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Tempos Históricos • Volume 23 • 1º Semestre de 2019 • p. 717-735 • e-ISSN: 1983-1463

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ARTE SACRA EM TEMPOS SOMBRIOS (1970-2018):

A PINTURA MURAL DE FREI JUVENAL BOMFIM NA IGREJA

MATRIZ NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO

EM PORTO DA FOLHA (SE)

Antônio Fernando de Araújo Sá1

Resumo: O artigo tem por objetivo analisar a pintura mural da Igreja Matriz de Nossa Senhora da

Conceição, em Porto da Folha (Sergipe), realizada por Frei Juvenal Bomfim, no ano de 1970, como

exemplo da representação artística das ideias do Concílio Vaticano II nos sertões nordestinos. Além

disso, o mural simbolizava a resistência cultural ao autoritarismo da ditadura militar, estabelecendo

um fecundo diálogo com outros artistas contemporâneos em torno da cultura e religiosidade

populares na reconstrução do cotidiano dos setores excluídos da sociedade brasileira dos anos 1960

e 1970. A luta pelo processo de tombamento desse bem cultural desencadeado pela comunidade

local evidencia a preocupação de se estabelecer laços de continuidade entre o passado e o presente,

num momento de disputas sociais e teológicas no âmbito da Igreja Católica. Entretanto, sua

destruição, em 2018, autorizada pela Diocese de Propriá, responsável pela paróquia, fortalece a

necessidade da ampliação do debate para que o direito ao passado seja uma das dimensões

fundamentais da plena cidadania no Brasil, estabelecendo os limites e as possibilidades de diálogo

entre a memória pública e a memória privada.

Palavras-Chave: Igreja Católica; Arte Sacra; Patrimônio Cultural; Memória.

SACRED ART IN SHADOW TIMES (1970-2018): THE MURAL PAINTING BY

FREI JUVENAL BOMFIM AT THE IGREJA MATRIZ NOSSA SENHORA DA

CONCEIÇÃO IN PORTO DA FOLHA (SE)

Abstract: The purpose of this article is to analyze the mural painting of the Igreja Matriz Nossa

Senhora da Conceição in Porto da Folha (Sergipe) by Frei Juvenal Bomfim in 1970 as an example

of the artistic representation of the ideas of the Second Vatican Council in the Northeastern

backlands. Furthermore, mural symbolizes cultural resistance to the authoritarianism of the military

dictatorship, establishing a fecund dialogue with other contemporary artists around the popular

culture and religiosity in the reconstruction of the daily life of the excluded sectors of the Brazilian

society of the years 1960’ and 1970’. The struggle for the process of cultural heritage, triggered by

the local community, shows the concern to establish links between the past and the present, at a

time of social and theological disputes within the Catholic Church. However, its destruction in

2018, authorized by the diocese of Propriá, responsible for the parish, strengthens the need to

expand the debate so that the right to the past is one of the fundamental dimensions of full

citizenship in Brazil, establishing the limits and possibilities of dialogue between public memory

and private memory.

Keywords: Catholic Church; Sacred Art; Cultural Heritage, Memory.

* O artigo foi escrito como um desagravo pela destruição da pintura mural da Igreja, quando acompanhava o

processo de tombamento pelo Conselho Estadual de Cultura. 1 Professor Titular do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe, Doutor em História

Cultural pela Universidade de Brasília. E-mail: [email protected]

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“La obra de arte significa lo que significa para nosotros”.

Ernst H. Gombrich (1977: 145)

A campanha pela reforma da Igreja Matriz da Paróquia Nossa Senhora da

Conceição, na cidade de Porto da Folha, no sertão de Sergipe, proposta pelo pároco

Melchizedeck de Oliveira Neto, em 2016, desencadeou na comunidade local uma

mobilização para a preservação da pintura mural do altar mor, com um abaixo assinado em

16 de maio de 2018, reivindicando o tombamento da pintura realizada por Frei Juvenal

Vieira Bomfim, em 1970.

