NEARCO Revista Eletrnica de Antiguidade 2014, Ano VII, Nmero I ISSN 1972-9713 Ncleo de Estudos da Antiguidade Universidade do Estado do Rio de Janeiro
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AS CORES DAS MILCIAS DE JESUS DE NAZAR: UMA ABORDAGEM SOBRE A PLAUSIBILIDADE HISTRICA E TEOLGICA DAS ORIGENS SOCIOTNICAS DOS SEGUIDORES DO MESSIAS
Joo Batista Ribeiro Santos1
RESUMO
A busca cientfica do Jesus histrico tem fornecido farto material para a pesquisa dos efeitos diretos provocados por aquele movimento messinico. Mas, para quem quer evitar qualquer tipo de proselitismo, ainda restam perguntas sem resposta. Entendemos que historicamente pode-se fazer grandes descobertas em territrio srio. Assim sendo, partindo de documentos legais e evidncias sociais, procuramos abordar as origens identitrias dos primeiros seguidores de Jesus de Nazar.
Palavras-chave: Cristianismo primitivo; Etnicidade; Crtica social
RSUM
La recherche scientifique du Jsus historique a fourni suffisamment d'lments de recherche sur les effets directs causs par ce mouvement messianique. Mais, pour ceux qui veulent viter toute forme de proslytisme, il y a des questions encore sans rponse. Nous croyons que historiquement on peut faire de grandes dcouvertes en territoire syrien. Par consquent, partir de tmoignages et de documents juridiques, nous cherchons traiter les origines sociales de l'identit des premiers disciples de Jsus de Nazareth.
Mots-cls: Christianisme primitive; Ethnicit; Commentaire social
1 Mestre em Cincias da Religio, com especialidade em literatura e religio no mundo bblico, pela
Universidade Metodista de So Paulo (UMESP) e mestre em Histria, com especialidade em histria antiga, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: [email protected]
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Os senhores me desculpem. Mas, devido ao adiantado da hora,
me sinto anterior s fronteiras (Carlos Drummond de Andrade)
A busca pelas origens dos primeiros cristos no mais permite aos textos do Novo
Testamento, como documento textual, a ltima palavra para os pressupostos quanto
interpretao de testemunhos arqueolgicos, necessrios para procedimentos
cientficos em relao lonjura histrica do evento narrado. Para a reconstruo
histrica a cultura material e o contexto das periferias siro-palestinas, muito mais do
que centros urbanos como Jerusalm e Tiberades, permitem-nos processar o
desenvolvimento do movimento liderado por Jesus de Nazar, ou Jesus, o Nazareno
(Ieson tn aut Nazarth/Ieson tn Nazoraon). Para o Paulo Augusto de Souza
Nogueira (2010, 19-21), ao separar-se do judasmo, seu horizonte fundante, o
cristianismo formativo ganha autonomia e torna-se helenstico-romano, trafegando do
particular para o universal. Essa expanso no diminui a pertena dos grupos
populacionais perifricos ao verdadeiro Israel, mesmo com a dupla peculiaridade em
relao ao judasmo rabnico, assinalada por Paulo Nogueira (2010, 27), ou seja, a
submisso poltico-militar aos romanos e a interao cultural com o mundo
helenstico-romano. Com base nisto, no quadro da evoluo histrica dos tempos os
acontecimentos escatolgicos, t eschta (as ltimas coisas), a evidenciao de
eschtos krnos (o ltimo tempo), com Jesus de Nazar passam a designar eschtos
kairs (o tempo justo) e o prprio Jesus torna-se o novum ultimum.
Apercebidos da ruptura em construo, nem mesmo a complexidade religiosa
delimitadora dos ambientes de atuao de Jesus consegue desassociar os seguidores,
pois eles tm em comum a insatisfao com a opresso romana e com a excluso do
judasmo templar, motivo pelo qual muitos grupos tornam-se guerrilheiros. Mas a
esperana messinica o decisivo fator de convergncia ao lder. A escatologia judaica
pode explicar o fenmeno marcado pela vinda do Messias, como evento essencial.
