Saúde em Debate
ISSN: 0103-1104
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
Brasil
Reinaldo, Amanda; Wetzel, Christine; Prado Kantorski, Luciane
A inserção da família na assistência em saúde mental
Saúde em Debate, vol. 29, núm. 69, enero-abril, 2005, pp. 5-16
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
Rio de Janeiro, Brasil
Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=406345217002
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ARTIGOS ORIGINAIS / ORIG/~L ARnCLE5 ~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~
Ainser~ao da família na assistencia em saúde mental
Family Inclusion in Mental Health (are
Amanda Reinalda1
Ch risti ne WetzeFLuciane Prada Kantorski3
Recebido: 24/11/01
Modificado: 30/07/03
Aprovado: 30/07/03
RESUMO
I Enfermeira. Doutoranda do Programa de
Enfermagem Psiquiátrica da Escola de
Enfermagem de Ribeiráo Preto,
Universidade de Sáo Paulo, Ribeiráo
Preto, Brasil.
2 Docente da Escola de Enfermagem da
Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. Doutoranda do Programa de
Enfermagem Psiquiátrica da Escola de
Enfermagem de Ribeiráo Preto,
Universidade de Sáo Paulo, Ribeiráo
Preto, Brasil.
3 Docente da Faculdade de Enfermagem e
Obstetrícia, Universidade Federal de
Pelotas. Doutora em Enfermagem.
Pesquisadora do CNPq, Pelotas, Rio
Grande do Sul, Brasil.
Este estudo aborda a inserfdo daJamilia na assisténcia em saúde mental.
Para tanto, os autores realizaram um resgate histórico da exclusdo da
Jamilia, no período da consolidafdo do campo psiquiátrico no seio da
medicina. Posteriormente, mostraram que, através dos movimentos
riformistas pós-Segunda GuerraMundial, desencadeou-se o questionamento
desta lógica, emergindo propostas precípuas de inserfdo daJamilia na
assisténcia de saúde mental e,finalmente, a proposta atual de inserfdo,
tendo como modelo os pressupostos da Riforma Psiquiátrica.
PALAVRAS-CHAVE: Familia; saúde mental.
ABSTRACT
This study addressesJamily inclusion in mental health careo To that
end, the authors conducted an historical recovery QfJamily exclusion during
the period Qfconsolidation Qfthe p~chiatricfield in the heart Qfmedicine.
Then, they showed that, through riforming movements qfter world War JI,
this logic began to be questioned and proposalsJorJamily inclusion in
mental health care emerged,finally leading to the current inclusion proposal,
which is based on the assumptions Qfthe P~chiatric Riform.
KEYWORDSJamily; mental health.
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REINALDO, Amondo; WETZEl, Chrisnne & KANTOR5KI, lucione Pmdo
INTRODU~AO
Neste estudo procuraremos en
focar a inser~áo da família na as
sistencia em saúde mental, tema
que ganha novos contornos a luz
da Reforma Psiquiátrica proposta
em vários países do mundo. A re
leváncia desta temática está no fato
de que este novo cenário tem cau
sado grande impacto na prática
cotidiana de equipes de saúde men
tal, que buscam imprimir no seu
fazer os pressupostos de urna prá
tica renovadora.
A participa~áo da família na as
sistencia em saúde mental tem sido
preocupa~áo de diversos estudiosos
que tentam entender um pouco mais
esse universo complexo evidencia
do como lacus de aten~áo para os
trabalhadores da saúde mental (SCH
NEIDER, 2001; SILVA, 1998; KOGA & FU
REGATO, 1998; WAIDMAN, 1998 ECOlVERO
& MACHADO, 1998). Com esse mesmo
intuito, Wetzel (2000) e Hirdes (2000)
estudam o contexto dos servi~os que
propóem a inser~áo da família na
assistencia, enquanto outros tratam
de tecnologias de assistencia a fa
mília, principalmente a visita domi
ciliar (OLlVEIRA, 2001).
Assim, com a finalidade de dis
cutir a questáo da família e sua re
la~áo com o portador de sofrimento
psíquico em diferentes épocas, rea
lizamos urna ref1exáo teórica, atra
vés da qual estabelecemos urna in
terlocu~áo com alguns autores que
tratam dessa temática.
Acreditamos que os familiares
devem ser vistos também como pro
tagonistas do momento de transfor
ma~áo que ora vivemos e "com esse
novo protagonismo delineia-se efe
tivamente, um novo momento no
cenário da saúde mental brasileira"
(AMARAmE,1995:130).
A delimita~áo do tema 'assisten
cia a família', dentro do campo da
saúde mental, nos remete ao seu
caráter histórico, pois as práticas
relacionadas a família estáo ligadas
APARTICIPACÁO DA FAMíUA
NA ASSISTENCIA EM SAÚDE MENTAL
TEM SIDO PREOCUPACÁO DE DIVERSOS
ESTUDIOSOS QUE TENTAM ENTENDER UM
POUCO MAIS ESSE UNIVERSO COMPLEXO
a mudan~as de toda urna racionali
dade, e náo percebemos a assisten
cia a família atrelada apenas a urna
série de determina~óes, como se náo
houvesse qualquer possibilidade de
transforma~áo fora do espa~o ma
cro. Essa possibilidade existe por
que os servi~os de saúde se confor
mam como um espa~o importante
para essa práxis, e também porque
a tensáo ocasionada pela inser~áo
de novos atores no cenário da as
sistencia em saúde mental, nas úl-
timas décadas, criou espa~os impor
tantes na luta pela mudan~a da ló
gica assistencial neste país.
