ARQUIVOS POTICOS DE OBJETOS, SISTEMAS FRTEIS PARA ECOSSISTEMAS INVENTADOS.
Roseli Nery. FURG/UFRGS
RESUMO
Este artigo aborda o conjunto de objetos cotidianos organizados como os arquivos poticos, que se estabelecem como sistema ideal para a potencializao do processo criativo o qual resulta na construo da obra tridimensional caracterizada como ecossistemas poticos.
Palavras-chave: objeto cotidiano, arquivos poticos e ecossistemas.
ABSTRACT
This article discusses the set of everyday objects arranged as poetic files, which are established as optimal for the enhancement of the creative process that results in the construction of three-dimensional work characterized as ecosystems poetic system.
Key words: everyday object, poetic files and ecosystems.
Arquivos poticos.
Em alguns processos criativos em arte comum o uso de arquivos com potencial
para a criao. Dentre os diferentes elementos materiais que so referncias e ficam
latentes para posterior utilizao, destacam-se anotaes, textos, imagens e objetos.
Aqui, enfatizamos os arquivos de objetos, mais especificamente os de objetos
cotidianos, como recurso para a construo de poticas tridimensionais que
apresentem o estudo das relaes entre objetos os quais levam construo de
ecossistemas poticos a partir dos arquivos disponveis. Consideramos como
ecossistemas poticos as construes tridimensionais obtidas pela juno de
objetos cujos aspectos formais e/ou no formais estabeleam relaes entre si onde
o produto final diferente daquele que o gerou, na forma e no significado.
Objetos esto por toda parte, disponveis ao olhar e ao consumo. A cada dia,
surgem novas invenes para necessidades novas ou para aquelas que
permanecem desde sempre. Podem ser objetos tecnolgicos de comunicao cada
vez mais inteligentes, ou um simples copo com design arrojado, um cabide ou
gancho. E ento, estas coisas esto disponveis para entrar nas nossas casas. As
vitrines das lojas convidam para o consumo, as cores, formas e tecnologias nos
assediam e muitas vezes nos conquistam e acabam em nossas casas para compor
o ambiente domstico. Dentre tantas coisas que adquirimos, esto as grandes,
como carros, mveis e eletrodomsticos, e as inmeras pequenas, como utenslios
de cozinha, talheres, objetos de costura, papelaria, ferragens, etc. No h como
evitar que estas coisas participem do nosso cotidiano. Sua presena to marcante
que passou a ocupar lugar nas prticas artsticas tridimensionais como uma
categoria prpria. Ao comporem a obra artstica os objetos levam consigo sua
funo, sua histria, e caractersticas de que os usa. Segundo Agnaldo Farias, os
objetos:
indubitavelmente mais prximos, so acessveis, extenses evidentes de ns mesmos, o que se verifica pelo uso continuado, quando eles se impregnam do nosso suor, quando as xicrinhas de caf tm as bordas de porcelana gastas pelo contato com os lbios, as alas das bolsas desfazem-se pelo atrito dos dedos agarrados, a irregularidade do colcho macio significa a memria do peso e forma do nosso corpo, a toalha da mesa converte-se num mosaico de manchas desbotadas, um conjunto de ndoas resultantes dos pequenos desastres que permeiam as infinitas refeies havidas sobre elas (FARIAS, 2008).