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de sua caracterstica romper com o tempo cclico e apontar para um tempo final sem
sair da histria, nada de mitos e ritos (LE GOFF, 2012, 328), pois o Jesus histrico,
que como qualquer pessoa faz parte de histria, no sendo outra coisa que uma
pessoa histrica, foi removido da ordem mtica (STEGEMANN, 2012, 26). Quanto a
isso, a constatao de Franois Chtelet (1996, t. 1, 23) de que na viso hebraico-crist
o esprito o formador do futuro humano como tal,2 ainda que aqui possa ser vista
retrospectivamente como um laivo metafsico no denominador da filosofia da histria,
no o contradiz. Dada a sua importncia, o evento torna-se determinante para a
humanidade, produo da histria, mesmo sem uma causa que comprove a
temporalidade como projetada (CHTELET, 1996, t. 1, 25-30). Assim a presena de
Jesus de Nazar pe fim espera e a esperana, que se tornara o prius, desata o n da
hesitao formada pelos anncios tradicionais dos messias. A partir desta concepo
torna-se possvel ao Filho do Homem, o prprio Deus, rejeitar a designao
monrquica de filho de Davi (LE GOFF, 2012, 329); por isso os espoliados o seguem,
sem o perigo da escravido.
Como lembrou com justeza Wolfgang Stegemann (2012, 29), a pesquisa
histrica sobre Jesus de Nazar representa uma construo no interesse perspectivo
de seus autores, assim sendo, buscaremos o que Franois Chtelet (1996, t. 2, 394-
402) chamou de considerao historiogrfica dos fatos, possibilitada atravs de
uma associao da vida poltica como tal, necessria para o pensamento cientfico da
histria, para ento apresentar uma hermenutica do documento cannico de Mateus
4.23-25 e seus reflexos na sociedade hodierna.
2 Para Franois Chtelet (1996, t. 1, 23), refletir sobre o pensamento cristo faz parte da constituio do
esprito do historiador.
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INTERAES SOCIOTNICAS SOB A TEXTUALIDADE TEOLGICA
As bases bblicas que permitem uma abordagem cientfica da justia em favor do
pobre e de lutas de libertao, em que a teologia seja encontrada em dilogo
multidisciplinar com as cincias humanas, tm origem nas leis cuneiformes sumrias,
que tambm influenciaram as leis assrias, babilnicas e hititas.
Siete son los cdigos o recopilaciones de leyes en escritura cuneiforme de los que hasta el momento tenemos noticia: las Leyes de Ur-Namma y las Leyes de Lipit-Itar en lengua sumeria; las Leyes de Enunna, las Leyes de Hammurapi, las Leyes Asirias y las Leyes Neobabilnicas en lengua acadia; y las Leyes Hititas en lengua hitita. Los siete documentos presentan los suficientes rasgos comunes como para agruparlos en un nico gnero literario, en el cual habra que incluir tambin los dos de la Biblia (xodo 21.222.6; Deuteronomio 21.125.11) y el cdigo romano de Las Doce Tablas (c. 450 a.C.). En efecto, La formulacin de la ley en el antiguo Israel procede de una tradicin legal a la que pertenecen los cdigos cuneiformes, cuyos primeros testimonios fueron las leyes sumerias, y que probablemente tuve su influencia en la primitiva ley romana (MOLINA, 2000, 17).
Dos cdigos de leis (MOLINA, 2000) destacamos dois pargrafos das leis de Lipit-
Itar (quinto rei da I Dinastia de Isin, c. 1934-1924); sobre a compra-venda ou
arrendamento de terrenos: 11 Si un hombre le daba su huerto en alquiler a un
horticultor para que lo cultivase, el horticultor le garantizaba al dueo del huerto que
(ste) obtendra, en dtiles, la dcima parte de las palmeras; sobre o pagamento de
impostos: 23 Si el dueo de una hacienda, o la duea de una hacienda, no
satisfaca los impuestos por dicha hacienda (y) otra persona se haca cargo (de
pagarlos), (el dueo o la duea) no era desahuciado a lo largo de tres aos; (si pasados
estos tres aos) el hombre que haba pagado los impuestos por la hacienda tomaba
posesin de la hacienda, el dueo de la hacienda no haca ninguna reclamacin. H
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em um cdigo de leis que tem sido considerado como fragmento das leis de Ur-
Namma (primeiro rei da III Dinastia de Ur, c. 2113-2096), mas cujo rei-autor
annimo, que destacamos dois pargrafos sobre o cultivo de roas: 1 Si un
hombre [...] la hacienda de (otro) hombre, [...] su hacienda, (entonces) el propietario
del grano pretaba juramento (y) el propietario de la hacienda [...] el grano-...; 2 Si
un hombre [...] la hacienda de (otro) hombre, ... [...] el testigo ... [...], (entonces) el
propietario de la hacienda *...+ grano all. Apenas estes exemplares de prtica legal
so suficientes para dimensionar o carter humanitrio favorvel sobrevivncia do
pobre das leis sumrias que influenciaram diretamente jurisconsultos do antigo
Oriente-Prximo por mais de dois milnios.