AEXCLUSAO DA FAMíUA
Para entendermos o 'retorno da
família' ao cuidado do doente pre
cisamos resgatar como ela foi ex
cluída do tratamento. Segundo Sa
raceno (1999), existe urna literatu
ra vastíssima sobre a família do
paciente psiquiátrico, mas ele res
salta que a história da psiquiatria
tem sido também a história das ati
tudes da psiquiatria em rela~áo a
família do paciente: no velho mani
comio, a família era cúmplice resig
nada e grata pela interna~áo do pa
ciente, de modo que a institui~áo se
auto-reproduzia gra~as a essa gra
tidáo (as vezes concretamente ex
pressa pelos familiares na forma de
pequenas ou grandes doa~óes, des
tinadas a manter o status qua).
Com a institui~áo do asilo e do
tratamento moral no século XVIII,
inaugura-se o campo da psiquiatria
no seio da ciencia médica, e o louco
passa a adquirir o status de doente
mental; insere-se o quadro nosoló
gico da época e a loucura perde seu
caráter mágico que vigorou na An
tiguidade e na Idade Média.
As idéias do Iluminismo, os prin
cípios da Revolu~áo Francesa e a
Declara~áo dos Direitos do Homem
- esta última nos Estados Unidos
propiciaram terreno fértil para que
crescessem as denúncias contra o
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confinamento dos doentes mentais
"em promiseuidade eom toda espé
eie de marginalizados soeiais" (RE
ZENDE, 1992:25). Apartir da Revolu
~áo Industrial, com base nos ideais
do liberalismo, o antigo sistema de
assistencia passou a ser criticado
por desperdi~ar for~a de trabalho e
vidas humanas que poderiam estar
sendo empregadas na indústria. Sen
do assim, todos os que estavam con
finados nos asilos e náo eram con
siderados loucos foram libertados.
Apartir da segunda metade do sé
culo XIX, a psiquiatria assumiu um
caráter positivista e passou a seguir a
orienta~áo das demais ciencias natu
rais, quando o importante era obser
var e descrever os distúrbios do com
portamento humano, táo peculiar a
medicina biológica. Operíodo pós-guer
ra se conformou como o cenário para
o projeto de reforma psiquiátrica e
novas questóes referentes ao papel ea
natureza da institui~o asilar e do sa
ber psiquiátrico foram postas em ques
tionamento, e esses, por sua vez, suscitaram os diferentes movimentos re
formistas da psiquiatria que surgiram
em vários países (AMARANTE, 1995).
O isolamento terapeutico foi tam
bém urna resposta a sociedade que
conc1amava urna solu~áo para os
insanos, solu~áo que estabeleceu
urna media~áo entre os lemas liber
tários da Revolu~áo Francesa e as
medidas de caráter mais drástico,
destinadas aos vagabundos e trai
dores. Ogesto simbólico de Philippe
Pinel, de liberta~áo dos loucos das
correntes, náo deu ao doente o di
reito de sair do asilo, mas, sim, o
direito ao tratamento em urna insti
tui~áo autorizada para tanto.
"Por que se apregoa a liberdadepara todos, enquanto o louco, ao contrário, deve permanecer enclausurado? Porque a internafao nao é clausura: o alienado está pn'vado de liberdadejustamentepor estarsob ojulgoda alienafao mental, enquanto deveser Isolado, pois o Isolamento visa seutratamento e, portanto, a sua completa lzberdade. " (AMARANTE, 2000:50)
oISOlAMENTO DO LOUCO COM SEU
AFASTAMENTO DA FAMíLlA, ERA REALIZADO
COM ARGUMENTOS TÉCNICOS QUE
FUNDAMENTARAM ONASCIMENTO
DA PSIQUIATRIA, OS QUAIS AINDA
SE MANTEM ATÉ OS OlAS ATUAIS
Portanto, urna das imposi~óes da
prática asilar era isolar do mundo
exterior o indivíduo, ou seja, romper
o foco de influencias náo controla
das pelo meio, justificando o "isola
mento terapeutico". O próprio Pinel,
no Traité médieo-philosophique sur
l'aliénation mentale, publicado no
ano de 1809, explica as bases do iso
lamento como prática terapeutica:
"Em geral, é tao agradável paraum doente estarno seio daJamilia eaireceber os cuidados e as consolafoes
Ainser¡fio do fomilio no ossistencio em soúde mentol
de uma amizade terna e indulgente,que enuncio penosamente uma verdade triste, mas constatada pela expenéncia repetida, ou s(!ja, aabsolutanecessldade de corJliar os alienados amaos estrangeiras ede isolá-lo de seusparentes." (apud CASTEL, 1991 :86)
Como vemos, nesse período, o
isolamento do louco com seu afas
tamento da família, era realizado
com argumentos técnicos que fun
damentaram o nascimento da psi
quiatria, os quais ainda se mantem
até os dias atuais. Um exemplo é a
proibi~áo de visitas em algumas
institui~óes psiquiátricas, principal
mente nos primeiros dias de inter
na~áo. Estas institui~óes veem o
familiar apenas como um fornece
dor de informa~óes um pouco mais
fidedignas sobre o paciente, ou como
possível fator etiológico da sua do
en~a. As bases do tratamento mo
ral, desenvolvidas no século XVIII,
tiveram resolutividade na exc1usáo
do entáo doente mental, sendo esta
fundamentada em argumentos cien
tíficos, cuja supera~áo encontra di
versas barreiras. Mesmo frente a
todo o questionamento dessa práti
ca no cotidiano das institui~óes,
percebemos que estes fundamentos
ainda permanecem.
Goffman (1999), ao trabalhar com
o conceito de institui~óes totais
entre as quais o manicomio -, res
salta que elas sáo incompatíveis
com a família, pois a vida familiar,
as vezes, comparada com a vida
solitária, na realidade destas insti
tui~óes contrasta mais com a vida
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REINALDO, Amondo; WETZEl, Chrisnne & KANTOR5KI, lucione Pmdo
em grupo, pois aqueles que comem
e dormem no mesmo espa~o, com
as mesmas pessoas, dificilmente
podem manter urna existencia do
méstica significativa.