Os artistas Nino Cais (So Paulo, 1969), que instigou o texto citado de Agnaldo
Farias pelas suas obras que aproximam objeto e corpo, Jeanete Musatti (So Paulo,
1944) e Lynn Beldner (Filadlfia, 1954) so artistas que tem em comum o uso de
objetos cotidianos em suas obras e de alguma maneira utilizam-se da prtica de
coletar objetos e guard-los para posterior utilizao, criando os denominados
arquivos poticos de objetos, sejam eles de objetos novos, adquiridos em lojas,
doados ou encontrados, os quais podem trazer consigo as marcas de seu uso ou
caractersticas de seu usurio. Jean Baudrillard (2000) e Abraham Moles (1981) a
partir da percepo da frequncia significativa dos objetos se dedicaram ao estudo
das suas relaes com as pessoas. Baudrillard enfatiza sua presena marcante pela
quantidade e variedade de coisas que no param de se multiplicar e serem
substitudas por outras de maneira muito rpida e incessante. J Moles percebe o
objeto como um elemento de comunicao social importante e carregado de valores
para ele o objeto mais ou menos personalizado, mais ou menos assinado menos
pelo seu criador do que pelo seu expedidor (MOLES,1981, p. 22). Neste contexto
de quantidade, variedade, apreciao e significado dos objetos do entorno em que
se vive, est a produo tridimensional representada pelo trabalho dos artistas
citados. Esta produo diretamente dependente do olhar atento para os objetos
muitas vezes insignificantes e invisveis no dia a dia e que so escolhidos por eles
para suas criaes. Entendemos que esta produo especfica de cada artista
associa-se tambm maneira de como seus objetos originais ficam guardados e
latentes at serem ativados durante o processo criativo para compor a obra de arte.
Organizao e visibilidade
Os arquivos poticos podem ser criados de vrias maneiras, de acordo com o
mtodo de trabalho de cada artista. Aqui abordamos as prticas dos artistas Nino
Cais, Jeanete Musatti e Lynn Beldner no que diz respeito ao uso de objetos banais
ou formas de organizao dos objetos como exemplos de metodologia eficaz para a
prtica artstica proposta por eles. Estes artistas tem em comum a busca pelo objeto
que pode acontecer por doao ou a partir de deslocamentos por lojas populares,
ferragens, lojas de aviamentos, armarinhos, ou outros locais cujos objetos oferecidos
estejam de acordo com suas poticas, sejam os baldes e bacias coloridas de Nino
Cais (Figura 1), as miniaturas de Jeanete Musatti (Figura 2) ou os prendedores de
roupas de Lynn Beldner (Figura 3).
Figura 1. Instalao de Nino Cais. 2007/2009. Disponvel em http://ninocais.tumblr.com/. Acesso em
19 de junho de 2014.
Figura 2. Obra de Jeanete Musatti, South Amrica. 1988. Fonte: MUSATTI, Jeanete. So Paulo: DBA
Artes Grficas. 2009.
Figura 3. Detalhe do trabalho de Lynn Beldner, Mesa. 2011. Disponvel em:
http://www.lynnbeldner.com/stuff/ Acesso em 19 de junho de 2014.
A respeito do tamanho dos objetos, Moles (1991, p. 27) considera micro-objetos
aqueles que se seguram entre os dedos, j Michel Peterson quando descreve os
pequenos objetos na poesia de Francis Ponge (2000, p. 16) identifica como
pequeno, aqueles que se podem pegar no cncavo da mo. De uma maneira ou
outra, quando o objeto escolhido, estabelece-se uma relao de escala entre ele e
a pessoa que o carrega. E, no momento em que adquirido, sofre apropriao e
deslocamento de sua funo para ganhar vida no contexto da arte onde lhe dado
um novo significado do qual podem surgir outras diferentes relaes de
comunicao. Jeanete Musatti e Lynn Beldner utilizam estes objetos de pequena
escala em suas criaes o que mais refora a necessidade de arquiva-los de
maneira organizada e visvel para que estejam disponveis e acessveis a qualquer
momento.
Jeanete Musatti guarda parte de seus objetos em arquivos de ao com vrias
gavetas e, segundo depoimento da artista, ela os considera como sua paleta de
pintura (SOARES, 2002), Figura 4.
Figura 4. Gaveta do arquivo de Jeanete Musatti. Frame do documentrio Jeanete Musatti. Fonte:
Soares (2002).
So miniaturas originalmente usadas para prtica de artesanato, botes, estojos,
sapatos de crianas, ferragens e coisas muitas vezes insignificantes ao olhar
cotidiano que naturalmente correriam o risco de serem descartados.