A prtica legal remonta poca de Yemder Nasr, cerca de 3000-2900 a.C., cujos
textos so denominados kudurru, e os documentos privados comearam a aparecer
em uruppak, cerca de 2600-2450 a.C. (MOLINA, 2000, 26-27). Em situao existencial
um tanto diferente, mas geogrfica e politicamente semelhante, os mnemones
israelitas, sacerdotados e historiadores-juristas deuteronomistas responsveis pela
tradio legal bblica, apresentam Deus como aquele que intervm histrica e
inexoravelmente em favor do miservel; sua sentena deve ser conhecida a partir de
um juzo sem associao com as justias retributiva e distributiva, que pode ser
definida a priori como justitia adiutrix miseri. Para Rinaldo Fabris (1991, 23), o motivo
de aqueles que esto em uma situao de misria e humilhao terem a preferncia
de Deus est no modo de agir de Deus; eles so o alvo para onde a gratia enviada,
cujo intuito evitar que continuem representando um problema socioeconmico.
No desenvolvimento deste pressuposto, definidor das motivaes relacionais
dos seguidores de Jesus de Nazar, a camada literria de redao mateana
denominada de Bem-aventurana a preleo para o empoderamento guisa de
artilharia para as milcias (SANTOS, 2010), porque as fragilidades devem ser
transformadas em fora. Em vista disto, tanto para a abordagem das socioetnias
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quanto para o problema das relaes humanas o documento cannico de Mateus
4.23-25 constitui fonte indispensvel:
4.23 E circulava em toda a Galileia ensinando nas sinagogas deles e anunciando o evangelho do reino e curando toda doena e toda fragilidade no povo. v. 24 E saiu a fama dele para toda a Sria, e trouxeram a ele todos os que passavam mal [tos kaks echontas], com vrias doenas, e afligidos por torturas [basnois sunechomnous] [e] endemoninhados e lunticos [seleniazomvous; talvez, epilpticos+ e paralticos, e curou a eles. v. 25 E seguiram a ele muitas multides da Galileia e Decpolis e Jerusalm e Judeia e alm do Jordo.3
Como a indicao territorial do texto recai na Sria, o movimento de Jesus
extrapola a Galileia (ZEILINGER, 2008, 10);4 portanto, entre os seus seguidores esto
pessoas oriundas da regio mais intertnica do antigo Oriente-Prximo.5 So
3 Traduo literal realizada do evangelho segundo Mateus 4.23:
. v. 24 [] , . v. 25 (ALAND, Barbara; ALAND, Kurt; KARAVIDOPOULOS, Johannes; MARTINI, Carlo M.; METZGER, Bruce M. (eds.). The New Testament Greek. 4
th rev. ed. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft,
1993).
4 Em contrrio, Anthony J. Saldarini (2000, 132): O apelo e a reciprocidade mais amplos de Jesus ao
mundo no judeu so sugeridos por diversas notaes geogrficas na introduo de Mateus ao ministrio galileu de Jesus (4,23-25). Primeiro, est dito que Jesus percorre toda a Galileia, o que exagero, pois suas viagens limitaram-se, na maior parte Baixa Galileia e regio nordeste. Depois, consta que sua fama espalhou-se por toda a Sria, com o que provvel que o autor queira dizer o norte da Galileia, talvez at Antioquia. Por fim, multides, no s da Galileia, mas at da Decpole, ao sul e ao leste da Galileia, de Jerusalm e da Judeia e da regio alm do Jordo (Pereia) seguiam Jesus. provvel que devamos entender que as multides que vm da Galileia, da Pereia e da Decpole sejam judaica. A Sria, onde a fama de Jesus se espalhou, tinha populao diversificada, at mesmo importante minoria judaica. O contedo judaico das prelees e revises legais no suficiente para afirmar a univocidade das multides, ainda porque as multides ouvem com distino a Jesus. Concordamos, entretanto, com a interpretao posterior de Saldarini, quando afirma que a mesma multido que desce do norte e encontra-se com os demais grupos populacionais forma a audincia do Sermo da Montanha.