Nos hospitais psiquiátricos, em
maior ou menor grau, um grupo de
pessoas, durante um tempo (ou por
toda a vida) desenvolve todas as
atividades no mesmo lugar e com
as mesmas pessoas, característica
fundamental para que os pacientes
percam cada vez sua identidade,
num ambiente pobre, rígido e abso
lutamente predeterminado em seu
funcionamento (GOFFMAN, 1999).
"Independen temente doJato dedeterminada instituil;;ao total agircomoJon;;a boa ou má na sociedadecivil, certamente teráJorfa, e estadepende em parte da supressao deum círculo completo de lares reaisou potenciais. Inversamente, aJormafao de lares dá umagarantia estrutural de que as instituifoes totais nao deixarao de e'lfrentar resistencias. A incompatibilidade entreestas duasJonnas de organizafao social deve esclarecer algo a respeitodasJunfoes sociais mais amplas deambas." (GOFFMAN, 1999:22)
Após a Segunda Guerra Mundi
al, em tempos de crescimento eco
nómico e de reconstru~áo social e
com o desenvolvimento dos movi
mentos civis, de debates nos ámbi
tos político e económico, da organi
za~áo institucional e da assistencia
em saúde, (com particular enfase
em rela~áo ao manicómio e sua se
melhan~a com os campos de con
centra~áo), sornados a maior tole-
ráncia para as diferen~as, entre ou
tras for~as, provocaram mudan~as
significativas na assistencia ao do
ente mental, o que colaborou para
o surgimento de críticas ao hospital
psiquiátrico e propostas para sua
transforma~áoe até mesmo sua ex
tin~áo (DESVIAT, 1999).
Frente acarencia de bra~os para
o trabalho, tanto a Europa como os
Estados Unidos passaram a exigir
a dinamiza~áo da estrutura hospi
talar, além de novas modalidades e
Novos REFERENCIAIS EPRÁTICAS,
NOVOS OLHARES PARA ALOUCURA E
PARA AMENTE HUMANA EFORMAS
DIVERSAS DE TRATAMENTO,
EM DIFERENTES CONTEXTOS,
QUESTIONAM OMODELO HEGEMONICO
condi~óes mais humanas de trata
mento ao doente mental, com vistas
amaior eficácia na recupera~áodos
doentes. O isolamento deixa de ser
interessante nesse contexto, diante
da formula~áo de urna política de
portas abertas.
"Lugarzero de trocas sociais. Deserto humano, ético e material. Noseio de uma sociedade que aspira aificiencia, aracionalidade, aqualidade de vida, émuito difíciljustifícara presenfa arcaica do manicómio. "(MELMAN, 2001:56)
Nesse momento, surgem a comu
nidade terapeutica (Inglaterra, 1959),
a psicoterapia institucional e psi
quiatria de setor (Fran~a, 1962), a psi
quiatria preventiva (Estados Unidos,
1963), e também a psiquiatria demo
crática (Itália, 1973), como propostas
de assistencia cujos pressupostos
constituíam categorias primordiais de
urna cultura universal da reforma.
Novos referenciais e práticas, novos
olhares para a loucura e para a men
te humana e formas diversas de tra
tamento, em diferentes contextos,
questionam o modelo hegemónico.
Apesar das contribui~óes desses
movimentos, e das possibilidades de
mudan~as, eles esbarram na manu
ten~áo da hegemonia do hospital psi
quiátrico, como aponta Saraceno:
"Nos últimos cinqüenta anos certamente o papel hegemónico do hospitalpsiquiátncoJoicolocado em questao de maneiras diversas, em lugarese tempos diversos, através da ativafao de dispositivos de tratamento eassistencia diferentes. Muito.freqüentemente, entretanto, ocolocarem questao tal situafao nao signjficou colocarem cheque, ou porque resultou emdispositivos paralelos ao hospitalpsiquiátrico (é o caso da expenéncia
.francesa do setor), ou porque encalhou em uma crítica de grupos intelectuais sem o poder (ou a vontade)de traduzir o pensamento em umaprática de traniformafao real (é ocaso do movimento antipsiquiátricoingles). " (SARACENO, 1999:63)
Este autor ressalta que se a crí
tica ao manicómio náo assume a
conota~áo de crítica a ideologia
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psiquiátrica, ela traduzir-se-á sim
pIesmente na cria~áo de outros ce
nários para o exercício da mesmís
sima ideologia psiquiátrica.
Nesse contexto, a família é vista
como um sistema doente, no qual
um membro especialmente frágil
vem identificado por urna doen~a
socialmente reconhecida, inaugu
rando-se, assim, um período de cul
pabiliza~áo da família. É importan
te ressaltar que a crítica as contri
bui~óes teóricas da 'psicopatologia
familiar do psicótico' náo é em rela~áo a teoria 'em si', mas a forma
como foi incorporada:
"Foirealizada umagrosseira emalJeita leitura dessas contribuir;6es e acumplicidadeprecedente Cfiquem tranqüilos, pois nós cuidamos de seufilho') vem, em substituir;ao, uma responsabilizar;ao por parte da psiquiatná (far;am voces mesmos,já que sobre o seufilho devem pensar voces').Certamentea análisedo sistemaJamzliar como sistema de signos complexosnao quen"a cn"ar uma teoná simpljficadaquekgiámasseoabandonodops~
cótico para aJamília. " (idem, p.102 )
o autor diz que, com certeza, a
medida que a psiquiatria náo pode
mais seqüestrar impunemente, por
toda urna vida, o paciente do ma
nic6mio, deve ocupar-se também do
'fora', parecendo sedutora a culpa
biliza~áo da família e o conseqüente abandono do paciente para a fa
mília culpada. Ocupar-se do paci
ente 'fora' é mais difícil, cansati
vo, de maior responsabilidade, ar
riscado e, por isso, segundo um
enredo irresistível para os psiquia-
tras, 'aparece' urna teoria que le
gitima urna prática.