A argumentação de um dos líderes da campanha pela arrecadação de fundos para a

reforma, Glauber Resende, é que “não podemos deixar que uma história se perca em meio a

debates claramente político-ideológicos”. Segundo ele, “a pintura, devido a dificuldade de

remoção, será reproduzida em outro local da igreja, sem prejuízo para sua parte em nossa

história”. Outro defensor da retirada do mural, Luiz Fontenelli argumenta que “nada mais

justo que o altar seja reposto da forma em que foi construída [sic], pois é de suma

importância resguardar a nossa verdadeira história” (CINFORM, 4/6/2018: 97 e 98).

Esse não é o entendimento de instituições culturais do Estado de Sergipe, como o

Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, que defendem a permanência do mural, opinião

compartilhada pelo professor emérito da Universidade Federal de Sergipe, José Paulino da

Silva. Setores da Igreja Católica, como a Comissão Diocesana de CEBs da Diocese de

Garanhuns, também apoiam a manutenção do mural na Igreja Matriz.

Essas manifestações ecoaram no Conselho Estadual de Cultura, que, em reunião do

dia 15 de maio de 2018, deliberou pelo início do processo de tombamento, nomeando o

conselheiro Fernando Aguiar como relator. Como medida preventiva, o presidente do

Conselho, Antônio Alves do Amaral, oficiou o bispo da Diocese de Propriá, Dom Vítor

Agnaldo de Menezes, e o pároco de Porto da Folha, Melchizedeck de Oliveira Neto, sobre

o andamento do processo, notificados pelos ofícios n. 19/2018 e n. 20/2018,

respectivamente.

A campanha pela permanência da pintura mural, realizada por meio de programas

de rádio e redes sociais, traz consigo a “vontade coletiva de defender o que constitui e que,

ao mesmo tempo, é testemunho de experiências comuns, que são pensadas como história

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compartilhada”. Essas palavras de Antônio Augusto Arantes nos ajudam a refletir sobre o

legado entre as gerações, marcados por laços de continuidade entre o passado e o presente,

mas também que

esse processo se estrutura em torno de intensa competição e luta política

em que grupos sociais diferentes disputam, por um lado, espaços (...) e,

por outro (o que é indissociável disso), concepções ou modos particulares

de se apropriarem simbólica e economicamente deles (ARANTES, 1984:

8 e 9).

Desse modo, há uma disputa entre concepções teológicas e ideológicas no interesse

da defesa desse bem cultural, na medida em que a continuidade com o passado marcado

pela presença de setores da Igreja Católica, ligados à teologia da libertação e a uma

proposta de uma Igreja Popular, serve de contraponto ao avanço de setores mais

conservadores vinculados à Renovação Carismática, Opus Dei, Communione e Liberazione,

entre outros, nos papados de João Paulo II (1978-2005) e Bento XVI (2005-2013). Essas

correntes conservadoras defendem o individualismo, ao mesmo tempo em que revalorizam

os sacramentos rituais, como a oração, destacando uma vivência religiosa fortemente

marcada pela expansão das emoções, da cura, dos milagres e os efeitos mágicos dos dons

do Espírito Santo (JURKEVICS, 2004).

Entretanto, Joanildo Burity chama a atenção que a “reasserção conservadora da

religião” como reação a momentos de politização do campo religioso não representa,

necessariamente, uma ruptura com a política, “mas desmotiva e reprime sua irrupção no

discurso religioso e vigia qualquer trânsito nas fronteiras da prática intra-eclesial com a

dinâmica social mais ampla”. Em outras palavras, “a reasserção conservadora apresenta

claros traços de reacionarismo político” (BURITY, 2006: 31)

Assim situado, o pano de fundo dessa polêmica pode ser associado ao processo de

modernização da liturgia católica realizado pelo Concílio Ecumênico Vaticano II, iniciado,

em 1962, pelo papa João XXIII (1959-63) e encerrado, em 1965, pelo papa Paulo VI (1963-

1978). Foram anos em que, no Brasil, jovens estudantes de teologia, como os irmãos

Leonardo e Clodovis Boff, procuraram elaborar, sob a influência das reflexões dos padres

Almeri Bezerra e Henrique Vaz e do Frei Carlos Josaphat e das ideias da teoria da

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dependência de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, uma teologia que exprimisse

“o caminho de uma Igreja libertadora, que se insere no meio do povo, que deseja a

transformação social, a partir da fé” (SALEM, 1981: 40).