5 H uma vasta bibliografia sobre as regies que compreendem o antigo Oriente-Prximo, da qual
destacamos: LIVERANI, Mario. Antico Oriente: storia, societ, economia. Biblioteca Storica Laterza. 8. ed.
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encontrados entre antigos srios os maiores grupos populacionais do antigo Oriente,
dentre eles os abiru, qualificados operrios em terra e mar, alm de guerrilheiros
contra foras de ocupao imperiais no Mediterrneo, e os campesinos e beduinos
mediterrneos designados pelos egpcios de 3w/shasu. Foi no territrio srio que
floresceu um dos maiores imprios antigos, Khatt/Hitita, e o comrcio com os
imprios mesopotmicos Assria e Babilnia, alm das relaes internacionais com a
sia Menor, envolvendo compra e venda de minrios, tecidos, madeira e outros
produtos. Na Transjordnia esto os citadinos moabitas, edomitas e amonitas, e os
campesinos amalequitas, ambos antigos inimigos dos israelitas. Desse movimentado
mundo, do qual o Egito participava ora como aliado, ora como potncia invasora,
cristalizou a maior simbiose tnica e cultural que se tem notcia no Mediterrneo at a
emergncia do Imprio Romano.
Com referncia a esse processo, todos os protetorados estabelecidos na Sria-
Palestina durante o primeiro milnio a.C. (neoassrio, neobabilnico, persa,
macednio/grego e romano), por seus povoamentos coloniais, por um lado, e
ocupaes administrativas e militares, por outro, intensificaram as transies
identitrias, mormente a fluidez tnica dos grupos populacionais autctones, e
transformaram o meio ambiente. Esse mundo se mantm complexo, e s um olhar
panormico politicamente atento e radicalmente crente capaz de perceber
compreensivamente, mesmo em perspectiva, a construo multitnica empreendida
por Jesus de Nazar atravs das multides que o seguem, sua capacidade de liderar
Roma: Editori Laterza, 2009; PEYRONEL, Luca. Storia e arqueologia del commercio nellOriente antico. Roma: Carocci Editore, 2008; MICHEL, Ccile. Au-del des frontires: le commerce des assyriens en Asie Mineure au dbut du IIe millnaire av. J.-C. In: NOBRE, Chimene Kuhn; CERQUEIRA, Fabio Vergara; POZZER, Katia Maria Paim (ed.). Fronteiras e etnicidade no mundo antigo. Anais do V Congresso da Sociedade Brasileira de Estudos Clssicos. Pelotas, 15-19 de setembro de 2003. Pelotas, RS: Editora e Grfica da Universidade Federal de Pelotas; Canoas, RS: Editora da Universidade Luterana do Brasil, 2005. p. 69-86.
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comunitariamente tantos quereres polticos e saberes religiosos, tantas divergncias e
convergncias ontogenticas.
J. Andrew Overman (1999, 70-71) apresenta uma panormica geogrfica das
transformaes demogrfica e poltica a que chega a Sria-Palestina. Overman afirma
que o movimento de Jesus de Nazar estabeleceu-se na Baixa Galileia, sua extenso
para a fronteira galileia-libanesa foi uma exceo; apesar das conhecidas romarias de
seguidores da Decpole, muita gente vinha do litoral de Tiro e Sidnia. Isso explica-se
pelo fato de ser mais fcil o trnsito leste-oeste, pois no possui altiplanos
semelhana das faixas centrais norte-sul que dificultam as viagens a p. Outro dado
relevante, pouco difundido, que a Baixa Galileia no era um conjunto isolado e
atrasado de aldeias. Alm de uma importante estrada construda pelos romanos para
as suas guarnies, na cidade porturia de Aco iniciava uma estrada que passava por
Nazar, Can, Naim, chegava ao lago da Galileia e seguia para Damasco, na Sria.