Aforma enviesada como a teoria
sistemica foi tomada, causou conse
qüencias enormes na produ~áo de
conhecimento e nas práticas volta
das para a saúde mental que tinham,
supostamente, como eixo a família,
mas colocando-a como culpada e o
paciente como bode expiatório.
Estudo realizado por Ackerman
(1986) mostra como estas interpre
ta~óes ainda tem for~a:
APROPOSTA CONTRA-HEGEMONICA AO MODELO
FUNDADO NA PSIQUIATRIA REMETE AOUTRO
PARADIGMA DE ATENCÁ0 ASAÚDE MENTAL,
QUE TEM AFAMíUA COMO PROTAGONISTA.
ESTA PROPOSTA CONFORMOU AS BASES DA
REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA
"O paciente reve/a-seJreqüentemente um emissáno diifarr;ado de umgrupoJamiliar emocionalmente diformado. Para oautor, umJator na motivar;ao para que a pessoa stgá encaminhada para a intemar;ao, é que umoutro membro daJamília procura controlare tranifonnarocomportamentodo paciente para me/hor qjustar-se asnecessidades suas ou da suaJamília,para discipliná-lo epuni-lo, para aliviar uma carga excessiva de culpa, oupara usá-lo como um bode expiatóno,por trás do qual outros membros da
Jamília podem ocultar seus própnostranstomos psiquiátricos. " (p. 112)
Ainser¡fio do fomilio no ossistencio em soúde mentol
Verificamos que ter a família
como cúmplice, em um primeiro
momento, e como ré, num segundo,
náo modificou em nada a sua ex
clusáo, sempre legitimada pelo sa
ber psiquiátrico.
oRETORNO DA FAMí L1A ACENA
Aproposta contra-hegem6nica ao
modelo fundado na psiquiatria re
mete a outro paradigma de aten~áo
a saúde mental, que tem a família
como protagonista. Esta proposta
conformou as bases da Reforma Psi
quiátrica Brasileira, porém como
náo é objetivo deste estudo analisar
o movimento da reforma, apresen
taremos alguns conceitos importan
tes para a compreensáo das novas
diretrizes que orientam as políticas
e as práticas de saúde mental, no
que diz respeito a inser~áo da famí
lia no tratamento, pois entendemos
que essa questáo náo pode ser dis
sociada de urna visáo mais ampla,
que nos remeta aos conceitos de
saúde/doen~a mental, práticas tera
peuticas, e outros.
A proposta de mudan~a teve
como maior inspira~áo a Reforma
Psiquiátrica Italiana, conhecida
como movimento de desinstitucio
naliza~áo, porque tece urna crítica
radical a psiquiatria e a institui~áo
que a operacionaliza no concreto: o
hospital psiquiátrico.
Para Rotelli et al. (1990:26), ape
sar dos pressupostos científicos pre
tendidos pela psiquiatria, ela foi a
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REINALDO, Amondo; WETZEl, Chrisnne & KANTOR5KI, lucione Pmdo
primeira prática desconfirmadora do
paradigma racionalista, baseado em
"um sistema de afdo que intervém
em um problema dado (a doen~a) para
perseguir uma solufdo racional, ten
dencialmente ótima (a cura)".
Todo o processo da Reforma Psi
quiátrica Italiana partia do pressu
posto de "que o mal obscuro da psi
quiatría está em ter separado um
ol?JetoJictício, a doenfa da existen
cia complexa e concreta do pacien
te e do corpo social", e sobre esta
separa~áo artificial se construiu um
conjunto de aparatos legislativos,
científicos, administrativos, além de
códigos de referencia cultural e de
rela~óes de poder, todos referidos adoen~a (ROTELLl et al., 1990:27).
Basaglia defende amplamente
esta, que segundo ele é a institui~áo
a ser negada; para o autor, a a~áo
no sentido de urna dimensáo negati
va é, ao mesmo tempo, destrui~áo e
supera~áo (BASAGLlA, 1991). Oobjeto
da psiquiatria torna-se, entáo, náo
mais a periculosidade e a doen~a,
mas a "existencia-sqfrimento dos
pacientes e sua relafdo com o corpo
social" (RoTELLl etal., 1990:27).
De início, a doen~a mental foi
isolada até se conhecerem as neces
sidades do homem, após isso, o pro
cesso prático-crítico se aprofunda de
forma a transformar radicalmente a
redu~áo da loucura em doen~a men
tal. Essa redu~áo e a simplifica~áo
foram utilizadas pela psiquiatria, a
qual empregou o modelo de inter
ven~áo medicalizador do sistema
manicomial para excluir o homem,
enquanto ser social.
No final da década de 1970, com
o surgimento do movimento deno
minado Reforma Sanitária e a orga
niza~áo do Movimento dos Traba
lhadores em Saúde Mental, inicia
se no Brasil o questionamento do
modelo manicomial, centrado no
hospital psiquiátrico. Este movi
mento envolveu diversos atores e
cenários e se configurou como um
espa~o importante de luta para mu-
As NOVAS DIRETRIZES
PRECONIZADAS PELA REFORMA
VISAM AMELHORIA DA
QUALlDADE DE VIDA DO USUÁRIO,
NA FORMA DO RESGATE
DE SUA CIDADANIA
dan~a da lógica assistencial, tendo
ocasionado, concretamente, mudan
~as em várias esferas: legislativo,
servi~os, políticas, academia, enfim,
altera-se o ámbito institucional de
vários setores da sociedade.