Essa proposta da Igreja Popular representava o afastamento de sua aliança

tradicional com o estado, resultando “na teologia da libertação e no movimento das

comunidades de base” pós-Concílio Vaticano II (BURITY, 2006: 41). Essas ideias se

materializaram na II Conferência Episcopal Latino-Americano realizada em Medellín, na

Colômbia, entre 24 de agosto a 6 de setembro de 1968, quando a Igreja latino-americana

“realizou uma ‘recepção criativa’ do Concílio à luz da realidade latino-americana”. Neste

simbólico ano, Gustavo Gutierrez sistematizou o discurso libertador em artigos dispersos,

que, em 1969, são reunidos e publicados em formato de livro sob o título de Hacia una

teología de la liberacíon (NORONHA, 2012: 187). Para ele, "negar o fato da luta de

classes é, na realidade, tomar partido em favor dos setores dominantes. A neutralidade neste

assunto é impossível" (Apud LÖWY, 1989: 16).

Tanto os irmãos Boff, quanto G. Gutierrez chegaram às mesmas conclusões, no

sentido de transformar a prática social e política da Igreja em uma nova sistematização

teológica, na qual as Sagradas Escrituras eram interpretadas a partir do ponto de vista dos

oprimidos, fazendo com que toda reflexão teológica partisse da realidade, em suas

múltiplas dimensões (econômicas, sociais, políticas e culturais).

Nessa nova leitura evangélica há uma valorização da religiosidade popular, como

romarias e procissões, resgatando-se experiências sociorreligiosas como, por exemplo, a de

Belo Monte, liderada por Antônio Conselheiro no final do século XIX. Conforme

depoimento de D. Tomás Balduíno, as Romarias da Terra estão “em perfeita continuidade

com aquela religiosidade dos sertanejos de Canudos, que mantinham uma profunda

harmonia entre as expressões de fé e a ação guerreira de defesa do povo” (BALDUÍNO,

2001: 16).

Dom Pedro Casaldáglia, ao ser ungido bispo de São Félix do Araguaia, em 1971,

lançou a carta pastoral Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a

marginalização social, que ecoou fortemente na Igreja e no país. Como desdobramento da

“denúncia das consequências da desastrosa política do "milagre brasileiro" levada à

Amazônia pela ditadura militar em cumplicidade com o empresariado, atropelando índios e

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posseiros”, criou-se a Comissão Pastoral da Terra (CPT), em Goiânia no mês de junho de

1975, sob a chancela de dom Fernando Gomes dos Santos. Mas não tratava apenas da

Amazônia, pois de “todas as partes chegavam notícias de repressão contra grupos de

trabalhadores rurais e contra agentes de pastoral que os acompanhassem ou apoiassem”

(BALDUÍNO, 2001: 14).

Compartilhando dessas ideias, a atuação episcopal de Dom José Brandão de Castro

na Diocese de Propriá, em 1971, também assumiu, como prioridade pastoral, a criação de

Comunidades Eclesiais de Base à luz da Teologia da Libertação, como pode ser visto na

Carta Pastoral, publicada no jornal A Defesa, do dia 10 de outubro. Para o padre Isaías

Nascimento Filho, o bispo soube valorizar a cultura popular, como o samba de coco dos

camponeses de Santana dos Frades, a dança do toré dos índios Xocó da Ilha de São Pedro,

bem como a religiosidade popular na proposição das Romarias da Terra (NASCIMENTO

FILHO, 2012: 81 e 10).

Acolhidos por esse bispo diocesano, os frades franciscanos Angelino Caio Feitosa,

Juvenal Vieira Bomfim, Roberto Eufrásio de Oliveira e Enoque Salvador de Melo levavam

em consideração os poetas, violeiros e cantadores de toada para o processo de

evangelização. Segundo Roberto Eufrásio de Oliveira, esses “comunicadores populares

tiveram um papel importante na divulgação das mensagens centrais do Evangelho de Jesus”

nos sertões sergipanos (OLIVEIRA, 2007: 25).

Do ponto de vista artístico, a renovação litúrgica do Concílio Vaticano II

representou “o desfecho de um lento e longo processo depurativo da arte sacra. Em

realidade, a construção de um ideal de economia de imagens nos templos vinha se

desenvolvendo há muito tempo, desde o Concílio de Trento (1545-63)” (BAPTISTA, 2015:

59).