Distante cinco quilmetros de Nazar, Sforis foi um centro cultural, administrativo e
poltico com vida urbana luxuosa, que teve como rival Tiberades, uma cidade com
qualificaes de capital com palcio e governante, senado e conselho municipal,
frum e fortaleza. Overman ainda lembra que foi nesse meio ambiente e contexto que
Jesus empreendeu a sua misso, Mateus escreveu seu evangelho e os rabinos
fundaram o judasmo rabnico.
Com esse olhar atento, vemos descer ao encontro de Jesus os moradores da
Sria, rumo Galileia no entorno do vale do Jordo, onde encontram-se com os
descendentes dos antigos samaritanos e os jerosolimitas, o povo dalm Judeia e,
completando o generoso colorido tnico e cultural, as populaes transjordanianas.
So fugitivos dos romanos e emigrados? A narrao mateana tem o propsito de
demonstrar a abertura da sua ekklesa, conceito e membresia fundante, mas
mormente dizer que houve uma difuso de seres humanos pagos e judeus do
norte da frica, do Mediterrneo e Egeu, da Mesopotmia e da sia Menor que, ao
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receberem a bendio de Jesus de Nazar, tornam-se as suas milcias6 e
posteriormente se fazem Reino de Deus.
Apesar de conceitualmente operar dentro do tempo e dos paradigmas judaicos,
sem alinhar-se, Jesus de Nazar circulou fora das fronteiras polticas de Israel. Era
notria a existncia de judeus na Cesareia de Filipe e na Sria, inclusive em contato
com comerciantes fencios nos limites de Tiro, mas nunca nos centros urbanos,
sempre nas pequenas aldeias rurais espalhadas pelo interior. O que parece incentivar
as peregrinaes pelas aldeias proibidas so, paradoxalmente, os textos rabnicos que,
ao favorecer o arrocho tributrio, colocavam as terras srias no mesmo parmetro das
terras nos arredores de Jerusalm; nessa mesma linha, no que tange observao da
Hallakah, a Sria era vista como parte da terra de Israel (FREYNE, 2008, 74). Destarte,
no apenas as identidades mas tambm as fronteiras eram fludas e estavam em
constante transio. Projetando o cenrio, Sean Freyne (2008, 88) diz que a imagem
de Abrao viajando por uma terra habitada por diversos grupos tnicos, inclusive
inimigos tradicionais do Israel histrico, e encontrando o Deus que guiava as suas
viagens em muitos pontos desse territrio, ressoa, com efeito, de modo marcante em
diversos pontos da histria de Jesus. Da, a nosso ver, a resoluta indistino de Jesus
ao conceder o direito diferena, no qual todos so filhos de Abrao.7
Ao trazer o encurvado (heb.: anaw; gr.: sugkptousa)8 para o contexto do
uis (filho), Jesus opera no domnio da histria social siro-palestina uma
ressemantizao para a designao de filho na mesma medida em que far com
6 A pesquisa que desenvolvemos com o tema especfico das Bem-aventuranas comprovou que as
milcias aludidas por Jesus de Nazar no eram designao de anjos, mas representava a sua multido de seguidores que estava disposta a morrer por ele (SANTOS, 2010).
7 Mas esta, filha de Abram, sendo a quem de fato Satans prendeu dezoito anos (Lucas 13.16); *...+
porque tambm este filho de Abram (Lucas 19.9).
8 Nesta ampla categoria esto presentes o pobre, o marginal social e o doente. Na experincia
cotidiana das sociedades mediterrneas do sculo I, doentes crnicos so exemplos expressivos para o grupo dos pobres (veja apenas Mt 4.23s) (STEGEMANN, 2012, 423, n. 890).
