em que ela parecia engasgar, mas isso não
a acordava. Da janela do quarto, Heitor olhava a chuva
inquietamente.
Charlotte ainda triste se sentia melhor ao lado do rapaz;
- O que foi Heitor? Parece agitado.
Heitor não a respondeu e seguiu para sua cama deitando-
se de lado, vagarosamente Charlotte caminhou e se deitou ao
lado de frente para o moço, já amanhecia.
Charlotte
- Sei que de alguma forma você pode me sentir, mas não fique
assim, agoniado como estou, deves apenas sentir as coisas boas
que há em mim. Sabe Heitor, não existiria como eu reagir de
outra forma a uma realidade dessas, apesar de eu já entender
muitas coisas em relação à morte, não teria como eu a receber
sem lamentos. (Charlotte deixa o quarto).
156
E Heitor adormeceu profundamente, sua visão no escuro
de seus olhos fechados girava e girava, de repente como um
sonho ele estava na janela olhando as estrelas que ainda
brilhavam naquele céu que acordava, mas aquela janela não era
a do seu quarto e sim a do sótão onde Charlotte ficava. Ele se
virou lentamente sem entender o que fazia ali, uma emoção forte
lhe tomou conta e ele caminhou até a cama de lençóis rosados,
sentou-se nela, e sua mão pode tocar os negros cabelos macios
que se esparramavam sobre os inúmeros travesseiros.
Heitor falou tranquilamente;
- Você é exatamente como eu sempre imaginei.
Charlotte que estava deitada na cama abriu os grandes e
puxados olhos;
- Heitor!
Heitor
- Charlotte. Minha querida amiga Charlotte. (A menina por um
impulso o abraçou e fora retribuída fortemente, Heitor sorriu).
Também é bom te ver!
Charlotte
- Não sabe como é bom poder falar com você Heitor!
Heitor
- Sim, sinto o mesmo. (Heitor acomodou-se na cama). E como
você está?
Charlotte entristeceu-se;
- Não muito bem.
Heitor se levantou em um pulo e saiu andando;
- Então eu vou embora!
157
Charlotte também se levantou em um pulo;
-Por quê? Para onde?
Heitor parou e deu meia volta;
- Oras! Você não é a Charlotte, a minha grande amiga.
Charlotte
- Sim, eu sou!
Heitor aproximou-se;
- Não, não é! (Heitor pegou Charlotte pela mão e a girou como
em um passo de balé). Charlotte rodopiava como um pião
sempre que estava feliz, e olha que engraçado, ela nunca ficava
tão triste. (Após rodopiar, Charlotte parou tonta de frente para
Heitor e já havia um grande sorriso em sua fronte). (Heitor
gritou animado). Charlooooootte! Você apareceu! Sabia que
tinha uma menina meio antipática aqui dizendo que era você?
Charlotte mais descontraída;
- É mesmo?
Heitor voltando a dançar com a moça;
- Siimmm! Ela até era bonitinha assim como você. (Heitor riu
do que falou). Mas não tinha esse sorriso, nem esses olhos
coloridos.
Charlotte
- Meus olhos não são coloridos Heitor, eles são negros como
jabuticabas.
Heitor
- Sim, e os meus são como balas de caramelo. Se misturássemos
isso daria um doce, “Jabutimelos!”.
158
Charlotte
- Eu que não vou provar desse doce. (Heitor parou de dançar e
começou a procurar alguma coisa). O que você está procurando?
Heitor voltou a encarar Charlotte;
- Você de novo! Roubou a Charlotte de mim! Ela nunca negaria
provar algum doce, ainda mais um criado por mim. Cadê ela?
(Heitor começou a fazer cócegas na menina). Anda! Vamos!
Tem que me dizer ou eu a torturarei para todo o sempre com
meus deedoosss...
Charlotte parou de gargalhar e de fugir de Heitor quando eles
caíram na cama e o rapaz se calou;
- Com seus dedos o que Heitor?
Heitor
- Não sei, não achei nenhum nome pra eles.
Charlotte sorridente;
- Então tá! Estou de volta.
Heitor respirou fundo;
- Ufa! Não deixe mais esses alienígenas tomarem conta de você,
dá um trabalhão expulsá-los.
Charlotte
- Pode deixar! Serei forte.
Heitor disse sério olhando para a moça;
- Você é o que há de mais sublime no meu mundo, e nada
existiria para mim se você não existisse. (Heitor se levantou e
foi até a janela). Você me apresentou o canto dos pássaros, o
cheiro do verde, a visão do infinito e o sabor da vida. Como
agradecer a toda essa gentileza?
159
Charlotte indo até Heitor;
- Não precisa Heitor, nós estamos quites. Você também me
ensinou muitas coisas. A ter paciência, a respeitar a
individualidade dos outros, a não exigir que todos tenham a
obrigatoriedade de saber tudo que sei e de entender do mesmo
jeito que entendo. Diante disso não esperar que as atitudes de
outrem sejam as mesmas que as minhas, e também me ensinou a
não cobrar e sim doar. Se eu quero carinho, devo primeiro dar
amor.
Heitor
- Fico feliz!
Charlotte
- É bom que fique mesmo, pois em breve terei que partir.
Heitor
- Sabe Charlotte, é difícil quando nos adaptamos a algum lugar,
ou quando nos apegamos a alguém, deixar esse ambiente
costumeiro ou a pessoa querida, partir sem saber para onde e
quem nos espera. Mas a vida é assim, cheia de surpresas e
desafios, e pode ser que o mais difícil seja conseguirmos superar
o nosso grande egoísmo de querermos as pessoas para sempre
conosco. Não minha querida Charlotte, devemos deixá-las
seguir, seja em vida ou em morte, pois nós não somos daqui, nós
apenas estamos aqui. O Fim nada mais é que a passagem para
um novo começo e uma nova possibilidade de acertar seus
antigos erros. A evolução sempre andará de mãos dadas ao fim e
ao recomeço, como um ciclo.