Lynn Beldner similarmente, mas de forma mais metdica e especfica possui em seu
ateli uma estrutura organizada para acolher seu material de trabalho, ela mantm
suas pequenas coisas, como ganchos, parafusos e lmpadas classificadas e
separadas em gavetas e potes, muitas vezes etiquetadas, tornando-as de fcil
acesso e visveis ao uso (Figura 5).
Figura 5: Arquivos poticos de objetos diversos de Lynn Beldner. 2014. Fotografia de Lynn Beldner,
acervo da Artista.
Assim, os arquivos de objetos cotidianos destas artistas trazem consigo a
organizao e classificao dos objetos adquiridos de acordo com a necessidade e
personalidade de cada uma, mas a partir do momento em que se apropriam e
tomam posse destas coisas, estas tem a sua funo de comunicao ressignificada
quando se tornam obra de arte.
Ao trazer os objetos para o ateli, comea uma srie de etapas de organizao cuja
execuo adequada poder ocasionar em melhor ou pior facilidade de criao e
eficcia esttica do objeto artstico criado. Jacques Rancire (2012, p.58) denomina
que eficcia esttica a eficcia da suspenso de qualquer relao direta entre as
produes das formas de arte e a produo de um efeito determinado sobre um
pblico determinado isto , existe uma diferena entre o que o artista formalmente
prope e a compreenso sensvel do espectador, entendendo-se que deva existir
uma lacuna espao temporal para a percepo do espectador e o reconhecimento
da obra como tal. Acredita-se que a organizao material atravs de arquivos possa
potencializar o trabalho objetivando a eficcia esttica da obra de arte. Este
pensamento est de acordo com o entendimento de que o processo de obteno da
obra to importante quanto a obra final e possvel potencializar o processo
criativo quando se conhece seu prprio mtodo de trabalho e coloca-se nas
condies ideais para criao em um ambiente dinmico e flexvel mas em que se
tenha vista as referncias e o suporte material necessrio, suas ferramentas e
seus cdigos de linguagem. Os procedimentos de criao do artista podem incluir
anotaes, esboos, referncias visuais, e entre outros vestgios da obra, os
arquivos poticos, estes, so objetos de estudo de tericos e crticos de processo
(SALLES, 2008) que buscam o entendimento da gnese da obra e maior
aproximao com a obra do artista. Do ponto de vista do criador entendemos que a
partir do conhecimento de seus prprios documentos do processo e seu mtodo de
trabalho aliado ao ambiente, possvel alcanar a melhor performance de criao.
Segundo Salles (2012, p. 525) o debate sobre a produo artstica recai, em muitos
casos, sobre questes que envolvem o processo de criao tornando-o importante
na insero da obra no sistema das artes e no contexto da arte contempornea.
Tendo em vista a conscincia da importncia do ambiente e seus elementos para
criao o artista pode-se propor mtodos estratgicos para compor seus arquivos
poticos. Quando o artista adquire um objeto, a escolha pode vir atravs de uma
percepo instantnea de algo que se mostra adequado naquele momento, ento
ele arquivado para posterior ativao no processo artstico, pois, muitas vezes no
se sabe de antemo como ser utilizado. Neste sentido, buscam-se regras bsicas e
intuitivas de organizao de arquivos, de acordo com a necessidade do artista.
Acomoda-se em caixas e/ou gavetas de preferncia transparentes. O momento de
arquivar muito importante, ao organizar, se conhece o objeto, se pega na mo,
aproxima-se o olhar e criam-se relaes com o corpo de quem o toca. Este simples
gesto de manipulao poder ativar o processo criativo. Cecilia Salles defende
manter-se um dossi de criao para potencializar a eficincia do processo, assim,
durante a criao do arquivo de objetos torna-se importante, fazer anotaes sobre
o objeto ou de possveis situaes de uso. Visualmente, est-se buscando um
espao frtil para a criao, composto pelos objetos aparentes organizados de
maneira que facilitem a visibilidade e manuseio.