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abba (pai) e com makarisms (bendio). Alis, existem muitas bem-aventuranas
nas literaturas e inscries tumulares judaicas e gregas, como declaraes a homens
que obtiveram sucesso profissional, agraciados com uma mulher virtuosa, filhos bem-
educados etc. Contudo, as bem-aventuranas de Jesus de Nazar (Mateus 5.3-12;
texto mais antigo: Lucas 6.20-23) no so literatura sapiencial, mas ditos (logia)
profticos (BORNKAMM, 2005, 132; SANTOS, 2010). Considerando o tema das
relaes cotidianas, nas informaes do captulo 4.24-25 do evangelho segundo
Mateus est a introduo das bem-aventuranas enunciando a origem, ao menos
em parte, dos bem-aventurados. Alm disso, os kerigmata remontam em parte ao
prprio Jesus de Nazar.
A multido presente nomeada como [vs] os pobres [em esprito] de carter
social e econmico, ou seja, os que esto propensos a fazer a vontade de Deus;
portanto, nada de um grupo religioso, camada social ou populao tnica unvoca.
Dirigem-se queles que nada tm a esperar do mundo, mas que dependem e esperam
tudo de Deus; que no podem viver sem a justia que somente Deus pode estabelecer
no mundo. Nas qualificaes acrescidas pobres em esprito e puros de corao
h uma clara chamada de ateno aos religiosos, pois a questo distintiva e pode,
portanto, excluir a qualquer tempo tantos deles. Temos aqui a confirmao de que o
Nazareno no demonstra nenhum interesse pelo domnio intemporal de Deus,
totalmente tomado pela ativa espera de seu anunciado domnio soberano que influi
sobre o hoje histrico (BARBAGLIO, 2011, 294). Isso no se d ao acaso, Jesus elabora
os seus logia s margens beneficiado, em aparente paradoxo, pela tendncia de
diferenciao entre poder e religio praticada pelo judasmo, que tem uma religio e
um templo prprios mas no domina o sistema poltico (THEISSEN, 2009, 124).
importante acentuar que os protestos no violentos de Jesus contra as
camadas dirigentes de todos os segmentos da sociedade, inserindo no Reino de
Deus as populaes marginalizadas, no tm carter apoltico, apenas no age
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segundo a poltica de um mundo cujo poder maligno e cujo domnio demonaco. H
questionamentos polticos contra as polticas romanas, as religiosidades palestinas, as
ticas eletivas, as morais seletivas e o sistema de valores dos membros das camadas
dirigentes. Muito da indignao gerada pela espoliao econmica. Segundo Uwe
Wegner (2006, 118-119), baseado nas historiografias de Flavio Josefo, da renda da
produo anual da Palestina, entre 44 e 45 milhes de denrios (cerca de 14,75
toneladas de ouro macio), 1/6 dos impostos (100 talentos de prata) era recolhido na
Galileia; as pessoas que no pagavam os impostos (tributum capitis e o tributum
soli/agri) poderiam ser escravizadas ou condenadas morte, no importando as
condies ecolgicas de plantio/colheita ou perda da safra.
Diante desse quadro, Jesus de Nazar inaugurou um novo modus politicus: com
a nova destinao do Reino de Deus, acrescenta opo judaica pela justia a
prioridade pelos encurvados, por isso o evangelho t euangglion ts basilea tn
ourann. Em adio, tratando-se de pobreza em termos de escassez de bens, no
espiritual, insere no debate poltico-econmico os encurvados. Christopher Rowland
(2005, p. 494) chama a ateno de que mesmo sem importar-se com as divises que
provoca, Jesus visto como um rei,9 cuja realeza est oculta temporalmente; quando a
mesma tornar-se manifesta10 ele j estar entre os encurvados. A estranheza,
portanto, tende a aumentar.
Assim a profecia irrompe em meio condio humana como uma ao divina.
Como no pode ser entendida apenas espiritualmente, a profecia resistncia aos
grupos religiosos e poltico-econmicos privilegiados e rejeio discriminao de
quem no participa das linhagens de parentesco daqueles grupos. Uma revoluo
acontece em meio s multides: no querer e na ao de Deus, o seu reinado pertence
aos pobres e s crianas. Por qu? Porque a pobreza mais do que uma questo 9 Cf. Mateus 21.5,15.