Dessa forma, as novas diretrizes
preconizadas pela Reforma visam amelhoria da qualidade de vida do
usuário, na forma do resgate de sua
cidadania, podendo essa qualidade
de vida ser oferecida por meio de um
melhor atendimento e da redu~áo
tanto das interna~óes como do perío
do de dura~áo das mesmas e, sem
pre que possível, manter o usuário
no meio familiar através de suporte
oferecido por urna rede de saúde.
Os problemas encontrados para
reinser~áo familiar no tratamento sáo
os mais diversos. Hoje, existem ser
vi~os, tais como o hospital-dia, nú
cleos e centros de aten~áo psicosso
cial, oficinas terapeuticas, nas quais
a parceria com os familiares está
conseguindo reverter esse quadro,
pois as famílias que em geral fica
vam sozinhas após o retorno do usu
ário ao domicílio, já contam com o
apoio de institui~óes e associa~óes.
É fundamental real~ar, aqui, a
consciencia crescente dos trabalha
dores de servi~os psiquiátricos que
estimulam um co-envolvimento da
família dos pacientes nos projetos
de reabilita~áo.
"(...)certamente mio todos os servifos(ao contrário, uma e.xígua minoda)adotam modelosJonnais de intervenfao, mas éimportante de qualque¡Jorma quese venha cnándo um talpontode encontro entre abordagens 'técnicas' eabordagens 'empídcas' queaJamílzá do pacientedeixe de sercúmpliceou vítima da psiquiatná, tornando-seprotagonista responsávelpelos processos de tratamento e organizafao domesmo." (SARACENÜ, 1999:126)
Segundo ainda Saraceno, vários
estudos (STRAUSS e col. 1977; BROWN
e col., 1972; LEFF & VAUGHN, 1985;
COHEN & SOKOVSKY, 1978; STRAUSS &
CARPENTER, 1972; DOHRENWEND e col.
1986) mostram que, náo necessari-
10 Saúde em Debate, Rio de Joneim, v. 29, n. 69, p. 5-16, jon./obr. 2005
amente, a cronifica~áo e o empobre
cimento do psicótico sáo resultados
intrínsecos da doen~a, mas da cons
tela~áo de variáveis, as quais, na
maioria das vezes, sáo ligadas aos
contextos microssociais (família e
comunidade) e pressupóem estraté
gias de manejo ambiental distantes
das propostas pelo modelo psiquiá
trico biomédico. A necessidade de
reabilita~áo coincide com a neces
sidade de elabora~áo de a~óes que
estejam mais próximas da realida
de das variáveis implicadas na evo
lu~áo da psicose. Estes estudos des
montam algumas críticas de que os
pressupostos da reforma carecem de
dados científicos que os fundamen
temo Como sabemos, os dados e evi
dencias náo fundamentam a manu
ten~áo do modelo manicomial, po
rém indicam que as variáveis mi
crossociais estáo mais implicadas
na evolu~áo da doen~a. As 'estraté
gias de manejo ambiental' ainda
precisam ser mais bem entendidas
e desenvolvidas, e no Brasil existem
algumas experiencias significativas
que trabalham e atuam com o con
texto, as quais precisam ser teori
zadas para o preenchimento da la
cuna existente sobre teorias e con
ceitos dessa nova prática.
oCONTEXTO: ESPA~O CONSTRUTORDE RELA~ÓES
Urna série de teorias fundamenta
das nas diversas correntes do relacio
namento terapeutico náo traz a cena
a questáo do espa~o, que é fundamen
tal dentro dessa nova abordagem.
Parece que a técnica sobrepóe todas
as questóes, podendo ser desenvolvi
da em qualquer local, e estes estudos
trazem, a nós profissionais, urna ilu
sáo de que a solu~áo técnica é boa
'em si'. Se o paciente náo melhora, o
problema náo está relacionado a téc
nica e sim a sua aplica~áo: a rela
~áo foi diretiva, ocorreu contra-trans
ferencia; ou ao contexto: a família
náo colabora, o servi~o náo possui
DADOS EEVIDENCIAS NAO FUNDAMENTAM
AMANUTENCAO DO MODELO MANICOMIAL,
PORÉM INDICAM QUE AS VARIÁVEIS
MICROSSOCIAIS ESTAO MAIS IMPLICADAS
NA EVOLUCAO DA DOENCA
urna sala adequada; ou ao próprio
paciente: é refratário ao tratamento;
o prognóstico é reservado.
Barros (1996: 176), ao analisar as
práticas de ensino de enfermagem
psiquiátrica, observou que, apesar
de priorizar o relacionamento tera
peutico como interven~áo, o campo
de estágio continua a ser realizado
em hospital psiquiátrico, considera
do "pouco ou nada terapeutico, onde
os pacientes náo tem a oportunidade
de buscar a terapia e o terapeuta".
Ainser¡fio do fomilio no ossistencio em soúde mentol
Saraceno (1999) refere-se a des
colagem entre realidades e modelos
teóricos que fundamentam as práti
cas psiquiátricas, constatando que
em psiquiatria a influencia dos fato
res de confusáo - presentes na reali
dade - 'consome' as técnicas e os
modelos, e 'cria' técnicas e modelos
operativos que sáo de fato os objetos
desconhecidos e náo descritos.
O modelo biomédico que susten
ta a tese de que se náo há melhora
no quadro do paciente, pressupóe
que o motivo para que isso ocorra
é alguma questáo associada ao pa
ciente, seus familiares, ao local
onde o tratamento está sendo reali
zado, enfim a variáveis que náo sáo
inerentes as teorias que fundamen
tam a psiquiatria biológica, este
modelo defende a exporta~áo do
setting para a realidade, náo de
vendo este último adaptar-se a rea
lidade, mas a realidade ao setting
(SARACENO, 1999). Esta afirma~áo é
fundamental quando tratamos da
inser~áo da família no tratamento,
pois ela pode aparecer de diversas
formas e, com freqüencia, aproxi
ma-se da idéia de que a família deve
moldar-se ao servi~o, as suas nor
mas, incorporando as verdades da
equipe, com o argumento de que
sáo os técnicos que detem o conhe
cimento. A forma, o tempo e o es
pa~o da rela~áo entre a família e a
equipe sáo determinados por esta
última e dificilmente seráo negoci
áveis. Assim, a constru~áo de es
pa~os de troca fica a desejar.