Esse processo teve continuidade no século XIX, tendo como ideia central a

transformação dos fiéis “de observadores silenciosos em participantes ativos da oferenda”,

nas palavras do Papa Pio XI. Essa proposta de transformação litúrgica da missa também

implicou numa modificação arquitetônica na qual o “altar e a congregação haviam se

aproximado mais e mais um do outro”. Enfatizava-se

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o caráter da igreja como assembleia do povo de Deus e a importância da

ação comunitária na celebração litúrgica, tendo o altar como o lugar da

vida comunitária paroquial. Estes critérios deveriam ser também a fonte

inspiradora da nova arte religiosa (BAPTISTA, 2015: 58 e 61).

A tentativa de criar uma arte que traduzisse as aspirações de uma Igreja que optara

preferencialmente pelos pobres foi materializada por diversos artistas, como o espanhol

Mino Cerezo Barredo, realizando a representação de Cristo rodeado por camponeses e

operários como forma de “exprimir o conceito da libertação dentro do campo católico

cristão” (FRADE, 2012: 57).

A pintura mural realizada por Frei Juvenal Bomfim no altar mor da igreja pode ser

inserida nessa proposta de representação de experiências evangelizadoras em favor da

libertação de índios, quilombolas, trabalhadores rurais sem terra do baraço e cutelo dos

chefes políticos latifundiários, tomando a realidade cotidiana como ponto de partida de

valorização da cultura dos sertões nordestinos. Como sugeriu frei Roberto de Oliveira, o

cultivo da memória tornara-se importante na ação evangelizadora dos dominados e a

representação artística dessa realidade cotidiana consolidava a memória de luta pela vida

em tempos sombrios de ditadura militar (OLIVEIRA, 2007: 33).

Segundo o próprio frade-artista, o mural representou o “Cristo sertanejo, moreno,

repartindo o pão, aves e flores, que lembram a confiança no Pai. Mais ainda: toda a vida do

lugar: feira, vaqueiros, agricultores, bordadeiras, professora, e o rio São Francisco” (Citado

na Carta da Comissão Diocesana das CEBs da Diocese de Garanhuns, 25/5/2018).

A inauguração se deu no dia 8 de dezembro de 1970, durante a festa de Nossa

Senhora da Conceição, padroeira da cidade, sendo registrada por Dom José Brandão de

Castro no jornal A Defesa, da Diocese de Propriá:

No dia 8, celebrou-se a festa da Padroeira da Cidade e da Paróquia,

inaugurando-se ao mesmo tempo um belíssimo mural, onde se veem: a Igreja de

Nossa Senhora dos Prazeres, Ilha do Ouro, um vaqueiro campeando gado,

enxadeiros cavando a terra, plantadeiras de arroz, bordadeiras e rendeiras,

piladeiras de arroz em ação, professora, aguadeiro, os edifícios característicos da

vida social organizada, a feira com os produtos típicos da região, feirantes e

compradores com os traços fisionômicos de um ‘buraqueiro’ e a rua da

Baixinha, onde branquejava a casa da Fraternidade e por onde se vê a Igreja toda

alva também. No centro, repartindo o pão, Cristo Sacerdote, a cuja frente está o

sacrário, onde permanece, dia e noite, o Pão Vivo descido do céu (A DEFESA,

25/12/1970: 4).

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A preocupação social da arte brasileira, desde o modernismo, foi marcada tanto pela

denúncia social, quanto por temas populares, com tendências figurativas evidentes sob a

influência do muralismo mexicano. Para Ana Paula Baptista (2002), a arte mural

estabeleceu um ponto de inflexão entre a arte moderna e a arte sacra, na medida em que, no

período de 1943-1955, se privilegiou pinturas murais em templos católicos com

encomendas para artistas modernos, como Cândido Portinari e Alfredo Volpi. Portanto, a

pintura mural de Frei Juvenal Bomfim não destoava de iniciativas similares patrocinadas

pela Igreja Católica, mesmo antes do Concílio Vaticano II e estava em sintonia com a

manutenção da tendência figurativa nas artes plásticas no Nordeste brasileiro, que, à época,

representava uma consciência estética pautada pelo respeito à diferença e à flexibilidade na

percepção do outro (BARBOSA, 1997: 242).