E os dois amigos passaram um longo tempo ali
conversando e relembrando suas aventuras. Era de se admirar o
quanto o menino Heitor estava mudado, feliz e bem resolvido
com sua própria vida. Charlotte não estava mais triste e chorona,
pois seu amigo lhe mostrara que o que eles viveram fora um
160
momento, e que momentos vão e vem, mas independente disso o
que eles aprenderam um com o outro, e o amor que surgiu,
perdurará para todo o sempre. A mancha da dor desaparecera do
coração de Charlotte que agora ria da maneira que Heitor
contava sua história. Foi quando Lenard aparecera na porta do
sótão orgulhoso e contente em ver os dois amigos juntos que na
mesma hora perceberam a presença dele.
Heitor perguntou baixinho para Charlotte;
- Ele é o seu pai? O senhor Lenard?
Charlotte disse orgulhosa;
- Sim Heitor, ele é o meu pai!
Lenard ainda parado na porta;
- Olá Heitor! Como vai?
Heitor
- Eu vou bem senhor, obrigado!
Lenard
- Charlotte!
Charlotte
- Sim papai!
Lenard
- Está na hora de irmos. (Charlotte olhou para Heitor).
Heitor
- Também sentirei sua falta minha amiga. Não se preocupe mais,
tudo ficará bem. (Heitor abraçou a moça que não conseguiu
segurar suas lágrimas). Não chores!
161
Charlotte
- Choro de felicidade Heitor, choro por termos vivido essa
amizade tão bonita.
Heitor sorridente segurou no rosto da menina com as duas mãos
e lhe beijou o nariz, Charlotte sorriu.
- Até logo.
Charlotte
- Até mais tarde.
Os olhos de Heitor se abriram, ele acordou com Neblina
lambendo seu ouvido.
Heitor acordando sonolento;
- Neblina não faça isso! (Ele pega o relógio). Que horas devem
ser? Meu Deus! O dia se passou e eu nem reparei, por isso você
está quase devorando todo o meu rosto. (Ele se levanta).
Heitor na cozinha após ter posto a comida da gata lembrava-se
vagamente do sonho;
- Neblina, acho que tive um sonho com a Charlotte. Não me
lembro muito bem como foi, mas... Acreditaria se eu dissesse
que ela pode ter vindo visitar-nos? (A gata miou). É, eu também.
E no final da tarde, o tempo já havia melhorado como em
um passe de mágica, Heitor saiu na varanda, não acreditou e
mais uma vez repetiu que aquele lugar era louco, e era mesmo,
movido pela grande energia da paixão. A tela que estava sendo
pintada por Heitor terminara, se chamava “A Mansão do
Penhasco”.
O sol ainda brilhava ausente de nuvens, assim o céu azul
era todo para ele que expandia seus raios ofuscando a visão de
quem tentasse contemplá-lo, tocando o oceano, em um momento
de concentração dava-se para ouvir o seu chamuscar, o horizonte
162
era onde o sol dormia. Heitor sorridente estava parado no meio
do jardim admirando a paisagem. Charlote e seu pai também
estavam lá, a menina olhou para trás e para a mansão que
passara toda sua vida, sem mais demora sorriu quando seu olhar
cruzou com o de Heitor, e em direção ao sol seguiu com seu
querido pai sumindo dentro da luz.
163
Texto encontrado por Heitor numa folha de papel bem dobrada à
parte entre as páginas do diário de Charlotte.
Para sermos felizes, não precisamos estar cercados por pessoas, pois ao percebermos toda a natureza, a cada detalhe em que Deus criou as árvores, as folhas, as flores, a terra, os grãos de terra, e em cada grão de terra, encontramos uma cor, um formato, uma beleza própria... É onde percebemos não estarmos sozinhos. Temos toda a companhia de Deus em tudo que nos cerca. Somos menores que um grão de terra, onde fazemos parte de um espaço infinitamente sem limites, se você não aprende a viver e a conviver consigo mesmo sem pessoas ao seu redor numa mansão vazia, sem ninguém, como aproveitar a vida e estar em paz na solidão, quando percebemos e nos deparamos com uma realidade muito maior do quê essa de uma casa tão grande sem pessoas? Pois é! Ao aprendermos a viver sozinhos, acabamos encontrando tempo para observarmos pequenos detalhes que normalmente passam desapercebidos como os que citei anteriormente, árvores, folhas, terra, grãos de terra e etc. Ao olharmos para o céu, notamos infinitas estrelas, planetas, estrelas cadentes, infinitas possibilidades de vida onde não estamos sozinhos nunca, pois Deus está em toda parte, ele está nisso tudo, sendo assim, está comigo, com você, está em todos nós seres vivos que fazemos parte desta criação. Não precisamos nos sentir sozinhos, sempre estaremos muito bem acompanhados por Ele.
Charlotte
FIM
164
Título: A MANSÃO DO PENHASCO
Autora: CAMILA DE ALMEIDA
Membro Titular da ACLAC
Capa, Diagramação e Edição:
LENARDO SANCHES
EDIÇÃO 2015
(PRODUÇÃO INDEPENDENTE)
CONTATOS:
http://camiladalmeida.blogspot.com/
https://www.facebook.com/escritoracamiladealmeida?fref=ts
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