Saúde em Debate, Rio de Joneiro, v. 29, n. 69, p. 5-16, jon/obr. 2005 11
REINALDO, Amondo; WETZEl, Chrisnne & KANTOR5KI, lucione Pmdo
Outra questáo importante é que
a separa~áo dos ámbitos da rede
social e da rede familiar é ilusória,
pois interven~óes que melhorem o
setting familiar, podem gerar tam
bém expansáo na rede social. Oso
frimento da rede familiar influi na
riqueza da rede social ampliada e
vice-versa.
Equal é, a partir disso, a rela~áo
possível entre equipe e família? Apro
xima-se, da nossa concep~áo aquela
que Campos (2000) apresenta como
constru~áo de contratos, ou seja, a
de que a constitui~áo de rela~óes de
forma racional e consciente transfor
ma o compromisso entre a família e
a equipe em estratégias de rela~áo.
Ocontrato entre eles implica conflito
e composi~áo, negocia~áo e luta,
imposi~áo e renúncia.
Nesse espa~o heterogeneo, os in
teresses náo sáo os mesmos. Quanto
mais autoritária e rígida for a rela
~áo com a família e quanto mais esta
estiver aprisionada a valores e teori
as, menor o espa~o para as diversi
dades, empobrecendo o poder real de
interven~áo, pois a equipe se defen
derá do sentimento de impotencia
frente ao problema, enquanto a fa
mília permanecerá em um papel se
cundário, sem visualizar-se como
sujeito no processo. Construir espa
~os de troca e de contratos torna mais
rico o campo de possibilidades, em
que os interesses individuais e cole
tivos tornam-se explícitos, servindo
de fermento para a constru~áo da táo
falada rela~áo terapeutica.
oDESGASTE DA FAMíLlA
Para Saraceno (1999), é evidente
que tanto o plano psicológico quan
to o plano material dos familiares
sofra graves danos, no que diz res
peito aorganiza~áo da própria vida.
Os próprios familiares experimen
tam, no decorrer do tempo, distúr
bios e desabilita~óes psicossociais,
como o evidenciado pelo Scottisch
Schizophrenia Study, no qual os fa
miliares de esquizofrenicos, depois
DEVEMOS TER AFAMíLlA
COMO ALIADA NO TRATAMENTO,
PORÉM PARA ARREGIMENTÁ-lA
ÉPRECISO QUE TENHAMOS
ALGO ALHE OFERECER
do primeiro episódio, sofrem de de
sabilita~óes sociais transitórias e
distúrbios persistentes na rela~áo de
casal. Dificuldades de intera~áo en
tre familiares e paciente sáo referi
das pelos primeiros como o elemen
to mais dificil a ser enfrentado e, no
decorrer do tempo, de aceitar. A
maior parte deles afirma que os efei
tos sobre a própria saúde ao se vi
ver com um paciente esquizofreni
co sáo graves, e que os servi~os
psiquiátricos náo sabem e náo po-
dem oferecer suporte adequado. É
interessante que, em geral, a des
peito desses sofrimentos e dessas
lamenta~óes, grande parte dos fami
liares prefere ter o doente em casa a
evitar a sua interna~áo em hospital
psiquiátrico, como evidenciam os
estudos de Grad e Sainsbury (1968);
]onstoneecol. (1984).
Ainda segundo Saraceno (1999),
a interven~áo para aliviar, para os
familiares, o 'peso' da intera~áo e
manejo do psicótico náo obtém efei
tos positivos somente sobre os
membros da família, como tam
bém os orienta a diminuir a soli
cita~áo de expulsáo do familiar
adoecido, obtendo assim beneficio
indireto para este último e para os
programas de reabilita~áo que
para ele sáo desenvolvidos.
Devemos ter a família como ali
ada no tratamento, porém para ar
regimentá-Ia é preciso que tenhamos
algo a lhe oferecer. Acreditamos que
a melhor forma é oferecer ajuda para
que encontre caminhos para resol
ver ou suavizar seus problemas e
dificuldades. Ouvimos, freqüente
mente, alguns jargóes sobre a famí
lia: 'toda família tem o louco que
merece', 'o paciente tem urna máe
esquizofrenizante', 'náo trato a fa
mília, só o paciente', os quais, de
certa forma, expressam o abandono
em que vivem os familiares, e reve
lam que alguns profissionais de saú
de ainda náo perceberam que a fa
mília é urna aliada para manter o
usuário no domicílio.
12 Saúde em Debate, Rio de Joneim, v. 29, n. 69, p. 5-16, jon./obr. 2005
Oliveira & Jorge (1999:379),
avaliando o relacionamento entre
usuário e família no Centro de
Aten~áo Psicossocial (CAPS) "Lugar
de Vida", em Fortaleza, revelam
que a família nem sempre está pre
parada para arcar com os desgas
tes, tensóes e conflitos causados
pelo convívio com o usuário. Para
as autoras, a presen~a do usuário
no lar cria permanente estado de
instabilidade emocional entre os
membros da família, motivo pelo
qual nem sempre estes aceitam o
'onus do convívio'. Ousuário é vis
to como um foco de anormalida
de, que tem poder de 'adoecer'
outros familiares. As famílias ou
vidas no estudo se dividiram en
tre aquelas que acreditam que o
lugar do usuário é na institui~áo
hospitalar, e outras que náo abrem
máo de te-los em casa. O segundo
grupo, entretanto, avalia que o re
lacionamento poderia ser melhor,
se os servi~os de saúde ofereces
sem suporte para tratamento e ser
vi~os extra-hospitalares.