Por outro lado, podemos situá-la no contexto da resistência artística ao autoritarismo

vigente e tributário do ar irrespirável do seu tempo (1970), compartilhando, com artistas

como Glauber Rocha, de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e de Antonio Callado,

com Quarup (1967), a busca pela recuperação da cultura popular autêntica, sob a influência

do romantismo revolucionário. Essa resistência não se restringia à experiência urbana,

estendendo-se por espaços rurais no debate para a construção de uma identidade nacional e

política do povo brasileiro, tendo por base a cultura popular para forjar uma nova nação

(RIDENTI, 2006).

Seguindo as diretrizes do Concílio Vaticano II, a pintura mural dava a

predominância e ênfase à figura de Cristo, mas um Cristo sertanejo e moreno, repartindo o

pão. Acima dele temos a imagem do Espírito Santo, que pode ser associada ao próprio

Deus, parte da Santíssima Trindade, juntamente com Deus Pai e Deus Filho. A simbologia

da pomba branca remetia à paz e os raios de fogo irradiavam sua força sobre todos que

habitam as margens do rio São Francisco.

Essa imagem lembra-nos a visão da Última Ceia em sonho profético do Padre

Cícero Romão Batista, em que Cristo, diferentemente da pintura de Leonardo da Vinci, em

seu manto azul sobre túnica vermelha, “trazia o peito em chamas, a exemplo das gravuras

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populares do Sagrado Coração. Quando Jesus começou a falar aos discípulos reunidos em

torno de si, uma multidão de sertanejos apontou na porta” (LIRA NETO, 2009: 44).

Mas, ao contrário dos homens e mulheres miseráveis e trajes andrajosos do sonho

do Padre Cícero, Frei Juvenal representou os trabalhadores do sertão do São Francisco:

vaqueiros, pescadores, carreiros, agricultores, feirantes, rendeiras, bordadeiras e a

professora primária. A valorização do catolicismo de fé, trabalho e caridade tem longa

tradição na religiosidade popular sertaneja, destacando-se Padre Ibiapina, Padre Cícero,

Antônio Conselheiro e o beato José Lourenço. Dessa forma, as imagens do mural traziam

dignidade aos excluídos como contraponto à imagem do Nordeste simbolizado pela fome,

miséria, fanatismo e banditismo. O sertão arcaico e esquecido pelo poder público era

representado por trabalhadores, que, com a dignidade do trabalho, atuavam como cidadãos

em tempos sombrios de ditadura militar.

Imagem 1

Fotografia do autor

(Mural de autoria de Frei Juvenal Bomfim, Igreja de Nossa Senhora da Conceição, Porto da Folha,

Sergipe, 2/6/2018)

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Na parte superior do mural temos a representação do rio São Francisco, com canoas

de tolda navegando em suas águas. Como espaço simbólico privilegiado para a definição da

nacionalidade, o rio São Francisco foi transformado em eixo da civilização brasileira, cujas

margens se desenvolveram fazendas de gado e nasceram “estradas e o povoamento quase

contínuo”, desde o período colonial. Há aqui a associação ao passado da civilização do

couro, onde a atividade dos vaqueiros se constituiu como referência para a construção da

diferença do universo sertanejo. No chamado “rio dos currais”, a presença de carros de bois

era ainda considerável no transporte de carga entre a fazenda e a feira, mas também

jumentos ou jegues eram utilizados, por sua capacidade de resistência ao clima semiárido.

Essa parte remete, assim, à centralidade da pecuária nos sertões nordestinos, de onde do

couro do boi se é retirado tiras que amarravam a taipa das paredes das casas, a mobília, o

vestuário do vaqueiro; da carne, a charque para vender e o leite era transformado em

manteiga, doce, queijo (ABREU, 1963: 293 e 149).