10 Cf. Mateus 25.31,46.
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econmica e est associada opresso dos poderosos. Aos agora sem honra deve
pertencer o poder! Assim, haver oportunamente novas relaes entre as pessoas,
onde todas sero iguais. Com relao aos reis e poderosos, os pobres no so sditos,
so mais valiosos11 e desempenharo a funo a um s tempo real e divina de
construir e promover a paz.
Essa misso salvfica a princpio messiado-escatolgica, depois poltico-eclesial
, entranhada da espiritualidade intangvel da Torah, transmite a possibilidade de um
mundo sem nenhuma espcie de fronteira, antissectria. Com efeito, as pessoas so
reaproximadas para a convivncia e as labutas da vida, e as tradies, divinizadas e
paganizadas, so colocadas em seus devidos lugares. Por isso consideramos que
Gnther Bornkamm (2005, 134) afirma com inegvel justeza que nada nos autoriza a
especificar um grupo religioso, exatamente por romper os limites das religies, o que
leva-nos questo-chave inquirida por Giuseppe Barbaglio (2011, p. 114), baseado no
evangelho segundo Mateus, acerca do tipo de relao que Jesus de Nazar estabelece
ao revisar as ticas do seu tempo e proclam-las como thos legal do Reino de Deus.
A resposta questo de Barbaglio requer situarmos as mencionadas
preocupaes de Jesus de Nazar. As multides tm necessidade de ajuda divina, e o
fato de Jesus ser a presena de Deus entre o povo (Immanuel/Emmanouel) por si s
o coloca em conflito com os lderes institucionais. Com efeito, discordamos de Anthony
J. Saldarini (2000, p. 61) quando afirma que textualmente o povo designao
teolgica a todo o povo de Israel. Ao contrrio, daquelas multides muitos no eram
judeus e, dado o carter do messiado de Jesus, com suas relaes marginais, todos os
encurvados estavam autorizados e eram acolhidos pelo prprio Jesus a segui-lo.
Esta multietnicidade e intersociabilidade faziam parte do seu conceito de ekklesa e
so o seu grande legado identitrio.
11
Cf. Mateus 6.29; 12.42.
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CONSIDERAES FINAIS
Procurou-se abordar historiograficamente os primeiros seguidores de Jesus de Nazar
onde no apenas o Evangelho e sua percope indicativa fossem as fontes de pesquisa,
posto que a cultura material coetnea proporciona-nos uma acuidade privilegiada para
a busca dos fatos. Jesus de Nazar deve ser situado nas reaes tirania de Herodes, o
Grande, o tributarismo e o controle poltico romanos, que afetavam diretamente os
campesinos, e os conflitos com a aristocracia sacerdotal (HORSLEY; HANSON, 1995,
104). Esse barril de plvora social provoca o despertar de memrias messinicas
populares e as revoltas de partidos judaicos antirromanos e antitemplares. Ajuntam-
se, assim, mutuamente bandidos sociais e campesinos, ambos vistos como vtimas de
injustias, sendo que os bandidos so protegidos pelos campesinos como a heris e
transmissores da esperana de que a opresso sofrida reversvel. Nesse caso, as
memrias lendrias recebem o seu fundo de histria e a justia divina corporaliza-se.
Na Roma antiga o cristo representava uma atitude de superstitionis, uma
ameaa, pois superstitis algo que est acima, sobre; superstre estender sobre.
Nesse sentido, o Deus cristo ameaava como potncia universal e sobre a vida,
portanto se sobrepunha ao prprio espao figurativo do Estado (MANIERI, 2013, 43).
A ameaa era o que representava a antissociabilidade na perspectiva das elites, mas
isso d-se porque a vida religiosa reintegrada a uma vida poltica que prioriza o
encurvado. Em adio, o processo histrico envolvendo as duas primeiras geraes
de cristos, ainda no sculo I e no contexto da guerra entre romanos e judeus,
conceitua a poltica como uma ao que deve nascer da compaixo. Poucos sculos
depois, o cristianismo (a Igreja!) apodera-se de krnos e mamons, teologiza a honra e
a virtude, e, em consequncia, torna-se historicamente passivo.
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Artigo Recebido em: 30 de junho de 2013.
Aprovado em: 30 de janeiro de 2014.
Publicado em: 30 de abril de 2014.
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