"Conviver com uma pessoa queexige que seus pedidos Sf!jam atendidos imediatamente, porquepode manifestar atitudes agressivas, sair decasa sem dizer para onde vai, quemuitas vezesJica acordado a noiteinteira conversando sozinho ouJalando coisas que só tcm significadopara si mesmo, nao constitui umatarifaJácil! Por acontecer repetidasvezes, altera o clima dentro de casa oque sem dúvida constitui desgaste
.físico ementalpara aJamília. " (KOGA
& fUREGATO, 1999:366)
É inegável que a convivencia
com a doen~a mental gera proble
mas e dificuldades complexas, que
náo podem ser abordados de for
ma simplificada. Os recursos teó
ricos construídos sáo fundamen
tais para direcionar urna releitura
das práticas utilizadas, mas náo
devem se conformar como camisas
de-for~a, em que náo se vislum
bram novas possibilidades de aten
~áo. A inven~áo e a criatividade
sáo de grande importáncia para
oOLHAR PESSIMISTA DÁ LUGAR
AO OLHAR ABERTO QUE ABRANGE
UM UNIVERSO DE POSSIBILlDADES (oo.)
PERMITINDO QUE AFAMíLlA PARTICIPE DE
UMA NOVA FUNCÁO, AFUNCÁO
REABILlTATÓRIA
que, na dinámica do cotidiano, náo
transformemos nossas a~óes em
saberes e práticas cristalizados.
TRABALHANDO NO CAMPODAS POSSIBILlDADES
As considera~óes sobre os pro
blemas sáo acompanhadas do re
conhecimento de possibilidades de
enfrentamento. Substitui-se a pro
fecia sobre o futuro, centrada na
doen~a, pelo reconhecimento das
Ainser¡fio do fomilio no ossistencio em soúde mentol
diferen~as individuais e da varie
dade da rede de pertinencia dos
sujeitos, pela análise das condi~óes
e propostas dos projetos terapeuti
cos, pela dinámica institucional e
pelo processo de desinterna~áo.
"Na transli;ao do autoritan'smo paraademocracia, em tennos macrossociais,ena transli;ao da instituzi;ao totalparaos equipamentos na comunidade, emtennos microssociaz's, muito de desesperam:;a tem que ser desconstruído, enao somente entre internos, mas, muz~tas vezes, pn'ncipalmente, entreas equz~
pes de saúde. " (SARACENO, 1996: 16)
Essa desesperan~a cristalizada
nos discursos, saberes e práticas das
equipes de saúde náo valorizam a
procura de recursos escondidos,
nem tampouco do universo de pos
sibilidades interativas existentes
hojeo Mudando o modelo do dano
para o modelo do desafio, altera-se
o processo de elabora~áo de prog
nóstico: o olhar pessimista dá lu
gar ao olhar aberto que abrange um
universo de possibilidades e diver
sidades, de necessidades e de mo
dos de resolu~áo, permitindo que a
família participe de urna nova fun
~áo, a fun~áo reabilitatória.
Hirdes (2001) e Wetzel (2000), ao
analisarem um servi~o de saúde
mental que trabalha com um mode
lo de inser~áo da família, trazem a
importáncia desta capitaliza~áo de
for~as da família para o sucesso do
trabalho. Esse processo passa por
diversas a~óes que envolvem a re
organiza~áo do trabalho, a busca
Saúde em Debate, Rio de Joneiro, v. 29, n. 69, p. 5-16, jon/obr. 2005 13
REINALDO, Amondo; WETZEl, Chrisnne & KANTOR5KI, lucione Pmdo
ativa através de visitas domicilia
res, a permanencia de um membro
da equipe na casa da família, a des
centraliza~áo das reunióes de fami
liares, distribuídas entre os bairros
e a zona rural, facilitando a partici
pa~áo do familiar. Há também a cri
a~áo da associa~áo de familiares e
usuários, na qual a inser~áo do fa
miliar transcende o aspecto mais in
dividualizado, relacionado ao trata
mento de um determinado usuário,
pois ele fará parte de um movimen
to coletivo, em que diversos atores
buscam, na uniáo de esfor~os, urna
mudan~a mais abrangente.
Hirdes (2001) salienta que, ape
sar de a prática de reunióes de fa
miliares e entrevistas remeterem ao
trabalho desenvolvido e consolida
do em institui~óes totais, estas, no
contexto comunitário, tem outra di
mensáo, ou seja, o setting do hos
pital psiquiátrico náo propicia urna
integra~áo dinámica no sentido de
resolver problemas in loco, porém
em um servi~o comunitário, através
das múltiplas estratégias de inter
ven~áo, as necessidades, dificulda
des e manejos podem ser trabalha
dos em conjunto com a família.
A produ~áo dessa nova cultura
de rela~óes e possibilidades, que se
realiza em todos os níveis, tende a
transformar os papéis instituciona
lizados, que se constituem em res-
postas as novas e diferentes neces
sidades que se apresentam.
A assistencia psiquiátrica tem
percorrido um longo caminho de
transforma~áo que nos leva a pen
sar sobre o que, antes, de forma
equivocada, era chamada 'a~áo re
abilitadora', diante de urna visáo em
que o manejo técnico da psicose es
tava distanciado de urna prática
política e social.
Acreditando no potencial de
transforma~áo da família, os manu-
EM UM SERVICO COMUNITÁRIO,
ATRAVÉS DAS MÚLTIPlAS ESTRATÉGIAS
DE INTERVENCAO, AS NECESSIDADES,
DIFICULDADES EMANEJOS PODEM SER
TRABALHADOS EM CONJUNTO COM AFAMíUA
ais de orienta~áo aos familiares de
vem ter um enfoque diferente, pois
os encontrados nos diversos servi
~os, que tradicionalmente trazem
urna série de prescri~óes e informa
~óes sobre a doen~a, normas do ser
vi~o e horários de reunióes, retra
tam a família como um depositário
passivo de informa~óes.