Nessa etnografia das minúcias da vida cotidiana dos sertões nordestinos a força da

mulher, para descrever a história do baixo São Francisco, se fazia representar na pintura,

evidenciando a ruptura com o espaço privado que lhe era destinado pela sociedade

patriarcal. Não podemos esquecer que foi no espaço sagrado da igreja que a mulher se fez

presente na vida pública. Como bem apontou Luitgarde Barros, apesar

de haver o sacristão em toda igreja, a pretexto de cuidar da manutenção

das alfaias dos templos, dos bordados e dos engomados, a chave das

igrejas sempre esteve na mão de alguma mulher que comandava as

ladainhas, novenas e terços, instâncias do público onde atuavam as

mulheres (BARROS, 2015: 235).

De forma sensível, o frade retratou a mulher, como sujeito da história, no exercício

de profissões como professoras, bordadeiras e plantadoras de arroz nas ribeiras do grande

rio. Dentre essas representações, podemos destacar a tradição das rendeiras e bordadeiras

na cidade de Porto da Folha, secular trabalho que remontava ao século XIX. Segundo

Beatriz Góis Dantas (2005: 146):

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Fiar, tecer, rendar, costurar são atividades nas quais os fios, seja de

algodão ou outras fibras vegetais, tecidos ou trabalhados pelas mãos das

artesãs, aparecem como fulcro de diversos trabalhos femininos. Por essa

forma, fusos, rocas, teares, almofadas, bilros, agulhas, linhas e tesouras

eram instrumentos que faziam parte do cotidiano de mais de metade das

mulheres da região no segundo quartel do século XIX.

Sua análise foi baseada nos relatos de viajantes dos distantes sertões de Porto da

Folha nos séculos XIX e XX, cuja feira era um ponto focal para a comercialização das

rendas e de outros produtos artesanais saídos de mãos femininas, como as louças de barro

também registradas pelo frade-artista.

Imagem 2

Fotografia do autor

(Mural de autoria de Frei Juvenal Bomfim, Igreja de Nossa Senhora da Conceição, Porto da Folha,

Sergipe, 2/6/2018)

Já a representação do aguadeiro, com seu jegue, traz a precariedade do serviço de

fornecimento de água na ribeira do São Francisco, revelando os modos de vida popular na

luta pela sobrevivência cotidiana. Esse registro visual do aguadeiro simbolizava o

provincianismo das vilas e dos portos do rio São Francisco e a precariedade da vida das

classes populares. Também merece destaque o lugar do jumento na imagem que, ao encarar

o espectador, se coloca como um elemento característico do rio São Francisco, pois, mais

sóbrio e resistente que o cavalo, prestava “serviços como animal de carga e sela varando os

trilhos do sertão, minorando a escassez de transportes”. Sob a cangalha, com dois

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“ancorotes por lado baldeando água para as casas”, o jerico servia água para os remediados,

enquanto os pobres iam buscar em cabaças, diretamente no rio (PROENÇA, 1944: 143).

Imagem 3

Fotografia do autor

(Mural de autoria de Frei Juvenal Bomfim, Igreja de Nossa Senhora da Conceição, Porto da Folha,

Sergipe, 2/6/2018)

No afã de retratar os excluídos da história, percebemos também, na pintura mural, a

presença do negro, desconstruindo a invisibilidade e o deslocamento marginal dos não-

brancos no interior do campo simbólico sertanejo. Como bem apontou René Marc Silva

(2006), ao contrário de toda a evidência e documentação históricas, o negro no sertão é uma

realidade invisível, especialmente no que se refere à sua contribuição, mesmo marginal, na

formação da composição étnica sertaneja, na participação histórica ou mesmo na formação

cultural do sertão.

Nesse sentido, mesmo que de forma marginal na pintura mural, o artista registrou,

de modo arguto, o negro carregando um cesto em suas costas, revelando a ativa

participação de elementos não-brancos na formação social e cultural da comunidade

ribeirinha, numa possível alusão ao povoado Mocambo no município de Porto da Folha.