A partir destes arquivos poticos organizados de maneira diversa, os elementos
esto disposio do artista. Estabelecem-se a convivncia e as relaes de afeto
com os objetos. neste momento que acontecem os estudos prticos, tentativas,
esboos, anotaes e registros para a finalizao do trabalho escultrico que pode
ser satisfatrio, ocupando lugar de destaque na produo ou no satisfatrio quando
pode ser descartado, destrudo ou utilizado como estudo para nova criao, tornar-
se latente e, quem sabe, voltando a compor os arquivos poticos. Cecilia Salles
(2008, p.15) nos diz que o processo de criao, pode ser descrito como um
movimento falvel com tendncias, sustentado pela lgica da incerteza, englobando
a interveno do acaso e abrindo espao para a introduo de ideias novas, logo,
neste vai-e-vem flexvel da criao onde erros e acertos coabitam, as falhas so
igualmente importantes e pela persistncia levam a continuidade do processo no
qual se pode recorrer constantemente aos arquivos poticos.
Utilizao dos arquivos poticos para ecossistemas inventados
A produo tridimensional dos artistas escolhidos para esta abordagem caracteriza-
se pela juno entre os objetos extrados dos arquivos poticos onde se encontram
organizados e habitando espaos ntimos como gavetas e caixas. Propem-se o
estudo do objeto em grupo abordada por Moles (1981, p. 20) onde os elementos do
grupo, objetos, conhecendo-se uns aos outros , coabitam , coexistem num espao
restrito como uma ecologia dos objetos. O autor estabelece similaridades entre as
populaes biolgicas e as artificiais composta por criaes humanas. O homo faber
aquele que cria, e produz os artefatos essenciais para sua vida, vive entre suas
coisas e tambm faz parte deste sistema ecolgico misto que inclui seres vivos e
outros que no so vivos considerando o significado mais comum da palavra, mas
so vivos na presena e na afetividade podendo alcanar grande valor nas relaes
humanas. Neste sentido, tomamos emprestado da biologia o conceito de
ecossistema para contextualizar os trabalhos dos artistas abordados. Segundo
zologo e eclogo Eugene Odum (1913 -2002) um ecossistema
tem como ideia principal a unidade entre os organismos, na qual, outras caractersticas fundamentais incluem: limites (espao-temporais); fatores e componentes que se influenciam mutuamente; sistemas abertos, com entradas (exemplo: luz solar) e sadas (exemplo: respirao e emigrao); e capacidade de resistir e/ou adaptar-se a distrbios (ANGELINI, 1999, p. 2).
Ao observar os trabalhos aqui apresentados entende-se que os artistas
estabeleceram relaes entre os elementos que escolherem para suas poticas
pessoais que se aproximam de ecossistemas. Tais ecossistemas no so naturais,
precisam de um gesto efetivo e um olhar diferenciado para existir, so ecossistemas
inventados compostos por coisas que se aproximam e dividem espaos, sejam em
compartimentos fechados como estojos e caixas, ou livres no espao definido pelo
artista. A princpio esta prtica de aproximao de coisas poderia ser identificada
como simples colagens, sobreposies ou assemblages onde se acumulam e
sobrepem coisas, mas, entendemos que a unio entre os objetos nas obras to
importante que cria uma relao de dependncia entre elas na qual qualquer
alterao nesta relao modifica todo o sistema e seu significado. Neste caso,
quando o objeto escultrico ou a instalao instaurada e apresentada ao pblico
est-se propondo que o sistema se complete com o espectador, a parte viva destes
ecossistemas inventados.
REFERNCIAS
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Roseli Nery Artista visual, pesquisadora e Professora Assistente no Instituto de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio Grande FURG. Doutoranda e Mestre em Poticas Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS. Bolsista CAPES/PDSE processo n 99999.003927/2014-08. Graduada em Artes Plsticas pela Fundao Armando lvares Penteado FAAP/So Paulo.