A Organiza~áo Mundial da Saú
de (OMS) publicou um manual mos
trando as diversas experiencias e
evidencias de diferentes origens, e
co-envolveu grupos de auto-ajuda de
familiares de esquizofrenicos na sua
elabora~áo (WHO, 1992).
Numa das partes, o documento
enfoca a rela~áo entre famílias e
profissionais, criticando o mecanis
mo de culpabiliza~áo que, frente a
dramaticidade da situa~áo, apare
ce para aliviar a todos os atores en
volvidos. Ressalta a importáncia do
entendimento destes mecanismos
para que náo haja interferencia in
devida no tratamento. Considera o
trabalho multiprofissional funda
mental para melhorar a evolu~áo
do paciente, e questiona a hegemo
nia do papel do médico na resolu
~áo dos problemas.
A seguir, a afirma~áo que cons
ta do referido manual:
"The more prqfessionals can
knowyour relative as a person, and
not on(y as a patient, the better thefr
treatment is like(y to become. Thatworks the other way as well. The
moreyou see the prqfessional trea
tingyour relative as a person, with
skills and limitations, with know
ledge and gaps in knowledge, with
imperfectjudgment, with general(y
good motives but with the usual
quirks qfhuman nature, the moreproductiveyourpartnership will be."(WHO, 1992:26)1
1 "Quanto mais os profissionais puderem conhecer o seu familiar como pessoa, e náo apenas como paciente, melhores seráo as perspectivas
do tratamento. Também se verifica o inverso: quanto mais voce perceber o profissional responsável pelo tratamento do seu familiar como
pessoa, com habilidades e limita<;óes, com um conhecimento dotado de falhas. capaz de avalia<;óes imperfeitas. com boas inten<;óes de
forma geral mas também com as nuances características da natureza humana. mais produtiva será a sua parceria."
14 Saúde em Debate, Rio de Joneim, v. 29, n. 69, p. 5-16, jon./obr. 2005
Reiterando a importáncia de opro
fissional ver o paciente como pessoa,
o manual também critica e questiona
a objetualiza~áo do paciente, constru
ída na lógica do saber biomédico,
quando os profissionais se esquecem
que estáo lidando com urna pessoa
singular, e náo com um conjunto de
sinais e sintomas, ou dados estatísti
coso O que parece inédito nesta afir
ma~áo é o questionamento da ideali
za~áo dos profissionais, construída
dentro dessa mesma lógica. Se pen
sarmos em parceria, estas duas vias
sáo fundamentais.
CONSIDERA\ÓES FINAIS
Toda ciencia procura reservar
para si o seu campo de conhecimen
to, e com a psiquiatria náo poderia
ser diferente. Durante muito tempo
ela tomou para si náo só a doen~a
mental, mas também o indivíduo
doente que foi seqüestrado do seu
meio social, e se viu excluído do
convívio familiar.
O doente seqüestrado passou a
ser objeto de estudo e tudo que era
diferente ou estranho a doen~a foi
expulso do espa~o asilar. Entretan
to, hoje fazemos a releitura desse
fato, tendo em vista que o paciente
e sua família sáo seres múltiplos,
construídos dentro de urna realida
de social que náo pode ser separa
da. É inviável pensar que o corpo
biológico (doente) possa existir fora
da dimensáo social e longe de suas
rela~óes sociais (família, comunida-
de). O saber psiquiátrico produziu
o doente sem família e hoje tenta
desconstruir essa produ~áo.
sendo assim, pudemos observar
que a psiquiatria, por algum tem
po, desmontou todas as rela~óes
que existiam entre doente e famí
lia. Nos dias atuais, tenta recons
truir (experiencias individuais de
ressocializa~áo, reabilita~áo psi
cossocial, associa~óes de familia
res que foram criadas a revelia das
institui~óes, etc.) modelos de aten
~áo em saúde mental, capazes de
reconstruir aquelas rela~óes, tor
nando o que era disjuntivo (famí
lia-doente) em conjuntivo (família).
Ainda ternos um longo caminho a
trilhar e precisamos identificar espa
~os onde a inser~áo da família possa
ser construída, como na assistencia,
ensino ou pesquisa. Na assistencia,
os servi~os devem priorizar a aten
~áo a família procurando, no seu co
tidiano, escrever urna nova história
da assistencia em saúde mental. O
ensino deve contemplar a inclusáo
de conteúdos relacionados a famí
lia nos cursos de gradua~áo e de
pós-gradua~áo, na área da saúde,
além da realiza~áo de atividades
práticas e de estágios em servi~os
que estejam engajados as propostas
da reforma. Quanto a pesquisa, esta
deve estudar a dinámica de assis
tencia na família e construir novas
estratégias e possibilidades para a
questáo, urna vez que a problema
tiza~áo, a crítica e, principalmente,
a inven~áo, sáo fundamentais para
Ainser¡fio do fomilio no ossistencio em soúde mentol
todo o processo em um território em
que nada está dado, acabado.
Pensamos que negar, no sentido
de superar, possa vir a ocorrer atra
vés da rela~áo dos diferentes atoresenvolvidos: profissionais, usuários
e famílias, na busca de contratos
como estratégias de rela~áo em um
espa~o no qual a constru~áo de par
ceria com a família aconte~a atra
vés de trocas que respeitem as di
versidades, fazendo emergir as di
feren~as, os conflitos, enfim, trocar
a lógica do dano pela do desafio.
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16 Saúde em Debate, Rio de Joneim, v. 29, n. 69, p. 5-16, jon./obr. 2005
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