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Imagem 4

Fotografia do autor

(Mural de autoria de Frei Juvenal Bomfim, Igreja de Nossa Senhora da Conceição, Porto da Folha,

Sergipe, 2/6/2018)

No canto esquerdo da pintura mural, a representação da casa da fraternidade na Rua

da Baixinha refletia a retomada dos ensinamentos de São Francisco e seus primeiros

companheiros, onde “o que cada um frade recebe, todos recebem”. Segundo frei Roberto

Oliveira, a opção por morar na Rua da Baixinha ao invés da casa paroquial na praça da

matriz era um projeto de vida dos frades Angelino Caio Feitosa, Juvenal Vieira Bomfim,

Roberto Eufrásio de Oliveira e Enoque Salvador de Melo. Era uma casa simples, com

uma sala, um quarto, sala de refeição e cozinha, banheiro e pequeno

quintal. Escutando as risadas de Prazeirinha, vendo a chegada semanal de

nosso vizinho Chiquinho Mouco com suas conversas emblemáticas,

acolhendo as visitas do pessoal do interior nos dias de feira (...). Vale a

pena lembrar os traços de nossa vida fraterna e apostólica (OLIVEIRA,

2007: 23).

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Como os símbolos dessa produção artística são construções históricas, definidas

dentro de determinada experiência histórica em que interagem artistas e instituições

culturais, nossa análise está inspirada na argumentação do escritor e crítico de arte John

Berger, que definiu a palavra imagem como “imagem feita pelo homem. Uma imagem é

uma vista que foi recriada ou reproduzida” e que nenhuma “outra espécie de vestígio ou de

texto do passado pode dar um testemunho tão direto sobre o mundo que rodeou outras

pessoas, noutros tempos” (BERGER, 1982: 13 e 14).

Entretanto, o que está em jogo aqui é algo bastante mais vasto:

Um povo ou uma classe que é segregada do seu próprio passado é menos livre

de escolher e agir como povo ou como classe que outros que hajam conseguido

situar-se a si próprios na história. É esta a razão – e a única razão – pela qual

toda a arte do passado se tornou agora uma questão política (BERGER, 1982:

37).

Em 1º de junho de 2018, em ofício enviado ao Conselho Estadual de Cultura, a

Diocese de Propriá, baseada em parecer do padre José Silvano Onofre de Amorim,

arquiteto, urbanista e sacerdote da Diocese de Caruaru (Pernambuco), argumentava que

“são da opinião de se opor ao tombo da Igreja Matriz em tela, ou de qualquer patrimônio a

ela pertencente ou integrado, valendo-se da faculdade de defesa da propriedade”. Este

documento, datado de 28 de maio de 2018, sugere o painel como “ofensivo ao sentimento

religioso, deturpador das formas pela deficiência, mediocridade ou simulação da arte”. Para

ele, a obra é uma “interpretação local e livre das orientações da Igreja”, considerando-a

como “uma violência ao conjunto arquitetônico” (ANDRADE JÚNIOR, 2018: 5 e 6).

Como solução para o conflito entre os católicos da cidade, os administradores

católicos se comprometem “a sua reprodução num ambiente externo do edifício religioso,

com as mesmas dimensões, sendo aplicado na parede da sacristia e do ‘Salão Frei

Angelino, voltado para a praça Pedro Xavier de Melo” (ANDRADE JÚNIOR, 2018: 5 e 6).

A relatoria do processo de tombamento foi transferida para o conselheiro Péricles

Morais de Andrade Júnior, que, em 20 de junho de 2018, se contrapôs à argumentação

diocesana, citando a legislação do patrimônio histórico, artístico e cultural no Brasil,

presente no artigo 216 da Constituição Federal, que define

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a gestão do patrimônio e da documentação relativa aos bens sob

responsabilidade da administração pública. Desse modo, as decisões

quanto ao tombamento ou outras formas de proteção do patrimônio é de

responsabilidade do poder público (ANDRADE JÚNIOR, 2018: 15).

Essa interpretação do relator do processo de tombamento expôs a disputa entre a

memória pública e a memória privada, já que existe “a prerrogativa constitucional de

intervir no bem de propriedade privada quando o interesse público requer a garantia do

direito à memória, como Direito Coletivo” (ANDRADE JÚNIOR, 2018: 16).

Do ponto de vista patrimonial, o parecer do relator traz o necessário debate sobre a

preservação do patrimônio histórico e religioso para além do barroco colonial, eleito como

a arte sacra brasileira por excelência, incorporando-se outras experiências artísticas

contemporâneas como representativas da arte sacra, como é o caso da influência pós-

Concílio Vaticano II.

Como a memória está sempre ameaçada pela amnésia, em meio à discussão da

importância histórica e estética da pintura mural da Igreja Matriz de Nossa Senhora da

Conceição no âmbito do Conselho Estadual de Cultura, a ação inescrupulosa de criminosos

destruiu parte da pintura mural, na madrugada do dia 5 de junho de 2018, o que levou o

caso para a delegacia de polícia. Em notícia publicada no dia 7 de junho de 2018, o

delegado do município declarou que a perícia não constatou sinais de arrombamento e a

pintura “foi destruída com solvente e raspada com uma espátula” (RIOS, 2018: 1).

No dia 11 de junho de 2018, com a anuência do bispo de Propriá, Dom Vítor

Agnaldo de Menezes, e do pároco de Porto da Folha, Melchizedeck de Oliveira Neto, foi

realizada a completa destruição da pintura mural por operários contratados, como pode ser

constada na fotografia tirada na Igreja Matriz:

Imagem 5

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Fotografia sem autoria identificada

(Igreja de Nossa Senhora da Conceição, Porto da Folha, Sergipe, 6/6/2018)

Essa atitude autoritária expôs o afrontamento ao direito ao passado como uma das

dimensões fundamentais da plena cidadania, fazendo-se necessário ampliar o debate para

além das decisões do Conselho Estadual de Cultura com a convocação do Ministério

Público Estadual para garantir esse direito constitucionalmente garantido. Por certo, a

aprovação unânime do tombamento do bem cultural em questão, em reunião do dia 19 de

junho de 2018, no Conselho Estadual de Cultura, significa apenas o início dessa batalha de

memórias.

Podemos considerar o caso como emblemático para se discutir história, memória e

esquecimento, pois, para estabelecer uma política de justa memória, é “preciso encontrar o

equilíbrio entre a obsessão pelo passado e as tentativas de imposição do esquecimento”

(ARAÚJO & SANTOS, 2007: 95).

A memória tem uma relação dialógica com o esquecimento, na medida em que tem

a mesma amplitude que as dimensões mnemônica e histórica. Por isso, o esquecimento é o

emblema da vulnerabilidade de toda a condição histórica. A memória “só poderá

desempenhar a sua função social através de liturgias próprias, centradas em reavivamentos,

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que só os traços-vestígios do pretérito são capazes de provocar”. Como apontou Fernando

Catroga,

o seu conteúdo é inseparável dos seus campos de objectivação e de

transmissão – linguagem, imagens, relíquias, lugares, escrita,

monumentos – e dos ritos que o reproduzem. O que mostra que, nos

indivíduos, não haverá memória colectiva sem suportes de memória

ritualisticamente compartilhados (CATROGA, 2001: 48).

A destruição da pintura mural como esquecimento manifesto traz a discussão de

que, para além da questão do conhecimento histórico-cultural, a memória é cidadania, na

medida em que lida com a construção do sentido dos indivíduos em sua inserção no tempo,

interligando o passado, o presente, o futuro numa rede de afetos, de reflexão e de

esperança, como base nas alterações das exigências da vida (Cf. TEDESCO, 2004, 34-39).

Como relação intersubjetiva, a memória só existe no plural e essa pluralidade

“conforma um campo de batalha em que o que se luta pelo sentido do presente de modo a

delimitar os materiais com os quais se quer construir o futuro” (NIGRA, 2016: 66).

Portanto, nessas batalhas da memória, a luta pela preservação da pintura mural pode

contribuir para o enfrentamento às tendências de homogeneização cultural em que o

“resgate do passado [é] (re) construído pelo presente mediante a patrimonialização dos

elementos culturais locais” (ANICO, 2004). Contra a amnésia, essa mobilização

comunitária buscou estabelecer uma ligação afetiva às referências do passado, contra o

distanciamento e o alheamento da maioria da população sergipana com relação aos traços

do passado nos sertões do baixo São Francisco. Ao mesmo tempo, pode ser inserida na luta

contra o esquecimento imposto à resistência cultural naqueles tempos sombrios de ditadura

militar, pois, nas últimas três décadas, diversas iniciativas memoriais demonstram que esse

é um “passado que não quer passar”.

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Aceito em: 05 de fevereiro de 2019